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CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática. 2002, p. 354-365
- na distinção entre sujeito e objeto do conhecimento: De acordo com autora, esta distinção permite
estabelecer a ideia de objetividade. A objetividade ocorreria da separação entre o sujeito que conhece e
age e os fenômenos conhecidos;
- Na ideia de método enquanto um conjunto de regras, normas e procedimentos gerais, “que
servem para definir ou construir o objeto e para o autocontrole do pensamento durante a investigação e,
após esta, para a confirmação ou falsificação dos resultados obtidos. A ideia de método tem como
pressuposto que o pensamento obedece universalmente a certos princípios internos – identidade, não-
contradição, terceiro excluído, razão suficiente – dos quais dependem o conhecimento da
verdade e a exclusão do falso. A verdade pode ser compreendida seja como correspondência
necessária entre os conceitos e a realidade, seja como coerência interna dos próprios conceitos” (p. 278);
- na ideia de lei do fenômeno: diz respeito às regularidades e constâncias universais e necessárias que
definem o modo de ser e de comportar-se do objeto, “seja este tomado como um campo separado dos
demais, seja tomado em suas relações com outros objetos ou campos de realidade. A lei científica
define o que é fato-fenômeno ou o objeto construído pelas operações científicas” (p. 278). O
campo científico, enquanto lei, define e delimita o objeto, este seria um sistema complexo de relações
necessárias de causalidade, complementariedade, inclusão e exclusão. Esta ideia de lei visa marcar o
caráter necessário do objeto e afastar as ideias de acaso, indeterminação, “oferecendo o objeto como
completamente determinado pelo pensamento ou completamente conhecido ou cognoscível’ (p. 278);
- no uso de instrumentos tecnológicos e não simplesmente técnicos. “Os instrumentos técnicos são
prolongamentos de capacidade do corpo humano e destinam-se a aumentá-las na relação do nosso corpo
com o mundo. Os instrumentos tecnológicos são ciência cristalizada em objetos materiais, nada possuem
em comum com as capacidades e aptidões do corpo humano; visam a intervir nos fenômenos estudados
e mesmo a construir o próprio objeto científico; destinam-se a dominar e transformar o mundo e não
simplesmente a facilitar a relação do homem com o mundo. A tecnologia confere à ciência precisão e
controle dos resultados, aplicação prática e interdisciplinaridade” (p. 279);
- “na criação de uma linguagem específica e própria, distante da linguagem cotidiana e da linguagem
literária. A ciência procura afastar os dados qualitativos e perceptivos-emotivos dos objetos ou dos
fenômenos, para guardar ou construir apenas seus aspectos quantitativos e relacionais (...) A
linguagem científica destaca o objeto das relações com o sujeito, separa-o da experiência vivida
cotidiana e constrói uma linguagem puramente denotativa para exprimir sem ambiguidades as leis do
objeto. O simbolismo científico rompe com o simbolismo da linguagem cotidiana construindo uma
linguagem própria, com símbolos unívocos e denotativos, de significado único e universal ... fala
através dos algoritmos ou de uma combinatória de estilo matemático” (p. 279).
Este ideal científico impõe às ciências, explica a autora, critérios e finalidades que, quando
impedidos de se concretizarem, forçam rupturas e mudanças teóricas profundas: campos e disciplinas
científicas podem desaparecer e outros podem surgir.
Ciência desinteressada e utilitarismo: Desde a Renascença (entre os séculos XIV e XVI), marcada
pelo humanismo que colocava o homem no centro do universo afirmando seu poder para conhecer e
dominar a realidade, duas concepções sobre o valor da ciência estiveram sempre em confronto,
explica Chauí. Quais são?
a) Ideal do conhecimento desinteressado: defende que o valor de uma ciência está na qualidade, no
rigor e na exatidão, na coerência e na verdade de uma teoria, independentemente de sua aplicação
prática. Neste sentido, a teoria científica vale por trazer novos conhecimentos e por ampliar o saber
humano, e não por ser aplicável praticamente. “O uso da ciência é consequência e não causa do
conhecimento científico” (p. 279);
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b) Utilitarismo: Afirma que o valor de uma ciência encontra-se na quantidade de aplicações práticas
que possa permitir. É o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a verdade de uma
teoria científica e lhe confere valor (p. 279).
Na visão de Chauí, as duas concepções são verdadeiras, mas parciais: Inúmeras pesquisas jamais
seriam feitas se uma teoria fosse elaborada apenas por suas finalidades práticas imediatas. Mas, por
outro lado, se uma teoria científica não for capaz de suscitar aplicações, de resolver problemas
importantes para os seres humanos entre outras coisas, “então seremos obrigados a dizer que a
técnica e tecnologia são cegas, incertas, arriscadas e perigosas, porque são práticas sem bases
teóricas seguras. Na realidade, teoria e prática científicas estão relacionadas na concepção moderna
e contemporânea de ciência, mesmo que uma possa estar mais avançada do que a outra” (p. 280).
A ideologia cientificista: O senso comum, explica a autora, ignorando vários aspectos do mundo da
ciência, tende a identificar as ciências com os resultados de suas aplicações. “Essa identificação desemboca
numa atitude conhecida como cientificismo, isto é, a fusão entre ciência e técnica e a ilusão da
neutralidade científica” (p. 280).
O cientificismo: Trata-se da crença, explica a autora, infundada de que a ciência pode e deve conhecer
tudo, que, de fato, conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como esta é em si mesma.
“Ao contrário dos cientistas, que não cessam de enfrentar obstáculos epistemológicos, problemas e
enigmas, o senso comum cientificista desemboca numa ideologia e numa mitologia da ciência” (p. 280).
Mitologia da ciência: Trata-se da “crença na ciência como se fosse magia e poderio ilimitado sobre as
coisas e os homens, dando-lhe o lugar que muitos costumam dar às religiões, isto é, um conjunto
doutrinário de verdades intemporais, absolutas e inquestionáveis” (p. 281).
Chauí chama atenção para o fato de que tanto a ideologia quanto a mitologia cientificistas encaram a
ciência não pelo prisma do trabalho do conhecimento, mas pelo prisma dos resultados – que são
apresentados como espetaculares e miraculosos e sobretudo como uma forma de poder social e de controle
do pensamento humano. Por isso, aceitam a ideologia da competência, isto é, a ideia de que há na
sociedade os que sabem e os que não sabem, que os primeiros são competentes e tem direitos; enquanto
os demais são incompetentes, devendo obedecer e ser mandados (p. 281).
A ilusão da neutralidade da ciência: “Como a ciência se caracteriza pela separação e pela distinção
entre sujeito do conhecimento e o objeto; como a ciência se caracteriza por retirar dos objetos do
conhecimento os elementos subjetivos; como os procedimentos científicos de observação, experimentação
e interpretação procuram alcançar o objeto real ou o objeto construído como modelo aproximado do real;
e, enfim, como os resultados obtidos por uma ciência não dependem de boa ou má vontade do cientista
nem de suas paixões, estamos convencidos de que a ciência é neutra ou imparcial. Diz à razão o que as
coisas são em si mesmas. Desinteressadamente. Essa imagem da neutralidade científica é ilusória. “
(p. 281. Conferir os exemplos nesta página)
“A ideologia cientificista usa essa imagem idealizada (do cientista como inventor e gênio e depois como
engenheiro e mago) para consolidar a da neutralidade científica, dissimulando, com isso, a origem e a
finalidade da maioria das pesquisas, destinadas a controlar a Natureza e a sociedade segundo os interesses
dos grupos que controlam os financiamentos dos laboratórios” (p. 283).
A razão instrumental: A autoria questiona: Por que há uma ideologia e uma mitologia da ciência?
“Quando estudamos a teoria do conhecimento, examinamos a noção de ideologia como lógica social
imaginária de ocultação da realidade histórica. Ao estudarmos o nascimento da Filosofia, examinamos a
diferença entre mythos e logos, isto é, entre explicação antropomórfica e mágica do mundo e a explicação
racional. Quando estudamos a razão, vimos que alguns filósofos alemães, reunidos na Escola de Frankfurt,
descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da razão. Se reunirmos esses vários
estudos, poderemos responder à pergunta sobre a ideologização e a mitologização da ciência” (p. 283).
O que seria a razão instrumental? Trata-se de um termo criado pelos frankfurtianos, como Adorno, Marcuse
e Horkheimer, também chamado de razão iluminista – para denominar o processo que surge quando o
sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres
humanos. Francis Bacon, no séculos XVII, criou o termo “Natureza atormentada” que vai ao encontro do
que foi criticado pelos filósofos da Escola de Frankfurt. O que seria atormentar a Natureza? “Fazê-la reagir
a condições artificiais criadas pelo homem”, explica a autora. Na medida em que a razão se torna
instrumental, comenta Chauí, a ciência deixa de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros
para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração. Para que não seja percebida como
tal, passa a ser sustentada pela ideologia cientificista, que, através da escola e dos meios de comunicação
de massa, desemboca na mitologia cientificista (p. 283).
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Entretanto, alerta a autora, é preciso diferenciar o momento da investigação científica propriamente dita e
o da ideologização-mitologização de uma ciência. Cita como exemplo a teoria da evolução das espécies de
Darwin e a apropriação desta teoria por Spencer para interpretar a sociedade: nesta concepção, os mais
“aptos” tornam-se naturalmente superiores aos outros, vencendo-os em riqueza, privilégios e poder (p.
283).
“Ao transpor uma teoria biológica para uma explicação filosófica sobre a essência da sociedade, Spencer
transformou a teoria científica da evolução em ideologia evolucionista. Por que? Em primeiro lugar, por que
generalizou-se para toda a realidade resultados obtidos num campo particular de conhecimentos
específicos; em segundo lugar, por que tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em
fatos sociais, como se não houvesse diferença entre Natureza e sociedade. Uma vez criada a ideologia
evolucionista, o evolucionismo tornou-se teoria da História e, a seguir, mitologia científica do progresso
humano” (p.283).
Vimos que a ciência moderna e contemporânea transforma a técnica em tecnologia, isto é, passa da
máquina-utensílio à máquina como instrumento de precisão, que permite conhecimentos mais exatos e
novos conhecimentos.
Essa transformação traz duas consequências principais: a primeira se refere ao conhecimento científico e
a segunda, ao estatuto dos objetos técnicos:
2. os objetos técnicos são criados pela ciência como instrumentos de auxílio aontrabalho humano,
máquinas para dominar a Natureza e a sociedade, instrumentos de precisão para o conhecimento
científico e, sobretudo, em sua forma contemporânea, como autômatos.
Estes são o objeto técnico-tecnológico por excelência, porque possuem as seguintes características, marcas
do novo estatuto desse objeto:
• são conhecimento científico objetivado, isto é, depositado e concretizado num objeto. São resultado
e corporificação de conhecimentos científicos;
• são objetos que possuem em si mesmos o princípio de sua regulação, manutenção e transformação.
As máquinas antigas dependiam de forças externas para realizar suas funções (alavancas, polias,
manivelas, força muscular de seres humanos ou de animais, força hidráulica, etc.). As máquinas
modernas são autômatos porque, dado o impulso eletro-eletrônico inicial, realizam por si mesmas
todas as operações para as quais foram programadas, incluindo a correção de sua própria ação, a
realimentação de energia, a transformação. São auto-reguladas e autoconservadas, porque
possuem em si mesmas as informações necessárias ao seu funcionamento;
• como consequência, não são propriamente um objeto singular ou individual, mas um sistema de
objetos interligados por comandos recíprocos;
• são sistemas que, uma vez programados, realizam operações teóricas complexas, que modificam
o conteúdo dos próprios conhecimentos científicos, isto é, os objetos técnico-tecnológicos fazem
parte do trabalho teórico.
Ora, o senso comum social ignora essas transformações da ciência e da técnica e conhece apenas seus
resultados mais imediatos: os objetos que podem ser usados por nós (máquina de lavar, videogame,
televisão a cabo, máquina de calcular, computador, robô industrial, etc.).
Como, para usá-los, precisamos receber um conjunto de informações detalhadas e sofisticadas, tendemos
a identificar o conhecimento científico com seus efeitos tecnológicos. Com isso, deixamos de perceber o
essencial, isto é, que as ciências passaram a fazer parte das forças econômicas produtivas da sociedade e
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trouxeram mudanças sociais de grande porte na divisão social do trabalho, na produção e na distribuição
dos objetos, na forma de consumi-los. Não percebemos que as pesquisas científicas são financiadas por
empresas e governos, demandando grandes somas de recursos que retornam, graças aos resultados
obtidos, na forma de lucro e poder para os agentes financiadores.
Por não percebermos o poderio econômico das ciências, lutamos para ter acesso, para possuir e consumir
os objetos tecnológicos, mas não lutamos pelo direito de acesso tanto aos conhecimentos como às
pesquisas científicas, nem lutamos pelo direito de decidir seu modo de inserção na vida econômica e política
de uma sociedade.
Eis porque, entre outros efeitos de nossa confusão entre ciência e tecnologia, aceitamos, no Brasil, políticas
educacionais que profissionalizam os jovens no segundo grau – portanto, antes que tenham podido ter
acesso às ciências propriamente ditas – e que destinam poucos recursos públicos às áreas de pesquisa nas
universidades – portanto, mantendo os cientistas na mera condição de reprodutores de ciências produzidas
em outros países e sociedades.
Além do problema anterior, isto é, de teorias científicas serem formuladas a partir de certas decisões
e escolhas do cientista ou do laboratório onde trabalham os cientistas, com consequências sérias para os
seres humanos, um outro problema também é trazido pelas ciências: o de seu uso.
Vimos que uma teoria científica pode nascer para dar resposta a um problema prático ou técnico.
Vimos também que a investigação científica pode ir avançando para descobertas de fenômenos e relações
que já não possuem relação direta com os problemas práticos iniciais e, como consequência, é frequente
uma teoria estar muito mais avançada do que as técnicas e tecnologias que poderão aplicá-la. Muitas
vezes, aliás, o cientista sequer imagina que a teoria terá aplicação prática.
É exatamente isso que torna o uso da ciência algo delicado, que, em geral, escapa das mãos dos
próprios pesquisadores. É assim, por exemplo, que a microfísica ou física quântica desemboca na fabricação
das armas nucleares; a bioquímica e a genética, na de armas bacteriológicas. Teorias sobre a luz e o som
permitem a construção de satélites artificiais, que, se são conectáveis instantaneamente em todo o globo
terrestre para a comunicação e informação, também são responsáveis por espionagem militar e por guerras
com armas teleguiadas.
Uma das características mais novas da ciência está em que as pesquisas científicas passaram a fazer
parte das forças produtivas da sociedade, isto é, da economia. A automação, a informatização, a
telecomunicação determinam formas de poder econômico, modos de organizar o trabalho industrial e os
serviços, criam profissões e ocupações novas, destroem profissões e ocupações antigas, introduzem a
velocidade na produção de mercadorias e em sua distribuição e consumo, modificando padrões industriais,
comerciais e estilos de vida. A ciência tornou-se parte integrante e indispensável da atividade econômica.
Tornou-se agente econômico e político.
Além de fazer parte essencial da atividade econômica, a ciência também passou a fazer parte do poder
político. Não é por acaso, por exemplo, que governos criem ministérios e secretarias de ciência e tecnologia
e que destinem verbas para financiar pesquisas civis e militares. Do mesmo modo que as grandes empresas
financiam pesquisas e até criam centros e laboratórios de investigação científica, assim também os
governos determinam quais as ciências que irão ser desenvolvidas e, nelas, quais as pesquisas que serão
financiadas.
Essa nova posição das ciências na sociedade contemporânea, além de indicar que é mínimo ou quase
inexistente o grau de neutralidade e de liberdade dos cientistas, indica também que o uso das ciências
define os recursos financeiros que nelas serão investidos.
A sociedade, porém, não luta pelo direito de interferir nas decisões de empresas e governos quando
estes decidem financiar um tipo de pesquisa em vez de outra.
Dessa maneira, o campo científico torna-se cada vez mais distante da sociedade sem que esta
encontre meios para orientar o uso das ciências, pois este é definido antes do início das próprias pesquisas
e fora do controle que a sociedade poderia exercer sobre ele.
Um exemplo de luta social para intervir nas decisões sobre as pesquisas e seus usos encontra-se nos
movimentos ecológicos e em muitos movimentos sociais ligados a reivindicações de direitos. De um modo
geral, porém, a ideologia cientificista tende a ser muito mais forte do que eles e a limitar os resultados que
desejariam obter.
Referência:
QUESTÕES
A ATITUDE CIENTÍFICA