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Em torno das relações entre os homens de hoje, sohretudo

os brasileiros, e as três engenharias indispensáveis a


políticas de desenvolvimento e segurança, por um lado, e,
por outro lado, a ajustamentos a espaços e a tempos - a
engenharia física, a humana e a social —considerando-se,
inclusive, o desafio, a essas engenharias, das selvas do
Brasil: em particular; das amazônicas

PREFÁCIO
PROF, D R EOGARD COSTA OLIVEIRA

ftEAlIttÇOU
Impresso no Brasil, julho de 2010
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André Cavalcante Gimenez e Natália Nebó e Jambor /Estúdio É

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Prol Editora Gráfica
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Reservados todos os direitos desta obra.


Proibida toda e quatquer reprodução desta edição
por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica,
fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução,
sem permissão expressa do editor.
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SUMÁRIO »•

Prefácio à presente edição


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Prof. Dr. Edgard Costa Oliveira......... ......................................... ............................... 9 À *


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Prefácio do autor............................................................................................................. 23
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1* Em tomo das três engenharias - a física, a humana, a social — 4


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e de suas projeções sobre o futuro humano, em geral, •f lT


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e brasileiro, em particular..........................................................................................61 •n , /

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2. Em torno do desafio das selvas brasileiras às três engenharias.......................125 : *

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PREFÁCIO À PRESENTE EDIÇÃO

Prof. Dr. Edgard Costa Oliveira


Universidade de Brasilia - Campus Gama

O livro Homens, Engenharias e Rumos Sociais é uma obra ainda desconhe­


cida no meio acadêmico e popular, talvez ofuscada pela repercussão de outras
grandiosas invenções literárias do autor, como Casa-Grande & Senzala, publicada
em 1933. O autor Gilberto Freyre, escritor brasileiro que dispensa apresentações, t

ainda é pouco conhecido no Brasil na formação do estudante universitário. A


obra é um apanhado conclusivo do autor sobre o que é a engenharia e corno ela


pode ser aplicada para o entendimento da questão de ocupação e habitação nas
regiões de florestas brasileiras, em especial a Amazônia. Representa as bases teó­
ricas e humanísticas da engenharia em sua forma social e humana, além da física.
\ A primeira edição de Homens, Engenharias e Rumos Sociais foi publicada no ano
da sua morte, 1987, e concentra em suas duzentas páginas a síntese do Mestre
7 1 *
de Apipucos, que se despediu da vida concluindo o que é afinal engenharia. Bm
um percurso literário monumental e variado, na reta final de sua produção inte-
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lectual, o escritor-poeta-píntor-sociólogo-político deu atenção especial à tríplice


engenharia: a física, a social e a humana.
Sua percepção da importância de se pautar a tecnologia e os seus impactos
• j
na sociedade sob ela vivida foi além da análise sociológica e revelou um tratado
político que pode representar as bases operacionais para a ocupação da Amazônia
e a garantia da soberania da região a partir da fixação de populações em um vasto
território com uma integração harmônica e interdependente entre a inffaestru-
tura física e tecnológica de um país, a sociedade como um todo e seus indivíduos,
ou seja, as três engenharias, A engenharia humana e a engenharia social comple­
tando, retificando, moderando os “arrojos exclusivistas” das engenharias físicas.
O que Freyre discutiu há vinte anos está em pleno vigor hoje. Suas aborda­
gens sobre a Amazônia revelam a causa pendente desde sempre: tão pouco tem
sido feito pela floresta que se derruba a cada segundo uma árvore, um campo de
futebol por turno, uma fazenda por dia. Isso pode representar um chamado para

‘Prefacio à presente edição - 9


a criação, nas universidades, de linhas de pesquisa tanto na sociologia quanto na
ciência política, assim como nas engenharias, para que se analise o pensamen­
to de Freyre e mais particularmente as diretrizes de um projeto político e social
para a Amazônia, como potencial solução para o atual problema de destruição
e desequilíbrio a que as florestas brasileiras e suas comunidades estão submeti­
das. Para tanto, ele explica o papel que a universidade brasileira tem de cumprir
nesse processo de formação seletiva de especialistas-críticos - uma universidade
ecológica brasileira - , que contextualiza em dez páginas do livro sobre o caso da
Universidade de Brasília.
O autor apresenta a importância de se prover uma iniciação sociológica das
ciências sociais na formação dos líderes e dos engenheiros, estes como pesquisa­
dores atentos a uma engenharia de transformação social e humana decorrente de
tecnologias empregadas. Conduz suas ideias para construir o pensamento socio­
lógico para a criação de uma prática política de ocupação da Amazônia por meio
de uma engenharia social e humana aliada à engenharia física. Esta última, se
aplicada sozinha de maneira descontrolada, como a prática corrente mente em-
t

pregada de forma impetuosamente industrializante revela, está fadada a impactos


indesejáveis e inumanos.
O legado literário e de ideias deixado por Freyre, autêntico e transparente
intérprete do Brasil e da brasilidade por meio da análise do homem sob a tecno­
logia, o engenho, a arquitetura, a rouparia, as máquinas, as ruas, as comidas...
revelou que a engenharia não pode ser entendida sem as pessoas e suas relações
com o ambiente. E que os homens são o motivo central da criação e adaptação de
estruturas a serviço deste mesmo homem, do homem político, do homem social,
*

do homem econômico, do homem aprendiz, do homem lúdico.


Freyre faz questão de revelar na obra nomes de autores consagrados que
construíram a concepção brasileira de qualidade de vida, um verdadeiro com­
pêndio bibliográfico sobre diversos pensadores que caracterizaram o homem bra­
sileiro mítico, mágico e irracional, que é felizmente um ocidental imperfeito,
no qual estão presentes “três resíduos mágicos: o ameríndio, o negro de origem
africana e o conservado pelo analfabeto”, em que a confluência entre religião e
língua pode representar “instrumentos de uma engenharia social criadora, no
Brasil, de uma sociedade e de uma cultura nacionais capazes de resistirem a

^Homens, Engenharias e Etimos Sociais - Çilberto Ercyre


tecnologias e a economias estandardizadas, europeizantes ou- ianquizantes, tal a
sua capacidade de se deseuropeizarem o bastante para se virem constituindo a
língua e religião eurotropicais ou eurotelúricas”. O autor defende o conceito de
analfabetismo como representação da espontaneidade, da intuição e instinto do
analfabeto como um homem telúrico, por excelência, a exemplo da literatura de
cordel e da cerâmica popular.
Os engenheiros, para Freyre, são profissionais dotados de um poder de trans­
formação que se situa, logo de início, no topo de uma carreira profissional de
elite em termos de possibilidades criativas, amplitude e abrangência. Os eruditos,
os intelectuais, jamais se tornarão figuras obsoletas por serem indispensáveis em
função do aumento do uso de computadores e de “máquinas de ensinar” na edu-
cação e na cultura, considerando-se a formação da elite de eruditos talentosos,
especialistas e supradotados de superior habilidade intelectual, capazes de prover
para a sociedade de forma democrática e igualitária soluções que considerem as
sociedades em primeiro lugar. Essa elite é representada pelo engenheiro físico,
social e humano.
Gilberto Freyre conclui em sua obra que a Amazônia representa um labora-
tório de tecnologia social:
• " 1 * . • •

A Amazônia brasileira, pela provável predominância nas arquitetu­


ras, quer físicas, quer sociais, da autocolonização intensa e sistemática


que agora se inicia nessa parte importante do Brasil, de formas neobar-
rocas de relações de autocolonizador com a natureza, de horizontalida­
des dinâmicas, do domínio de espaços pelo mesmo autocolonizador, de
curvas tecnológicas em harmonia com as ecológicas, para harmonia do
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homem civilizado com o trópico anfíbio, nas instalações antes rurbanas


que convencionalmente rurais ou convencionalmente urbanas que de­
certo humanizarão áreas até agora virgens ou quase virgens de presen­
ças civilizadoras, está destinada a fazer-se notar como vasto laboratório
tecnológico-social.

O autor, que teve um pensamento prático e orientador sobre a ocupação da


••

Amazônia nesta obra, também ousou criticar um monumento de engenharia e


arquitetura sobre cuja construção foi convidado a opinar tardiamente: Brasília.
Seu maior protesto com relação a Brasília, revelado na obra, foi quanto à questão

Trefâcio à ■ presente edição


*>
de que, para a construção da cidade, nenhum engenheiro social foi convocado a
participar. Gilberto Freyre foi convidado por JK à época para opinar sobre Brasilia,
mesmo quando as obras já estavam bastante adiantadas. No entanto, a reação de
Niemeyer, ao concordar que a cidade carecia de espaços para o lazer, foi esquivar­
se, dizendo que tais artifícios poderiam ser incluídos depois da construção, evi­
denciando a primazia da engenharia física sobre a engenharia social O próprio
Niemeyer confessou que valorizou as estruturas, as engenharias. As opiniões de
Freyre não agradaram a JK, apesar de terem sido apoiadas pela opinião decepcio­
nante que Aldous Huxíey, autor da obra Admirável Mundo N ovo, teve de Brasilia
durante visita a pedido do governo. Destacam a falta de equilíbrio, naquela Bra­
s ilia ainda em alvorada, entre ecologia e progresso, e a falta de articulação entre
Jo passado, o presente e o futuro, dentro do conceito de tempo tríbio que o autor
traz em suas obras, em especial Aíém do Apenas Moderno, de 1973, obra resultante
de conferência realizada em 1966 na Universidade de Brasilia, em curso de Futu-
rologia e Prospectiva. O tempo em que passado, presente e futuro se sobrepõem e
coexistem socialmente, prevendo hipóteses, com base no passado e na conscien­
cia do presente, a fim de prever o futuro. Também criticou a Brasilia monumen­
tal, resultado de engenharia física apenas, que desprezou a visão de ecologistas e
cientistas sociais que pudessem desenvolver uma “sistemática de integração da
nova cidade num espaço natural, social e cultural característicamente tropical”,
Para tanto, deviam ser consideradas características regionais e valores tropicais e
não valores europeus adaptados a condições tropicais, revelados pela influência
iecorbusterana na arquitetura da cidade: "não é apenas o arquiteto, o esteta e o
urbanista que devem orientar hoje a construção ou a reconstrução de uma cidade.
Uma cidade não se pertence, pertence a uma região; não é só urbana, é também
rural (...) nem pertence somente ao engenheiro físico”.
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Brasília foi criticada nesta obra em comparação com outras cidades do mun­
do que, recuperadas das guerras mundiais, puderam construir estruturas urbanas
integradas com o rural no qual foram inseridas (coisa que não aconteceu com o
rural de Brasília), representando espaços para fins esportivos, recreativos e cultu­
rais que aumentassem o tempo para o lazer e diminuíssem os impactos do trabalho
no homem, trabalho este em processo de automação e mecanização, em diversas
áreas. Em especial quando a máquina prejudica esse mesmo homem, sendo a

12 - jhfomens, ^Engenharias e Fumos Sociais - Çilherto 'Freyre


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engenharia humana responsável por adaptar as máquinas aos homens e vice-ver­


sa, diminuindo assim o estresse decorrente do seu uso.
O pensamento de Freyre sobre Brasília, por ser questionador à época, hoje
pode ser avaliado sob a observação real do comportamento da população de Bra­
sília sob a influência e como consequência de sua arquitetura imposta - o desejo
de que Brasília não fosse mais uma cidade predadora de seu espaço urbano e rural.
Conforme o próprio autor revela, “não é apenas o arquiteto, o esteta e o urbanista
que devem orientar hoje a construção ou a reconstrução de uma cidade”. Para
ele, o que devemos fazer é consertar os erros de um desenvolvimento estritamente
focado em progresso econômico à revelia dos problemas sociais vigentes e de um
desenvolvimento industrial à revelia do agrário. Para Freyre, esses erros só serão
recuperados por meio de uma engenharia panjocial sustentada pelas várias ciên­
cias sociais, que seja realizada por equipes com cientistas sociais de várias especia­
lidades, educadores de formação sociológica, psicólogos sociais, por meio de téc­
nicas de persuasão e de reeducação dos jovens, adultos, letrados ou analfabetos.
A engenharia não deve permitir que a sociedade seja vítima de um erro ou
omissão em casos, como o do Brasil, em que por ano 50 mil pessoas morrem e 400
mil ficam feridas em acidentes rodoviários. São estatísticas de guerra. A enge­
nharia rodoviária é um processo de negócio envolvido em uma esfera de risco de
morte de seus usuários. A catástrofe causada pela engenharia de petróleo da BP )
em 2010 nos provou serem fracassados os modelos de gestão de riscos das empre­
sas que mais detêm o poder de explorar e alterar o subsolo do planeta Terra, com
o prejuízo deixado por gerações de engenheiros irresponsáveis ou de raso cálculo,
ou desumanos, ou até mesmo aqueles que trabalham para o crime organizado,
produzindo engenharias das mais diversas naturezas para a prática da morte. Á
engenharia da morte é aquela em que a cabeça de engenheiro falha. Quando o
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exercício da profissão não permitiu segurança aos seus usuários, o Estado é res­
ponsável por mortes em que a tecnologia é a culpada? Ou é o Estado que mata
os usuários de rodovias, ou os usuários de cruzeiros aéreos, ou de estruturas mal
calculadas, ou da poluição industrial e ambiental? Só em São Paulo morrem 4 mil
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pessoas ao ano por doenças provocadas pela poluição.


Freyre rechaça o mau uso da engenharia com uma crítica ferrenha à Bra-
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sília de Niemeyer e Lúcio Costa, como arquitetura estética, pois Brasília é uma

‘Prefácio à presente edição -13


I

reprodução do modelo arquitetônico da Bauhaus e do subúrbio de Zurique, com


um primor pelo subterrâneo e pela evasão social desmobilizadora de aglomera­
ções humanas. Além da disposição social da cidade, colocada de forma dispersa
e isolada, justificada pela engenharia automotiva como solução dessa dispersão.
Como consequência, Brasília tem hoje 1 milhão de veículos, 4 milhões de pes-
soas, e um entorno abandonado e em conflito sobre de quem deve ser a gestão
■‘Ac de áreas limítrofes, se é de responsabilidade de Goiás ou do Distrito Federal. Um
1 entorno em que problemas básicos de inffaestrutura social, saneamento, alimen­
tação, transporte e segurança ainda são precários e reveladores de miséria. Ao
se chegar a Brasília pela BR-040, que liga esta a Belo Horizonte e Rio de Janeiro,
pode-se perceber o contexto da falta de engenharia urbana, a precariedade das
estradas e suas ocupações desordenadas e inseguras, de pedestres-vítimas da falta
de sinalização, dos motoristas-vítimas da engenhfcria do abandono. O Brasil de
hoje e sua configuração dependem da tecnologia de transporte e seu alto custo,
pois, como disse Freyre, o custo de se construir e instalar tecnologia nos trópicos
é quatro vezes mais caro que no Hemisfério Norte. Por si o custo do Estado é
mais alto aqui que acolá. Tudo isso revela uma Brasília de rurbanidade não pla­
nejada, de uma engenharia de ocupação social não pensada, de uma cidade que
vai crescendo e engolindo o urbano, o cerrado, as nascentes d'água, as reservas.
As queimadas. Estas são consequências de uma Brasília sem engenharia social,
fruto de uma engenharia física apenas. Em Brasília não houve engenharia da
ocupação do Centro-Oeste, A inte rurbanidade falhou, não houve planejamento
de ocupação, e Brasília irá pagar caro pelas consequências, para que a ordem
social possa ser reposta. No momento em que escrevo estas linhas, uma estrada
é ocupada por manifestantes que pedem segurança em uma cidade a 18 km de
Brasília, fechando a única BR que liga Brasília a Salvador, ao nordeste do país.
Essa é a autobiografia do Brasil.
Freyre fez engenharia social no Brasil por meio de seus escritos, delineou o
que é o brasileiro, o que é a brasilidade, a metarraça brasileira, cujo entendimento
gerou uma vasta biografia dos filhos do Brasil em sua formação; disse que a bio­
grafia que vier a ser escrita do brasileiro revelará nele contradições. Ele também
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via toda a sua obra como uma autobiografia. Em entrevista à T V Cultura de São
Paulo, revelou que

14 - Efomens, ‘Engenharias e Sociais - Çilberto Ereyre


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a minha própria autobiografia se confunde com uma autobiografia do
Brasil, na sua parte cultural. Eu creio que Casa-Grande & Senzala é um li­
vro autobiográfico, é um livro de alguém que não compreendia quem era
do mundo como um brasileiro, quem era do mundo como sul-americano,
quem era do mundo como um não europeu. E procurou se compreender.
E esse livro então é uma autobiografia alargada entre a sociologia e a
antropologia, aliás, Toda boa autobiografia é antropológica. É o homem
que está presente. A sua definição sei que seria válida daqui a alguns
anos para resumir o que tem sido o meu trabalho, o que tem sido a minha
atividade, o que tem sido a minha procura de conhecer-me a mim mesmo
e de conhecer o país a que pertenço e que me produziu.

♦ W

O pintor percebeu um escritor. A pintura precedeu a literatura, mas aos onze


se definiu escritor que escreve pintando. E assim é a linguagem de Freyre, pito­
resca, imagética, viva, real, presente tanto quanto verdadeira e visível nos dias de
hoje ainda, É atual. “Não sou antiacadémico, não sou acadêmico, sou inacadê-
mico, e o livro (Casa-Grande & Senzala) é inacadêmico.” Contra alguns puristas
científicos, defendia a “combinação, miscigenação, mistura de métodos muito
propositada, muito deliberada e muito revolucionária” que Casa-Grande & Senza­
la tinha, numa época em que os sociólogos apenas viam a aplicação de métodos de
suas próprias áreas para análise científica, ou seja, se um livro é sociológico devia
prover-se de método sociológico, e o mesmo com outras áreas, como a psicologia.
Um erro, naturalmente, quando se usa esse mesmo raciocínio para classificar a
obra Homens, Engenharias e Rumos Sociais, que é em si universal.
Freyre define e exemplifica, com seus saberes olfativos, visuais, imaginários e
poderosamente repletos de análise, sustentados por ampla bibliografia, o que de
fato é necessário considerar para se fazer o bem. A preocupação do autor com os
impactos da tecnologia na sociedade permeia a questão de que os valores huma­
nos devem ser respeitados por conta da utilização de tecnologias ou economias
invasoras, e como isso afeta a qualidade de vida da sociedade. Os valores socioló­
gicos, neste caso, devem ser considerados em vez de apenas as vantagens tecnoló-
••

gicas e os resultados econômicos que as tecnologias podem trazer.


Em entrevista concedida ao jornalista Ricardo Noblat em 1980, Freyre mos-
trou-se indignado pelo silêncio da imprensa brasileira ao não publicar nenhuma

Prefácio à 'presente edição


linha sobre seus últimos escritos, obras sobre a realidade brasileira, sobre a sua
atualidade. Lamentou a falta de compreensão de alguns críticos da literatura, e
também dos moralistas, com seus julgamentos injustos sobre a sua obra. Alguns o
acusaram de usar linguagem chula, O livro Homens, Engenharias e Rumos Sociais
ainda não vem sendo comentado na mídia ou no âmbito acadêmico das enge­
nharias e das tecnologias. Mas ficou guardado nos sistemas de classificação da
informação de bibliotecas na categoria sociologia. Acreditamos também que de
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todo o legado volumoso deixado por Freyre, seus leitores ainda não conseguiram
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chegar até a sua última e contundente obra, aqui prefaciada. E necessário ter
muito tempo para ler Freyre. E entrando-se no tempo de Freyre, mergulha-se no
tempo do infinito do raciocínio lógico-poético e visual das coisas e de tudo o que
ele nos revela em suas obras.
Ao resumir em poucas linhas quem fot Gilberto Freyre e o que ele representa
na cultura brasileira, o próprio Freyre disse:

Como eu ia dizendo, eu não sou um eu só, eu sou vários eus, que coe­
xistem uns em harmonia e outros brigando. Como eu posso dizer que eu
deixo de ser apolíneo e dionisíaco, onde eu deixo de ser revolucionário
para ser ordeiro? (...) Nós nunca somos donos absolutos de nós mesmos,
há vários donos que vieram antes de nós. (...) Toda teoria deve ser aceita
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com reserva, inclusive as minhas.

Eu, professor universitário, fui convidado a escrever este prefácio em função


de uma prática pedagógica que venho tendo há três anos, desde a criação de
um novo campus de engenharia na Universidade de Brasília, na cidade-satélite
do Gama. Trata-se de um curso de quatro engenharias (eletrônica, de energia,
automotiva e de software) em que alunos destes quatro cursos compartilham de
um tronco comum de disciplinas exigidas pelo Conselho Nacional de Educação
e pelo Confea (Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia) para
a formação profissional nas áreas. Dentre as disciplinas técnicas obrigatórias, te-
I

mos a única das ciências sociais, intitulada Humanidades e Cidadania, da qual


sou professor. Nesta disciplina, alunos têm contato com a responsabilidade social
do engenheiro, oculta no seu processo educativo, mas que ora se encontra em
consolidação teórica e empírica por meio de uma prática pedagógica inovadora.

16 - JSomens, ‘Engenharias e Ftimos Sociais - Çilherto ‘Freyre


Dentre os recursos que a disciplina oferece, vale destacar o uso da obra Homens,
Engenharias e Rumos Sociais como o fio condutor do curso, ou seja, o livro-texto
principal utilizado em sala de aula e para a elaboração de redações. Em sala de
aula temos em média 120 alunos. Por semestre são 240 redações de dez páginas
elaboradas pelos alunos com visão crítica sobre a obra de Freyre, o que gera um
total de aproximadamente 4 mil páginas por ano de visões sobre a obra. Um cam­
pus universitário que considera Freyre como elemento primordial na formação de
base do engenheiro. .
Os resultados da disciplina Humanidades e Cidadania consistem em um se­
minário de grupos de dez alunos que se desdobram em pesquisa social de urna
necessidade tecnológica local das redondezas do campus, no Gama. Eles identi­
ficam no dia a dia, ou pela mídia, ou por entidades locais, quais são os principais
problemas que podem ser amenizados por uma engenharia física e social e huma­
na. Com esse enfoque, os alunos realizam entrevistas, visitas e reuniões com en­
tidades representativas, comunidade, administração regional, dentre outras. As
i

temáticas desenvolvidas pelos alunos percorrem os seguintes temas: produção de


energia limpa, sistemas de captação de água da chuva e aproveitamento de ener­
gia solar, biodigestores e reciclagem de resíduos, além de softwares para controle
de máquinas, com a visão da inclusão social e também voltadas a portadores de
necessidades especiais. As engenharias são representadas em primeiro lugar pela
de energia, eletrônica, de software e automotiva, mas com interseção com diver­
sas outras áreas em que se dá a sua aplicação, como a médica, a educacional, a
administrativa, a de infraestrutura, e onde mais houver problema a solucionar.
Os engenheiros educados segundo a visão freyreana da UnB permitem-se
uma observação prévia da necessidade social, do tipo de tecnologia proposta e do
futuro impacto social das tecnologias por eles projetadas, observação esta oriunda
de interação entre a sociedade beneficiada e a comunidade inventora: alunos e
docentes de engenharia. .
O uso pedagógico da obra Homens, Engenharias e Rumos Sociais se comple­
menta com a atual estrutura de cidadania e exercício profissional da engenharia
por meio do Manual do Profissional: introdução à teoria e prática do exercício das
profissões do sistema Confea/Creas, de Edison Elavio Macedo. Juntas, as obras
formam um arcabouço da viabilidade de condução do trabalho do engenheiro

Trefâcio à presente edição - 17


com uma consciência social de suas responsabilidades assim como as possibilida-
des e restrições de exercício da profissão, respaldada por visões de outros autores
que versam sobre o assunto de tecnologia, sociedade e cidadania.
O curso de Engenharia da Universidade de Brasília, campus Gama, é assenta­
do na Resolução CNE/CES nQ 11, do Ministério da Educação, que estabelece que

o Curso de Graduação em Engenharia tem como perfil do formando


egresso/profissional o engenheiro, com formação generalista, humanista,
crítica e reflexiva, capacitado a absorver e desenvolver novas tecnologias,
estimulando a sua atuação critica e criativa na identificação e resolução
de problemas, considerando seus aspectos políticos, econômicos, sociais,
ambientais e culturais, com visão ética e humanística, em atendimento às
demandas da sociedade.

A resolução é clara em destacar, dentre múltiplas habilidades, o caráter hu­


mano como fundamental para o perfil do egresso de cursos superiores de enge­
nharia. Na definição apresentada, todas essas habilidades devem ter como base o
exercício de uma profissão cujas preocupações advenham das demandas da socie­
dade, como insumo inicial reflexivo da melhoria da qualidade de vida das pessoas
que formam o espaço social. É uma prática da engenharia que parte da saúde e do
bem-estar humano, tanto de quem projeta a tecnologia quanto de quem a utiliza.
•5 a

E uma tecnologia em que o esporte é um veículo de higiene pessoal básica e de


resgate da saúde do homem moderno, ou seja, em que o esporte é corretivo da
deformação que o trabalho pode gerar por conta da mecanização e da automação.
O aumento do número de engenheiros no Brasil é um fenômeno que vem
ocorrendo hoje aqui a exemplo do que começou na década de 50 nos EUA, decor­
rente do aumento das indústrias científicas. É neste contexto que o engenheiro
humano começa a emergir para a pesquisa de soluções de problemas oriundos
desse progresso industrial científico, com as modernas obras públicas e privadas.
São engenheiros-pesquisadores dos quais a mesma sociedade e o mesmo Estado
podem esperar contribuições valiosas para o desenvolvimento do bem-estar na­
cional, em particular, e humano, em geral, e aos quais devem “conceder condi­
ções de trabalho que os resguardem de cuidados mesquinhos de manutenção de
família, permitindo-lhes uma atividade pesquisadora livre desses cuidados e livre
também de excessiva disciplina burocrática”.

i8 - Jíotnens, 'Engenharias e 'Ritmos Sociais - Çilherto 'Freyre


O que vem ocorrendo no Brasil, segundo estudos do Ipea (Radar - Tecnolo­
gia, Produção e Comércio Exterior, de 2010, da Diretoria de Estudos e Políticas
Setoriais, Inovação, Produção e Infraestrutura), é que em 2015 teremos mais de
1 milhão de engenheiros diplomados no país se o PIB continuar crescendo em
patamares de 5% ao ano. Se crescer a 7%, teremos de adicionar mais meio mi­
lhão de engenheiros à conta. Em 2008 esse número era de 750 mil profissionais
de engenharia. De cada_3,5 engenheiros formados, apenas um dedica-se às áre­
as específicas da engenharia, e os demais vão ocupar outros postos profissionais.
Ações governamentais como a exploração do petróleo em regiões do Pré-Sal, o
w

Pronaf (Programa Nacional de Agricultura Familiar), a Lei do Bem, a expansão


de infraestrutura mais os planos de aceleração do crescimento do país incentivam
as políticas de formação de engenheiros no Brasil. Hoje vivemos uma ameaça de
“apagão de mão-de-obra especializada”, caso não consigamos suprir um merca­
do profissional com engenheiros habilitados. Hoje naturalmente a demanda por
engenheiros é maior que a oferta. Mas não só um engenheiro técnico que sabe
do valor social de seu trabalho, mas um engenheiro social que pratica a aplicabi­
lidade contextual e humana de suas tecnologias, um engenheiro-pesquisador, um
pesquisador supradotado que seja identificado, desde o início de sua formação,
como um individuo destacado e com alta capacidade analítico-sintética de en-/
tendimento e inovação das coisas.
Na época, estudos apresentados pelo autor nesta obra já demonstravam a
previsão dessa escassez de profissionais, pois estamos pagando caro por uma pes­
quisa desinteressada, que não estava preocupada com a compreensão de prio­
ridade no atendimento da demanda, no mercado, de profissionais em técnicas
aplicadas, principalmente em tecnologias avançadas, além dos setores industriais
de vanguarda, os quais crescem em conjunto com o avanço das pesquisas científi­
cas diversas - uma preocupação, ademais, que deve ser considerada para a criação
de um pensamento residente na capacidade de se resolver problemas de ordem
social, prioritariamente, no caso do Brasil.
Quando da publicação de Homens, Engenharias e Rumos Sociais, Freyre, in­
dignado com a falta de infraestrutura, nos anos 70 e 80, para'o desenvolvimento
de indivíduos supradotados que pudessem cumprir com atividades que exigem
complexo raciocínio e solução de problemas, questiona: “o que se está fazendo

Trefâcio à presente edição


m

no Brasil por tais individuos, nos diferentes ramos de estudos superiores? Parece
que pouco* Pouquíssimo. Quase nada. Ao contrário: pretende-se que as universi­
dades sejam santas casas de misericórdia, que diplomem tanto incapazes quanto
capazes .
Precisamos retomar o pensamento de Freyre, como em 1966 na UnB já se vi­
nha fazendo com discussões acerca da pós-modernidade e da interdisciplinarida-
de. Vale relembrar que o pensamento de Freyre, por meio de um de seus maiores
estudiosos, Edson Nery da Fonseca, contribuiu para a formação da visão do curso
de Biblioteconomia da UnB, do qual foi seu fundador. Tarefa hoje que está sendo
retomada na mesma universidade, com a criação de grupos interdisciplinares que
trabalham com temas afetos às causas tecnossocioíógicas, a destacar o trabalho
feito no Observatório da América Latina para a Tecnologia Social, o Centro de
Desenvolvimento Sustentável, o Centro de Estudos Avançados Multidisciplina­
res, dentre outras iniciativas de institutos que visam a integração de suas visões
por meio da pirâmide tecnologia, sociedade e indivíduo. Iniciativas como a cria­
ção de cursos de pós-graduação que almejem tratar a causa dentro de uma pauta
emergencial e solucionadora, que busque formar o professor e o pesquisador com
a visão social da tecnologia. É o que vem fazendo a Faculdade de Tecnologia da
UnB, por meio de iniciativas como a série de encontros de Engenharia, Tecnolo-
gia e Sociedade, evento em que historicamente os cursos de engenharia da uni-
versidade se unem às humanidades e colocam-se ao dispor para pautar a questão
e formar massa crítica de graduação e pós-graduação de maneira transversal junto
dos demais departamentos da universidade, com a participação de professores,
estudantes e políticos das áreas humana e tecnológica. Lá são discutidos assuntos
como o papel da universidade em planejar, amenizar e conter o impacto negati­
vo das tecnologias na sociedade e potencializar os impactos positivos desejados.
Considerando para tanto o universal, na visão de Freyre, sem deixar de privilegiar
o regional neste diálogo.
Devemos considerar também o destaque, na expansão universitária brasilei­
ra, específicamente no caso da UnB, do programa de governo Reuni, que oferece
recursos para essa expansão social e inclusiva da universidade, e revelou que a uni­
versidade vem intensificando sua capacidade de se inserir no universo social das
regiões periféricas de Brasília, visando aumentar os índices de desenvolvimento

J-fomens, ^Engenharias e ‘Etimos Sociais - Çilberto 'Freyre


J

locais. Neste exemplo, a UnB vem expandindo sua capacidade de engenharia e


tecnologia no campus do Gama, seus estudos de farmácia e enfermagem no cam­
pus de Ceilândia, assim como os estudos agrários no campus de Planaltina. São
essas três importantes cidades, pioneiras, que hospedam muitos dos construtores
de Brasília, mais alguns filhos do processo eleitoreiro de troca de lotes por voto,
assim como estão contidas em um cinturão de pobreza, exclusão e problemas
sociais também oriundos de impactos tecnológicos ou da ausência de tecnolo­
gias que resolvam os problemas comunitários, especialmente os de infraestrutura
urbana. O objetivo dessa expansão é levar a esses centros periféricos a formação
f

técnica necessária para cumprir uma função social, com aporte industrial local
que permita o crescimento da atividade econômica regional, que aumente os ín­
dices de escolaridade, que atraia incentivos fiscais, que forme massa crítica, que
aumente a autoestima de sua população e que leve a universidade aos seus alunos
potenciais, inseridos em um contexto potencialmente explícito.
No campus do Gama da Universidade de Brasília, Gilberto Freyre está vivo,
é falado, comentado, reescrito por quatrocentos alunos ao ano, em produção de
mais de 4 mil páginas de redações sobre a grande obra Homens, Engenharias e
Rumos Sociais, Para nós, o engenheiro de hoje deve ser formado sob a ótica das
ciências sociais como ferramenta crucial no entendimento e solução do resultado
do desenvolvimento de tecnologias e seus impactos na sociedade. Os engenheiros
devem ter a clara noção da importância do diálogo entre eles e a sociedade para
que a tecnologia seja representante da necessidade do homem local e regional.
#

Não mais a tecnologia vista como uma vilã que yitimiza seus usuários, mas uma
tecnologia inclusiva e harmonizada com o contexto social em que está inserida.
¥
* »

Prefácio à presente edição - 21


J

PREFACIO DO AUTOR
íAfV^Vy3

Engenhar, dizem os dicionários, é inventar, engendrar, maquinar. Vem de en­


genho :Jaculdadejjnh^ mesma origem é engenharia:\ãrte de aplicar
conhecimentos científicos ou empíricos à criação de estruturas a serviço do ho-
mermjArte ou ciência. Arte ou ciência - em sentido mais restrito - do emprego
de dispositivos e de processos na conversão de recursos naturais ou humanos em
v

formas adequadas ao atendimento de necessidades do mesmo homem. Sempre


engenho, invenção criativa, a serviço do homem. A serviço do seu físico. De
necessidades físicas. Mas também de relações do seu físico com o ambiente. Com
a natureza. Mas, indo além: a serviço do homem social que inclui o homem eco-
nôjnico, o homem político, o homem.aprendiz, (existem máquinas de ensinar ou
de aprender), o próprio homem lúdico (que são patins, raquetes, bastões de jogar
golfe, taco de bilhar, senão engenhos para fins recreativos?).
Além do que, dentro de uma moderna concepção de engenharia humana, é
f

engenharia o ajustamento do homern_físicoa engenhos, a máquinas, a veículos, a


dimensões, iluminação^Seração de casas de residência e de locais de trabalho ou
- /
de lazer ou de devoção ou de recreação.
Sem nos esquecermos de que, dentro de um também moderno conceito de
tengenharia sociajj é engenharia aquela arte-ciência que desenvolve a aplicação
de conhecimentos, quer científicos, quer empíricos ou intuitivos, à criação e ao
aperfeiçoamento de estruturas sociais; ou de formas de convivência social: inclu­
sive política ou econômica.
Daí poder-se ajustar à condição de engenheiro social certo tipo de político ou
de estadista ou de governante ou de empresário ou de líder público que, em vez de
ser apenas improvisador de soluções ou de providências ou de iniciativas no setor
i —

político ou no empresarial ou no público.'desenvolva solyçõgs, providências, ini-


experimentos O que se estende a líderes
operários, militares, religiosos, agrários, educacionais, recreativos.
As caracterizações dessas três formas principais de engenharia serão apresen­
tadas, no decorrer deste livro, de modo mais específico. Sobretudo no tocante às
-
^ V ' f L - í W
Prefácio do autor
suas aplicações a situações brasileiras. Ou a aspectos das relações da formação
brasileira, quer pré-nacional quer nacional, passíveis de ser interpretadas sob as
perspectivas das três engenharias ou de uma ou de duas delas. Sob esse critério de
interpretação resultará claro o fato de que ao homem brasileiro não vem faltando,
através de sua formação, contatos ou relações com o que se possa considerar, re­
trospectivamente, ter sido engenharia. Lembre-se que a própri^diyislQ, no século
XVI, do Brasil eirç capitanias foi engenharim er^enjraria social. Que a construção
* ---------------------------- "

dos primeiros fortes, para a defesa militar da Colônia, foi engenharia física. Qu'e^
obra de engenharia humana foi a adaptação de formas europeias de corpo humano
a redes ameríndias de dormimadmitidas dimensões antropológicas diferentes de
or i
um tipo de homem para outroVE também, no setor culinário, a substituição - tão
F

importante - desde o século XVI, do trigo pela mandioca e a adoção, na culinária

! e na farmacopeia, de frutos, ervas e sucos indígenas, usados pelos nativos - o caju,


por exemplo - além da adoção por europeus em processo de abrasileiramento - um
processo, todo ele, de engenharia humana —essencialmente adaptativo. Lembre-
se, no setor da engenharia física - hidráulica - aquela imitação dm engenho de es­
cravizar águas”: defesa contra secas do Nordeste mais árido, por meio de tapagem,
i-
i realizada por povoadores rústicos, valendo-se de lição aprendida com o castor de
) região, animal hábil em cavar a terra para cativar águas. Imitação destacada em

estudo recente, pelo antropólogo tão sugestivo, através de pesquisa de campo, que
é Osvaldo Lamartine. (Veja-se o seu Os Açudes dos Sertões do Seridóf Natal, 1978.)
Engenharia física ecológica, essa, o mesmo podendo ser dito da utilização,
em área piauiense, de antigas cavernas como habitação humana, com adapta­
ções por meio de tapumes. Utilizações de exemplos, dados até por animais, po­
dem resultar em obras ecológicas de engenharia física, com repercussão social,
como o uso da água em represa para adubo, até chegar-se àquele pronuncia­
mento antecipado, do padre Brito Guerra, no sertão nordestino - pronuncia­
mento do século XVIII - recordado por Osvaldo Lamartine - de que “o pro­
blema das secas estaria resolvido no dia em que as águas caídas das chuvas não
chegassem ao mar”. Engenharia física da melhor e da mais capaz de desdobrar-
se em engenharia humana e afirmar-se em ampla engenharia social. Tão ampla
que, completada pelas duas outras, pode ser a chave para interpretações das
realizações de um grupo humano dentro de determinado espaço e, em relação

24 - eHcnnens, ‘Engenharias e l^umos Sociais - Çilberto 'Ereyre


ê

4
com esse esforço, em tempo específico. Pois as realizações assim condicionadas
seriam, em grande parte, expressão de engenho humano através de engenharias
ecológicas: inclusive imitações de engenharias rústicas e até animais,
O que principalmente se sugere neste livro, desde as primeiras páginas do
seu prefácio, é que dependem de engenharias - de três, que se completam - quer
o desenvolvimento global do homem - ou de grupos humanos constituídos em
i

sociedades, de que são exemplos as nacionais - quer a preservação, por essas so­
ciedades, dos característicos de seus ambientes ou de suas ecologias, com as quais
/
precisam de ajustar suas formas de vivência, de convivência e de desenvolvimen­
to. Quer de desenvolvimento global, quer de desenvolvimentos específicos. jT
j
As três engenharias: a física, a humana e a social. A física, a mais evidente.’
Ela se manifesta em quase todas as coisas técnicas, ou construções, a serviço es­
sencial e imediato dos homens: casas, pontes, instrumentos de trabalho^veículos.
equipamentos: inclusive o culinário.íX)as relações técnicas ao mesmo tempo que
antropométricas, dos homens com tais coisas, cuida a engenharia humana, E das
inter-relações de ordem social entre homens uns com os outros e de métodos
com instituições de várias espécies dentro de uma sociedade humana, cuida a
engenharia social Todas consideradas nas suas sistemáticas e nos seus objetivos
definidos: definições recentes.
Vem sendo crescentemente particularizado o uso da palavra engenharia para
caracterizar especialidades restritas: engenharia médica, por exemplo. Engenharia
dos alimentos. Engenharia militar e engenharia naval são caracterizações já anti­
gas de especialismos ligados a institucionalizações de técnicas de engenharia: da
engenharia física,
y / j JD e modo geral, entende-se por engenharia toda técnica de manipulação de -
coisas através de máquinas, por coisas podendo-se entender até partes ou órgãos
do corpo humano susceptíveis de ser controlados, mantidos em funcionamento
ou reajustados por meios mecânicosj Daí - em parte - uma engenharia que, in­
titulada de humana, regule relações extramédicas e não apenas médicas, entre
homens e coisas. Homens e máquinas. Entre homens e veículos. Outros ainda,
_■

os fatores de uma engenharia humana ao lado da física e que, em alguns pontos,


desdobre-se na social Esta, a mais abrangente peio que, sociológica, psicológica,
econômica e até politicamente é uma complementação das duas outras. Inclusive

cPrefácio do autor - 25
por abrir esta perspectiva: a de ser o homem - ou a de serem os homens - muito
mais que coisas mecânica ou científica ou matematicamente manipuláveis. Isto,
dada a unicidade do homem quando de indivíduo biológico passa a ser pessoa: a
ser verdadeiramente homem. O que limita a aplicação ao comportamento huma­
no de, até certo ponto, úteis abordagens, como moderníssimos aperfeiçoamentos
de técnicas quantitativas - as estatísticas, entre elas - racionalizações através de
computadores, psicologias behavioristas, endurecimentos de técnicas psicanalí-
ticas ou mesmo arque típicas (Jung). Quanto a reorientações de relações de ho­
mens com ambientes podem, no que neles for manipulável, absorver não poucos
conhecimentos valiosos de recentes desenvolvimentos científicos. Isto sem que
deixem de ocorrer retificações a precipitadas utilizações desses conhecimentos
como o abuso de inseticidas, perturbador de equilíbrio ecológico.
A engenharia social lidando principalmente com estruturas mais do que com
funções - sem se fechar num estruturalismo sectário - preocupa-se mais com a
criação de novas formas e de novos estilos de convivência social do que com a
adaptação do comportamento de um grupo social a normas pré-fabricadas de con­
vivência. Nas palavras do sociólogo Fairchild, uas in the case ofallform s o f engineer­
ing, every social engineering project starts with a p r o b l e m O caso das obras do vale
do Tennessee. E completando sua definição: “Social Engineering differs from other
branches o f engineering in that the materiais with which it deais are human rather than
t

inanimate and the forces which it utilizes are social forces>>.j(3 que se aplica de modo
especialíssimo à sociologia da habitação, da morada, da casa: projeção do homem
I ^

através do que nele é e tem sido um engenheiro social.


Jr *

Para os organizadores do sob vários aspectos prestimoso Dicionário de Socio-


logia, publicado pela Editora Globo, de Porto Alegre, a “engenharia social” outra
coisa não é senão ação social”. Terão razão? Será a engenharia social apenas “um
esforço organizado para modificar as instituições econômicas e sociais", como pre­
tende o professor Roger M. Baldwin, diferenciando-a, por esse esforço, do serviço
social, cujo campo de competência não abrangeria, “de modo característico, a
realização de mudanças essenciais nas estruturas sociais”? Ou temos que con­
siderar, como característico essencial da engenharia social, aquela aplicação de
princípios sociológicos a esforços de objetivos especificamente sociais a que se
refere Fairchild: aplicação que, de ordinário, ninguém associa à simples e difusa

26 - '¡Homens, Engenharias e Eit-mos Sociais - Çilherto Ereyre


“ação social”? Sou dos que se recusam a identificar engenharia social com ação
social; e insistem no significado específico da expressão, distinguindo engenharia
social não só de ação social, reforma social, serviço social, como, também, da
engenharia humana: outra que muito tem que ver com a casa, com morada, com
a habitação. Com suas relações imediatas com pessoas. Com as formas de corpo
e com os característicos pessoais de indivíduos já constituídos em pessoas mas
ainda antropológicamente configurados quanto às suas formas de corpo e às suas
predisposições.
Que é\“engenharia humana”/ Define-a o professor Ernest J. McCormick
4

no seu Human Engineering, aparecido em 1957, mas desde logo um clássico na


matéria, como “adaptação ao uso humano de espaço, equipamento e ambten-
99

te de trabalho”. Alguns preferem à expressão “engenharia humana” a palavra


“biomecánica”; outros, a palavra “ergonomia”; ainda outros, a expressão “enge­
nharia psicológica”. A discrepância é significativa: indica que se trata de uma es­
pecialidade complexa. Interessa ao engenheiro físico. Interessa ao administrador.
Mas interessa também ao antropólogo, ao médico, ao fisiólogo, ao psicólogo. To­
dos esses, segundo o professor McCormick, vêm contribuindo para o desenvolvi-'
mento da nova especialidade através de conhecimentos diversos do ser humano e
de métodos diferentes de pesquisa em tomo do assunto.
Trata-se de saber como as atividades motoras do ser humano e a sua vi-

são e a sua audição se relacionam com o trabalho que cada um realiza den­
tro de um grupo social em diferentes situações ligadas a diferentes ocupações,
as quais, inter-relacionadas, constituem um conjunto de atividades ao mesmo
tempo individuais e sociais, susceptíveis de se desenvolverem num ritmo de
eficiência mais ou menos vantajoso ao grupo total, jítividades a que se junta o
tempo-repouso ou o tempo-lazer, tão do homem dentro de sua casa. Daí a im­
portância de bancos ou cadeiras de trabalho - por exemplo - ou de repouso -
sofá ou rede doméstica - que correspondam às formas de um corpo, não de
um homem abstrato, mas, quanto possível, de um homem regionalmente di-
ferenciado, condicionado por um conjunto de predominância de ordem éti-
* * ' }' . • *#l) 1 . •t U v *• |

ca e de caráter constitucional, características de uma população regional. Não


só o trabalho, através de ajustamentos dessa espécie, se toma mais eficiente.
• •

O bem-estar do homem aumenta em consequência de uma engenharia humana a

Vrefâcio do autor
serviço não só de indústrias, fábricas, usinas, que constituam um conjunto tecno­
lógico de importância econômica e dependem das condições de trabalho dos seus
técnicos e operários, como a serviço do próprio homem; do seu bem-estar físico e
psíquico e da sua saúde no moderno sentido de saúde; o bem-estar além de físico,
psíquico, social, ou socioeconômico e cultural
Os objetivos da engenharia humana não são novos - reconhecem os moder­
nos campeões dessa nova espécie de engenharia, E o mesmo pode dizer-se dos ob­
jetivos da engenharia social. São duas sistematizações modernas: moderníssimas
até. Mas duas sistematizações modernas de conhecimentos acerca de seres huma­
nos e de grupos sociais, considerados em suas múltiplas relações de trabalho e de
vida, uns com os outros e todos com o ambiente físico e com condições ecológico-
sociais de vivência e de convivência, a que não têm faltado precursores.
Da engenharia física - nela incluída a arquitetura - sabemos que vem sendo
equivalente de mecanização. Há quem pense que o ritmo de mecanização do
trabalho humano planejado, orientado - por vezes dirigido - pelo engenheiro
físico se intensificou no período entre as duas grandes guerras: 1918-1939. É a
opinião do professor S. Giedion num livro que se tomou famoso e ao qual não
pode cdnservar-se alheio - acentue-se - nenhum engenheiro ou sociólogo mo-
derno: Mechanization Takes Command (Nova York, 1948). O professor S. Giedion
é autor, aliás, de outro livro essencial ao engenheiro moderno: Spuce, Time and
Architecture. Livros nos quais se considera a arquitetura da residência; seu equi-
\ pamento; o móvel doméstico; a cozinha. E aos quais, sob certos aspectos, já se
j haviam antecipado, sem seguirem qualquer modelo, porém inovando, no Brasil,
j os livros Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos.
m

\
Para Giedion, foi naquele período - entre duas Grandes Guerras e em parte
como repercussão de avanços por experiências militares em certas importantes
áreas de conhecimento —que a mecanização da cozinha se acentuou, embora a in­
dústria de enlatamento mecânico de alimentos - obra de engenharia física - vies­
se se desenvolvendo desde o começo do século XX, constituindo a matéria base
para uma especializada engenharia do alimento. Foi também o período da subs-
° j tituição, em grande parte, do teatro convencional pelo processo ótico-psíquico -
obra da engenharia física - de reprodução de imagens popularizado pelo cinema;
o período de mais intensa mecanização da música; o período de mais intensa
4

28 - jHtomens, ^Engenharias e Ttymos Sociais - Çilberto CFreyre


>

mecanização do transporte; o período das primeiras intervenções de uma mais


decisiva ciência aplicada não só na substância do orgânico como do inorgânico,
com as primeiras explorações da estrutura do átomo. Por conseguinte, o início de
uma penetração de concepções apenas modernas por perspectivas pós-modemas.
Foi naquele período que se acentuaram com um maior desenvolvimento^
da produção em massa, tendências à estandardização: um característico de con-
cepções modernas de vida, Provocaram tais tendências reações maiores que as
apenas românticas, de épocas anteriores, da parte de energias decididas a apor
a valores arbitrariamente universais, valores criaderamente regionais e potente­
mente tradicionais, Seriam estes à base de modernas conciliações entre imposi­
ções como que imperiais de uma mecanização irradiada dos grandes centros de
produção capitalista e mecanizações adaptadas a condições regionais de vida, J
de clima e de convivência. Diferentes, portanto, das dominantes nas áreas de j
produção capitalista.
Compreende-se, assim, que os indianos europeizados, por exemplo, te­
nham passado a fabricar com material inglês de mecanização e servindo-se de
,4

equipamento de origem inglesa adaptado por eles - por seus engenheiros físi­
cos completados pelos humanos e sociais - a novas funções, tecidos para tra-
4

jos de homem e de mulher modelados na tradição oriental e opostos à estan­


dardização - segundo modelos europeus - de trajo, em áreas como a indiana.
O mesmo passou a ocorrer, aí e noutras áreas, com relação à arquitetura, com [
4

relação ao uso de material nativo de construção, com relação ao calçado, com |


relação ao móvel, com relação a técnicas de construção de estradas e ^ técni­
cas de urbanização ou de modernização de cidades. Começou-se a verificar ( 9
\ |
aquilo que se vem considerando a aliança do regional - da sua substância
com a forma mecanizada moderna, criando-se para o engenheiro, e não apenas
para o artista, nas áreas de reação regional à estandardização mecânica, maiores
responsabilidades que as de um passivo executor de ordens, receitas ou medidas
recebidas do estrangeiro.
Datam daí alianças nem sempre ostensivas, de ordinário até inconscien-
• •

tes, entre engenheiros e antropólogos, entre arquitetos e sociólogos, entre


pensadores e cientistas, entre cientistas e artistas, entre poetas e homens do
chamados práticos. Por quê? Porque engenheiros, construtores, industriais

cPrefácio do autor - 29

*
começaram a aperceber-se de que a engenharia, para bem desempenhar suas
funções, precisava de corresponder a necessidades específicamente regionais -
condições de clima, predominâncias de tipos antropológicos, predominâncias de
heranças culturais já integradas em meios físicos - ao mesmo tempo que expri­
mir-se em linguagem, ou através de formas, em grande parte, universais. É uma
conciliação, a do regional com o universal, que interessando o artista, o poeta, o
antropólogo, o sociólogo, o filósofo, interessa também o cientista, o engenheiro,
o urbanista, o arquiteto, o industrial, o administrador, o político. Todo o processo
de integração de atividades modernas, umas nas outras, é um processo de integra­
ção de atividades regionais em atividades universais, com as universais não po­
dendo desprezar as regionais. Nem as modernas podendo desprezar as arcaicas -
os arquétipos - por um lado, ou as pós-modernas, por outro lado.
Note-se que aqui se coloca a ênfase na síntese universal-regional. Mas sem
qualquer desprezo pela univeTsal-nacional. Se o conceito nacional de vida é so­
ciologicamente não só recente - em termos de tempo histórico - como depen­
dente do regional, por um lado, e do transnacional ou do supranacional, por
outro lado, não deixa de ser de importância máxima. Vivemos há já algum tempo
num mundo dividido em nações e equilibrado - equilíbrio sujeito a interrupções -
internacionalmente.
Uma obra autenticamente brasileira de arquitetura - qualquer das deixadas
por Henrique Mindlin, por exemplo - ou de engenharia hidráulica - a instalação,
segundo informação idônea, não de todo ortodoxa, na sua técnica de engenharia
física, de Paulo Afonso, antes modificada notavelmente por brasileirismos desen­
volvidos pelo engenheiro Marcondes Ferraz, outro exemplo - não se opõe a quanto
existe de umversalmente consagrado em arquitetura monumental e em engenha­
ria hidráulica pelo que, em qualquer delas, seja, ou tenha sido, deliberadamente
nacional, no sentido político ou mesmo cultural de nacional, mas pelo que nelas é
criação brasileira de arte, ou afirmação brasileira de técnica, em correspondência
com condições especificamente regionais - ou ecológicas ou telúricas - de vida,
de meio, de cultura, em divergência com o geralmente aceito ou seguido, noutras
áreas, ou noutras regiões, para obras do mesmo gênero e do mesmo porte.
Compreende-se que acentuando-se a tendência no sentido da valorização
do regional, dentro da combinação regional-universal, diminua a tendência no

- J-fomens, Engenharias e cRumos Sociais - Qilberto Ereyre


sentido da uniformização de obras de engenharia e de criações de arte segun­
do modelos vindos, como modelos sagrados e perfeitos, de áreas imperialmente
culturais para as colonialmente culturais. Compreende-se que a tendência no
sentido daquela valorização se contraponha à própria tendência para o produto
fabricado especialmente para resistir ao tempo e às violências dos processos de
exportação - a exportação de produtos das áreas imperialmente culturais para as
áreas colonialmente culturais - seja considerado, por essas suas qualidades de re­
sistência, produto ideal, desprezando-se os menos resistentes produtos regionais,
superiores aos mais resistentes noutras qualidades de ordem artística ou noutras
virtudes de ordem técnica. «
O que principalmente alegara o autor com relação ao modo por que se cons­
truiu a aliás admirável Brasília é que essa construção se fizera como pura obra -
I*

ou quase pura - de engenharia física ou, mais restritamente, de arquitetura


estética: de magnífica e até esplendorosa arquitetura estética. Obra entregue ex-\
elusiva e arbitrariamente a dois na verdade magistrais arquitetos ou, para efeito
de classificação geral de sua especialidade, engenheiros físicos. Que engenheiro
humano fora ouvido? Que engenheiro social? Que antropólogo? Que ecólogo?
- 4• í , 4, •|

Que sociólogo? Que psicólogo? Que educador? O resultado foi uma nova e fisi-
camente grandiosa cidade, mas na sua parte de engenharia humana e de enge­
nharia social nem sequer adaptada brasileiramente à sua ecologia tropical: com
um excesso de vidros de excessiva imitação de uma engenharia física concebida
e desenvolvida pelo suíço Le Corbusier para a Europa central: para as condições
de luz, de atmosfera, de ar, de paisagem, de meio, de ambiente natural do centro,
durante grande parte de cada ano, brumoso, sombrio, muito mais boreal do. que
tropical, da Europa.
Mais: desprezara-se na construção de uma cidade nova, levantada com
imensas despesas para o futuro mais do que para o que se considerasse presente,
a consideração por novas perspectivas, nesse futuro, de relações entre homem e
tempo. De relações entre homem e trabalho a serem em parte substituídas pelas
relações entre homem e lazer. ••

Não se cogitou, na construção de Brasília, de problema psicossocial tão im-


m

portante. Não se reservaram de início áreas bastante amplas para recreação, para
esportes, para tempos desocupados.

cPrefácio do autor
Destaque-se, de passagem, que tais problemas tiveram no Brasil quem, des­
de à década de 1930, começasse a considerá-los pioneiramente. Em livro brasi-
leiro, de cientista social, publicado em 1937, já se clamava contra desequilibrios
ecológicos e contra poluições de águas no nosso país. E o Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais, órgão federal fundado no Recife em 1949, e hoje
incorporado à Fundação Joaquim Nabuco, não tardaria a realizar pesquisas de

caráter socioecológico sobre poluição de rios do Nordeste por indústrias de todo


descontroladas; pesquisa de que aquele instituto encarregou o então jovem e
lúcido geógrafo, professor Gilberto Osório de Andrade, falecido em 1986. E não
vêm tendo outro caráter as principais pesquisas até agora desenvolvidas por
aquele instituto.
Observe-se dessas pesquisas que não vêm sendo realizadas segundo téc­
nicas de investigação social importadas do estrangeiro e sim conforme adapta­
ções dessas técnicas a situações brasileiras, nacionais ou regionais. Em alguns
casos, segundo orientações de tal modo próprias a essas situações que têm
significado inovações de base ecológica ou nacional. Pois também a esse setor
aplica-se aquele pronunciamento recente do por algum tempo ministro Severo
Gomes, segundo o qual o Brasil deve gerar o mais possível Usua própria tec­
nologia após a absorção de tecnologia importada’, esta última refletindo “um
universo econômico e social de onde foi gerado”, Pronunciamento semelhante
faria, em dia ainda mais recente, o ex-presidente Ernesto Geisel, salientando
dessa tecnologia própria do Brasil que precisava de ajustar-se a uma situação
em grande parte tropical. Solidário, portanto, com os objetivos do seminário
\de tropicologia do Recife.
Lembre-se, a propósito, que do Brasil vêm partindo, no campo da enge­
nharia social, no que essa engenharia significa ciência social aplicada ou apli­
cável, várias conceituações originais de operação econômica ou social. Entre as
primeiras, a de “valorização”, iniciada em São Paulo com a valorização do café
quando superabundante sua produção, através de técnica em seguida adotada
por vários países; e mais recentemente, a chamada “correção monetária’7: outro
brasileirismo. Brasileiríssimos são os conceitos socioantropológicos de “homem
situado no trópico” - aprovado publicamente pela Sorbonne - de “ecologia
telúrica”, de “pluralismo metodológico em estudos sociais”, de “tempo tríbio”,

- ^Homens, Engenharias e Eumos Sociais - Çilherio Ereyre


tm
. >5
de “metarraça”, de “morenidade”. Brasileira, também, uma arquitetura de casa
■; • * - j* ,

vinda dos dias coloniais do Brasil e adaptável a circunstâncias atuais através de


modernizações possíveis e necessárias. Tanto assim que a sugestões desse tipo
de casa tradicional e ecologicamente brasileira recorreu - repita-se aqui - o
• V v. ’7 *1 ' • : V- *' *' r J t *• tr
i9 ~

moderníssimo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer para, de acordo com elas,


construir em Brasília casa para sua própria residência.

u
. áv.
•?

'Prefácio do autor - 33

a
INTRODUÇÃO

* f
O homem moderno, no singular, é um tipo mais que weberianamente ideal
no seu modo de ser confluente. Contém vários homens: é plural. Vários tipos de
homem social que, para se realizarem, precisam de ajustar as formas de vivência, O - f*1

de convivência e de desenvolvimento dos grupos a que pertencem, a seus am-


' t > f ; ' y.; ' • 1

bientes naturais e a seus tempos sociais. As suas principais situações resultantes


de ecologias e de tempos, de atitudes humanas em face de ecologias e de tempos.
Pois somos seres situados. Condicionados. Seres que precisam de atender a tais
condicionamentos sem se considerarem por eles determinados.
» *

Daí precisarem de ser situadonais no seu comportamento. Não podem ser


abstratos. Têm que ser existenciais. Por conseguinte, ecológicos. Concretos. E os
&

de inteligência superior, criativos no ajustamento de seus grupos e daquelas suas


situações pessoais e coletivas.
Desde 1945, com a publicação de uma Introdução à Sociologia - ao es­
tudo dos seus princípios - que mereceu de Anísio Teixeira - educador insigne
como nunca o Brasil já tivera ou teria, até hoje - o mais lúcido dos prefácios
que já prestigiou trabalho meu - o mais lúcido, o mais compreensivo, ao mes-
mo tempo que o mais generoso - vem sendo esta uma das quase didáticas in­
sistências do autor deste novo livro: precisarmos, no Brasil, como noutros pa­
íses, de uma orientação situacional ou ecológica nos estudos sociais, nas pes­
quisas desse tipo, nas aplicações de teorias ou princípios a realidades nacio­
nais ou regionais. Preocupação que já se esboçava naquele e em alguns outros PT ’ *
livros do mesmo autor; de modo específico, em Nordeste (1937), onde, pelaTj
primeira vez em língua portuguesa, falou-se em “ecologia”, em “equilíbrio ecológi- f
co”, em “desequilíbrio ecológico”, em “poluição” (de águas, de rios, de ambientes).^
Que dizia o autor de Sociologia, Introdução ao Estudo dos Seus Princípios: livro
que surpreende hoje o autor pelo que nele se vem conservando atual, depois de
ter sido, em várias de suas páginas, ousadia de antecipação? E.que bem mereceria
ter sido mais recomendado por professores brasileiros de ciência social aos seus
alunos, como companheiro de estudos convencionais, isto é, mais corretamente

Introdução - 35
didáticos ou pedagógicos, de jovens por vezes tão desnorteados nos seus cursos
de sociologia, de antropologia, de psicologia social, de história social, de biologia
social, com relação ao que, nesses estudos, possa - e deva - ser considerado apli­
cável a situações brasileiras. Inclusive aquelas situações brasileiras que ora coinci­
dem com as destacadas por S, Giedion, quer em Space, Time and Architecture, quer
em Mechanization Takes Command (NY, 1948)*
*

Ainda há pouco, em Curitiba, em contato com professores e estudantes de


sua universidade - promoção da professora Cecília Westphalen - respondendo
a pergunta de um dos ouvintes, lamentei que ao treinador da Seleção Brasileira
de Futebol faltasse um mínimo de iniciação sociológica. Um mínimo de iniciação
sociológica que o fizesse ver em jogadores brasileiros de futebol homens situados:
brasileiros e não europeus no que neles devesse ser considerado positivo, ao lado
de negativo, na sua dinâmica, no seu ritmo, no seu tipo psicossocial. Poderia es­
tender essa lamentação a outros líderes do país, dignos, aliás, do mesmo apreço
que o treinador da Seleção Brasileira. A políticos. A empresários. A economistas.
« f ,

A arquitetos. A sacerdotes e até a bispos e mesmo a cardeais como o de São Pau­


lo: de palavra tão brilhantemente fácil porém, por vezes, de todo deficiente na
compreensão de situações especificamente brasileiras. Aos seus estudos parece ter
faltado uma mais objetiva iniciação no conhecimento de situações psicossociais
características do Brasil.
%*

Uma iniciação mais que sociológica capaz de despertar a inteligência do


iniciando para o que, nas caracterizações menos abstratas que concretas de fe-
k* * ,:í f •
^ nômenos psicossociais ou psicoculturais toca-se em situações vivas, existenciais,
brasileiras - ecológica e historicamente brasileiras - telúricas, cotidianas. Vivên-
cias de(gente situadaí De. homem situado. De grupo situado. De cultura situada.
LDe economia situada. Situada em espaços, tempos, circunstâncias.
Considerada qualquer das ciências sociais sob critério si sua
aplicação a situações concretas torna-se engenharia no sentido lato de
engenharia. E precisa de servir-se, conforme o problema com que tenha que
ftt

se defrontar, de dados destas três engenharias. A física, que o informe sobre


problemas de construções em espaços ocupados por homens que, como constru­
ções, tenham implicações sociais; a engenharia humana, que o informe sobre re­
lações socioantropológicas entre homens e equipamentos técnicos de uso, além
f

••iyrr Vk ■ V

36 - J-fomens, 'Engenharias e *Rkumos Saciais - Çilberto 'Freyre tXKríX <


c

de pessoal, social, como veículos, elevadores, máquinas, em geral; a engenharia


social, quase que ela própria extensão ou aplicação de ciência social no trato de
problemas de desentendimento, distância, segregação entre homens ou grupos
humanos susceptíveis de serem resolvidos por meio de equivalentes de pontes,
isto é, de formas de contato, comunicação, compreensão de efeitos ou alcances
sociais, São engenharias que, por vezes, têm que ser consideradas menos à parte
que em suas inter-relações para que sejam alcançadas —ou tentadas - soluções
. *•

compostas, lExemplo de soluções compostas é o que.se realize através da ciber-


nética, que sendo engenharia física e engenharia humana é também - e emi-
f. ■

nentemente - engenharia s o c i a l . ,'


Mais: soluções assim compostas são as que tendem a verificar-
se na substituição do professor, pessoa humana, por meios tecnológicos:
audiovisuais, televisão, cinema, máquinas de ensinar (línguas e outras matérias),
algumas dessas máquinas já incluindo técnicas de criação de ambientes favoráveis
ao ensino que elas transmitem. Veja-se, a esse respeito, Cybemation. The Silent
■* --1 ;■-j ‘ l

Conquest, de Donald M. Michael (NY, 1961); e também The Next Generadon. The
Prospects A headfor the Youth o f Today and Tomorrow, do mesmo autor (NY, 1963).
Para o professor Michael, na engenharia física - a que se juntam a huma­
na e a social - haveria atualmente uma tendência para considerar-se o homem
crescentemente susceptível de manipulação: para alguns, tão susceptível des­
sa manipulação quanto outras partes de sistemas físicos e de sistemas sociais.
A favor do que, cita os modernos aperfeiçoamentos de tecnologia médica que -
como engenharia física e engenharia humana, com consequências extensivas à
engenharia social, acrescente-se a Michael —estariam associando os homens a
máquinas. Daí os transplantes mecânicos e a substituição de órgãos humanos
por objetos mecânicos. Daí os bebês de proveta. A prevenção da saúde dos
homens - inclusive o crescente uso de meios químicos no controle de eficiência
mental - já poderia ser considerada um sistema de manutenção mecânica ou
físico-química. Ou biomecânica.
Discutindo estas sugestões, não se deixe de registrar avanços das engenha­
rias física e humana com relação ao homem, além de físico, mental. E esses avan­
ços, com implicações no setor da engenharia social. Pois tais avanços alcançam
a relação do homem com o ambiente e com o tempo sociais, pois se juntam ao

Introdução - 37
r
é

que já existe de manipulação tecnológica - pelas engenharias física e humana -


cie ambientes dentro dos quais se situam homens e grupos humanos. Não deixa
de estar havendo uma tendência para se fazer do homem, em parte, coisa: coisa
quantificável. Já se fala até numa engepharía do comportamento humano, sob o
I ♦

critério de se considerarem os homens manipuláveis por engenharias físicas além


de humanas, e admitindo-se o que de engenharia física, além de humana, há
nos transplantes médicos, nos processos médicos biomecánicos, nas lavagens de
/
cérebro de uso já político. Não deixe de ser notado o fato de estarem atualmen-
te se verificando relativas manipulações de comportamento humano, para fins

I comerciais, ideológicos, políticos, religiosos, educacionais, culturais, através de


técnicas de comunicação que são também artes ou instrumentos de persuasão.
Expressões, essas técnicas, quase sempre, simultâneas das três engenharias: a
física, a humana, a social.
As perspectivas suscitadas pelos avanços tecnológicos em medicina e nou­
tras ciências aplicadas - ciências que, em seu modo de se relacionarem com os
homens, são expressões das três engenharias simultâneas ou de uma ou de duas
delas - envolvem problemas éticos, além de jurídicos, políticos e religiosos. As •
três engenharias não podem ser separadas de uma filosofia social atenta ao que,
nos avanços tecnológicos, parece tender a projetar-se em efeitos quantitativos,
podendo prejudicar a qualidade da vida humana, do comportamento humano,
da condição humana. As engenharias, como ciências, podem pretender ser neu­
tras. A preocupação com tal qualidade da vida humana, em face do que, nos
avanços tecnológicos, apresenta-se como neutro, sendo mais uma preocupação
filosófica ou ética ou religiosa, não deixa de comunicar-se a governos, empresas,
religiões, sistemas de educação, responsáveis por atitudes de consideráveis grupos
humanos, dentre os mais representativos em relação a problemas, quer de de-
é

senvolvimento sócio-econômico-cultural, quer de defesa de recursos naturais, de


equilíbrios ecológicos de paisagens históricas e de valores estéticos, tradicionais,
espirituais, em face de descontrolados avanços tecnológicos.
v

T As três engenharias estão ligados os destinos do homem atual, cujas res­


ponsabilidades para com suas heranças culturais e para com sua situação na
natureza impõem outras ligações. As opções sobre seus destinos envolvem ine­
vitavelmente valores. -^7

38 - ^Homens, ‘Engenharias e ‘Humos Sociais - Qilherto ‘Treyre


( t

t é
*4

Ao que se acrescente das três engenharias que, como ciências aplicadas,


perdem o estrito caráter de neutras, discutível com relação às próprias ciências
chamadas puras. Por que as três engenharias - por que a engenharia, no singular - J
*

senão como um saber, ou como um conjunto de saberes científicos e aplicáveis, a


'•!
serviço do homem: do seu bem-estar, da sua saúde, da sua capacidade de ser cria­ í
é
tivo - artística, intelectual, religiosa, política, economicamente criativo - nas suas
relações com outros homens, com animais, com plantas, com ambientes, com a

homem e não a manipulá-lo - como foi o caso, com a melhor das intenções cris­
.j

tãs, do domínio jesuítico sobre populações nativas do Paraguai: assunto sobre o


qual é oportuno ler-se, além de Maxime Haubert (La Vie Quotidienne au Paraguay
sour les Jésuites, Paris, 1967), o estudo de Gilles Lapouge L Utopie et Civilizations
3
(Paris, 1973), juntamente corn Impérialisme et Théories Sociologiques de Développe­ »

ment, de Babakar Sine (Paris, 1975), Se da genética - como expressão das três
engenharias - há quem admita que possa chegar a extremos de arrojos de mani­
pulação do homem - da sua vida, da sua biologia, da sua hereditariedade - dificil­
mente se concebe que esses arrojos venham a se tomar impunemente inumanos
ou anti-humanos. Seriam as três engenharias donas arbitrárias dos homens e não
os homens, senão senhores absolutos das engenharias, capazes de deterem o que
nelas venha por acaso tender a ser anti-humano. Impõe-se considerar, com Ro­
bert L Heilbroner, no seu The Future as History que, diante do homem, está uthe
ultimate responsibility ofdefining our limits o f possibilité for ourselves”. Ao que poderia
ser limcontrolled and destructive” pode o homem opor - ou podem os homens -
»

através das próprias três engenharias, relativamente controlados, criativos. Daí -


»

e o assunto é versado em The Social Dynamics o f Development, por David C. Pitt


(Oxford, 1976) e preocupa Georges Balandier em Anthropologie Politique (Paris,
1967) - o valor de estudos futurológicos idôneos que preparem o homem de hoje
para opções quanto possíveis a futuros humanos. Inclusive com relação a elites
intelectuais: serão elas dispensáveis com o crescente uso de computadores ou de
máquinas de ensinar na educação e na cultura, tomando scholars, intelectuais,
••

líderes pela inteligência, figuras obsoletas? Os indícios são que não. Parece esca­
par à genética o poder - uma forma biomecânica de engenharia física ou de en­
genharia humana que se projetaria na social - de produzir gênios ou inteligências

Introdução * 39
f t
V

criativas que dispensassem aquelas que provêm de surpresas, e não tanto de cons­
tantes hereditárias. Da Vincis. Beethovens. Shakespeares e Goethes, Cervantes e
Machados de Assis.
Em The Next Generatíon, o professor Donald M. Michael, ao considerar pers­
pectivas para a mocidade de hoje e de amanhã, prevê, entre estudantes universi­
tários, pré-elites que recebam especiais atenções na sua formação intelectual, por
serem supradotados. Isto porque tenderiam a ser crescentes, no mundo em desen­
volvimento, as necessidades de “superior habilidade intelectual” capaz de lidar
\ T

'•¥ } com o que chama “burgeoning social and technical problems” e “techniques available
j for trying to deal with them”. Elitismo que - Michael prevê à página 98 daquele seu
sugestivo livro —suscitará oposições da parte de elementos democrático-igualitá­
rios: uit will be politicalíy touchy indeed”. Ao lado disso, pode-se prever, segundo o
mesmo futurólogo, uma tendência nos Estados Unidos, no sentido de favorecer­
se, para os jovens que não fossem de superior talento, meios despersonalizados,
isto é, mecânicos de ensino e de estudo: uma engenharia humana pedagógica ou
didaticamente adaptada à juventude menos talentosa, reconhecendo-se o direito
de a mais talentosa receber atenções personalizadas dos seus mestres mas facili-
tando-se - é a conclusão - aos menos talentosos tornarem-se, em grande número,
Ph.Ds. por aqueles meios despersonalizados e mecânicos. Conclusão que, a ser
exata, significaria uma conciliação de qualitativísmo com quantitativismo, com
a engenharia humana favorecendo, no caso, o quantitativismo. Mas reconhe­
cendo-se que os próprios avanços nas três engenharias, como avanços de caráter
científico-tecnológico de três tipos, exigem, como dirigentes de suas aplicações ao
desenvolvimento humano, elites de superiores talentos.
Em 1977 realizou-se nos Estados Unidos um simpósio internacional sobre
“Mudança tecnológica no contexto dos valores sociais”. Já a Academia America­
na de Artes e Ciências, de Boston - da qual Oscar Niemeyer e eu somos membros
brasileiros por consagração da mesma academia - promovera em 1976 um “pai­
nel” em torno da relação tecnologia-valores, o qual se efetuou durante o encontro
anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência. Na reunião de 1976,
assinale-se que um dos participantes mais ilustres, o professor Benjamin Pierce,
de Harvard, investiu contra o quantitativismo representado pelo empenho entre
tecnologistas estadunidenses, a favor do desenvolvimento de complexos sistemas

40 ^Homens, ‘Engenharias e eRumos Sociais - Qilherto ‘Freyre


-
tecnológicos que concorreram, segundo o mestre de Harvard, para submeter o
indivíduo a gigantescas burocracias e a decisões remotas de superburocratas, Um
aspecto interessante dos debates foi o que considerou a relação das tecnologias -
as gigantescas e as em pequena escala: expressões, pode-se adiantar, de soberanas
engenharias físicas desdobradas em engenharias sociais - com situações huma­
nas e sociais: as que constituem preocupação - acentue-se - das engenharias
sociais e das engenharias humanas. Lúcido participante nos debates, o professor
Franklin A. Long, da Universidade de Corneíl, referiu aos problemas suscitados
pela introdução de tecnologias em sociedades em desenvolvimento:^caso da
!• •

brasileira, observe-se. Nessas circunstâncias, que valores deveriam ser particu­


larmente respeitados pelas tecnologias ou pelas economias invasorasj^Como essa
invasão tende a afetar a qualidade da vida da população local através de vanta­

I
gens quantitativas que lhe comuniqueTjDaí a necessidade de tais valores serem
sociologicamente considerados em vez da introdução de vantagens tecnológicas
e econômicas quantitativas serem introduzidas sem mais aquela/ Exemplo dos
conflitos que podem ocorrer —comente-se —entre engenhariájískaj)de um lado,
e engenhariajauniana-e-social, do outro. -Ci-uu-p'' '¿ C uò

Participou dos debates o sociólogo Daniel Bell, da Universidade de Harvãid,


que destacou o fenômeno de aumentos de população, combinados com avanços
tecnológicos - aumentos e avanços pode-se observar que quantitativos - serem
circunstâncias que envolvem condições de vida em larga escala: quantitativas,
portanto. Daí o difícil problema das relações valores-teenologias,
O relato do simpósio consta do ne 1, volume XXX, de fevereiro de 1977
do Bulletin o f the American Academy o f Arts and Sciences: academia que é hoje
o centro de altos estudos, em qualquer parte do mundo, que mais está concor-
rendo para a análise e o esclarecimento de grandes problemas atuais de política
cultural nesses dois setores. Problemas, portanto, que envolvem a$ relações entre
as três engenharias sem deixarem de apresentar desafios que, sendo éticos, são
sociofiíosóficos. Destaque-se a importância do número seguinte ao de fevereiro
de 1977, do Bulletin: o dedicado à consideração de trabalho do professor Wassily
•V

Leontief, da Universidade de Nova York, sobre “recursos naturais, distúrbio de


ambientes e perspectivas de crescimento, quer de áreas já desenvolvidas, quer de
áreas menos desenvolvidas”, no qual se analisam essas perspectivas de um ponto

Introdução
I

de vista que, sendo principalmente de engenharia física - o econômico em termos


quantitativos de reservas de recursos naturais, futuros ritmos de crescimento de
I

populações, futuros ritmos de auxílios a desenvolvimentos, estimativas de custos


do controle de repercussões ambientais de crescimento econômico - não deixa
de referir-se a projeções alternativas desses fatores em termos menos econômicos
que de engenharia social.
%
t,

Difíceis problemas, na verdade, são os que decorrem de embates da enge­ *


«

nharia física com a humana e com a social: a social sendo a mais apta a desempe­
I
s nhar, nesses embates, um papel conciliador ou harmonizador de contrários ou de
^diferenças. Pois se o mundo, quer na sua parte tecnologicamente desenvolvida,
ç • quer naquela em desenvolvimento, depende de apoios da engenharia física, à
^ f engenharia humana e à engenharia social cabe a importantíssima tarefa de res-
¿V^rrc.- ^ guardar valores humanos - universais, locais, regionais, pessoais, mas sempre
qualitativos - contra avanços puramente quantitativos de tecnologias acompa­
nhadas de economias quantitativas. Tecnologias e economias capazes de afetar,
em áreas que invadam, com suas forças quantitativamente progressistas, a quali-
• •
dade de vida de populações.
Compreende-se assim que em dias recentes, no Brasil, o ministro Golbery
do Couto e Silva - especialista numa ciência, a geopolítica, que, partindo da
engenharia física, ao considerar a situação física de um sistema nacional, defron­
ta-se com possíveis consequências políticas e, consequentemente, sociais, des­
sa situação - tenha lamentado que ao notável desenvolvimento econômico -
\ a?
Wm

\engenharia física - do Brasil, nos últimos anos, não tenham correspondido de­
senvolvimentos, segundo ele, políticos e sociais. Deficiência de engenharia social g
• « I
I num desenvolvimento nacional global. I
Explica-se igualmente por essa deficiência que, ao considerar, com o presiden­ I
I1*
te Ernesto Geisel, no começo de 1978, o problema da autocolonização da Ama­ 1
fa §

zônia brasileira, ilustre cientista brasileiro ligado a esse empreendimento tenha 1€;
apontado falhas nada desprezíveis de sua sistemática. Falhas que, interpretadas t
$
i
em termos de engenharia, poderiam ser consideradas por uma engenharia social
t
que não estivesse acompanhando e, em alguns pontos, orientando a apenas física. \
I
Esta representada magnificamente - pode-se talvez destacar - pela construção de <
1

1
uma estrada Transamazónica que honra decerto a moderna tecnologia brasileira. i
i
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•-
v

42 - Siemens, ^Engenharias e £7tymos Sociais - Çilberto cFreyre 1 i


-t f
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*v J f V ] ' ># V \}J •

Mas que por si só não resolve, com outros arrojos tecnológicos, na Amazônia
brasileira como noutras áreas, necessidades regionais ou nacionais que reclamam
cuidados inteligentemente situacionais das duas outras engenharias: a humana e
a social. Evidentemente, vem se repetindo na Amazônia e noutras áreas o erro
enorme cometido na admirável criação apenas tecnológica ou estética de Brasília
sob o governo corajosamente empreendedor de Juscelino Kubitschek: a ausência,
nesse empreendimento, do engenheiro humano e do engenheiro social. Que cien­
tistas, artistas, pensadores brasileiros teriam representado, como engenheiros so­
ciais de várias espécies, essas duas engenharias, junto aos construtores principais
de Brasília que foram exclusivamente dois e iros físicos, como tal dignos das
maiores admirações: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer? Esses engenheiros sociais,
ausentes na construção de Brasília como cidade a projetar-se sobre o futuro e a
constituir-se numa adaptação de europeísmos tecnológicos ao trópico brasileiro -
a uma ecologia específica - teriam sido ecólogos, geógrafos, antropólogos, sociólo­
gos, psicólogos, artistas plásticos, educadores, pensadores. Que engenheiro social
dessa espécie foi convocado para participar de obra tão complexa de engenharia
total como Brasília? Creio que, em tempo justo, nenhum. Pois o convite que, em
termos extremamente honrosos, recebi do então presidente Kubitschek para opi­
nar sobre Brasília ocorreu quando a obra arbitrariamente exclusiva de engenharia
física - a estética incluída - já estava adiantada. Mesmo assim, opinei. Lembro-
me de que os reparos que apresentei impressionaram meu amigo Oscar Niemeyer,
a quem os apresentei antes de comunicá-los ao então presidente da República
que, notoriamente democrata-liberal em vários particulares, com relação a Brasí­
lia não hesitara em constituir-se numa espécie de faraó caboclo, de todo arbitrário
e de todo autoritário. O arquiteto Oscar Niemeyer considerou adequados, se não #

todos, vários dos meus reparos críticos: quanto à falta de espaços para fins de lazer, J
recreação, comícios políticos, reuniões religiosas ou artísticas, educativas, popula-
res, por exemplo. Mas lembrou-me: podem ser adotadas depois da construção. Ele
N

considerava como que sagrada a construção, quanto antes, de Brasília em termos


igenharia física que incluísse a da sua predileção quasejrusrica
que era a estéticaf\A na verdade sedutoramente estética: uma estética que, de
tão próxima da de Le Corbusier, inspirada em situação ou ambiente centro-eu­
ropeu, ostentaria em Brasília, com seus excessos de vidros, verdadeiros requintes
antiecologicos, antitropicais e antibrasileiros. Objetei que o seu ‘‘depois da cons­
trução” implicaria retificações dispendiosíssimas com relação a espaços, devendo
ser recordado, a propósito, que até para fins de recreação de escolares —informou-
me, preocupado, o grande educador Anísio Teixeira: engenheiro social de pre­
sença imprescindível, mas nem sequer, segundo me disse ele próprio, cogitada,
na construção de Brasília - deixaram os engenheiros físicos de reservar espaços
adequados. Quanto ao então presidente Kubitschek, a despeito de seu simpáti­
co liberalismo democrático, mostrou-se de tal modo intolerante com relação a
reparos críticos de minha parte sobre Brasília - reparos por ele solicitados - que
chegou a esfriar suas relações de cordialidade com o crítico inoportuno. Reparos,
os desse crítico inoportuno, com os quais não tardaria a concordar outro intelec­
tual - este, supremamente importante - o inglês Aldous Huxley que, convidado
pelo governo brasileiro de então a visitar Brasília, se decepcionaria com o que aí
observara. E seria, por isto, quase abandonado pelo Itamarati, tendo chegado à
Bahia, vindo de Brasília, e aí permanecido um dia, quase ao deus-dará: desacom­
panhado e sem guia, Da Bahia viria a Apipucos para um encontro comigo, numa
casa antiga, isto é, tradicional e ecologicamente brasileira, que, ao contrário da
*

arquitetura de Brasília, encantou esse quase perfeito engenheiro social nas suas
concepções de estética ligada ao bem-estar humano. Ao encanto pela casa e, pe­
los seus arredores - deteve-se diante de um jenipapeiro quase religiosamente: era
o primeiro que via, sabedor do valor cultural dessa árvore brasileiríssima para o in­
dígena do Brasil - juntou-se, em Aldous Huxley, a simpatia pelos móveis também
antigos e também ecológicos, além de tradicionais. Móveis que comentou: “estes,
sim, são funcionais”. Uma classificação, a sua, no caso de velhos jacarandás de
cujos modelos ou de cujas inspirações, tanto se afastariam os móveis modernistas
de Brasília, evidentemente irônica.
À margem deste comentário recorde-se que meu por mim sempre admirado
amigo Oscar Niemeyer, antes de seus dias heroicos de construtor de Brasília, ou já
durante eles, em visitas à mesma casa de Apipucos na qual Aldous Huxley como
que refugiou-se do desencanto sofrido em Brasília, nunca deixara de considerá-la
ideal para o ambiente* Ecológica, portanto. Reparo que diante do rumo a meu
ver antiecológico da arquitetura de Brasília me pareceria contraditório. Impres­
são que eu viria a retificar ao ver, admirado e contente, a casa que Niemeyer

Jíojnens, cEngenhanas e cRumos Sociais - Ç liberto cFreyre


I

levantara para a sua residência em Brasília: uma casa de íeitio inspirado no das
casas-grandes de fazenda do Sul do Brasil, parentas das de engenhos patriarcais
do Nordeste. Que poderia eu desejar de mais agradável ao ecologismo, ao tradi-
cíonalismo, ao brasileirismo, susceptíveis de serem conciliados com modernismos,
por mim, desde jovem, seguidos como uma espécie de ciência filosófica brasileira
à base de uma possível conciliação das três engenharias a serviço de um também
possível desenvolvimento brasileiro harmonizado com os meios ambientes: o tro­
pical e o quase-tropicalque caracterizam a situação biofísica do Brasil, impossível
de deixar de ser considerada por uma ciência social que, através de suas várias es­
pecializações, concentre suas atenções num estudo científica e humanisticamente
social do brasileiro como um homem situado: situado num espaço e situado num
tempo capazes de influir sobre ele. De condicionar seu comportamento. De ins-

pirar seus projetos para possíveis futuros. De animar nele opções por valores que
constituam um conjunto ideal, ou já existencial, de valores que formem uma, para
ele, qualidade de vida. Uma qualidade de vida a ser resguardada de progressos
tecnológicos, econômicos e mesmo políticos.
Em abrangente, por interdisciplinar, ensaio, “Reflections on Democracy,
Science and Câncer”, inserido no número de fevereiro de 1977 do Bulletin ofth e
American Academy o f Arts and Sciences, de Boston, o professor Salvador Luria,
biólogo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e diretor do seu Centro de
Pesquisa sobre Câncer, aborda aspectos de uma inter-relação que se relaciona
com aspectos importantes do que se considere, para uma sociedade, “qualidade de
vida”. Entre esses aspectos, o que se refere a prioridades ligadas ao aperfeiçoamen­
to dessa qualidade de vida. Para o biólogo Salvador Luria - neste ponto de acordo
com Karl Popper - o chamado progresso da ciência é para ser considerado um
meio da espécie humana adaptar-se ao ambiente. O que, sendo certo, faria desse
processo de adaptação ao ambiente um objetivo tanto científico (inclusive tecno­
lógico) como social (inclusive democraticamente social), com o social, em termos
de definição de qualidade de vida, devendo - vá a palavra subjetiva - orientar o
científico ou tecnológico. Não é, decerto, demagogicamente, que o biólogo Luria
«•

cita a técnica científica da “chuva de fogo” desenvolvida pelos Estados Unidos


no combate, segundo ele, desigual, a populações, ainda segundo ele, inermes,
do Vietnã, como exemplo do que cientistas progressistas podem desenvolver de

Introdução - 45
I
\

1: eficiente sem que à eficiência corresponda uma justificativa ética. Uma justifi­
cativa que pudesse ser definida como qualitativamente ética em confronto com
uma eficiência tecnológica vantajosa quantitativamente. Daí, para o biólogo Lu-
ria, a necessidade de cientistas e tecnologistas promoverem discussões em torno
de objetivos e limitações das suas ciências ou das suas tecnologias: as limitações
sendo as de caráter ético. Pelo que lhe parece essencial que cientistas e intelectu­
ais influam ativamente sobre sociedades democráticas no sentido - é evidente -
de um relacionamento de ciência ou tecnologia com valores, em que - também
é evidente - vantagens qualitativas de eficiência em vários setores - não só no
militar como noutros, industriais - não prevaleçam arbitrariamente sobre valores
qualitativos.
É um critério, esse, que se aplica a problemas, tão vivos no Brasil de hoje,
de descontroles da engenharia física a serviço de avanços industriais ou impetu­
osamente industrializantes da economia brasileira, através de meios, por vezes,
inumanamente tecnológicos. Descontroles que vêm importando em graves dese­
quilíbrios ecológicos. Em graves poluições de ambientes. Pelo que, talvez não seja
tão anticultural que o Brasil desenvolva ou aperfeiçoe uma ecológica economia
agrária - como a que vem produzindo soja, para consumo doméstico e para expor­
tação - em vez de fixar-se numa absorvente mística de progresso pan-industrial e,
consequentemente, por vezes descontroladamente tecnológico. Soja, cajueiro -
produtor de uma farinha de castanha na qual nações como a União Soviética
parece que começam a vislumbrar possível substituto do trigo para a alimentação,
em larga escala de ainda, na União Soviética e noutras áreas, vastas populações
rurais - café, açúcar, sucos de frutas, frutas em várias condições de ser exportadas -
frescas e secas ou em calda, enlatadas, carnes, couros, talvez constituam, como
valores agrários e pastoris, apoio ao desenvolvimento, no Brasil, de uma agricul­
tura e uma pecuária capazes de fazerem do nosso país uma fonte de suprimento
de alimentos para grande parte do mundo. Isto sem que se abandone a industria­
lização da economia brasileira, através, inclusive, daquelas tecnologias adaptadas
à situação ou à ecologia tropical do Brasil, que modernos cientistas e tecnolo­
gistas brasileiros vêm vantajosamente desenvolvendo, no setor privado, depois
de outros, dentre eles, terem conseguido pequenos mas significativos triunfos,
no setor público: Saturnino de Brito, na engenharia sanitária (física, humana e t

46 - c}-íomens, cEngenharias e ‘Ttymos Sociais - Çilberto 'Freyre

• -«
social), Marcondes Ferraz, na engenharia hidráulica, através de brasileirismos na
solução de problemas suscitados pelo aproveitamento da energia de Paulo Afonso
(também simultaneamente engenharia física, humana e social), vários arquitetos
como Henrique Mindlin e Lúcio Costa na modernização, em edifícios de alto pon
te, de tradições arquitetônicas em vigor, há anos, no Brasil, como constantes de-
senvolvidas e aperfeiçoadas por anônimos. Folk structures, da classificação geral de
Frank Lloyd Wright desse tipo de que se pode chamar engenharia (física, humana,
social) sob a forma de arquitetura. À base do que pode-se falar em engenharias
anônimas, no Brasil, desde velhos dias, que cabem dentro da classificação de folk
structures. E que seriam evidências de uma nada insignificante criatividade, como
engenheiro anônimo, por vezes, telúrico e, dentro de telúrico, ecológico, do brasi­
leiro. Do brasileiro homem apenas intuitivo: sem saberes específicos.
Uma intuição, a desse brasileiro, que desde os mesmos velhos dias - desde os
já brasileiros bandeirantes pré-nacionais - vem contribuindo, junto com brasilei­
ros de elite como José Bonifácio, como o compositor José Maurício, como os in­
confidentes mineiros e os revolucionários pernambucanos de 1817, como o bispo
I

Azeredo Coutinho, como Caxias, como Osório, como dom Pedro II, como José
de Alencar, como Castro Alves, como Teixeira de Freitas, como Joaquim Nabuco,
como Rui Barbosa, como Rio Branco, como Santos Dumont, como Euclides da
Cunha - dentre vários outros - para a consolidação de uma concepção brasileira
de “qualidade de vida”. Concepção que parece vir tendendo a incluir valorizações
éticas, envolvidas ou não em inspirações religiosas, como superiores a valoriza­
ções de sucesso seja-lá-como-for; ou de triunfos apenas econômicos; ou somente
políticos. Para Max Weber valorizações éticas, quando de inspiração religiosa,
teriam sofrido, no Ocidente, o impacto de valorizações científicas e tecnológicas,
que teriam dessacralizado as éticas de inspiração religiosa. Sob esse impacto vi­
riam se verificando no Homem ocidental vazios que o esvaziado viria procurando
preencher com substitutos utilitários.
Pode-se admitir a projeção desse processo de substituição no Homem brasi­
leiro, embora não total, dado que o homem brasileiro não é um ocidental perfeito.
Ao contrário: grandemente imperfeito. Talvez se possa dizer: felizmente imper­
feito. Isto devido à presença nele destes três ainda, no Brasil, atuantes resíduos
mágicos: o ameríndio, o negro de origem africana e o conservado pelo analfabeto.

Introdução
Três resíduos de algum modo presentes na concepção brasileira de qualidade de
vida e que têm valido, ao homem brasileiro - místico, mágico e irracional, em
várias de suas atitudes, adepto do jogo do bicho, tanto quanto de um catolicismo
popular à revelia de pressões sobre ele de diversos bispos e uns tantos padres ra­
cionais e racionalizantes, e também de um umbandismo sincrético - atitudes de
resistência a excessos de ativismo entusiástico, em respostas a desafios tecnológi­
co-industriais de efeitos desnacionalizantes e em termos quantitativos. De onde o
paradoxo, no Brasil atual, da presença de um catolicismo oficial crescentemente
dessacralizado e, como tal, em decréscimo de prestígio popular e de uma cultura,
nos seus aspectos mais populares e, como populares, mais brasileira, ainda com
seus vários resíduos se não de todo sacros, mágicos. Cultura popular que não vem
deixando de projetar-se sobre a de elite: fenômeno tão difícil de ser apreendido
por simplistas Ph.Ds., made in USA.
Aliás, são Ph.Ds. intocados por observações de sociólogos magistrais do seu
país como o professor Daniel Bell que ainda há poucos anos, em comunicação
a simpósio, nos Estados Unidos, sobre o futuro da família como instituição so­
cial (veja-se, sobre o assunto, a revista Daedalus, de Boston, no seu número de
primavera de 1977), salientava virem correspondendo a crescentes secularizações
de instituições religiosas nos mesmos Estados Unidos, surtos, entre massas, surtos
extraordinários de entusiasmos sacros. Como precedentes de surtos atuais, o soció­
logo de Harvard lembra, dentro de uma cultura anglo-saxônica já secularizada sob
impactos científicos e tecnológicos, revivais metodistas nos Estados Unidos e na
própria Inglaterra e cientificizada pelo darwinismo, o surto católico, antimodernis­
ta, que se seguiu à conversão de Newman, e, na Europa continental, o existencia-
'

lismo cristão de Kierkegaard, a religiosidade de Soloviev, o “personalismo” católico


de Mounier, a ortodoxia cristã de Barth e Tillich, o agonismo de Simone Weil
O que faz o professor Daniel Bell concluir, como sociólogo, que à cultura
não falta ricorso. Isto por mais que os homens expandam seus poderes tecnológi­
cos. Por mais que seus conhecimentos científicos dominem a natureza. Por mais
progresso que se verifique em termos instrumentais. Por mais tudo isso - opina o
► : ____

mestre de Harvard —“as questões existenciais permanecem”. Esta é a história da


cultura, “com variações de mitos, filosofias, símbolos e estilos”. Daí a permanên­
cia da religiosidade.

48 - Jíomens, 'Engenharias e T{umos Sociais - Çilberto Treyre


Importante a observação do professor Bell de que a religião, ou a religio­
sidade, dentro das culturas, não é susceptível das manipulações que resultam
em tecnologias e políticas sociais. Igualmente importante o seu quase apoio à
afirmativa do historiador Theodore Roszak de os Estados Unidos atuais atra­
vessarem o maior surto de introspecçâo que uma sociedade jamais atravessou.
Pois a procura de um ego nacional autêntico é uma busca - pode-se comentar -
vizinha da busca religiosa.
t

Aliás, para o professor Bell - quem, nos últimos decênios, mais pensador so-
ciai, além de cientista do que esse Bell, de quem a revista Diálogo, no seu número 2,
vol. II, 1978, acaba de publicar, traduzido do inglês, o oportuno ensaio futuro-
lógico “O Advento da Sociedade Pós-Industrial” e, ao lado dele, outro pronun-
• • •

ciamento sugestivo, também traduzido do inglês, ‘As Perspectivas do Homem”,


de Robert Heiíbroner? - quando a religião como tal em parte fracassa - como,
observe-se ainda, parece estar sendo o caso do catolicismo oficial no Brasil - çults
appear: surgem os cultos. Cultos com pretensões a se basearem em conhecimentos
esotéricos. Messiânicos. Conhecimentos que teriam sido reprimidos pela religião
ortodoxa: no caso do Brasil, a católica romana que, entretanto, já teria chegado
ao Brasil com alguns desses conhecimentos esotéricos ou messiânicos adquiridos
de fontes europeias. No Brasil a esses euro-iberismos ou práticas religiosas de
origem euro-ibérica se acrescentariam os de origem ameríndia e os de origem
afronegra. Uns e outros contribuindo para expressões peculiarmente brasileiras de
crença católica-romana, com esses acréscimos, tornada telúrica, e através deles
I

tendo facilitado seu papel, tão sociologicamente bem desempenhado, de elemento


unificador, junto com a língua portuguesa - também ela com acréscimos ámerín-
í C

dios e negro-africanos, de uma sociedade nacionalmente brasileira. Participante,


portanto, a mística religiosa de raiz euro-católica de um processo de engenharia
social. Aspecto —o brasileiro - dessas assimilações no setor religioso da vivência e
da cultura, que escaparam a Henri Desroche, ao versar as inter-relações Marxisme
et Religions (Paris, 1962),
Dentro desse processo de engenharia social estará a religião católica romana
se constituindo, no Brasil, numa nova - de tão abrasileirada - religião variante
do cristianismo? Pergunta que se pode fazer com relação à língua portuguesa
igualmente abrasileirada na sua expressão e já, sob vários aspectos, distanciada
t
da academicamente euro-portuguêsa embora se desenvolva como idioma essen­
cialmente português. Uma e outra - religião e língua - podem ser consideradas
instrumentos de uma engenharia social criadora, no Brasil, de uma sociedade
e de uma cultura nacionais capazes de resistirem a tecnologias e a economias
estandardizadas, europeizantes ou ianquizantes, tal a sua capacidade de se de-
( seuropeizarem o bastante para se virem constituindo em língua e religião euro-
( tropicais ou eurotelúricas.
A língua portuguesa, com o fracasso na parte, além de oriental, africana,
de uma comunidade transnacionalmente lusotropical, cuja população, de origem
em parte lusitana, dividia com o Brasil uma progressiva lusotropicalização tan­
to de idioma, como de cultura, pode tomar entre os brasileiros un\ rumo mais
acentuadamente brasileiro nessa tropicalização. E tomar-se assim de tal modo
abrasileirada que tenderá a superar de todo o que nela é euro-português, esse
abrasileiramento podendo vir a comunicar-se de modo absorvente, quer ao pró-
prio Portugal, quer a populações de Africas de formação portuguesa se vierem a
libertar-se do imperialismo russo-soviético o bastante para se afirmarem capazes
de desenvolvimentos independentes a que não faltem retornos aos seus passados
porventura úteis: os semelhantes, em vários pontos, à experiência lusotropical
vivida e enriquecida notavelmente pelo Brasil.
Quanto ao catolicismo abrasileirado, pode vir a adquirir característicos de
nova religião, dentro da possibilidade de próximas novas religiões admitida pelo
sociólogo Daniel Bell em incursão pela futurologia: nova religião, entretanto, se-
4

gundo a previsão de Bell para possíveis novas populações paradoxalmente volta­


das para reavigoramento de seus passados em vez de repúdio a tradições. Convém,
a esta altura, transcrever aquelas palavras de Bell em que admite a emergência
de novas religiões através do que se tomem o que chama “search for those threads
iühich can give a person a set o f ties that place him in the continuity o f the dead and the
living and those still to be b o m e O que Bell considera uma revalorização daquela
memória que escreve com M maiúsculo e que, no caso de um catolicismo que,
por pressão popular contra orientação clerical, esteja a ressurgir como valoriza­
ção brasileira de tradição religiosa já subestimada na Europa e nos Estados Uni­
dos importaria numa coincidência de memória religiosa com memória nacional.
A favor dessa possibilidade lembre-se o esplendor de romarias como a de Nossa

50 - Jíomens, ‘Engenharias e ‘Piemos Sociais - Çilberto Treyre


Senhora da Aparecida no próprio coração do estado brasileiro sob impactos tec­
nológicos e econômicos mais modernizantes: São Paulo. A possível ressurgência
de um catolicismo brasileiro de feitio tradicional projetado sobre o presente e o
futuro nacionais coincidiria com a dos chamados fundamentalistas protestantes
nos Estados Unidos, que já se pode considerar evidente.
Para o professor Bell há um generalizado “retread from the excesses o f moder-
nity”, favorável a ressurgências religiosas. Isto dentro do que se poderia, talvez -
em comentário a Bell - incluir na ação de uma engenharia social inclinada, quase
sempre, a apoiar nos homens e nas suas culturas, tendências “to maintain continuity,
to maintain the un-animal life”, desde que - explique -se a expressão “un-animal life” -
“animals seeing each other die do not imagine it o f themselves; men alone know their fate
and create rituals not just to ward o ff mortality (the pretty stories o f heaven and hell) but
to maintain a ‘consciousness o f kind which is a mediation o f fate’”.
Além do que, ainda admitindo-se a inclusão do papel sociológico que desem­
penha uma religião mística ou “redentora” dentro de um processo de engenharia
social que concorra para a estrutura de uma sociedade de hoje capaz de resistir a
excessos não só tecnocratizantes como burocratizantes que acompanhem a des­
controlada modernização de uma economia considerada simplistamente arcaica,
tal religião “redentora” - pessoalmente redentora, com a redenção pessoal proje­
tando-se sobre a comunidade - constituiria o que Bell, citando outro sociólogo
eminente, o inglês Peter Berger, considera como reação a forças despersonalizado-
ras: a centralização governamental, a burocracia em larga escala, as megaestrutu-
ras de organização: assunto, em alguns dos seus aspectos, pioneiramente-versado
por Max Weber. A essas forças despersonalizadoras, a religião de um novo tipo
redentor, junto com a família, com o grupo humano chamado primário em so­
ciologia, com as associações voluntárias: forças privadas agiriam num sentido an-
tiestatal, antiburocrático e antitecnocrático. Por conseguinte - pode-se sugerir -
num sentido anárquico construtivo semelhante ao preconizado pelo aliás enge­
nheiro físico, tornado teórico de engenharia social, o francês Georges Sorel: tão
lúcido, mesmo quando susceptível de ser considerado utópico no seu anarquismo
de tipo construtivo. •
Para Bell, pode-se também conceber que uma nova religião se apoie so­
bre este outro retorno: a formas de pensamento tanto míticas como místicas.

Introdução
Puf

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%#
Reação a cientificismos absorventes enquanto evidentemente é da natureza
.ti do homem - ou dos homens - serem atraídos por mistérios. O que parece ser
b exato do homem brasileiro.
A engenharia social que seja aplicada a situações brasileiras não pode ignorar
L o que, na cultura mais característica do homem brasileiro, no seu comportamen-
t
«(

to, é presença de místicas, de mitos, de símbolos: do irracional, portanto. Ou do


.i

Al metarracional. Do poético.
i- A biografia coletiva que vier a ser escrita do brasileiro revelará nele contradi­
t*
ções. Inclusive sua capacidade de desenvolver tecnologias adaptadas à sua ecolo­
gia: uma capacidade científica. Prática. Mas também o contrário: sua tendência a
repudiar o apenas matematicamente científico em política, em administração, em
economia. Paradoxaimente: nas próprias ciências. Nas próprias ciências sociais.
A Aldous Huxley o Brasil que conheceu quando convidado a visitar Bra­
sília e do qual, antes dessa visita, procurou informar-se lendo em inglês tradu­
ções de escritores brasileiros - um deles, Machado de Assis, o outro, o autor
de Casa-G rande & Senzala (em inglês, The Masters and the Slaves) - pareceu
"improvável”. Foi o que disse em Apipucos. Improvável - é a interpretação
que se impõe - por não ser lógico como sistema de vida. Por não ser racional o
seu desenvolvimento. Por ser o brasileiro contraditório no seu comportamento.
Mas mesmo assim admite que criativo. Que funcional. Que presente no mundo
moderno como nação e como cultura de modo algum desprezíveis. Não por
Brasília: que o desencantou. Nem pela Bahia: onde não teve quem o iniciasse
em coisas baianas. Mas pelo que viu em São Paulo e em Pernambuco, orientado,
em Pernambuco, por aquele de quem lhe dissera em Londres o irmão Julián:
não deixe de conversar com ele. E com quem de fato dialogou longamente.
A quem disse que de Casa-Grande & Senzala era preciso que se fizesse um filme
épico: uma síntese das contradições que, segundo ele, formavam efetivamente
o Brasil. Elite e massa completando-se com seus contrastes. Pediu-me que su­
gerisse o que ver em Portugal em ligação com o Brasil. Lembro-me que sugeri
Coimbra, a Feira da Ladra, um vilarejo do Minho, outro do extremo sul. la
deparar com uma gente também contraditória: mais prática que a espanhola
porém também, contraditoriamente, mais lírica. Poderia lhe ter dito, em termos
inais sociológicos, que assim contraditório o português colonizador do Brasil

52 - ^Homens, Engenharias e E y,mos Sociais - Çilberto Ereyre


podia ser considerado o mais engenheiro social dos colonizadores europeus de
terras tropicais. Inclusive por ter sido o menos estatal; o menos tecnocrático;
o menos teocrático; o que mais cedo se deixou substituir por um colonizado,
autocolonizador. Engenharia social a que nâo faltara engenharia física; a de
construção de casas sólidas e edifícios com óleo de baleia; a de fortes além de
bem construídos estrategicamente situados; a de igrejas e conventos como que
levantados para serem eternos.
Note-se que é antes engenharia social - atenta a condições específicamen­
te ecológicas de vida - do que reforma social, vaga ou doutrinária, o que se
‘t . ,/ w t flP . ’ * . '* *

está fazendo hoje em países menos '‘improváveis” que o Brasil, no seu modo de
funcionarem, como a Alemanha Ocidental, a Rússia soviética, a Grã-Bretanha,
os Estados Unidos, a Holanda, com relação a novos tipos de pequenas cidades
na União Soviética, as chamadas agrovilas, nas quais consideráveis espaços são
dedicados a fins recreativos, lúdicos, esportivos, desínteressadamente culturais,
na previsão do aumento de tempo-lazer e da diminuição de tempo-trabalho,
em alguns desses países tecnicamente mais adiantados; e, por conseguinte, mais
atingidos pelos efeitos de uma crescente automação. Em algumas das novas
pequenas cidades da Grã-Bretanha, nos espaços dedicados a esportes e a outras
recreações, considera-se a possibilidade de encontros internacionais numa fre­
quência maior do que a atual.
Precisamente este foi um dos pontos em que Brasília, por falta de enge­
nharia social e da engenharia humana, ao lado da física, na sua construção,
deixou de corresponder ao que se esperava dela como cidade projetada sobre
o futura seus arquitetos, alheios ao que há de mais elementar em matéria de
engenharia social, descuidaram-se de lançar pontes entre um tempo-trabalho
provavelmente a ser reduzido consideravelmente pela automação - mesmo
numa cidade predominantemente burocrática - e o tempo-lazer: o crescente
tempo-lazer. Sobre o assunto escrevi na época um artigo na conhecida revista
de Nova York, The Repórter, que me valeu a solidariedade de alguns dos mais
competentes especialistas em engenharia social de várias partes do mundo, em­
bora no Brasil me custasse ataques de adeptos mais estreitos, ou absolutos, do
notável empreendimento de engenharia física sob a forma de arquitetura es­
cultural: notável sob esse aspecto mais deficiente nos de engenharia humana
i,
• Jt

JIntrodução - 53
e de engenharia social. Um deles insinuou que eu não criticava Brasília senão por
despeito contra o ilustre presidente da República, responsável pela sua constru-
ção, que não me dera a embaixada em Londres, por mim sequiosamente - insi­
nuava o apologista absoluto de Brasília - cobiçada. Assim se repudiava, então, no
Brasil, a crítica dos independentes a iniciativas ou realizações oficiais, por mais
honesta que fosse essa crítica nos seus objetivos e nos seus métodos.
As relações entre tempo-trabalho e tempo-lazer, entre os espaços que uma
comunidade moderna precise reservar à recreação, ao esporte, à música, ao te­
atro, ao lado dos espaços que precisem de ser dedicados ao trabalho constituem
um dos principais objetos de estudo das três engenharias. É problema dos mais
importantes dentre os que a engenharia social atualmente enfrenta. Desprezá-
lo em qualquer esforço moderno de construção de caráter ou de projeção social
é desprezar-se alguma coisa de essencial ao futuro humano menos remoto do
que alguns imaginam: aquele em que o tempo-lazer será mais importante que o
tempo-trabalho. Na Grã-Bretanha o problema vem sendo enfrentado tanto por
engenheiros físicos como por engenheiros sociais; e de modo em que se concilia
o universal como o regional; o uso da máquina com a preservação da saúde e da
inteligência humana naquelas áreas em que a máquina pode prejudicá-las, em
vez de beneficiá-las.
O que acontece com todo desenvolvimento tecnológico-económico de­
sordenado: sem o controle daqueles dirigentes nacionais que considerem pro­
blemas de bem-estar humano, inclusive o daquelas saudáveis relações do
homem com o seu ambiente, com a natureza, com a experiência histórica re-
presentada por um passado utilizável que representem equilíbrio ecológico no
seu sentido mais amplo. Equilíbrio que não pode deixar de repelir quanto seja
progresso que traga a poluição do ar, dos solos, das águas de regiões, em par-
ticular, e do universo - ameaçado todo ele por essa degradação de equilíbrios
regionais - em geral. Uma luta se trava entre essa espécie de progresso des­
controlado e ecologia. Entre preocupações exclusivas com o que é apenas
possibilidade de progresso material em futuros humanos e a necessária arti-
*

culação entre os três tempos - o passado, o presente e o futuro - num tempo


simultaneamente tríbio. Entre engenharias apenas físicas e as humanas e sociais
que completem, retifiquem, moderem os arrojos exclusivistas das físicas. Entre os

54 - cHomens, ^Engenharias e 'fyiimos Sociais - Çilberto ‘Treyre


avanços econômica e tecnologicamente civilizadores ou desbravadores e a neces­
sidade de se defender contra seus excessos, em países como o Brasil, o indígena -
evitando-se uma assimilação demasiadamente rápida.
Assinale-se aqui acontecimento tão recente que ainda está sem a justa
repercussão devido ao seu alto significado, quer para a cultura brasileira, em
• • p *•

geral, quer, em particular, para a crescente consciência, da parte de mestres e


estudantes universitários do país, da sua responsabilidade, através das três en­
genharias, para com ecologias, paisagens, recursos humanos, regionais: a ini­
ciativa de mestres e estudantes da Universidade Federal de Mato Grosso -
à frente dos mestres, o professor João Vieira, diretor do excelente Museu do índio^
da mesma universidade - de darem início a uma silvalogia que inclua não só o(
estudo interdisciplinarmente científico-humanístico, como a defesa militante dos;
valores que a_S£L¿a_jepresenta num país como o Brasil. A silvalogia terá como
seu principal instrumento de estudo e de ação um seminário interdisciplinar, nos*
moldes do de tropicologia que, depois de ter funcionado por doze anos na Univer­
sidade Federal de Pernambuco, está agora muito melhor instalado na Fundação ¥

Joaquim Nabuco, graças ao seu presidente Fernando Freyre. Reunirá o seminário


*

de silvalogia, como o de tropicologia, representantes de saberes diversos: o botâ­


nico, o biológico, o ecológico, o geográfico, o antropológico, o sociológico, o eco-
m

nômico, o político, o literário, o artístico, o museológico. O possível seminário, do


mesmo estilo, na Universidade de Mato Grosso, poderá convocar, para suas reu­
niões, mestres de outras universidades, de institutos de outros países ou autores
de obras relativas a problemas de ecologia, em geral, e de selva - especialmente
a amazônica - em particular. Sua articulação, em início, está a cargo do professor
João Vieira e são evidentes pontos de contato entre o que viria a ser sua atividade
e o que já constitui o esforço pioneiro, no gênero, do seminário de tropicologia.
Esforço a que já se juntou a iniciativa da Fundação Escola de Sociologia e Política,
da Universidade de São Paulo, planejando criar, por decisão do mestre ilustre que
é o professor Robbo Müller, um centro de estudos tropicais.
São Paulo enfrenta atualmente problemas de recuperação que pedem, para
ser enfrentados, conjugação das três engenharias, as quais, em Brasília, já estão se
unindo para o mesmo objetivo: recuperação. É de todo necessário que nas áreas
supradesenvolvidas do Brasil a engenharia social - a engenharia social, pansocial,

Introdução
reclamada pelos atuais reajustamentos brasileiros de caráter também pansocial,
atue, em alguns casos, como que cirurgicamente. Recuperando valores ou caracte­
rísticos perdidos. Destaque-se o caso de Brasília que, como cidade nova, não deve­
ria ter sido considerada nunca um puro problema de arquitetura ou sequer de ur­
banismo, mas de ecologia social a mais ampla. De ecologia tropical De engenharia
social. E também de engenharia humana, atenta à relação biofísica entre o homem
••

e equipamentos técnicos que, para o servirem, precisam de se ajustar a formas de


• . -

corpo regionais, antropológicamente apuradas: as formas de corpo de um brasileiro


típico sendo diferentes das de um suíço ou de um alemão e, por essas diferenças,
exigindo dimensões de habitação, de trajo, de veículo, de trator, a elas adaptadas.
Deveria, por isto, Brasília ter sido levantada, não apenas como obra de ar­
quitetos, mas de arquitetos ligados a ecologistas e a cientistas sociais que juntos
desenvolvessem uma sistemática de integração da nova cidade num espaço natu­
ral, social e cultural característicamente tropical, atendendo-se o mais possível a
seu futuro como cidade moderna no trópico e dentro de um país já com tradições
válidas, quer de adaptação de valores europeus a condições tropicais de vida, quer
de assimilação de valores tropicais a um tipo de civilização. Civilização predomi­
nantemente mas não exclusivamente europeia. Aberta, por conseguinte, a outras
V influências, a outras experiências e a outras perspectivas.
Isto o que alguns analistas do assunto têm procurado opor de concreto aos
abstracionistas que, contrariando os próprios desígnios do presidente Juscelino
Kubitschek, julgaram possível a um país pobre, como é o Brasil, dar-se ao luxo
de levantar uma cidade suntuosa só de arquitetura escultural, como começou
a ser Brasília, com a sua edificação ordenada exclusivamente por arquitetos -
\ aliás, ilustres - como por uma casta de sacerdotes sagrada, todo-poderosa e onis-
^Ovo
' ciente; e dentro de um plano apenas urbanístico, quando devia estar sendo cons­
truída como centro de um sistema inter-regional de economia e também de colo-
\ nização que alcançasse os espaços rurais que necessariamente completam o todo
iregional, urbano-rural, que se vem estabelecendo à revelia dos urbanistas.
Um sistema em que os Brasis mais diversos se encontrariam em Brasília. Um
sistema que formasse a base, projetada sobre o futuro, de uma nova e mais dinâ­
mica articulação de Brasis em Brasil, tendo, por centro, Brasília e que realizasse de
início a integração urbano-rural ou rurbana.

56 Jiomens, Engenharias e latimos Sociais - Çilberto Irreyrâ


-
O ponto em que insisto, sem prejuízo do fato de continuar um mais do que
apologista, um entusiasta, do arrojo de modernidade que Brasília representa -
arrojo que dá ao presidente Juscelino Kubitschek um relevo de figura já histórica
- é este: mais do que pura obra de arquitetura escultural, a nova capital do Brasil
deveria ter sido considerada pelos seus idealizadores e construtores obra de enge­
nharia social. Por conseguinte, complexa. Tremendamente complexa,
!

Não é apenas o arquiteto, o esteta e o urbanista que devem orientar hoje


a construção ou a reconstrução de uma cidade, Uma cidade não se pertence,
pertence a uma região; não é só urbana, é também rural. Nem pertence somente
ao engenheiro físico: o engenheiro puro e simples. Repita-se que a iniciativa do
presidente Juscelino Kubitschek, representando um empreendimento complexo, \
era impossível de ser plenamente realizada sem participação esclarecedora e, em
certos assuntos, decisiva, do ecologista e do cientista sociais: participação que
de algum modo foi promovida pelo ex-presidente, desde o início do seu governo
11

empenhado, quer na chamada harmonização de Brasília, quer na valorização de


-K ' íX

atividades agrárias nos vários Brasis.


Há quem suponha que a cidade moderna pode ser criada como puro ou ab­
soluto “artifício” - no melhor sentido da palavra — à revelia de condições es­
pecíficas de espaço e de tempo; como há quem suponha possível cuidar um
país do seu desenvolvimento econômico à revelia de problemas sociais, do seu
£ h , - t e 1 : - . . . ¿ 4

desenvolvimento industrial à revelia do agrário. Trata-se de desvarios, Não há


base para semelhantes suposições, Devemos, enquanto é tempo, retificar os er-
___ #l ^

ros já praticados em Brasília, por terem os engenheiros, os urbanistas e os ar­


quitetos - alguns deles, figuras admiráveis nas suas especialidades - despre­
zado ecologistas e cientistas sociais; deixado de ouvi-los e de consultá-los.
Devemos retificar os erros do chamado desenvolvimento que se empenhou em
promover o progresso econômico à revelia de problemas sociais, o progresso in­
dustrial à revelia do agrário.
Essas retificações ou recuperações só serão possíveis através de uma enge­
nharia pansocial que se apoie nas várias ciências sociais: nas suas técnicas de pes- ■v

quisa o mais possível de equipe que incluam cientistas sociais de várias especiali­
dades, nas suas técnicas de aplicação de teorias flexivelmente gerais a situações
concretas, através de equipes também constituídas por cientistas sociais de várias

à -Q jr t^ s rKJÍm3 v
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■£■re'-^,M- V».At-r,, i o/p-r^iS-O. -D / i-xD "
— _ <W\fxAà j K o ^ . v & 0 Introdução - 57
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kn\ r- Jf* -r» * Oi •* l * •
especialidades; e através de técnicas de persuasão do público e de educação e de
reeducação de grupos, quer de adultos, quer de jovens, quer de letrados, quer de
analfabetos, desenvolvidas por psicólogos sociais e por educadores de formação
I

sociológica.
Dizendo o que não se pretende sugerir a tecnocratização, no Brasil, dos co­
mandos das atividades nacionais. De modo algum. São comandos que, importan­
do em decisões políticas, cabem aos políticos. Políticos dos quais se esperam que
sejam generalistas idôneos, aos quais não falte nunca o contato com orientações e
esclarecimentos que lhes venham das três engenharias: assunto pelo autor já abor­
dado no livro Oh de C asa! e aqui várias vezes considerado com maior amplitude.
Constituem decerto as três engenharias, não tecnologias autossuficientes porém
também, além de artes criativas, uma nova espécie de filosofia que podendo ser de
desenvolvimento não deixe de ser de integração. Desse modo atenderia ao que na
operação social que se distinga como desenvolvimento, seja aquela dinâmica do
conceito de Pitt em The Social Dynamics o f Development - já citado - sem deixar
de atender ao que Ignacy Sachs, em Pour une Economie Politique du Développement
(Paris, 1976), considera válido no chamado ecodesenvolvimento. Isto é - pode-
se interpretar seu pensamento - aquela necessidade de atenderem-se solicitações
ou condicionamentos ecológicos ou situações, em vez de um desenvolvimento de
todo importado ou uniformizador como, no caso de sua aplicação à arquitetura,
o que houve, no Brasil, de demasiada imitação das formas supradesenvolvidas de
construção lecorbusierianas, sem sua adaptação à ecologia e à situação brasileiras.
A situações atuais e a prováveis futuros.
Vejam-se, sobre o assunto, Frederick Polak, The Image o f the Future, San
Francisco, 1973; Alvin Toffler, Future Shock, NY, 1970, e The Futurists, NY, 1972;
W. FI. G. Armytage, Yesterday's Tomorrows, Toronto, 1968; Jacques Maisonrouge,
“La Telematique”, Revue des Deux Mondes, Paris, outubro, 1968; Mário Flenrique
Simonsen, Brasil 2001, Rio, 1969; Flerman Kahn e Anthony Wiener, O Ano 2000
(tr.), São Paulo, 1968,
Talvez a figura histórica que mais deve ser elevada a patrono dos modernos
engenheiros, além de físicos, humanos e sociais na sua engenharia criativa, seja
Leonardo da Vinci. Embora Kurt W. Marek, no seu Yestermorroiv (NY, 1961), con­
sidere Da Vinci antes um utópico do que um precursor da tecnologia moderna,

58 J-fomens, ‘Engenharias e ju n tos Sociais - Çilherto cFreyre


-
o certo é que a esse utópico não faltou imaginação científica. Projetou-se sobre
um futuro que é, há anos, realidade com essa imaginação. Da Vinci concebeu um
futuro em que a máquina se tornava, como se tornou, parte do homem, não num
sentido utópico, porém funcional. E sob a direção da inteligência humana.
Qual o característico principal do seu gênio? O de um indivíduo capaz
de concentrar-se em atividades especializadas - da ciência mecânica à pin.tu-
ra artística - sem deixar nunca de ser um coordenador de especialismos. Um
transespecialista, portanto. Mais do que isto: nete estavam presentes o lógi­
co e o mágico. O racional e o intuitivo. Daí ser documento ^interessantíssimo
• 4 •
é

sua carta a Ludovico il Moro: carta em que enumera suas aptidões, entre as
quais, construções de ponte portáteis; destruição de qualquer tipo de fortaleza,
das então conhecidas; construção de tipos especiais de navio; construção de qual­
quer tipo de edifício; escultura em mármore ou bronze; pintura. Engenharia fí­
sica, decerto. Mas exigindo, cada uma dessas invenções, adaptação ao homem
(engenharia humana) e adaptação social ou aos interesses da comunidade ou da
sociedade (engenharia social). Correlação que bem poderia ter sido mais abran­
gentemente considerada na recente (1978) obra coletiva, organizada por Máxime
Haubert e publicada em Paris, Tzers Monde. Utopies et Prospects de Société.
Não nos esqueçamos, a propósito de engenharia social, tanto quan-j
to da humana, da crescente importância da chamada engenharia dos alimen­
tos. Crescente importância em face da progressiva industrialização de alimen-V
tos, quer de origem animal, quer de origem vegetal, uns e outros perecíveis, /
E sendo perecíveis, reclamam controles que a tecnologia ou a engenharia especia- \
lizada pode oferecer, em defesa da saúde humana.
Outras engenharias especializadas dentro quer da categoria das humanas,
quer das sociais, podem exercer controles de todo necessários sobre produções e
industrializações. Por exemplo: sobre a produção de máquinas de transporte. Ou
sobre a indústria de trajo ou a de calçado. Ou, ainda, sobre a produção de móveis.
São todas produções em que o produtor industrial precisa de atender a relações
entre tipos antropológicos dos consumidores a quem se destinam seus produtos e
••

o material, as dimensões, as formas, as cores, desses produtos: Daí a importância


para o engenheiro humano, como para o engenheiro social e o próprio engenheiro
físico, em atender a condições regionais ou ecológicas ou climáticas - admitem-se

t
a .

Introdução - 59
t
«
«
*1

*
possibilidades de alterações de climas: seria uma realização de engenharia física
/>
n e c e s s it a d a de ser complementada pela engenharia humana e pela social — de
»

populações a que se destinem específicamente tais ou quais produtos industriali­


zados ou mecanizados. A tropicologia precisa de ser considerada pelas três enge­
nharias. Como precisa de ser por elas consideradas o que atualmente se processa
no setor da genética, através de uma como que engenharia da genética.
t, j. r » . , ' A a . * ' \ \ : r . ■ { ' ° •t ■ • ; - ■

Já duas universidades brasileiras oferecem cursos sistemáticos em engenha­


ria de alimentos: a de Campinas e a de Viçosa. Seria conveniente ao Brasil, em
ligação com o desenvolvimento entre nós das três engenharias, que se criassem
nas mesmas e noutras universidades animadas de brio pioneiro, cursos de tro­
picologia: sugestão, aliás, já apresentada ao reitor da Universidade Federal de
Pernambuco por um dos mais ilustres mestres dessa universidade, mestre Nilo
Pereira, para quem não basta que funcione há anos, no Recife, um seminário de
tropicologia, ao qual acaba de juntar-se outro, em São Paulo. Segundo o professor
Nilo Pereira, torna-se necessário fazer dessa ciência em formação - a tropicologia
- uma disciplina universitária em benefício de jovens. Sabe-se que em engenharia
de alimentos já estão se graduando jovens da Universidade de Campinas. Por que
não estudos semelhantes, com igual sistemática, em tropicologia? /

a
f * •
4i
»}

1. EM TORNO DAS TRÊS ENGENHARIAS -


A FÍSICA, A HUMANA, A SOCIAL - E DE

SUAS PROJEÇÕES SOBRE O FUTURO


f

HUMANO, EM GERAL, E BRASILEIRO,


EM PARTICULAR

génharia
mana é a que cuida das relações entre o homem e as tecnologias modificadoras cy
. “ • y ’ Ü.ÍCL
c v ..

de algumas daquelas circunstâncias de que falava Ortega* £ a que se volta, com


critério científico, para adaptação do homem a tecnologias e de tecnologias ao
homem, considerado como de importância máxima, nesses ajustamentos, além da
biologia e da fisiologia, as formas de corpo do homem ou, mais precisamente, de
vários tipos de homem - segundo sexos, etnias, idades, constituições. Tanto a en­
genharia física como a social precisam de dispensar atenção a essa outra engenha­
ria, sem o que uma e outra poderão correr o risco de fracassar por agirem à revelia
r • • ■ * .. r ' T . y . ' ^ 1 ‘ T ; Ci

do homem-pessoa, do homem-forma, do homem-biologia, do homem-fisiologiá.W^'H


Vy f ., * a r *
Inclusive à revelia do homem ligado à casa: à sua residência. Ou ao edifício o n d e / ^ ^ T T
'-U.(a
estude, Ou àqueles onde trabalhe, onde dance, onde reze.
A engenharia humana insiste em salientar que o tipo médio humano é uma
ficção: o que os antropólogos físicos revelam é uma variedade de tipos médios hu­
manos. H á predominancias regionais de tipo humano médio que não devem ser
esquecidas pelo engenheiro humano, quer se trate de construir escadas em edifí-
cios de vários andares, quer de adaptar equipamentos e condições de trabalho a
**
mãos, pés, troncos, braços, de seres humanos. Os próprios assentos constituem um
aspecto importante dessa variedade de atributos físicos característicos de diferen­
tes tipos médios de homem. Os cálculos de espaço ou de situação, quer vertical,
quer horizontal, de trabalho, em edifícios, também precisam de considerar quais
r
cTn-QfftA- _ (r _w i
r> 0 r* ? 7 1 .A
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as predominancias regionais de tipo médio de homem, desde que as relações entre
tais espaços e esses tipos médios, os modernos engenheiros humanos consideram-
nas interdependentes. Daí a importância, para os modernos engenheiros huma­
nos, dos dados antropométricos sobre populações regionais que lhes permitam
calcular o alcance de movimentos de corpo em situações de trabalho industrial.
Até que ponto, no Brasil, a construção de veículos, anunciados nos reclames
de revistas como adaptados a condições brasileiras, vem atendendo a sugestões
ou instruções de engenheiros humanos? Ou será que semelhante adaptação se
refere apenas à adaptação de dispositivos de motores e de formas de veículos de
origem europeia ou anglo-americana às más condições de muitas das ruas e das
estradas brasileiras? É possível que sim: que a adaptação venha sendo apenas a
física, das máquinas, a condições apenas físicas de espaço, esquecido o homem,
não só psíquico-social como puramente físico, o motorista, o ocupante de assen-
tos em veículos. Pelo menos é o que salientam os anúncios de vários dos veículos
fabricados no Brasil; que são carros de suspensão por meio de barras de torção
••

e por conseguinte praticam ente inquebrável; e que passam facilm ente por onde
outros atolam ou derrapam.
-f

O homem vem sendo, de ordinário, um grande esquecido pelos “progressis­


tas” e pelos “modernistas”: quer quando levantam Brasílias, quer quando constro­
em caminhões e jeeps que os anúncios dizem ser adaptados aos Brasis mais rústi-
é

cos. Aos Brasis - às suas estradas mais tropicalmente ásperas - talvez o sejam; aos
brasileiros é possível que ainda não sejam, resultando daí deformações de corpo,
ê

sofrimentos físicos e até nervosismos perfeitamente evitáveis. Resultam alguns


deles de desajustamentos entre máquinas e o homem; entre assentos de trabalho
e de viagem e o homem; entre escadas de edifícios - sobretudo entre escadas cha­
madas de serviço - e o homem. O homem que possa ser considerado racional e o
•f

homem que permaneça, em certos aspectos, n ão racion al


Sabe-se que, quando o sociólogo M ax W eber falava do “processo de racio-
nalização”, como característico das sociedades modernas, referia-se ao im pacto
t

sobre essas sociedades de toda uma série de transformações e de reorientações


rápidas de vivência e de convivência humanas, com o resultados da maior apli­
cação das ciências não só naturais como sociais a assuntos sociais. Há quem
pense ter racionalidade por consequência - uma das suas consequências - a

c ] - f rv H i c u . - 7 •
crescente instabilidade do homem moderno. É um homem, o moderno, a quem
falta a segurança que lhe davam os mitos antigos - a palavra “m itos” não é
ê

usada aqui em sentido pejorativo - ainda não adaptados à moderna tecnologia


racional que nos cerca. Pois não se pense do homem que facilm ente pode viver
sem mitos; nem que os mitos facilm ente se deixam extinguir pela racionalização
da vida através da tecnologia; esperam quase sempre o mom ento de ressurgir
sob novos aspectos.
Lembrem-se, a este respeito, as considerações de caráter filosófico-socioló­
gico, quer de Pareto, através de sua teoria de resíduos, quer de Georges Sorel, e
as de caráter psicológico de Jung - a^avé^de sua concepção de arquétipos - e
também o que a respeito contém o recente7 Les Sodétés H um aines, de Armand
Biancheri (Paris), especialmente no capítulo “LIrrationei dans les Sodétés In­
dus trielles”. Isto sem se deixar de reconhecer a viva atualidade de M echanization
Takes C om m an d, de Giedion: obra antecessora.
O homem moderno vive no meio de um tal número de inovações tecn o ­
lógicas como que pós-modernas - novos tipos de avião, de submarino, de au­
tomóvel, de barco, de trator, de máquinas de escrever, de calcular, de lavar
roupa, de varrer, de refrigerar, de registrar, de gravar, além de novos processos
de manufatura de ferro, de aço, de têxteis - que não está havendo tempo para^
essas manifestações de racionalidade se conciliarem com suas persistentes ten ­
dências no sentido de se assegurar da constância de uma não de todo racio­
nal condição humana e da constância do que há de ultrarracional na culturaI

humana: inclusive na moderna. O choque entre essas duas tendências no homem


civilizado moderno vem sendo o principal objeto de estudos daqueles modernís­
simos psiquiatras sociais que têm o seu centro em Zurique; e para os quais o
homem, por mais cercado de técnicas racionais, necessita do não racional para
sua segurança, sua estabilidade e sua criatividade. Recorda-se aqui este fato para
hue não pareça pertencermos ao número dos panracionalistas que consideram ser
possível a solução científica dos problemas do homem civilizado, através da pura
tecnologia racional ou racionalizada, por mais fecunda e engenhosa que ela seja.
A psiquiatria, a psicologia, a antropologia, a sociologia, a economia, também são
ciências; e não se pode dizer dos seus principais cultores modernos que concor­
dem em atribuir essa importância absoluta à tecnologia per se.
I
Vã As modernas ciências do homem já não obedecem de todo às filosofias
^positivistas e neopositivistas que durante quase úm século tiveram sobre ela
influência preponderante, colorindo também suas relações com a engenharia
física e com a engenharia sociaL Já não são maioria, porém minoria, os cientistas
sociais que se julgam obrigados pelas normas filosóficas das ciências do homem
a se fecharem de todo a quanto sejam projeções de ordem estética e ética e
de caráter em ocional sobre o com portam ento do homem social, que só seria
susceptível de análise e de explicação científicas em termos do que um moder-
no e lúcido intérprete das mesmas ciências cham a de “orientação racional do
mundo”: orientação que repudia, Nas exatas palavras desse escritor que não é
outro senão Bernard Barber, à página 359 do seu já clássico Science and the Social
O rder, são incompletos aqueles “positivistic social scientists w ho ignore or deny the
whole area o f t h e m o r a i esthetic-em otional and w ho try to understand hum an behavior
entirely in terms o f m an s rational orientation o f the w orld”. Pois a verdade é que
línot all that is not rational in hum an Ufe is ignorance and error and irrationality; not
all that is non-em pirical is u n r e a i. N ote-se da década de 1940 que marcou um
claro despertar, entre americanos e europeus, para problemas de relacionam en­
to entre a condição humana e os crescentes avanços na m ecanização da vida ou
já na sua automatização,
/ ♦ • *

E assunto, este, de que se ocupam magistralmente Hans J. Morgenthau, no


seu pioneiro Scientific M an and Power Politics, publicado pela Imprensa da Univer­
sidade de Chicago, em 1946, Alexander H. Leighton no também pioneiro H uman
Relations in a Changing World (Nova York, 1949) e S. Giedion em M echanization
Takes C om m and (NY, 1948). Três obras germinais dentre as que marcam a década
de 1940 como o início de preocupações e estudos em profundidade em torno de
assuntos tão complexos. Veja-se mais sobre o assunto o conhecido livro de Lewis
Mumford Technics and Givilization, que, publicado em Nova York em 1934, con­
servaria sua atualidade em décadas seguintes. O que é certo também de T he En-
b

gineer in Societyt de John Mills, publicado em 1946, com relação a circunstâncias


socioculturais que nem sempre racionalmente vêm condicionando a profissão e a
atividade do moderno engenheiro - o engenheiro físico ~ em sociedades tidas por
$ - •

orientadas racionalm ente. Profissão cujo prestígio é considerável nas sociedades


industriais de hoje.
Gb'.VCU
Ê de esperar que ocorra no Brasil, nos próximos decênios, o mesmo que vem
cv9v'!^
ocorrendo nos Estados Unidos nos últimos cinquenta ou sessenta anos, isto é, í
aumento no número de engenheiros. Aumento correspondente à expansão das
chamadas “indústrias científicas”.
O professor Bernard Barber recordava há anos, à página 160 do seu Science
and ihe Social Order - outro livro pioneiro que, tendo aparecido em Londres em
1953, tornou-se e é, hoje, um clássico - que em 1880 havia um membro de socie­
dade de engenharia dos Estados Unidos para cada grupo de 3 0 .9 0 0 habitantes do
mesmo país; e que em 1949 essa relação passou a ser de um para 910. Baseia-se
sua afirmativa em informações recolhidas no estudo de Theodore J. Hoover e C.
L. Fish, T he Engineering Profession, publicado pela Imprensa da Universidade de N
I

Stanford em 1947.
r-, r,
Por que esse crescente número de engenheiros naquele país? Porque a cien-). /' /
tificização das indústrias o vem exigindo. Para que se verificasse a expansão das> ^
indústrias, foi necessário que se processasse um extraordinário desenvolvimento
de laboratórios de pesquisa, juntando-se assim à figura do engenheiro prático a do.
\
C
engenheiro pesquisador. E foi com a pesquisa científica em torno dos problemas
de indústrias particulares e de obras públicas, dependentes, para a sua solução, da
técnica e da administração de engenheiros, que a figura do engenheiro humano
começou a emergir com o seu moderno contorno. Foi também com a pesquisa
é
científica assim sistematizada e prestigiada peias grandes indústrias e pelos go
vernos, que começou a desenvolver-se a preocupação de industriais, de homens
de governo e de engenheiros com problemas tanto de engenharia social como
de engenharia humana. Inclusive com este nada insignificante problema: o das
relações de uma sociedade moderna - particularmente do Estado - com seus pes­
quisadores científicos; e entre estes, os engenheiros pesquisadores.
São pesquisadores dos quais a mesma sociedade e o mesmo Estado podem
esperar contribuições valiosas para o desenvolvimento do bem -estar nacional,
em particular, e humano, em geral, e aos quais devem conceder condições tais
de trabalho que os resguardem de cuidados mesquinhos de m anutenção de
família, perm itindo-lhes uma atividade pesquisadora livre desses cuidados e li­
vre também de excessiva disciplina burocrática. Q ue o pesquisador científico a
serviço do Estado não pode ser tratado como um burocrata qualquer é o que

CTTj... ij-M.n jJrwr* hnwrtc —n fícínn n Iwi+vtfwtn n


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c/w) Ní 'Q
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O -O-víjsj^ ^ rVyyft/\ CAÁ
indicam as facilidades que lhe vêm sendo concedidas nos últimos decênios, quer
pelo governo dos Estados Unidos, quer pelo governo da União Soviética. tfós/W
Segundo o professor Barber, um dos obstáculos que vêm sendo vencidos nes­

* *
te particular é o de sujeitar-se o pesquisador científico a serviço do Estado - como
típico intelectual: figura considerada em livro de autor brasileiro - A lém do A p e­
nas M oderno, aparecido no Rio de Janeiro em 1973, em Madri, em 1977 - ao cri­
tério de promoção por antiguidade e por capacidade administrativa, válido para
outros servidores públicos; mas que no caso do pesquisador científico - inclusive
o engenheiro pesquisador - deve subordinar-se a outro critério: o da com petência
técnica. “Scientists require other kinds o fsp ecia l treatment which are not customarily
granted Governm ent employees under the Civil Service rules but which are necessary
fo r good scientific work'\ escreve ele à página 176 do seu Science and the Social
Order. Mais: o Estado deve conceder a tais servidores uleaves o f absen ce... to take
further university or other scientific t r a i n i n g O que nos leva a tocar de passagem
em assunto pungente: o de estar se tornando a universidade centro não só de
iniciação de jovens em saberes, mas de atualização desses saberes por pessoas de
gerações já do tipo sênior. Problema que pede a atenção do próprio Estado em
suas relações com a educação e com a cultura, com a ciência e com a tecnologia,
Não se trata de atribuir ao Estado a função de dirigir a cultura ou a ciência
em tudo o que diz respeito à pesquisa científica: ao seu aperfeiçoamento e à sua
I

atualização da qual se derivam renovadas interpretações filosóficas e aplicações


artísticas. Seria caminhar-se para o totalitarismo num dos seus piores aspectos.
Trata-se de o Estado facilitar esse gênero de atividade científica, parte da qual se
liga, é certo, a problemas de defesa nacional, justificando-se que os cientistas -
inclusive os engenheiros pesquisadores - incumbidos de pesquisas neste setor se­
jam considerados especialíssimos servidores do Estado com deveres também espe­
cialíssimos para com o Estado e com a nação. Trata-se de uma área em que deve
haver o máximo de cooperação entre o Estado e o pesquisador científico - inclusi­
ve o engenheiro pesquisador - , considerando-se este, no trato de problemas rela­
cionados com a defesa nacional, a serviço da nação a que pertence, e respeitando-
se o mais possível, no pesquisador científico, seu apego a valores que são antes
pan-humanos do que particularmente nacionais. Com preende-se que havendo
demasiada pressão do que foi considerado interesse nacional, por homens de

r w w c vi C— : -
governo - interesse que se tom a por vezesf quando estreitam ente interpretado -
preconceito - sobre o pesquisador científico, este procura fugir ao serviço do Es­
tado, quando não ao próprio Estado, São patéticas, a este propósito, as declara­
ções do pesquisador científico russo-soviético que recentem ente pediu asilo ao
Canadá, abandonando o serviço da União Soviética e recusando-se a regressar ao
convívio dos seus compatriotas. Não nos esqueçamos de que atitude semelhante
teria sido a de Bertrand Russell se estivesse hoje a serviço da G rã-Bretanha como
pesquisador científico. O pesquisador científico, quando indivíduo de i
superior, não se deixa facilmente burocratizar.
Ao pesquisador científico repugnam de ordinário restrições que perturbem
9

sua imaginação criadora ou seu afã inovador, baseado, aliás, na capacidade, má-
xima no homem de gênio, para novas combinações por metáfora e analogia de
valores já conhecidos. Ele é de ordinário um indivíduo rebelde à rotina. Seu pa­
rentesco com o poeta e com o artista é muito maior do que geralmente se pensa.
“Em última análise” - escreve H. Levy em seu T he Universe o f Science - “há
pouca diferença entre o esforço individual do artista e o esforço individual do cien­
tista no trato direto dos problemas com que lidam. O indivíduo sem imaginação não
pode ser nem artista nem cientista1'. E o professor Barber lembra, à página 194 do
• 0

seu já citado livro - repita-se: já clássico - que a metáfora não é estranha à imagi­
nação científica, ainda que com funções diferentes das que desempenha em poesia.
São numerosas as descobertas em química, por exemplo, baseadas no uso de
analogia. É o que informa David Lindsay W atson, no capítulo “O n the Similarity
of Forms and Ideas as the Basis of M ental Life and of Scien ce”, do livro Scientists
are Human, publicado em Londres em 1938 e ainda válido sob vários aspectos, não
sendo raros os bons livros, mesmo de ciência, que sobrevivem à data do seu apare­
cim ento: o caso clássico do livro com que Charles Darwin revolucionou a biologia
e ciências vizinhas. A verdade é que só através da imaginação capaz de levantar
hipóteses, o pesquisador científico - inclusive o engenheiro pesquisador - chega
a estabelecer novas relações entre valores já conhecidos. Através do estabeleci­
mento dessas novas relações é que se vem desenvolvendo a ciência: tanto a pura
como a aplicada. E a intuição, o sentido, o senso de novas relações entre coisas e
valores, são vários os pesquisadores científicos que têm atingido sonhando e não
apenas literalm ente pesquisando: sonhando depois de muito se terem preocupado
tjüt^ T ' ‘

com o assunto que os empolga. Daí o que o fisiólogo W. B. Cannon chama, no seu

?3°' The Way o f an Investigator, de “serendipity”. Ou seja “the happy faculty, or luck, o f
Vy finding unforeseen evidence o f one s ideas, or, with surprise, coming upon new objects
i or relations which were not sought”, Trinta entre as descobertas de novas relações
que se têm verificado assim obliquamente, está a de penicilina, por Fleming; e
também a de Roentgen, dos raios X; a do processo de vulcanização da borracha,
por Goodyear; a da dinamite, por Nobel. Trata-se, quase sempre, de relações v/stas
por muitos; mas que só vêm a ser notadas por homens de gênio; ou quase de gênio.
VPor
ú •
que são homens por vezes aparentemente boêmios, aparentemente românticos
1 \ I
e aparentemente desprendidos da realidade nos seus estudos, embora desses es
\ • ( ^ , \ cv.
« r*

tudos tenham resultado descobertas ou inventos de enorme valor prático para a


V
\ •.Ù
% A
. r totalidade dos homens.
I
A crescente presença das três engenharias no mundo moderno dá atuali­
dade ao problema, já antigo, das relações entre ciência pura e ciência aplicada.
Entre a ciência fechada em torres de marfim e a ciência que desce à cidade, à
praça, à rua, para se tornar uma presença ativa e atuante entre os homens, quer
seja ciência natural, quer seja ciência social. Quer seja física, quer seja sociologia.
Quer seja biologia, quer seja antropologia. Quer seja química, quer seja psico­
logia. A engenharia social é ciência social sob este aspecto: o de ciência que,
aplicável, se torna aplicada.
Nos dias que atravessamos é o cientista nuclear que está mais em foco como
cientista socialmente responsável. A verdade porém é que ao cientista, nesta
como noutras áreas, não pode ser atribuída senão parte de uma responsabilidade
que toca, como adverte o professor Barber, a todos os membros da sociedade a
que pertence o cientista: “For as scientists they are no m ore, and sometimes no less,
competem in this function than oth erm en ”. E ainda: “Clem enceau once remarked that
war was mnch too important to be left to the military. In the sam e fashion, science is too
important to be left to the scientists”,
Isto não impede de haver importante lugar no mundo moderno para os
chamados “humanistas científicos” do tipo do bem conhecido professor J. D.
Bernai (T he Social Function o f Science) contra os quais se colocam os cientistas
da Society for Freedom o f Science, orientados pelo também renomado professor

68 - ¡‘ Homens, ‘Engenharias e Tournas Sociais Çilberto cFreyre


*
I

Míchael Polanyi: veja-se o livro organizado pelos professores M. Polanyi e E. E


Wigner, Physical Science and Human Valúes. São humanistas, os dentistas, empe­
nhados em que a ciencia se torne cada vez mais ciência planificada no interesse
do bem-estar humano. Os seus opositores, porém, se mostram preocupados em
afastar a ciência de quanto seja intervenção direta nas atividades práticas dos
homens. Há perigo de extremismo tanto de um lado como do outro. Sobre o
assunto, são atualíssimos os conceitos contraditórios que no seu excelente The
Normative Structure o f Sociology, Conservative and Emancipatory Themes in Social
Thought, agora aparecido em Londres, são confrontados pelo professor Hermann
Strasser, do Instituto de Estudos Avançados, de Viena. N ote-se: para a edição
em língua portuguesa, a ser realizada no Brasil, desse livro, o autor solicitara que
o prefácio fosse escrito por um seu colega brasileiro. O editor brasileiro, porém,
impugnou a escolha. Talvez por julgar o compatriota “reacionário”, sendo ele
editor “progressista”. Aspecto do funcionamento daquelas “engrenagens de pro­
paganda” quer “burocráticas”, quer “universitárias” - poderia ter acrescentado
as editoriais e as jornalísticas a que se refere, em lúcido comentário, em “Brasil: a
Luta Ideológica”, na revista brasileira Temas de Ciências Humanas (1978), mestre
Nelson Werneck Sodré, com a sua insigne autoridade.
Ainda sobre aquela matéria, são pronunciamentos significativos os de Lewis
A. Coser em The Intellectuals (Chicago, 1960), e Alvin W. Gouldner, em Patterns
o f Industrial Bureaucracy (Londres, 1955), como contestadores de Talcott Parsons
(The Social System, Londres, 1952) que em seu The System o f M odem Societies
4» '•

(NY, 1971) reafirmaria suas ideias. Note-se, também, a reatualidade de George


Simmel, relacionada com concepções de sociedades - inclusive as até hã pouco
i

mais modernas - de que é evidência o The Social Theory o f George Simmel, de


Nicholas J. Spizkman, NY, 1966. Notável, ainda sobre o assunto, é Thought and
Change (Londres, 1972), do professor Em est Gellner. E mais: Industrialización and
Democracy; Economic Necessities and Political Possibilities (Toronto, 1964), de Karl
de Schweinitz Jr. Também El Hombre en la Civilización Científica y Oíros Ensaios,
de Helmut Schelsky (tr. do alemão), Buenos Aires, 1968.
Os dentistas puros, apenas interessados na extensão e nô aperfeiçoamento
de esquemas conceituais de ciência - e considerando extracientífica a aplica­
ção de teorias científicas a objetivos práticos como os militares, os industriais,

1 - cEm torno das três engenharias - a física, a humana, a social... - 69


os nacionais - representam um extremismo. Os que desdenham da ciência
chamada pura representam outro extremismo.
O caminho certo parece ser o da ciência pura que se prolongue em ciência
aplicada, sem se deixar prejudicar pelo imediatismo ou pelo excesso de planifica­
ção sistemática. O da ciência social que se prolongue em engenharia social, sem
deixar de ser ciência para tornar-se reforma ou serviço social do tipo humanístico
ou filantrópico. O da engenharia física que se desenvolva de ciências puras, ao
mesmo tempo que a engenharia humana, visando a disciplinar cientificamente as
relações entre o homem e o seu espaço de trabalho.
“Toda verdadeira ciência deve conter uma grande proporção de bem funda­
das antecipações e previsões”, escreveu, quando presidente da Academia de Ci­
ências da União Soviética, o cientista russo S. I. Vasilov, dando como exemplo do
que recomendava o atual conhecimento, pelos cientistas, da estrutura do átomo
que permitiria aos mesmos cientistas planejar grande parte do trabalho teórico e
experimental a ser feito, nos próximos anos, nesse setor. Isto numa das primeiras
aberturas de ciências soviéticas ao mundo ocidental: Soiriet Science: Thirty Years
(Moscou, 1948). Há evidentemente um planejamento que, ao contrário do ado­
tado pelas desde a década de 1950 chamadas “democracias totalitárias” - veja-se
The Rise o f Totalitarian Democracy (Londres, 1952), de J. J, Talmon - se concilia
com a liberdade de criação e de pesquisa do cientista e que permite um íntimo
contato entre cientistas puros e engenheiros, seja qual for a engenharia - ou a ci­
ência aplicável - seguida pelo engenheiro: a física, a social ou a chamada humana.
Como planejador, o engenheiro tende a ser, cada vez mais, misto: físico e social.
Ou físico e humano. E, com isto, sua importância tende a crescer.
Qual o prestígio que vinha acompanhando a figura do engenheiro puramen­
te físico numa sociedade tipicamente ocidental como a dos Estados Unidos? Há
um trabalho dos sociólogos C. C. North e Paul K. H att que nos permite verificar
esse prestígio em comparação com o que assinala a posição de outros profissionais.
Numa escala de 30, o lugar do engenheiro civil dos Estados Unidos, a despeito da
crescente valorização do técnico nas sociedades chamadas progressistas - era, até
p •i f. *

poucos anos —o trabalho dos North e H att é de 1949 e foi publicado em Socio-
logical Analysis, de Nova York - o 24Q. Superior ao do biólogo e ao do sociólogo,
porém inferior ao do cientista nuclear, ao do arquiteto, ao do químico.

70 - J-fomens, 'Engenharias e T^umos Súciais - Çilberto 'Ereyre


%
Quanto a remunerações, outro inquérito da mesma época - publicado no vol
III da publicação oficial de 1947, Washington, D.C,, Science and Public Policy - reve­
la que era de insatisfação a atitude dos profissionais científicos, em geral, no mesmo
país. Isto é, segundo eles, “money andprestige” eram uless than they should be”. Situa­
ção que, no essencial, parece apresentar atualmente os mesmos característicos.
Há anos que essa remuneração e esse prestígio vêm fazendo na Rússia soviéti­
ca não dos cientistas, em geral, mas de certos cientistas aplicados, em particular -
inclusive de engenheiros incumbidos de tarefas específicas pelo Estado - figuras
de tal modo apaparicadas que alguns gozam de privilégios inconcebíveis dentro
de uma sociedade rigidamente igualitária. Evidentemente esse igualitarismo não
existe na Rússia soviética quando se trata da utilização pelo Estado de talentos
excepcionais em ciências físicas e naturais cujos desenvolvimentos estejam con­
dicionados aos interesses militares e industriais do mesmo Estado,
Contou ao autor, há poucos anos, na Inglaterra, um eminente físico inglês
que, por algum tempo, residiu na Rússia soviética, a convite do governo daquele
país, que chegavam a ser fantásticos os favores e privilégios oficiais que os homens
de gênio naquela especialidade recebiam do Estado soviético, contanto que se
concentrassem nas pesquisas planejadas do mesmo Estado, Se homens insubs­
tituíveis e de gênio, não era preciso que fossem, em certas especialidades, nem
indivíduos russos ideologicamente soviéticos nem indivíduos de nacionalidade
russa e ortodoxos do marxismo soviético.
O que principalmente se estimulava neles era, em tais casos, o gosto de re­
alizarem, com todas as facilidades, trabalhos de suas especialidades que somente
41 •

eles pudessem realizar, dando-se condições ideais à expressão do que neles, físicos
ou químicos, sendo genial, como que se desprendesse de considerações de ordem
apenas ideológica ou de ordem apenas nacional, para se tomar uma atividade de
cientistas empenhados em obra apenas de cientistas, puros ou aplicados. Daí os
triunfos que vêm sendo obtidos pela Rússia soviética em certas áreas de ciência
aplicada e de engenharia física, com o resultado de virem já certos cientistas e
engenheiros se constituindo na mesma sociedade - é ainda informação daquele
•■

físico britânico —em rivais e prestígio dos burocratas outrora todo-poderosos.


A repercussão do prestígio que se concede na Rússia soviética a certos cien ­
tistas, homens de gênio, e as facilidades que se concedem aos jovens por elesI

i - "Hm torno das três engenharias - a física, a humana, a social... •


escolhidos para seus auxiliares e continuadores, vem concorrendo para uma re-
visão de política de educação em países democráticos: política que vinha sendo
talvez prejudicada por excessivo pendor para o igualitarismo, dentro de uma lógi­
ca democrática levada aos extremos. Sem elhante igualitarismo vinha dificultan-
Çdo o aproveitamento dos indivíduos supradotados como se sua presença numa
* sociedade democrática fosse uma espécie de heresia nefanda com a qual o Estado
e a educação orientada pelo Estado não devessem pactuar.
Contra essa tendência igualitária, são evidentes, atualmente, as reações dos
que visam, nos Estados Unidos e na Alemanha, ao máximo aproveitamento dos
jovens supradotados. Na República Federal Alemã vem se realizando importante
pesquisa orientada por um psicólogo ilustre, o professor W. Arnold, cujos resultados
estão sendo alcançados através do uso de computador eletrônico. Por essa pesquisa
se vê que vêm desaparecendo na Alemanha as diferenças de talento superior entre
os indivíduos de áreas urbanas e de áreas rurais, talvez devido à crescente urbaniza­
ção, mercê da qual vêm se misturando grupos outrora separados de população; mas
nada nos autoriza a concluir que a distribuição do talento superior se faz atualmen­
te por todas as camadas da sociedade alemã. Os fatores genéticos evidentemente
. atuam na concentração desse talento superior em certas camadas onde, através de
várias gerações, tem havido uma sucessão e uma continuação de talento superior
por famílias, que seria um erro o Estado, interessado no máximo aproveitamento
de supradotados, desprezar ou subestimar, por motivos de igualitarismo democráti­
co: um igualitarismo que não está sendo seguido - segundo depoimentos idôneos -
na União Soviética.
Não há escola moderna de ensino superior, seja qual for a sua especialidade -
engenharia ou medicina, direito ou filosofia - que, por excessivo apego ao ideal de
igualitarismo democrático, possa se dar ao luxo de desprezar seus supradotados,
deixando que eles se dissolvam na média. São indivíduos que, no interesse das
sociedades a que pertencem, precisam de ser especialmente amparados e presti­
giados pelas suas escolas e pelos seus governos.
O que se está fazendo no Brasil por tais indivíduos, nos diferentes ramos de
estudos superiores? Parece que pouco. Pouquíssimo. Quase nada. Ao contrário:
pretende-se que as universidades sejam santas casas de misericórdia, que diplo­
mem tanto incapazes como capazes.

^íomens, ^Engenharias e l i m o s Sociais - Ç ilherto TFreyre


r

C: j0 i Iw
T< Oi do. v^. • *

Sucede que os próprios estudos pós-graduados são insignificantes entre nós:


«

considerados uma espécie de sobremesa ou de luxo quase inútil, quando são es­
senciais. Essenciais de modo geral - para as necessidades nacionais e da nossa épo­
ca. Essenciais de modo particular - para as necessidades de aperfeiçoamento que
experimentem os supradotados. Não havendo meios para esse aperfeiçoamento,
a tendência é para o desânimo tornar os supradotados estéreis e frustrados, com
* .

prejuízo para suas nações, em particular, e, no caso de indivíduos de gênio, para a


humanidade, em geral,
' ‘ Às páginas 111-112 de A F orm ação de Pessoal de N ível Superior e o D esen-
** * f

volvimento Econôm ico (Rio, 1960), salientam A m érico Barbosa de Oliveira e


t , 4

José Zacarias Sá Carvalho a incom preensão, no Brasil atual, do que deveria


ser o preparo científico dos engenheiros (físicos) que se tornem mais do que
t
técnicos:

A incompreensão e os preconceitos que se manifestam no cercea­


mento da atividade científica e do preparo de homens de ciência, sob a
alegação da necessidade de dar prioridade ao atendimento da demanda
de profissionais das técnicas aplicadas, são os fatores responsáveis pelo
retardamento das providências vivificadoras das instituições de pesquisa
41

e das cadeiras de ciências básicas das universidades. Para desfazer a falsa


ideia de prioridade à formação de técnicos, assim como a noção obsoleta
da separação estanque entre a pesquisa não interessada e a utilização
econômica de suas eventuais conquistas, será preciso acentuar a valida­
de econômica concreta do aprendizado científico. Em nosso país, somos
levados a pagar, e pagar alto preço, pelos bens e serviços que a pesquisa
“desinteressada” produziu em outros países.

E ainda:

As ligações entre a pesquisa e o processo de formação dos técnicos


de nível superior, no âmbito universitário, são mais úteis ainda quando
se trata de suprir as necessidades de pessoal habilitado nos setores indus­
triais de vanguarda. As tecnologias avançadas - nuclear, eletrônica, quí-
u

mica dos sintéticos, processos de automação e tantas outras ^ são campos


de atividade que se expandem sob o influxo direto e quase imediato do
avanço das pesquisas científicas.

í - ‘Em tomo das três engenharias —a física, a humana, a social... - 73


1

A isto se deve, segundo parece, o pequeno número no Brasil de engenheiros


(físicos) pesquisadores que, fortalecidos no seu saber por estudos pós-graduados
à altura de sua inteligencia superior, estejam se dedicando - entre outros assun­
tos - à analise e à ordenação das relações entre a engenharia física e a social e a
humana, na fase de transição que o Brasil atravessa. Com tais estudos poderiam
eles vir contribuindo, melhor do que ninguém, para a retificação de erros que vêm
sendo praticados no Brasil por arquitetos-escultores, por exemplo, por exageros
de especialismo desvairado.
Considere-se uma das críticas que ousei articular contra as então Suas M a­
jestades Imperiais os arquitetos-escultores de Brasília: a deficiência de espaços
centrais, e de acesso fácil, destinados a esportes, jogos, recreações, lazeres, di­
versificados. Trata-se de um caso típico de relações inadequadas de engenharia
social e de engenharia humana com engenharia física, em torno da utilização de
espaços urbanos. Os escultores de Brasília, moderníssimos nas suas concepções
de arquitetura escultural e dignos, sob esse aspecto, das melhores admirações
brasileiras, revelaram-se arcaicos no seu conhecim ento do que deva ser a exten­
são de espaço, numa moderna comunidade urbana, destinada à recreação e ao
esporte. Deve ser imensa. Os espaços devem ser vários - admitindo-se, democra­
ticamente, recreações diversificadas: pluralismo esportivo em vez de concentra-
*

ção de interesse num esporte único; e também participação de muitos nos jogos
projetados em vez de participação de poucos com multidões inermes reduzidas a
4

simples e passivos espectadores. . ...


Pois com a automação crescente na vida moderna, as três engenharias têm
que admitir como condições básicas de um novo ripo de convivência urbana: maior
tempo de lazer que de trabalho; necessidade de maiores espaços para recreações e
esportes; necessidade psicossocial de recreações e esportes corrigirem, no moderno
homem urbano e rurbano, o tédio decorrente do trabalho industrial e burocrático
mecanizado, fazendo do maior número possível de indivíduos, em vez de simples
espectadores, como atualmente, de grandes torneios de futebol e de touradas, par-
4

ticipantes de jogos ou de esportes compensadores da inércia física que ao mesmo


homem moderno está trazendo a crescente mecanização do trabalho.
Ainda há poucos anos, conhecida revista alemã de Bonn (Deutsche Korres-
pondenzt, ne 36, setembro de 1961), versou o assunto para recordar os seguintes

74 - Jiom ens, Engenharias e cRitmos Sociais - Qühârto Ereyre

I
pontos destacados por um professor da Universidade de Colônia* num curso pio­
Íj
neiro de olimpiologia ou sociologia de esportes: é evidente a industrialização rápi-
da do mundo moderno; quanto maior o uso de máquinas pelo homem moderno*
menos a vida exige dele de esforço físico e de movimento muscular - esforço e
movimento em que se baseia a saúde humana; nestas circunstâncias o esporte se
toma um meio não só de recreação como de promoção de higiene pessoal básica;
da existência mecanizada - não só do trabalho, em particular, como da existência,
em geral, mecanizada - resulta um desgaste de nervos no homem moderno de que
a prática de esportes é corretivo; o esporte serve também de corretivo à desforma
lização do trabalho pela mecanização e pela automação.
Sendo assim compreende-se que o esporte - não o que atualmente é esti
mulado, em certos países, por um torpe comercialismo que representa um d o srí^ v
oBu* dí
piores aspectos da decadente civilização de tipo burguês-capitalista, nem o
k-
é oferecido, noutros países, a multidões inermes por Estados absorventes, intit
lados socialistas, mas, na verdade totalitários: esportes em que as mesmas m ulti fr
V
i

dões são chamadas a ser apenas espectadoras dos jogos oficial e até policialmente

f1 I
organizados para diverti-los, mas o esporte democraticamente plural e diversifi
cado —seja de uma importância enorme para a vida, a higiene, a saúde física, o >
é-

bem-estar mental dos membros de uma comunidade moderna. É problema a ser


resolvido, de acordo com condições especificamente regionais de situação e de
*

cultura de cada comunidade, pelo esforço em conjunto do engenheiro físico, que


saiba equipar os espaços destinados a tais atividades; do engenheiro social, que
oriente a articulação do espaço assim equipado com as demais atividades socio-
culturais da comunidade; e do engenheiro humano, que estabeleça as normas de
relações entre as atividades dos indivíduos a quem se ofereceram tais espaços e
tais atividades recreativas e as condições de visão, de audição, de manipulação
dos mesmos indivíduos, alguns dependentes de suas situações étnicas: indivíduos lí
predominantemente babeos e secos, se japoneses, por exemplo; altos e corpulen
* V# £

tos, se germánicos; altos e ossudos, se sudaneses.


>
r

Se engenharia humana é aquela adaptação do esforço humano e do ambien


te de trabalho - e hoje também de lazer e de esporte - aos atributos físicos, sen-
soriais, perceptivos e mentáis do ser humano, a que se refere, em livro recente, o
professor Ernest ]. McCormick, então os socialistas franceses da primeira metade

i - cEm torno das três engenharias - a física, a humana, a social... - 75


do século X IX - homens do tipo de Fourier —já se aproximavam da engenharia
humana. Pois já se preocupavam, dentro do seu empenho ao mesmo tempo so-
I

cialista e científico, em humanizarem as condições psicofísicas e psicossociais de


trabalho, de modo a reduzir-se o que nessas condições se apresentava, desde a
chamada Revolução Industrial, sob aspectos contrários à saúde, ao bom ânimo e
à alegria do trabalhador. A moderna engenharia humana o que faz é sistematizar
i •

essa humanização científica de condições e de equipamento de trabalho,, procu-


A

rando aperfeiçoar ao máximo as relações, por exemplo, entre os instrumentos


. I *1 t * ^ .1 * *-»1 f ' I . .. * f * *2 " T * m A - I 1 ** 1 A I •â i 0 A \ a ' mi' m*

de trabalho e o contorno das mãos, do homem, de modo que, ajustadas cienti-


J íT * i f d i jv \ * V ¿ 1 i 1 * # * . * * i /i • •* . 1

ficamente essas relações, o trabalho a. executar-se possa ser mais rápido e mais
preciso e ao mesmo tempo mais agradável para o trabalhador. Também inclui essa
ê ê ' -

sistematização a adequada distribuição de luz nos ambientes ou nos espaços de


trabalho e as justas proporções de altura de mesas e de cadeiras, evitando-se de­
formações chamadas profissionais de corpo que vêm se prolongando em fábricas,
oficinas, escritórios, devido ao fato das preocupações de caráter científico-técnico
. :• . <
com o aperfeiçoamento das máquinas no sentido de sua maior precisão, de sua
maior velocidade e de sua maior eficiência virem sendo preocupações de tal modo
ift*

absorventes que os cuidados com as relações entre esses aperfeiçoamentos de


' •,• '

máquinas de trabalho e os atributos físicos, sensoriais, perceptivos e mentais dos


trabalhadores virem sendo desprezados.
jjé

O que principalmente faltou às pesquisas daqueles antigos socialistas, já cien-


pesquisas
Lgenheiros humano,
«

de pesquisas quase de laboratório que completem as outras: as realizadas, em par­


te sob controles, nos próprios locais de trabalho. Mesmo assim, os modernos enge­
nheiros humanos vêm chegando à conclusão de que as pesquisas do segundo tipo
# *f

- isto é, realizadas nos próprios locais de trabalho - apresentam-se com resultados


As
tom am
de utilidade prática na solução de problemas, tal como esses problemas se apre-

sentam nas condições vivas e cotidianas de trabalho industrial Por exemplo, as


relações entre trabalho industrial e cores constituem um problema que vem tendo
suas melhores soluções através de nesauisas realizadas nos diferentes locais de

76 ^Homens, Engenharias e E p mos Sociais Çilberto Trreyre


- -
I

trabalho - trabalho vivo, natural e cotidiano - em que as reações dos diferentes


elementos humanos - regionalmente diferentes por ser diverso o seu condiciona­
mento ecológico-sociai e sociocultural - as cores, se revelam mais espontânea e
naturalmente* Talvez o mesmo se possa dizer das relações entre trabalho indus­
trial e música, assunto que tanto preocupou os socialistas científicos franceses da
primeira metade do século XIX. E entre trabalho e temperatura: assunto que se
apresenta de especial importância para os brasileiros habitantes de espaços em
grande parte tropicais. Por conseguinte quentes e úmidos. É problema que vem
sendo considerado com a maior atenção pelos modernos engenheiros humanos

em estudos como o de W* Machie sobre “Control of H eat in Industry”, publicado


i

no vol. 2 de Occupational M edicine, em 1946, e o de Gagge, Winslow e Harrígton


sobre “T h e Infiuence of Clothing on the Physiological Reactions of the Human
Body to Varying Envíronmental Temperatures”, publicado no v o l 124, 1938, do
American Journal ofPkysiology, Quanto ao outro problema - o das relações entre
sons harmônicos e não harmônicos e trabalho humano - vem também suscitando
estudos, bastando que se faça aqui referência aos já publicados pelo Journal o fth e
i‘

Acoustical Society o f America. I•

São problemas, esses, em face dos quais se impõe aos três tipos de enge­
nheiros - o físico, o social, o humano - buscarem soluções em que o universal se
concilie com o regional Em que se atendam variações regionais nas condições
de vida, de convivência e de trabalho dos homens. Em que se articule a pesquisa
científica com a ciência aplicada.
Do ponto de vista antropológico, as três engenharias —a física, a social e a
humana - podem ser consideradas complementares para a orientação, quanto

possível científica, de projetos de industrialização ou de modernização, no Brasil,


do esforço humano: inclusive os que se relacionem com tipos de casa ou de resi­
dência adaptados aos vários Brasis, Projetos que, como projetos, se alonguem do
presente em possíveis ou prováveis futuros.
É o que elas verdadeiramente são: complementares. De modo que em
face de um problema mais complexo de engenharia física, o engenheiro físi-
••

co precisa de considerar as implicações humanas da solução técnica que ofe­


rece* E, além das projeções sociais imediatas dessa solução, suas projeções so­
bre o futuro. Sociólogos e antropólogos, fisiólogos e psicólogos inspiraram-se

i - lím tomo cias três engenharias —a física} a humana, a social... - 77


r**r ’

em métodos já clássicos da engenharia física para desenvolverem uma metodolo­


gia de engenharia social e de engenharia humana em que o trato com os proble­
mas de inter-relações sociais e de relações do individuo com o seu ambiente, e seu
espaço e o seu equipamento de trabalho é antes o trato objetivamente científico
que o subjetivamente humanitário. Tal é, porém, a confusão social dentro da qual
#

o homem moderno se desenvolve tecnologicamente, que o engenheiro físico pre­


cisa de assimilar das ciencias sociais métodos já especificamente dessas ciências,
para lidar com problemas que não são puramente de engenharia física: são tam­
bém de engenharia social e de engenharia humana.
Nem sempre os três critérios - o da engenharia física, o da engenharia social e o
da engenharia humana - se conciliam, de inicio, no trato de problemas assim com­
plexos. Precisam então de ser ajustados em benefício do homem social, a serviço do
qual operem as três engenharias, nenhuma delas estranha a essa consideração.
Exemplo: a engenharia física pode já construir aviões supersônicos capazes

i [í! de reduzir os atuais aviões a jato a arcaísmos aeronáuticos. Sua velocidade será
três vezes a do som, informam os engenheiros físicos especializados em engenharia
aeronáutica; e na construção de tais aparelhos a aviação militar se vai antecipan­
do, por motivos militares, à civil.
Mas vem o engenheiro social e pondera: não precisamos hoje de reduzir o
custo dos voos aéreos, ainda excessivamente alto para o homem médio, em vez de
aumentarmos, pela engenharia física, a velocidade desses voos, o que importará
em elevação de custo dos mesmos voos, dada a necessidade dos atuais aeroportos
terem de ser imediatamente substituídos por aeroportos de um novo tipo e de
yí •i!*' <\ru->í>
:! I novas extensões de espaço? Ponderação merecedora de atenção.
,r . • • •
I ’

0 4
Por sua vez, o engenheiro humano objeta: o avião supersônico é um ver- #

. i
•* 0

i ■ dadeiro tufão artificial; e como tufão artificial demasiadamente ruidoso para os

0
homens de audição normal. Será possível diminuir esse ruído. Mas outra vez se
, I'
l

• •
apresenta o problema econômico: será um processo dispendioso, o dessa redução
de som incômodo e até prejudicial aos homens.
Daí o cuidado com que o problema está sendo considerado pelos que não se
deixam encantar pelas primeiras seduções de um progresso - ou superprogresso,
como já está sendo chamado pelos alemães - puramente físico. É que não há
superprogresso físico que possa ser isolado de suas implicações sociais e humanas.

78 - ^Homens, ‘"Engenharias e Tfyimos Sociais - Qilberto ^Freyre


• •
Do assunto - a inconveniência, do ponto de vista social e humano, de im e­
diata adoção do avião supersônico, em substituição ao avião a jato - vêm se ocu­
pando vários sociólogos, Recentem ente, versou-o um expert europeu em assunto
de economia e sociologia aeronáuticas, V Treibel, que destacou ser indesejável,
do ponto de vista social e humano, resolver-se o problema, que é complexo, aten­
dendo-se apenas ao “advertising valué ofimpressive types o f aircraft and the nacional
prestige linked with itn e ao udesire to m ake use o f the progress achieved in military
aviation, though the latter is based on anything but business - like calculation o f income
and expenditure”. Leia-se a propósito “Problems of Super-Progress”, no Deutsche
Korrespondenzt, Bonn, nQ 2, janeiro de 1961: notável antecipação no trato de um
problema quando esse problema ainda madrugava.
O que hoje se chama de superprogresso é um mito moderno pelo qual o
homem atual precisa de não se deixar seduzir inteiramente, como se a solução
tecnológica fosse por si só uma solução messiânica para os problemas de desen­
volvimento humano considerados na sua complexidade. O fato de poderem ser
aperfeiçoadas imediatamente tais ou quais máquinas não parece, a alguns de
nós, justificar sempre esse imediato e dispendioso aperfeiçoamento à revelia de
adaptações de caráter social e humano e um superprogresso tecnológico dema­
siadamente rápido.
Já são hoje denominados “engenheiros do comportamento” aqueles pesqui­
sadores que, dentro da engenharia humana, se especializam na observação e no
estudo sistemático e como que de campo das interações entre homens e máquinas:
I
“m am m achine interactionsf>, segundo Murray Sidman no seu livro Tactics ofScientific
Research (NY, 1960), em que dedica, com igual argúcia de antecipação, todo um
capítulo a ílvariability as Scientific and as an Engineering Problem7>. Toda uma enge­
nharia pré-médica vem se derivando de tal estudo: a que se refere ao diagnóstico e
à terapia psicossociais das mesmas interações, através de ajustamentos de caráter
psicotecnológico. Veja-se a esse respeito o livro de autor brasileiro, já com edição
em italiano, Sociologia da Medicina: o primeiro sobre a matéria em língua neolatina
(Lisboa, 1967; Milão, 1975), 4 ir

Prolongando a ciência chamada pura na denominada aplicada, os “enge­


nheiros do comportamento” vão, com efeito, até ao diagnóstico e à terapia de I

situações criadas por aquelas interações, considerando com particular cuidado

/ - ‘Em tomo das três engenharias —a física, a humana, a social...


“variáveis situacionais”, menos através de métodos rigorosamente experimen-

tais, que através de métodos correlativos. Estes se aplicam ao estudo de situações


como que naturais - naturais em bruto - que não são susceptíveis de ser examina­
das experimentalmente, em puras condições de laboratório, mas que apresentam
material possível de ser correlacionado pelo pesquisador científico. Segundo L. J.
Cronbach - citado por Sidman - foi principalmente através de correlações assim
estabelecidas que Newton, Lyell e Darwin chegaram às teorias a que chegaram,
abrindo assim caminho para novos desenvolvimentos de correlações, em teorias,
no campo da engenharia do comportamento.
4

Lida-se nesse campo antes com a generalidade de matéria - e com a sua


variabilidade ao natural - do que com a generalidade de princípios e com a va­
riabilidade sob controle de laboratório. Ao cientista de laboratório repugnam a
generalidade de matéria e a variabilidade descontrolada. Mas não ao “engenheiro
do comportamento” que não se possa dar ao luxo de um tempo como que inde-
?

finido para seus estudos das interações homens-máquinas. Nem de um tempo


assim longo nem de um refinamento de métodos que conduza seus estudos ao
máximo de abstração.
O que não significa que, no tocante à engenharia humana, princípios ge­
rais descobertos através de experimentos de laboratório não venham operando

h a m L J i
sobre o mundo além das portas dos laboratórios: muitos desses princípios vêm
i i 4» •

assim operando e permitindo ao chamado “engenheiro do com portam ento” que


se conserve em contato com as pesquisas básicas de laboratório, vencer obstá­
culos apresentados pela matéria sob observação no seu estado bruto: com toda
sua variabilidade aparentemente invencível. Daí a necessidade das duas téc­
nicas de estudo se completarem na consideração de problemas de engenharia
humana. Daí, também, a necessidade dos três engenheiros - o físico, o social e
o humano - precisarem sempre de considerar as variações regionais dentro das
constantes universais.
__ *

Quando se sugere que se sistematizem numa ciência que se denomine tropi-


cologia - para a qual vem se tomando notável a contribuição brasileira, através
de um seminário interdisciplinar, há anos em contínua atividade, sendo sua sede
atual a Fundação Joaquim Nabuco - os estudos atuais, dispersos e até desajusta­
dos, sobre assuntos tropicais pois deve-se precisar que, com seus estudos sobre

8o - hom ens, Engenharias e Elimos Sociais - Çiiberto E rey ve


tais assuntos, de ponto de vista brasileiro, os brasileños não vêm concorrendo
para divulgar uma ciencia existente mas para a organização de uma ciência até
há pouco ainda inexistente - é pensando em problemas de engenharia social, de
engenharia humana e de engenharia física que só poderão ser convenientemente
I |L '

resolvidos, para uma sociedade ou população situada no trópico, dentro da eco-


logia tropical que, sem ser determinista, os condiciona. Por exemplo: a ecologia
tropical deve ser considerada pelos que pensam em desenvolver a alfabetização de
populações tropicais, considerada por alguns educadores e sociólogos essencial à
valorização econômica e à valorização social das mesmas populações* É uma alfa­
betização que, em áreas subdesenvolvidas, há vantagem em que se realize à noite.
Por quê? Porque tem se verificado que o brilho do sol tropical, o calor, a trans­
piração abundante, os insetos numerosos, tomam extremamente difícil a leitura
atenta e o estudo proveitoso, através da leitura e da escrita, em países quentes,
durante o dia. O aproveitamento, neste particular, do estudo, tem se verificado,
em pesquisas de engenharia humana realizadas em países quentes, que é maior
durante a noite - com luz artificial - do que durante o dia. Ajustamento ao no­
turno, contra o diurno, da ecologia tropical, que já se vem verificando quanto aos
jogos de futebol e vários outros. f
Sendo assim, em projetos de industrialização nos trópicos, deve-se conside­
rar este seu nada insignificante aspecto, identificado por pesquisadores especiali­
zados na chamada “engenharia humana”: a conveniência de se adaptarem certas
atividades humanas nos trópicos ao noturno tropical. É um aspecto que vinha
já sendo inteligentemente considerado pelos ingleses, em alguns dos seus planos
de valorização de áreas e populações tropicais, anteriores ao atual movimento de
independência política dessas populações.
Também os governos do Egito e de Uganda vêm se empenhando última­
mente em obras que prometem desenvolver-se na maior estação hidrelétrica
da África - sem ultrapassar, em grandeza, Itaipu - e que, devendo beneficiar
o trabalho mecânico em fábrica de tecidos de algodão, de açúcar e de fosfa-
I

tos, e facilitar a refrigeração elétrica de residências, usinas, escolas beneficiará


•■

também, nas populações regionais, o que há de ecologicamente condicionado


no processo do aprendizado de leitura e de escrita - de alfabetização enfim -
por parte dessas populações, permitindo que esse aprendizado se realize - onde
•• • *

i - riím tomo das três engenharias —ci física, a humana, a social,.. - 81

-
não for possível a adequada refrigeração de escolas - de madrugada ou à noite,
com luz artificial: luz elétrica fácil, barata e abundante, Que eu saiba, é um pro­
blema, esse, de engenharia humana e de ecologia tropical, em que o desenvol­
vimento da alfabetização aparece condicionado pela abundância de lu 2 elétrica,
talvez ainda ignorado no Brasil.
f Faltam-nos de todo especialistas em engenharia humana capazes de au-
xiliar os engenheiros físicos, os engenheiros sociais, os administradores, os
industriais, em problemas dessa natureza que do presente se projetem sobre o
futuro. A própria Fundação Ford, foi em que fracassou, no pretender instalar-
se no extrem o tropical do Brasil com plantações sistemáticas de borracha: em
engenharia humana. Faltou-lhe orientação desse caráter em seus projetos de
valorização de populações operárias formadas, em grande parte, por caboclos
da tropicalíssima Amazônia, aos quais técnicos anglo-am ericanos, desconhe-
•• |

cedores dos trópicos, pretenderam impor, da noite para o dia, hábitos de tra­
balho, de alim entação, de habitação, de convivência, iguais aos em vigor em
M ichigan ou em Ohio.
Aqui tocamos, mais uma vez, em assunto sobre o qual vimos insistindo há
anos: na necessidade de seguir-se orientação ecológica nos estudos relativos à
condição humana que é, sempre, quer com relação específica à sua casa de resi­
dência, quer com relação a outros particulares existenciais, a de um homem situa­
do em ambiente específico. As três engenharias, relacionando-se todas, cada uma
a seu modo, com a condição humana, não podem escapar ao critério ecológico
que importe na sua adaptação - de todas e de cada uma - a este ou àquele am-
biente ou meio. Trata-se de considerar um homem situado, existente, coexistente
e não um homem abstrato que seja concebido, como objeto de considerações de
qualquer das engenharias, sob um aspecto único ou uniforme em vez de diferen-
ciado no que nele é expressão existencial. Expressão que em vários casos difere da
essencial que possa ser considerada pan-humana.
Num dos nossos contatos com Londres fomos, minha mulher e eu, mag­
níficamente homenageados com um jantar quase banquete por um casal de in­
dustriais grandes conhecedores dos óleos brasileiros de palmeiras: fabricantes
de sabões finos e famosos. Ocorreu-me então que o Brasil devia apresentar-se
mais ao mundo como produtor de perfumes, de essências, de óleos tropicais -

82 - ^Homens, ‘Engenharias e ‘Rtimns Sociais - Çilherto ^Freyre


através de uma particularíssima engenharia humana - que concorrem para o a s - ;
• t
seio e a beleza pessoal de gentes europeias. São produtos como que carismáticos:/
atraem simpatias dos consumidores para o país remoto que os produz. Abrem!
oportunidades a outras importações. Pois há uma geografia comercial de modo \
algum isenta da influência de uns como fluidos carismáticos entre produtores e/
... • . . . . . V - - . ,. ; . ’ . , - r »

consumidores. Há produtos tropicais que transmitem aos que os consomem em


climas frios encantos de calores dos trópicos. Não só óleos para sabonetes, loçõesJ
perfumes. Também produtos alimentares; frutas susceptíveis de ser enlatadas. Suj
cos. Essências. Batidas. Refrigerantes.
Considerem-se os esforços brasileiros em obras de engenharia quer física,
quer humana, quer social, que chegando a esses requintes de produção, de êxito
no estrangeiro, vêm, em larga escala, permitindo a interiorização do Brasil. Eles
marcam triunfos notáveis sobre obstáculos tropicais a uma desejável conciliação
de técnicas modernas com condições telúricamente ecológicas. Conciliação que
não nos deve faltar sob pena de alastrar-se a tragédia paulista,* o alarmante ex­
cesso de poluição.
Há condicionamentos ecológicos - de ecologia física e de ecologia social -
que são inevitáveis no trato, pelo cientista social, de ocorrências ou recorrên­
cias sociais consideradas em suas circunstâncias regionais. O pesquisador social
precisa de inteirar-se deles. Desprezados, as pesquisas sociais correm o risco de
se bizantinizarem em puras abstrações. Em vez de concretamente regionais ou
situacionais, são abstratos. Daí a necessidade do Nordeste ser estudado sociologi­
camente, considerando-se a sua nordestinidade,
A construção de estradas de rodagem, de estradas de ferro, de portos, de a e ­
roportos, de linhas de canalização, de linhas de telégrafo - de todas essas obras de
engenharia física - lembremo-nos de que é mais difícil e mais dispendiosa nas re­
giões tropicais do que nas temperadas. Não só a construção: a manutenção. Uma
estrada de rodagem do mesmo tipo calcula-se que seja de construção três vezes
e meia mais dispendiosa em região tropical do que em região temperada; e que a
duração do esforço exigido para essa construção seja quatro vezes em região tropi-
iJ

cal o que é em região temperada. O custo de manutenção acompanharia o mesmo


ritmo. O rendimento em termos econômicos, tratando-se de região tropical, seria
menos de um terço do que é numa região temperada. O cálculo é de economistas.

i - Hm tomo das três engenharias - a física, a humanaf a social... - 8j


Entretanto, são obras, essas, de comunicação, tão essenciais aos países tro­
picais em desenvolvimento como aos países temperados já desenvolvidos econô­
mica e tecnicamente. Obras essenciais e não de luxo, por mais antieconômicas
que pareçam aos economistas mais fechados no seu economicismo, indiferentes a
necessidades sociais,
O que se diz das estradas de rodagem, aplica-se a outras obras de engenharia
física associadas à engenharia social e à engenharia hoje chamada humana: são
obras que nos trópicos precisam de seguir técnicas diferentes das já empregadas
em áreas temperadas. Diferentes também pelo muito que nos trópicos sua cons­
trução e sua conservação custam em dinheiro e pelo que de particular, de difícil
e de novo exigem de administradores e de técnicos, de formação apenas europeia
ou exclusivamente anglo-americana,
No campo dos estudos sociais, as situações socioeconómicas peculiares a re­
giões tropicais, como grande parte das regiões que constituem o Brasil, exigem
abordagens diferentes das empregadas por cientistas sociais europeus e anglo-
americanos para o estudo, a análise, a interpretação de situações próprias dos seus
países de origem. Se há transplantes que fracassam por força de rejeições são os
transplantes de métodos, de conceitos, de soluções de caráter socioeconómico.
Compreende-se que as novas nações africanas venham rejeitando transplantes,
para a solução de seus problemas nacionais e regionais, de “parlamentarismos”
ingleses e franceses, de “socialismos” russos e chineses, de “democratismo” anglo-
americano. Os líderes mais lúcidos dessas novas nações não europeias e tropicais
estjio atualmente procurando desenvolver seus próprios modelos de governo, suas
p ru rias técnicas de agricultura, seus próprios estilos de habitações que sejam de
tipo civilizado sem deixarem de ser ecológicas. Ou adaptadas às suas condições
tropicais. Adaptações - com relação a residências que, no Brasil, em geral, no
Nordeste, em particular, datam de velhos dias coloniais, sob a forma de casa com
protetores alpendres em volta, tão característicos da paisagem dos Nordestes: do
canavieiro como do pastoril. Do atlântico como do sertanejo.
Daí a necessidade de várias das técnicas e de todos os técnicos, sejam
adventícios ou nativos, necessários à modernização de Brasis arcaicos, como
grande parte do Nordeste, como que nascerem de novo em face de condições
OTratiU*'¿Nde ecologia tropical — ou de ecologias tropicais: no plural - que tornam, nos
I

rjj • *-.* ^ ,.

S4 - Jíom ens, Engenharias e Eiitnos Sociais - Çilberto Ereyre


trópicos, a construção de certas pontes, de certos portos, de certas estradas, de
várias outras obras de engenharia física, inseparáveis de suas projeções sobre a
engenharia social e sobre a engenharia chamada humana.
Pois o que acontece no setor físico, sucede, de modo ainda mais pungente,
no humano, no social, no cultural O que, sendo exato, só faz pôr em destaque a
necessidade de nós, brasileiros, cuja ecologia social, cuja formação étnico-social,
cuja cultura, cuja história, cuja noção de valores e de tempo diferem das dos eu­
ropeus e das dos anglo-americanos, intensificarmos e abrasileirarmos as pesquisas
e os estudos que identifiquem os nossos modos de ser, nossas tendências, nossas
deficiências, nossas possibilidades.
%

E como o Brasil é constituído por uma constelação de regiões cujos ca-


racterísticos e cujas situações variam de uma para outra, o abrasileiramento de
soluções exóticas - sejam arquitetônicas ou sociológicas, econômicas ou educa­
cionais, políticas ou administrativas - deve, em alguns casos, ser condicionado
por situações ou circunstâncias especificamente regionais não só de solo e de
paisagem como de vivência e de convivência resultantes de formação históricas,
ou étnico-culturais, também elas regionais, No caso do Nordeste, nordestinas. 4 I

Exigindo, portanto, de métodos, de conceitos de técnicas importados que sejam


nordestinizados. Ou abrasileirados.
São inevitáveis, em qualquer sociedade - e o Brasil, como sociedade euro-
tropical não escapa a essa condição - os conflitos, dentro de suas populações ou
de suas economias, entre as chamadas situações adquiridas - situations acquisesf
dizem os franceses - e as situações desejadas. Em arguto estudo sociológico, Les
Groupes de Pressions en Prance (Paris, 1958), M. Jean Meynaud estuda tal conflito
na França de hoje, mostrando que os grupos em conflito - inclusive os regionais -
buscam, cada um a seu modo, influir sobre a política, quer econômica, quer social,
do governo francês; e com implicações sobre aspectos jurídico-sociais ou médico -
sociais em que essa política possa definir-se.
Não será difícil encontrar, no Brasil, equivalentes para alguns dos grupos
socioeconóm icos — inclusive os regionais - na França atual, que é, também,
com recursos, tecnológicos vastam ente superiores aos do Brasil, uma socieda­
de ainda neoindustrial a desembaraçar-se de sobrevivencias paleoindustriais
ou arcaicam ente agrárias. Pequenas indústrias ainda resistem ao emprego de

i - Um tomo das três engenharias - a física, a humana, a social... -


tecnologias avançadas que impliquem absorção dessas indústrias por novas
indústrias como que imperiais; e, socialm ente, têm razões para fazê-lo, embora
tais resistências retardem o desenvolvimento francês em termos idealm ente
tecnológicos e econôm icos.
Interessante é o choque que se verifica na França, ainda agroindustrial, e sob
certos aspectos, saudavelmente agroindustrial, entre os produtores tradicional­
mente agroindustriais de manteiga e os industriais de óleo-margarina. Como in te­
ressante é o fato de vir sendo a urbanização, na França, grandemente prejudicada
por uma política - socialmente simpática - de proteção, talvez excessiva, através
de leis merecedoras de cuidadosa interpretação jurídico-sociológica que. parece
não ter sido ainda efetuada, aos inquilinos, contra os proprietários de edifícios de
apartamentos- O resultado é apresentar-se hoje a França com uma das arquitetu­
ras modernas desse gênero - o edifício de apartamentos - menos desenvolvidas,
em toda a Europa, quer no seu aspecto estético, quer nos práticos: inclusive o
higiênico, o sanitário, o de interesse médico-social ou médico-sociológico.
Numa sociedade neoindustriai de tipo democrático, é natural que se deem
conflitos entre grupos que divirjam quanto à conciliação dos seus interesses parti­
culares com os gerais, uns dando social e juridicamente ênfase à segurança social
ou ao bem-estar social, outros, ao desenvolvimento econômico ou aos aperfeiçoa­
mentos tecnológicos de indústrias. Tanto um rumo como o outro com implicações
as mais importantes tanto de caráter médico-social como de caráter jurídico-so­
cial, que precisam de ser consideradas por sociólogos da medicina e por sociólogos
do direito capazes de retificar orientações unilaterais, tanto de médicos sociais e
até socialistas como de juristas sociais e até socialistas.
Nenhum líder que se prepare para enfrentar novas situações na sociedade
neoindustriai em desordenado, e ao mesmo tempo, rápido desenvolvimento, que
é o Brasil, com diferentes grupos regionais de sua população vivendo tempos so­
ciais diversos, pode ser indiferente ao problema das relações dessa sociedade com
o tempo, à medida que as indústrias e outras atividades comecem a se automa­
tizar- Problema que sendo já uma das preocupações, noutras sociedades já mais
desenvolvidas, começa a ser uma das inquietações brasileiras em face de proble­
mas de situações regionais econômica e socialmente diversos. Inclusive diferenças
entre tempo-trabalho e tempo-lazer.

86 - J-fomens, ‘Engenharias e ‘Riimns Sociais - Çilherto cFreyre


Sociólogos como o professor Leonard Broom já advertem que, em sociedades
superindustriáis “already the waking hours spent away from work are, for many peo*
pie, more than those spent aí work, even on working days”. Trata-se de uma situação
de tal modo revolucionária, essa da intrusão do tempo-lazer no tempo-trabalho,
em relação com o que vinha dominando nas relações do homem com o tempo,
r

que toma arcaicas várias das principais reivindicações trabalhistas ou socialistas.


E faz do problema da organização do lazer assunto de maior importância, para
homens de governo, industriais, educadores, urbanistas, que o próprio problema
de organização do trabalho. Problema que constitui desafio às três engenharias: à
Física, à Humana, à Social.
Uma nova distribuição de trabalho se impõe àquelas indústrias que vão sen­
do mais rápida e eficientemente automatizadas, tal o tempo desocupado que a
automatização deixa a numerosos operários, em contraste com a exigência de
qualidades superiores, por parte da nova tecnologia, sobre pequenos mas essen­
ciais grupos de técnicos e operários especializados a serviço das indústrias auto­
matizadas. São técnicos e operários especializados, esses, que tendem a tornar-se
associados dos proprietários de indústrias através da importância de suas funções
e de suas responsabilidades nas novas organizações.
Por outro lado, industriais e governo se veem obrigados a cuidar, com
a máxima seriedade, e de um ponto de vista psicossocial que inclui de modo
efetivo o médico-sociológico através do jurídico-sociológico, do problema
aparentemente frívolo da recreação para aqueles técnicos e operários de tem ­
po desocupado grandemente superior ao tempo ocupado. Não se trata de di­
rigir tal recreação nem de ordenar rigidamente o lazer desses grupos mas de
conceder-lhes facilidades lúdicas as mais variadas, para que uns possam entre­
gar-se a recreações artísticas, outros a passatempos esportivos, ainda outros, a
devoções religiosas, a prazeres intelectuais, a experimentos científicos, a dan­
ças (inclusive carnavalescas), conforme as inclinações de cada um. Daí os es­
paços que devem ser destinados a fins recreativos ou lúdicos nos novos proje­
tos de instalações industriais que atendam aos aspectos humanos dessas insta-
• ••

lações com aquela compreensão, sensibilidade e solicitude que por vezes vêm
faltando aos modernos arquitetos brasileiros, vítimas de uma deficiência ou de
uma perversão que talvez deva ser denominada “brasilismo”. O que aqui se diz

i - <Em tomo das três engenharias - a física, a humana, a social... - 8y


sem se desconhecer o talento, talvez o gênio que, em Brasília, como mestres de
»•

uma superior arquitetura estética, revelaram Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. O


que lhes faltou foi uma orientação socioecológica que os fizesse integrar suas
construções, ao mesmo tempo que num ritmo moderno de convivência, num es-
paço tropicalmente brasileiro e num ambiente também brasileiro: Condicionado
por hábitos, modos de ser, gostos brasileiros como resultados de uma formação
histórico-'social e psicocultural, diferente da europeia ou da anglo-americana.
0 Nordeste do Brasil - e o mesmo é certo de Goiás e Mato Grosso —está
atualmente numa fase de desenvolvimento em que necessita pungentemente de
conciliar os dois aparentes contrários: o de atualizar-se, o de modernizar-se, o de
desenvolver-se e o de conservar-se sensível ao que para uma região de ecologia
tão caracteristicamente tropical e de formação histórica, para população eurotro-
pical, tão longe, constitui uma herança valiosa. Valtosíssima, até.
Seria lastimável que o afã de modernização fizesse o Nordeste, Goiás e Mato
Grosso desprenderem-se dessas suas situações básicas ou desses condicionamen­
tos essenciais, além de existenciais: o da sua ecologia ou das suas ecologias tropi­
cais e o da sua formação histórico-social. São condicionamentos que dão à gente
brasileira do Nordeste responsabilidade transnacional, sabido como é que o nor­
destino vem sendo, no Brasil, um transnacional. Um autocolonizador, como foi
e é ainda, na Amazônia. Um abrasileirante entre neobrasileiros como vem sendo
em áreas do Centro-Sul.
Dado o crescente tempo-lazer entre operários e técnicos, numa socieda­
de neoindustrial do tipo da brasileira - nuns grupos regionais mais crescente
que noutros - é oportuno que industriais como os da área mais concentrada
de produção de açúcar, em regiões como o Nordeste, em geral, e Pernambuco,
em particular, comecem a cuidar da criação, em pontos ecológica e socialmente
estratégicos - problema para ser considerado pelas três engenharias - de centros
i

de comércio que importem na radical substituição dos barracões por mercados


de um tipo novo, atraente, modelarmente higiênico e até higienicamente festivo,
sobre base cooperativista e que sirvam a várias empresas, das empenhadas na
produção do açúcar e na cultura da cana. Tais centros de comércio poderiam
ser também centros de recreação, orientados médica e sociologicamente, e de
competições esportivas; centros de cultura artística e literária; e centros - ainda
1 í.1

85 - ‘H omens>"Engenharias e Ifyimos Sociais - Çilherto Treyre


orientados sociologicamente - de devoção religiosa. Para que se tornasse possível
o imediato acesso a esses centros, de operários residentes em lugares distantes,
poderia ser estimulado, entre nos, por governos e industriais, o uso de bicicletas,
com as novas estradas da região reservando espaços para ciclistas, como se faz há
anos na Europa.
’ .-¿i ♦’

Isto sem deixarmos de acreditar estar muito próximo de nós, com o aumento
de salários, nas regiões brasileiras mais desenvolvidas, como o Centro-Sul e o Rio
Grande do Sul, o dia em que operarios, em crescente número, se tomarão donos
de pequenos automóveis, podendo por este meio facilmente ter acesso aos centros
rurbanamente comerciais que se tornem, também, para populações consideráveis,
centros rurbanamente recreativos, lúdicos e culturais, com repercussões profun­
das, de caráter higiênico mental ou psicossocial. Não se trata de utopia mas de
uma transformação de todo possível, na paisagem social da região, através de
realização que, não devendo ser considerada fácil, não deve ser considerada im­
possível É possível e deve, quanto antes, merecer a atenção não só de governos
como daqueles industriais brasileiros, em geral, nordestinos, em particular, mais
capazes de uma liderança que junte o arrojo à prudência, a imaginação criadora
ao realismo terra a terra.
4 . '»

As referências a soluções rurbanas para muitos dos problemas brasileiros de


desenvolvimento considerados como problemas inter-regionais no seu modo de
ser dinamicamente nacionais poderiam ser ampliadas em toda uma perspectiva
desse desenvolvimento que seja uma perspectiva rurbana. É claro que um rurba-
nismo aplicado de modo diverso a situações regionais diferentes.
• »,

A vocação para transregional pode tomar o nordestino o condutor ideal, no


Brasil, para uma orientação, ou reorientação, do desenvolvimento brasileiro que
evite o excesso urbanístico, ou pan-urbanístico, sem que tal rumo significasse uma
valorização absurda de uma vivência arcaicamente, ou antimodemamente, rural,
isto é, de todo rural Vivência que seria impossível, dada a atual tendência, no
Brasil como noutros países, de ruralistas para se tomarem urbanistas.
Essa orientação ou reorientação, que o nordestino poderia não só seguir
nos seus próprios Nordestes, em fase, em algumas áreas de rápido desenvolvi­
mento, como transmiti-las a populações daquelas outras regiões do país onde
*

chegue como brasileiro transregional, seria a que pudesse ser caracterizada com

i - cE t?í torno das três engenharias —a física, a humana, a social... - 89


o neologismo sociológico tanto anglo-americano como indiano “rurbanização”.
Ou “rurbanismo”. Ou “rurbanidade”.
Que significa rurbanização? Um processo de desenvolvimento socioeco­
nómico que combine, como formas e conteúdos de urna so vivencia regional -
a do Nordeste, por exemplo - ou nacional - a do Brasil como um todo - valores e
estilos de vida rurais e valores e estilos de vida urbanos. Daí o neologismo; rurbanos.
Trata-se de uma rejeição à mistura absoluta de urbanização, por um lado, e,
por outro lado, ao sonho lírico de alguns de se conservarem populações inteiras
dentro de formas arcaicamente rurais de vida. Numerosas populações poderiam
viver com vida mista: juntando a urbanismos, ruralismos como que desidratados
sem deixarem de corresponder ao apego que parece haver na maioria dos seres
humanos a contatos com a natureza. Com a terra. Com águas de rios. Com árvo­
res, plantas e até matas.
Artigo, há pouco tempo, num hebdomadário de Bonn, sobre o problema da
fc

estrutura agrária da República Federal Alemã — uma república em que se vêm


realizando experimentos sociais de considerável importância para os sociólogos
interessados em engenharia social - , confirma o que eu próprio vinha observando
em visitas àquele país desde 1956, isto é, de ser no sentido rurbano que está se
processando o reajustamento de relações urbano-rurais indispensáveis à raciona­
lização da agricultura. Com essa racionalização a tendência da Europa ocidental
é toda ela - tendência que já pode ser observada tanto na Alemanha Ocidental
como nos Estados Unidos - precisar apenas de 10% da sua população empenhada
em atividades de produção agrária, sendo, neste particular, notável o retarda­
mento da União Soviética, que ainda tem 40% da sua população empenhada nas
mesmas atividades.
fij' *
Na Alemanha Ocidental cogita-se de um movimento maior que o já verifi­
cado de transferência de atividades econômicas que importará numa modificação
••

de caráter amplamente social. E, nesse movimento, os líderes da Alemanha O ci­


dental não deixaram de modo algum empolgar-se pelo exclusivo aspecto tecn o­
lógico-econômico da operação. Vêm eles procurando conciliar o aperfeiçoamen­
to da tecnologia agrária com dimensões consideradas ideais para a participação
familial na nova estrutura técnico-econômica. Para tanto vem sendo valioso o
auxílio que aos homens de governo e aos líderes agrários, industriais e religiosos,

9° J ^Homens, ‘Engenharias e ‘Rumos Sociais - Çilberto cFreyre


vem trazendo a Sociedade de Sociologia Agrícola de Goettingue, que reúne es­
pecialistas no assunto, de diversas tendências e opiniões políticas que vêm, en­
tretanto, chegando a acordo quanto ao papel que deve ser atribuído à agricultura
numa sociedade moderna e sobre as soluções práticas para um aperfeiçoamento
da estrutura agrária da Alemanha Ocidental que sendo técnico-econôm ico seja
também psicossocial
Em consequência desses entendimentos, a tendência vitoriosa naquele país é
no sentido de separar-se, nas áreas rurais, o lugar de trabalho agrário do lugar de
residência ou de habitação familial do agricultor, facilitando-se assim, nos lugares
de trabalho, através de novas formas de cooperativas de produção, a utilização
comum de máquinas agrárias* Da aplicação desse sistema resultou já grande au­
mento de produção nas áreas agrárias de Hesse e da Renânia-Palatinado, caracte­
rizadas há tempo pelos seus numerosos pequenos lavradores, As cooperativas de
I

produção vêm tomando possível esse aumento através da mecanização intensa


da agricultura - engenharia física completada pela social - sem que para essa
mecanização venha sendo necessária uma intervenção excessiva do Estado no
sentido de uma coletívização maciça da vida particular, tomando-se essa vida
/

passivamente dependente, na sua atividade econômica, do Estado. E neste ponto


essencial que a rurbanização da Alemanha Ocidental difere da rurbanização em
• /

curso de algumas áreas da Rússia soviética através das chamadas agrovilas, de


todo dependentes de um Estado absorvente e burocradzante, além de estatizante.
São assuntos que apresentam aspectos de inter-reiação entre as três enge­
nharias. Assuntos do maior interesse para o Brasil: alguns de particular interesse
para a autocolonização da Amazônia, tão carente de uma orientação em que se
exprimisse a conjugação das três engenharias. O que se aplica à obra monumental
em construção em Itaipu. Assuntos de interesse também considerável para a arti-
ê

culação, no Brasil atual, do que seja rural com o que se apresente como crescen-
temente urbano. Objeto dos lúcidos esforços do professor Marcos Vilaça à frente
dos chamados Centros Sociais Urbanos e, atualmente, da LBA.
Também de interesse, esses assuntos, para o que seja, em qualquer sociedade
moderna, o relacionamento entre valores a ser por elas perseguidos. Entre objeti­
vos e instrumentos. Não é sem razão que no seu sugestivo Basic Valúes o f Western
Givilization (NY, 1960), Shepard B. Clough lamenta a incapacidade de quase todo

i - ‘Em tomo âas três ev.genharias —a física, a humana, a social... - 91


homem moderno de ser um pouco engenheiro a serviço de sua própria casa - o
homem consertando coisas domésticas, a mulher, preparando ela própria quitutes
para o casal - em vez de totais dependentes de estranhos e de enlatados. Sem
nada saberem fazer de caseiro com as próprias mãos.
N ote-se, a este propósito, que um tanto contra o humanismo, por alguns,
como Paul J. Tillich, considerado “existencialista”, do próprio Marx, o comu­
nismo intitulado marxista se tornaria um rígido esforço para a promoção de
um sistema de convivência no qual, segundo o mesmo Tillich, no ensaio “The
Person in a Technical Society” (Varieties ofM od ern Social Theory, obra coletiva
organizada por Hendrick M: Ruitenbeek, NY, 1963), todos os refinamentos téc- *

nicos - os, subentenda-se, que possam ser considerados expressão da engenha­


ria física - seriam utilizados para eliminar a resistência da pessoa humana à sua
despersonalização: à despersonalização da sociedade, da cultura, inclusive da
habitação. Da casa. Ou a tendência - é o reparo que aqui enfaticam ente se faz -
para desenvolver-se e totalitariamente estabilizar-se uma sociedade despersona­
lizada e até desumanizada que seria a criação se não ideal, ideológica, de uma
exclusiva engenharia física capaz, para conseguir tal objetivo, de quase fantásti­
cos requintes técnicos. De onde a necessidade de ser tal engenharia, tão valiosa
como tal, retificada, humanizada, socializada, personalizada, completada, pela
engenharia humana e pela engenharia social, aqui apresentadas como de todo
necessárias a um desenvolvimento brasileiro que não seja unilateral, mecânico
ou tecnocratizado desenvolvimentismo. Necessárias, também, a uma segurança
nacional que tão pouco se requinte - ou se baste —em ser militar ou policial:
expressão, em termos simbólicos, de engenharia apenas física a pretender, como
engenharia apenas física, resolver problemas complexamente sociais e sutilm en­
te humanos. Simplista resguardo ou simplista promoção de uma autossuficiente
ordem com O maiúsculo. Estática. Apolínea. Sem aqueles ritmos de constante,
renovada e renovadora adaptação de suas partes entre si, que a definiriam em
termos antes de dança do que de escultura. Crítica que, aliás, pode ser feita à
arte-ciência, como engenharia da casa, a que Le Corbusier deu tão grande im­
pulso modernizante, criando discípulos mais no Brasil do que na Europa, onde
logo despertou restrições idôneas ao que, neste ensaio, poderia ser considerado
sua deficiência quanto à engenharia humana: relações da arte-ciência da casa

92 - ^Homens, Engenharias e Elimos Sociais - Çilberto Ereyre


com a vida a ser vivida na casa e com o tipo socioantropológlco de provável
morador, considerado nos seus característicos quer de altura quer psicossociais,
quer psicoculturáis. Sabe-se de repulsas enérgicas da parte de europeus a solu­
ções ou a modelos arquitetônicos de Le Corbusíer por lhes faltarem adaptações
do que neles é - digamos assim - rigidamente apolíneo, ao que, na condição hu­
mana de europeus, sob o aspecto de moradores de casas modernas seria menos
apolíneo que dionisíaco, certo, como parece, do homem, que no seu modo ideal
de morar é um ser em busca não só de repouso estático mas de um lazer que, em
termos simbólicos, seja menos essa forma de repouso que uma espécie de valsa
vienense para ser dançada na doçura da intimidade. Na sombra.
Há uns tantos anos —em 1946 - indo a São Paulo a convite dos seus estu­
dantes para proferir conferencia - conferência no histórico Teatro Municipal
o tema que procurei desenvolver foi “Modernidade e Modernismo na Arte Polí­
tica”. E sugeri que a arte política a serviço de uma sociedade ou de urna cultura
nacional, para ser sempre e criativamente moderna - e nunca apenas modernista:
nenhuma arte, aliás, poderia ser renovadoramente arte, pretendendo bastar-se
como modernista - teria que exprimir-se como dança. Com o que concordaria de
modo caloroso o mais lúcido dos modernistas da famosa Semana de Arte Moder­
na: o desde aquele ano tão fraternamente méu amigo Oswald de Andrade.
A-.

Quase vinte anos depois, lendo o excelente The Tradition o f the N ew (NY,
1961), de Harold Rosenberg, depararia com todo um capítulo intitulado “Polítics
as Dancing”. E nele esta coincidência de pensar e de sentir a propósito do que
seja uma constante renovação de sociedades através de políticas que, como artes,
correspondam às exigências de suas situações: “(...) the merging o f the local and
world rhythms into a single genuíne durationn.
Não será a arte política capaz de unir ritmos aparentemente contradi­
tórios como os locais ou regionais ou nacionais e os universais, uma arte c o ­
ordenadora das três engenharias, quer dentro de sociedades nacionais, quer
de sociedades nacionais internacionalm ente, umas com as outras? D ança da
melhor, a que coordene tais ritmos. Ritmos e até tempos: os tempos locais com
o universal Os cronométricos com os naturais. Os naturais com os sociais. Os
tempos privados - os vividos nas casas particulares - e os tempos públicos: v i­
vidos coletivam ente fora da casa de cada um. Ou de cada família. Ou de cada

i - "Em tomo das três engenharias - a física, a humana„ a social,..


bairro, O que toca em assunto à sua maneira versado por Roger Bastide em Le
Prochain et le Lointain (Paris, 1970).
O futuro humano, com relação à interpenetração desses dois tempos - o a
ser vivido dentro e o a ser vivido fora de casa - é dos mais difíceis de ser previstos,
A dificuldade em prevê dos inclui, inevitavelmente, a dificuldade em imaginar-se
qual o papel a ser desempenhado por cada uma das três engenharias, no planeja­
mento de novos tipos de casas de residência e das relações do que sobreviva do
desejo de privaticidade, de intimidade, de domesticidade em face de uma pos­
sivelmente maior coletivização de outras formas de vivência e de convivência.
Para não poucos psicólogos sociais o desejo da parte de cada homem civilizado,
de priva ticidade, não se extinguirá sob maiores tendências no sentido dessa cole-
tivização. E o que o século XXI demonstrará: até que ponto será a sobrevivência
desse desejo - básico de uma sobrevivente arquitetura doméstica personalizada -
em face de uma coletivização maior que a já atingida no Ocidente.
Quando o professor Armand Riancheri, na introdução a Les Sociétés Hu-
maines, Exemples de Leur Organisation (Paris, 1966), salienta das modernas socie­
dades industrias que “ríy apparaissent pas toujours comme le modéle lumineux au quel
toutes les nations en développement devraient se conformer le plus possible” toca em
assunto pungente. À mística do progresso contínuo e absoluto opõem-se evidên­
cias que não podem de modo algum ser desprezadas. As engenharias físicas vêm
se afirmando em arrojos, alguns deles, de tal modo anti-humanos e antissociais,
que exigem severas retificações: algumas das quais a engenharia humana e a en­
genharia social podem realizar.
Por mais que se admita um desejável futuro, em dias ainda distantes, para os
grupos humanos e para o homem, o mais possível construtivamente anárquico,
mesmo para esses dias é preciso que se admita a necessidade daqueles regulares
de tráfego concebidos por Bertrand Russell dentro de sua filosofia anárquica: o

mínimo de governo, é certo, mas sem que o tráfego de energias que sejam de­
senvolvidas criativamente dentro das sociedades humanas possa realizar-se sem
coordenação. Coordenação essencial e não apenas necessária.
Há quem hoje pense, nos Estados Unidos, que o problema com que se de­
fronta o homem supercivilizado de hoje não é o da crescente deterioração, na sua
vivência, daqueles valores de privaticidade ou de domesticidade ou de intimidade

94 - ‘¡Homens, ‘E ngenharias e Eburnos Sociais - Çilherto E^reyre


de que o complexo casa pode ser considerado símbolo. E sim o oposto: aquilo que, V I'«
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em livro recente, Richard Sennett chama T he Fall o f the Public Man (1978). Um I Ml

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declínio - o do homem, nesse livro, chamado “público”, isto é, se bem interpreto •, »



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o pensamento socialmente crítico de Sennett, que tivesse maiores preocupações ♦ *



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públicas, extrapessoais, extrafamiliais, extradomésticas e menos empenhos, se


gundo o autor, narcisistas, inclusive os auto terapêuticos: empenhos que viriam
constituindo uma “tirania da intimidade” - de todo prejudicial às modernas d -
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vilizações. Uma civilização que, para certos observadores, estaria sofrendo exata , é • ~Ml

mente do que outro atualíssimo crítico social, Christopher Lasch, denomina “the
warning o f Private :L i f e Justamente o tipo social de vida de que a casa, o lar, a
família podem ser considerados, além de expressões, símbolos
Se o que se deve lamentar nas atuais civilizações é o declínio do homem pú-
blico, da concepção de Sennett ~ que seria o representado simbolicamente pela
ágora - e não o declínio da “vida privada” - que seria o representado simbolica­
mente pela “casa” então a combinação seria: menos casa e mais ágora. Mais
rua. Mais espaço público.
O conselheiro Acácio porém, se ouvido sobre o assunto, opinaria por uma
“conciliação entre extremos”. Concordaria numa necessidade do homem moder
no ser mais público nas suas preocupações. Mas sem que isto importasse na sua
renúncia, talvez antiterapéutica, antipsicológica, à privacidade, à intimidade - e
há também livro atuai, em língua inglesa, intitulado T he Triumph o f the T hera-
peutic: Uses o f Faith after Freud, de Philip Rieff à personalidade: valores que
a presença do complexo casa representa ou simboliza. Pelo que, talvez se deva
considerar, no assunto, o parecer de um também simbólico conselheiro Acácio,
de todo válido como expressão de senso comum, de que talvez se aproxime o
mais existencialmente sociológico ou antropológico. Ou o mais terapéuticamente
freudiano, considerando-se a casa símbolo de mãe. De ventre gerador. De ventre
materno. O biológico no homem,
Como se situa, em face do fator biossocial, o processo de formação de elites
dentro de uma engenharia social, isto é, de elites biossocialmente válidas?
Será que dentro da engenharia social de que o Brasil necessita orientações
e apoios para seu desenvolvimento global - e não apenas econômico - se situa o
processo de formação universitária? A pergunta nada tem de estapafúrdia.

i - tomo das três engenharias - a física, a humana, a social.., - 95


O livro para o qual o então reitor José Carlos de Azevedo solicitou de mim
o que qualificou de “prefácio” surgiu como uma das respostas. Intitulado Omissão
da Universidade e Outros Ensaios (Rio, 1978), esse livro reúne ensaios diversos e
até descontínuos sem que lhes falte unidade. Pois todos consideram problemas
atuais de educação - ou partícularmente ao Brasil - sob a perspectiva do cientista
ou, mais do que isto, do scholar - criativo, abrangente, analítico, sintético - que é,
de modo notável, o autor, aliás, um engenheiro físico desdobrado em engenheiro
social. Quase sempre presente, no intelectual assim múltiplo, o educador; e, como
tal, o mais discutido dos reitores que orientaram, uns, outros desorientaram ou
ainda desorientam o ensino universitário no difícil Brasil de hoje.
4

O primeiro ensaio do livro versa assunto - “Nemesis e a Medicina” - de


especial interesse para quem já escreveu uma Sociologia da Medicina; a qual, des­
conhecida no Brasil, vem, em sua edição italiana, sendo considerada pela mais
autorizada crítica de Roma o primeiro trabalho - prioridade brasileira - em língua
neolatina a relacionar a atividade médica com a ciência sociológica; e a provocar
a atenção do leitor europeu para aspectos não só europeus como extraeuropeus
dessa relação. Precisamente o que faz agora, de modo específico e brilhante o
reitor Azevedo ao acrescentar a perspectiva sociológica no trato da matéria mé­
dica a preocupação de educador brasileiro. A preocupação universitária. Chegam
a ser dramáticas as páginas em que o reitor Azevedo abre seu provocante livro,
advertindo: “Com a provável queda da medicina brasileira nos próximos anos...”
Acrescentando com humor muito seu: “porque, afinal a saúde é também nossa”.
O assunto se relaciona com o que pode ser considerado o estado de saúde -
de modo algum satisfatório - da universidade brasileira: um desequilíbrio - desde
que saúde é equilíbrio, que atinge, além da cultura, a própria nação brasileira, no
seu todo gestaltiano. Pois um sistema nacional universitário doente é o que signi­
fica: algo de podre num inteiro reino da Dinamarca que pode ser, como é, no caso,
vasta República Federativa - a constituída pelo Brasil.
i.

“Omissão da Universidade ou Culpa da Sociedade?” talvez deva ser conside­


rado, de acordo, aliás, com o título do livro, o ensaio-chave do conjunto que for­
ma o livro aparecido em 1978. N ote-se que se analisa, em páginas argutas, antes
o que seria um fenômeno de omissão que o modo por que vem sendo cumprida,
ou não, uma missão: a da universidade em face da sociedade. Uma sociedade, no

ç6 J-fomens, Engenharias e Eumos Sociais


* - Çilberto Ereyre
caso, em desenvolvimento. E esse desenvolvimento, em grande parte orientado -

ou não - por uma engenharia social


r- *
Uma coisa se destaca, de início, nessa análise magistral: que “os aspectos
nobres da educação, como o do conteúdo dos cursos que teria de ensejar apri­
moramentos constantes e atentar para peculiaridades regionais, não devem ser
regulados por lei”. E de início se põe o dedo nesta ferida: a carência, na formação
de um sistema universitário brasileiro - esforço, apenas, de alguns decênios - de
“elites intelectuais”. Registra-se que embora haja atualmente no Brasil “cursos
que preservam excelentes padrões”, de modo geral chegou-se ao ensino univer-
sitário “sem estruturas adequadas” que tornassem possível a esse ensino suportar
encargos para os quais não houvera o necessário preparo, promovido, como de­
veria ter sido promovido, não só pelo governo federal como através da socieda­
de: no caso, principalmente, pela indústria, em fase de notável desenvolvimento.
Omissão, portanto, nesse caso, da sociedade. Omissão que teve suas exceções
através de iniciativas, mais à margem de universidades que dentro delas, no senti­
do de se iniciarem pesquisas científicas capazes de concorrerem de modo didático
para a elevação, a nível criativamente universitário, do ensino quase que só bu­
rocrático, convencional, bacharelesco, ministrado por universidades. Aqui noto
omissões no breve histórico traçado pelo ex-reitor Azevedo. Um, quanto à antiga
universidade do distrito federal, na qual teve início, no país, com Anísio Teixeira,
mais de um arrojo universitário dos que devem ser classificados como criativos,
atraindo-se para o ensino universitário talentos e saberes de modo algum burocrá­
ticamente acadêmicos: inclusive o de Cândido Portinari e o de Heloísa Alberto
Torres. Outro, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais que, surgido em
1949, deu desde os seus começos novo sentido, em nível universitário, ao papel
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das ciências sociais, ecologicamente orientadas, na formação de elites intelectuais
brasileiras menos abstratas e mais existencialmente orientadas. Sentido contrário
ao da suposição de elites intelectuais significarem afãs de importação de primores
estrangeiros ou estudos bizantinamente teóricos, que fariam das universidades,
ou das elites nelas formadas, elementos estranhos a uma sociedade nacional em
transição, como a da época brasileira do começo, entre nós, de intituladas uni­
versidades. Notem-se, neste particular, intervenções do governo federal no esfor­
ço de desenvolvimento de atividades parauniversitárias nem sempre felizes: tal o

f - lüm tomo das três engenharias - a física, a humana, a social... - 97 -


Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico. A propósito do que convém
que se atente neste pronunciamento do ex-reitor Azevedo: “o dirigismo científico
é nocivo”. E ainda: “que entre nós tal dirigismo vem se manifestando de maneira
a causar apreensão”. Mais:

igualmente causa apreensão o desempenho que vêm tendo, na condução


da política científica do país, pessoas não versadas em ciência e que hoje
formam a nova classe dos planejadores: economistas em elevado número,
muitos de excelente formação, essa categoria é ainda integrada por outros
profissionais. Os planejadores transitam desenvoltos pela ciência, pelas
humanidades, pela educação, pelas artes, pela tecnologia. Identificam-se,
não raro, pelo seu linguajar peculiar repleto de neologismos e anglicismos.

Mais ainda: “muitos deles pretendem aritmetizar tudo o que existe na natu­
reza, até mesmo as humanidades, e finalmente entendem que o ato de planejar se
exaure em si mesmo”. t

Lembra o ex-reitor Azevedo que algumas das universidades brasileiras -


acentue-se: de tão recente presença na vida do país - não conseguiram arre­
gimentar, para o ensino, senão pouquíssimos profissionais de boa qualificação.
Pode-se comentar: a burocratização a dominar a universidade, quer de dentro
para fora, quer de fora para dentro; e sempre comprometendo-se, com isto,
a qualidade desse ensino; situando-se sua atuação em nível subuniversitário:
continuando-se, na universidade, a rebaixar padrões já lamentavelmente re­
duzidos pelo ensino secundário, desde que se acentuou, entre nós, a inchação
desse ensino, com uma mística igualitarista unida a outra, progressista, sem
que se cuidasse de sua qualidade. Ao contrário: o Brasil passou, a certa altu­
ra, a regozijar-se juscelinam ente com quanto fosse inchação dessa espécie, tida
por gordura do velho conceito de “gordo e bonito”, isto é, sob a aparência de
progresso. Crescente número de diplomados pelos cursos secundários, crescen-
te número de universidades no país, aumento de populações urbanas com sua
enorme quantidade de marginais, A euforia do “progresso” em torno das quan­
tidades. D os números.
Houve quem quisesse conter o furor da criação, pelo Brasil afora, de uni­
versidades: de aparentes universidades. De fábricas tão somente de diplomados
nisto ou naquilo. Vingou por algum tempo a ideia de opor-se ao desvario na

9S - Jíomens, Engenharias e Etimos Sociais - Çilherto Ereyre


criação de universidades estaduais o critério de só se federalizarem as regionais;
descentralizadas ao mesmo tempo que centralizadoras para que a centralização
lhes assegurasse mais alta qualidade no ensino através de uma transestadual se­
leção de professores. Ideia vencida pelo estadualismo eleitoreiro. De onde ser
exato o reparo do ex-reitor Azevedo em torno dessa proliferação de aparentes
universidades: de ter se suposto que simples amontoado de “professores, alunos,
prédios e equipamentos’’ constituísse “uma universidade”.
Exata é também esta sua crítica a universidades brasileiras nesta sua ora an-
tiecológica, ora apenas abstrata, relação com a comunidade: a criação de cursos
chamados de “medicina comunitária”, no pressuposto de, por esse meio, os di­
plomados irem para o interior; ou de cursos de comunicações e psicologia; ou do
ensino de Max Weber, em cursos de sociologia, esquecendo-se “os pensadores
brasileiros”. De onde - acrescente-se ao ex-reitor Azevedo - até em universidades
ilustres e ricas como a do Estado de São Paulo, haver atualmente, em cursos de
sociologia, passiva adoção de um já arcaico, sob vários aspectos, marxismo, em
vez de uma consideração menos passivamente colonial e mais autonomamen­
te brasileira, nacional, de situações brasileiras, psicossociais e socioeconómicas e
biossociais tão fora das chamadas “verdades marxistas” como as que, no Oriente
e nas Africas, através de orientações universitárias pós-coloniais, vêm resultando
em ecológicos “socialismos africanos”. Além, é claro, do chinês, tão do desagrado
daquele imperialismo cultural russo-soviético rival, neste particular, do ianque,
*4

este com seu Phdeísmo de transplante quase sempre arbitrário e com seus “bra-
zilianistas” por vezes tão fechados à compreensão de situações brasileiras. Tão
diferentes dos Roy Nash, dos Konrad Günther, dos Roger Bastide, dos T jllio As-
carelli, para não falar de ingleses já clássicos como precursores de uma lúcida
compreensão de brasileiros por europeus. Ingleses como Richard Burton, Maria
Graham e Charles Mansfield.
Recorda o ex-reitor Azevedo que a Universidade de Brasília, fiel ao seu cri-
?
tério de ser seletiva, “desliga anualmente cerca de quatro a seis por cento de seus
alunos por falta de aproveitamento acadêmico”, comentando: “Poucos estabe­
lecimentos de ensino superior adotam efetivamente essa medida, à exceção das
academias militares que a aplicam com inabalável rigor”. Sabe-se do ex-reitor
Azevedo que seu critério seletivo lhe vem custando severas críticas da parte de

i - ‘Em tomo âas três engenharias —a física, a humana, a social.,. - 99


semanários e jornais de rótulo liberal, O argumento é o de que se trata de um
critério antidemocráticamente elitista. E de fato o ex-reitor é dos que incluem na
missão da universidade - ou das universidades - o dever de concorrerem para a
formação de elites. Por conseguinte - como ousei dizer, enfrentando iguais ata­
ques, em conferência proferida na Comissão de Educação e Cultura da Câmara
dos Deputados, que me honrou com seu apoio - não confundindo a missão da
universidade com a de uma espécie de Santa Casa de Misericórdia empenhada
em dispensar caridade intelectual a todos os candidatos a diplomas universitários.
ê •

O ex-reitor Azevedo é menos nítido do que noutros dos seus pronunciamen­


tos, quando escreve a respeito da responsabilidade, além de intelectual, ética,
*

inclusive cívica, da universidade, que seria “orientar a vida social para lhe dar
sentido e dignidade”, Sentido e dignidade são, no caso, expressões vagas. R eto­
ma o autor desse corajoso livro a nitidez de palavra de que é mestre, ao salientar
que, da parte da sociedade em relação com a universidade - no caso a sociedade
nacional brasileira - deve haver maior empenho no sentido de se tornar “tanto
mais atuante quanto mais exigente em matéria de qualidade e menos persuasiva
e tolerante quanto a problemas de ordem moral e ética na formação dos quadros
de alto nível”, “Quadros de alto nível” de formação universitária.
Com perspectiva de sociólogo, insiste na interação universidade-sociedade.
Universidade brasileira e — poderia talvez especificar - universidade ecológica
brasileira, A propósito do que, não se conserva nunca alheio à necessidade de
outra e essencial interação entre nós: entre elite e povo. Caberia especificar: com
as universidades formando elites integradas em ecologias sociais brasileiras. Mais:
com as preocupações intelectuais das universidades necessariamente universa­
listas coexistindo a consciência de, nas suas raízes, as elites universitárias serem
povo. Serem povo nacionalmente brasileiro. Apenas ser povo não é exatamente
ser massa. Nem a genuína democratização do ensino universitário será a que sa-
I

crifique a qualidade desse ensino à mística de alcançarem-se, de qualquer ma­


neira, grande número de jovens empenhados apenas em se diplomarem. E que se
diplomassem por caridade intelectual.
O livro do ex-reitor Azevedo une ao que nele é expressão de uma alta in­
teligência que, sendo analítica, sabe ser, em momentos justos, sintética, um de­
sassombro de opinião raro no mundo de hoje. Inclusive no B rasil Há, entre nós,

íoo - Çjrfomens, E ngenharias e Equinos Sociais - Ç ilherto Ereyre

f.
atualmente, quem se sinta intimidado por um terrorismo, da parte, por vezes,
de aparentes liberais, além de aparentes intelectuais, que, examinados além das
aparências, revelam-se de uma intolerância agressiva através do seu domínio
quase absoluto sobre meios de comunicação e de persuasão, Quem mais visado,
• l

a certa altura de sua atuação como reitor da Universidade de Brasília, por esse
terrorismo do que o próprio Azevedo? Terrorismo já identificado em algumas de
*

suas fontes, por esse mais que desassombrado analista da atualidade brasileira,
através de uma análise mais-que-literária, que é Nelson Rodrigues. Potência in­
dividual, esse Nelson, de artista dentro do qual há um pensador incessantemente
analítico, crítico, criativo.
Insista-se em que parte considerável do livro do ex-reitor Azevedo tem que
ver com este dramático desafio toynbeeano: o de uma universidade brasileira em
crise a pedir urgentes respostas a um Brasil indeciso entre atender solicitações de
sentido quantitativo e insistir em valorizar qualidade, através de seleção. Aze­
vedo, se bem o interpreto, defendendo uma universidade “seletiva”, situa-se en­
tre os que opõem à burocratização maciçamente quantitativa do ensino superior
aquele empenho de prestigiar-se a criatividade, na formação universitária: uma
criatividade capaz de dotar o Brasil de jovens lideranças idôneas. Jovens e transjo-
vens, observe-se. Pois a universidade moderna, como centro não só de transmis-

são como de incessante atualização de saberes, está deixando de ser monopólio de


jovens, para responsabilizar-se pela atualização do saber de já transjo vens: os de já
provada ou revelada capacidade criativa. Criativamente analítica. Criativamente
crítica. Criativamente prática.
Estas, as principais responsabilidades de uma universidade moderna, a serviço
não de uma classe detentora de poder econômico ou de privilégio político mas de
uma nação cujos superiores recursos de inteligências, potencialmente existentes
nas suas mais diversas camadas, encontrem da parte de governos e de particulares
todas as facilidades para seu acesso aos estudos universitários. Pois não é social­
mente justo que essas facilidades sejam negadas ou dificultadas a jovens de famílias
de baixa renda - alguns até supradotados - enquanto filhos de poderosos ocupam,
•*

por vezes, em universidades, espaços de que apenas abusam, sem condições inte­
lectuais para devidamente usá-los: recorrendo a subterfúgios para se bacharelarem
ou diplomarem; sem nenhum gosto por estudos; procurando compensar-se dessa

i- tomo das três engenharias - a física, a humana, a social.. - tal


inaptidão, recorrendo a atividades, em alguns casos, de todo estranhas à vocação
universitária* O que não implica condenan se no jovem universitário a expressão
de outro ânimo que não o estritamente acadêmico: o político, por exemplo. Ou
vários dos lúdicos. O que é absurdo é que o espaço universitário seja ocupado por
jovens destituídos de vocação ou gosto para estudos superiormente universitários
enquanto tem faltado, a governos e a particulares - a empresários, por exemplo -
o senso de responsabilidade nacional que os faça empenharem-se em uma caça
que, substituindo, a que se exagere em perseguir as chamadas bruxas, especialize-
se em descobrir, entre famílias de baixa renda, adolescentes supradotados que os
estudos universitários valorizariam, em proveito da comunidade*
O talento atlético revelou Pelé. Mas não há exagero em supor-se que são
vários, por este vasto Brasil, os Pelés com talentos estéticos, científicos, políticos
que o Brasil deveria sentir-se na obrigação de trazer às suas universidades, para
que aí adquirissem suas inteligências formação à altura de suas aptidões. São esses
vários Pelés redutos de criatividade que vêm deixando de ser assim utilizados e va­
lorizados, enquanto o simples dinheiro vem enchendo cursos, ditos superiores, de
jovens incapazes de corresponderem às exigências desses cursos. Ineptos. Vindos
de estudos secundários já protegidos pelo dinheiro: ostensivamente ignorantes.
Maldosamente ignorantes, até* Pois um dos fenômenos característicos do Brasil
atual é o desses filhos de papás-ricos, ou politicamente poderosos, que se orgu­
lham de sua ignorância. E que, não suprindo a ignorância com a inteligência, se
tornam portadores de diplomas que lhes permitem encher a burocracia brasileira
com a sua aparente categoria individual de elite* Quando o que fazem é compro-
meter o conceito de elite*
Um conceito que, em certos meios brasileiros, precisa de ser reabilita­
do. Não é certo que o Brasil possa prescindir de seus indivíduos realmente su­
periores pela inteligência, pelo saber, pelo caráter, para que vingue, entre nós,
um igualitarismo, permissivo no seu modo de ser demagógico. Um falso eli­
tismo deve ser de todo repudiado. Mas sem que se rejeite o conceito de elite
que, aberta, permita ao Brasil de hoje tornar-se aquela democracia verdadei­
ramente brasileira em que os governantes sejam autogovernados de várias ori­
gens* E possam assumir posições de comando sem que tal comando os afaste
de sua condição de autogovernados. Elite que pode incluir - e tem incluído -

io2 - J-íomens, '"Engenharias e cRitmos Sociais - ÇÜherto ^Frâyre


autodidatas. Mas que as universidades deveriam estar em situação ideal de pre-
pará-la, ligando o seu ensino a solicitações e urgências da comunidade. Sendo
ecológicas. Ambientais. Existenciais,
O notável livro do ex-reitor Azevedo não está escrito em sociologês nem em
antropologês nem em filosofes mas em português: o português através do qual eu
próprio procuro me comunicar com o maior número possível de leitores. O portu­
guês com que diz-se ter sido rompido, no Brasil, o tabu de livro com pretensões a
sério ou a científico dever ser escrito em jargão erudito ou acadêmico ou arreve­
sado. jargão tão das falsas elites.
Esta uma das minhas várias afinidades com o ex-reitor Azevedo: escrevermos
em português e não em jargão. Um dos nossos repúdios ao falso elitismo que é o
pomposamente ou fechadamente acadêmico. Uma das nossas concordâncias com
aquele Montaigne, nosso mestre, que em certa página disse que os dogmas dos
físicos - isto é, os médicos - de sua época deviam ser contrabalançados com a
experiência - ou a vivência? - de cada um, me parece que é justamente esta: reco­
nhecermos haver uma sabedoria por vezes superior às erudições. É uma sabedoria
que pode vir mais dos poetas do que dos técnicos. Mais da própria gente do povo
que da das academias, E da qual as universidades não deveriam nunca afastar-se,
fechadas em especialismos, em jargões, em academicismos.
Daí me parecer inteligente a orientação daquelas universidades modernas
que põem em contato com seus estudantes indivíduos que considerem antes cria­
tivos que especialistas. Poetas, artistas, pensadores, cientistas, místicos. Pois a ver­
dade é que de criatividade assim descomprometida de especialismos absolutos
está precisando o mundo de hoje e, de modo particular, países como o Brasil, em
f
fases de transição.
Não se limita a missão das universidades a formar profissionais. Ou especia­
listas. Ou em requintar-se em produzir Ph.Ds. por mais perfeitos nos seus especia­
lismos: Ph.Ds. que estão antes empobrecendo que enriquecendo a atual cultura
universitária dos Estados Unidos com a sua quase nenhuma criatividade, tal a sua
erudição especialíssima: Elitismo do mau. Do péssimo.
Pelo que me animei a sugerir ao ex-reitor Azevedo que, com o seu justo pres­
tígio, animasse nas universidades brasileiras a organização de seminários interdis-
ciplinares do tipo Tannenbaum-Recife. Seminários que reúnem representantes de

i - LEm tomo das três engenharias - a física, a humana, a social,, - J03


I

saberes diversos e de gerações diferentes em torno de um mesmo assunto. E junte


aos representantes de tais saberes, os de experiências extrauniversitárias: profis-
% *

sionais, industriais, sacerdotes, artistas, artesãos.


Seminários que, pelo seu caráter interespecialista, concorram para a forma­
ção, em universidades do nosso país, de jovens esclarecidos quanto ao que há de
complexo nos problemas brasileiros com os quais tendem a defrontar-se elites de
um novo tipo. Elites que incluam o mais possível supradotados das mais diver­
sas origens sociais e das mais diferentes vocações intelectuais. São sugestões que
agora e através deste livro encaminho ao novo e também magnífico ex-reitor da
Universidade de Brasília: o economista e escritor literário Cristovam Buarque.
O assunto - aproveitamento de tais inteligências como elites nacionais - está
••

preocupando - repita-se - tanto a União Soviética - no setor apenas das ciências


físicas e naturais - como os Estados Unidos.
Qual a moderna atitude dos Estados Unidos com relação ao problema?
Esta: o reconhecimento de que os indivíduos são desiguais em suas capaci­
dades inatas tanto quanto em suas motivações e, por conseguinte, vêm a ser
também desiguais nas realizações de que os tornam capazes aquelas aptidões
e para as quais os incluíam aquelas motivações. Donde ser dever de uma co ­
munidade democrática, ao mesmo tempo que reconhecer tais diferenças, não
sacrificar a um falso democratismo aquela “concepção de excelência” que fa­
voreça os indivíduos supradotados, dando-lhes faculdades para a preparação e
o desempenho de funções de que somente eles são capazes. Não há assim in-
compatibilidade - concluem os responsáveis pelo capítulo sobre educação -
em Prospect fo r A m erica (NY, 1961) - entre “excelência”, assim concebida e ver-
• -

dadèira íldemocratic way o f l i f e Pois: “our kind o f society” - diz-se à página 362
dessa importante publicação - “calis for the máximum development o f individual,
potentialides at all leveis”. M ais:... “the demand to edúcate every one up to the levei
o f his ability and the dem and fo r excellence are tiot incompatible” (...) “We must seek
excellence in a context o f concern fo r all”.
Daí a necessidade, sentida atualmente, de modo pungente, pelos líderes mais
lucidos das democracias anglo-americanas, tanto quanto da francesa, da alemã
e da que se organiza na Espanha, de descobrir-se talento, inteligência superior,

é ^ t
gênio, estejam essas aptidões onde estiverem - em qualquer sexo, idade, geração,
á » .*

104 - '¡Homens, Engenharias e Trunos Sociais - Çilberto Ereyre


r

,* ¿

grupo étnico, grupo social, dentre os que constituem um conjunto nacional. H


para esse descobrimento, é preciso que haja compreensão, além de mensuração
por tests apenas mecânicos, do que seja talento ou do que seja gênio. É tarefa para
educadores e responsabilidade para homens públicos; mas é tarefa para educa­
dores que se deixem esclarecer ou orientar por psicólogos, antropólogos, sociólo­
gos que aos saberes do que seja mensurável no comportamento humano junte os
compreensivos; é responsabilidade para homens públicos que em vez de se apoia­
rem apenas, para seus planos desenvolvimentistas em países como o Brasil, em
puros economistas, do gênero que desliza em torno de soluções quantitativas, ou
somente em líderes industriais necessitados quase perversamente de um tipo do
“talento” - também quantitativista: de olhos fixos no máximo de produção - para
suas empresas ou em líderes operários, empenhados em valorizar exclusivamen­
te outro tipo de talento, regularmente quantitativista - de atenção concentrada
no uso e no abuso da massa para operações políticas - para atividades operárias
que contrariem as industriais ou as agrárias, se orientem também por psicólogos,
antropólogos, sociólogos, cuja visão, de cientistas ao mesmo tempo objetivos e
compreensivos, do que seja talento, seja a amplamente nacional e até largamen­
te pan-humana: livre, portanto, de empenhos facciosos de perversão do uso de
talentos com objetivos apenas quantitativos, que se traduzam em concorrerem
aqueles a quem se atribuam supremas responsabilidades de direção na vida nacio­
nal, para simples aumentos de produção econômica ou para simples aumentos de
prestígio político e do conforto material de massas operárias, à revelia de quanto
seja qualitativo no desenvolvimento de um povo; e, como tal, dependente - esse
desenvolvimento - de superiores inteligências concentradas na criação, na adap­
tação, no aperfeiçoamento de valores que ultrapassem os apenas mensuráveis;
susceptíveis tão-somente de ser compreendidos e interpretados; rebeldes aos tests
e às medidas convencionalmente científicas nas chamadas ciências do homem.
O que nos leva a este aspecto da engenharia social atenta a desenvolvi­
mentos humanos nos quais seja possível conciliar igualdades com qualidades,
' f

Massas com elites. Conformidades de comportamento com antecipações ou


•*

orientações renovadoras.
Em conexão com tal problema, tão psicossocial nas suas implicações, per­
gunte-se: ba verá uma vocação do Brasil para uma forma brasileira de convivência

i - ‘Em tomo das três engenharias - a física, a humana, a social... - 105


democrática e, até certo ponto, igualitária? E essa forma de convivência pode ser
considerada forma de engenharia social?
Para tentar respostas é preciso que se considere, com relação a este particu­
lar, a experiencia social brasileira: tanto a dos dias já nacionais como a dos ainda
pré-nacionais, e também que se considere engenharia social parte de urna experi­
encia social que resulte de experimentos sociais*1
É uma experiência social, a que o Brasil vem vivendo* sob vários aspectos,
singular; só brasileira. Singular também como experimento social. Sob outros as­
pectos, assemelha-se a experiências vividas e experimentos realizados em outras
sociedades. Principalmente por outras sociedades hispánicas: particularmente,
lusotropicais* São experiências, as sociais, que tendem a projetar-se em culturas
característicamente nacionais, dentro, aliás, da conceituação dessas projeções su­
geridas, em página magistral, pelo professor Miguel Reale.
Impòe-se, assim, que de início se recorde da experiência social brasileira o
que nela madrugou como vocação, ou quase vocação — o assunto envolve uma
consideração de valores o mais possível em harmonia com uma objetividade cien­
tífica talvez impossível de ser absoluta no trato de assuntos sociais - para uma
f

forma de democracia social susceptível de ser considerada característica de uma


situação própria do Brasil, quer pré-nacional, quer nacional Própria de uma não
só vivência como convivência brasileira, já em parte descomprometida de adesão
a modelos europeus e cristãos dos quais principalmente emergiu; mas cedo reve­
lando uma capacidade para adaptar tais modelos a novas circunstâncias. Inclusive
para afastar-se, no tipo patriarcal de família seguido no Brasil desde os seus com e­
ços como sociedade estável, de normas estritamente monogâmicas, para adotar,
sem descristianizar-se no essencial, normas antes poligâmicas que monogâmicas,
combinadas com relações livremente sexuais, por vezes amorosas, de homens se­
nhoris com mulheres servis. De europeus com não europeias.
Ao brasileiro não vem faltando, desde dias remotos, um quase senso, uma
como intuição, uma espécie de premonição de democracia social fora de con- k

ceitos racionais a esse respeito, importados ou desenvolvidos através de raciocí­

1Parte do ensaio, que aqui se junta a um contexto mais amplo, constituiu conferência
proferida em Brasília (1978), na Câmara dos Deputados, a convite de sua Comissão de
Educação e Cultura.

106 - J-{omens} Engenharias e Eit-mos Sociais - Çilherto Ereyre


nios abstratamente jurídicos ou políticos, Nem sempre o “politique d ’abord”, da
fórmula de Charles Maurras, condiciona a emergencia ou o desenvolvimento
de soluções para problemas humanos de desajustamento, quase sempre com ple­
xamente sociais ou psicossociais, E não unilateralmente políticos ou exclusiva­
mente econômicos.
Quando nos primeiros dias de colonização portuguesa do Brasil, precedida
por piratarias francesas em terras do pau-brasil, portugueses, de modo já patriar­
cal, e franceses apenas aventurosamente uniram-se a mulheres ameríndias, prin­
cipiou a haver no Brasil uma mistura de sangues que se alastraria, que acrescenta­
ria, dentro de pouco tempo, até às uniões de portugueses com mulheres da terra,
com filhos mestiços já, em vários casos, como da união do fidalgo Jerónimo com
¥

a indígena Maria Arcoverde, patriarcalmente reconhecidas uniões com mulheres


africanas escravas, também com filhos por vezes amparados pelos pais segundo
exemplos árabes ou maometanos seguidos por portugueses cristãos. Dessas uniões
inter-raciais pode-se sugerir terem sido um primeiro passo para uma democra­
cia, ecologicamente brasileira, já pré-social. Pois tais uniões, por atração sexual
e, algumas até, por amor sentimental de tipo exogâmico, favoreceram ascensões
da amada de início considerada inferior, mais por ser pagã do que por ser mulher
de cor, a um status social próximo do status do adventício. Sobretudo quando
batizada cristâmente, passando a acrescentar aos seus nomes indígenas um nome
cristão, como a referida e típica María Arcoverde, a esse nome telúrico, o de Espí­
rito Santo. Mas sem perder o nome indígena, de tal modo decisiva foi sua ascen­
são social pela união de Jerónimo de Albuquerque com Maria do Espírito Santo
Arcoverde, que sua descendência, através dos séculos, se conservaria conhecida
como Arcoverde; e como Arcoverde daria à América Latina o seu primeiro prín­
cipe da Igreja. Um tetraneto, esse príncipe da Igreja, de índia castamente nua, de
pés nus, filha das selvas tropicais.
Que o episódio sirva de exemplo, em termos ao mesmo tempo que simbólicos,
concretamente históricos, em dias tão distantes de um começo de uma tendência
biossocial - para uma mistura de sangue, um, de gente supostamente superior, ou-
••

tro, de gente supostamente inferior - que se prolongaria num processo sociológico


sobre essa base biológica, de um já começo de democratização social de contatos
humanos dentre os que primeiro no Brasil sucederam.

i- tomo das três engenharias —a física, a humana, a s o c i a l - ioy


Era, efetivamente, o começo, logo tão característico da formação so­
cial brasileira, dessa democratização como que à revelia de um seu contrário:
a hierarquização, que não tardaria a suceder, de relações humanas num come­
ço de sociedade humana de origem e segundo padrões principalmente luso-
F ___

cristãos em região tropical. Essa hierarquização, a que dividia essa sociedade


de um novo tipo, em senhores e escravos que, assim separados pelas funções
de caráter econômico que deveriam exercer ou desempenhar, juntos contribui­
riam para a instalação de um sistema efetivo de rendosa exploração agrária -
a da cana-de-açúcar - através de mecanismo quase feudal no seu aspecto jurí­
dico-político: dando-se a donatário de capitanias nas quais se desenvolvessem
explorações agrárias desse tipo poderes de supersenhores; e aos indivíduos que,
com suas famílias, se instalaram, como vieram a se instalar, e como de fato se ins­
talaram, em sesmarias a eles concedidas pelo rei de Portugal e à base de capitais
necessários para essa instalação e para o funcionamento de suas fundações, rega­
lias e poderes também quase feudais de tão efetivamente senhoris. Senhoris eles e
senhoris, nas paisagens que passaram a caracterizar a integração de tais domínios
em terras famosas por massapés ideais para o cultivo da cana-de-açúcar, as casas
levantadas para suas residências e para a afirmação de seu domínio; e às quais
logo se acrescentaram senzalas ou moradias para os negros da África importados
para o trabalho agrário sob a forma de trabalho escravo. Escravos importados por
não ter tido êxito a interligação, nesse trabalho sedentário, com o braço indígena:
um indígena nômade demais, pelo próprio estágio de sua cultura, para funções
assim sedentárias, O que não significa ter sido completa sua ausência do novo
sistema - o agrário-patriarcal - instalado em terras até então de todo agrestes ao
gosto dos mesmos indígenas. Também eles, indígenas —dos sensíveis a agrados da
parte dos adventícios portugueses - se ligariam ao sistema agrário-patriarcal: os
homens como guerreiros que defendessem instalações portuguesas, de agressões
de indígenas hostis; as mulheres, ou cunhas, com as quais madrugaram relações,
além de sexuais e mesmo amorosas com os adventícios, de caráter como que so­
cialmente cooperativo, com os mesmos adventícios e com mulheres europeias,
às quais transmitiriam valiosos conhecimentos de plantas quer alimentícias quer
medicinais. Conhecimentos que junto com outros - o da rede, por exemplo -
muito concorreram para dar de início à economia doméstica senhorial - a das
1

io8 - ^Homens, ^Engenharias e Ttymos Sociais - Qilherto ‘Ereyre


%
depois chamadas casas-grandes - característicos ecológicos e até telúricos. Desses
característicos se pode ir além e afirmar que, acrescentados aos depois assimilados
de escravos africanos, a serviço, não só de trabalho agrário, como dessa economia
domes tico-patriarcal, acompanhariam tanto a interpenetração entre as duas ou­
tras culturas em contato —a senhoril ou senhorial e a servil, a europeia e as dos
trópicos, como as uniões sexuais, por vezes quase conjugais, de dominadores com
as gentes dominadas: de europeus com mulheres quer ameríndias quer africanas.
A miscigenação: uma miscigenação logo socialmente democratizante de relações
sob outro aspecto reguladas por uma estrutura nitidamente hierarquizante. No
jogo entre esses contrários pode-se hoje observar, sob perspectiva histórica que
a miscigenação socialmente democratizante vem se constituindo em expressão
■ T
f

característica de um modo nacional do brasileiro ser brasileiro. Um modo que já


vem sendo definido como metarracial, isto é, com um conjunto de característicos
antropoculturais à revelia dos antropossociais, estes segregadores, os antropocul-
turais, unificadores, virem marcando, através de modos comuns de andar, de sor­
rir, de preferências em alimentação e em recreação, o tipo nacional de brasileiro.
Um tipo nacional de brasileiro, por cores, característicos, cada dia mais indepen­
dente de traços peculiares não só a raças como a classes e mesmo, a regiões.
Se o brasileiro de hoje. não tem que responder, em estatísticas oficiais, qual a
sua raça ou a sua cor, é que tais característicos se tomaram de todo irrelevantes.
Ele é nacionalmente brasileiro não só quando economicamente ou socialmente
bem situado como quando pobre. A pobreza não é para o brasileiro a condição
degradante que se tomou para as sociedades de formação acentuadamente cal­
vinista sob uma mística de representar a pobreza uma condenação da parte do
próprio Deus ao indivíduo. Mitos brasileiros como a glorificação lírica da “casa do
caboclo” é o que dignificam: a pobreza quando limpa, saudável, honrada. E não a
degradada pela doença ou vizinha da miséria, como a de certas - não de todas -
favelas ou mucambarias.
A consciência, crescentemente característica do brasileiro, de ser antes glo­
balmente uma metarraça que uma sociedade dividida por origens raciais ou por
■•

traços raciais, é um daqueles fenômenos sociais totais de qúe falam sociólogos


franceses, um deles Georges Gurvitch, Com ele se relaciona o também crescente
amorenamento da população brasileira em virtude de expansão da miscigenação

1 - lEm torno das três engenharias —afisica, a humana, a social... - [09


como processo bíossocial, ao qual não se pode negar o qualificativo de social­
mente democratizante, A população brasileira é cada dia mais uma população
caracterizada por vários graus de morenidade, a palavra “m oreno” tendo sofri­
do no Brasil uma revolução semântica: designar, num extremo, brancos do tipo
conhecido como brúñete; noutro extremo já inclui até negros de todo pretos.

Todos morenos. Morenos de vários graus porém todos brasileiramente morenos.


Sociodemocraticamente morenos. Uma morenidade, essa da gente brasileira, que
é uma como resposta brasileira - resposta socialmente democrática - a segrega-
cionismos antidemocráticos como o representado pela mística da negritude ou
pela da amarelitude ou pela da arianitude.
Em vão sociólogos brasileiros arcaicamente marxistas ou comunistas procu­
ram dar aparências científicas à tese de que estão para se acentuar no Brasil, entre
grupos para eles em ascensão, consciências de raça negra em revolta contra do­
minadores brancos, A trama é evidente: a confusão, de fins comunizantes, de luta
entre raças com luta entre classes. Trata-se de um empenho que não faz honra à
honestidade de tais sociólogos, não sendo raros os marxistas mais objetivos no seu
trato do assunto que aceitam como validamente sociológica, além de antropoló­
gica, a interpretação da situação brasileira como metarracial e do amorenamento
da população do Brasil como um processo biossocial com implicações susceptíveis
de ser consideradas socialmente democratizantes.
Destaque-se ser esta a conclusão a que acaba de chegar o correspondente, no
Brasil, do Frankfurter A llgemeine Zeitung, Martin Gester, depois de estudo objeti­
vamente crítico do assunto. Encontrou no Brasil preconceitos raciais: e ninguém
os nega. Mas, sobrepujando-os, uma tendência irrecusável para objetivos que ele
próprio, observador alemão, considera ligados a urna democracia racial. Pelo que
repele a tese de sociólogo paulistano, com relação ao assunto, talvez desvairado,
e até como marxista militante (no que não há desdouro nem vitupério) paulista
desconhecedor do Brasil no seu todo: a de ser a atual sociedade brasileira “uma
sociedade de brancos para brancos”. Para o analista alemão, quem chega a afirma­
tiva assim enfática é “vítima de seus desejos”; identifica uma, para ele, desejável
negritude no Brasil com uma também, para ele, desejável revolução: revolução,
acrescente-se, a uma moda arcaicamente marxista. Pelo que os brasileiros esta-
«i

riam “em vias de tomar realidade uma democracia racial sem equivalente em

iro - ^Homens, Engenharias e ^Rumos Sociais - Çilberto Ereyre


nenhum país até agora’1. O modelo dessa democracia que sendo racial é também -
acrescente-se ao observador alemão - abrangentemente social, é “um modelo
que, apesar das invectivas, está provavelmente tão adiantado que dificilmente
poderia falhar”, E repara o observador europeu: “Os negros pobres protestarão
não porque negros mas porque pobres - jünto com seus vizinhos brasileiros”.
Quando há vários anos, o então presidente da Arena, o sempre atento a
problemas sociais, Filinto Müller, solicitou de cientistas sociais do Recife - do
• m

Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais - que concorressem com sugestões


de caráter social para um programa mais amplo do partido sob sua orientação,,
abordarem esses cientistas sociais a necessidade de valorizar-se o mais possível,
no Brasil, inclusive através da ação política, o que seja - no plano de valores - a
valorização de “integração socialmente democrática”. Para essa integração social-
mente democrática, sugeriram então que muito vem concorrendo a miscigenação
como processo biossocial. E junto com esse processo biossocial aquela interpene­
tração de culturas, em suas origens ligadas a etnias, e também, em suas projeções
de caráter como que orgânico, capaz de concorrer, no Brasil, para sua cada vez
maior integração socialmente democrática. Daí termos salientado a importân­ m

cia da assimilação, já adiantada entre nós, por um cristianismo já inconfundivel­


mente brasileiro em seu modo de ser religioso-social, de valores vindos de outras
fontes de religiosidade. O brasileiro chega a ser místico em sua religiosidade que,
entretanto, é uma religiosidade aglutinantemente, não só na sua maneira de fazer
seus próprios santos confraternizarem com os homens, como se fossem padrinhos
ou compadres dos crentes, como de ignorar barreiras de raça ou de classe nos
cultos, nas adorações, nas comemorações, além de litúrgicas, populares, festivas,
fraternas, não só tradicionalmente católicas, como evangélicas, espiritistas, um-
bandistas, animistas: nenhuma dessas expressões religiosas sofrendo, entre nós,
daqueles impactos socialmente segregadores que, noutros países, têm se mani­
festado através até de cristianismos divididos por preconceitos ou barreiras de
raça ou de classe. De quem é, no Brasil, Nossa Senhora da Aparecida senão de
todos os seus devotos, à revelia de origem racial ou de situação social? Há lou­
ros para quem Sao Benedito, adorado no Brasil como preto, é b santo predileto.
Com o capuchinho Félix se identificaram não poucos brasileiros do Nordeste por
enxergarem nele um “amarelinho” franzino, pálido - ecologicamente pálido -

l- m tomo das três engenharias —a f í s i c a a humana, a social - I ZJ


t

e resistente, confirmado, como está hoje, por estudos científicamente idôneos de


biologia humana, de que a cor ideal para a gente do trópico não é a alva nem a
rósea mas a morenamente amarelada.
Já se observa da miscigenação que, no Brasil, viria do próprio início de uma
sociedade pré-nacionalmente brasileira, tendo agido, desde então, no sentido de
moderar o que surgisse entre nós, país desde aqueles começos senhorial-servil nos
i*
seus extremos, como obstáculo a um desenvolvimento, favorecido por tal estru­
tura de luta de classes dentro do conceito marxista desse tipo de conflito social.
A miscigenação se operou, no Brasil patriarcal, misturando o senhoril ao servil.
Dando, em vários casos, permanência a uniões amorosas e até conjugais entre
pessoas originárias desses extremos sociais.
Pode-se observar que se se desenvolveu na sociedade pré-brasileira pa­
triarcalm ente condicionada com projeções sobre a já nacionalm ente brasi­
leira, mas ainda patriarcal, quer a continuar, em algumas áreas, até quase os
nossos dias, uma tendência endogâmica quer na camada senhoril da mesma
I l

sociedade, quer na servil - principalm ente na senhoril com os frequentes c a ­


samentos de primos com primas e de tios com sobrinhas, tendência oposta
também se desenvolveu paralelam ente em sentido exogâmico, com aquelas
uniões de pessoas da etnia e da classe senhoris com pessoas de etnias e de
classes servis. Quebraram -se assim, em não poucos casos, barreiras de raça e
de classe, contrárias a uma dem ocratização social que se não corrigisse, atenu ­
asse, como atenuou, o que havia de aristocratizante numa sociedade agrário-
patriarcal, como foi a que, à base de monoculturas latifundiárias, tendo por
substâncias sucessivamente imperiais, o açúcar, o ouro, o café e o gado, juntou
a uma estabilidade econôm ica, a social.
Pode-se assim surpreender nos começos de uma sociedade brasileira, em ter­
mos ainda pré-nacionais ou coloniais, a presença de urna tendência democrati­
zante dessa sociedade, através da miscigenação: força até certo ponto desconhe­
cida no Brasil, de barreiras de classe, e não somente de raça, de que não cogitou
Marx; e cuja influência Gobineau não chegou a estimar em suas observações, de
pouca popularidade, do aspecto racial, que tanto o impressionou, da formação so­
cial ou socioeconómica do Brasil. Aspecto, entretanto, importante. Sociologica­
mente importante. Antropológicamente importante. E, em suas projeções sobre

112 - y-íamens, Engenharias e latimos Sociais - Çilherto Ereyre



I
futuros sociais, capazes de uma tendência aristocratizante nessa formação ter sido
acompanhada por um seu contrário: o socialmente democratizante.
Outro paradoxo na formação social do Brasil, encarada, inclusive, em as­
pectos classificáveis como expressões de engenharia social, foi o de a tendência
da organização patriarcal de economia e de família exigir populações em grande
parte sedentárias, presas às cas as-grandes e até presas às senzalas, a outra parte
de tais populações - agregados, moradores - ter se permitido relativa mobilida­
de, além de horizontal, vertical, esta através da liberdade do indivíduo mudar
anárquicamente de ocupação, de ofício, de profissão, ao mudar dé local ou de
espaço. Liberdade cujo uso posteriormente tanto se acentuaria, entre brasileiros,
apesar de sobrevivências, no Brasil colonial, daquelas fixações como que medie­
vais em Portugal, de indivíduos em ofícios ou artes que, na estrutura medieval, os
protegiam: ferreiros, tanoeiros, sapateiros. No Brasil esse medievalismo sobrevi-
veria especialmente em irmandades como que sindicais sem que, ao que parece,
o sindicalismo assim religioso se exprimisse num mais efetivamente social de fi- t

xação de status profissional ou de atividade ocupacional. Enquanto a mobilidade


horizontal, num país da vastidão do Brasil, facilitaria a democratização social,
permitindo ao itinerante mudar de status socioeconómico e até de status étnico. A
análise sodoantropológica de anúncios de escravos fugidos em jornais brasileiros
permite-nos surpreender casos até de escravos - quando bem-sucedidos nas suas
fugas - que, a julgar por característico apresentado pelos seus senhores desejosos
de que fossem capturados, dificultariam a estranhos identificá-los como escravos
e até, em certos casos, como negroides. Assim capazes de, em locais afastados
daqueles de onde fugiam, passarem por indivíduos de status social e etílicamente
superior ao verdadeiramente seu, é fácil de supor que alguns desses1evadidos con­
seguiam ao mesmo tempo que arístocratização de status em termos individuais,
democratização social de sua etnia e de sua classe, E o que teria ocorrido com
. escravos fugidos é lícito supor ter ocorrido com pessoas livres, de origem modesta,
através, de uma mobilidade horizontal favorável à vertical. Favorável a ascensões
sociais, através de aptidões pessoais e individuais, que ocorrem em sociedades de
•t

algum modo flexíveis e nunca nas de todo fechadas ou estratificadas.


É uma flexibilidade que, se tem faltado ao Brasil social ou socioeconómico,
essa falta não vem correspondendo a ausências absolutas de oportunidades para

i - cEm tomo das três engenharias - a física, a h-utnana, a social.,. - 113


ascensões sociais. Ascensões através de títulos acadêmicos ou de estudos superio­
res. Através de profissões. Através de saberes. Através de personalidades atraen­
tes. Através de talentos como que imponentes. Através de casamentos.
Parece encontrar o Brasil - no patriarcal e no pós-patriarcal - matéria para
talvez todo um novo capítulo sobre elites: enriquecimento das endogamias por
acessos, às suas vantagens, por meios exogâmicos, de elementos vindos de agen­
tes convencionaímente comuns porém dotados de característicos incomuns de
personalidade, de talento, de saber. Não são poucas as famílias endogamicamente
patriarcais e de prol, tanto no Brasil cafeeiro como do canavieiro, que acessos de
elementos valiosos vindos de agentes assim comuns democratizaram por vezes
eugenicamente, anim ando-as de vitalidades e aptidões talvez em declínio ou em
crise entre elas. Mas ao mesmo tempo que realizando essas alterações de ordem
mais biológica que social, constituindo exemplos expressivos, no plano social, da
receptividade de tais elites a fluxos democratizantes. Exemplos de certa vocação
brasileira para formas de democratização de uma estrutura social: vocação pre­
sente tanto nas culminâncias como nas bases como que plebeias dessa estrutura.
Se é certo que es.se processo bivalente - ao mesmo tempo que aristocrati­
zante, democratizante - parece ter operado mais no Nordeste e no Norte que
no Sul do Brasil outrora patriarcal e, há anos, pós-patriarcal, suas projeções vêm
atingindo o S u l Não faltam, com efeito, as famílias de prol do Sul do país, através
dos sangues ancestrais recebidos de famílias do Nordeste da Bahia, de Pernam­
buco, das Alagoas, vestígios na sua morenidade oriunda de sangues não europeus
acrescentados mais no Nordeste e no Norte do que no Sul, nos sangues predo­
minantemente europeus. Vários os exemplos de Saldanhas Marinhos como os de
Prados, de Albuquerque Lins.
Pode-se sugerir que não é só nas Forças Armadas que, no Brasil, as elites es­
tão sendo em sua grande maioria recrutadas da classe média e da chamada classe
baixa: também noutras atividades.
A crescente-se que estão a verificar-se ascensões da classe chamada baixa à
média quase despercebidamente. Sei de vendedores de feiras, vindos do interior
para cidades como o Recife e Fortaleza, de sandálias de couro cru e fumando ca­
chimbo de barro, gente saída daquela camada proletária de população rural que é
não só a sertaneja, como a matuta ou a caipira, denominada por alguns pedantes

ri4 - Jíomens, Engenharias e Etimos Sociais - Qilberto Ereryre


“camponesa” ou a que, continuando vendedores de feira, têm filhos estudando,
por sua conta, em escolas superiores - de medicina, de engenharia, de direito - e
até no estrangeiro. Filhos já integrados em elites dessa espécie. O que vem acon­
tecendo com os filhos de crentes evangélicos, alguns desses crentes analfabetos,
que, instruídos em escolas evangélicas, estão se tornando profissionais e, como
profissionais, juntando-se a elites de classes médias ou a classes médias. De modo
que a crescente proletarriação das gentes médias, proclamada como inevitável,
no Brasil, por marxistas de todo abstratos no seu modo de sentenciarem sobre
coisas brasileiras, se está ocorrendo em algumas áreas, noutras o fenômeno é de
sentido Oposto: no da desproletarização em benefício do avigoramento das classes
médias. E, com esse avigoramento, está se avigorando também, entre nós, uma
democracia social para a qual o brasileiro, repita-se que parece predisposto desde
velhos dias pré-nacionais, apesar do confronto, em algumas áreas, diretamente
# 1

de escravos com senhores quase sem intermediários socioeconómicos. O que


importaria numa predeterminação do prolongamento absoluto desses contrários
se a interpretação sociológica da história humana, em geral, e da brasileira, em
particular, fosse de validade abstrata e não a superada pelas interpretações hege-
lianas e pós-hegelianas. Pois que o certo é que se pode falar em futuros humanos
fora do conceito de futuros de todo predeterminados: supostamente predeter­
minados. Existem em grupos sociais vocações em divergência com os estilos de
relações socioeconómicas aparentemente de todo dominantes em épocas dentro
das quais, entretanto, suas próprias contradições comprometiam futuros também
aparentemente lógicos. Note-se que só a vocação democrática no Brasil cedo
venceu rumos de sentido segregador: os de irmandades religiosas só para bran­
cos, umas, outras só para pardos, outras, só para pretos; os de escolas de jesuítas
com segregações semelhantes proibidas no século X V II pelo rei de Portugal; os
••

de locais de residência só para este ou aquele tipo socioeconómico ou étnico de


população. A vocação socialmente romântica do brasileiro a destruir esses rumos
socialmente segregadores.
Acentue-se a importância que tomou, na sociedade ainda patriarcal do Bra-
•■

sil, a instituição do compadrio como evidência da vocação do'brasileiro para uma


democracia social à sua maneira. Instituição que permitia ao compadre pobre
ou rústico sentar-se à mesa do rico e elegante como se fosse da família. Que lhe

i - rizm tomo das três engenharias —a física, a humana, a social,, - ng


pèrmitia falar livremente com o rico e senhorial. Que colocava ao afilhado sob
um amparo quase paternal do padrinho, através desse amparo verificando-se a
educação do afilhado e, por meio da educação assim amparada, sua ascensão so­
cioeconómica. Mais de um afilhado de origem humilde e por vezes menino de cor,
#\
4

filho ou neto de escravo, à sombra do compadrio chegou a posição socialmente


brilhante. O compadrio agiu, ou tem agido, extensa e efetivamente a favor da
democratização social do Brasil.
Tal a sua amplitude que incluiu a democratização nas relações de crentes
IR

católicos com seus santos, com Nossa Senhora, com o próprio Cristo. Com Nossa
Senhora, madrinha de muito menino, com São José, compadre de muito marce­
neiro, com SandAna, comadre de muita lavadeira. Extensíssima a ação social-
mente democratizante dessa instituição, tão mais consagrada, no Brasil, pelo cris­
tianismo popular que pelo catolicismo de Igreja ou pela Igreja clerical.
Repare-se que aos próprios recolhimentos de órfãos, no Brasil patriarcal, po­
de-se atribuir uma ação socialmente democratizante, através da educação dada a
recolhidos de precedências étnicas e socioeconómicas diversas e que os preparou
para se integrarem na sociedade até como profissionais dos chamados liberais. De
alguns se sabe terem atingido socioeconómicamente posições elevadas.
Dos registros de faculdades brasileiras de ensino superior constam não pou­
cos casos de filhos de pais incógnitos.
Estudos de biologia humana revelam que, no tipo médio de nordestino de
origem proletária ou procedente de pequena classe média que vem, nos últimos
anos, migrando para o Sul, a predominância de sangue caucásico é de 65%, o
demais sendo constituído por sangues tropicais: negro ou ameríndio. Tal predomi­
nância caucásica evidente será maior no nordestino de classe média e sobretudo
de classe média alta, sem dessa categoria se excluir o exclusivo caucasoide por ve­
zes louro e de olhos azuis. Nordestino, os dessas categorias, muito menos presente,
L
nas migrações do Nordeste para o Sul ou o Centro-Sul.
Atente-se, entretanto, no seguinte: quer o nordestino migrante vem, nos
últimos anos - decênios, até ~ levando a morenidade nordestina para essas outras
regiões brasileiras, notáveis pela predominância nas suas populações de deseen-
v
dentes em gerações imediatas de alemães, de italianos, de poloneses. Sabe-se que
dos migrantes nordestinos para essas regiões vários vêm sendo jovens valorizados

- omens, "Engenharias e Eumos Sociais - Çilberto Ereyre


9
pela sua formação de técnicos médios, tão reclamados pelas indústrias paulistas.
Dessa circunstância vem resultando, para numerosos desses jovens, imediata as-
censão socioeconómica nos para eles novos meios nos quais se vêm integrando:
ascensão acompanhada, em vários casos, de suas uniões ou dos consórcios com
filhos daqueles neobrasileiros puramente caucásicos. Essas ascensões socioeconô-
1

micas e a esses consórcios inter-regionais de morenos com sangues não europeus


acrescentados aos europeus com louros de sangues europeus podem ser consi­
deradas consequências significativamente sociais: (1) os migrantes nordestinos
virem, no Centro-Sul, especialmente, se elevando socioeconómicamente; (2) os
migrantes nordestinos fixados no Sul ou no Centro-Sul virem concorrendo para o
alastramento, no Brasil, de uma morenidade que tendendo a ser abrangente pode
ser classificada como democratizante no sentido de ser, nos seus efeitos - inclusive
os estéticos - igualitariamente abrasileirante: dissolvente de barreiras entre tipos
socioantropológicos regionais.
Uma das evidências de que, no nosso país, a democratização que alguns ana­
listas denominam racial e outros preferem classificar como metarracial, e que vem
implicando um crescente amorenamento da população nacional, é um processo,
em vários pontos, coincidente com o de democratização social. De democratiza­
ção social e de integração nacional. Note-se, a propósito, que o amorenamento
aqui destacado vem se fazendo notar por uma nada insignificante valorização
estética da pigmentação abrangentemente descrita como morena. Tal é essa va­
lorização que é voga, há anos, a brasileira alva e loura procurar amorenar-se ao
sol das praias. O que não significa insinuar-se que a brasileira loura e alva do tipo
da encantadora Vera Fischer deixe de atrair a admiração estética dos seus compa­
triotas, mesmo porque as Veras, por mais louras, são, nos seus modos de sorrir e de
andar, equivalentes das brasileiras predominantemente morenas.
Num mundo em que continua a haver lutas religiosas entre católicos e pro­
testantes, como as que vêm ensanguentando a Irlanda ou discriminações so­
ciais por motivos religiosos, como na Holanda, de protestantes com católicos e
choques entre cristãos, judeus e maometanos, no Oriente Médio, além de cruas
• *•

guerras entre raças como a que aflige a África do Sul e de forma larvada conti­
nua a separar, nos Estados Unidos e nas Rodésias, negros de brancos, e até, com
menor violência, na Bélgica, entre valões e flamengos, o Brasil, com inegáveis

r- tomo das três engenharias - a física, a humana, a social,,. ll7 -


■f-

deficiências, se apresenta como uma já avançada aproximação - a mais avan-


çada de quantas possam ser sociologicamente identificadas - de um tipo satis­
fatório de democracia racial a que se liga um já, a vários respeitos, expressivo e
até vigoroso começo de democracia social Social mais por vocação do que por
ordenação planejada. Ou ordenada de tal modo que viesse se desenvolvendo
subordinada a uma democracia economicamente estatizada, com sacrifício, no
plano econômico, de liberdades de iniciativa no plano cultural, de criatividade
e de espontaneidade. O que os brasileiros vêm aceitando como socialmente de­
mocrático, em ligação com atividades econômicas, é a intervenção do Estado a
favor dos consumidores - a grande parte da população nacional - e contra abusos
de grupos economicamente absorventes; a favor de pequenas e médias empresas
e contra exorbitâncias das grandes. Não poucos são os brasileiros preocupados
atualmente com o que, no plano do desenvolvimento econôm ico-social, pode
ir aquele extremo há anos apontado pelo professor Hayek, no livro The Road to
Serfdom : o de, para atender-se a motivos de eficiência técnica - na organiza­
ção econômica, através do poder interventor do Estado - , sacrificar-se aquela
igualdade de oportunidades para os brasileiros, tão do que seja democracia po­
lítica como democracia social ou democracia econômica. Poderia dizer-se que à
justificativa da intervenção do Estado na esfera econômica - que pode ser tão
socialmente democrática, quando a favor do interesse público - e social, não se
compreende, dentro de uma concepção socialmente democrática das relações do
Estado com a comunidade, que a razões dessa espécie se anteponham as de um
planejamento atento apenas a interesses tecnológicos e estes somente econômi­
cos: econômicos à revelia dos fundamentalmente sociais. Conflitos que podem
existir. Que podem resultar em sacrificios de interesse público a vantagens de or­
dem exclusivamente econômica, que seriam favorecidas pelo Estado como poder
interventor na esfera econômica; e favorecidas por vezes em benefício de grupos
também econômicos, outras vezes, em proveito do que no próprio Estado sejam
objetivos de política exclusivamente econômica, à revelia de outras políticas.
.1*

Daí Alderton Pink, ao considerar a necessidade, em obra clássica, de revita­


lizar-se a concepção democrática de vida ou de organização nacional, em face dos
excessos, supostamente sempre válidos pelas suas consequências em termos de
eficiência, dos sistemas totalitários, com as intervenções absolutas do Estado na

18 - J-fomens, Engenharias e T^umos Sociais - Qilherto Ereyre


vida nacional» dispensar tanta atenção aos possíveis conflitos, em comunidades
de feitio democrático, entre o que seja planejamento empaticamente econômico
e igualdade de oportunidades em termos democraticamente sociais. A seu ver,
esses termos são inseparáveis de uma motivação ética nas inter-relações entre os
interesses que constituam o conjunto de interesses nacionais, numa comunidade
que siga inspirações democráticas. Daí lhe parecer necessário que as operações de
planejamento, em geral orientadas principalmente no sentido de promover-se efi­
ciência tecnológica e, com ela, conseguir-se êxito, por vezes, apenas econômico,
não se processem à revelia daqueles valores de convivência intranacional carac­
terísticos de um sistema democrático de vida nacional. Característicos eminente­
mente de uma democracia social: inclusive do que, numa democracia desse tipo,
precise de ser igualdade socialmente democrática de oportunidades aos vários
grupos regionais que constituam um conjunto nacional. Igualdade de oportuni­
dades - acrescente-se - que, num Brasil tão avançado, sob certos aspectos, como
democracia racial, precisa de incluir, mais do que está incluindo, a presença em
altos cargos administrativos, políticos, militares, diplomáticos, de brasileiros de
origem negro-africana. Se no ministério Figueiredo figurou, com inteira justiça,
um brasileiro ilustre de origem asiática, e nem por isso menos culturalmente bra­
sileiro, por que não outro, de origem africana, numa nova demonstração evidente
de ser o Brasil, como democracia social em desenvolvimento, um país em cujas
elites mais representativas de vida nacional figuram expressões do que se vem
denominando uma metarraça brasileira?
Pode o Brasil ufanar-se do fato de serem suas Forças Armadas tanto quanto,
atualmente, seus partidos políticos e, na própria Igreja católica, seu clero, abertos,
em grande parte, a brasileiros de origens sociais e de procedências étnicas diver­
sas. O ex-ministro do Exército, general Fernando Belfort Bethlen, destacou o fato
de os oficiais do Exército brasileiro serem, atualmente, na sua composição social,
•“

10% apenas de classe alta, 69% de classe média e 21% da classe chamada baixa,
devendo-se observar que através das Forças Armadas - Exército, Marinha, A e ­
ronáutica - numerosos jovens brasileiros, por elas beneficiados com treinamento
■»

técnico adaptável à vida civil - o que é certo também dos preparados pelas escolas
técnicas - , estão passando da classe chamada baixa ou proletária para a média.
As elites brasileiras, desenvolvidas nesses vários setores é como, de modo geral, se

í - ‘fcm tomo das três engenharias - a física, a humana, a social... - uç


vêm brasileiramente constituindo: com elementos, nas suas procedências social e
étnicamente diversas, dos “baixos” aos “médios” e diversos, com os médios vindo
a predominar. O que faz das Forças Armadas brasileiras a completa negação de
castas militares. Pois elas são, sem nenhuma retórica, povo. Nos seus comandos,
combinações de povo e elite. E dos atuais partidos democráticos, cada um, à sua
maneira, vêm se revelando pelas suas mais inteligentes orientações atentas a soli­
citações de democratização social do Brasil e não somente a interesses eleitorais.
Ainda a propósito de elites, saliente-se que nada há de sociologicamente an­
tidemocrático, seja qual for a democracia em particular que se considere —políti­
ca, econômica, social - em deixar-se um grupo democrático orientar-se por elites
contanto que elas resultem de iguais oportunidades de ascensão às lideranças a
todos os componentes do grupo. Ao contrário: cabe às democracias requintarem-
se, até, na utilização e na valorização dos indivíduos, nos grupos que as constitu­
am, de aptidões, de talentos, de saberes adquiridos, mais capazes de concorrerem
para o bem comum. Mais: cabe a uma democracia moderna aprimorar seus meios
psicossociais de descobrir e, descobertos, ainda crianças, dispensar-lhes os ampa­
ros devidos, seus supradotados, seja qual for sua origem étnica, regional, socioe­
conómica. Dispensando cuidados imediatos aos filhos de famílias de baixa renda.
Acompanhando-os nos estudos. Antecipando providências para seu aproveita­
mento em atividades valiosamente nacionais e superiormente representativas da
inteligência nacional. Da inteligência nacional como elite não artificialmente for­
mada ou imposta à coletividade através de privilégios injustos, porém vindas de
todas as raízes do conjunto. Insisto em dizer elite, pois quando assim qualificado
me parece a palavra justa. Certa demagogia vem procurando torná-la expressão
do que possa haver de mais social e politicamente democrático. É, por vezes,
uma demagogia que se empenha em exaltar virtudes de sistemas aparentemente
socialistas e aparentemente democráticos, mas na verdade totalitários, como que
esquecida de que nesses sistemas vigora o extremo poder de elites, através de
superburocratas; esquecida também de que nesses sistemas se vem últimamente
dispensando o máximo de atenção ao aproveitamento de supradotados, contanto
que suas vocações sejam para as matemáticas e as ciências físicas e naturais.
Qualquer das democracias particulares das três que formam ou constituem
a geral, é uma democracia necessitada de inteligências e de saberes a seu serviço,

- 1Homens, ^Engenharias e 'Rzmos Sociais - Ç liberto "Trey re


sem que isto importe em desprezar-se aquele bom-senso ou aquela intuição tão
da gente chamada comum e, por vezes, nessas suas expressões de sensibilidade
em face de problemas nacionais, tão digna de ser ouvida e até consultada. Ouvi­
da até quando analfabeta. Quando se exprime pela boca dos cantadores de feira.
Pelo humor crítico dos poetas populares. Pela voz das donas de casa. Pela dos
estudantes mesmo quando ainda imaturos: a imaturidade por vezes se antecipa,
por intuições, à maturidade. Pela dos crentes das várias igrejas que hoje flores­
cem no Brasil: entre gente de tanta religiosidade e até de tanta vocação mística
çomo a brasileira. Gente tão insistentemente mística que em face de uma Igreja
católica, pelo seu alto clero, crescentemente racionalista, vem desenvolvendo,
quase à revelia desse clero, seu lírico, socialmente confraternizante, cristianis­
mo. São vozes, as assim popularmente, telúricamente, brasileiras, de crentes, que
precisam ser ouvidas ao lado das dos cardeais, bispos, sacerdotes, pastores, talvez
até rabinos, dos chamados progressistas que já possivelmente não representam
de todo esses outros crentes, vários deles tão sinceramente religiosos e não au­
ténticamente brasileiros. São elementos, todos esses, que junto com as gentes de
trabalho - as dos campos e as das cidades, estas nas indústrias, nas fábricas, nas
oficinas —com os artesãos, com os intelectuais, com os técnicos de vários graus,
constituem, do ponto de vista de uma democracia a um tempo política, econô-
fc . i »

mica e social, a ampla reserva, a diversificada fonte daquela pluralíssima energia


humana que não ouvida, não atendida, não interpretada, não promovida, sem
iguais oportunidades para suas diferentes expressões, deixariam os seus dirigen­
tes desgarrados dos dirigidos; na situação de remadores que remassem no seco;
sem água bastante para navegarem; com a chamada nau do Estado encalhada
sobre a areia ou sobre as pedras.
Pois a chamada nau do Estado, para navegar, precisa daquelas águas vivas,
nas aventuras chamadas numa como antecipação de serem essas águas, segun­
do interpretações freudianas, símbolos do que é fecundamente materno. O que,
sendo exato, daria à democracia na sua expressão especificamente social - a mais
ligada à condição humana, à vivência humana, à convivência humana, no Brasil,
à própria ligação ecológica dessa vivência com a terra e com a natureza tropi-
M

cais - uma irrecusável importância no condicionamento de orientações nacionais


em face de circunstâncias internacionais. Orientações que, no caso particular do

r- torno das três engenharias —a física, a humana, a social... - I2Í


Brasil, o habilitam a resguardar-se de infiltrações e de ameaças vindas do exterior
através de agentes que podem fantasiar-se por vezes de nacionais. E contra os
quais é preciso que estejam atentas, com as Forças Armadas, todas aquelas forças
construtivas, democrática e socialmente nacionais.
Não poucas vezes me perguntam qual, a meu ver, a mais simpática interpre­
tação estrangeira do que venho escrevendo, sobre o Brasil, quase sempre orien­
tado por uma nítida sensibilidade ao fato de vir o nosso país se constituindo em
avançado começo, superior sob vários aspectos, de uma democracia ao mesmo
tempo social e m etarracial Creio que a de Blaise Cendrars. Que me disse o in-
«

signe suíço, tão conhecedor do mundo do nosso tempo, desses meus escritos que
eu possa citar sem resvalar em excesso de deselegância? Que seriam, em qualquer
parte do mundo “uma maneira totalmente nova de escrever história, fazendo par­
ticipar o povinho, gente de cor, caboclos, mestiços... na formação da nação, na
formação da família brasileira...” Este o pronunciamento nada mais, nada menos,
de Blaise Cendrars. Creio que ele reduz muito o que possa haver de oposto em
recente opinião sobre o mesmo assunto de um livre-docente da aliás ilustre Uni­
versidade de São Paulo, isto é, que tais escritos seriam uma interpretação senho­
rial da formação brasileira. Senhorial no sentido de desatenta ao que, nesta nova
abordagem do assunto, o autor considera “uma vocação do Brasil para uma forma
brasileira de democracia social”. A vocação do brasileiro para uma forma nacional
de democracia social, o que parece não vir faltando, é apreço por valores quali­
tativos, porventura mais estimados que os maciçamente quantitativos. Mas não
«é

consta das democracias que para se diferenciarem de outros tipos de organização


social precisem de desprezar os valores qualitativos.
Para o desenvolvimento da democracia social - um desenvolvimento qua­
litativo em correspondência a outro quantitativo - num país como o Brasil,
é

muito podem concorrer, atualmente, aqueles serviços extensos de previdência


social ou tendentes a estender o bem -estar social, que atinjam não pequenos
grupos, segundo este ou aquele critério discriminador, porém populações num e­
rosas. Isto, através de iniciativas que, beneficiando populações assim num ero­
sas, deem-lhes igualdades de oportunidade quanto a medidas de saneamento,
de higiene, de assistência m édico-social regular, de assistência técnica para m e­
lhor utilização do solo, disponibilidade e tratam ento da água, empregos, salários

122 - iHomens} ‘Engenharias e liam os Sociais - Çilherto Treyre


adequados, comercialização de produções. Medidas que, prestigiadas por aquela
informática adequada que desperte, para a eficiente execução dessas medidas, a
participação da própria gente beneficiada, correspondam àquele planejamento
de extensão de bem-estar social e de interiorização de suas iniciativas, proposto
pelo então secretário de Assistência Social, Marcos de Carvalho Candau, do
Ministério de Previdência e Assistência Social. Que não seja esquecido, porém,
o que atualmente se está fazendo no Brasil, através do Exército, da Marinha,
" 0

da Força Aérea, de serviços sociais como o da Federação das Indústrias e o da


Federação do Comércio, num sentido social capaz de reforçar o que consta da
proposta Candau. Impossível, sem essas medidas e iniciativas correlatas, dar-se
à democracia social entre nós aqueles apoios de modo algum de aspecto bene­
ficente ou de feitio caridoso; e sim obrigações dos que podem promovê-las para
com aqueles que têm pleno direito a recebê-las.
Observe-se, a propósito de medidas de previdência social poderem tomar,
como foram tomadas no notável governo Ernesto Geisel, um caráter fraternalis-
ta em vez de paternalista, que do mesmo caráter, como ciência social aplicada,
vem sendo a obra que realiza, desde sua criação em 1949, o Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, através, quer de
indagações científico-sociais em tom o - um exemplo - da poluição de rios bra­
sileiros, em virtude de despejos, nas suas águas, de fezes industriais com prejuízo
das populações ribeirinhas de gentes pobres, tratadas de forma tão socialmente
antidemocrática por privilegiados, que através da atenção dispensada pelos seus
museus de antropologia e de arte popular —reunidos pela Fundação Joaquim N a­
buco no Museu do Homem do Nordeste - a valores ligados ao cotidiano da gente
brasileira mais rústica. O que vem representando verdadeira revolução de sentido,
democrático-social na orientação museológica entre nós.

r - ‘Era tomo das três engenharias —a física, a humana, a social,,, - 123

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