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Mestrado em Psicologia Clínica e do Aconselhamento

Psicologia de Aconselhamento I

Professor Doutor Tito Laneiro.

Novembro 2021

Dibs: Em Busca de Si Mesmo – Uma reflexão crítica

Miguel Alves1

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Universidade Autónoma de Lisboa – Aluno N.º 30003244
Psicologia de Aconselhamento I
Professor Doutor Tito Laneiro

1. Introdução
O presente trabalho surge no âmbito dos elementos de avaliação da Unidade Curricular de
Psicologia de Aconselhamento I, do Mestrado em Psicologia Clínica e de Aconselhamento da
Universidade Autónoma de Lisboa. Pretende-se realizar uma reflexão crítica sobre a obra “Dibs:
Em busca de si mesmo” (Axline, 1991) à luz dos conceitos teóricos basilares da Terapia Centrada
no Cliente (TCC).
A obra descreve o caso clínico de ludoterapia não diretiva de Dibs, uma criança de 5 anos, do
sexo masculino, com fortes dificuldades emocionais e de aprendizagem reportadas pelos
professores e pais. A obra descreve em detalhe o processo terapêutico ao longo de 18 sessões
semanais de ludoterapia.
Para esta análise tomarei como ponto de partida a perspetiva de Cortez de Brito e Paiva (2012),
que referem que a Ludoterapia não diretiva de Axline se situa entre dois momentos da evolução
do pensamento de Rogers, o momento da terapia não diretiva e um momento posterior, de uma
terapia já denominada centrada no cliente, a fase reflexiva da teoria de Rogers. Estas autoras
defendem que Rogers e Axline teriam abordagens similares, baseadas em pressupostos muito
semelhantes, mas que ainda assim não seriam totalmente coincidentes. Relativamente aos
pontos de contacto entre as duas posições, Rogers e Axline, propõem que a terapia deve
proporcionar ao indivíduo uma relação não diretiva, em que o cliente decide o caminho a
percorrer e assim se torna ele o centro do processo, em vez de o foco serem os sintomas que
apresenta (Rogers, 1942; 2005; Axline, 1947; 1984 citados por Cortez de Brito e Paiva, 2012).
Para ambos os autores o terapeuta deve confiar plenamente na capacidade de crescimento
autodirigido do indivíduo e a terapia deve promover libertação, autorresponsabilidade e
maturidade (Rogers, 1942; 2005; Axline, 1947; 1984 citados por Cortez de Brito e Paiva, 2012).
Destaco ainda que ambos os autores incluem na sua teorização a necessidade dos terapeutas
serem calorosos, afetivos, terem uma visão positiva incondicional do cliente mas ao mesmo
tempo serem capazes de estabelecer uma relação com limites muito bem definido e explícitos
(Cortez de Brito e Paiva, 2012). Outro ponto de contacto é a necessidade de criar um ambiente
de permissividade e não julgamento, no que toca à expressão de sentimentos do cliente (Cortez
de Brito e Paiva, 2012). Estas autoras referem ainda que tanto Rogers como Axline defendem
que o terapeuta deverá dar respostas ao cliente de compreensão empática que o ajudarão a
compreender-se melhor (Cortez de Brito e Paiva, 2012).
Relativamente a eventuais diferenças as autoras referem que Rogers apoia uma designação
“terapia não diretiva” enquanto Axline defende uma designação que explicita um papel mais
ativo do cliente, “terapia autodiretiva”. É ainda referido que Axline não enfatiza como condição
suficiente e necessária a incongruência do cliente (difícil de operacionalizar em crianças) ao

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contrário de Rogers. Por último é referido que, Axline defende que, a terapia da criança pode
ocorrer com eficácia mesmo que a família não se envolva no processo, já Rogers considera
importante que a família possa participar no processo terapêutico (Cortez de Brito e Paiva,
2012).
No presente trabalho pretende-se analisar a congruência da prática clínica de Axline, no caso
exposto na obra, aos pressupostos teóricos da terapia centrada no cliente de Rogers e
seguidores. Serão analisadas apenas as intervenções da ludoterapeuta com o seu cliente Dibs e
não descrições de intervenções com outros clientes, exclui-se por exemplo a análise das
intervenções nos atendimentos à mãe de Dibs, também descritos na obra. Serão analisados os
seguintes conceitos: Tendência Atualizante, Não Diretividade, as seis condições necessárias e
suficientes para a mudança terapêutica, contacto psicológico, incongruência do cliente,
congruência do terapeuta, olhar positivo incondicional, compreensão empática e apreensão
pelo cliente destas atitudes do terapeuta, limites à relação terapêutica e desenvolvimento
terapêutico.
Como hipótese propõe-se que existe uma grande congruência dos pressupostos subjacentes às
intervenções da terapeuta com o seu cliente Dibs, aos conceitos teóricos da TCC, apesar de
existirem diferenças claras.
Para prossecução dos objetivos propostos, será utilizada uma metodologia qualitativa. Serão
apresentados alguns conceitos teóricos da TCC e serão analisados exemplos das intervenções
da terapeuta Axline com o seu cliente Dibs (Axline, 1991), à luz desses conceitos, refletindo-se
sobre a congruência entre ambos.

2. Desenvolvimento -Análise da congruência do processo terapêutico descrito na


obra com os conceitos teóricos da TCC.

2.1. Tendência Atualizante – 1º pilar da TCC


De acordo com Rogers, a Tendência Atualizante (TA) do ser humano é uma tendência à
complexificação constante a nível orgânico, mental e emocional, da evolução da consciência, de
um nível abaixo da consciência a um nível de consciência cósmico (Rogers, 1959 citado por
Nunes et al., 2018).
Todas as intervenções terapêuticas realizadas no âmbito da TCC deverão estar suportadas na
confiança na TA. Essa confiança traduz-se na colocação em prática dos outros dois pilares da
TCC, Não Diretividade e as seis condições para a mudança terapêutica.
Ao longo de toda a obra é evidente que a terapeuta evidencia esta confiança na TA, expressa
principalmente através da não diretividade e na oportunidade que é dada a Dibs para lidar com

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as inevitáveis frustrações provocadas pelo mundo à sua volta. Isto está claro no seguinte
excerto:
“-Onde está o meu patinho? perguntou. -Você está imaginando o que teria
acontecido com o seu patinho depois que o deixou no cume do monte de areia? -Sim,
respondeu zangado, virando-se para poder fitar-me. -Onde está o meu patinho?
-Você havia dito que o queria conservado no mesmo lugar em que o deixou. -Mas
alguém mais brincou aqui. […] Você acha que seria minha obrigação zelar para que
os seus brinquedos permanecessem inalterados? -Acho, respondeu. -E sinto raiva.
Raiva de você. -Não devia ter deixado que isto acontecesse. -Agora deveria fazer-lhe
perguntas mais incisivas e decisivas. -Por que? Prometi a você que os guardaria
intocados? Baixou o olhar e respondeu que não, com a voz sussurrante. -Mas você
queria que fizesse isto?” (Axline, 1991, pp. 89-90).
Talvez a forma como este confronto é realizado pela ludoterapeuta seja um pouco mais direto
do que o que aconteceria na TCC. O excerto apresentado poderá fazer lembrar uma intervenção
terapêutica no âmbito do modelo existencial (confronto com os dados da existência).

2.2. Não Diretividade – 2º pilar da TCC


O segundo pilar da TCC, a não diretividade, como referido anteriormente, tem como
fundamento a TA e é facilitada quando são colocadas em prática as três condições core,
congruência, olhar positivo incondicional e compreensão empática. A não diretividade pode ser
traduzida no compromisso que os terapeutas centrados no cliente assumem de ajudar o cliente
sem o desempoderar, permitindo um processo autodeterminado e auto empoderado pelo
cliente. A não diretividade obriga à suspensão da parte do terapeuta de todos os seus juízos e
opiniões (Brodley, 1997).
Como referido relativamente à TA, também a não diretividade está muito evidente e clara ao
longo de toda a obra, cada intervenção da ludoterapeuta evidencia uma não diretividade, ou
até uma auto-direção da parte do cliente (Axline, 1947/1984 citada por Cortez de Brito e Paiva,
2012).
Nesta obra, a não diretividade fica evidente na seguinte reflexão da autora, em que, para que
nenhuma direção seja imposta, é necessário dar uma resposta a todas as unidades de sentido
expressas pelo cliente: “Cada vez que ele inquiria sobre a denominação de um objeto, tentava
comunicar-lhe meu entendimento pela sua palavra falada. -Sim. Isto é uma cama; ou, é verdade,
é um guarda-roupa; ou, ainda, é mesmo um Coelho, confirmava. […] Papai? Questionou
erguendo o boneco. Pode ser papai, respondi-lhe.” (Axline, 1991, p. 39).

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Há um momento em que a não diretividade parece por momentos dissipar-se, quando a
terapeuta informa Dibs que os materiais que estão no armário de reserva não serão para ser
usados sem que os outros materiais já disponíveis se esgotem: “[…] voltou ao armário e começou
a examinar. Pegou todos os objetos que se encontravam na prateleira. […]. Expliquei-lhe que
havia uma jarra sobre a mesa, com material idêntico àquele já em uso sobre a mesa e que as
caixas fechadas seriam abertas e usadas na medida em que a outra estivesse terminada.”
(Axline, 1991, p. 82). Apesar do excerto denotar alguma diretividade ela não se deve a uma
divergência teórica mas a uma situação pontual de organização do processo terapêutico.
No seguinte excerto fica clara outra forma de não diretividade, a Ludoterapeuta descreve e
reflete sobre como aguarda longos minutos que Dibs entre em contacto psicológico: “Sentou-se
no chão. Olhou fixamente a casa de bonecas por um longo tempo. Não o estimulei a qualquer
atividade. Se o que desejava era sentar-se ali em silêncio, assim o faria. Deveria haver algumas
razões para agir deste modo. Queria que iniciativa de tecer os laços de nossas relações fosse
dele.” (Axline, 1991, p. 39).

2.3. Seis condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica – 3º


pilar da TCC
Nesta secção descreverei em termos teóricos as seis condições necessárias e suficientes à
mudança terapêutica e analisarei a sua presença ao longo do processo terapêutico de Dibs.

2.3.1.Primeira condição - Duas pessoas em contacto Psicológico


A primeira condição refere que duas pessoas devem estar em contacto psicológico, deverá haver
uma relação mínima entre elas para que a mudança terapêutica ocorra (Rogers, 2007). Será
impedimento a esta condição a existência de um estado alterado de consciência, por exemplo
(Nunes et al., 2018).
Nas primeiras sessões, Dibs não comunica diretamente com o terapeuta, mantém o silêncio e a
distância ou usa de um diálogo internamente dirigido, parecendo viver no seu mundo pessoal e
intransmissível, não entrando em contacto com a terapeuta. “Teremos mais 5 minutos e então
deveremos ir, avisei-lhe. Sentou-se no chão, bem em frente à casa de bonecas. Não se moveu,
nem falou.” (Axline, 1991, p. 40).
A situação descrita neste excerto parece configurar um impedimento clássico ao contacto
psicológico, significando o não cumprimento da primeira condição e o afastamento teórico da
abordagem de Axline das bases teóricas da TCC.
Nestas situações de não cumprimento da primeira condição devido ao silêncio e distância da
criança, Brites (2002 citando o conceito de Prouty, 2001) propõe um período de pré terapia em

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que as respostas de compreensão empática são semelhantes a reformulações de situação. Este
período é bastante evidente no processo de Dibs e são numerosas as intervenções de
reformulação de contacto, “Cada vez que ele inquiria sobre a denominação de um objeto,
tentava comunicar-lhe meu entendimento pela sua palavra falada. -Sim. Isto é uma cama; ou, é
verdade, é um guarda-roupa; ou, ainda, é mesmo um Coelho, confirmava.” (Axline, 1991, p. 39).
Este período de pré terapia foi relativamente curto uma vez que na segunda sessão Dibs já
interage mais frequentemente com a terapeuta, dirigindo-se a ela diretamenta, demonstrando
maior contacto psicológico.

2.3.2.Segunda condição – Existência de um cliente incongruente


A segunda condição, a existência de um cliente incongruente, ansioso ou vulnerável, e que essa
incongruência seja suficiente para reconhecer a necessidade de pedir ajuda. A incongruência
será proporcional à discrepância entre a experiência do indivíduo numa determinada situação e
a imagem que o indivíduo tem dessa experiência (Rogers, 2007). No caso da ludoterapia com
crianças a incongruência do cliente poderá não ser totalmente consciente e o pedido formal
frequentemente não é formulado. Cabe ao terapeuta tornar a terapia suficientemente atrativa
para a criança, de forma a que esta desenvolva a motivação de continuar (Dorfman, 2004).
Também esta condição parece não verificar-se inteiramente nas primeiras sessões com Dibs,
uma vez que raramente as crianças expressam a sua incongruência de forma explícita ao ponto
de pedirem ajuda. Só a partir da 3ª sessão, na qual Dibs tem grande dificuldade em aceitar o
término, é que é explícita a sua motivação para o processo, através deste “pedido de ajuda”
indireto.

2.3.3.Terceira condição – Existência de um terapeuta congruente


A terceira condição, a primeira atitude relacional ou core condition, é a congruência do
terapeuta. De acordo com Rogers (2007) o terapeuta deve estar na relação de forma
congruente, genuína, autêntica e integrada. Esta autenticidade deve estar ao serviço do cliente
e deve permitir a tranquilidade suficiente para que o cliente seja ouvido atentamente sem que
dificuldades do terapeuta interrompam o processo (Rogers, 2007).
Ao longo de todo o processo a terapeuta demonstra uma congruência praticamente constante
mesmo nos momentos emocionalmente mais difíceis, quando Dibs chora compulsivamente, a
terapeuta assume que seria fácil acolher o choro de Dibs perdendo a congruência com o
sofrimento expresso por Dibs, mas nunca o fazendo: “Esfregava desajeitadamente seu rosto,
onde as lágrimas haviam deixado tantos vestígios. Teria sido tão fácil tomá-lo nos braços e

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consolá-lo. Ultrapassar o horário, e tentar abertamente dar-lhe demonstração de afeto e
simpatia.” (Axline, 1991, p. 60).

2.3.4.Quarta condição – Olhar positivo incondicional


Esta core condition está relacionada com a capacidade do terapeuta aceitar calorosa e
positivamente a experiência do cliente. Por oposição significa a ausência de condições de valor,
aceitação condicional ou julgamento de algum tipo. Deve ser verificada em todos os momentos
da terapia, bons, maus, dolorosos, integrados, funcionais ou disfuncionais (Rogers, 2007).
Esta talvez seja a condição mais amplamente cumprida e explícita, uma vez que Dibs é sempre
acolhido de forma calorosa e aceitante independentemente do que faça ou diga. Quando Dibs
canta que quer matar todos com a sua machadinha, ou quando Dibs arremessa o biberão contra
o aquecedor desfazendo-o em pedaços a terapeuta responde sempre com compreensão
empática e olhar positivo incondicional: “Arremessou o frasco contra o radiador. Quebrou-o em
mil pedaços. A água nele contida espaIhou-se no piso. Dibs olhou para o chão observando o
resultado. -Terminei com isto. -Você não mais precisa de uma mamadeira de bebê. Por isso
resolveu livrar-se de uma vez por todas dela?” (Axline, 1991, p.271).

2.3.5.Quinta condição – Compreensão empática


A quinta condição, última core condition, compreensão empática, refere que o terapeuta deve
tentar perceber de forma exata a experiência subjetiva que o cliente descreve. Com a
compreensão profunda dessa experiência, o terapeuta pode comunicar de forma efetiva e
contínua essa compreensão, expressando alguns aspetos que o cliente pode já conhecer e
outros aspetos dos quais o cliente pode estar pouco consciente (Rogers, 2007).
Nas intervenções da terapeuta a condição de compreensão empática parece ser ligeiramente
diferente da conceção descrita por Rogers (2007) existem várias intervenções que que a
terapeuta identifica a emoção de Dibs e não expressa imediatamente essa compreensão, só
posteriormente o faz. Talvez isto esteja relacionado com a necessidade de manter as respostas
de compreensão empática suficientemente simples para que a comunicação com a criança seja
fluida, sem demasiada informação em cada intervenção. Pode ainda estar relacionado com o
ritmo emocional da criança que a terapeuta não pretende acelerar, expondo a criança a
respostas que esta não consegue ainda integrar como suas.
No seguinte excerto, Dibs mostra zanga desde o início da interação, no entanto essa zanga só é
explicitada pela terapeuta após várias intervenções:
Sim, respondeu zangado, virando-se para poder fitar-me. Onde está o meu patinho?
-Você havia dito que o queria conservado no mesmo lugar em que o deixou. Mas

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alguém mais brincou aqui. […]. -Por que você permitiu isto? Inquiriu em tom
enfático. -Você acha que seria minha obrigação zelar para que os seus brinquedos
permanecessem inalterados? -Acho, respondeu. -E sinto raiva. -Raiva de você. -Não
devia ter deixado que isto acontecesse. […]. -Por que? -Prometi a você que os
guardaria intocados? Baixou o olhar e respondeu que não, com a voz sussurrante. -
Mas você queria que fizesse isto? -Sim, murmurou. -Queria muito que os mantivesse
em seus lugares, só para mim. -Outras crianças também frequentam esta sala e
brincam com estes objetos. -Alguma delas, sem dúvida, pegou o seu patinho. -E a
minha montanha? insistiu. -O pato estava bem em cima da montanha. -Bem sei. -E
agora sua montanha também não está lá, como antes, não é? -Tudo estragado!
lamuriou-se. -E você sente-se zangado e desapontado por causa disto, não é, Dibs?”
(Axline, 1991, pp. 89-90).

2.3.6.Sexta condição – Cliente apreende, pelo menos em parte, as atitudes de


compreensão empática e de aceitação positiva incondicional do terapeuta.
A sexta condição refere que o cliente deverá aperceber-se, pelo menos num grau mínimo, da
compreensão empática e da aceitação positiva incondicional que o terapeuta tem por ele. Para
isto o terapeuta deverá comunicar eficazmente estas atitudes.
Dado que se verificou uma forte e positiva mudança em Dibs, seria de supor que todas as
condições estariam presentes. Um exemplo concreto da 6ªcondição é facilmente identificado e
verbalizado pelo próprio, no encontro entre Dibs e a terapeuta, dois anos e meio após o fim do
processo. Dibs, expressa claramente toda a compreensão e aceitação que sentiu da sua
terapeuta e de como isso o fez sentir-se bem:
“-Tudo o que fazia, você aceitava, murmurou. -Com tudo o que eu dizia, você
concordava. -Este foi o caminho que seguimos. -Sim. -Esta sala é. sua, Dibs. Foi
assim. que você me falou. É toda para você. Divirta-se. Brinque. Ninguém entrará
aqui para magoá-lo, falou com um suspiro.-E, na verdade, diverti-me e brinquei. foi
o mais maravilhoso tempo de minha vida. Construí o meu mundo com você na sala
de brinquedos.” (Axline, 1991, p. 279)

2.4. Limites à relação terapêutica


De acordo com Rogers e Wallen (2000), a relação terapêutica deve envolver grande
permissividade de expressão de sentimentos, no entanto esta deverá ser contrabalançada com
o estabelecimento de limites claros que permita tornar a relação estável e previsível. O limite

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do tempo de consulta é um dos mais enfatizados. O estabelecimento de uma relação puramente
profissional é também essencial à prática psicoterapêutica.
Por um lado o limite do tempo de sessão esteve presente desde a primeira à última sessão. Nas
sessões iniciais foi necessário que a terapeuta explicitasse de forma assertiva esse limite e
concluísse a sessão dentro da hora combinada:
“E você já terminou a sua pintura e está na hora de voltar para casa. -Bem, mas
preciso um pouco mais de grama aqui e algumas flores ali, disse de súbito. -Não há
tempo para isto hoje. A nossa hora já se esgotou” (Axline, 1991, p. 73).

Nas sessões finais o seu término é mais natural sem que haja pressão de Dibs para prolongar a
mesma.
Este limite está também claramente expresso no fim da segunda sessão quando a terapeuta se
abstém de qualquer intervenção após o término da hora combinada e na presença da mãe,
aquando da entrega de Dibs e este expressa ruidosamente o seu desagrado.
Relativamente ao limite de manutenção da relação estritamente profissional, durante o período
em que decorreu o processo terapêutico não ocorreram quaisquer encontros extraprofissionais.

2.5. Desenvolvimento terapêutico


Rogers (1985) propõe sete fases do processo terapêutico na perspetiva do cliente. Ao percorrer
essas fases o cliente passa por momentos de recusa de comunicação, aumento da fluência
relativamente a assuntos não pessoais, aumento da expressão de sentimentos pessoais mas
ainda vistos como rígidos, reconhecimento superficial das contradições pessoais, aumento da
intensidade e atualidade dos sentimentos expressos, aumento da liberdade de expressão dos
sentimentos presentemente experienciados, inicia uma motivação para vivenciar sentimentos
como meio de expressão do verdadeiro eu flexível e adaptável. Nas fases mais avançadas os
sentimentos são experienciados de forma imediata, livre, intensa e completa, havendo
aceitação total por essas experiências e forma-se um sentido crescente e continuado de
aceitação e desenvolvimento pessoal.
Nunes e colaboradores (2018), de forma sintética, referem que ao longo do processo da TCC o
cliente evolui de uma expressão de atitudes maioritariamente negativas para atitudes
essencialmente positivas, dá-se um foco crescente no self ao invés de foco nos problemas, há
uma deslocação internalizante do locus de controlo, uma maior aceitação do self, uma maior
maleabilidade e adaptabilidade da personalidade e do comportamento, resultando num maior
bem-estar quotidiano.

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Na obra (Axline, 1991) estão claramente patentes as várias fases de desenvolvimento do cliente,
o processo descrito é extremamente similiar ao descrito por Rogers (1985). Na primeira sessão
o cliente exprime-se de forma muito simples e contida, enumerando objetos de forma
sussurrada e extremamente cautelosa, “-Cama? Cadeira? Mesa?, Berço?” (Axline, 1991, p. 38).
Numa sessão perto da metade do processo terapêutico, 9ªsessão, Dibs é capaz de expressar os
seus sentimentos positivos espontaneamente no presente: “-Perdi a quinta-feira passada e senti
muita falta. […] Gostei das flores que você me enviou. Elas pareciam a primavera. Flores lindas.
E com gatinhos de decoração em cada galho. Gostei tanto!” (Axline, 1991, p. 153). Na 18ª e
última sessão Dibs declara-se em controlo das suas necessidades, abdicando consciente e
deliberadamente dos objetos que davam conforto a um Dibs mais infantil, mostrando um locus
de controlo muito mais internalizado, capaz de ter controlo sobre a sua experiência e
escolhendo o caminho do desenvolvimento:
“-Mamadeira de bebê, falou. Querida e confortante mamadeira, quando preciso de
você recebo o seu conforto. Sugou repetidas vezes a mamadeira.
“-Quando eu era bebê gostava de você, mamadeira. Mas Dibs, que tem seis anos
de idade, não mais precisa de você, agora. Adeus, mamadeira de bebe. Adeus!
[…] - Adeus, mamadeira de bebê. Adeus. Não necessito mais de você.
Arremessou o frasco contra o radiador. […].
-Terminei com isto.” (Axline, 1991, pp. 270-271).

3. Conclusão
Como conclusão geral da leitura do livro, quero salientar que o processo terapêutico descrito
tem resultados extraordinários. Dibs inicia o processo como uma criança com graves
perturbações de funcionamento emocional, escolar, familiar e social provocadas por medo,
raiva, desgosto e zanga e termina mostrando ser uma criança extremamente inteligente,
preocupada com os outros à sua volta, evidenciando um excelente funcionamento a todos os
níveis.
Quanto à análise da congruência entre o processo terapêutico descrito na obra e os
pressupostos teóricos da TCC verifica-se que é muito elevada, havendo, no entanto, pontos de
relativo afastamento.
No primeiro ponto analisado, a confiança na TA, é bastante evidente que as intervenções da
terapeuta são no sentido de permitir e dar condições, para que a TA se expresse na pessoa de
Dibs. No entanto, em alguns momentos críticos do processo terapêutico, parece haver um
confronto existencial mais claro do que seria expectável na aplicação “pura” da TCC.

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No que concerne à Não Diretividade, fica bastante claro que ao longo de toda a obra a autora
aguarda pela direção de Dibs, não apenas na resposta a todas as unidades de sentido, mas
também no respeito pelo silêncio e ritmo do cliente.
Relativamente à primeira condição para que haja mudança terapêutica, parece haver um
período inicial de pré terapia (Prouty, 2001 citado por Brites, 2002), em que Dibs mantém muito
pouco ou nenhum contacto psicológico. Este período pode ser comum em ludoterapia pois a
criança com dificuldades emocionais tem frequentemente dificuldades de relacionamento com
um terapeuta desconhecido. No entanto este período inicial de ausência de contacto psicológico
é relativamente curto. Caberá ao terapeuta colocar em prática todas as suas competências de
relação de ajuda (comunicação da compreensão empática e olhar positivo incondicional),
fazendo com que a criança tenha a confiança e coragem suficientes para entrar em contacto
psicológico. No entanto será um equilíbrio delicado pois o caminho terá de ser feito pela criança
e não pela terapeuta (não diretividade).
A segunda condição parece não se verificar logo nas primeiras sessões. Não existe
explicitamente um pedido de ajuda e uma incongruência da criança. Tendo em conta o seu
estado de desenvolvimento biológico e psicossocial, as crianças têm dificuldade em pedir ajuda
em satisfazerem sozinhas muitas das suas necessidades. O seu sofrimento é muitas vezes
expresso através do choro, de comportamentos desajustados, entre outras formas de
comunicação. Eventualmente poderemos considerar que os comportamentos disfuncionais de
Dibs na família e na escola representam um pedido de ajuda para alívio do seu sofrimento. Nesta
ótica a segunda condição verifica-se desde a primeira sessão.
A congruência e o olhar positivo incondicional parecem ser as duas condições mais evidentes
nas intervenções e reflexões da terapeuta. Estes 2 conceitos parecem ser operacionalizados em
grande consonância com as descrições teóricas da TCC.
Como referido a sexta condição parece verificar-se ao longo do processo terapêutico. Podemos
observar esta condição indiretamente através dos progressos de aprofundamento da relação.
De forma direta, já após o término do processo, Dibs expressa claramente a apreensão das
atitudes de compreensão empática e olhar positivo incondicional da terapeuta.
No que concerne aos limites da relação, no caso analisado, esses limites, principalmente o do
tempo, são respeitados escrupulosamente, sendo mais um ponto de convergência da
intervenção descrita com a teoria da TCC.
Encontramos, no processo terapêutico descrito, paralelos estreitos com o que Rogers previu que
seriam as fases pelas quais um cliente passaria.
Concluo esta análise referindo que o processo terapêutico descrito segue uma abordagem
humanista, com influência existencial, não diretiva, auto-dirigida, muito próxima aos

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pressupostos teóricos da TCC mas com algumas diferenças. Talvez a mais significativa seja a
presença de uma maior confrontação do cliente com os seus dados da existência,
especificamente a angústia da escolha.

No entanto, após esta análise parece-me pertinente levantar a seguinte questão: as


discrepâncias entre a teoria da TCC e a intervenção psicoterapêutica descrita na obra devem-se
a diferenças teóricas de base ou, por outro lado, devem-se ao estilo próprio do terapeuta e à
operacionalização ligeiramente diferente dos mesmos pressupostos teóricos? Ou ainda,
poderão estas diferenças estar associadas à necessidade de operacionalização de acordo com
as especificidades do trabalho com crianças? Para discernir sobre estas questões seria útil
analisar outros relatos terapêuticos da mesma autora.

Considero ainda pertinente referir algumas questões éticas relacionadas como a ausência de
consentimento informado explícito para gravação das sessões, observação das sessões por
outras pessoas além da terapeuta, o atendimento psicoterapêutico da mãe de Dibs, que
atualmente merecem por parte dos terapeutas um cuidado ético especial.

Para terminar proponho uma metáfora. A relação terapêutica seria como a construção de uma
ponte. Existem duas pessoas, uma em cada ilha. Uma delas em sofrimento (incongruência do
cliente), sente-se suficientemente motivada para fazer um pedido de ajuda. A segunda pessoa
(terapeuta) responde estabelecendo uma ponte de comunicação (contacto psicológico). É uma
ponte inicialmente sentida como frágil e insegura, que o cliente não se aventura a atravessar,
comunicando “de longe” com o terapeuta. Será através da colocação em prática das core
conditions ao longo das sessões, que o terapeuta irá construir uma ponte acolhedora (com olhar
positivo incondicional e compreensão empática) e segura (com confidencialidade, não
julgamento e congruência). Será o cliente a ter a iniciativa de atravessar a ponte em direção ao
terapeuta, quando a perceciona como confortável, acolhedora e segura (sexta condição). O
terapeuta acompanha a travessia do cliente respeitando o seu ritmo e direção e tornando a
ponte cada vez mais segura (não diretividade). A ponte só está disponível na hora terapêutica
(limite do tempo) e não existem pontes alternativas entre os dois (limite das relações
estritamente profissionais). Ao longo das sessões é provável que a ponte se torne cada vez mais
confortável para o cliente atravessar e se aproximar do terapeuta, estreitando a relação,
tornando-a verdadeiramente terapêutica através da expressão total da Tendência Atualizante
do cliente.

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4. Referências

Axline, V. M. (1991). Dibs em busca de si mesmo (17ª ed.). Agir.


Brites, R. (2002). “Estórias mal aprendidas”. A intervenção ludoterapêutica numa criança com
dificuldades de aprendizagem. A Pessoa como Centro – Revista de Estudos Rogerianos, 9
e 10, 73-85.
Brodley, B. T. (1997). The nondirective attitude in client-centered therapy. The Person-Centered
Journal, 4(1), 18-30.
Brito, R. A. C. D., & Paiva, V. M. B. (2012). Psicoterapia de Rogers e ludoterapia de Axline:
convergências e divergências. Revista do NUFEN, 4(1), 102-114.
Dorfman, E. (2004). A terapia pelo Jogo. In C. R. Rogers (Ed.), Terapia Centrada no Cliente (pp.
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