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PSICODIAGNÓSTICO EM DIVERSAS

ABORDAGENS
COL. CLÍNICA DE PSICOLOGIA PARA RECÉM-FORMADOS

Miguel Antônio de Mello Silva (org.)


DIREITOS AUTORAIS DO TEXTO ORIGINAL © 2016
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
ISBN-13 : 978-1540764584
ISBN-10 :1540764583
“O fato é que não tem como saber se aquilo que a pessoa acredita ser
reside no íntimo do ser. Seria você uma garota decente com o potencial de,
um dia, se tornar um monstro malvado, ou um monstro malvado que acredita
ser uma garota decente?”
Derek Lendy, em Death Bringer
Agradecimentos

Este livro é o resultado de esforços coordenados de várias pessoas,


sem as quais, ele não teria sido possível.
Primeiramente, gostaria de agradecer a todos os autores pelo empenho
costumeiro em responder às solicitações feitas pelo editorial.
Sem dúvida, o empenho da Dra. Iara Maria Telles que, com dedicação
e paciência, procedeu a revisão e a correção sempre necessária dos textos, é
algo digno de nota e agradecimento.
Também quero agradecer à Ms. Gláucia Telles Sales, uma das
autoras, pela revisão técnica ad hoc do meu capítulo. Quase sempre somos
melhores para revisar a escrita dos outros do que a nossa própria.
Aos artistas Juliana Buglia e Renato Nozaki, pela concepção e
desenvolvimento artístico da capa do livro.
Com cada um desses esforços que a editoração e os cuidados finais
me foram possíveis, transformando um projeto de publicação na realidade
concreta de um livro sobre psicodiagnóstico.
Apresentação

As ciências humanas se consolidam a partir de interesses que define


as suas diferentes ramificações como, por exemplo, as ciências do
comportamento, ramificação da qual a Psicologia faria parte. Mas, seria a
Psicologia uma ciência restrita ao comportamento? Com certeza não. E teria a
palavra “comportamento” muitas definições? Com certeza sim! Só pelas
dificuldades que irrompem ao se redigir tão poucas linhas, pode-se notar o
grau de dificuldade em se organizar um tema como o do psicodiagnóstico
porque, afinal, tudo o que há para ser dito – inclusive esse assunto – está
organizado em sistemas de ideias e teorias, com pressupostos diferenciados,
que configuram a Psicologia como um campo de diversidade e de algumas
convergências.
O aluno que termina o curso de Psicologia, o psicólogo recém-
formado, certamente não domina a maioria dessas diferenças e nem
vislumbra conexões de convergências mesmo em razão de nem sempre elas
serem possíveis. Tudo o que ele traz são algumas práticas que adotou ao
longo do curto período de atendimento na clínica-escola, às vezes aprendidas,
às vezes treinadas e muitas vezes não-refletidas. Não deu tempo. O curto
calendário escolar não comporta o desenvolvimento de uma assimilação
crítica e é muito mais uma sequência de atividades que o aluno deve
desempenhar e se sair bem academicamente.
Ele salta das disciplinas teóricas que trazem alguns trabalhos práticos
que tiveram que se encaixar em uma carga horária já reduzida demais já para
a teoria, para o contexto de atendimento de pacientes em psicodiagnóstico.
Às vezes feito em dupla! Dois aprendizes sozinhos. Seria para ver quem grita
mais alto de desespero?
Talvez para dar conta da demanda externa de pacientes atendidos na
clínica mantendo a carga horária e os custos operacionais reduzidos, as
escolas de formação valorizam a ideia de psicodiagnóstico interventivo que,
explicando de maneira bem prática sobre como funciona para o aluno, é mais
ou menos assim: ele não sabia nem como direcionar a sua observação, nem
compor uma compreensão da sua vivência com o paciente, muito menos
redigir um relatório que tenha a ver com o quadro do paciente; agora, ele tem
que fazer tudo isso e realizar a psicoterapia do paciente ao mesmo tempo!
Agora sabemos porque fazer em dois: para haver gritos de desespero que
sejam emitidos de forma bem alta e alternada... às vezes com os do paciente
juntos!
Convenhamos: é muito difícil adequadamente remeter uma
observação rudimentar a um arcabouço teórico ainda não assimilado,
contando com apenas alguns minutos por semana do supervisor que tem que
dividir a sua atenção para atender outros e muitos alunos, e que ainda tem
remuneração menor do que a de um professor em sala de aula!
Por isso é um fato afirmar que nenhum aluno aprendeu a fazer
psicodiagnóstico e muito menos diagnóstico interventivo. Mas, foi
percebendo esse contexto e as necessidades que ele cria, que surgiu este livro
sobre psicodiagnóstico.
Este livro tem por objetivo focar nas necessidades do psicólogo
recém-formado, levantando temas-chaves que eles necessitam para realizar
psicodiagnóstico.
O livro não tem a pretensão de ser um manual, mesmo porque, o leitor
poderá observar com a leitura dos capítulos, tais manuais substitutos de bom
raciocínio clínico e discernimento de contextos, situações e histórias-de-vida
não existem.
É possível notar que a atividade de psicodiagnóstico se estrutura,
como metodologia de intervenção, a partir da teoria ou abordagem do
profissional. Isso foi verificado na organização das ideias feita pelos autores:
eles organizaram os seus argumentos sobre como desempenhar o
psicodiagnóstico a partir da abordagem que cada um segue. Embora uma
divisão do livro, mediante teorias, não tenha sido prevista no planejamento
inicial desta obra, ela é uma decorrência natural dos posicionamentos dos
autores e uma necessidade de direcionamento dos leitores, para uma consulta
e manuseio mais fáceis. Assim, o livro está dividido nas seguintes
abordagens: psicanalítica, comportamental, humanista, existencial-humanista
e social.
Na abordagem psicanalítica, trago a minha contribuição seguida das
contribuições de Gláucia Telles Sales, Josiane Cristine Ramos e Rita
Aparecida Nicioli Cerioni.
Sendo que faço parte da abordagem psicanalítica, a fim de evitar
eventual sobreposição, propositadamente redigi o meu capítulo depois de ter
recebido os materiais da mesma abordagem que a minha. Assim, como forma
de contribuição, trouxe uma pequena discussão sobre as atitudes mais
comuns frente ao sujeito, à doença e à saúde no psicodiagnóstico e o lugar
das classificações de doenças, estando ambos os assuntos gravitando ao redor
do eixo teórico proposto por Donald Woods Winnicott, especificamente as
contribuições que ele deu ao psicodiagnóstico, a partir da teoria do
amadurecimento.
Já Gláucia discorreu sobre a experiência que vivenciou com os alunos
que optaram pela psicanálise de Winnicott na aprendizagem do
psicodiagnóstico em uma clínica-escola enfocando, principalmente, os
desafios que lhes são apresentados, o papel da supervisora na superação deles
e a sequência dessa experiência dos alunos nos estágios clínicos
subsequentes.
Diferentemente, Josiane trouxe o entendimento de Winnicott sobre o
psicodiagnóstico infantil, a partir do "jogo do rabisco" que ele criou, útil para
compreender o paciente. Também aborda o manejo winnicottiano com o
paciente e, no caso da criança, os seus pais ou cuidadores.
Interessante foi a contribuição de Rita Cerioni, com um capítulo sobre
o lugar dos pais no processo psicodiagnóstico de referencial psicanalítico e de
como olhar para eles pode significar um ato interventivo e de transformação.
Na abordagem comportamental, temos as contribuições de Denise
Rosolen Sanson e Gabriel Fachini.
Em um capítulo Denise valoriza a análise funcional do
comportamento no psicodiagnóstico, desde a visão geral da teoria analítico
comportamental que partiu de Skinner e adentrou a análise funcional,
incluindo o seu procedimento. Foi também a sua preocupação desmistificar a
noção de que a terapia analítico comportamental tem uma visão parcial e rasa
do ser humano.
Já Gabriel discute a visão da análise do comportamento sobre o
psicodiagnóstico, como são as suas etapas e algumas diferenças dela em
relação a outras abordagens psicológicas.
Priscila faz uma contextualização da origem do psicodiagnóstico
frente às propostas humanistas da Abordagem Centrada na Pessoa e como
isso se concretiza na prática psicodiagnóstica da ACP.
Na abordagem fenomenológica, aborda o encontro fenomenológico
entre o terapeuta iniciante e o paciente, através do uso de técnicas
psicodramáticas no processo de Psicodiagnóstico Interventivo onde o
terapeuta desvela as necessidades existenciais dos pacientes, co-constrói com
eles dentro de uma relação compreensiva de ressignificação de sentidos
existenciais.
Sem enfocar uma abordagem propriamente dita, Rita reflete sobre a
ampliação do campo de atuação da psicologia, para dentro do contexto social
e das equipes multidisciplinares, sobre a qual faz considerações teóricas e
técnicas que subsidiam esse tipo de prática social.
Sumário
Dos Autores

ABORDAGEM PSICANALÍTICA
1 - O Psicodiagnóstico e a Teoria do Amadurecimento Pessoal de Winnicott
Miguel Antônio de Mello Silva
2- Psicodiagnóstico e Psicanálise de Winnicott: O Valor da Experiência Com Supervisões em Uma
Clínica Escola.
Gláucia Telles Sales
3- O Jogo dos Rabiscos no Psicodiagnóstico e na Relação da Criança Com o Analista
Josiane Cristine Ramos Ferreira
4- O Lugar dos Pais no Psicodiagnóstico: Do Manejo À Intervenção
Rita Nicioli Cerioni

ABORDAGEM COMPORTAMENTAL
5- Contribuições da Terapia Analítico-Comportamental e da Análise Funcional do Comportamento
Denise Rosolen Sanson
6- Psicodiagnóstico e a Análise Funcional do Comportamento
Gabriel Fachini

ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA
7- Psicodrama e o Encontro Fenomenológico de Terapeutas Iniciantes no Processo de
Psicodiagnóstico Interventivo
Erika Sproesser

ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA


8- Que Eu Tenho, Doutora? - A Relevância do Psicodiagnóstico Sob o Enfoque da Abordagem
Centrada na Pessoa
Priscila Camile Barioni Salgado

CONTEXTO SOCIAL
9- Intervenção da Psicologia no Contexto das Políticas Públicas: Psicodiagnóstico e Avaliação
Diagnóstica da Ação Técnica em Equipe Multiprofissional
Rita de Cássia Oliveira Assunção
Dos Autores
Miguel Antônio de Mello Silva (organizador) - Psicólogo com
Doutorado em Ciências Médicas e Mestrado em Saúde Mental pela
Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, é especialista em diversas
áreas da ciência psicológica. Atua como psicoterapeuta, supervisor clínico e
psicanalista da abordagem winnicottiana. Docente no ensino superior, leciona
em vários cursos. Contribuiu com pesquisas dentro da área psicológica e da
formação de psicólogos, com o apoio de órgãos de fomento à pesquisa. Tem
interesse pelos campos-limites da ciência psicológica e por novos paradigmas
da Psicologia, sobre os quais é conferencista e autor de livros. Há mais de
uma década, participa do grupo de estudos A Teoria do Amadurecimento de
Donald W. Winnicott, da Profa. Dra. Elsa Oliveira Dias, fundadora da
Sociedade de Winnicott. Contato: psicmello@gmail.com
Denise Rosolen Sanson - Psicóloga pela Universidade Metodista de
Piracicaba. Especialização em Análise do Comportamento – Terapia por
Contingências de Reforçamento. Possui título de Especialista em Psicologia
Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia, área em que atua com
atendimentos a crianças, adolescentes e adultos. Atuou como responsável por
psicodiagnóstico de pessoas portadoras de múltiplas deficiências. Contato:
deniserosolen@yahoo.com.br
Erika Sproesser - Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica
de Campinas. Especialista em Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de
Campinas. Mestre e Doutora pelo Departamento de Neurologia da Faculdade
de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Atuou como
docente e orientadora de Estágio nas disciplinas de estágio de
Psicodiagnóstico Interventivo, Psicoterapia Familiar e de Casal, Atendimento
Psicoterapêutico individual na abordagem Fenomenológico-Existencial e
Plantão Psicológico. Contato: erikasproesser@terra.com.br
Gabriel Fachini - Psicólogo, formado pela Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar), com Mestrado e Doutorado pela mesma instituição em
Ciências Fisiológicas, com ênfase em Neurociências e Comportamento.
Atuação na Clínica utilizando a abordagem Comportamental e é
professor/orientador de estágio de Ensino Superior na mesma orientação.
Contato: fachinigabriel@gmail.com
Gláucia Telles Sales - Graduação em Psicologia, Licenciatura,
Bacharelado e Formação de Psicólogo pela Fundação Universidade Estadual
de Londrina – FUEL. Mestra em Saúde Mental pela FCM – Faculdades de
Ciências Médicas da Unicamp. Tema: Fatores que Influenciam as Indicações
de Tratamento Psiquiátrico nas Unidades Básicas de Saúde. Especialista em
Psicodrama e Psicoterapia de Grupo pelo IPPGC – Instituto de Psicodrama e
Psicoterapia de Grupo de Campinas e ex- docente nesse Instituto no Curso de
Formação e Especialização. Membro Fundador do Grupo de Estudos A
Teoria do Amadurecimento de Donald W. Winnicott sob orientação da Profa.
Dra. Elza de Oliveira Dias (fundadora do Centro Winnicott de São Paulo e da
Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana). Membro da Sociedade de
Psicanálise Winnicottiana. Psicoterapeuta em Clínica Particular com ênfase
na Psicanálise de Donald W. Winnicott. Professora de Pós Graduação em
Gestão de Pessoas, Graduação em Psicologia, Supervisora de Clínica,
Psicodiagnóstico e Ênfase em Saúde na Anhanguera Educacional. Trabalhou
na IMF – Fundação Internacional de Mieloma – seção Brasil/ América
Latina. Autora dos artigos publicados na pagina Espaço de Vida, no site da
IMF <www.myeloma.org.br> Contato: glauciatelles@gmail.com
Josiane Cristine Ramos Ferreira - Psicóloga (UNIMEP) e
Psicanalista na abordagem Winnicottiana. Membro da Sociedade Brasileira
de Psicanálise Winnicottiana, onde faz a segunda formação como
psicanalista. Formada psicanalista pela Sociedade de Psicanálise de
Campinas (SPCAMP), grupoterapeuta pela Sociedade de Psicoterapia
Analítica de Grupo (SPAG), terapeuta de casal pelo Centro de Formação e
Assistência à Saúde (CEFAS). Especialista em Psicoterapia de Grupo
(UNICAMP) e em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia
(CFP). Realiza atendimento individual, em grupo, orientação a pais, análise
de casais e de famílias. Contato: ramosjosianec@gmail.com
Priscila Camile Barioni Salgado - Psicóloga, professora,
supervisora de estágio clínico e de grupos de estudos com ênfase na
Abordagem Centrada na Pessoa. Coordenadora do curso de graduação em
Psicologia da Faculdade Anhanguera de Campinas. Pesquisadora
colaboradora do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências
Médicas da UNICAMP. Possui pós-doutorado em Ciências Biomédicas. É
estudiosa da área de interface da Neurociências, Psicologia Humanista e
Psicologia Positiva. Contato: priscila.salgado@anhanguera.com
Rita Aparecida Nicioli Cerioni - Doutoranda em Psicologia Clínica
pela USP, Psicóloga Clínica e Psicanalista, Supervisora em Intervenções
Clínicas na Universidade Paulista. Contato: ritacerioni@usp.br
Rita de Cássia Oliveira Assunção - Formação na Faculdade de
Psicologia da Universidade São Francisco de Itatiba. Atuação em clínica e
políticas públicas, especificamente na Assistência Social. Atuou como
coordenadora técnica em instituição voltada para violência doméstica,
famílias, dependência química, áreas em que possui formação. Presta
supervisão institucional e de equipes técnicas. Especialista em Psicoterapias
Institucionais (PUC-Campinas), Psiquiatria e Psicologia Forense
(UNICAMP). Contato: ritac.assuncao@gmail.com
ABORDAGEM PSICANALÍTICA
CAPÍTULO 1
O Psicodiagnóstico e a Teoria do
Amadurecimento Pessoal de Winnicott
Miguel Antônio de Mello Silva
Introdução
O psicodiagnóstico é um momento da atividade clínica em que o
profissional busca obter uma compreensão sobre o paciente e a questão que
ele pode estar lhe apresentando. É um momento complexo que normalmente,
na mente do psicólogo, vai além da queixa e dos sintomas, buscando a
compreensão daquilo que observa no encontro com o paciente, relacionando-
o com o desenvolvimento (longitudinal) e no momento de vida (transversal)
do sujeito.
Essa busca compreensiva só é possível se o profissional estiver
munido de uma formação sólida teórica que lhe permita desvendar sentidos e
configurar a condição psíquica do sujeito para lhe oferecer alternativas
terapêuticas.
Isto é, por detrás da atividade de pensamento e de decisão do
profissional, tem que haver um conjunto de referências cientificamente
consistentes e capazes de embasá-lo naquela tarefa específica com aquele
paciente particular.
É sobre uma dessas teorias consistentes que pretendo discorrer neste
capítulo, tentando apresentá-la como útil no psicodiagnóstico, ainda que de
maneira bem geral, mas com o intuito de instigar no leitor o desejo de
conhecer mais a respeito dela e de seu autor. Eu me refiro à teoria do
processo do amadurecimento pessoal e ao seu autor, o psicanalista Donald
Woods Winnicott.

Sobre o psicodiagnóstico
Um psicodiagnóstico do tipo mais tradicional seria aquele realizado
com o profissional adotando uma atitude alienista, na qual ele pretende
comparar evidências de comportamentos com descrições nosológicas. Esse
modelo é coordenado pelo estatuto da doença, sendo a atitude do profissional
como a de um detetive diante do crime – dogmática e moralista – buscando
relacionar o que é percebido com modos de viver considerados
desqualificados, influenciadores da higiene mental do sujeito e que se
expressam naquilo que é percebido como doença. É uma atividade
classificatória embasada em padrões absolutos, impessoais e biológicos na
qual todo o paciente é estigmatizado e o seu discurso desqualificado,
conforme o conto de Gabriel García Marquez Eu só vim telefonar, parte de
seu livro Doze Contos Peregrinos cuja essência do estigma da loucura e
consequente perda da autonomia é discutida por Naffah Neto (1998), a partir
da personagem Maria de la Luz Cervantes, uma atriz mexicana casada com
um prestidigitador de salão, que tem o seu carro quebrado em uma estrada
deserta e que, ao buscar socorro, entra em um ônibus estranho, repleto de
mulheres sonolentas envoltas em cobertores. No conto, a personagem Maria,
ao buscar socorro, não sabia que essas mulheres eram as loucas de um
hospício dali perto e, cansada, ela se enrola em um cobertor adormecendo até
ser acordada pelo guarda, já nos hospício, que a manda entrar em uma fila.
Maria, então, lhe pergunta onde teria um telefone para usar, ao que lhe
respondem – dissimuladamente e sem confrontar – igual ao que se ensina
sobre como se comportar com loucos: "Por aqui, gracinha, o telefone é por
aqui." Maria foi vista como louca só por estar no ônibus do sanatório, uma
paciente identificável em um mundo binário onde ou se é funcionário ou se é
louco. Não sendo Maria funcionária, logo era uma louca! A interessante
narrativa percorre diversos momentos que indicam como a palavra de Maria
não valia mais pelo o que ela dizia: o seu discurso possui apenas valor de
sintoma. Querer um telefone era ou um pleno delírio ou um estratagema
ingênuo para escapar do hospício.
Conforme escreveu Michel Foucault (1979, pág. 121), essa atitude de
suspeição era sustentada pelo psiquiatra moralista Esquirol ao afirmar que em
certos alienados, o delírio quase não pode ser percebido e que, em todos eles,
sempre haveria paixões e afeições morais que, quando não desordenadas,
seriam pervertidas ou anuladas. Ainda segundo Foucault, Esquirol
recomendaria ao profissional ter a cautela de não se deixar ser enganado por
eles, visto que eles possuem o pensamento perturbado e desordenação da
maneira de agir, de querer, de sentir paixões, decidir e de serem livres.
(FOUCAULT, 1979, pág. 121)
Quando o discurso do paciente perde a credibilidade, essa se desloca
para a figura do médico como sendo o intérprete credenciado, o detentor da
"verdade" do louco que justifica o comportamento por meio de explicações
que incluem explosões graves de aspectos latentes. Um mero acaso de
ocorrência e lugar tornou Maria uma louca. Ações e enunciações de discurso
não encerram mais um sujeito, mas uma doença mental.
Outra postura menos tradicional de psicodiagnóstico é mais
questionadora e não aceita dogmas ou verdades a priori. Essa forma
privilegiaria uma atitude científica do clínico, pela qual pretende não
empregar julgamentos morais. Seria uma atividade prática pautada mais na
observação, na compreensão, mas que, no entanto, não abre mão da
identificação de alterações de natureza psicopatológica no sujeito e faz isso
iludido com a possibilidade de isenção ou de ausência de viés cultural,
segundo Dalgalarrondo (2008).
Para os profissionais com uma prática profissional em contextos de
pessoas muito prejudicadas mentalmente, fica difícil o psicodiagnóstico se
distanciar dos fundamentos técnico-históricos da psicopatologia. No entanto,
a própria psicopatologia inclui inúmeras coisas: vivências, estados mentais,
padrões comportamentais sob uma vasta variedade de fenômenos humanos
que, quando muito especiais, passam a ser associados ao que se denominou
historicamente de doença mental.
Seria uma negação da obviedade se, no terreno das doenças mentais,
negássemos a possibilidade de alterações de funções psíquicas do sujeito, tais
como alterações da consciência, da atenção, da orientação, da memória, da
afetividade, da vontade, do pensamento, do juízo de realidade, da
sensopercepção, da inteligência etc. Existem casos que ensejam alterações
grosseiras dessas funções psíquicas.
No entanto, essas funções são compostas em torno de eixos que se
articulam em torno de um sentido que configura a personalidade do sujeito,
uma especificidade psicológica que é dotada de elementos que, muitas vezes,
não são exageros do normal, mas são conexões complexas de vivências do
sujeito vivo, de suas relações com o ambiente, de sua história, de seu
desenvolvimento infantil e que dão o contorno de uma Psicologia do
indivíduo normal. Isso bem revela o fato de que o mundo da doença mental
não é totalmente estranho ao mundo das experiências ditas “normais”.
Talvez devamos enfocar sob a sombra de qual tradição realizamos o
psicodiagnóstico: uma tradição médica calcada em um modelo biológico
uniforme, uma tradição psiquiátrica moral, uma tradição humanista e mais
compreensiva que leva em conta as questões existenciais debatidas pela
Filosofia presentes na Literatura, nas Artes e em uma disciplina complexa
que engloba tudo isso, como é o caso da Psicanálise.
Em outras palavras, uma postura compreensiva amplia a noção de
certos padrões sintomáticos, mas não a revoga. Ela busca não reduzir os
sujeitos aos sintomas. Pelo contrário, tenta integrar, compreensivamente,
aspectos da pessoalidade diante dos quais os sintomas não são organizações
de ocorrência aleatória, mas reflexos de como aquela pessoa conseguiu se
constituir frente às impossibilidades de ser e de fazer. Existem sentidos
subjacentes ao adoecimento. É semelhante à sensação de total
incompreensão que sentimos ao assistirmos ao filme Estamira, dirigido por
Marcos Prado (2005), mas que, aos poucos e com mais atenção, vão se
tornando totalmente compreensíveis, possibilitando uma pessoa e o seu
sofrimento emergirem na percepção do expectador.
Devemos preservar parâmetros comunicáveis de nomenclatura para
expressões sintomáticas agrupáveis por tipos de sintomas. Contudo, listar
sintomas não significa compreender existências. No processo
psicodiagnóstico, devemos ter a clara noção de que empreendemos uma
atividade que a remete a descrições psicopatológicas que diferem da
Neurologia e que incluem a Psiquiatria enquanto campo de conhecimento
aplicado à prática profissional e social concreta, mas, muitas vezes,
autoenredada e incapacitada de compreender ou explicar o que existe em um
homem. Conceitos psicopatológicos são limitantes para essa finalidade.
Na atividade profissional, o psicólogo constata que saúde e doença
surgem mescladas, enfeixadas em conteúdos que têm a ver com os temas
centrais da existência humana: a sobrevivência, a busca de segurança, o
exercício ou não da sexualidade, a religiosidade e os temores básicos sobre,
por exemplo, a morte, a doença, a miséria etc.
Ainda que protocolos diagnósticos como a Classificação Internacional
de Doenças (CID-10) e o Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos
Mentais (DSM-V, sigla em inglês), por serem excelentes compilações de
sintomas, tentem apontar muitas possibilidades para alguém ser
diagnosticado como doente, eles estão longe de ser capazes de resumir todas
as agruras humanas causadoras de sofrimento a pessoas envolvidas em
embates com o ambiente.
Nessa discussão sobre psicodiagnóstico, aos poucos, vou me
aproximando das contribuições de D. W. Winnicott, muito pertinentes ao
assunto, porque o próprio autor vinculava a essência do seu trabalho na
questão do diagnóstico, como vemos a seguir:
O fato essencial é que baseio meu trabalho no diagnóstico. Continuo a
elaborar um diagnóstico na continuidade do tratamento, um diagnóstico
individual e outro social, e trabalho de acordo com o mesmo diagnóstico.
Nesse sentido, faço psicanálise quando o diagnóstico é de que este
indivíduo, em seu ambiente, quer psicanálise [tradicional]. Posso até tentar
estabelecer uma cooperação inconsciente, ainda quando o desejo consciente
pela psicanálise está ausente. Mas, em geral, a psicanálise [cujo método por
excelência é a interpretação do conflito reprimido inconsciente] é para
aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la (WINNICOTT, 1983,
pág. 154).
Sendo a doença uma conceituação oposta à saúde, os protocolos, aos
quais nos referimos anteriormente, falham sobremaneira com a possibilidade
de apontar a participação do ambiente na implantação da saúde, algo que a
Psicologia acadêmica tampouco conseguiu realizar satisfatoriamente,
porque, ao tentar explicitar o papel do ambiente na estruturação da
personalidade da criança, o incluiu associando-o a qualidades desfavoráveis e
traumáticas causadoras de distúrbios mentais (WINNICOTT, 2005).
Esse recorte, dado pela Psicologia Acadêmica, da participação
ambiental como tendo um cunho exclusivamente prejudicial qualificou a
pessoa como sendo uma entidade que lhe é totalmente subordinada, um
reflexo dessas condições ambientais desfavoráveis e isso, mais tarde, resulta
na relutância dos psicanalistas em considerar o fator ambiental como um fator
constitutivo, algo que Winnicott discute nos trechos seguintes:
É fácil verificar porque os psicanalistas relutaram em escrever sobre o fator
ambiental, uma vez que tem sido frequentemente verdade que aqueles que
tentaram ignorar ou negar o significado das tensões intrapsíquicas
ressaltaram principalmente o fator externo desfavorável como causa de
doença na psiquiatria infantil. Contudo, a psicanálise está agora bem
estabelecida e podemos nos permitir examinar o fator externo tanto bom
quanto mau. (2005, pág. 251)
Estremeço ante o perigo de que meu trabalho seja tomado como uma
tentativa de fazer a balança da argumentação pender para o lado ambiental,
embora eu realmente seja da opinião de que a psicanálise tem agora
condições de dar importância plena aos fatores externos, tanto bons como
maus, e, especificamente, à parte desempenhada pela mãe no estágio bem
inicial, quando o bebê ainda não separou o “eu” do “não eu”
(WINNICOTT, 1990a, pág. 122).

A Teoria do Amadurecimento de D.W. Winnicott à Frente do Diagnóstico

O diagnóstico é uma fotografia cujo cenário se recompõe a todo


momento. É impossível obter um entendimento compreensivo do paciente
apenas nos encontros iniciais: ele se constrói ao longo dos atendimentos.
Uma imagem inicial da problemática do paciente pode ser aprisionadora
porque é preciso coletar uma infinidade de relatos para compreender a
história de vida, a história do próprio sintoma e como ele foi se construindo
na interação entre o sujeito, o ambiente e a sua pessoalidade (ou não).
Vejo que uma alternativa, para ultrapassar o recorte dado pela
Psicologia Acadêmica às situações brutais e a tentativa compreensiva sem um
ambiente proposto pela Psicanálise tradicional, seria, dentro daquilo que foi
apontado por D. W. Winnicott com a teoria do amadurecimento que afirma
que o amadurecimento ocorre em estágios vitais, nos quais existem tarefas a
ser desempenhadas, que, quando exitosas, representarão conquistas do
amadurecimento; quando não, se expressam com distúrbios psíquicos
vinculados às falhas das tarefas desses estágios, a ideia da importância dessa
teoria está contida no trecho a seguir:
Precisamos chegar a uma teoria do amadurecimento normal para podermos
ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturidades, uma vez
que não nos damos por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e
curá-las (WINNICOTT, 1983, pág. 65).
A teoria do amadurecimento de Winnicott tem se mostrado bastante
eficaz para o psicodiagnóstico porque, de forma bastante arguta, o autor foi
descrevendo as características do ambiente e da necessidade premente da sua
adaptação à criança (e não o contrário disso) a fim de que ela tenha um self
real (ao invés de um falso self). O ambiente facilitador, por assim dizer, vai
criando vários sentidos do real. Esse processo serve de base, por exemplo, da
passagem do subjetivo ao objetivo, a separação entre o eu e o não-eu, a
construção gradual dos sentidos de realidades interna e externa, a experiência
de destrutividade e a passagem das relações de objeto para o uso do objeto.
Como bem sabemos, Winnicott realizou uma mudança paradigmática
da Psicanálise. Como em qualquer área do conhecimento, quando mudanças
de paradigma ocorrem, existe a necessidade de se analisar a teoria a partir de
dentro da nova teoria, de suas premissas e de seu método. Buscar cotejar os
pontos de dois paradigmas é impossível e tentar fazer isso na prática é ser
capaz de presenciar um diálogo de surdos que não se entendem, como
podemos observar, por exemplo, na ocasião em que Winnicott (1968a,
1968b) apresenta o conceito inovador de uso do objeto para um grupo da
Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque, na ata lavrada por David Milrod da
reunião de 12 de Novembro de 1968, prestes a ser destruída, mas que
consegui recuperar e cuja tradução fiz e publiquei na revista Natureza
Humana, com o texto original (MILROD, 1968; 2005).
Em termos descritivos, as etapas do amadurecimento foram
organizadas por Winnicott (WINNICOTT, 1990b) em:

1. Estágios pré-primitivos, movidos pela tendência inata ao amadurecimento e à


criatividade originária. Nesse momento ainda predomina a não-integração e existe uma
dependência. Na etapa de dependência absoluta do ser, uma forma de existência do tipo
dois em um. O estágio começa na experiência do nascimento, nos estados iniciais
tranquilo e excitado e, aos poucos, a elaboração imaginativa das funções corporais vai
realizando o alojamento da psique no corpo e consequente temporalização e a
espacialização, úteis ao processo de constituição de um si mesmo primário (início da
integração), pois ainda está envolto em grande dose de ilusão.

Sem revogar o que se desenrolava na fase anterior, no momento


seguinte, de dependência relativa, ocorre a desilusão e o surgimento da
função intelectual, certo grau de separação bebê-meio possibilitando o
surgimento dos estados transicionais apoiados por capacidade
simbólica relativa. Vai sendo criado um sentido de externalidade,
sendo feita certa expulsão do objeto subjetivo, se configurando uma
possibilidade para o amor e a fantasia. O ápice dessa fase é o
estabelecimento (ainda que precário) do status de identidade unitária
(EU SOU), que substitui, aos poucos, o dois em um que é marca da
fase anterior.
Às falhas nessas fases, no psicodiagnóstico, encontraríamos vinculados
os problemas decorrentes de privação ambiental (situações “brutais”
ou não), originando quadros de linhagem psicótica como, por exemplo,
a esquizofrenia e os transtornos esquizofreniformes.

2. Estágio pós-aquisição do Eu, caracterizado pela capacidade relativamente organizada de


se preocupar. Aqui já está presente uma unidade dotada de sentido pessoal e um sentido
de externalidade. Nessa fase, a função da agressão (com sentido diferente da concepção
kleiniana, merecedora de um capítulo à parte) fundamenta o uso do objeto, mas inicia-se
por uma atitude de incompadecimento (ruthlessness) para com o objeto até o
desenvolvimento da capacidade de se preocupar (concern) com ele. Culpa e
responsabilidade já são elementos presentes nessa etapa do amadurecimento, bem como
a possibilidade de estabelecer uma relação dual. O inconsciente reprimido se inaugura
nessa etapa, pois existe a possibilidade de a mente da criança conceber o conflito e
realizar operações de defesa, como a defesa repressiva. Visto que as funções
fundamentam a possibilidade de interjogo interpessoal mediados pela empatia e do bom
uso da agressividade pessoal (possível com o estabelecimento da posição depressiva), às
falhas nessa etapa, no psicodiagnóstico, encontraríamos vinculados os problemas
decorrentes de deprivação (deprivation) ambiental, isto é, a retirada da sustentação
ambiental já percebida pela criança. Falhas nessa etapa repercutirão na forma dos
quadros de tendência antissocial que, se não curada, evolui para os quadros de
delinquência ou, se o desenvolvimento tiver se detido mais adiante, dentro dessa etapa,
tem-se então os problemas da dimensão depressiva que pode ter um colorido mais
regredido (psicótico), ou mais reativo (normal).
3. Estágio de identidade unitária, cuja ênfase recai nos relacionamentos interpessoais e as
complicações decorrentes deles. Tendo a capacidade de relacionamento dual se
desdobrado, nesta fase, na capacidade de realizar relações triangulares, abre-se a
possibilidade para a efetivação do conflito edipiano. Mais adiante, já na adolescência,
ocorre a revivescência dos temas edipianos da infância através de demandas sociais a
uma pessoa, ainda imatura, que busca se isolar dos pais para adquirir um sentido real
pessoal, tentando mapear a própria potência efetiva, portando-se, por vezes, com uma
moralidade ferrenha que não aceita falsas soluções.

Esses temas são focos de atenção da Psicanálise tradicional que aborda


soluções para um sujeito que já passou pelas etapas de individuação do
desenvolvimento (uma pessoa total) e que está municiado para
adentrar no conflituoso universo das ambiguidades pessoais
relacionais, lidar com os produtos originados das repressões
inconscientes, tentar realizar o bom manejo dos instintos que habita o
vasto mundo da fantasia, todas questões típicas da problemática
neurótica que, para Winnicott (1990, pág. 56), reflete um bom grau de
saúde emocional.
Nesse grupo, o profissional deve tomar cuidado com aquelas pessoas
que parecem ser neuróticas na etapa diagnóstica, mas, em realidade,
como apontou Winnicott, são psicóticas e que, no tratamento, revelam
desordens fundamentais do desenvolvimento emocional primitivo; isto
é, elas são, na realidade, psicóticas. Tal aspecto fica bem claro no texto
que traduzi sobre a experiência de análise de Gruntrip, primeiro com
Fairbairn (que dispensava atendimento como se Guntrip fosse
neurótico) e, depois, com Winnicott, onde se descortinou a verdadeira
condição do paciente (GUNTRIP, 2006).
Para discutir melhor essa situação, contrapondo a qualidade do
desenvolvimento da 1a infância com a fase de 2 a 5 anos, Winnicott
organizou um quadro (1990b, pág. 56) que apresento na forma de
texto:

1. Se a 1a infância foi perfeita, é improvável o surgimento de distúrbios na fase


entre 2-5 anos.
2. Se a 1a infância foi imperfeita, entre 2-5 anos se cria a base da ansiedade
neurótica.
3. No caso de uma 1a infância com desenvolvimento perturbado, é provável um
distúrbio neurótico entre 2-5 anos.
4. No caso de uma 1a infância com desenvolvimento perturbado, pode surgir um
distúrbio neurótico encobrindo uma estrutura psicótica, capaz de revelar-se
durante um tratamento ou crise.
5. No caso de uma 1a infância com desenvolvimento perturbado, fornecendo saúde
insuficiente para o desenvolvimento de uma doença neurótica, ou seja, a psicose
é visível.

A partir do que acabei de expor, Winnicott “esvazia” o tema da


neurose, apontando uma forma de organização psíquica muito mais básica e
importante: a psicose. Mas Winnicott (1990b), ao falar da pessoa total, a
neurótica verdadeira, a entrega para a Psicanálise tradicional e, praticamente,
se retira de cena. Em outras palavras, ele dá pouca importância à neurose (se
é que dá alguma), pois adotou como questão realmente importante a psicose e
o processo de amadurecimento que alguém percorre para poder chegar a ser
uma pessoa total, experienciar o estado unitário do ser.
Quase todos os aspectos do relacionamento entre pessoas totais foram
abordados pelo próprio Freud, e de fato é muito difícil atualmente dar a isto
qualquer contribuição, a não ser que se consiga fazer uma exposição
original daquilo que já é aceito. (WINNICOTT, 1990b, pág. 54)
Ao falar sobre a sua própria maneira de trabalhar enquanto
psicanalista, Winnicott faz menção à uma análise modificada, não-padrão,
quando se defrontava com certas condições que ele aprendeu a reconhecer,
sendo elas:
a) quando o temor da loucura domina o quadro;
b) quando um falso self se torna bem sucedido e a fachada de sucesso,
mesmo brilhante, tem de ser demolida em alguma fase para a análise ter
êxito;
c) quando, em um paciente, uma tendência antissocial, seja em forma de
agressão, roubo ou ambas, é o legado de uma privação.
d) quando não há vida cultural, somente uma realidade psíquica interna e
um relacionamento com a realidade externa, estando as duas relativamente
desconectadas (WINNICOTT, 1983, pág. 154).
No trecho anterior, podemos verificar que Winnicott tem a mesma
preocupação que a nossa, no processo psicodiagnóstico – especialmente nas
letras b e d – sendo que a teoria do amadurecimento lhe ajuda a discernir
organizações de personalidade do tipo falso self e falso self com cisão menos
evidente. As outras duas letras (a e b) se referem a situações mais gritantes e
mais fáceis de ser observadas.
Sem dúvida que, por detrás do fio condutor da atividade diagnóstica,
se encontra o domínio da teoria do amadurecimento.
Ainda se referindo à importância da teoria do processo do
amadurecimento, Winnicott, claramente, afirmou que “se fôssemos melhores
em diagnósticos, pouparíamos a nós mesmos e a nossos pacientes um bocado
de tempo e desespero” (WINNICOTT, 1994, pág. 182).
Assim, podemos também observar que a saúde é uma conquista do
amadurecimento que tem a sua origem na resolução das questões da psicose
para, então, ser possível chegar a uma saúde emocional verdadeira, e que a
teoria do amadurecimento nos serve como prumo da avaliação sobre a
existência, ou não, da saúde. Há vários trechos onde Winnicott se refere à
questão da saúde, sendo que trago, apenas, um deles, abaixo:
A afirmação de que uma criança saudável poderia ser inteiramente
compreendida com base no estudo das neuroses e de suas origens seria
absurda. Não tão absurda, entretanto, seria a afirmação de que, para estudar
a criança saudável, presumindo-se um desenvolvimento inicial saudável,
um bom caminho seria através do estudo da formação de sintomas
neuróticos. O motivo é que as defesas organizadas na neurose apontam o
caminho para a ansiedade, que não apenas se encontra por trás do sintoma
neurótico, mas também fornece a força e a qualidade das manifestações da
saúde (WINNICOTT, 1990b, pág. 55).

Considerações finais
O psicodiagnóstico pode ser feito com uma atitude tradicional
alienista, ou com uma postura menos tradicional compreensiva e
pretensamente isenta que, no entanto, deixa de oferecer a percepção de
problemas psicopatológicos do sujeito. Existe a necessidade de o psicólogo
ser capaz de notar alterações de funções psíquicas do sujeito, de ser capaz de
comunicá-las aos pares, se for o caso, e sem perder a especificidade daquele
sujeito e de sua história.
Na atividade profissional, o psicólogo constata que saúde e doença
surgem mescladas e que os protocolos diagnósticos estão longe de resumirem
as agruras humanas.
Sobre o psicodiagnóstico, as contribuições de D. W. Winnicott são
riquíssimas pela participação do ambiente na formação da saúde de uma
pessoa e que culmina em uma teoria do processo de amadurecimento pessoal
tão potente que foi capaz de instaurar um novo paradigma psicanalítico, bem
como servir de parâmetro para se realizar o psicodiagnóstico.
Tendo conhecido a Psicanálise na minha adolescência, iniciei o
estudo com (acrescentar) vários psicanalistas durante a faculdade de
Psicologia. Depois de formado, trabalhei vários anos dentro do referencial
psicanalítico kleiniano, mas, por conta de novas perguntas e de perguntas
antigas que nunca foram respondidas, tomei contato com os livros de Joyce
McDougall (hoje uma lacaniana) que, tendo sido analisada por Winnicott, me
levaram a esse último. Foram vários anos estudando a sua obra em português
e em inglês – língua original na qual foi escrita e da qual muitas vezes mal-
traduzida para o idioma pátrio – que me convenceram da consistência de sua
teorização e da eficácia prática que ela oferece.
Para estar apto a realizar um psicodiagnóstico denso, gostaria de
deixar a recomendação ao leitor da leitura da obra direta de Winnicott, escrita
em um estilo coloquial que permite o fácil entendimento das palavras (nem
tanto o dos conceitos nela contidos). Faço tal recomendação para que,
diferente da maioria dos profissionais, as ideias de Winnicott figurem menos
nas citações e dedicatórias de trabalhos acadêmicos e muito menos ainda
infundadamente por estarem mal-interpretadas.

REFERÊNCIAS
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos
mentais. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.
FOUCAULT, M. A casa dos loucos. In: ___________. Microfísica do
poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. pág. 121.
GUNTRIP, H.(1975). Minha experiência de análise com Fairbairn e
Winnicott: quão completo é o resultado atingido por uma terapia
psicanalítica? Traduzido por Miguel Antônio de Mello Silva. Natureza
Humana. v.8, n.2, 2006. 383-411.
MÁRQUEZ, G. G. Só vim telefonar. In: ___________. Doze contos
peregrinos. Rio de Janeiro: Record, 1992.
MILROD, D. Meeting of the New York Psychoanalytic Society. Natureza
Humana. v.7, n.1. 2005. 237-242
NAFFAH NETO, A. O estigma da loucura e a perda da autonomia. Revista
Bioética. v.6 n.1. p. 81-87,1998.
PRADO, M. (dir.) Estamira. Filme longa metragem. Produzido por José
Padilha. 2005. Disponível em: https://youtu.be/KFyYE9Cssuo Acesso em: 25
de Agosto 201
WINNICOTT, D. W. O uso de um objeto. In: MILROD, D. Ata da Reunião
da Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque de 12 de Novembro de 1968a.
Traduzido por Miguel Antônio de Mello Silva. Natureza Humana. v.7, n.1.
2005. 243-253
_____________. O uso da palavra uso [1968b]. In: ___________.
Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed. 199
_____________. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre
a teoria do amadurecimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas,
1983.
_____________. O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1990a.
pág. 122.
_____________. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990b.
_____________. Dependence in infant-care, in child-care, and in the psycho-
analytic setting. In:___________. The Maturational Processes and the
Facilitating Environment. London: Karnac Books. 2005. Capítulo 23 p.
249-259.
CAPÍTULO 2
Psicodiagnóstico e Psicanálise de Winnicott: O
Valor da Experiência Com Supervisões em Uma
Clínica Escola.
Gláucia Telles Sales
Uma coisa é necessária aqui
Neste nosso mundo difícil
De sem-abrigos e desterrados.
Fixares residência em ti.
Hans Borli (1974)

Quando pensei a respeito do que tratar em meu capítulo, lembrei-me,


imediatamente, de experiências que eu tive como supervisora nesta etapa da
formação acadêmica em Psicologia, também denominada de Clínica I. As
supervisões, no caso, fizeram parte da grade curricular do penúltimo ano da
graduação, ou seja, do oitavo semestre, inaugurando a vivência prática do
aluno no campo clínico. Nesta Clínica Escola, não era obrigatório, ou, ao
menos, não havia a necessidade de se delimitar uma abordagem única a ser
seguida no estágio. O psicodiagnóstico já era, em si, um objeto de estudo e
aprendizagem e a práxis contemplava necessidades de duas naturezas: a de
quem buscava por atendimento, candidatando-se a paciente, e a de quem
buscava por aprendizagem como psicoterapeuta na lida com este primeiro
momento de demanda do paciente, candidatando-se a profissional. Havia,
então, por um lado, uma pessoa com a expectativa de ver identificados,
reconhecidos e validados os males de sua alma e, por outro lado, uma pessoa
com a expectativa de iniciar a aquisição de conhecimento e capacitação em
um saber no universo do diagnóstico clínico psicológico.
Acontece que, mesmo não sendo obrigatória a delimitação de uma
única abordagem nas orientações, os grupos que me vieram à lembrança para
a construção deste capítulo optaram por estudar a psicanálise de Winnicott.
Assim, no semestre que antecedeu ao estágio, ocasião na qual tinham que
escolher um dentre os professores responsáveis pela disciplina, eles já
asseguraram a vaga comigo uma vez que sabiam ser esta a minha orientação
de trabalho como psicóloga clínica. Eles queriam, mesmo, conhecer a escola
psicanalítica que muda o paradigma clássico à medida que propõe um modelo
relacional de interação viva entre terapeuta e paciente no setting clínico
enquanto, teoricamente, desloca o eixo central da sexualidade para o do
amadurecimento. Escola que se debruça sobre as etapas absolutamente
precoces do ser que nasce e prossegue em condições de dependência absoluta
do meio ambiente cuidador até alcançar condições de dependência relativa, o
que se dá vida afora.
Segundo Laurentiis (2016), para Winnicott, a psique primitiva
acontece a partir das interações que se passam entre corpo e ambiente
humano, e, dessa base, se desenvolve a identidade unitária e psicossomática
que irá prosseguir e ganhar complexidade:
O amadurecimento psicossomático envolve, desde o início, sucessivos
arranjos operacionais entre os dois modos de funcionamento humano, o
somático e o psíquico, e só mais tarde inclui a mente como outra variável
nessa parceria (LAURENTIIS, 2016, p.77).
Assim, caracterizando uma psicanálise encarnada e evitando
formulações metapsicológicas abstratas que se referem à existência de um
aparelho psíquico, “ele adotou termos descritivos, que reaproximam o
pesquisador e o clínico da experiência” (ibid, p.34).
Atendendo à demanda dos alunos, eu abracei a ideia de
nos guiarmos pelos princípios e conceitos norteadores deste autor mesmo
sabendo, de antemão, que estava me colocando em papos de aranha. Não irei
me preocupar com organizar as razões de tal enrascada segundo uma ordem
exata e inequívoca de acontecimentos, uma vez que o processo foi dinâmico,
intercalando-se elementos desafiantes. O único critério que elegi como linha
mestra foi o de contemplar as questões comuns a todas as turmas.
No mais, deixo a minha escrita livre para não engessar a minha
espontaneidade e criatividade na tentativa de retratar a experiência.
A Não Vivência do Aluno Como Paciente
Quando eu dou início a uma supervisão clínica e, repetindo,
psicodiagnóstico é uma supervisão clínica, logo procuro saber quem faz e
quem não faz psicoterapia. Em meu capítulo do primeiro livro desta série, eu
já havia abordado a questão ponderando que, para alcançar a capacidade de
identificar as necessidades do paciente, precisamos ser capazes de identificar
as nossas (SALES, 2015).
Penso que o amor pelo trabalho clínico envolve o cuidado para
consigo na mesma dose de responsabilidade e ética necessárias aos cuidados
para com o paciente. Se nos dispomos a conhecê-lo em sua particular
biografia, é necessário que saibamos de nós, ou ao menos que tenhamos
alguém a quem possamos destinar a tarefa de nos auxiliar, nos sustentar
enquanto fazemos conquistas pessoais que nos conduzirão ao tão almejado
Eu Sou!
Elsa Dias, em seu trabalho de esmiuçar o legado de Winnicott, traz o
que ouso apropriar para o contexto desta relação tão preciosa ao
amadurecimento pessoal/ profissional que é a relação psicoterapêutica. Faço
recortes na obra da autora, alinhavando-os às reflexões que proponho,
tomando o cuidado de não comprometer a sua ideia primordial:
Sentindo-se bem seguro e reunido no corpo (...) o lactente entrega-se
confiantemente aos cuidados da mãe (...) O cuidado materno
correspondente a essa tarefa de alojamento da psique no corpo é o manejo
(handling). O manejar faz parte do segurar total (holding), mas refere-se
especificamente ao segurar físico. No segurar-manejar devem estar
incluídas todas as experiências sensórias necessárias: ser envolvido, por
todos os lados, num abraço vivo, que tem temperatura e ritmo (...) (DIAS,
2003, p. 209,210).
Uma relação terapêutica bem sucedida pressupõe a existência desta
possibilidade de reunirmos, de juntarmos o paciente ajudando-o a alcançar a
sua integridade psicossomática. Portanto, pode ser difícil e angustiante a
experiência de nos depararmos com a dor psíquica alheia e sustentá-la,
enquanto tentamos identificar as suas origens históricas, sem que tenhamos
um porto seguro sobre o qual possamos lançar as âncoras de nossas próprias
dores. Os primórdios do que nos cabe podem ser claros, de há muito
conhecidos, mas se não temos, nem nunca tivemos, a oportunidade de
experimentar as circunstâncias de um holding confiável a fim de vivenciar a
retomada de falhas que comprometeram a nossa plenitude como pessoa, tudo
pode se tornar, apenas, uma informação a mais.
A minha escolha da estrofe de abertura que fala sobre ser necessário
fixares residência em ti neste nosso mundo difícil de sem-abrigos e
desterrados, além de ter se dado pela beleza e lucidez da obra, baseou-se na
concepção que tenho quanto aos caminhos a serem percorridos para o fixar-se
residência em si. Podem existir, assim como existem, muitos que conduzem a
essa aventura, mas penso que a psicoterapia deve ser o caminho prioritário a
um psicólogo, principalmente se a área da saúde for a sua opção profissional,
uma vez que essa corre junta e sobreposta ao desenvolvimento pessoal. A
nossa natureza humana inclui a ideia de que somos o que somos o tempo todo
na concretude de nossos papéis e atribuições.
Haley (1998), no livro Aprendendo e Ensinando Terapia, considera
que o terapeuta é o próprio instrumento de trabalho no aprendizado de
psicoterapia e precisa integrar o aprendizado com a própria experiência de
paciente. Em uma excelente entrevista dada a Anzolin e Silveira (2003),
Valle diz que o psicólogo em formação se defronta com situações limites e
deve, portanto, ocupar-se de sua saúde mental fazendo terapia pessoal.
Considera que o aluno deve compreender que, para se colocar como um
psicólogo e trabalhar no crescimento das pessoas e seus relacionamentos, é
preciso que ele trabalhe o seu desenvolvimento pessoal.
Entretanto, em todas as turmas que foram inspiração para este
capítulo e das quais eu abstraí o valor da experiência de supervisão, poucos
alunos já haviam feito, ou faziam, psicoterapia. Esse fato protagonizou uma
situação de dificuldades e empobrecimento da experiência de atendimento
psicológico por parte desses alunos devido à não vivência do papel de
protagonista dos cuidados terapêuticos. Então, sem nunca terem ocupado o
lugar de paciente iriam, agora, atender a um paciente e seriam, inclusive,
chamados de ‘doutor’ por alguns, um engano que costuma inflar egos. Eu,
particularmente, penso que tal engano deve ser desfeito desde o início pelo
psicólogo caso ele não tenha doutorado, a condição que, verdadeiramente, dá
legitimidade ao uso do título. A insistência no uso talvez possa evidenciar a
necessidade de estabelecimento e manutenção de uma relação de poder por
parte do profissional. Vejamos o que diz Winnicott:
[...] estamos reduzidos a dois seres humanos de mesmo nível. As
hierarquias caem. Posso ser médico, enfermeiro, assistente social, um
parente que vive na mesma casa – ou, a propósito, psicanalista ou padre.
Não faz diferença. Relevante é a relação interpessoal em todos os seus ricos
e complicados matizes humanos. Há um lugar para hierarquia na estrutura
social, mas não no confronto clínico (WINNICOTT, 1999, p. 108).
Por fim, no decorrer de minhas experiências com as atividades de
supervisão, os alunos que não tinham quem os socorresse em suas questões
íntimas encontravam dificuldades para se abrir a um paradigma que coloca a
relação com o paciente na pele. A relação interpessoal em uma psicanálise
viva, em lugar de tornar-se uma experiência de trocas, tornou-se uma
experiência de travas que eu percebia através dos profundos silêncios, de
respirações suspensas, de olhares ora cabisbaixos, ora fixos em mim, ou em
um ponto vago no espaço da sala. Por vezes, havia uma urgência em ir
embora. Em outras, éramos os últimos a sair da Clínica Escola porque havia
um interesse em esticar a supervisão, mas com questões que escorregavam
para o pessoal. Às vezes, eles deixavam isso claro, compartilhando com o
grupo o que era de fórum íntimo. Em outras, eles falavam sobre uma situação
hipotética, querendo entender as falhas ambientais responsáveis pelas
dificuldades daquela determinada pessoa a quem faziam alusão.
Frequentemente, alguns me pediam um à parte para desabafar o que estava
pegando e interferindo em seus atendimentos, mas não queriam que ninguém
do grupo soubesse. Em tais ocasiões, eu usava de manejo e fazia o holding
possível ao contexto, também aproveitando para mostrar ao aluno a
necessidade da psicoterapia. Alguns buscaram por atendimento ainda no
semestre da supervisão. Outros não e, por notícias que me chegam, estão, até
hoje, nessas condições.

Entre a Psicoterapia Pessoal em Outras Abordagens e o Desconhecimento de Abordagem de


Winnicott
Dentre todos os alunos que faziam psicoterapia, apenas um deles fazia
na abordagem de Winnicott, e isso no total das turmas. A maioria estava sob
os cuidados de abordagens diversas dessa que se propuseram abraçar no
estágio. Acontece que a força do modelo prevalente da psicoterapia pessoal
tensionava e comprometia a disponibilidade em acolher o novo paradigma.
Eram questionamentos expressos em detalhes que começavam por dúvidas
quanto a como receber o paciente na sala de espera a fim de conduzi-lo à sala
de atendimento: “Mas eu posso cumprimentar estendendo a mão? Meu
terapeuta não faz isso”. “Mas eu posso sorrir, ou devo ficar sério, mais
circunspecto”? Nessas horas, eu sempre me lembrava do caso de uma pessoa
que me chegou para atendimento e, ao término da sessão, após nos
despedirmos com um aconchegante aperto de mão, gesto ocorrido, também,
em sua chegada, me disse entre surpresa e uma ponta de mágoa: “em quatro
anos de terapia, o meu antigo terapeuta estendeu a mão para despedir-se de
mim apenas no último atendimento.”
Tais questões quanto a possíveis expressões de afeto e espontaneidade
em uma relação que é interpessoal em sua essência, mas profissional no
contexto, geravam momentos hilários que acabavam por servir ao propósito
de descontrair o clima por vezes tenso da supervisão. Um exemplo bastante
reincidente se dava quanto ao fato de o aluno receber o paciente no espaço do
setting clínico como se ali fosse uma sala de visitas. A efusividade era
tamanha que levava a pensar que o convidado era um amigo. À medida que
eles apresentavam os relatos da sessão, todos riam muito, imitando o colega
em dramatizações que reproduziam o atendimento feito, mas adicionando
comentários de maneira jocosa tal como “sirva-se de um café, fulano, pegue
mais um pedaço de bolo, ciclano”. Eu também ria, enquanto procedia às
pontuações e correções. Já com o primeiro grupo de supervisão em clínica I,
eu aproveitei para informar que os divertidos espelhos feitos por eles
refletiam, em parte, um costume de Winnicott de oferecer chás, biscoitos e
doces aos seus pacientes, costume, aliás, igualmente preservado por mim. Em
minha sala há uma bancada com biscoitos, balas, bombons, água, chás e cafés
à disposição dos pacientes que se servem quando querem. Eu não preciso
dizer que o espanto geral foi seguido por muitas perguntas e mais risadas
provenientes das novas performances que ocorreram.
Interessante que essa informação foi levada ao pé da letra pelos
alunos, e o costume continuou por ocasião da supervisão em clínica II; todos
passaram a levar doces, salgados, água, sucos e refrigerantes que eram
consumidos à medida das necessidades e desejos de cada um. Esta atitude
inaugurou o que foi, naturalmente, incorporado às supervisões nos anos
seguintes, uma vez que eram colegas e compartilhavam a respeito do que
ocorria em seus grupos. A prática tornou-se bastante conveniente pelo fato de
que muitos dos alunos vinham direto do trabalho sem ter se alimentado.
Alguns estavam mesmo só com o almoço até a hora da supervisão, 19:10.
Indo além, tal costume também serve para criar um ambiente de intimidade e
aconchego em um setting acadêmico de aprendizagem winnicottiana. É
importante ressaltar que eu vi com eles as características do setting
terapêutico a fim de fortalecer o entendimento de que, embora Winnicott
oferecesse este certo refrigério ao paciente, o mesmo sendo feito por mim,
ainda se tratava de um setting terapêutico que devia ser preservado em suas
especificidades.
Uma extensão da necessidade desse entendimento me levava a,
praticamente, surrar, a cada correção dos relatos de atendimento formal, a
nota “não dizer ao paciente para sentar-se e ficar à vontade, que aquele
espaço era feito para ele, era dele” e outros desdobramentos da ideia. Penso
que dentre as razões para as atitudes desajeitadas e desconfortáveis, pesava o
fato de que esses futuros psicólogos que se encontravam, temporariamente,
sob os meus cuidados acadêmicos, estavam tendo que vestir duas novidades
ao mesmo tempo: a de atender, pela primeira vez, em clínica e a de fazê-lo,
por escolha, em um modelo diverso do que, teoricamente, haviam aprendido
até ali, ou experienciado em suas psicoterapias pessoais.
Cabe lembrar que a Psicanálise de Winnicott faz voo rasante na
disciplina Psicodinâmica, disputando espaço com as outras escolas que
compõem o arcabouço da orientação clássica. Portanto, os alunos tinham
pouco conhecimento, ou mesmo nenhum, da Teoria do Amadurecimento
Pessoal que é, fundamentalmente, a proposta inovadora do pediatra e
psicanalista inglês, e eu creio que este aspecto intensificava a tendência deles
de se apoiar em escolas de Psicologia estudadas durante o curso.
Respeitando a sede de conhecimento de todos neste início da prática
clínica, mesmo que em voo ainda rasante, foi possível fazer pousos mais
demorados sobre o paradigma que, dentre outras próprias e peculiares
especificidades, desenhou novos horizontes no universo psicanalítico
contrapondo necessidades a desejos; antecipando o Ego ao Id; costurando a
história da natureza humana em um tecido de dependências e independências
que se alternam, enquanto caminham de absolutas a relativas; um paradigma
que atribui à alternância de estados tranquilos e excitados do bebê a
possibilidade da construção de sua personalidade saudável, enquanto um
vigilante e cuidadoso ambiente se encarrega da vida que, idealmente, deve se
cumprir como sugere o título da obra de Barry Stevens: ‘Não Apresse o Rio,
Ele Corre Sozinho’.
Uma psicanálise que se contrapõe ao modelo edípico com o seu
enunciado:
[...] qualquer que seja o distúrbio com que o analista se defronte,
interpretação e tarefa analítica podem ser ditas uma e mesma coisa, porque,
por definição, todos os distúrbios psíquicos – neuroses ou psicoses –
remetem a um conflito pulsional reprimido, seja este de caráter edípico ou
pré- edípico. Diferentemente disso, na clínica winnicottiana do
amadurecimento [...[ interpretar não é mais o que define, de princípio, a
tarefa analítica ... o modo pelo qual um dado tratamento deve ser conduzido
é determinado pela necessidade do paciente, que varia conforma a natureza
do distúrbio que ele apresenta (DIAS, 2011 in REIS, 2011, p.101).
Como já disse Ana Maria Aguirre (2000), qualquer nova situação na
vida envolve ansiedade e cabe ao supervisor contê-las, procurando trabalhar
conteúdo e contexto num sentido construtivo. Foi o que eu procurei fazer.

Psicodiagnóstico
Conforme já informei anteriormente neste capítulo, o objetivo
primeiro do Estágio em Psicodiagnóstico era o próprio psicodiagnóstico,
tanto em relação aos seus constructos, quanto às suas variações práticas. Era
preciso estudar com os alunos esse trabalho clínico que tem por função
auxiliar o psicólogo a obter informações sobre a história de vida do paciente,
seu dinamismo psíquico, suas funções cognitivas, potencial criativo e outras
funções mentais, bem como traços de personalidade que orientam o terapeuta
na formulação de hipóteses diagnósticas. É a avaliação psicológica mais
utilizada para identificar, compreender e descrever um determinado distúrbio
(MARQUES, 1989).
Trata-se de uma prática clínica bem delimitada que pretende chegar a
uma descrição e compreensão, a mais completa possível, da personalidade
total do paciente, ou do grupo familiar, da patologia e das medidas
terapêuticas enquanto abrange os aspectos passados, presentes (diagnóstico) e
futuros (prognóstico) da personalidade do paciente (LOPES, 2002;
OCAMPO e ARZENO, 2003).
O processo começa pela solicitação de consulta feita pelo paciente e
prossegue através de etapas que se iniciam com a anamnese permeada por
entrevistas, observações clínicas, aplicação de testes psicológicos, podendo se
intercalar, também, o brincar lúdico (ludodiagnóstico) com crianças
(ARZENO, 1995).
Existem vários tipos de atuação e procedimentos clínicos como o
modelo mais tradicional que reserva a devolutiva geral resultante do processo
avaliativo para o final dos atendimentos e o que efetua intervenções durante
todo o processo. Esta proposta emprega técnicas projetivas como meios de
comunicação entre o psicólogo e o paciente e pode ser realizada de acordo
com o modelo Psicométrico, o Fenomenológico-Existencial e o Psicanalítico
(BARBIERI, 2009).
Mas os alunos queriam saber de Winnicott, aquele que tinha a sua
teoria como única companhia ao explorar um novo caso:
A única companhia que tenho ao explorar o território desconhecido de um
novo caso é a teoria que levo comigo e que se tem tornado parte de mim e
em relação à qual sequer tenho que pensar de maneira deliberada. Esta é a
teoria do desenvolvimento emocional do indivíduo, que inclui, para mim, a
história total do relacionamento individual da criança até seu meio ambiente
específico (WINNICOTT, 1984, p.14).
Sendo assim, fomos a ele com o que deu.
Psicanálise de Winnicott e as Consultas Terapêuticas
De início, ajudei os alunos a entender que, para Winnicott, as coisas
são sempre uma questão de crescimento e desenvolvimento esclarecendo que,
em termos desse último aspecto, “saúde significa uma maturidade relativa à
idade do indivíduo” (WINNICOTT, 1999, p.4). Indo além, dizia o autor,
“nunca penso no estado de uma pessoa aqui e agora a não ser em relação ao
meio ambiente e ao crescimento dela desde sua concepção até a época do
nascimento” (WINNICOTT, 1999, p.139).
Cabe lembrar que ele dá especial ênfase ao fato de que um bebê nasce
em um ambiente real, externo, cuja concretude terá participação e influência
determinantes no amadurecimento do ser em desenvolvimento. Ou seja, para
que um bebê e uma criança se tornem pessoas reais, precisa existir um
ambiente que sustente e facilite os processos de amadurecimento.
[...] a mãe e o pai não produzem um bebê como um artista produz um
quadro ou o ceramista um pote. Eles iniciam um processo de
desenvolvimento que resulta em existir um habitante no corpo da mãe, mais
tarde em seus braços, e após no lar proporcionado pelos pais; este habitante
se tornará algo que está fora do controle de qualquer um (WINNICOTT,
1983, p.81).
Quanto ao uso das palavras “normal” e “saudável”, ao nos referirmos
a pessoas, ele considerava que, provavelmente, sabíamos o que queríamos
dizer (WINNICOTT, 1999, p. 3). Essa maneira de Winnicott se expressar é
genuína e cativante, aplicando-se a tudo o que ele abordou em seus textos.
Por exemplo, quando ele fala sobre o trabalho com análise no seu sentido
original, a sua autenticidade e firmeza de personalidade transparecem em
suas palavras: “ao praticar psicanálise, tenho o propósito de: me manter vivo;
me manter bem; me manter desperto. Objetivo ser eu mesmo e me portar
bem” (WINNICOTT, 1983, p.152).
Mas, por volta dos anos vinte, havia uma excessiva demanda por
tratamento psicológico, o que tornou inviável a proposta de uma psicanálise
segundo os termos clássicos originais. Frente à impossibilidade, a proposta de
Winnicott foi a de realizar atendimentos em poucas sessões, entre uma a três,
e é essa prática denominada de Consultas Terapêuticas que faz a interface
com o psicodiagnóstico. São intervenções rápidas, pontuais, junto ao
paciente, nas quais as entrevistas fazem parte do manejo clínico. A ideia
fundante da proposta pode ser abstraída das palavras do autor a respeito do
quanto se deve fazer em um trabalho clínico: “Em análise se pergunta: quanto
se deve fazer? Em contrapartida, na minha clínica, o lema é: quão pouco é
necessário ser feito?” (WINNICOTT, 1983, p.152).
É importante esclarecer que, com as consultas terapêuticas, Winnicott
tratou da aplicação da Psicanálise na Psiquiatria Infantil. Ele considerou
difícil chamar de técnica o que se aplica a esse trabalho, principalmente pela
proposta ser extremamente flexível, uma vez que não existem casos iguais, e
a troca que se dá entre o psicanalista e o paciente é muito mais livre em
relação a como seria no caso de um tratamento psicanalítico puro. Disse,
ainda, que “não seria possível a alguém saber o que fazer baseando-se no
estudo de apenas um caso. Vinte casos podem dar uma boa ideia, mas o fato é
que não há casos semelhantes” (WINNICOTT, 1984, p.10).
Winnicott considerava, ainda, que a mera explanação dos casos não
levava à aprendizagem. Os estudantes deveriam ler cuidadosamente, estudar
os casos em sua totalidade e serem precisos e honestos quanto aos registros
dos mesmos. Ele usava de entrevistas e fazia anotações de todas as falas,
incluindo as suas. Considerava a importância dessa prática porque muito da
entrevista e seus principais detalhes se perdem “como um sonho morre ao
nascer do dia” (WINNICOTT, 1984, p.11).
O brincar, para ele, era um tema em si, sendo que a atenção deveria
estar voltada à brincadeira, não importando tanto o seu conteúdo. Intercalava
desenhos, técnica que ficou conhecida como o Jogo dos Rabiscos, que é um
meio do analista entrar em contato com a criança participando, livremente, do
jogo. Vale dar espaço às palavras do próprio autor a respeito dessa premissa:
É quase como se a criança, através dos desenhos, estivesse lado a lado
comigo e, de certo modo, tomando parte ao descrever o caso, de forma que
o relatório do que a criança e o terapeuta dizem tende a soar como verdade
(WINNICOTT, 1984, p.11).
Nesses atendimentos, a primeira entrevista deve ser bastante
valorizada tanto pela busca de informações as mais completas possíveis a
respeito do paciente, quanto por ser um momento importante para o
estabelecimento da confiança do paciente no terapeuta.
[...] o trabalho feito nessa entrevista é simplesmente um prelúdio para uma
psicoterapia mais demorada ou mais intensa, mas pode facilmente acontecer
que uma criança esteja preparada para isso somente após experimentar o
entendimento concernente a essa espécie de entrevista. Naturalmente, a
criança pode se sentir mais compreendida do que realmente foi, mas o
efeito terá sido o de haver dado à criança alguma esperança de ser
compreendida e talvez até mesmo de ser ajudada (WINNICOTT, 1984,
p.13).
Outro ponto importante e que deve ser observado neste trabalho é a
necessidade de se proceder a uma avaliação do meio ambiente do paciente. O
ambiente não deve ficar de fora em nenhum momento, uma vez que tem
participação significativa sobre o que se passa com a criança.
A importância da comunicação deve ser relevada a partir dos contatos
iniciais com o paciente lembrando, sempre, que nenhuma consulta se
assemelha à outra uma vez que se trata de um encontro real construído por
particularidades tanto do analista, quanto do paciente (WINNICOTT, 1984).
Quanto à saúde da psique, a avaliação deve ser feita pautando-se no
crescimento emocional que consiste em uma questão de maturidade. “O ser
humano saudável é emocionalmente maduro tendo em vista sua idade no
momento” (WINNICOTT, 1990, p. 30). A relação entre saúde e maturidade
é, portanto, absoluta. A saúde, então, deve constantemente ser avaliada em
termos de crescimento emocional.

O Valor da Experiência
Mesmo pesando o pouco domínio teórico dos alunos a respeito da
Psicanálise de Winnicott, procurei me valer, durante o percurso das
supervisões, das considerações do próprio autor a respeito de ambiente
satisfatório:
[ ...] se o ambiente for satisfatório, então o bebê, a criancinha, a criança em
crescimento, a criança mais velha e o adolescente, têm chances de crescer
de acordo com o potencial herdado. Do outro lado da linha, em que a
provisão ambiental não é satisfatória, o indivíduo, em alguma medida, ou,
talvez, em grande medida, não é capaz de alcançar plenitude em relação a
seu potencial (WINNICOTT, 1999, p.246).
Então, tratei de criar um ambiente que os ajudasse a compreender o
mínimo que fosse do novo paradigma, mas o suficiente para que o gesto do
futuro terapeuta no setting clínico, junto ao paciente, fosse obra de sua
espontaneidade e criatividade. Foi assim que trabalhei, desde os nossos
primeiros encontros, sem a preocupação de avançar na riqueza da obra do
autor. Pelo contrário, não me incomodava, por exemplo, repetir e repetir, o
quanto fosse necessário, arranjos conceituais de maneira a plantar o
entendimento inequívoco de que o paciente deve ser visto em sua
individualidade e não reduzido a sintomas e rótulos psicopatológicos. É
preciso chegar a um diagnóstico, sim; o próprio Winnicott disse a respeito do
quanto economizaríamos de tempo, isso valendo tanto ao paciente, quanto a
nós mesmos, se o fizéssemos com mais rapidez. Mas, é necessário dar tempo
ao tempo de cada um e, no caso, o tempo era do aluno.
Assim, eu procurei trabalhar os conceitos e principais autores que
falam sobre psicodiagnóstico, introduzindo a Psicanálise de Winnicott a
partir de uma compreensão interativa sobre a relação paciente e terapeuta.
Mas, embora a tarefa tenha sido desde o início apaixonante, eu me
questionava o tempo todo sobre a melhor maneira de ajudar alunos
incipientes nesse autor e sua teoria a se sustentarem nela em sua primeira
prática clínica. Vale lembrar que Winnicott não mais pensava sobre a teoria
em seus atendimentos. Isso porque Winnicott é a sua teoria do
desenvolvimento emocional do indivíduo. Na apresentação à Edição
Brasileira de Explorações Psicanalíticas, Outeiral, em Winnicott (1994, p.ix),
disse que para se compreender esse autor “é necessário brincar com seu
pensamento, ou seja, criar um espaço transicional que permita brincar, antes
de compreender, a experiência que sua teoria possibilita.”
Então, valendo-me dessa concepção, de muita espontaneidade e
criatividade, pus-me a brincar com a teoria no setting de supervisão através
de manejos que dessem conta de cobrir a lacuna teórica, enquanto
amparavam o exercício da prática. Uma tentativa, às vezes bem sucedida,
outras não, de assegurar condições mínimas que fossem para que eles
conseguissem sustentar o trabalho com os pacientes e familiares. Foi uma
tentativa quase mágica de introduzir o que chamei de retalhos teóricos no
escasso tempo acadêmico do estágio, costurando pedaços entre as
apresentações orais dos casos intercaladas por implacáveis, ora
comemorados, ora lamentados, feriados.
Para orientar o início dos atendimentos, lancei mão dos conselhos do
próprio autor:
Se uma pessoa vem falar com você e, ao ouvi-la, você sente que ela o está
entediando, então ela está doente e precisa de tratamento psiquiátrico. Mas
se ela mantém o seu interesse independentemente da gravidade do conflito
ou sofrimento, então você pode ajudá-la (WINNICOTT, 2001, p.1).
Em referência às nossas batalhas pessoais e fortalecendo a
importância da psicoterapia pessoal, Claire Winnicott relatou que durante
toda a vida o autor sempre se manteve em contato com o seu mundo onírico e
deu continuidade à sua própria análise. “Isso foi a corrente subterrânea
profunda de sua vida, o acompanhamento orquestral do tema principal, e,
aqui, seu poema chamado Sono é importante: Deixe que a sua raiz vá ao
fundo de sua alma. Sugue a seiva da fonte infinita de seu inconsciente e
permaneça sempre verde” (WINNICOTT, RAY, MADELEINE, 1994, p. 13).
Mas, apesar de todos os limites e dificuldades, a experiência foi
coroada com a sutileza do despertar de paixões por Winnicott e a sua teoria
do amadurecimento, o que pude observar através do brilho no olhar e
expressões de encantamento na face de alguns alunos. A observação se
confirmou pela escolha de muitos em prosseguir com a abordagem nos
estágios clínicos subsequentes.
Encerrando minha participação nesta obra, gostaria de relatar o que se
passou entre mim e uma aluna que atendeu a uma adolescente no estágio. Ela
me fez a seguinte solicitação ao final de uma supervisão na qual falávamos
sobre a difícil missão de ser terapeuta: então me ensina!
Foi a essa aluna que, na ocasião da solicitação, eu escrevi as reflexões
que seguem: quando uma pessoa chega para uma psicoterapia, pode ser um
sinal de que ela tem esperanças de ali obter algum tipo de auxílio que
precisa. Em toda busca por um terapeuta, está implícito um pedido de ajuda.
Em todo gesto do paciente, está implícita a tentativa de alcançar o mundo
que, por alguma razão, está difícil, ou impossível de ser alcançado sozinho.
Em nosso trabalho, às vezes, precisamos retomar a parceria mãe-bebê desde
o princípio dos tempos, só que, agora, como parceria paciente-terapeuta.
Quando o gesto de busca é feito, é preciso que o terapeuta esteja inteiro e
disponível ao encontro, despido tanto de pretensões, quanto de julgamentos.
O momento do psicodiagnóstico tem o privilégio de poder inaugurar essa
relação pautada na confiabilidade. É importante que a paciente, nesses
poucos encontros, possa falar de si mesma, trazer as suas angústias na
presença de alguém atento a ela, que não a deixará sozinha, falando com o
vazio como se dá no próprio lar, onde o que está à revelia do desejo e
expectativa dos pais é de única e total responsabilidade da filha ingrata.
Porque eles, os pais, entendem que ‘fizeram tudo o que puderam e que estava
ao alcance deles’. Apenas esqueceram que desejar uma filha não estava em
seus planos e negligenciaram, desde o início, o amor que resultaria em
cuidados para com ela. O seu nascimento foi um grave acidente do qual eles
jamais se recuperaram. Embora tenham evitado tocar neste assunto durante
todo o crescimento da criança, esqueceram que ela tinha ouvidos por todo o
corpo e, assim, apreendeu as coisas de maneira própria. Portanto, quando o
pai, lá na frente, disse que ela era linda, já era tarde. Ela já tinha dado um
jeito de fazer as suas ‘agiotagens’ e buscar os seus lucros, mesmo que falsos.
Enfim, ela irá precisar de muita ajuda. Tomara que volte para atendimento o
ano que vem.
No mais, que as palavras de Winnicott permaneçam vivas:
[...] as teorias serão reformuladas, propondo que os distúrbios psiquiátricos
não são produzidos por conflitos emocionais, mas pela hereditariedade,
constituição, desequilíbrio hormonal e ambientes brutais e inadequados. O
fato, porém, é que a vida em si mesma é difícil e a psicologia se refere aos
problemas inerentes ao desenvolvimento individual e ao processo de
socialização; mais ainda, na psicologia infantil temos de nos defrontar com
a batalha em que nós próprios estivemos uma vez, ainda que em geral já a
tenhamos esquecido, ou da qual jamais estivemos conscientes
(WINNICOTT, 1990, p.28).

REFERÊNCIAS
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CAPÍTULO 3
O Jogo dos Rabiscos no Psicodiagnóstico e na
Relação da Criança Com o Analista
Josiane Cristine Ramos Ferreira
Introdução
O convite para contribuir com este capítulo foi muito importante para
mim por ter acontecido justamente quando eu estava aposentando a minha
última caixa lúdica usada para atendimento infantil. Eu não estava
abandonando o atendimento de crianças, mas passando por mudanças de
manejo que refletiam mudanças da teoria. Eis que me chega este desafio de
estabelecer uma conversa imaginária com você, leitor, sobre o jogo do
rabisco no processo psicodiagnóstico infantil, tema estritamente
winnicottiano, que pretendo abordar a partir da minha experiência clínica.
Terminei a minha graduação em Psicologia em 1996. Desde então,
atendo adultos, adolescentes e crianças. No que tange especialmente às
crianças, eu me lembro de uma supervisora de formação kleiniana que me
dizia: “nunca deixe de atender crianças, porque elas nos colocam em contato
direto e bem vivo com o mundo interno.” Isso é uma verdade mesmo.
Iniciei os atendimentos infantis totalmente baseada na teoria de
Melanie Klein. No decorrer do meu trabalho, ao atender uma criança de três
anos e meio de idade, me deparei com Winnicott. A partir disso, me dediquei
a estudar a sua teoria para compreendê-la. Atualmente, todos os meus
atendimentos seguem essa abordagem teórica.
Minha análise pessoal faz parte desse processo de mudança, pois o
meu analista é winnicottiano; e, é muito natural que, mesmo sem desejar ou
perceber, passemos a atender nos moldes de nossa análise pessoal.
Quando iniciei a minha análise, estava dando andamento à formação
na Sociedade de Psicanálise de Campinas (antigo CPCAMP), vinculado à
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Com todas as mudanças
pessoais que vivenciei e que repercutiram nos atendimentos que eu fazia, me
aproximei da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana (SBPW), em
São Paulo, onde hoje faço formação.
Percebo que Winnicott é um autor que mexe no mais profundo e
primitivo de nossas vidas. Ele apresentou uma teoria muito útil para nós
atingirmos um processo de integração, reparando os nossos traumas e
percorrendo uma linha pessoal de amadurecimento. Ele apresenta algo muito
diferente da Psicanálise clássica e da Psicologia de base analítica: um novo
olhar sobre a importante relação do analista com o paciente.
Winnicott, por exemplo, não faz referências à tão famosa
neutralidade, bastante prestigiada na Psicanálise clássica. Ele não afirma que
o analista deve se empenhar em se manter neutro para permitir ser o alvo das
projeções do paciente; pelo contrário, diz que o analista precisa se apresentar
como pessoa, sendo isso parte da técnica. Apresenta-se como pessoa não quer
dizer que o analista vai contar tudo de sua vida ao paciente. O sentido é o de
ser um analista verdadeiro, espontâneo e real com seu paciente.
Outro aspecto da teoria de Winnicott digno de nota é que ela é
totalmente construída sobre o amadurecimento pessoal, algo inato ao ser
humano, sendo a saúde o foco. Quando o amadurecimento não ocorre como
deveria, indica que deve ter havido falhas ou traumas que interromperam,
distorceram e dificultaram o desenvolvimento daquela pessoa.
Um outro ponto da técnica winnicottiana, eu diria que é um grande
marco, é aquilo que diz respeito ao manejo: a forma pela qual o analista lida
com o paciente. Isso fundamenta o enfoque de não ser a cura pela palavra,
mas a cura pelo cuidado.
A partir dessa descrição sobre a teoria inicial que eu seguia e aonde
cheguei teoricamente depois, posso afirmar que ocorreu a inserção de um
novo paradigma nos meus atendimentos, sendo isso sentido também no
psicodiagnóstico infantil.
Por mais de dez anos, procedi ao psicodiagnóstico infantil da seguinte
forma: primeiro atendia os pais e fazia a anamnese, em uma ou duas sessões;
depois, atendia a criança por cinco ou seis sessões, sendo que na primeira lhe
explicava o motivo de ela estar ali, que seria para ajudá-la a entender o que
estava acontecendo, sendo isso a justificativa para fazer algumas atividades
comigo.
Geralmente começava pelo teste do desenho-estória (do qual ainda
gosto), pedia para a criança fazer um desenho livre com lápis preto de
escrever em uma folha horizontal, que fizesse o melhor que pudesse, mas
sem preocupação com desempenho. Terminado o desenho, ela me contava
uma história e dava um título a ele. Então, eu lhe entregava uma segunda
folha e procedia da mesma forma. No total, eram 5 folhas, tomando por volta
de duas sessões. Na terceira sessão fazia o teste House Tree Person (HTP) e o
Teste da Família. Na quarta, fazia a Hora do Jogo.
Na Hora do Jogo ou Hora Lúdica, eu utilizava uma caixa lúdica, que
ficava aberta no chão, e brinquedos postos sobre a mesa. Eu dizia que a
criança poderia brincar como bem entendesse sem, contudo, destruir a sala ou
me bater – evitando algo que colocasse a nossa segurança em risco –
enquanto eu permaneceria observando-a. Essas instruções são bem clássicas
no trabalho com crianças feito dentro dos moldes da técnica que estou
descrevendo.
A caixa aberta tem o sentido de não torná-la um elemento
persecutório à criança sendo que, caso estivesse fechada, poderia gerar
expectativas e até temores à criança quanto ao que poderia estar ou sair de
dentro da caixa. Quando necessário, me valia de outros testes como, por
exemplo o WISC. Nesse caso, demandaria mais encontros com a criança.
Na última sessão, eu fazia a devolutiva com a criança e, finalizando o
psicodiagnóstico, a devolutiva com os pais quando, então, lhes apresentava
algumas hipóteses sobre a dificuldade da criança.
Com relação ao lugar dos pais no atendimento infantil, vivenciei algo
muito marcante durante uma supervisão de caso, durante a minha primeira
formação em Psicanálise, na qual questionei um professor que dissera que
não precisaríamos atender os pais nenhuma vez. Como assim? perguntei. Eu
me lembro dele tentando me convencer que aquilo que realmente importava
era a criança diante de mim e nada mais: nem a sua história, nem seus pais e
nem o que eles diziam sobre a criança. Em vão, rebatia: “mas eu preciso dos
pais, tanto para fazer a anamnese e conhecer a história da criança, como
depois para fazer a devolutiva, talvez algumas intervenções com os pais,
aliás, é assim que funciona o psicodiagnóstico.”
Esse assunto de “quando atender aos pais” era uma discussão
recorrente em vários grupos que participei junto do debate sobre como
envolver os pais ou sobre encaminhá-los a outro colega. São várias as
opiniões, umas bem diferentes das outras.
A experiência que tive naquela supervisão só hoje consigo entender
(não naquela época, porque certas coisas só entendemos com o tempo) que
era coerente com a teoria sobre o aparelho psíquico da criança, que era o que
interessava àquela abordagem de meu professor. Isto é, ele buscava entender
como era o funcionamento desse aparelho, os seus mecanismos, a
organização dele, aspectos inconscientes necessitando se tornar conscientes e
condicionados à melhora daquela criança, as projeções, os fenômenos
transferenciais, contratransferenciais e como intervir com interpretações
sobre o conteúdo manifesto. Observem que, segundo a linha teórica desse
professor, o ambiente não era real e que, portanto, não haveria mesmo a
necessidade de envolver os pais visto que ele considerava tudo uma
manifestação do aparelho psíquico da criança.
Winnicott, na verdade, quando fala de inconsciente, não é no sentido
de algo a ser necessariamente interpretado. Aliás, ele postula dois tipos de
inconscientes: um “reprimido”, igual ao que Freud postula, e outro
originário, que contém todas as experiências – desde as mais primitivas –
revisitadas dentro da relação com o analista.
Uma coisa que aprendi é que sempre que ouvimos algo, é preciso
saber de qual lugar a pessoa nos fala, quais os pressupostos teóricos
envolvidos na afirmação. Há situações impossíveis de ser debatidas porque
estamos falando a partir de paradigmas muito distintos. Nesses casos, resta-
nos entender e respeitar o caminho de cada um na abordagem teórica que
cada um acredita. Isso aconteceu muito com Winnicott quando trouxe um
novo “paradigma”, de não considerar o aparelho psíquico e considerar de
extrema importância o ambiente e a relação entre o analista e o paciente.
No entanto, atualmente, continuo envolvendo os pais, nem sempre no
primeiro contato: às vezes vejo a criança primeiro, às vezes os pais,
dependendo da situação. Por exemplo, pais muito ansiosos são atendidos
primeiro.
Percebam que parcialmente realizo as sessões conforme a sugestão
desse meu professor, contudo, a motivação é diferente: ela se apoia no
relacional, no ambiente e não na teoria do aparelho psíquico. A diferença
também se evidencia quando, em determinado momento, envolvo aos pais
que, para mim, podem fazer parte do tratamento, assim como nos diz
Winnicott.
Para avaliar um paciente, Winnicott não utilizava o termo
psicodiagnóstico, como habitualmente a Psicologia usa, e nem estudo de
caso, termo coloquialmente usado entre os psicanalistas para se realizar
avaliações.
Em toda sua obra, o que encontro é o termo Entrevista, Avaliação
Psicológica, Consulta Terapêutica, Avaliação de Caso, Entrevista
Reduplicada, Atendimento de Caso e Diagnóstico. Aparece bastante o termo
Entrevista para se referir ao diagnóstico, termo que escolhi para usar neste
capítulo toda vez que me referir ao “psicodiagnóstico” para facilitar a leitura.
Winnicott, num primeiro encontro, não fazia somente observações ou
diagnósticos, muitas vezes realizava intervenções efetivas, tocava em pontos
específicos e necessários que promoviam mudanças reais nos pacientes, por
vezes em apenas uma sessão, que são as chamadas Consultas Terapêuticas.
Por vezes ele utilizava uma técnica criada por ele mesmo: o Jogo dos
Rabiscos.
Winnicott fala muito de integração, desintegração e não-integração
do eu (self). Nos atendimentos, ele não utilizava a caixa lúdica. Essa postura
pressupõe que pode não haver um eu integrado, não restando sentido de
haver uma caixa lúdica representando o conteúdo desse eu. Em meus
atendimentos, agora, há brinquedos na sala, mas eles não ficam mais dentro
da caixa lúdica, ficam soltos e ao alcance da criança.
Penso que se Winnicott tivesse que opinar sobre a caixa aberta, vazia,
como dito anteriormente, ele opinaria sobre o vazio da caixa como um
disparador de agonias impensáveis.
Uma outra questão é que não se faz necessário fazer referência, via de
regra, ao paciente não machucar o analista ou não se machucar a si próprio
como uma condição de ele estar ali com o analista na sessão. A postura do
analista é de conter o paciente e intervir, se for o caso, não só com palavras,
com atitudes também. A função do analista é estar disponível para o paciente
vir a ‘existir’ como pessoa.
Para a entrevista, não há um tempo pré-estipulado, e quando se chega
a algumas hipóteses sobre a criança e sobre seu ambiente (família, escola
etc.), há uma conversa com os pais ou cuidadores e com quem for necessário
e também quantas vezes forem necessárias (e possíveis).
Os pais são boa parte do ambiente da criança e, muitas vezes, a
criança está adoentada em decorrência da doença dos pais. Isso justifica se
fazer um trabalho com os pais. No mesmo sentido, é com os outros ambientes
da criança como a escola, por exemplo, que, às vezes, precisa ser envolvida
no tratamento.
A entrevista para Winnicott, como todas as sessões, é totalmente
relacional, experiência mútua e única entre analista e paciente. Essa vivência
com a criança tem o intuito de perceber em quais momentos do
amadurecimento dela ocorreram falhas ambientais traumáticas que
obstaculizaram o seu desenvolvimento pessoal.
Perceber os tipos de medos, angústias, agonias impensáveis a que a
criança está submetida, se o self está integrado ou não e as características do
ambiente da criança são parte da preocupação na prática Winnicottiana.
Toda sua teoria é baseada na relação. Sem desconsiderar a
hereditariedade e a genética, Winnicott considera o ser humano totalmente
como sendo fruto da relação dele com o ambiente. Ou seja, uma pessoa pode
ter uma predisposição genética ou uma influência hereditária para algo, mas é
o ambiente que lhe dará o contorno e o seu real destino do amadurecimento.
Levo bastante em conta o fato de que, enquanto analistas, temos que
ser fiéis a uma teoria: já vi profissionais de outras abordagens fazendo uso da
teoria de Winnicott apenas quando lhes é conveniente ou quando não sabem
mais onde encontrar apoio teórico para as complexidades da clínica
psicológica moderna e afirmam, equivocadamente, que “partem para o
acolhimento, holding, handling...”, quando diante de pacientes mais
regredidos.
Se estamos em uma teoria, ela tem que ser a nossa base. Isso é ainda
mais verdade na teoria winnicottiana, cujo setting é composto pelo manejo,
algo totalmente diferente da Psicanálise clássica. Só o fato de não estar
focada no desvelamento do inconsciente, por exemplo, mas no aspecto
relacional, já faz toda uma diferença.
Ao fazer essas afirmações, não desmereço a base psicológica do
psicodiagnóstico. Simplesmente, tento mostrar a necessidade de estarmos
bem localizados quanto a uma teoria, que se realiza com uma técnica e que
tem meandros no manejo de situações práticas, como as que vêm a seguir.
Mudar de teoria foi algo parecido com o término da minha Faculdade
de Psicologia, claro que, com uma outra qualidade de sentimentos. Lá atrás,
quando iniciei a prática dos atendimentos, havia muitas coisas a considerar:
fazer corretamente, anotar tudo, buscar ajuda total de supervisores, ter certeza
de estar no caminho certo. Isso faz parte do desenvolvimento de bons
psicoterapeutas: praticar a clínica, estudar, fazer análise, buscar clareza
teórica na prática do trabalho, participar de grupos de estudos etc.
Ser eclética não me é confortável. Podemos e devemos conhecer
vários autores, mas temos que ter domínio do que estamos fazendo, qual
autor estamos considerando e qual tipo de intervenção ou manejo estamos
realizando.
Nessa introdução tão pessoal, gostaria de lembrar que, muitas vezes a
criança ou o adulto que atendemos precisa também de alguma avaliação e/ou
tratamento com outro profissional, e não está descartado encaminhar para o
neuropsicólogo, o médico psiquiatra, o fonoaudiólogo, o psicopedagogo,
dentre tantos que podem complementar o nosso trabalho. O diagnóstico que
recebemos de outros profissionais pode nos ajudar a entender a criança que
estamos atendendo.
Antes de passar adiante, não tenho a intenção de, neste capítulo, me
deter em teorias que abordam o psicodiagnóstico de uma maneira geral,
tampouco como seria feito psicodiagnóstico à luz da teoria de Melanie Klein,
Anna Freud, Arminda Aberastury, para citar alguns exemplos. Embora elas
tenham lugar como pioneiras no trabalho com crianças, pretendo me deter na
teoria de Winnicott, que compreende o manejo, a atitude relacional do
analista com o paciente, a relação do analista com o ambiente da criança, o
uso da técnica do Jogo dos Rabiscos e a relação que ela suscita entre a
criança e o analista. Assim, pretendo primeiro discorrer sobre Winnicott e,
por fim, sobre o Jogo dos Rabiscos.

Winnicott Propriamente Dito


Donald Wood Winnicott (1896 – 1971), inglês, médico pediatra e
depois psicanalista. Trabalhou muito com crianças. Além de sua rotina
médica, também observava bastante a relação das mães com os bebês, fazia
pesquisas e investigações emocionais. Após muitos anos de profissão,
abandonou a Pediatria e se dedicou inteiramente à Psicanálise.
Na época pós II Guerra Mundial, Winnicott atendeu muitas crianças,
atendia em Instituições, em Hospitais e, por várias vezes, conseguia somente
um atendimento com aquela criança, devido à grande demanda de
atendimentos. Ao atender uma criança pela primeira vez, procurava ver como
essa criança estabelecia a relação com ele e por vezes lançava mão do Jogo
dos Rabiscos (falarei do Jogo mais adiante).
Winnicott sempre referia que ele procurava explorar tudo o que
precisava numa primeira entrevista, e embora cada caso seja um caso e não
dá para entendê-los por padrões de psicopatologias, ele considerava alguns
aspectos importantes no diagnóstico. Em seu artigo “Definição teórica do
campo da psiquiatria infantil”, ele contextualiza o assunto falando do
psicólogo acadêmico e do psicólogo dinâmico (Winnicott, 1965/2011, p.
141):
O psicólogo acadêmico estuda manifestações que, embora
psicológicas, pertencem na verdade ao crescimento físico. Como exemplo,
poderíamos tomar as habilidades que se desenvolvem em conjunto com o
crescimento cerebral e o desenvolvimento da coordenação e as habilidades
que não se desenvolvem devido a lesões cerebrais. A título de ilustração,
poder-se-ia dizer: o psicólogo acadêmico se interessa pela idade em que uma
criança pode começar a andar; já a Psicologia dinâmica teria de levar em
conta o fato de que uma criança pode ser levada, por ansiedade, a andar mais
cedo do que seria natural, ou pode se atrasar por fatores emocionais. Raro
seria o caso em que a data dos primeiros passos de uma criança indicasse
exatamente o termo do desenvolvimento de sua capacidade fisiológica e
anatômica para andar.
Ele faz questão de expor que “o conhecimento da forma da mente não
se identifica ao conhecimento da psique”, embora os dois sejam importantes.
Vemos então que ele diferencia mente e psique.
A natureza humana, escreve o autor, “não é uma questão de mente e
corpo, mas de psique e soma, inter-relacionados” (Winnicott 1988a/1990,
p.44). A mente “constitui uma ordem à parte e deve ser considerada como um
caso especial do funcionamento do psique-soma” (Ibidem p.29).
Interessante notar também que, embora, para um observador externo,
haja uma separação entre o aspecto físico, psíquico e mental, “[...] essa
distinção, contudo, é supérflua para aquele indivíduo cuja mãe cuidou dele
como um todo, como uma existência potencialmente psicossomática, nos
estágios iniciais” (Dias, 2012, p.101).
Quando bem sustentado, um bebê
[...] não tem de saber que é constituído de uma coleção de partes separadas.
O bebê é uma barriga unida a um dorso, tem membros soltos e,
particularmente, uma cabeça solta: todas essas partes são reunidas pela mãe
que segura a criança e, em suas mãos, elas se tornam uma só (Winnicott
1989/1994, p. 432).

Ao se referir aos médicos, Winnicott considerava bastante a


capacidade deles de fazer diagnósticos, mas também afirmava que, para o
médico, quando o que está em jogo é “um conhecimento efetivo do
desenvolvimento emocional normal, o mais provável é que ele se veja em
águas mais profundas que aquelas que ele está acostumado a nadar” pois “o
médico não foi ensinado a aconselhar os pais com relação à criação de um
filho. Ele pode, sem dúvida, fazer uso de sua própria experiência como pai;
mas a Psicologia não é algo que se possa aprender pela observação dos
próprios filhos e de si mesmo” (Winnicott, 1965/2011, p. 143).
Ao falar de sintoma, Winnicott sempre olha para a saúde, pois toda
sua teoria do amadurecimento pessoal é focada na saúde, no
amadurecimento, no desenvolvimento, ao invés da doença. A saúde “é quase
sinônimo de maturidade – maturidade apropriada à idade” (Winnicott,
1979/1983, p.176). Portanto, a saúde “está ligada à maturidade e não à
inexistência de sintomas” (1965/2011, p. 147). Em um outro trecho, ele nos
adverte que “não estamos apenas preocupados com a doença ou com
distúrbios psiquiátricos; estamos preocupados com a riqueza da
personalidade, com a força do caráter e com a capacidade de ser feliz, bem
como com a capacidade de revolucionar e rebelar-se” (Winnicott,
1988b/1999, p.20).
Winnicott enfoca que o próprio desenvolvimento natural e saudável
da vida implica em ter sintomas. A ansiedade, por exemplo, pode ser uma
reação à fatores novos que surgem no próprio desenvolvimento. Inclusive
que, “uma criança praticamente livre de todos esses sintomas pode estar
severamente perturbada”. (Ibidem)
Aos olhos de observadores não muito experientes, uma criança doente
pode ser considerada como normal e vice-versa. E isso é muito sério. Há
pessoas que são consideradas doentes pelo diagnóstico psiquiátrico, mas
podem manifestar índices de saúde. Winnicott (1971b/1975, p. 97): “É
possível a uma pessoa esquizóide ou esquizofrênica levar uma vida
satisfatória e mesmo realizar um trabalho de valor excepcional.” Por outro
lado, “há pessoas tão firmemente ancoradas na realidade objetivamente
percebida que estão doentes no sentido oposto, dada à sua perda do contato
com o mundo subjetivo e com a abordagem criativa dos fatos” (ibidem, p.
97), embora não sejam consideradas doentes.
No livro “Privação e Delinquência” (1984/2005 p. 129; 131),
Winnicott nos diz:
Como é a criança normal? Ela simplesmente come, cresce e sorri
docemente? Não, não é assim. Uma criança normal, se tem a confiança do
pai e da mãe, usa de todos os meios possíveis para se impor. Com o passar
do tempo, põe à prova o seu poder de desintegrar, destruir, assustar, cansar,
manobrar, consumir e apropriar-se. [...] se o lar consegue suportar tudo o
que a criança pode fazer para desorganizá-lo, ela sossega e vai brincar.

E continua:
A criança normal, ajudada nos estágios iniciais pelo seu próprio lar,
desenvolve a capacidade para se controlar. Desenvolve o que é
denominado, por vezes, “ambiente interno”, com uma tendência para
descobrir um bom meio.
Winnicott destacava também que “muitas vezes nos vemos fazendo
diagnóstico de normalidade, ou saúde, diante da existência indiscutível de
sintomas da criança desenvolvendo relacionamentos com seu self, com os
pais, com a unidade familiar e com o ambiente em geral” (Winnicott,
1979/1983, p.176).
Toda a obra de Winnicott, então, é permeada pela questão do ser
humano ter uma tendência inata ao amadurecimento e que a saúde é o foco
mais importante. O termo doença nem é usado em sua obra, mas utiliza, sim,
o termo psicopatologia ou distúrbios maturacionais para se referir a traumas e
falhas que ocorreram no processo de amadurecimento da pessoa e que
obstaculizam ou até mesmo interromperam o seu processo de
amadurecimento, produzindo, inclusive, sintomas.
As falhas que ocasionam o trauma precisam ser consideráveis (perda
da mãe, mudança de casa, alguma invasão, um roubo na casa, reforma, entre
outras coisas) ou repetidas, na relação com os pais (ambiente) - jeito dos pais
se relacionarem com a criança, que não fizeram bem à criança e que viraram
padrões de relacionamento. Tais situações abrangem desde a vida
intrauterina, o parto, o início da vida após o parto e toda a infância da pessoa.
Todo evento traumático pontual pode ser mais ou menos marcante na
vida da pessoa, porque ele na verdade coroa todo um padrão de possíveis
falhas ocorridas anteriormente e depende também de como a pessoa reage a
todas essas falhas. O conjunto falha versus reação, poder-se-ia assim dizer, é
que produzem ou não os distúrbios emocionais, no caso, os distúrbios
maturacionais.
Winnicott, diferentemente de muitos autores, voltou
bastante sua pesquisa, estudo, observações e tratamento às psicoses. Freud,
por exemplo, no início de sua pesquisa, classificava os pacientes como
histéricos ou psicóticos, sempre esteve interessado nos fatores constitucionais
e, depois, passou a desenvolver sua visão estrutural da personalidade. No
centro de tudo, estava a ansiedade de castração e o complexo de Édipo.
Winnnicott disse que Melanie Klein nunca fez um estudo pessoal do
cuidado com a criança psicótica e, assim como Ferenczi, reduziu a questão
das manifestações psicóticas da infância à uma questão de uso adequado da
técnica (1979/1983, pág. 115,116). No entanto, Winnicott foi o autor que
mais se deteve nos casos psicóticos, na questão das ansiedades mais
primitivas, nas agonias impensáveis, tendo observado muitas mães e bebês e
atendido muitas crianças também. Segundo a sua teoria (1979/1983, pág.
116), o ego da criança, inicialmente, depende de um ego auxiliar da mãe (ou
de sua substituta) que atua se adaptando às necessidades da criança,
possibilitando que, gradativamente, a criança possa emergir de um estado de
fusão com a mãe, se separe dessa, e se torne capaz tanto de amar como odiar.
A psicose não fica mais restrita a uma reação à ansiedade associada ao
Complexo de Édipo, ou a uma regressão a um ponto de fixação, ou a ser
ligada especificamente com a posição no processo do desenvolvimento
instintivo do indivíduo (Ibid, pág. 117).
Winnicott nos coloca que, com a vivência obtida na relação com o
analista, o paciente pode e deve “regredir”:
a regressão representa a esperança do indivíduo psicótico de que certos
aspectos do ambiente que falharam originalmente podem ser revividos com
o ambiente essa vez tendo êxito ao invés de falhar na sua função de
favorecer a tendência herdada do indivíduo de se desenvolver e amadurecer
(Ibidem).
Todo ser humano, para Winnicott, parte de um estado de não-
integração para, através da tendência inata ao amadurecimento e um
ambiente suficientemente bom, atingir a integração. Se isso não ocorre, o
analista, que é responsável por criar um ambiente suficientemente bom,
favorecerá, via relação com o paciente, a retomada do processo de
amadurecimento.
O diagnóstico em Winnicott, então, é algo a ser bem entendido, pois
vemos que ele considera muito o quanto a pessoa consegue ser criativa em
sua vida a respeito de si própria e com o outro, como ela toca a sua vida
adiante, se ela consegue produzir e se é capaz de fazer integração com o
sentido de amadurecimento pessoal e também considera a psicopatologia ou
os distúrbios maturacionais.
Ao atender uma pessoa, Winnicott nem sempre fazia psicanálise,
muitas vezes era psicoterapia, atendimento de caso, consulta terapêutica,
outras vezes utilizava só a entrevista.
O atendimento de caso (casework) é descrito por Winnicott
(1965/2011, p. 177) como:
“[...] um processo de solução de problemas. O termo atendimento de caso é
usado para descrever a função total de uma agência particular no trato de
um determinado problema”. Muitas vezes acontecia pelo assistente social, e
o “atendimento de caso torna-se o elemento principal nos casos que, além
do distúrbio da criança, há uma deficiência ambiental que precisa ser
corrigida” (Ibidem, p.192).
Winnicott sempre estava em contato com outros profissionais e ele
mesmo tinha uma equipe junto com ele, uma equipe bem preparada e
sintonizada com ele, e até imcumbia a assistente social a fazer intervenções
na casa da criança.
A psicoterapia,
é coisa totalmente diferente, e muitas vezes se desenrola sem que um
atendimento de caso se desenvolva em paralelo [...] esses dois processos, o
atendimento de caso e a psicoterapia, na prática, muitas vezes coexistem e
se tornam mutuamente dependente; vale notar, porém, que o atendimento
de caso não pode ser utilizado para escorar ou remediar uma terapia
fracassada, nem pode transformar-se em psicoterapia sem acarretar uma
grande confusão. (Ibidem, pág. 177)
Na entrevista, Winnicott diz que
haverá aqueles casos em que se faz um profundo trabalho na circunstância
especial da primeira entrevista (ou entrevistas) e as mudanças resultantes na
criança podem ser utilizadas pelos pais e aqueles que são responsáveis no
meio social imediato, de modo que, considerando uma criança com
dificuldade em relação ao desenvolvimento emocional, a entrevista
resultará na dissolução da dificuldade e num momento progressivo no
processo de desenvolvimento (Winnicott 1971 a/1984 p.13).
Em contrapartida, “há uma categoria de casos que essa espécie de
entrevista psicoterapêutica deve ser evitada”, não no sentido de que com uma
criança muito doente não é possível um trabalho eficaz, mas no caso de a
criança sair bem desse atendimento e retornar para uma situação familiar
ruim ou anormal. Por conta disso, Winnicott fazia questão de checar se o
ambiente da criança era ao menos médio, para que o trabalho terapêutico
pudesse realmente ter sua continuidade em casa: “Confio em um ambiente
desejável médio para encontrar e utilizar as mudanças que ocorrem no
menino ou na menina durante a entrevista, mudanças que indicam uma
anulação da dificuldade no processo de desenvolvimento” (Ibidem).
Ele via que a principal “dificuldade na avaliação dos casos para essa
espécie de trabalho é a de avaliar o meio ambiente imediato da criança”
(Ibidem). E eu vejo que ainda é até hoje. E ainda acrescentou:
Onde há um poderoso e contínuo fator externo adverso ou ausência de
consistente cuidado pessoal, é preciso evitar essa espécie de procedimento,
devendo-se sentir inclinado a explorar o que pode ser feito mediante
“tratamento cuidadoso” ou ainda instituir uma terapia que possa dar à
criança a oportunidade para um relacionamento pessoal do tipo geralmente
conhecido como transferência” (Ibidem, p.13,14).
Não me deterei aqui neste tópico do “tratamento
cuidadoso”, só salientarei que Winnicott sempre pensava em formas de
atender seu paciente.
Em algumas situações, a entrevista era um prelúdio para a
psicoterapia mais demorada ou mais intensa:
[...] mas pode facilmente acontecer que uma criança esteja preparada para
isso somente após experimentar o entendimento concernente a essa espécie
de entrevista. Naturalmente, a criança pode se sentir mais compreendida do
que realmente foi, mas o efeito terá sido o de haver dado à criança alguma
esperança de ser compreendida e talvez até mesmo de ser ajudada (Ibidem,
p. 13).

Uma das dificuldades que Winnicott via nessa entrevista é de que,


quando ela era bem-sucedida em termos de entendimento, “a criança pode
facilmente esperar prosseguir em uma terapia intensiva, [...], mas não é isso o
que geralmente acontece” (Ibidem).
Acredito que, entre vários possíveis motivos, um deles seria pela
impossibilidade de se ver a criança novamente, devido grande demanda no
contexto da época.
Na entrevista, ele dividia os casos em três partes (Winnicott,
1965/2011), p. 183:

1. Aqueles integrados a partir do interior (onde o trabalho profissional dá


subsídios a uma ação dos pais).
2. Aqueles que contêm um elemento desintegrador (onde o atendimento
de caso precisa desenvolver uma dinâmica que contrabalance o
elemento desintegrador).
3. Os casos caracterizados por uma ruptura ambiental já consumada (o
assistente social, por exemplo organiza ou reorganiza o ambiente).

Um outro ponto importante é que Winnicott não compartilha da ideia


do determinismo. A passagem do “bebê potencial para um bebê real” não
pode ser entendida de modo causal. Ele diz que não há determinações
intrínsecas no bebê, sejam elas somáticas ou psíquicas. Diz que todas as
características possíveis do bebê precisam ainda ser criadas, com exceção da
tendência à integração e da criatividade originária.
Deixa claro que as “determinações genéticas fornecem alguns limites
orgânicos, mas não a orientação do que será a pessoa do indivíduo” (Dias,
2012, pág. 142).
O processo de surgimento de um indivíduo como uma pessoa com
identidade não acontece automaticamente; depende fundamentalmente de um
fator interno, imponderável, que é a criatividade do bebê, e de outros fatores
igualmente imponderáveis, tais como a saúde psíquica da mãe e a sorte (...)
os estágios do amadurecimento têm uma certa época para acontecer, que
varia de criança para criança.
Winnicott considera a idade da criança, mas não diz que ela
possa ser utilizada para predizer o amadurecimento da pessoa por causa do
fator importantíssimo que é o cuidado materno.
Mesmo sem um valor preditivo rígido, quando Winnicott
recebia uma criança, assim como nós fazemos, ele se norteava um pouco pela
idade da criança. Isso está no que Winnicott disse, ao falar de uma criança
que, tendo se tornado mais consciente de si e do tempo presente após os cinco
anos, começou a se esquecer, por exemplo, da última visita da tia ou da
chegada do cachorrinho, denotando possuir um passado na mente, vagas
ideias de coisas semiesquecidas. (Winnicott, 1965/2011, p.50).
Winnicott é um autor que veio trazer uma contribuição da
Psicanálise à classificação psiquiátrica, e isso vejo como muito importante,
que são os “conceitos de self, a ligação de psicopatia à deprivação e a
compreensão de que a psicose se origina num estágio em que o ser humano
imaturo é inteiramente dependente do que o meio lhe propicia” (Winnicott,
1979/1983, p. 114).
Nesse processo todo entra o Jogo dos Rabiscos, como forma de se
contactar a criança, de favorecer o seu desenvolvimento e amadurecimento.
Winnicott refere que se “caso se consiga dar uma pequena ajuda à criança ou
ao membro doente da família ou grupo social, o progresso clínico sucederá
pelas forças da vida e do processo de desenvolvimento”, e ainda continua: “é
uma questão de transformar um ciclo viciado em um ciclo benigno.”
Por fim, Winnicott nos coloca algo que precisamos parar e prestar
bastante atenção, que é sobre a preparação do estudante para ser um analista e
podemos abranger aqui o psicólogo também. Ele diz que:
A técnica para esse trabalho dificilmente pode ser chamada de técnica. Não
há casos iguais e há um intercâmbio muito mais livre entre o terapeuta e o
paciente do que num tratamento psicanalítico puro.
A técnica é extremamente flexível: não seria possível a alguém saber o que
fazer baseando-se no estudo apenas de um caso. Vinte casos podem dar
uma boa ideia, mas o fato é que não há casos semelhantes (Winnicott,
1971b/1984, p. 09).
Winnicott ainda nos diz:
Encontramos um desafio em relação a cada caso. Em termos de conseguir
melhora clínica podemos falhar, mas muitas vezes temos êxito. Fracasso
real pode ser conceituado em termos de falha em enfrentar o desafio do
caso [...] é aceito geralmente que a discussão de casos não tem valor, a
menos que alguém leve depois para um relacionamento pessoal a nova
compreensão que a discussão nos trouxe. Compreensão nova de per si não
realiza nada (Winnicott, 1979/1983, p. 176).

A base da maior parte do trabalho do psiquiatra de crianças é a


entrevista psicoterapêutica com a criança. Se não tiver habilidade para isso e
não for a pessoa adequada para estabelecer contato com a criança dessa
maneira, não pode nem sequer fazer um diagnóstico, muito menos saber
como modificar uma situação fixada ou entender o que os outros membros da
equipe estão fazendo. Um esquema de treinamento deve levar isso em conta
(Winnicott, 1979/1983, p. 176).
Winnicott avalia a auto seleção como um processo de se tornar um
bom analista: “Não é fácil transformar um candidato inadequadamente
escolhido em um bom analista, e indubitavelmente a parte principal da
seleção é sempre a auto seleção” (Winnicott, 1971a/1984 p. 09).
[...] “é desnecessário dizer que o terapeuta deve ter segurança profissional
como algo que acontece com facilidade; é possível, para uma pessoa séria,
manter uma atitude profissional mesmo quando experimenta tensões muito
fortes na vida privada e no processo de crescimento pessoal, que
esperamos, nunca cessa”.
Ainda acrescenta que o analista tem que:
“Ser capaz de conter os conflitos dos pacientes, ou seja, contê-los e esperar
pela sua resolução no paciente, em vez de procurar ansiosamente a cura;
deve haver uma ausência da tendência a retaliar sob provocação. Além
disso, qualquer sistema de pensamento que proporciona uma solução fácil é
por si mesmo uma contraindicação, já que o paciente não quer outra coisa
além da resolução de conflitos internos, junto com a manipulação de
obstruções externas de natureza prática que podem ser operantes ou
mantenedoras da doença do paciente” (Winnicott,1971a/1984, p. 10).
Enfocando a saúde, ao invés do sofrimento, Winnicott assinala que, a
fim de sermos bons analistas, “uma experiência de intenso tratamento
analítico pessoal é tanto quanto possível, essencial” (Winnicott,1971a/1984).
Vejam também como é complexo nosso trabalho; sempre penso que
temos que estar em contato com grupos, estudos, supervisões, análise pessoal
para entender que o que fazemos “não é qualquer coisa”, ou coisa que todo
cabeleireiro, ou qualquer profissão que lida com público (não os
desmerecendo) diz: “eu também sou psicólogo aqui.” Ser psicólogo requer e
exige muito de nós, de nossa disponibilidade, dedicação, estudo, esforço,
capacidade e a presença pessoal para atender nosso paciente como tão bem
nos fala Winnicott.

O Jogo dos Rabiscos


Em toda obra, Winnicott menciona somente dois tipos de jogos – o
Jogo dos Rabiscos e o Jogo da Espátula. O segundo não é abordado aqui.
Ambos são técnicas clínicas úteis para se entender o que ocorre com o
paciente para fins diagnósticos e terapêuticos.
O Jogo dos Rabiscos, criado por Winnicott, segundo ele, é muito fácil
(Winnicott, 1971a/1984, p. 11):
“O Jogo dos Rabiscos é simplesmente um meio de se conseguir entrar em
contato com a criança. O que acontece no jogo e em toda entrevista
depende da utilização feita da experiência da criança, incluindo o material
que se apresenta”.

Ele atesta que não existe nada original no Jogo dos Rabiscos e que
seria incorreto alguém sentir-se preparado para fazer uma consulta
terapêutica simplesmente porque aprendeu a usá-lo. Por isso o jogo simples
tem, em realidade, uma natureza bem complexa porque requer um
entendimento razoável da teoria winnicottiana para a aplicação e trabalho.
Em essência, o jogo se resume em o terapeuta fazer um risco a esmo
no papel, pedindo para o paciente transformá-lo em alguma coisa. Em
seguida, o paciente faz um risco qualquer, como a olhos fechados, para o
analista transformá-lo em alguma coisa. A quantidade de desenhos dependerá
da dupla.
O Jogo é uma experiência mútua. É quase como se a criança, através
dos desenhos, estivesse lado a lado com o analista, e isso a faz se sentir muito
bem quando é compreendida e ajudada.
No Jogo é preciso estar bem atento à dinâmica dos
desenhos que surgem na hora e quais revelações únicas eles possuem.
Um outro ponto importante dos desenhos, como ocorre
também na entrevista e no tratamento propriamente dito, é que a interpretação
do inconsciente não é o mais importante. Mesmo quando Winnicott fazia
interpretações, ele ainda fazia valer da relação dele com o paciente. Ele conta,
por exemplo, que quando fazia uma interpretação errada, a criança era capaz
de corrigi-lo. “Uma interpretação que não funciona significa, sempre, que a
fiz no momento errado ou da maneira errada, e a revogo incondicionalmente”
(1971a/1984, p.18,19). Ele esperava que as crianças sentissem que tinham o
direito de rejeitar o que ele dizia ou a maneira como recebiam alguma coisa
nesse relacionamento.
Afirmava ser um fato as entrevistas estarem sob o domínio da criança
e não dele; e ele tomava o cuidado de nunca fazer interpretações para seu
próprio benefício. “Interpretações dogmáticas deixam à criança apenas duas
alternativas: a aceitação do que eu disse como uma doutrina ou a rejeição da
interpretação, de mim e de toda a situação” (Ibidem p.18).
Com relação aos desenhos ainda, quando, por exemplo, uma criança
desenha uma cobra, Winnicott não relaciona o desenho como um símbolo
fálico, como é habitualmente interpretado até a senso comum. Winnicott não
desconsidera tal possibilidade, mas traz algumas outras contribuições,
(WINNICOTT, 1971a/1984 p. 18):
Se pegar o material primitivo e as raízes do que um pênis pode significar
para uma criança, ver-se-á que o desenho feito pela criança de uma cobra
pode ser a configuração do eu (self) que ainda não usa braços, dedos,
pernas e artelhos. Pode-se ver quantas vezes pacientes não conseguem
exprimir um senso do eu (self) porque o terapeuta interpreta uma cobra
como um símbolo fálico. Longe de ser um objeto parcial, uma cobra num
sonho ou fobia pode ser um primeiro objeto integral. (....)

Interessante quando Winnicott diz que quando aplicamos a técnica do


Jogo dos Rabiscos, que, além de todos os proveitos do jogo, o analista tem o
proveito de ter um material na mão, que, no caso, são os desenhos da criança
e que poderá apresentar aos pais. Pode-se gerar uma certa segurança para o
analista ter esse material, pois não irá só “falar” da criança aos pais, terá
também o material da criança. Winnicott diz que “pode-se encontrar proveito
em depositar confiança nos pais, deixando-os saber como são seus filhos na
circunstância especial da consulta terapêutica.” Que os pais sentiriam isso
como mais real do que se o analista contasse apenas o que a criança diz
(Winnicott, 1971a/1984, p.11).
Isso é bem verdadeiro, especialmente quando estamos recém-
formados. Estar com um teste na mão para fazer a devolutiva aos pais pode
emanar um sentimento de “segurança”, de ser “mais profissional” com algo
concreto na mão do que “simplesmente” conversando com os pais sobre seus
filhos. Os pais “reconhecem os tipos de desenhos que adornam as paredes do
quarto da criança ou que os filhos trazem para casa da escola, mas geralmente
ficam surpresos quando veem os desenhos em sequência, desenhos que
descortinam as qualidades da personalidade e habilidades perceptivas que
podem não ter-se tornado evidentes no ambiente familiar” (Winnicott,
1971a/1984, p. 11,12) - lembrando que muitas vezes esse tipo de intervenção
é evitada, e, quando feita, o psicólogo deve se preocupar em proteger a
criança em sua essência no quesito de manter a confiança no vínculo analista
e paciente. Winnicott tomava esse cuidado também.
Não é raro vermos psicólogos em processo de construção de sua
profissão vez ou outra dizer a si mesmo “o que faço aqui.” Isso é muito
natural, e acredito que vamos nos apropriando aos poucos desse nosso lugar
de psicólogo que nos é muitas vezes muito impalpável e às vezes estranho a
nós mesmos, sentimento que muda com o tempo na “apropriação” da
profissão.
O Jogo do Rabisco é uma ótima estratégia de aproximação
do analista daquelas crianças que não conseguem falar, por exemplo. Muitas
crianças revelam a “etiologia de seu complexo de sintoma no procedimento
do jogo da consulta terapêutica” (Ibidem p. 97).
A criança também não tem uma memória tão clara que a capacite a
nos contar o que ocorreu com ela; através do brincar ela “se mostra”.
A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a
do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que
brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho
efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um
estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é (Winnicott,
1971b/1975, p.59).
Winnicott fala do brincar enquanto verbo, não da brincadeira como
substantivo, como algo a ser olhado. Fala da relação, da interação analista e
paciente. Essa concepção não se limita às crianças, mas aos adultos também.
Ele fala de um espaço onde as coisas acontecem, tanto na vida da pessoa,
quanto no espaço ali na sessão, que é o espaço potencial. Esse lugar não diz
respeito ao intrapsíquico e nem ao fora, e sim ao intersubjetivo. Para
Winnicott, esse espaço tem a ver com o dentro e o fora ao mesmo tempo,
com essa relação. Nem sempre há uma consciência plena do que está
ocorrendo ali, é como um sonho, muitas vezes. O brincar simplesmente
acontece.
O analista, então, não apenas interpreta o brincar, ou o Jogo da
criança, ele realmente brinca, ele realmente está ali.
“É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto,
pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo
criativo que o indivíduo descobre o eu (self) (Ibidem, p.80).
O analista precisa aceitar os movimentos do paciente, sua
desorganização, sua necessidade de transbordar, às vezes literalmente através
da água da pia, por exemplo, sem o desespero de conter, de arrumar, de
limpar e organizar. Não acho tão fácil esse lugar do analista, mas esse é o
desafio. Na sessão, nos encontramos com a criança e conosco também, com
nossa própria criança, com nosso lugar em nosso amadurecimento pessoal, é
tudo intenso, perdido e achado ao mesmo tempo.
O Jogo dos Rabiscos é parte do brincar, procurando trazer à tona o
que o paciente sente, se ele está integrado ou não, quais são suas angústias e
agonias, e assim, o analista conversa com ele a partir dos desenhos. O
ambiente da sessão precisa ser de confiança e relaxamento, assim como deve
ser a construção de um verdadeiro eu aos moldes de mãe x bebê.
Quero encerrar este capítulo com um trecho de Winnicott na
Introdução do Livro “Consultas Terapêuticas” em que ele se compara a um
violoncelista, que trabalha a técnica, depois começa a tocar a música
utilizando a técnica, e diz: “Estou consciente de realizar este trabalho com
mais facilidade e sucesso do que seria capaz de fazer há trinta anos, e meu
desejo é estabelecer a comunicação com aqueles que ainda estão trabalhando
a técnica, dando-lhes, ao mesmo tempo, a esperança de que um dia virão a
tocar a música”.

REFERÊNCIAS
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Paulo: DWW editorial, 2012. 345 p.
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1999. 98 p.
CAPÍTULO 4
O Lugar dos Pais no Psicodiagnóstico: Do
Manejo À Intervenção.
Rita Nicioli Cerioni
O primeiro espelho da criatura
humana é o rosto da mãe: a sua expressão,
o seu olhar, a sua voz (Winnicott).
O processo psicodiagnóstico foi construído, inicialmente, a partir de
um modelo médico adotado pelos psicólogos, buscando localizar nos
protocolos dos testes, sinais de patologias específicas e era compreendido
como um processo de avaliação no sentido mais estrito da palavra
(BARBIERI, 2010). A entrevista inicial com os pais, anamnese, observação
lúdica, aplicação de técnicas projetivas, testes de inteligência e devolutiva
tinham um único objetivo: compreender a demanda, chegar a uma hipótese
diagnóstica e fazer a mais adequada indicação de tratamento.
Vários modelos foram adotados para traçar uma compreensão ou
conclusão diagnóstica. Na abordagem psicanalítica, o modelo proposto
orienta o trabalho de grande parte dos profissionais da área e sistematizou os
conceitos pertencentes ao psicodiagnóstico de forma rica e profunda, levando
em conta os conceitos de transferência e contratransferência, as relações
transferenciais e contratransferenciais presentes do início ao fim do processo.
O psicodiagnóstico seria, portanto, uma prática bem delimitada, com objetivo
de “obter uma descrição e compreensão a mais profunda e completa possível
da personalidade total do paciente ou do grupo familiar” (OCAMPO,
ARZENO e PICCOLO, 1981, p.18).
Para autores como Ancona-Lopez (1995), Trinca (1998), Barbieri
(2002), e Tardivo (2007), o psicodiagnóstico deve ser compreendido como
um procedimento de intervenção psicológica, diagnóstico e encaminhamento.
O objetivo deste capítulo é refletir sobre o papel dos pais no
psicodiagnóstico interventivo sendo que vou me ater apenas ao
psicodiagnóstico de crianças.
Uma criança só chega ao psicólogo pelas mãos dos pais, e este é um
momento em que o sofrimento familiar está em pauta. O que mobiliza a
busca por atendimento psicológico é que o sintoma da criança se tornou
insuportável para os pais (ROSENBERG, 1994). Os pais se sentem
angustiados diante de um sentimento de derrota, feridos e muitas vezes
“entregando os pontos” (FRANÇA E RADINO, 2002). Chegam para o
atendimento, seja em consultório ou serviço público, e depositam no
profissional toda sua ânsia de resolução. Cada qual a partir de sua própria
história, de sua construção como pai e mãe e da sua concepção de mundo.
O contato inicial: quem virá?
Geralmente, quando um dos pais procura por atendimento
psicológico, procuro agendar uma primeira entrevista com ambos os pais,
sem a presença da criança. Por que sem a criança? Porque não sei de antemão
quem e como são os pais: se superprotegem ou se expõem tudo aos filhos
sem hesitação. Atender os pais em um momento e a criança em outro
propicia que se crie um espaço de diferenciação e discriminação de papéis e
lugares (AMPESSAN, 2005). Procedo assim com crianças de até 12 anos. A
partir desta idade, marco primeiro com o paciente, pois se trata de um
adolescente, e depois com os pais.
Na minha experiência clínica, é comum a mãe realizar o primeiro
contato em busca de atendimento. Ressalto sempre a importância de
convidar o pai e a mãe para as entrevistas iniciais. Quando é a mãe quem liga,
sempre pergunto sobre o pai da criança, e não sobre o marido, pois não
necessariamente a mãe tem um marido, ou o marido da mãe é o pai da criança
a quem ela pede atendimento.
Quando os pais já não funcionam mais como casal e não conseguem
estar juntos, os atendo separadamente de início, se assim desejarem. Porém,
já começo um trabalho com eles para que possam desenvolver uma
comunicação, já que são pais de uma mesma criança e tem uma empreitada
em comum, embora muitas vezes se esqueçam disso.
Se a mãe funciona como porta-voz do pai com falas do tipo: “Ele não
consegue vir por causa do trabalho”, ou “ele não acredita em psicólogo”,
solicito o telefone do pai para que eu própria entre em contato e o convide
para a entrevista. O profissional não pode compactuar com essa posição,
como se fosse normal a ausência do pai na busca por atendimento
psicológico. E sempre informo a ambos: a cadeira do pai não pode estar
vazia. Se a cadeira está vazia, significa que há um lugar vazio na mente da
criança. Isso vale também para o inverso, quando o pai comparece e a mãe
não. Porém, na prática, isso é bem mais raro.
Por que a presença de ambos é tão importante? Porque ao aceitar uma
criança para o psicodiagnóstico, estamos nos comprometendo a compreender
o mundo interno que é construído na complexa rede de relações, vínculos e
identificações com os pais. Não só os pais físicos, reais, mas as imagens
paternas, as que foram internalizadas nessa relação que envolve o discurso
que um dos pais tem sobre o outro e sobre si mesmos. E pode ocorrer que, ao
nos deparar com o pai, ele não corresponder ao discurso da mãe, por
exemplo.
Se negligenciarmos a importante presença de um dos pais, não nos
importando com sua ausência, compactuamos e nos tornamos cúmplices do
outro, reforçando o domínio de um dos dois em detrimento do outro.
Quando um dos pais verbaliza ao psicólogo sua discordância com a
avaliação, isso deve ser levado em conta e o profissional pode trabalhar no
sentido de auxiliá-los, pai e mãe, em busca de uma concordância em realizar
o processo ou não.
Em situações em que todas as tentativas de incluir um dos
pais no processo fracassam, o trabalho a ser realizado levará em conta essa
ausência como um elemento importante na compreensão da dinâmica
psíquica e na intervenção. Isso pode acontecer em casos específicos, por
exemplo, quando um dos pais se desligou da criança e não temos como entrar
em contato, se um dos pais está gravemente adoecido física ou mentalmente a
ponto de impedi-lo de participar do processo, ou quando um dos pais está
preso.

A primeira entrevista com os pais: O que importa?


É imprescindível escutar os pais no psicodiagnóstico,
considerando-se que eles estão implicados nos sintomas do filho, o que não
significa fazer psicoterapia com os pais, mas sim, ajudá-los a se situar em sua
própria história. “O discurso que se processa engloba os pais, a criança, o
analista: é um discurso coletivo que se constitui em torno do sintoma
apresentado pela criança” (MANNONI, 1981, p. 9).
A primeira entrevista com os pais é marcada por
mobilizações transferenciais importantes. O profissional é o depositário de
esperanças, dúvidas, expectativas, sentimentos amorosos e hostis.
As cenas transferenciais, ou seja, a forma como os pais
abordam o profissional e a como eles constroem os seus discursos, como
apresentam a queixa, o tom de voz que empregam, a forma como se
movimentam durante o atendimento, choros, risos, piadas, troca de olhares
entre si e com o psicólogo, bem como todo o clima que se instala durante a
primeira entrevista são elementos importantes para se compreender o lugar
que a criança ocupa na dinâmica familiar e na mente de cada um dos pais.
Quando estamos diante de pais que solicitam ajuda para o
filho, estamos também diante de pessoas que sofrem e da problemática de
cada um. E cada um lida com sua problemática da forma como consegue. Há
uma história construída entre pais e filhos que os enredam definitivamente
(PRISZKULNIK, 1995).
Precisamos entender esse enredo. Um instrumento importante nesse
primeiro contato é a entrevista semidirigida. A entrevista ocupa lugar
relevante no psicodiagnóstico. Carrasco e Potter (2005) afirmam que é
possível abrir mão, por exemplo, de testes psicológicos que são utilizados
sempre como formas auxiliares de investigação clínica da personalidade, mas
não conseguimos substituir ou dispensar a entrevista.
A entrevista semidirigida tem como objetivo explorar de modo mais
pontual os conteúdos relacionados à busca por atendimento psicológico.
Nessa modalidade de entrevista, são os pais que definem a forma como
apresentarão a criança. Se pelo sintoma, pelas características, preocupações,
realizações, pelas limitações ou potencialidades. Eles iniciam. Importante
perceber se falam de si mesmos ou da criança. Certa vez, ao receber dois pais
que me procuraram para avaliar uma criança pequena, a mãe iniciou a fala
chorando muito: “Nós estamos nos separando...ele tem outro
relacionamento...”. Pude perceber, nessa fala inicial, que a criança poderia
estar sendo a depositária do sofrimento advindo dos conflitos do casal
parental. Obviamente, temos que aguardar todo o desenrolar da entrevista
para confirmar ou refutar as primeiras hipóteses.
Autores como Ocampo e Arzeno (1981) orientam que no início do
processo se utilize a técnica diretiva, ou seja, uma fala direta, com temas
objetivos para apresentação mútua e estabelecimento do enquadre do
psicodiagnóstico, momento em que se definem os objetivos, os papéis de
cada um (psicólogo, paciente, pais e/ou família), a duração (em média quatro
ou cinco sessões, que podem ser ampliadas ou reduzidas, de acordo com a
necessidade), local, horário e tempo das entrevistas, honorários e forma de
pagamento. Essa não é uma regra, mas sim uma sugestão. Penso que deixar o
contrato e o enquadre para o final da primeira entrevista favorece que os pais
falem mais livremente, exceto quando se percebe certa persecutoriedade ou
ansiedade intensa acerca do contrato, dos objetivos, ou do que faz um
psicólogo. Nesse caso, o contrato e o enquadre podem ser colocados no
momento em que o profissional perceba essa demanda dos pais, que nem
sempre é claramente verbalizada.
A primeira entrevista no psicodiagnóstico psicanalítico não tem
objetivo de coletar dados acerca da história de vida da criança, mas sim de
favorecer um espaço para que os pais falem a partir de suas próprias
necessidades. O que pensam, o que lhes causa angústia, suas fantasias,
projeções, medos, dificuldades e desejos. E, na medida em que vão se
colocando, o profissional deve favorecer um espaço de confiança para que se
coloquem verdadeiramente. Penso que um pré-requisito importante para que
alguém se torne um psicólogo é a disposição para ter um profundo e
verdadeiro interesse no sofrimento humano, livre de julgamentos e críticas.
Rubem Alves, parafraseando Alberto Caieiro diz: “Não é bastante ter ouvidos
para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da
alma.” (ALVES, 2004, p. 67). Mas o silêncio não significa a ausência de
sentimentos.
Os sentimentos do profissional devem ser observados desde a
primeira entrevista. Refiro-me ao conceito de contratransferência. Freud
(1915/1987) compreendia a contratransferência como um entrave do
tratamento psicanalítico, relacionando-a com a parte neurótica e não
trabalhada do analista. Com o desenvolvimento da Psicanálise, houve uma
ampliação do conceito, uma valorização da percepção dos estados mais
regredidos da mente, e isso inclui maior atenção aos estados mentais do
analista em relação à maneira como o paciente manifesta, na sessão, as suas
questões mais primitivas, empregando (ou não) a linguagem verbal para se
comunicar (SALVITTI, 2011).
O conceito de contratransferência não é uníssono entre os autores pós-
freudianos. Para Recker (1953/1982), por exemplo, a contratransferência
poderia operar de três formas: um obstáculo ao processo, um importante
instrumento de comunicação e de compreensão das relações de objeto do
paciente, e como um campo em que o paciente tem a possibilidade de
vivenciar uma relação diferente da que vivenciou originalmente. Já para
Heimann (1950/1995) o conceito englobaria todas as reações que o analista
experimentaria diante de seu paciente, constituindo parte importante da
relação analítica. Assim, os sentimentos do analista devem ser reconhecidos,
ao invés de negados, subordinando-os à tarefa analítica, utilizando-os como
um dos instrumentos (ETCHEGOYEN, 2004).
Winnicott (1947/2000) utiliza o termo de forma mais ampla quando
traça um paralelo entre os sentimentos do analista e a preocupação materna
primária, que é um fenômeno necessário para que a mãe possa se adaptar
bem às necessidades do bebê e ser suficientemente boa para o seu
desenvolvimento. Isso se dá a partir da sensibilidade que a mãe possui para
perceber as necessidades do bebê e apresentar os objetos que ele precisa e
quando ele precisa. Essa capacidade de perceber as necessidades do
verdadeiro self é importante na clínica e torna-se possível através do manejo
da contratransferência como uma forma de comunicação potencial,
fornecendo a sustentação necessária para o desenvolvimento de seu paciente
(SOUZA E CAMPOS, 2014). Manter a sustentação só é possível a partir da
atitude respeitosa, atenta e não intrusiva do profissional. Isso significa que,
diante dos pais, a atitude profissional deve apontar para uma sustentação,
compreensão a partir da empatia, ao invés de orientações diretivas ou
intrusivas e tampouco julgamentos (SAFRA, 1995).
A presença dos pais pode despertar sentimentos no profissional, e
nesse caso em especial, no processo psicodiagnóstico, quando o que se
procura conhecer inclui as causas precipitantes das queixas. Buscar nos pais a
culpa pelos sintomas das crianças, em uma relação de causa e efeito,
condená-los, julgá-los, impede e prejudica uma compreensão baseada na
ciência psicológica, tornando-se uma compreensão senso-comum, sem
embasamento.

Anamnese: o risco do engessamento.


Outro encontro importante com os pais é a entrevista de
anamnese, que se dá em um segundo momento. Lembro que o primeiro
momento é a entrevista inicial, que pode ocupar uma ou duas sessões.
Obviamente, algumas questões da anamnese são contempladas de forma
direta ou indireta nas entrevistas iniciais.
A anamnese é uma entrevista semidirigida que tem por
objetivo reconstruir a história do sujeito. Geralmente, os roteiros de
anamnese psicológica de crianças se iniciam pela concepção. Porém, dados
anteriores à concepção como qualidade da relação do casal, história dessa
relação e histórias da família de origem de cada um, auxiliam na montagem
do quebra-cabeça, já que uma criança é marcada pelo encontro de duas ou
mais histórias: do pai e da mãe biológicos, dos pais adotivos, de duas mães,
de dois pais, de produção independente etc..
Embora existam vários modelos de anamnese, com
algumas variações entre si, alguns pontos podem ser observados:

1. A anamnese é uma técnica de entrevista, o que significa que ela


deve ser feita presencialmente. A palavra já diz: entre-vistas, ou
seja, entre os olhares de quem pergunta e de quem responde. É no
encontro ou no desencontro das informações entre os pais, na
entonação, nas dúvidas, nos esquecimentos, nos silêncios, na
emoção da fala e no conteúdo que está a riqueza da análise.
2. O profissional deve ser capaz de transformar esse roteiro em um
diálogo acolhedor e ao mesmo tempo com objetividade,
intervindo com esclarecimentos sempre que considerar necessário,
caso contrário, corre o risco de engessar a entrevista,
transformando-a num mero cumprimento de protocolo.
3. A anamnese por si é, geralmente, um disparador de angústias e
emoções, pois ao responder a anamnese se constrói uma história,
uma vida, ou várias vidas. O profissional deve estar atento e
preparado para dar um suporte quando esses elementos aparecem,
favorecendo a aliança terapêutica.

Carrasco e Potter (2005) alertam sobre casos em que se percebe a


repetição de situações através das gerações, ou quando os pais têm
dificuldades de ativar as suas lembranças, com pessoas muito concretas nas
respostas ou com dificuldades intelectuais. Pode-se utilizar o genograma
como recurso de busca de informações, possibilitando um aprofundamento
das informações da história de vida e das complexas interações do sistema
familiar.

Entre o psicólogo e a criança: na sala de espera, os pais.

Depois das entrevistas iniciais e a anamnese, geralmente,


o profissional agenda o encontro com a criança. Os dados coletados nos
encontros com os pais são subsídios importantes para planejar o que será
feito com a criança. Observação lúdica, aplicação de técnicas projetivas e/ou
testes de inteligência, visita à escola, entre outros. Não se aplica, por
exemplo, teste de inteligência se não há nenhum sinal de queixa sobre a
capacidade intelectual da criança, a não ser que o profissional perceba sinais
de dificuldades intelectuais no decorrer da avaliação. Os pais devem ser
informados dos objetivos do psicodiagnóstico.
Importante também que os pais sejam orientados, antes do
primeiro encontro com a criança, que expliquem para ela de forma clara,
simples e objetiva, o que vai acontecer e os motivos que os levaram a
procurar ajuda psicológica (AMPESSAN, 2005).
No final de cada encontro com a criança, é importante dar
um retorno a quem espera, como: “nos vemos na próxima semana e teremos
ainda dois encontros antes do fechamento”, por exemplo.
A entrevista devolutiva: o que e como comunicar?
Depois de concluído o processo com a criança, os pais são
chamados para devolutiva, momento em que o profissional comunica suas
impressões e hipóteses diagnósticas. Falamos sempre em hipótese, já que em
Psicologia trabalhamos com a ideia de que o psiquismo é dinâmico.
Esse é um momento delicado e importante. Os pais
geralmente estão ansiosos para escutar e, muitas vezes, para falar sobre seus
medos e fantasmas acerca do diagnóstico psicológico.
Os pais devem ser informados sobre tudo o que se
construiu durante o psicodiagnóstico, mas respeitando o sigilo estabelecido
com a criança. Não é tudo que se pode comunicar. “O sigilo nunca é o que a
criança desenha ou brinca – são sempre os fantasmas que ela expressa. E isso
não tem porque ser dito” (AMPESSAN, 2005, p. 82).
Ocampo, Arzeno e Piccolo (1981) definem a entrevista de devolução
como uma “comunicação verbal discriminada e dosificada dos resultados do
processo” (p. 315). Por que as autoras utilizam o termo “dosificada”? Uma
das funções da mãe/analista suficientemente boa é a apresentação do mundo,
que deve ser feita em doses que o outro possa suportar e digerir
(WINNICOTT, 1947/2000). Isso significa que devemos comunicar o
necessário para uma boa compreensão do que acontece com a criança, sobre
o seu mundo interno, a sua posição na mente dos pais, a sua realidade tanto
interna como externa.
Às vezes é necessário apresentar aos pais uma criança
diferente da que eles trouxeram nas entrevistas, pois nem sempre a criança
real corresponde à criança que os pais concebem. Essa é uma tarefa que deve
ser realizada com muito cuidado. Cuidado com as palavras, já que os pais
depositam toda sua atenção na devolutiva como se fossem encontrar ali um
veredicto.
Dar a devolutiva aos pais com a criança participando deve
ser uma escolha de cada profissional. Na minha experiência, as devolutivas
em separado fazem mais efeito, pois preservam os pais e a criança de uma
exposição desnecessária e permite que todos os envolvidos se manifestem
mais livremente.
Uma sugestão é que a devolutiva seja iniciada retomando
o motivo do psicodiagnóstico, pontuando a partir daí as características mais
positivas, mais saudáveis da criança, e, posteriormente, os aspectos menos
adaptativos ou patológicos. Em seguida, ou concomitantemente, é importante
pontuar aspectos saudáveis dos pais e os menos saudáveis ou até patológicos,
a fim de ajudá-los a se perceber como tal. É necessário todo cuidado possível
para fazer essa comunicação. O psicólogo deve estar atento à tolerância dos
pais em ouvir o que está sendo dito.
A devolutiva deve objetivar não só o esclarecimento, o
encaminhamento, mas, primeiramente, o engajamento dos pais no auxílio ao
desenvolvimento de um trabalho com a criança, quando isso se fizer
necessário. Ou ainda, na apropriação de demandas pessoais que estão
depositadas na criança e traduzidas em sintomas. Se houver a necessidade de
encaminhamento de um dos pais, ou de ambos, para psicoterapia, isso deve
ser feito se o psicólogo perceber uma abertura para tal intervenção.
Outro objetivo central da devolutiva é construir um novo
olhar dos pais para o sofrimento psíquico do filho. É comum os pais trazerem
a criança para uma avaliação tendo como meta a cura de sintomas ou
mudanças comportamentais que eles não aceitam. Ajudá-los a reconhecer que
há um sofrimento implicado na queixa pode significar, por si, uma
intervenção, uma mudança de lugar psíquico que a criança ocupa na mente
dos pais e uma mudança dos pais em relação ao filho.
Essa entrevista representa o final de todo um processo. O
psicólogo se torna um depositário de histórias vivas, complexas, de
sofrimentos, preocupações. Guardiões de segredos, como escreveram
Carrasco e Potter (2005), que, se forem revelados, podem tirar a família toda
de sua funcionalidade. Torna-se, também, um porta-palavra daquilo que
ainda não foi dito, pensado ou elaborado. Um mensageiro de verdades não
ditas.
Freud (1914/1974), escreveu que os pais:
... se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho (...) e
de ocultar e esquecer todas as deficiências dele (...). A criança concretizará
os sonhos dourados que os pais jamais realizaram (...). O amor dos pais, tão
comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais
renascido, o qual transformado em amor objetal, inequivocamente revela
sua natureza anterior (FREUD, 1914/1974, p.108).

A devolutiva pode ser um momento intenso, no qual as


forças narcísicas dos pais são reativadas. Ao psicólogo, cabe manejar essas
forças de tal forma que eles sintam, verdadeiramente, que podem encontrar
ali um apoio e um trabalho que os ajude a ressignificar suas experiências
enquanto pais.
Os pais no psicodiagnóstico psicanalítico ocupam um
lugar importante, não só porque são eles quem detém a história de vida da
criança mas, principalmente, por serem os protagonistas dessa história.
Cada pai e cada mãe são pais e mães que conseguem ser.
E é no encontro com um profissional sensível, atento, disponível à escuta e
sustentado no conhecimento teórico-científico, que se torna possível o
desenvolvimento de potencialidades muitas vezes soterradas pelo próprio
sofrimento.

REFERÊNCIAS
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ABORDAGEM
COMPORTAMENTAL
CAPÍTULO 5
Contribuições da Terapia Analítico-
Comportamental e da Análise Funcional do
Comportamento

Denise Rosolen Sanson


O início daquilo que hoje chamamos de psicodiagnóstico, avaliação
psicológica ou avaliação comportamental (como mencionarei neste capítulo),
ocorreu entre o final do século XIX e o início do século XX, época marcada
pelo início do uso dos testes psicológicos. Talvez em razão disso, ainda exista
uma visão de o psicólogo ser aquele profissional que utiliza testes
padronizados para “compreender” o ser humano.
O psicólogo clínico utiliza diferentes estratégias, envolvendo testes ou
não, para realizar a avaliação, de acordo com sua abordagem de trabalho, mas
com objetivos e propósitos clínicos bem definidos e amparados por uma
ciência.
Meu objetivo neste capítulo é trazer algumas questões teóricas
fundamentais para compreender a terapia analítico-comportamental,
possibilitando ao leitor o entendimento do que é uma avaliação
comportamental e a compreensão da análise funcional do comportamento,
uma das ferramentas utilizadas para tal avaliação.
Farei a exposição de tão importante fundamentação teórica para o
trabalho clínico, de forma a mais próxima possível do cotidiano e dos
desafios que o trabalho clínico nos proporciona. Levando em consideração os
preceitos teóricos do Behaviorismo Radical, cabe ressaltar que o processo
psicodiagnóstico e a intervenção clínica podem ser feitos concomitantemente.
Isto é, não existe algo concreto no sentido do “aqui termina o diagnóstico e
aqui começa a intervenção”. O processo terapêutico na abordagem analítico-
comportamental é dinâmico, mas isso não lhe exime ou diminui a
necessidade de se realizar uma boa avaliação comportamental. Isso será
discutido ao longo do capítulo buscando evidenciar a dinâmica do processo
terapêutico na análise do comportamento.
O meu grande desafio, então, é descrever teoria e prática, levantando
a questão de extrema importância sobre a visão um tanto quanto equivocada
sobre o que vem a ser um analista do comportamento e como é sua atuação
no contexto clínico, que percebo em muitos colegas de profissão. Essa visão
equivocada reduz o trabalho do terapeuta analista do comportamento a um
profissional que somente emprega determinadas técnicas durante o processo
terapêutico ou de alguém que objetiva somente a diminuição dos sintomas do
cliente. Realmente, utilizamos técnicas e procedimentos específicos durante o
processo terapêutico e, de fato, temos como objetivo a redução significativa
dos sintomas do cliente. Mas isso não é tudo: olhamos o nosso cliente como
um todo, ao invés de alguém formado de partes fragmentadas. Isto é o ponto-
primeiro, algo crucial para o entendimento da atuação do terapeuta analista
do comportamento: identificar o processo terapêutico como uma técnica
particular ou a mera supressão de sintomas e diminuir a própria função do
processo terapêutico.
A prática do terapeuta analista do comportamento é amparada pelo
campo científico do conhecimento chamado de ciência do comportamento
humano, fundamentada pelo Behaviorismo Radical e proposto por B.F.
Skinner.
Considero importante compreender a proposta de Skinner relacionada
à concepção de sujeito, que é o conceito de operante. Resumidamente, o
conceito de operante é a relação presente entre a resposta e os efeitos que ela
produz. Dentro deste pensamento, o sujeito é visto como relação.
“Os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez, são
modificados pelas consequências de sua ação” (SKINNER, 1957/1978). Essa
é a concepção de homem como relação: o homem constrói o mundo à sua
volta, agindo sobre ele e, ao fazer isso, também está construindo a si próprio.
Nesse sentido relacional, homem e mundo não têm dominância um sobre o
outro. Obtém-se como produto, à cada relação, um ambiente e um homem
diferentes, visto essa relação não ser estática.
O terapeuta analista do comportamento adota uma concepção monista
de homem, o que significa pressupor que mudanças nas relações
organismo/ambiente implicam em mudanças na totalidade do organismo
(MICHELETTO & SÉRIO, 1993).
Skinner caracteriza o comportamento que compõe a relação operante
como aquele que produz consequências e, exatamente por isso, tais
consequências jamais poderão ser incidentais. Ou seja, a consequência
depende do comportamento e o determina. Retomarei essas contribuições
teóricas ao falar sobre a tríplice contingência presente na análise funcional.
Para Skinner (1991), o comportamento humano é compreendido como
resultado de contingências filogenéticas, ontogenéticas e culturais. A
proposta de Skinner é um modelo causal de explicação do comportamento
humano, admitindo que ele é mantido pelas consequências da interação entre
o organismo e o ambiente.
Silveira (2007) descreve que o primeiro desses tipos de contingências,
o nível filogenético, dá origem ao organismo. O segundo nível de seleção é o
de nível ontogenético que resulta no repertório comportamental individual-
pessoal (a ontogênese se refere à história de aprendizagem de um organismo).
E o terceiro tipo, o nível cultural, possibilita o desenvolvimento do “eu”.
Como dito anteriormente, é no ambiente que todo e qualquer comportamento
humano é mantido, isto é, pela relação entre o organismo e o ambiente.
Podemos concluir, então, que os dois últimos tipos de níveis de seleção – a
ontogênese e a cultura – permitem a individualidade.
É de extrema importância compreender o modelo de seleção por
consequências, proposto por Skinner, pois ele fornece a base para a
compreensão da análise do comportamento e para o nosso trabalho clínico.
Um outro conceito, que considero importante citar, é o de organismo
intacto, isto é, aquele organismo que não apresenta nenhuma alteração
neurofisiológica (do ponto de vista médico). Alguns exemplos de organismos
não-intactos são pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), pessoas
com paralisia cerebral, dentre outros. Para nós, terapeutas analistas do
comportamento, não importa o grau de comprometimento daquele organismo
chamado de não-intacto, pois acreditamos que alterações orgânicas não
determinam o comportamento como um todo. Em tais organismos, assim
como nos organismos intactos, as funções dos princípios comportamentais
não se alteram: eles são controlados pelas mesmas leis que regem os
comportamentos de qualquer ser humano. O que diferencia entre o organismo
intacto e o não-intacto é a suscetibilidade para interagir com o ambiente.
Se em um quadro como o do TEA for suposto apenas a influência do
primeiro nível de seleção (filogênese), não estaremos observando o
organismo como um todo que, por sua vez, possui a influência dos dois
outros níveis de seleção. O fato de ser um organismo não-intacto não elimina
a relação organismo-ambiente. Assim, podemos concluir que mesmo
envolvendo pessoas com limitações ou alterações neurofisiológicas, o
terapeuta analista do comportamento trabalhará com a relação organismo–
ambiente.
As contingências de reforçamento atuam quer o organismo seja intacto ou
não. Pode ser necessário alterar parâmetros das contingências, até mesmo
criar novas contingências, para que elas se tornem funcionais para um
organismo não intacto. (GUILHARDI, 2016)
Compreendemos que cada ser humano é único e possui histórias de
contingências que reforçaram (ou não) um determinado comportamento.
Entrarei agora especificamente no tema principal deste livro: o
psicodiagnóstico ou avaliação comportamental. Antes, contudo, creio ser
importante citar a diferença entre o diagnóstico psiquiátrico tradicional e a
avaliação comportamental, complementando o que foi discutido até agora.
Referindo-se ao diagnóstico psiquiátrico tradicional, Torós (1997)
ressaltou que um rótulo classificatório não vem ao encontro da compreensão
do comportamento humano nas bases epistemológicas sobre as quais a
abordagem comportamental se firma. Para essa autora, o principal objetivo do
psicodiagnóstico comportamental é a compreensão funcional do caso, a fim
de se prescrever a forma de terapia mais adequada.
Descrevemos o comportamento do cliente sem nos preocuparmos em rotular
o cliente como ‘Depressivo’ ou ‘Obsessivo Compulsivo’, ‘Normais’ ou
‘Anormais’, mas sim em descrever o seu comportamento, a frequência com
que este ocorre, quando começaram a ocorrer e em que situações ocorrem e
como outros reagem ao seu comportamento, enfatizando o intercâmbio entre
comportamento e o ambiente (TOROS (1997).
Entender a diferença entre o diagnóstico psiquiátrico tradicional e a
avaliação comportamental é importantíssimo, mas não minimiza ou elimina o
diagnóstico psiquiátrico tradicional. O diagnóstico do cliente com base na
CID-10 é importante, sim. Algumas vezes, inclusive, ele nos é solicitado por
clínicas, escolas, hospitais, planos médicos e em outras situações e é muito
útil ao planejamento das intervenções com o cliente. O grande objetivo do
diagnóstico psiquiátrico tradicional é identificar e nomear um tipo de
transtorno. Já a avaliação comportamental abrange tudo o que estamos
discutindo neste capítulo.
O diagnóstico psiquiátrico tradicional e a prática psiquiátrica são de
extrema importância. O terapeuta analista do comportamento necessita estar
sempre muito atento ao cliente para que, caso seja necessário, possa
encaminhá-lo a um profissional da área médica, um médico psiquiátrico.
Existem casos em que se faz necessário o acompanhamento conjunto por
esses dois tipos de profissionais. Em havendo necessidade de uso de
psicofármacos, cabe ao terapeuta identificar e encaminhar tais casos.
As pessoas, usualmente, procuram um médico ou um psicólogo em
função daquilo que estão sentindo. O médico trata o que sentimos de
maneiras médicas. Já os analistas do comportamento alteram as contingências
das quais os sentimentos são função.
Para nós, terapeutas analistas do comportamento, o comportamento
descrito como problemático pelo cliente não é visto como um sintoma de um
distúrbio subjacente, mas como sendo o próprio problema. Podemos concluir,
então, que não avaliamos o problema como um sintoma subjacente a uma
problemática interna. Nossa avaliação almeja compreender o que o cliente
faz, ao invés de compreender o que o cliente tem.
A abordagem analítico-comportamental, enquanto um fenômeno
clínico, busca investigar para quê aquele indivíduo se comporta de uma
determinada maneira, dentro de determinadas situações, e pelo o quê esse
comportamento está sendo mantido (a função). Assim, podemos dizer que
buscamos identificar o funcionamento do cliente e não apenas suas queixas.
Além dessa investigação das funções que mantém um determinado
comportamento, devemos compreender e analisar comportamentos relatados
pelo paciente de forma a identificar: a) excessos comportamentais (classe de
comportamentos relacionados, que é descrita como problemática pelo cliente,
devido ao seu excesso em frequência, intensidade e duração); b) déficits
comportamentais (classe de comportamentos que é descrita porque deixa de
ocorrer com frequência suficiente, intensidade adequada e de maneira
apropriada; e c) reservas comportamentais (classe de comportamentos
adequados que o cliente emite).
A avaliação comportamental envolve a identificação, coleta e a
análise de informações e de dados a respeito do cliente, chamados de
comportamentos-alvo. O objetivo dessa avaliação é de identificar e descrever
possíveis causas daquele comportamento, escolher estratégias de
intervenções adequadas e, posteriormente, avaliar os resultados.
É importante que, enquanto terapeutas analistas do comportamento,
façamos perguntas adequadas aos nossos clientes com o intuito de identificar,
coletar e analisar dados e para também evocar, no próprio cliente, novas
respostas de observação de seu comportamento. Nosso pensamento é movido
por questões e não por respostas prontas. Se pensarmos em um processo de
aprendizagem, um conteúdo assimilado e compreendido criticamente será
muito mais eficaz e válido do um conteúdo decorado. Portanto, podemos
dizer que a mudança do comportamento também é um processo de
aprendizagem.
Nesse sentido, como mencionei no início, não existe uma distinção
entre o momento da avaliação comportamental e o andamento do processo
terapêutico em si. O processo é dinâmico desde a primeira sessão, visto que o
terapeuta poderá manejar contingências com o cliente e que poderão iniciar a
modificação do comportamento em si.
As perguntas abaixo são importantes e podem ser feitas para ajudar o
terapeuta a identificar os chamados comportamentos-alvo:

1. O que traz você aqui?


2. Com que frequência ocorre essa situação?
3. Há quanto tempo acontece essa situação?
4. Em que momentos, geralmente, esse problema ocorre?
5. Você percebe se essa situação ocorre, geralmente após algum
evento específico (o que desencadeia o problema)?
6. O que acontece após essa situação?
7. O que você já fez para tentar lidar com esse problema?

Considero importantes algumas definições para compreender a


importância desses questionamentos.
Como analistas do comportamento, buscamos compreender algumas
características importantes dos comportamentos do cliente. A primeira delas é
a topografia: a descrição de um comportamento com base na sua forma ou
estrutura, isto é, a forma de uma determinada resposta.
Outra característica importante do comportamento é a quantidade. A
quantidade tem duas medidas: a frequência e a duração do comportamento. A
frequência é a quantidade de vezes em que o comportamento ocorre num
determinado período de tempo, e a duração é o espaço de tempo no qual o
comportamento ocorre em um determinado período.
Há também a intensidade do comportamento, que é a força de uma
determinada resposta.
Já o controle de estímulos é uma outra característica do
comportamento. Essa característica indica que um determinado
comportamento ocorre na presença de um determinado estímulo e não de
outros estímulos, ou seja, um estímulo antecedente determina a probabilidade
de ocorrência de uma resposta.
A latência é uma outra característica do comportamento importante na
avaliação comportamental e se refere ao intervalo de tempo entre a
ocorrência de um estímulo e o início de uma resposta.
Já mencionei a diferença existente entre a avaliação comportamental e
o diagnóstico psiquiátrico. Descrevi também que buscamos identificar as
funções dos comportamentos, isto é, identificar para que aquele determinado
indivíduo se comporta daquela forma e o que mantém o comportamento.
Coloquei também algumas perguntas importantes para uma avaliação
comportamental e para as características do comportamento. Mas isso não é
tudo pelo o quê nos interessamos durante o processo.
O terapeuta analista do comportamento se interessa pelo contexto de
interação em que o cliente vive, investigando as contingências atuais e as
passadas. Sendo assim, nos interessamos pela história de vida do cliente,
considerando a influência dos três níveis de seleção, para compreender os
repertórios comportamentais. Percebe-se, então, o quão amplo é o campo de
atuação do terapeuta analista do comportamento, que é muito mais amplo do
que uma mera aplicação de técnica ou a eliminação de sintomas.
A investigação do passado, da história de vida ou história de
contingências do cliente é de extrema importância, pois objetiva esclarecer os
atuais repertórios de comportamento, investigando como eles foram
adquiridos através das funções que esses eventos tiveram para o indivíduo no
passado .
Acreditamos que o comportamento é de algum modo adaptativo, à
medida em que pensamos que o repertório comportamental individual resulta
da seleção por consequências, ao longo da história de cada organismo. O
comportamento é o produto de eventos do ambiente, identificáveis e passíveis
de controle, sempre em construção e reconstrução.
Também é tarefa do analista do comportamento prever e controlar o
comportamento. Aqui, duas palavras que às vezes causam arrepios e muitas
vezes são mal interpretadas: prever e controlar.
A palavra prever, no dicionário, remete a ter a ideia antecipada de
algo que irá acontecer. Não temos bola de cristal, muito menos poderes
sobrenaturais para saber o que irá acontecer em determinada situação. Porém,
uma vez que conseguimos identificar as contingências que mantém
determinados comportamentos, podemos supor que, diante daquelas
determinadas contingências, o indivíduo tem uma tendência maior em emitir
novamente aquele comportamento. Um exemplo: uma criança foi ao
supermercado com a mãe e acabou se jogando no chão e gritando, pois queria
comprar um chocolate. Num primeiro momento, a mãe diz não. Porém, muito
envergonhada e com o objetivo de terminar logo com aquela situação,
compra o chocolate para a criança. A probabilidade desse comportamento
acontecer novamente numa próxima vez que essa criança for a um
supermercado e quiser um chocolate é muito grande. Isso é prever um
comportamento. É trabalhar com a probabilidade de emissão de
comportamentos.
No que diz respeito ao controle do comportamento, a interpretação
pode ir além. Controle já é uma palavra que tem sido confundida com
repressão ou manipulação. Isso é um grande equívoco. Na linguagem
científica, a noção de controle faz referência a uma premissa estritamente
epistemológica. O controle ao qual nos referimos é o controle de estímulos,
que se refere ao valor de um determinado estímulo antecedente que determina
a probabilidade de ocorrência de uma resposta. Assim, no exemplo da
criança, a probabilidade de ocorrência da mesma resposta (prever) diante da
situação de ela estar no mercado querendo o chocolate é alta, porém
trabalhando com o controle do estímulo (valor do estímulo antecedente),
podemos alterar a resposta do comportamento dessa criança de não chorar e
se jogar no chão.
Como fazer então para conseguir prever e controlar comportamentos?
A análise funcional é uma ferramenta muito importante que nos auxilia no
contexto clínico.
Martin (2009), descrevendo sobre a análise funcional, coloca que essa
“se refere à manipulação sistemática de eventos ambientais para testar
experimentalmente o papel de tais eventos como antecedentes ou como
consequências que controlam e mantêm comportamentos-problema
específicos”.
A análise funcional é uma forma de avaliação do comportamento. Ela
propicia ao terapeuta analista do comportamento uma flexibilidade de poder
intervir de acordo com as demandas do cliente. Meyer (1997) cita que
“quanto à utilidade da análise funcional, trata-se do instrumento básico de
trabalho de qualquer analista de comportamento”.
Basicamente, a análise funcional do comportamento é o levantamento
sistemático, como assinalado na última citação, de variáveis antecedentes
(estímulo) e consequentes (consequência) para a explicação de um
determinado comportamento (resposta). Chegamos então à tríplice
contingência: estímulo, resposta e consequência. Para nós, analistas do
comportamento, nossos comportamentos são selecionados pelas
consequências, ou seja, a função do comportamento seria a relação entre uma
determinada performance e o produto dela, seja pelo acréscimo ou a retirada
de alguma variável.
Vamos relembrar alguns conceitos importantes:
· Estímulo: “qualquer evento físico ou combinação de
eventos relacionados com a ocorrência de uma
resposta”(JUNIOR, 2006).
· Resposta: comportamento que afeta e é afetado por
estímulos.
· Consequência: evento que ocorre após uma
determinada resposta e que tem alguma relação de controle
sobre tal resposta.
· Reforçamento positivo: apresentação de um
estímulo consequente reforçador, que aumenta a frequência de
uma resposta.
· Reforçamento negativo: a retirada de um estímulo
consequente (aversivo), aumenta a frequência de uma resposta.
· Punição: processo utilizado para reduzir a frequência
de uma resposta.
Os termos “positivo” e “negativo”, dentro da análise do
comportamento, remetem apenas à apresentação ou retirada de um estímulo.
É muito importante que seja compreendido pelo analista do comportamento o
efeito desses reforçadores e o da punição no comportamento, pois, assim,
entenderá a função que o comportamento adquire diante da consequência que
ele produz.
Para nós, analistas do comportamento, a análise funcional do
comportamento é um instrumento extremamente útil para nossa prática, pois
a utilizamos com o objetivo de identificar variáveis que estão controlando um
comportamento em específico. Através do manejo dessas variáveis, do
levantamento de hipóteses e até mesmo o descarte e formulação de novas
hipóteses é que conseguiremos traçar estratégias e intervenções com nossos
clientes.
Assim, as hipóteses levantadas através da análise funcional devem ser
testadas pelo analista do comportamento através do manejo de contingências,
porém não deverão ser consideradas uma verdade absoluta, mas, sim,
hipóteses a ser confirmadas, alteradas ou descartadas.
Sabemos que mudanças no comportamento ocorrem quando existem
mudanças nas contingências. Por isso, então, a importância da análise
funcional. Como dito, é através dela que o analista do comportamento
realizará o manejo das contingências, juntamente com seu cliente, para
promover a mudança comportamental.
Vale uma observação nesse momento. Às vezes, podemos permanecer
com uma visão muito romântica, assim eu diria (propiciada em nossa
formação), de que o paciente vem a procura do atendimento com uma única e
exclusiva demanda. Porém não é bem assim que funciona. Precisamos
observar nosso cliente em sua totalidade e não em partes. Fragmentá-lo ou
fragmentar seu “problema” é um erro que não podemos cometer.
Assim o cliente pode vir com uma demanda na primeira sessão, com
outra demanda na segunda e assim por diante. Cabe a nós, fazer uma reflexão
diante de todas essas demandas. A análise funcional do comportamento
contribui para essa reflexão.
A análise funcional é realizada com base nos princípios e teorias
comportamentais. Realizar a análise funcional e levantar hipóteses significa
realizar uma análise que vê o todo: avaliamos todas as áreas de vida do
cliente, considerando suas complexidades e as relações existentes em cada
uma dessas áreas. E é exatamente isso que torna nosso cliente uma pessoa
única, completa e complexa. É necessário, assim, conhecer exaustivamente o
cliente para extrair dados que nos permitam formular hipóteses a respeito
dele.
Além de tudo o que já foi dito, dependendo do manejo do terapeuta, a
análise funcional permite que o cliente desenvolva e fortaleça seu
autoconhecimento e seu autocontrole. Uma vez que o terapeuta é ambiente
para esse cliente, ele se tornará mais atento à fala do terapeuta e, a partir
disso, cada vez mais atento a todas as variáveis envolvidas em seu
comportamento.
Então, como fazer uma análise funcional? Para realizar a análise
funcional do comportamento é necessário primeiramente que seja definido
um comportamento alvo (fica claro aqui que a investigação da história de
vida do cliente já foi realizada). É a partir desse comportamento que
formularemos nossas hipóteses. Após esse passo, é necessário identificar
todos os eventos antecedentes que ocorrem consistentemente antes do
comportamento alvo. Após o levantamento dos antecedentes, é necessário
identificar todas as consequências que se seguem imediatamente após o
comportamento alvo. Além disso, é necessário levantar hipóteses sobre os
eventos consequentes que mantém o comportamento alvo. Um parêntese
aqui: a análise funcional engloba uma profunda investigação tanto do
condicionamento respondente quanto do condicionamento operante.
Considerar também todas as variáveis levantadas sobre a história de
vida do paciente, auxiliará a compreender mais sobre tal comportamento. As
funções dos comportamentos são compreendidas de acordo com a história de
vida. As experiências que vivemos moldam nossa forma de como lidar com o
nosso mundo. Nós, enquanto analistas do comportamento, devemos
compreender a origem da queixa do cliente, ou seja, buscar uma compreensão
aprofundada e descritiva das variáveis históricas de sua vida.
Após ter realizado todos os levantamentos, para responder à tríplice
contingência da análise funcional, é que iremos formular hipóteses para
compreender para que aquele indivíduo emite um determinado
comportamento, qual a função daquele comportamento, e, daí sim, formular
intervenções (dar modelos, pensar em técnicas ou procedimentos) que
auxiliarão na mudança comportamental do cliente.
Saber o que está mantendo um determinado comportamento dito como
“inadequado” é somente uma parte de nosso trabalho. É necessário atuar
sobre essas contingências, promovendo mudanças comportamentais (o que
nesse momento, não é o objetivo deste capítulo). Aqui, é importante um
parêntese. É necessário estar atento à possibilidade de que as contingências
que instalaram um determinado comportamento no passado não são
necessariamente as mesmas que mantém esse comportamento no presente.
Ou seja, aquelas mesmas contingências que instalaram um determinado
comportamento presente até hoje podem não estar mais em vigor. Outras
contingências podem, nesse momento, estar presentes, e é necessário realizar
essa investigação.
Aqui, reside uma das dificuldades em se fazer uma análise funcional
adequada. Talvez um dos maiores receios de psicólogos analistas do
comportamento recém-formados seja o de não conseguir realizar uma análise
funcional de forma adequada ou correta. Se partimos do princípio que todos
os comportamentos do indivíduo são aprendidos pela relação do mesmo com
o ambiente, precisamos antes de tudo garantir que uma boa coleta de dados
sobre a história de vida do cliente seja realizada. Assim, ficará muito mais
fácil identificar possíveis antecedentes e consequentes do comportamento
alvo, ou seja, realizar uma boa análise funcional.
Devemos entender que o objetivo da análise funcional consiste em
identificar e modificar um comportamento alvo, através do manejo de
procedimentos, técnicas, modelos e instruções do terapeuta. Porém, é através
do manejo adequado desse comportamento alvo que buscaremos modificar
muitas classes de comportamentos em muitas outras situações
(generalização).
Descrevendo sobre o objetivo da terapia comportamental, TOROS
(1997) coloca que não tratamos de eliminar o comportamento problema de
imediato, mas sim, de oferecer ao cliente uma série de ferramentas
comportamentais, modificando classes de comportamentos, generalizando em
diferentes ambientes, de forma que se mantenham e desencadeiem um novo
repertório de comportamento.
O terapeuta analista do comportamento promove a variação no
comportamento do cliente para facilitar a mudança clínica, incentivando a
criatividade e a inovação em muitas áreas. O terapeuta deve assumir, na sua
interação com o cliente, a função dos ambientes verbais; terceiro nível de
seleção. É necessário que o terapeuta seja diretivo nas sessões com seus
clientes, encorajando enfrentamentos e oferecendo modelos de
comportamentos para eles.
Assim, o terapeuta analista do comportamento se utiliza da relação
terapeuta – cliente, como uma forma de promover as mudanças de
comportamentos necessárias. Isso vai além do emprego de técnicas e
procedimentos. É a relação. Assim, nosso trabalho na clínica não deve se
bastar em produzir mudanças comportamentais e afetivas. Elas precisam ter
dimensões significativas para nossos clientes, isto é, serem funcionais para
eles.
Acreditamos que nossa relação com o cliente é um instrumento
essencial para a promoção da mudança comportamental. Se partimos do
pressuposto de que todo e qualquer comportamento é resultado da interação
do organismo com o ambiente, o terapeuta passa a ser parte dessa relação,
promovendo na sessão terapêutica um ambiente para mudança
comportamental. O terapeuta, no contexto clínico, ocupa o papel de
interlocutor de uma comunidade verbal (ele é um ambiente verbal para seu
cliente).
Dessa forma, considerando a relação terapeuta – cliente fundamental
para a mudança comportamental, cabe ao terapeuta atuar como uma
audiência não punitiva. O terapeuta deve ser e deve dar modelos para seu
cliente. Aqui é importante considerar a questão da atitude empática. Acredito
que isso é fundamental na prática clínica. Inclusive importante para o vínculo
entre o terapeuta e o cliente. Penso claro que, cada terapeuta desenvolve sua
“forma de atender”. Mas a empatia, o mostrar-se atento ao cliente, o mostrar-
se disponível é algo que contribui e muito para todo o processo.
Um outro ponto interessante é o tempo. Uma pergunta muito
frequente no consultório é: quanto tempo leva o processo terapêutico? Não
existe um tempo determinado para um processo terapêutico. O tempo é do
próprio cliente. Pode ser que, no início de nossa carreira, fiquemos
preocupados em mostrar a eficácia do processo ou então de mostrar nossa
própria competência. É um erro muito comum. Nesse movimento, o terapeuta
não estará sendo ambiente para promover a mudança comportamental, pois
estará muito mais sob controle da variável tempo do que da variável da
mudança comportamental.
Meu principal objetivo neste capítulo foi o de proporcionar ao leitor
uma visão ampla da prática do analista do comportamento. O processo
terapêutico na abordagem analítico-comportamental é dinâmico. Ele inicia,
desde a primeira sessão, de forma dinâmica.
Nosso objetivo maior não é o de promover a modificação exclusiva de
um único comportamento ou a eliminação de um sintoma. Nosso intuito é
promover a generalização de uma classe de respostas, ou seja, não modificar
um único comportamento, mas sim modificar muitas classes de
comportamentos em muitas situações diferentes. A modificação, também,
para nós não basta. É importante que ela se auto mantenha, fazendo com que
o indivíduo desencadeie uma nova forma de se relacionar com o mundo.
Nosso objetivo é o de fornecer ao nosso cliente uma séria de ferramentas
comportamentais, com as quais ele poderá se valer na sua vida diária.
Saímos então de uma pequena observação de um comportamento alvo
e vamos para uma visão de cima. O processo terapêutico, para o analista do
comportamento, é, em resumo, uma transformação do rumo da vida de um
sujeito. E por que não, após um determinado tempo e de acordo com cada
pessoa, fazer com que o cliente tenha ferramentas comportamentais
necessárias para que ele possa ser “seu próprio terapeuta”, identificando e
modificando seus comportamentos.
Para finalizar, mencionarei um trecho em que Skinner aborda sobre a
importância do autoconhecimento. O processo terapêutico proporciona um
enriquecimento pessoal profundo, fruto do autoconhecimento.
O autoconhecimento é de origem social (...) Mas o autoconhecimento tem
um valor especial para o próprio indivíduo. Uma pessoa que se ´tornou
consciente de si mesma´ por meio de perguntas que lhe foram feitas está em
melhor posição de prever e controlar seu próprio comportamento (
SKINNER, 1974).

REFERÊNCIAS
GUILHARDI, Hélio José. Algumas diretrizes para melhor ação
terapêutica. Disponível em
<http://www.itcrcampinas.com.br/pdf/helio/algumas_diretrizes.pdf.> Acesso
em: 04 Mai. 2016.
JUNIOR, Ronaldo Rodrigues Teixeira; SOUZA, Maria Aparecida Oliveira
de. Vocabulário de análise do comportamento: um manual de consulta
para termos usados na área. Santo André: ESETec Editores Associados,
2006.

MARTIN, Garry; PEAR, Joseph. Modificação de Comportamento: o que é


e como fazer. Tradução de Noreen Campbell de Aguirre. Revisão Científica
de Hélio José Guilhardi. 8. ed. São Paulo: ROCA, 2009.

MEYER, Sonia Beatriz. O conceito de análise funcional. In: DELITTI, M.


(Org.). Sobre Comportamento e Cognição. São Paulo: Arbytes Editora
LTDA, 1997.

MICHELETTO, Nilza; SÉRIO, Tereza Maria de Azevedo Pires. Homem:


objeto ou sujeito para Skinner? Temas em Psicologia, n 2, 11-21, 1993.

SILVEIRA, Jocelaine Martins da. Visão de homem na terapia analítico


comportamental. Revista Terra e Cultura. Rio de Janeiro, n 44, ano 23,
jan/jul 2007.

SKINNER, Burrhus Frederic. (1957) O comportamento verbal. São Paulo:


Editora Cultrix, 1978.

__________. Questões recentes na análise comportamental. Campinas:


Papirus, 1991.

__________. Sobre o Behaviorismo. 10.ed. São Paulo: Editora Cultrix,


2006.

TORÓS, Denise. O que é diagnóstico comportamental. In: DELITTI, M.


(Org.). Sobre Comportamento e Cognição. São Paulo: ARBytes Editora
LTDA, 1997.
CAPÍTULO 6
Psicodiagnóstico e a Análise Funcional do
Comportamento
Gabriel Fachini
Ao abordar o conceito de Psicodiagnóstico, estamos diretamente nos
referindo a uma avaliação psicológica feita com propósitos clínicos que,
geralmente, visa investigar sobre as dificuldades e as facilidades que um
indivíduo apresenta em sua dada situação. Ela possui a finalidade de
identificar as áreas nas quais existe necessidade de intervenção e quais serão
os objetivos a ser alcançados no tratamento. Além disso, a atividade
diagnóstica garante dois pontos que são relevantes para a Psicologia: 1) a
utilização de técnicas que são privativas aos profissionais (identidade) e 2) os
instrumentos que garantem a padronização (marco científico) (BARBIERI,
2010).
Nesse panorama, podem ser destacados dois tipos de
psicodiagnóstico: um tido como tradicional e um outro do tipo interventivo.
No tipo tradicional, configura-se em um processo com tempo
limitado, havendo o emprego de métodos e técnicas psicológicas para
compreender os problemas, mensurar, categorizar e predizer o curso do caso,
no qual se realiza uma devolutiva dos resultados ao final do processo. Esse
tipo apresenta um caráter científico porque se inicia a partir de um
levantamento prévio de hipóteses a ser confirmadas (ou não) por passos já
estabelecidos. A meta a ser alcançada seria uma descrição e uma
compreensão aprofundada e completa da personalidade do paciente no intuito
tanto de explicar a dinâmica do caso a partir do material recolhido, bem como
para formular recomendações terapêuticas através da integração do quadro
geral produzido (CUNHA, FREITAS e RAYMUNDO, 1986).i
Em relação ao psicodiagnóstico do tipo interventivo, preconiza-se que
haja apreensão da dinâmica intrapsíquica junto ao entendimento da
problemática que o indivíduo apresenta, levando a uma intervenção dos
aspectos que são emergentes, importantes e/ou decisórios nos desajustes
responsáveis pelo seu sofrimento psíquico. Esse processo considera o
raciocínio clínico e os resultados dos instrumentos psicológicos de uma
forma flexível, como um trabalho dinâmico que se estrutura em função dos
aspectos emergentes e significativos da situação clínica, sendo único a cada
paciente (PAULO, 2006).
Tratando-se, porém, da abordagem Analítico Comportamental, não há
a possibilidade do emprego de técnicas que avaliem uma “dinâmica
intrapsíquica”, visto que para o Behaviorismo, um mundo diferente do
material (psíquico) para explicar as ações do sujeito não seria uma solução,
mas uma alocação inadequada das contingências que regem o
comportamento.
Além disso, encontra-se ainda profissionais que apenas se utilizam
dos manuais tais como a CID 10 e o DSM V para fundamentar um
psicodiagnóstico. Porém, esses manuais apenas classificam um dado
problema a partir de classes tradicionais de psicopatologias, ou seja,
reduzem-nas a meras estruturas nosológicas, não levando em consideração
aspectos próprios do sujeito, relevantes para a explanação do problema,
queixa ou qualquer outra denominação a ser utilizada.
Tendo como fundamentos os conceitos propostos pela Análise do
Comportamento, é possível sugerir uma forma mais efetiva de
psicodiagnóstico, apresentada em 7 passos básicos, conforme vemos a seguir:

1. Análise inicial da situação-problema.


2. Planejamento do processo.
3. Esclarecimento da situação-problema.
4. Análise do Desenvolvimento e Motivação.
5. Análise do Autocontrole.
6. Análise dos relacionamentos sociais.
7. Análise de ganhos comportamentais.

Os passos enumerados anteriormente apenas têm por objetivo a


definição do comportamento-problema de um cliente, possibilitando formas
de estratégias específicas e individuais de tratamento para a queixa relatada
pelo cliente.
A análise inicial da situação-problema, passo número 1, está
fundamentada no levantamento das informações básicas que o cliente traz ao
momento terapêutico, geralmente expresso como aquilo que lhe causa algum
tipo de desconforto físico ou psicológico. Essa investigação inicial,
necessariamente feita com bastante acolhimento, será indispensável para criar
uma “linha de base”, isto é, o padrão de funcionamento comportamental do
sujeito e possíveis interações do ambiente que mantém (ou não) tais
comportamentos. Esse é o momento de iniciar o planejamento da aplicação
do reforçamento positivo para a modificação comportamental do sujeito.
Nesse sentido, Ferster (1972) afirma:
Um repertório operante fortemente reforçado
positivamente tem maior chance de incluir
comportamentos que podem terminar os estímulos
aversivos do que comportamentos que podem vir a ser
perturbados por eles. Inversamente, é difícil imaginar
como a dessensibilização de uma classe particular de
desempenhos poderia trazer muito benefício num
repertório cuja freqüência geral de comportamentos é
baixa, por exemplo, e que não detecta características
importantes dos ambientes reforçadores que estão
potencialmente disponíveis... Há um extremo em que o
repertório geral é extremamente limitado e um outro
extremo no qual a fobia é de importância trivial no
contexto do repertório total do paciente. Assim,
comportamental e clinicamente, uma fobia não é tanto
uma forma de comportamento, mas mais propriamente
uma mudança numa parte substancial do repertório total
da pessoa (FERSTER, 1972, p.4-5).
Nessa etapa, perguntas do tipo qual o problema?, que o traz aqui?,
poderia descrever o que você geralmente faz ou diz quando enfrenta tal
problema?, com que frequência ocorre esse problema?, há quanto tempo vem
ocorrendo o problema?, em que situações o problema ocorre?, em outras
palavras, o que desencadeia o problema? e como você tem tentado lidar com
o problema até o momento? (MARTIN e PEAR, 2009) podem auxiliar na
investigação, garantindo dados mais fidedignos a ser investigados e utilizados
em momentos posteriores.
Tendo sido feita a investigação inicial, deve-se planejar os
procedimentos do segundo passo psicodiagnóstico: o planejamento do
processo. Tal delineamento visa definir o objetivo final da modificação do
comportamento-problema do cliente e testar as hipóteses que irão decorrer
dos encontros posteriores. A modificação do comportamento envolverá a
observação frequente e o monitoramento do comportamento de interesse,
visto que o processo de psicodiagnóstico é contínuo, com cada sessão tendo a
sua conclusão, mas essa sendo, porém, atrelada à próxima e relacionada à
anterior. Isso só é possível com uma especial atenção do psicoterapeuta à
descrição que o cliente fornece sobre seu problema, ao mesmo tempo que ele
evita expressar valores pessoais que poderiam influenciar indevidamente o
cliente. Sobre isso, o psicoterapeuta deve sempre demonstrar empatia ao
comunicar o seu entendimento sobre a situação/sentimento do sujeito e
enfatizar a confidencialidade (SARWER e SAYERS, 1998; MARTIN e
PEAR, 2009).
Com o planejamento realizado e já tendo sido levantadas algumas
hipóteses, é feito o esclarecimento da situação-problema, no qual se deve
comunicar, de maneira informal, clara e amistosa, ao cliente a condição em
que se situa o comportamento-problema. Nesse momento, são fornecidas
informações iniciais sobre a análise do comportamento e de que maneira
certas situações do contexto ambiental podem estar relacionadas à
manutenção do comportamento-problema e como, através da mudança do seu
comportamento (principalmente pelo uso do reforçamento positivo), pode-se
obter ganhos breves e de longa duração. Em relação ao reforçamento
positivo, Skinner (1983) nos alerta:
Eles ocorrem em momentos diferentes e são sentidos
como coisas diferentes. Quando sentimos prazer, não
estamos necessariamente sentindo uma maior inclinação a
nos comportar da mesma maneira. Quando repetimos
comportamento que foi reforçado, por outro lado, não
sentimos o efeito agradável que sentimos na ocasião em
que o reforçamento ocorreu. Acredito que as práticas
culturais emergiram principalmente devido ao efeito
agradável do reforçamento e que grande parte do efeito
fortalecedor das conseqüências do comportamento se
perdeu. (SKINNER, 1983, p.17)
Com a explicação feita daquilo que será modificado, passar-se-á ao
quarto passo, o da análise do desenvolvimento e motivação. Nessa etapa, são
considerados os fatores referentes à história de contingências de reforçamento
existentes na história de vida do sujeito (comportamentos adquiridos,
mantidos e extinguidos durante o seu desenvolvimento etário), bem como os
fatores de operações motivacionais que alteram temporariamente a eficácia
das consequências, como reforçadores e punições e também que influenciam
comportamentos que normalmente levam a tais reforçadores ou punições
(efeito que altera o comportamento) (LARAWAY et al., 2003; MARTIN e
PEAR, 2009). Podemos, então, identificar quais operações motivacionais
estabelecedoras aumentam a eficácia de um determinado reforçador e quais
operações motivacionais supressoras tendem a diminuir o efeito de tal
reforçador. No momento clínico, isso deve sempre ser levado em
consideração, pois muitos dos comportamentos-problema são mantidos por
operações motivacionais estabelecedoras, em que o sujeito irá obter algo que
agrega (não com o sentido positivo do termo) à sua resposta mantendo,
assim, a taxa da ocorrência dessa contingência. A noção popular de
motivação como sendo aquilo que leva alguém a fazer algo, agora, pode ser
entendida como um processo muitas vezes responsável pela manutenção
inadequada de comportamentos e muitas vezes relacionado a sentimentos.
Sendo assim, Guilhardi (2007) nos explica que:
Habituou-se, na prática da comunidade verbal, a chamar
de sentimento aquilo que é sentido no corpo (na verdade,
seria mais preciso dizer "o que você sente é seu corpo se
comportando"). Expressões tais como: “tenho
sentimentos”, “percebo meus sentimentos”, “capto meus
sentimentos” etc. substantivam e dão existência a um
conceito inventado (sentimento). O que é meramente uma
palavra, um produto da comunidade verbal, ganha outra
natureza e passa a ser tratado como um evento
psicológico a ser explicado e, ainda pior, com
propriedades explicativas (ou causais). A comunidade
também, de forma arbitrária, dá nomes aos sentimentos:
depressão, medo, ansiedade, angústia etc., sem se apoiar
em evidências fidedignas, quer empíricas, quer
funcionais, a fim de atribuir nomes de sentimentos aos
tais estados e reações corporais. (GUILHARDI, 2007,
p.2).
Tendo sido identificada a relação que mantém, por parte do sujeito, os
comportamentos, é necessário o treino de autocontrole, contido no quinto
passo. No quinto passo, o da análise do autocontrole, o autocontrole é um
conceito aplicado geralmente como um sinônimo de força de vontade, de
capacidade para enfrentar situações difíceis, um poder interior ou uma força
emocional, implicando a explicação de que o comportamento de autocontrole
ocorreria por meio de um agente iniciador interno (CASTANHEIRA, 2001).
No entanto, essa explicação precisa estar atrelada ao comportamento operante
do sujeito e de como o contexto é capaz de controlá-lo. Segundo Skinner
(1953/2000, p. 252), “Com freqüência, o indivíduo vem a controlar parte de
seu próprio comportamento quando uma resposta tem consequências que
provocam conflitos - quando leva tanto a reforço positivo quanto a negativo”.
Dessa forma, o comportamento de autocontrole se relaciona com a
possibilidade de uma escolha de respostas concorrentes; talvez o sujeito
precise escolher entre duas possibilidades de respostas que levem a
consequências com o mesmo valor, ou então a uma resposta que seja
reforçada imediatamente e punida a longo prazo, ou vice versa. Tal situação
indica que o comportamento de autocontrole será caracterizado como aquele
que decorrerá sempre de contingências conflitantes, em que o organismo
necessite escolher entre respostas duais que tenham diferentes consequências.
Ou seja, o autocontrole pode ser inicialmente definido como a manipulação
do ambiente por uma pessoa, de maneira a alterar seu próprio comportamento
em função de uma determinada consequência (NICO, 2001).
Podemos utilizar como exemplos de autocontrole situações em que a)
um jovem fica estudando na biblioteca de tarde por saber que, em casa, teria a
probabilidade aumentada de comportamentos como o de assistir TV ou jogar
com seu jogo favorito. Isso demonstra o seu conhecimento sobre as
contingências que o controlam; ou b) quando uma pessoa se propõe a realizar
uma dieta e só vai às compras no mercado já em operação estabelecedora
supressora (estado de saciação) para se abastecer de alimentos saudáveis,
diminuindo a probabilidade de ingerir alimentos altamente calóricos depois.
Quando nos comportamos assim diante de consequências que tendem a ser
conflitantes para uma mesma resposta, estamos nos autocontrolando. Para
que isto ocorra, no entanto, é necessário conhecer as variáveis que controlam
o próprio comportamento e essas variáveis podem ser obtidas nos momentos
iniciais da entrevista, construindo uma linha de base, imprescindível, como
dito anteriormente, para as modificações futuras.
O sexto passo, análise dos relacionamentos sociais, está ligado
justamente com a maneira de o sujeito se relacionar no seu contexto social
tais como ambientes familiares, laborais, sócio-recreativos, dentre outros. É
uma dimensão intrinsecamente ligada às suas habilidades sociais. Grande
parte dos comportamentos-problema, que surgem no contexto terapêutico,
tem a ver com escassez de habilidades sociais pessoais, baixa assertividade e
poucas continências para lidar com situações aversivas ou punitivas.
Essas habilidades são contingências necessárias às relações
interpessoais que tendem a ser bem-sucedidas, atendendo a parâmetros
típicos de cada contexto cultural, incluindo comportamentos de iniciar,
manter e finalizar conversas; pedir ajuda; fazer e responder a perguntas; fazer
e recusar pedidos; defender-se; expressar sentimentos, agrado e desagrado;
lidar com críticas e elogios; admitir erro e pedir desculpas, dentre outros
(CABALLO, 2003). Além do comportamento verbal, são bastante relevantes,
na determinação de habilidades sociais, aspectos de tipo não-verbal, tais
como: postura e contato visual, aspectos fisiológicos como respiração e taxa
cardíaca, aparência pessoal e atratividade física (DEL PRETTE, 1999).
Relacionado a esses aspectos, a assertividade de um indivíduo mostra
como ele se comporta sob controle através dos três níveis de seleção dos
comportamentos: filogenético, ontogenético e cultural (SKINNER, 2000),
com destaque à importância do terceiro nível, diretamente ligado aos aspectos
das habilidades sociais anteriormente enunciados. Os sentimentos produzidos
pelas contingências de reforçamento que controlam comportamentos
assertivos são descritos como de autoestima e autoconfiança,
responsabilidades intrínseca e extrínseca, dentre outros.
Por fim, o sétimo passo – análise dos ganhos comportamentais -
compreende uma devolutiva ampla de todo o processo ocorrido, abrangendo
a verificação e avaliação das hipóteses construídas durante as sessões de
psicodiagnóstico. Nesse sentido, o terapeuta irá intervir com o objetivo final
de levar o cliente à auto-observação e ao autoconhecimento, sendo que o
autoconhecimento é a possibilidade de o cliente ser capaz de descrever as
contingências às quais responde e de influenciar as suas ações (lembrando
das possibilidades de autocontrole e também habilidades sociais). Além
disso, Skinner (1991, p.88) nos apresenta que “todo o comportamento, seja
ele humano ou não-humano, é inconsciente: ele se torna “consciente” quando
os ambientes verbais fornecem as contingências necessárias à auto-
observação”. Isto é, cabe ao terapeuta assumir o seu papel na interação com o
cliente, através da modulação das funções dos ambientes verbais. Os termos
inconsciente e consciente NÃO devem ser mesmo empregados pela
Psicanálise, pois Skinner visa diferenciar as ações que são privadas (e as
encobertas) daquelas que se tornam públicas através do comportamento
verbal compartilhado, sendo o cliente ora narrador e o terapeuta ouvinte, e
também o contrário: terapeuta sendo ora narrador e o cliente ouvinte. Essa
construção garante o autoconhecimento das contingências.
De acordo com Micheletto e Sério (1993, p.19):
Skinner afirma o autoconhecimento como a possibilidade
de um tipo especial de conhecimento. Como fruto de
contingências sociais, os homens podem descrever seus
comportamentos, sentimentos e as relações entre seus
comportamentos, sentimentos e o ambiente; essas
descrições podem se referir a eventos passados, presentes
e futuros. Para Skinner o autoconhecimento é sinônimo
de consciência, podendo haver diferentes graus de
consciência correspondendo à quantidade e ao tipo de
elementos envolvidos na descrição. (MICHELETO e
SÉRIO, 1993, p.19).
Para esses comportamentos serem selecionados, pode-se aproveitar as
regras já presentes nas contingências que o cliente apresenta, isto é, utilizar
algo previamente instalado e modelado, adaptá-lo e tornar uma contingência
mais eficiente e funcional no seu contexto. As regras podem ser entendidas
como uma descrição (oral ou escrita) de uma contingência, mostrando o
resultado final (consequência reforçadora) de uma determinada situação e o
conteúdo dessa regra controla e controlará o comportamento MARTIN e
PEAR, 2009).
A partir do que foi exposto, ao refletir sobre o psicodiagnóstico
aplicado à Clínica Comportamental, os passos apresentados serão úteis ao
planejamento daquilo que deverá ser realizado e coletado. Não existe a
necessidade de seguir os passos nessa estrita ordem, exceto os dois primeiros
que são indispensáveis ao processo restante.
Deve ser enfatizado que o planejamento deve ser algo que ocorre de
sessão em sessão, pois somente assim tudo que for coletado pode ser
transformado em subsídio para a modificação de um comportamento-
problema.
Além do exposto, não se deve descartar o emprego de inventários e
testes quantitativos para fundamentar uma investigação mais detalhada de
certos aspectos, lembrando que o psicodiagnóstico é processo cuja conclusão
está limitada a um tempo de, geralmente, 10 a 12 sessões.

REFERÊNCIAS
BARBIERI, V. Psicodiagnóstico tradicional e interventivo: confronto de
paradigmas? Psicologia: teoria e pesquisa. v. 26 (3), p. 505-513, 2010.
CABALLO, V. E. Manual de avaliação e treinamento das habilidades
sociais. São Paulo: Santos, 2003.
CASTANHEIRA, S.S. Autocontrole: a Linguagem do Cotidiano e a da
Análise do Comportamento. In: BANACO, R.A. (org.) Sobre
comportamento e cognição: aspectos metodológicos e de formação em
Análise do Comportamento e Terapia Cognitivista, 1 ed., Santo André:
ARBytes, p. 57-73, 2001.
CUNHA,J.A.; FREITAS, N. e RAYMUNDO, M.G. Psicodiagnóstico. Porto
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DEL PRETTE, Z. A. P.; Del Prette, A. Psicologia das habilidades sociais:
Terapia e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
FERSTER, C. B. An Experimental Analysis of Clinical Phenomena. The
Psychological Record, v. 22, p. 1-16, 1972.
GUILHARDI, H.J. Conceituação de sentimentos. Campinas: Instituto de
Terapia por Contingências de Reforçamento, 2007.
LARAWAY, S. et al. Motivating operations and terms to describe them:
some further refinements. Journal of Applied Behavior Analysis, v. 36, p.
407-414, 2003.
MARTIN, G.; PEAR, J. Modificação de Comportamento - O que é e
Como Fazer? São Paulo: Editora Roca, 2009.
MICHELETTO, N.; SÉRIO, T. M. A. P. Homem: Objeto ou Sujeito para
Skinner? Temas em Psicologia, v. 2, p. 11-21, 1993.
NICO, Y.C. A Contribuição de B.F. Skinner Para o Ensino do
Autocontrole como objetivo da educação. 2001. Dissertação (Mestrado em
Psicologia Experimental: Análise do Comportamento), Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2001.
PAULO, M.S.L.L. Psicodiagnóstico interventivo em pacientes adultos com
depressão. Boletim de Psicologia, v. 56 (125), p.153-170, 2006.
SARWER, D.B.; SAYERS, S.L. Behavioral interviewing. In: BELLACK,
A.S.; HERSEN, M. Behavioral assessment: a practical handbook. Boston, p.
63-78, 1998.
SKINNER, B. F. (1971). O Mito da Liberdade. São Paulo: Summus , 1983.
_________. (1953). Ciência e comportamento Humano. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
ABORDAGEM
FENOMENOLÓGICA
CAPÍTULO 7
O Psicodrama e o Encontro Fenomenológico de
Terapeutas Iniciantes no Processo de
Psicodiagnóstico Interventivo
Erika Sproesser
Apresentação
Durante os anos atuando como professora supervisora de clínica-
escola, pude acompanhar as angústias que cercam os estudantes de Psicologia
que adentram à clínica universitária, iniciando os atendimentos no estágio em
psicodiagnóstico. Em muitos momentos, deparei-me com reações de medo e
de impotência frente aos primeiros atendimentos clínicos. Como lidar com a
angústia do cliente se os terapeutas estão angustiados? Como propiciar o
desenvolvimento do cliente, se as conservas e as angústias trazem amarras à
espontaneidade dos terapeutas?
Neste capítulo, faço a tentativa de responder a tais questões que estão
presentes na clínica dos terapeutas iniciantes, discorrendo sobre o
psicodiagnóstico na abordagem fenomenológico-existencial e psicodramática,
sobre o conceito de psicodrama e de encontro terapêutico, bem como sobre as
angústias que cercam o papel do terapeuta iniciante frente às angústias dos
pacientes. Abordo a clínica e as técnicas psicodramáticas que contribuem
para a percepção e para o desvelamento da verdade e das necessidades
existenciais, para o co-construir – na relação terapeuta-paciente – da
compreensão e da ressignificação da queixa apresentada.

O Psicodiagnóstico Interventivo numa proposta fenomenológico-existencial


Durante décadas, o psicodiagnóstico foi compreendido como um
processo de avaliação psicológica separado de qualquer tipo de intervenção.
Esse era separado do processo de psicoterapia, realizado em etapas diferentes
e, apenas depois da sua finalização, era que se iniciava a intervenção
psicoterápica, se essa fosse a indicação.
O psicólogo, através de uma conduta neutra, ouvia o cliente por meio
de entrevistas assim como procedia durante uma anamnese. Ele observava os
comportamentos e coletava outros dados com o uso de testes psicológicos.
Esse modelo era baseado no modelo médico e nosológico de
avaliação, sendo que cabia ao profissional classificar e conceituar os dados
coletados, de acordo com critérios pré-estabelecidos de sintomatologia, a fim
de chegar à conclusão de diagnóstico que era obtida dentro do enquadre
psicopatológico psiquiátrico.
Dentro do modo tradicional de proceder o psicodiagnóstico, Ocampo
et all. (1994) descrevem:
(...) é uma situação bipessoal, de duração limitada, cujo objetivo é construir
uma descrição e compreensão, a mais profunda e completa possível, da
personalidade total do paciente ou do grupo familiar. Enfatiza também a
investigação da sintomatologia e as características da indicação com
aspectos presentes (diagnóstico) e futuros (prognóstico) (OCAMPO et all.,
1994, pág.17).

O psicodiagnóstico tradicional não permitia intervenções, pois essas


poderiam contaminar o diagnóstico e se perder a fidedignidade na
conceituação nosológica. Esse formato satisfazia uma grande demanda de
encaminhamentos de profissionais psiquiatras, pediatras, neurologistas e afins
que necessitavam de um diagnóstico psicológico.
Depois de alguns anos, devido às necessidades de demanda em
clínicas-escola e instituições de saúde, com filas de espera para atendimento,
rompeu-se com esse modelo tradicional de psicodiagnóstico e implantou-se
uma forma mais cooperativa e ativa, visando a necessidade de realizar
intervenções ao longo do processo de avaliação.
Esse modelo foi inicialmente utilizado em clínica-escola por Ancona-
Lopez (1987), em uma abordagem fenomenológico-existencial que visava se
distanciar do modelo investigativo para se aproximar de um modelo que
contemplasse a participação ativa do cliente no processo e na ressignificação
da queixa apresentada.
Essa forma participativa contempla um modo dialético de co-
construção entre o terapeuta e o cliente. Assim, diferente do modelo
tradicional, muitas queixas são sanadas no próprio psicodiagnóstico e os
clientes, muitas vezes, não precisam do processo de psicoterapia.
Como podemos ver no trecho a seguir, para Ancona-Lopez (1995), o
psicodiagnóstico e a psicoterapia se misturam, não existindo barreiras entre
uma etapa e outra:
(...) os modos de proceder o psicodiagnóstico, segundo Ocampo e Garcia
Azeno ou Verthelyi e Friedental, implicam significativas diferenças. O tipo
de trabalho realizado pelas duas últimas evidencia a necessidade de uma
conduta mais plástica por parte do psicólogo, a necessidade que ele
desenvolva sua capacidade clínica, sua sensibilidade para captar indícios
significativos e decidir quando e como ele deve atuar com aquele
determinado paciente, em outras palavras, evidencia que em ambas as
tarefas, diagnóstico e psicoterapia exigem a mesma capacidade de
compreensão e empatia para o trabalho (ANCONA LOPES, 1995, pág. 21-
22).
No psicodiagnóstico interventivo, as devolutivas do terapeuta ao
cliente ocorrem durante todo o processo, de forma ativa e colaborativa e com
o próprio cliente, segundo a visão e a concepção de homem adotada pela
Fenomenologia existencial.
A Fenomenologia existencial considera o homem um ser sempre em
relação com o outro, com o mundo. O homem é responsável pelas suas
escolhas e dá importância plena à subjetividade humana, que se constitui a
partir das relações que ele estabelece no decorrer da sua existência.
Para Tenório (2003) o diagnóstico existencial compreende o homem
na sua totalidade e singularidade:
(...) a pessoa no processo de diagnóstico, deve ser compreendida como
sendo um fenômeno único e, como tal, respeitada em sua totalidade; não
deve, portanto, ser avaliada segundo normas e padrões de comportamento
preestabelecidos, numa total revelia a sua própria existência. Seu nível de
crescimento ou de maturidade deve ser dimensionado por meio dos projetos
de vida por ela própria idealizados e de acordo com seu próprio mundo e
contexto existencial. (TENORIO, 2003, pag. 41)
Para Yehia (1995), o psicodiagnóstico interventivo envolve uma
situação de observação, cooperação e compreensão tanto do ponto de vista do
terapeuta como do cliente. Donatelli (2013) descreve, a seguir, essa prática
compartilhada como uma forma de diminuir o sofrimento emocional:
(...) o psicólogo compartilha com os clientes suas impressões, permitindo
que esses as legitimem ou ainda as transformem. Nesse compartilhar pode
ocorrer a possibilidade de emergir uma nova compreensão, um novo
sentido que possibilite diminuir ou eliminar o sofrimento psíquico (...)
(DONATELLI, 2013, pág. 48)

Dentro desse viés diagnóstico, como o próprio cliente dá significados


às suas vivências, a saúde e a doença são compreendidas como etapas de um
mesmo processo: um processo de transformação com o mundo, no qual o
sujeito transforma a sua condição à medida que atribui significados aos
fenômenos que se constituem.
Augras (1986) descreve que saúde e doença se encontram em um
mesmo processo e que esse não impõe a necessidade de haver um diagnóstico
a priori para, então, haver uma intervenção. Para Angerami (1984), a
existência é um contínuo vir a ser, um sempre ainda-não, com a
possibilidade de um poder-ser. Desse modo, é totalmente inaceitável a
rotulação do ser humano, aprisionando-o dentro de determinadas categorias
diagnósticas.
Para o mesmo autor, a pessoa doente é antes de tudo uma pessoa que
sofre, que precisa, em primeiro lugar, ser compreendida a partir de seus
sentimentos, sensações, emoções e, enfim, a partir de tudo que por ela é
vivenciado.
Assim, a clínica fenomenológica permite a transformação da doença
em saúde e o resignificar do sentido existencial, reformulando o conceito
tradicional de psicodiagnóstico.

O Psicodrama e o seu lugar no Psicodiagnóstico


Para compreender o lugar que o Psicodrama ocupa na prática
psicodiagnóstica, pretendo discorrer, primeiro, sobre o seu lugar enquanto
ciência e os seus pressupostos, assuntos poucos abordados na graduação de
Psicologia para, depois, o leitor ser capaz de entender a sua aplicabilidade na
clínica diagnóstica e terapêutica.
O Psicodrama tem como raiz filosófica o existencialismo. Jacob Levy
Moreno, pai do Psicodrama, nasceu na Romênia em 1889 e sofreu fortes
influências do existencialismo, da teoria de papéis de Buber, da sociologia e
do teatro (MARINEAU,1992). Moreno era um apaixonado pelo teatro desde
a infância e trabalhou com o teatro espontâneo como método
psicoterapêutico. Fazia teatro espontâneo com crianças e adultos nas ruas em
Viena no começo do século 20.
Moreno trabalhou com muitos grupos em diferentes contextos e
fundou o termo terapia de grupo em 1930. Depois que migrou para os
Estados Unidos, publicou vários artigos e livros e foi reconhecido
mundialmente devido à intervenção psicodramática com soldados no pós-
guerra. Em 1936, realizou seu grande sonho, fundou um hospital psiquiátrico
e a escola de Psicodrama.
O Psicodrama é a terapia das relações interpessoais. Para Moreno
(1983, 1993 e 1997), não existe um aparelho psíquico, mas tudo é
compreendido a partir da relação de um indivíduo com o outro. O homem
existe a partir do pressuposto existencial, a partir das relações que ele
estabelece com o mundo, com as pessoas e com as coisas ao seu redor.
Sobre a concepção relacional de homem, Lipman (2008) cita Moreno:
[...] Moreno disse que a menor unidade de vida é composta de duas.
Afirmou que nós nos definimos por intermédio de nossos relacionamentos
com outros seres humanos e que ninguém existe no vazio [...] defendeu a
ideia de que, uma vez que tenhamos sido feridos numa interação, é aí que
deve acontecer o processo de cura [...] (LIPMAN, 2008, pág. 27)

Entretanto, diferentemente da fenomenologia-existencial, que utiliza


apenas o método verbal em terapia, o psicodrama utiliza a ação. Drama é
uma palavra de origem grega que significa ação (MORENO, 1997), o que
permite ultrapassar o domínio das discussões verbais e das análises
psicológicas para o da criação de espaços de vivência de situações de
conflitos através da dramatização ou de outras técnicas.
Moreno fundou a teoria do Psicodrama, da Sociometria e a
Psicoterapia de grupo. Desenvolveu conceitos importantes como: a teoria de
papéis, átomo social, espontaneidade-criatividade, conserva cultural, status
nascendi, locus nascendi, tele e transferência, que explicarei a seguir.
A Socionomia, a grande-mãe de influência sociológica e dos estudos
do movimento grupal especialmente no período pós-guerra, estuda as leis do
desenvolvimento social e das relações sociais. Nela, busca entender como os
relacionamentos se entrelaçam com o que não está diretamente manifesto,
mas que está presente em todas as relações interpessoais (REIS, 1992). Ela se
divide em três ramos: a sociometria, a sociodinâmica e a sociatria.
A Sociometria estuda a estrutura básica dos grupos em termos de
vínculos interpessoais, e, segundo Moreno (1993), é a ciência da medida do
relacionamento humano. As ciências subjetivas são, portanto, entendidas em
suas articulações com os processos sociais (REIS, 1992). Em um momento
posterior, quando Moreno migrou da Europa para os Estados Unidos, ele
quantificou a Sociometria através do teste sociométrico.
As redes sociométricas se configuram a partir do entrelaçamento dos
vínculos. Assim, cada pessoa se movimenta dentro de um átomo social, isto
é, um conjunto de vínculos próximos que constituem a rede de relação de um
indivíduo (MARINEAU, 1992).
Uma pessoa sociometricamente isolada costuma ter um átomo social
pobre, fixado nas figuras que constituem a sua matriz de identidade primária.
Um indivíduo que apresenta empobrecimento nas suas relações sociais, no
seu átomo social, com fixação na sua matriz de identidade primária apresenta
pouca espontaneidade e criatividade para desenvolver relações satisfatórias e
saudáveis.
Essas relações são analisadas pela Sociodinâmica, que compreende a
dinâmica dos vários vínculos grupais e relacionais no desempenho de papéis
sociais dos indivíduos. Cada vínculo é exercido a partir de um papel definido
como uma unidade psicossocial de conduta.
Para Menegazzo (1995), cada indivíduo assume papéis nas relações
que estabelece e há sempre um contrapapel envolvido, com quem se relaciona
o indivíduo, seja no âmbito real ou imaginário. São os papéis sociais que
compõem o átomo social.
Rubini (1995) define papel como um conjunto de atos, ações na
interação entre as pessoas, influenciado por uma determinada cultura e
sociedade. Para Moreno (1993, 1997), o papel tem um caráter psicossocial e
influencia a formação individual de um indivíduo desde seu nascimento,
como meio de comunicação com o mundo e sua forma de existir.
A partir do método psicodramático, um indivíduo pode desempenhar
seus papéis em cena, na cena psicodramática em grupo, ou mesmo na
psicoterapia bipessoal. Busca-se a compreensão na atuação desses papéis
sociais e do átomo social, as angústias e os conflitos que se apresentam,
criando-se outras possibilidades mais espontâneas e criativas de se constituir
os vínculos existentes ou desejados.
A espontaneidade é a energia que se conserva e que se transforma
(GARRIDO MARTIN, 1996, p.122). Para esse autor, quando a
espontaneidade adoece, as funções de adequação e de criação de papéis
também são afetadas.
O jogo de papéis (role playing) é uma das formas de intervenção
psicodramática. O tratamento ou intervenção psicodramática é denominado
sociatria, que compreende a psicoterapia de grupo, psicoterapia individual ou
sociodrama.
Através dessa técnica, busca-se o locus nascendi do conflito e
compreende-se os fatores emocionais e relacionais que envolvem esse
conflito. Depois, cria-se realidades suplementares para que o próprio
indivíduo, junto ao diretor de cena ou terapeuta, encontre outras
possibilidades de existência. Nesse momento, ocorre o status nascendi de
formas mais satisfatórias de se relacionar com o outro e com o mundo.
Bustos (2005), neste trecho, descreve e exemplifica a compreensão
psicodramática dos conflitos relacionais:
(...) todo conflito é incorporado através de um papel, geralmente o papel de
filho através de seu complementar: mãe ou pai. Essa situação de conflito faz
com que este papel fique fixado em seu modus operandi ao papel
complementar primário, que denomino complementar interno patológico.
Quanto mais forte esse conflito, mais incapacitante será o resultado e mais
papéis terá afetado (...) Todo estímulo externo que desencadeie essa
dinâmica originará condutas que correspondem à relação com esse
complementar interno patológico. Assim a dinâmica: um filho hipersensível
diante de um pai hipercrítico despertará condutas afins com outras figuras
de autoridade que, a partir do cluster (conjunto) de papéis, se associam a
ele. A transferência ocorre em função dessa complementariedade interna
patológica. (BUSTOS, 2005, pag. 31)

Transferência e tele são conceitos fundamentais na teoria


psicodramática e um fator importante nas relações interpessoais.
Para Marineau (1992), tele traz realidade aos vínculos humanos
inconscientes e ocorre de forma recíproca. Aguiar (1990) refere-se a tele
como um vínculo de percepção mútua e de compreensão interpessoal:
(...) vínculo de percepção, de afeto e de relacionamento objetal e amoroso.
Por meio de tele, compreendemos os pensamentos e os sentimentos dos
outros e somos levados para mais perto deles. É a conexão, o elo, o vínculo
(...) pode ser considerada como um processo interpessoal geral, do qual a
transferência é uma decorrência psicopatológica especial. (AGUIAR, 1990,
pág. 78-79).
Para Nery (2003), a ausência de tele, a transferência, traz um processo
de destruição e comprometimento nos vínculos que resulta em uma
complementação patológica dos papéis. Quanto mais transferência houver
nas relações, menos tele terá, e quanto menos tele, mais transferência existe.
Segundo Fonseca Filho (2000), a tele é de direção bilateral, uma
percepção relacional recíproca, sendo que, nesse sentido, ela difere do
conceito de empatia, conceito das teorias humanistas. Um indivíduo com
empatia pode perceber e compreender o outro, mas, muitas vezes, não ocorre
uma situação de mutualidade como a tele. A tele leva os indivíduos ao
encontro fenomenológico.
Perazzo (1994), ao conceituar tele descreve também sobre o encontro
na relação humana:
(...) enquanto fenômeno da interação, tele supõe uma vivência totalizadora
mútua. A integridade dos níveis biológico, social, intelectivo, perceptivo e
afetivo faz-se presente nos seres em relação num dado momento – é o
campo limpo e iluminado do acontecimento existencial entre seres
humanos, no qual se dá o encontro. (PERAZZO, 1994, pág. 65).
Moreno (1993, 1997) descreve que tele é essencial dentro de um
processo psicoterapêutico. Em um processo de terapia, individual ou grupal,
podem ocorrer transferências nas relações entre os membros ou na relação
entre terapeuta e paciente, mas é essencial a tele para gerar desenvolvimento
e crescimento do paciente.
Todas as conceituações que foram explanadas colocam o
psicodiagnóstico psicodramático dentro da mesma visão de psicodiagnóstico
fenomenológico descrito inicialmente.
Fica demonstrado que não existem barreiras entre a etapa de avaliação
e a da intervenção: a intervenção ocorre em um mesmo processo no qual o
terapeuta e o cliente percebem, analisam e compreendem o átomo social e as
relações apresentadas.
À medida em que o cliente se apropria conscientemente da sua
existência, de seus aspectos relacionais e vinculares, que muitas vezes se
encontram conflituosos e transferenciais, a realidade suplementar criada com
o terapeuta permite vislumbrar possibilidades novas e mais satisfatórias de se
relacionar e de se perceber no mundo.
Para Moreno (2001), a realidade suplementar não é uma técnica, mas
uma nova realidade que o psicodrama cria com a dramatização. A realidade
suplementar é a realidade do psicodrama, a realidade da representação
psicodramática.
O psicodrama analisa a saúde e a doença a partir das relações télicas e
transferenciais, bem como a espontaneidade e criatividade no desempenho
dos papéis sociais. Da mesma forma que na fenomenologia-existencial, a
teoria de Moreno compreende saúde e doença dentro de um mesmo processo
e no aqui e agora. A condição espontânea e criadora do paciente é inata e
pode ser resgatada com o auxílio da terapia e construída no processo
psicodiagnóstico ou psicoterapêutico, através do encontro existencial
terapeuta-cliente
A saúde e a doença são vistas pela ótica do próprio cliente quando se
refere à satisfação ou insatisfação no modo de se relacionar e se perceber com
o outro. O psicodrama compreende o ponto de vista do cliente e não de
conceitos pré-determinados e sintomatológicos da psicopatologia tradicional.
O terapeuta não faz um diagnóstico, mas analisa e intervém numa relação de
acolhimento e reciprocidade.
O terapeuta iniciante na busca do encontro terapêutico
Como supervisora do curso de Psicologia, acompanhei o
amadurecimento de muitos terapeutas iniciantes na busca do encontro
terapêutico. Em supervisões, utilizei alguns métodos didáticos e de
aprendizagem, principalmente: relatos verbais e escritos dos atendimentos,
estudos de caso e a técnica do role playing, essa última pouco utilizada nessa
prática de ensino.
Nas minhas vivências, pude constatar que o role playing dos
atendimentos, num processo de compartilhar reflexivo no grupo de
supervisão foi o que mais contribuiu para o desenvolvimento do papel de
terapeuta ao encontro de seu cliente.
Muitos alunos iniciam a clínica com a sensação de que necessitam
rapidamente dar um diagnóstico e um direcionamento de alternativas de cura
e minimização do sofrimento emocional do cliente. Tais angústias impedem
que o paciente se manifeste espontaneamente e cegam os terapeutas iniciantes
quanto à percepção dos verdadeiros conflitos apresentados. Muitos se sentem
responsáveis pela condução do processo terapêutico e pelo sentido existencial
do cliente.
É muito comum o terapeuta iniciante concentrar a sua atenção em
suas próprias necessidades, sendo uma delas a necessidade de ter que cumprir
“adequadamente” o papel de terapeuta. Muitas vezes, o terapeuta em
formação busca um desempenho considerado bom, segundo suas expectativas
imaginárias de suprir as angústias dos clientes.
A psicoterapia tradicional durante muitos anos foi focada nas ações e
reações dos pacientes e o conceito de transferência partia apenas do paciente
para o terapeuta. Com o surgimento do psicodiagnóstico interventivo e das
psicoterapias de base interpessoal, a transferência passou a ser considerada no
nível relacional, sendo os dois responsáveis pelo o que se constrói no
processo terapêutico.
Se o processo de psicodiagnóstico e de psicoterapia se entrecruzam, o
processo é uma constante troca entre as percepções do paciente e do terapeuta
sobre um determinado fato, cena, fenômeno, conflito que se apresentam na
sessão. É um processo de ação, compreensão e de construção dialética na
relação terapeuta-cliente. O fenômeno é percebido e apreendido por ambos
no aqui e agora e nunca mais será o mesmo ou percebido da mesma forma.
Quando o terapeuta demonstra estar angustiado, ansiando suprir as
necessidades existenciais do cliente, ocorre uma sobreposição de desejos em
uma relação transferencial que compromete o vínculo terapêutico. O
terapeuta não deve se sentir responsável pela vida e pelas escolhas dos seus
pacientes: ele deve se sentir livre em um processo de percepção e de escuta
ativa para que a verdade do paciente possa se apresentar.
Essa reflexão deve ocorrer principalmente no processo de supervisão,
que é essencial nesse momento do desenvolvimento do papel de terapeuta.
Compreender todos esses fatores auxilia no crescimento do processo
terapêutico com o cliente e minimiza as angústias.
É claro que certa angústia também é importante no sentido de fazer o
terapeuta refletir sobre as suas condutas, pautadas na vertente da teoria que
ele adota. A angústia, muitas vezes, auxilia na reflexão, permite a busca de
valores e a reorganização do papel profissional que está em construção.
De Acordo com Jardim (2013), o que é compartilhado, através do
encontro terapêutico, de um com outro é o desvelamento do fenômeno que se
mostra por si:
Ser um com o outro junto ao ente é compartilhar o desvelamento
(verdade) do ente em questão; e no encontro constituído no espaço de sua
manifestação, aberto pelo terapeuta e pelo paciente, em tal “aí” terapêutico,
o fenômeno que se manifesta por compreensão é o modo de ser do paciente.
No entanto, o manifesto no aí terapêutico também se manifesta como
recusa, como ocultação que, no mistério, preserva aquilo que não pode ser
dito (JARDIM, 2013, pág. 54).
A escuta fenomenológica permite ao paciente se manifestar como é,
ser acolhido nas suas dores, perdas, em um verdadeiro encontro terapêutico.
Para o terapeuta psicodramatista e de outras abordagens humanistas e
fenomenológicas, não existem conceitos pré-concebidos de condutas certas e
erradas, adequado ou inadequado, ou sintomas que se enquadrem a
determinado diagnóstico psiquiátrico.
No psicodrama, o ser, o indivíduo é quem percebe as suas próprias
expectativas, desejos e projetos de vida em relação aos vários papéis que
desempenha, tornando-se responsável pelas próprias escolhas e vínculos.
Esse processo de construção do papel de terapeuta perdura por um
bom tempo. Normalmente, os terapeutas iniciantes têm como referência um
papel profissional que admiram, como exemplo de um professor, professor-
supervisor de estágio ou mesmo do terapeuta pessoal. Nesse sentido, a
supervisão, assim como a própria terapia, são importantes alicerces desse
desenvolvimento da matriz de identidade profissional.
Para Moreno (1997), todo papel social saudável deve ser
desenvolvido a partir das várias fases da matriz de identidade: tomar um
papel desempenhado pelo outro como modelo, desempenhar esse papel e
depois apresentar um modo mais criativo e espontâneo de ser de acordo com
as próprias vivências e experiências.
O terapeuta iniciante normalmente “empresta” a forma do professor
atuar: as falas, o modo de se comportar. À medida em que o aluno vivencia o
próprio papel com os pacientes, “treina” e internaliza novas formas de se
relacionar, aos poucos desenvolve, espontaneamente, a sua própria forma de
ser terapeuta. Cada relação, com cada paciente, se dá de uma forma e se
constitui única e intransferível, pois envolve sentimentos do aqui e agora.
Nunca o vínculo será o mesmo, mesmo que com o mesmo cliente, pois cada
sessão tem a sua singularidade.
Fox (2002) descreve que o sistema filosófico de Moreno apresenta o
tempo psicoterapêutico num sentido atemporal. O psicodrama integra o
passado, presente e o futuro. Ou seja, não existe um tempo cronológico de
um determinado ano em que o fato ou o conflito aconteceu. Por exemplo: um
paciente pode trazer uma cena que vivenciou na sua infância, quando tinha 5
anos de idade, mas quando faz o relato dessa cena em sessão, a percepção, os
desejos, as expectativas que envolvem a criança de 5 anos serão também as
do adulto que se refere à criança, ou as próprias expectativas em relação ao
seu futuro.
Dessa forma, a intervenção psicodramática é no aqui e agora. Quando
o terapeuta consegue dar espaços ao que se apresenta naquele determinado
momento, ocorre o processo de encontro terapêutico, um fenômeno télico
entre terapeuta e paciente.
A supervisão auxilia o terapeuta iniciante a ir ao encontro de seu
cliente no aqui e agora. Na supervisão psicodramática, o aluno tem a
possibilidade de experimentar, através da ação, o atuar enquanto terapeuta.
Cenas de atendimento psicológico são construídas no setting da supervisão,
reais ou imaginárias, com pacientes reais ou não. Nelas, os alunos são
incentivados a desempenhar papéis.
Através da realidade suplementar, conduzidos por um supervisor
experiente e com o auxílio do grupo de supervisão, os terapeutas podem
perceber como atuam nesse papel, os vários sentimentos e expectativas
envolvidos do processo terapêutico. Assim como ocorre através da técnica de
inversão de papéis, podem ser o seu paciente e se conscientizarem dos
sentimentos que o cercam.
Segundo Naffah Neto (1997), é através do jogo e desempenho de
papéis que o “eu” pode encontrar sua verdade e se descobrir através da
intersubjetividade, se perceber a partir do outro:
(...) A interdeterminação recíproca entre papel e contrapapel e que faz da
relação uma totalidade indivisível, na qual tanto a constituição como o
movimento de transformação envolvem as duas partes conjuntamente: e aí
temos uma forma social que concretiza a interdependência necessária entre
o si mesmo e o outro, a consciência que carece do reconhecimento da outra
consciência para poder existir e se realizar como tal. (NAFFAH NETO,
1997, pág. 223-224).

Considerações finais
No psicodiagnóstico, o terapeuta deve ouvir atentamente o seu cliente,
o que se apresenta na sessão. Ao lado dele, compreender de forma
compartilhada e ativa os conflitos relatados, com devolutivas constantes, num
processo de co-construção espontânea e criativa de se relacionar.
O terapeuta deve se sentir livre e sem as amarras das conservas
impostas, muitas vezes, pela própria expectativa imaginária de resolver as
questões existenciais do cliente.
A relação télica, entre terapeuta e paciente, leva ao verdadeiro
encontro, um encontro de afetividade e de acolhimento com novas
possibilidades de um resignificar existencial, na busca do sentido: do sentido
enquanto terapeuta e do sentido enquanto cliente. Para Moreno (1993), a
troca entre pacientes e terapeutas é constante e recíproca, entrando em jogo a
espontaneidade natural de cada um.
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ABORDAGEM CENTRADA NA
PESSOA
CAPÍTULO 8
O Que Eu Tenho, Doutora? - A Relevância do
Psicodiagnóstico Sob o Enfoque da Abordagem
Centrada na Pessoa
Priscila Camile Barioni Salgado
O convite para escrever este capítulo, que faz parte do segundo
volume da série “Psicologia para recém-formados”, foi recebido com muita
alegria, principalmente por saber que haverá a oportunidade de explorar
outros aspectos da prática clínica sob o olhar de diferentes abordagens.
No capítulo que escrevi no primeiro volume (SALGADO, 2015),
discorri sobre a prática clínica sob o olhar da Abordagem Centrada na Pessoa
(ACP). Nele, foi descrita a nossa visão de homem, os principais conceitos da
ACP, a teoria de um desenvolvimento saudável, a teoria do desajustamento
(desenvolvimento não-saudável) e as contribuições da prática
psicoterapêutica para o melhor ajustamento dos clientes.
A partir daquela leitura, já é possível perceber que a ACP parte de
uma premissa básica que é a tendência atualizante, ou seja, a crença plena de
que todo ser humano (aliás, todo ser vivo!) tem, inerente a si, recursos para se
autocompreender e se modificar em direções que promovam o seu
aperfeiçoamento.
Guardem isso! A compreensão e a concordância com o conceito de
tendência atualizante é crucial para o entendimento de como o ser humano se
desenvolve e também de como ele adoece.
O desenvolvimento humano ocorre por meio de um processo
dinâmico, ou seja, só acaba no dia em que morremos. Portanto, desde o dia
em que nascemos até o dia de nossa morte, estamos caminhando rumo à
melhor forma de ajustamento que somos capazes de atingir, considerando
nossa percepção dos vários obstáculos que encontramos em nossa história de
vida. Nesse sentido, dependendo de como a nossa vivência é percebida e
vivida, o nosso desenvolvimento pode ser mais ou menos desajustado em
diferentes fases da vida.
Bem, se falamos do desenvolvimento como um processo contínuo, é
claro que compreendemos que a psicopatologia – enquanto uma característica
estática e estruturada – não existe. Quando falamos em psicopatologia,
estamos compreendendo um ser humano que não está conseguindo fazer
escolhas autênticas e flexíveis no direcionamento de sua vida, o que o torna
incongruente, frágil e vulnerável.
Nesse momento de vulnerabilidade, suas escolhas estão direcionadas
a atualizar o seu self rígido e incongruente com o seu ser organísmico que
precisa distorcer ou negar qualquer percepção do mundo que seja contrária ao
seu autoconceito. A fim de continuamente atualizar o self, a pessoa utiliza
critérios condicionados ao amor e aceitação do outro, ao invés do seu eu
organísmico. Ou seja, a pessoa só percebe como sendo verdadeiro aquilo que
se encaixa no seu autoconceito. O self/autoconceito, por sua vez, desenvolve-
se de forma rígida, possibilitando apenas simbolizações de experiências que
estejam de acordo àquilo que foi valorizado positivamente e tenha
possibilitado aceitação das pessoas importantes em sua vida.
As experiências que estão de acordo com seu autoconceito passam a
ser simbolizadas corretamente em sua consciência. A simbolização de outras
experiências é distorcida ou interceptada, deixando de ser incorporada na
noção de eu. Dessa forma, se eu, por exemplo, tenho um self rígido de que
sou uma pessoa incapaz e incompetente, vou distorcer simbolicamente
qualquer experiência de sucesso que eu possa ter. Tais experiências serão
compreendidas como sorte, ou mérito de outras pessoas, mas nunca como
resultado de minha competência. Já as experiências de fracasso serão
integradas ao self e contribuirão para sua atualização. Estabelece-se com isso
um estado de incongruência entre o self e a experiência, causando
desajustamento e vulnerabilidade psicológicos. A personalidade se encontra
dividida e alienada de si mesmo. Por um lado, o autoconceito do indivíduo
passa a incluir percepções distorcidas que não representam com veracidade a
sua experiência. Por outro lado, a experiência real vivida pelo sujeito não se
encontra simbolizada em seu autoconceito.
Nesse estado de incongruência, o sujeito não consegue mais viver na
sua integralidade, pois ora seu comportamento é regulado pelo seu
autoconceito, e ora por experiências organísmicas que não têm sua
simbolização incluída nele. Essa incongruência também cria uma divergência
na tendência atualizante, que em alguns momentos irá atualizar as
necessidades do self e em outros as do organismo. Com isso, o indivíduo
passa a ter comportamentos incompreensíveis e divergentes. Essa
incongruência que vulnerabiliza o indivíduo representa o seu adoecimento
psíquico. Assim, de forma bem geral e em poucas palavras, podemos
começar a compreender o processo de adoecer humano.
No entanto, vocês podem estar se perguntando: “se acreditamos na
tendência atualizante, e a mesma descreve a tendência ao aperfeiçoamento
humano, onde entra o adoecimento?” Acho importante que tenhamos claro
que desenvolvimento e aperfeiçoamento não são contrários a sofrimento e
adoecimento. O processo de desenvolvimento inclui diversas fases e desafios
que ocorrem de forma desordenada e até simultânea. Nem sempre
funcionamos de forma ajustada, e também nem sempre fazemos escolhas
desajustadas.
Falar sobre o adoecer psíquico nos leva a pensar sobre o conceito de
psicopatologia e as formas de diagnóstico empregadas para esse
conhecimento. Por isso, é importante que, antes de qualquer coisa, possamos
nos situar historicamente sobre o processo de construção da compreensão do
adoecer psíquico e do psicodiagnóstico como um instrumento para essa
compreensão.
O conhecimento da psique como sendo algo situado além do corpo
data dos estudos do criador da Psicanálise, Sigmund Freud. Na condição de
neurologista, passou a observar que, em algumas das pacientes que atendia,
havia algo que não podia ser explicado pela ciência médica: algo fruto da
mente delas, ao invés dos seus corpos, que demandava uma ciência de outro
tipo para ser estudado. Apesar de a concepção de um corpo separado da
mente ser algo bem anterior a Freud – os pensadores gregos já falavam de
corpo e alma como entidades distintas – foi a Psicanálise de Freud que
buscou uma maneira científica de explicar a mente humana.
Se estamos empregando uma explicação originada do conhecimento
médico, é óbvio que parte da explicação do fenômeno é construída a partir da
doença. Portanto, enquanto médicos diagnosticavam enfermidades do corpo,
psicólogos passaram a buscar, através do psicodiagnóstico, a causa dos
sintomas psíquicos.
Esse movimento foi necessário para a Psicologia ser reconhecida
como uma nova ciência. Na época da construção da Psicologia, a prática do
psicodiagnóstico exigia objetividade e a utilização de métodos quantitativos
de medição de sintomas. Os sintomas precisavam ser observados e
mensurados para resultar em dados confiáveis. Foi nesse contexto que o
Behaviorismo desenvolveu sua teoria da análise do comportamento.
O desenvolvimento da Psicanálise de Freud trouxe uma visão
determinista ao psicodiagnóstico, que buscava na estória passada do sujeito a
explicação que determinava os sintomas presentes.
A abordagem humanista, surgida mais recentemente, na década de 50,
trouxe uma nova contribuição à Psicologia ao buscar compreender os então
chamados “sintomas” a partir da vivência atual do sujeito, buscando
compreender o sentido das experiências vivenciadas por ele. Sintomas
deixam de ser explicados como uma expressão comportamental de algo que
aflige a mente e passam a ser compreendidos como parte constituinte do
sujeito na sua forma de perceber e viver no mundo.
Este é o olhar que adotamos dentro da ACP: nos importa mais a
compreensão dos significados das experiências do sujeito, do que a busca de
sintomas ou classificações psicopatológicas. Isso não quer dizer que partimos
do princípio de que a psicopatologia não existe, apenas olhamos o sujeito a
partir de um outro prisma. É sob esse novo prisma que tratamos da relevância
do psicodiagnóstico no olhar da ACP.
Certa vez, conversando com uma colega psicanalista, ela comentou o
quanto as pessoas estão doentes e o quanto estava aparecendo pessoas com
sérias patologias em seu consultório. Essa fala me soou estranha, porque, no
meu consultório, atendo pessoas que entendo serem saudáveis, embora vivam
experiências de forma inautêntica. Ficamos pensando o que poderia ocasionar
essa diferença de “clientela”. Talvez fosse pelos encaminhamentos que ela
recebe de psiquiatras, e eu não. Essa seria uma hipótese a ser considerada.
Porém, acredito que seja mais uma diferença de olhar quando nos
debruçamos à prática clínica. A ACP favorece um olhar que facilita o
desenvolvimento saudável do sujeito. Nesse olhar, as potencialidades
importam muito mais do que as dificuldades.
Rogers, durante toda sua obra, não desenvolveu um estudo específico
acerca das doenças mentais. Seu enfoque sempre foi a compreensão do que
seria uma relação de pessoa para pessoa, aquela relação que Martin Buber
chamou de eu-tu (BUBER, 2012). Uma relação que considerasse o cliente em
sua totalidade sem a necessidade de enquadrá-lo em classificações
diagnósticas.
O adoecimento é, portanto, parte da dimensão existencial do ser
humano. Uma parte de si que se relaciona consigo mesmo e com o mundo à
sua volta de forma incongruente e inautêntica. Como vivemos em eterno
processo de construção e desenvolvimento, experiências inautênticas também
fazem parte de nós, assim como experiências autênticas. A situação passa a
ser considerada um problema quando a falta de congruência frente à vida leva
ao sofrimento psíquico.
A incongruência é, portanto, a única fonte para qualquer
psicopatologia, ou seja, para qualquer desajustamento. O que estou tentando
mostrar é que, qualquer que seja a forma ou comportamento na condição de
desajuste que se manifeste, sempre devemos buscar sua causa naquilo que é
incongruente na existência do ser. Acharemos então os significados que
existem por detrás desses comportamentos e as motivações que os atualizam
de forma incongruente.
Os transtornos mentais são compreendidos pela ACP como uma
condição de existência adoecida, o que ultrapassa o modelo bipolar entre
saúde ou doença, normalidade ou patologia.
O olhar da ACP, proposta por Rogers, trouxe um modelo alternativo
ao modelo médico de explicação psicodiagnóstica vigente na época. A partir
desse novo olhar, outras abordagens e teorias adaptaram seus conceitos de
doença e saúde e passaram a compreender o ser humano de formas que não
reduzem ou coisificam o cliente a um mero conjunto de sintomas.
Olhar o ser humano como um ser cindido entre corpo ou mente,
saudável ou doente deve ser coisa do passado. Se ainda não é por completo,
deveria ser! Rogers relata muito bem no texto “Ellen West - a solidão”
(ROGERS, 1977) quais seriam as consequências do psicodiagnóstico que
rotula e coisifica a existência humana. Ao descrever a estória de Ellen West,
Rogers relata como que a passagem por diferentes médicos e diferentes
psicodiagnósticos fizeram com que ela se distanciasse cada vez mais de seu
ser organísmico. Os diagnósticos não possibilitaram que Ellen se sentisse
compreendida; muito pelo contrário: a coisificaram como algo sem valor.
A ACP reluta em trabalhar com a linguagem psiquiátrica de quadros
psicopatológicos. Ela rompe com o modelo classificatório que compreende a
doença como um objeto a ser tratado. Ao invés disso, busca compreender
qual o lugar que o sujeito ocupa ao viver uma vida desajustada a si mesmo e
ao mundo à sua volta. A pessoa é uma entidade única, não podendo ser
compreendida em dimensões distintas de saúde e doença. Por isso, o
psicodiagnóstico, no seu enquadre de conhecimento e explicação de sintomas
psíquicos e da natureza das causas dos mesmos, não existe na prática clínica
da ACP.
Falar isso não significa que entendemos que o psicodiagnóstico não
seja uma prática psicológica importante para determinados recortes. Ele
somente não tem razão de existir dentro dos preceitos da ACP, como Rogers
exemplificou no caso de Ellen West (ROGERS, 1977).
Se o motivo pelo qual digo que o psicodiagnóstico não tem razão de
existir dentro da prática clínica da ACP ainda não ficaram claros para você,
podemos pensar no que um psicodiagnóstico implica. Em primeiro lugar,
para haver psicodiagnóstico, precisa haver uma psicopatologia, certo?
Depois, precisa haver algo que a anteceda, que determine a existência dela,
isto é, uma causa que possa ser determinada a partir do ato de diagnosticar. A
possibilidade de psicodiagnóstico implica também na possibilidade de
tratamento e controle das causas e sintomas. Por fim, o psicodiagnóstico
implica que exista alguém que tenha autoridade de diagnosticar e tratar aquilo
que torna o homem doente, concorda?
Certo. Vamos então refletir sobre cada um desses pontos a luz da
ACP. O meu intuito é que você seja capaz de perceber a irrelevância do
psicodiagnóstico dentro dessa abordagem. Se além disso, você perceber o
quanto ele pode, muitas vezes, ter um caráter devastador no processo de
desenvolvimento humano, eu terei atingido plenamente o meu objetivo!
Bom, vamos lá! O primeiro ponto que salientamos é a necessidade da
existência de uma psicopatologia naquele que se submete ao
psicodiagnóstico. Já falamos que não compreendemos o ser humano a partir
de qualquer denominação de psicopatologia. A partir de sua tendência
atualizante, esse ser sempre tenderá para formas de aperfeiçoamento de seu
ser. O que ocorre é que as formas que ele busca nem sempre são as melhores,
ou as que promovem maior ajustamento de seu ser organísmico. Portanto, ao
invés de olhar para a psicopatologia, Rogers sempre buscou estudar quais
seriam as formas de possibilitar ao ser humano maneiras mais ajustadas de
desenvolvimento. A simples explicação da psicopatologia serve apenas para
reduzir a existência do sujeito a um conjunto de sintomas previamente
estabelecidos e classificados segundo critérios populacionais gerais, que,
muitas vezes, não têm qualquer sentido para a pessoa que os sofre.
Nossa visão de homem como um ser integrado, sem divisão entre seu
ser individual e seu ser mundano, que possui na sua essência a motivação
constante de se atualizar, tornando-se cada vez mais integrado, mais
organizado e mais autônomo, que está sempre se projetando, escolhendo,
crescendo, transformando e desenvolvendo, não se adequa à visão estanque
de uma classificação psicodiagnóstica que identifica uma patologia ou doença
nesse contínuo processo de transformação.
Vamos ao segundo ponto. O ato de diagnosticar implica na existência
de algo que antecede, que determina a existência da psicopatologia, ou seja,
uma causa que possa ser determinada. A pergunta, para nós, soaria da
seguinte forma: “Qual é a causa do desajustamento que vive o sujeito?”. O
problema aqui é que não há uma única causa ou algumas causas que
antecedem o desenvolvimento do sintoma, ou da forma de vida desajustada.
A causa, se é que podemos chamar assim, é a maneira pela qual o sujeito
percebe e dá significado à toda a sua existência. Ou seja, a “causa” é a
própria existência do sujeito: é a sua forma inautêntica e incongruente de
vida. Toda a sua existência está relacionada à sua forma de ser. Como
diagnosticar uma existência?
Um terceiro ponto a ser considerado é o de que a possibilidade de
diagnóstico implica na possibilidade de tratamento e controle das causas e
sintomas. Vamos supor (ainda que acreditemos o contrário!) que o
psicodiagnóstico acurado do sofrimento psíquico fosse algo viável e possível.
O que faríamos com ele? De que forma ele poderia nos ajudar? Deveríamos
falar ao sujeito sobre seu psicodiagnóstico? Isso o ajudaria? A meu ver,
precipitar ao sujeito suas áreas de conflito e vulnerabilidade apenas
aumentaria seu sentimento de ameaça e a sua resistência de perceber a sua
existência a partir de outras formas. Quando o cliente encontra dificuldade
em se relacionar de forma autêntica consigo e/ou com o mundo, busca formas
que entendem serem as melhores dentre as suas possibilidades. Apontar que
ele está “fazendo errado” sem compreender empaticamente as razões pelas
quais passou a perceber os fenômenos de determinada maneira – ainda que
ela seja uma maneira que gera mais incongruência em sua vida – não irá
ajudá-lo em nada. Apenas o próprio cliente pode decidir o momento em que
se sente capaz de suportar o sofrimento de suas vivências e pode de fato
decidir o que fazer com elas.
O tratamento de sintomas, ou melhor dizendo, a abertura de
consciência para uma forma mais ajustada de vida se dá em um processo
vivencial, e não racional. A mudança só ocorre se experimentada como uma
mudança de percepção. Nesse sentido, o processo psicoterapêutico é em si,
em sua totalidade, um processo de psicodiagnóstico, feito processualmente
pelo próprio cliente. Ao tomar consciência de percepções distorcidas e
substituí-las por percepções mais adequadas e saudáveis, o cliente está
traçando o seu próprio psicodiagnóstico e tratamento.
Chegamos, então, ao último ponto de implicação do ato de
diagnosticar. O psicodiagnóstico implica que existe alguém com autoridade
para diagnosticar e tratar aquilo que torna o homem doente. Esse alguém, no
caso o psicólogo, deveria deter o saber da ciência Psi para dizer àquele que
busca ajuda qual é a razão de seu sofrimento. E aí eu pergunto: “Você acha
mesmo que pode compreender a existência de outro ser humano mais ou
melhor do que ele mesmo a compreende?”. Para mim, parece que esse
“superpoder” foi necessário na construção da Psicologia como ciência e
profissão. Hoje, porém, podemos nós ter o privilégio de estar com o cliente
de pessoa para pessoa, e, com isso, realmente ajudá-lo.
Só o próprio cliente pode conhecer por completo as suas percepções.
Só ele pode dizer sobre si de forma acurada, ainda que vivendo em um
mundo de contradições e de incongruências. O conhecimento racional de si,
promovido pelo psicólogo que “diz quem ele é” não pode ser substituído pela
compreensão vivencial de seu ser organísmico.
O papel do psicólogo é, portanto, criar condições para que o cliente
possa perceber o mundo e a si, de forma mais flexível e aberta possível e,
com isso, ser seu próprio “psicodiagnosticador” e “tratador”. É claro que essa
visão exige do psicólogo um mergulho em si próprio para que se torne cada
vez mais capaz de propiciar esse ambiente facilitador, sendo congruente,
empático e aceitando o outro incondicionalmente.
Vale ressaltar, também, que essa visão muitas vezes dificulta a nossa
relação com a equipe médica, que busca formas deterministas e específicas
para explicar o comportamento humano. Nosso linguajar é outro, assim como
nossa forma de compreender a existência saudável ou adoecida.
Não posso deixar de salientar que o psicodiagnóstico se faz necessário
em diversos contextos de avaliação psicológica, inclusive no cenário de
pesquisa científica que promove a construção e crescimento da Psicologia. A
reticência que encontramos na ação psicodiagnóstica é quando ela adota a
prepotência do saber médico sobre a existência do ser que está sendo
avaliado.
Rogers sempre compreendeu o ser humano a partir de suas
potencialidades. Transtornos severos não eram alvos de sua observação e ele
nunca trabalhou em hospitais psiquiátricos para desenvolver sua teoria.
Talvez essa vivência tivesse propiciado um olhar diferente para a
psicopatologia na ACP, mas, certamente não para o psicodiagnóstico como
um instrumento de categorização e rotulação da existência humana.
Na ACP, a saúde é expressa em um comportamento livre,
espontâneo, autêntico e fluído. A patologia, por sua vez, aparece na
cristalização de uma mesma atitude diante de qualquer experiência. O
sintoma é o resultado dessa cristalização, é sinal de incongruência e remete a
significados que possibilitam compreender a existência da pessoa.
O processo psicoterapêutico busca esses significados e sua
ressignificação. Não é possível simplesmente eliminar sintomas, pois eles
foram desenvolvidos pelo próprio organismo com a função de ajustamento do
mesmo. O importante é compreender o significado daquilo que gera o
sintoma. O homem, portanto, não tem sintoma, ele é o sintoma. É através do
sintoma que, muitas vezes, a pessoa encontra a única forma de ser no mundo.
A ressignificação dos sintomas ocorrerá somente quando eles forem
verdadeiramente trazidos e aceitos na consciência. Essa aceitação é facilitada
na medida em que o terapeuta aceita incondicionalmente seu cliente, sem
qualquer juízo de valor. No processo, a pessoa sente-se aceita em ser como é,
não precisando ajustar-se de forma incongruente para se perceber
reconhecida. Inicia-se então, um processo de desenvolvimento saudável.

REFERÊNCIAS
BUBER, M. Eu e tu. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SALGADO, P.C. Contextualizando a prática clínica sob o enfoque da
abordagem centrada na pessoa. In: Gláucia Telles Sales. (Org.). Clínica de
psicologia para recém-formados. 1 ed. Campinas: [s.n.], Kindle Edition,
2015.
ROGERS, C. Ellen West - a solidão. In: _______. A pessoa como centro. São
Paulo: EPU, 1977.
CONTEXTO SOCIAL
CAPÍTULO 9
A Intervenção da Psicologia no Contexto das
Políticas Públicas: Psicodiagnóstico e Avaliação
Diagnóstica da Ação Técnica em Equipe
Multiprofissional
Rita de Cássia Oliveira Assunção
O convite para escrever um texto que contribua com a prática
profissional de recém-formados vem ao encontro de inquietações que
vivencio na prática cotidiana, enquanto psicóloga inserida em serviço
público, cujo objetivo é viabilizar o acesso a direitos sociais por meio de
atendimento multiprofissional, e que suscita constante reflexão por parte da
equipe técnica.
A Psicologia, enquanto ciência e campo de conhecimento, tem muito
a contribuir com referenciais teóricos-técnicos e vem se inserindo em
diferentes áreas de atuação das políticas públicas no setor da Saúde, da
Assistência Social, da Educação, do Esporte, dentre outras. Dessa forma,
psicólogas e psicólogos estão sendo cada vez mais cobrados a ampliar a
forma de atuação e trazer à reflexão as exigências atuais postas aos
profissionais envolvidos na construção de novas práticas e formas de atuação
multiprofissional, cujo trabalho extrapola o âmbito individual, e de maneiras
tais que mantém a identidade profissional dos psicólogos envolvidos.
A forma de intervenção da Psicologia nesses contextos se difere do
modelo ao qual estamos acostumados a pensar essa intervenção: ela se
distancia do campo individual e do diagnóstico que define o terreno que
diferencia a saúde da doença e avança na busca da compreensão diagnóstica
que afeta planos coletivos. Igualmente, essa atuação aponta caminhos de
construção de possíveis meios de atuação diferente da clínica individual sem,
no entanto, abandonar o conhecimento psicológico.
Enquanto o processo psicodiagnóstico se caracteriza na investigação
objetiva para levantar aspectos psicológicos de um caso individual, no âmbito
da atuação social, o exercício cotidiano é buscar formas de aliar esse
conhecimento psicológico do psicodiagnóstico como uma ferramenta de
trabalho que viabilize uma compreensão de âmbito coletivo.
O processo psicodiagnóstico configura uma situação de duas pessoas
envolvidas e com papéis bem definidos. Contudo, o novo lugar de
intervenção, do qual venho falando, já não conta com papéis e participantes
tão delimitados. Isso abre caminho para que seja considerado que o processo
de investigação e de construção de diagnóstico abandone esse lugar comum à
Psicologia e se abra para uma frente de configuração inovadora em que a
posição de centralidade da figura do analista sai de cena e passa a ser
ocupado por uma equipe que, por meio do seu método de trabalho, precisa
manter a sua capacidade de investigação para subsidiar a intervenção
necessária.
Nessa nova perspectiva, muda-se o contexto no qual surgem novas
possibilidades de atores envolvidos no espaço de intervenção psicológica.
Temos a presença de equipes multidisciplinares, compostas de profissionais
variados, igualmente visando intervenção psicossocial. No entanto, não é
revogada a compreensão sobre sujeitos, mas que, dessa forma, são
contemplados dentro de uma coletividade e partilhando de fenômenos sociais
que apresentam a necessidade de um processo investigativo compreensivo
desses contextos e da necessidade de construir estratégias interventivas nas
quais a Psicologia não atua mais enquanto uma ciência isolada, mas integrada
com o objetivo último de viabilizar a percepção do sujeito interagindo com o
meio, afetando e sendo afetado por ele, compondo uma totalidade de ser.
O processo psicodiagnóstico, enriquecido de novos instrumentais,
ganha densidade em: entrevista objetivando a inserção do sujeito em serviços,
programas, benefícios sociais e projetos de políticas públicas, entrevistas de
acolhimento específicas para inserção no atendimento em serviços públicos,
preenchimento de cadastro social, dentre outros.
O processo de construção dessa nova forma e lugar de fazer da
Psicologia envolve muitas dúvidas e exige um profissional questionador
sobre suas práticas. Por vezes, observa-se uma não identificação com o
campo das políticas sociais, sendo que isso ocorre pelo entendimento de que
a Psicologia, enquanto ciência, estaria ligada apenas à área da saúde.
Portanto, é preciso romper com isso que está instituído no imaginário do
profissional psicólogo e aceitar o desafio de se ajustar o olhar ao próprio
campo de atuação – que oferece um cabedal próprio de conhecimento – e ser
capaz de assimilar diversas noções trazidas por autores variados, que
configuraram a Psicologia como contributiva no desvelar de fenômenos além
do indivíduo, ampliando-a para o âmbito social. Tudo isso requer formas
ampliadas de intervenção da Psicologia, que permitam o lançar mão de
estratégias de construção de dispositivos sociais promotores de transformação
de qualidade de vida e direcionados ao rompimento com processos de
adoecimento, ou seja, de práticas que configuram uma atenção de qualidade
psicossocial.
À Psicologia também se pede que emita parecer sobre quadros e
situações, uma vez que no atendimento vinculado a serviços ofertados em
políticas públicas – como é o caso da assistência social e da saúde – os
profissionais são solicitados a fornecer informações sobre os casos em
acompanhamento. É necessária a compreensão da necessidade de uma
prestação de serviço ofertada com clareza do atendimento pretendido e da
relação a ser estabelecida com o outro dentro desses espaços. Isso é que irá
determinar a forma de atuação.
Na relação com o sujeito atendido anteriormente, o procedimento
adotado pela Psicologia era o de manter um distanciamento, uma forma de
prática enraizada no modelo médico, cuja atuação se concentrava nos
serviços de saúde por meio de atendimentos individualizados.
O processo psicodiagnóstico não se insere mais apenas como um
coadjuvante cuja finalidade é a proposição de uma psicoterapia. Pelo
contrário, ele se apresenta como fundamental ao levantamento de
informações sobre o sujeito, como meio de aprofundamento do entendimento
da demanda e levantamento dos aspectos passados e da situação presente.
Isto é, ele é importante para ampliar a compreensão sobre aquilo no qual se
pretende intervir. É a partir disso que é possível definir o melhor
enquadramento da situação-problema e a melhor abordagem dela. A partir da
avaliação diagnóstica, se identifica os elementos presentes a fim de traçar a
forma como a equipe irá conduzir a intervenção e como será a atuação de
cada profissional. Tendo feito isso, também é importante que o profissional
se mantenha aberto para rever a sua conduta e refazê-la, para melhor atender
as exigências, que são sempre mutáveis.
A Psicologia oferece o escopo necessário para contribuir no trabalho
construído em equipe ao permitir a análise e a reflexão frente à situação-
problema, bem como a tomada de decisão para promover ações de atenção,
proteção e prevenção. No entanto, para fazer uma avaliação diagnóstica,
torna-se necessária a apropriação dessa informação.
O trabalho no campo social deve incorporar outras ações e integrar
diferentes práticas e linguagens com o intuito de aprofundar a compreensão
sobre o que se pretende intervir. É importante observar que a subjetividade é
parte do mundo interno, mas também está presente em todas as formas de
relações; ou seja, é a partir de como se dá a experiência internamente, que se
configura as relações de um sujeito com o outro. Isso equivale a dizer que
esse é um campo fértil para a inserção e a atuação da Psicologia, pois os
sujeitos são constituídos a partir de dimensões tanto subjetivas como
objetivas.
É preciso desconstruir a noção de a prática clínica ser a norteadora da
atuação psicológica por oferecer escuta de aspectos subjetivos. Mesmo em
situações diferentes da clínica, é possível fazer uma avaliação diagnóstica
sobre outras bases e outros elementos capazes de definir quais as estratégias
possíveis que permitem levantar as informações necessárias para diagnosticar
e definir as ações. Por exemplo, uma abordagem consistente seria não se ater
apenas à situação-problema apresentada, mas superá-la oferecendo
possibilidades para o sujeito realizar uma transformação individual.
Em nossa atuação cotidiana, lidamos com fenômenos complexos
multifacetados que exigem uma leitura profissional ampliada, enriquecida
com diversos tipos de conhecimento e, consequentemente, meios variados de
intervenção. Nesse sentido, a utilização de uma abordagem tradicionalmente
dicotômica e desvinculada da consideração de um contexto mais amplo dos
sujeitos e das situações pode levar a efeitos sociais perversos, como aquela
que constrói percepção na qual se busca identificar responsáveis. Ao invés
disso, seria recomendável um olhar mais atento que contemple histórias
individuais se entrelaçando com efeitos de vivências sociais que condicionam
a real natureza dos traumas. Isso pode ser descrito assim porque se considera
que o sujeito não se constitui apenas de seu mundo interno, mas também de
interferências externas.
No psicodiagnóstico, os novos modelos e as novas formas rompem a
dicotomia indivíduo-sociedade e incluem a perspectiva da vivencia concreta
dos sujeitos. É um psicodiagnóstico ampliado, que se vale de meios diversos
diferente da aplicação de testes, com uma escuta local na entrevista, mas que
se expande para outros contextos de vivência e, por fim, sem a intenção única
de fazer uma intervenção psicoterapêutica, ainda que essa possa estar
contemplada na intervenção.
Outro ponto importante a ser considerado é o de que, no atendimento
feito em serviços públicos, o sujeito não busca obrigatoriamente um
atendimento psicológico. Na maioria dos casos, ele busca ser atendido e tem
uma demanda pontual e específica ao campo no qual o serviço se insere. Ao
interagir com esse indivíduo, os psicólogos identificam que a primeira
necessidade é o estabelecimento de um vínculo que permita a continuidade e,
embora se esteja dando início a um processo de avaliação, que seja possível
identificar o início de uma intervenção. Essa característica já difere do
modelo tradicional de psicodiagnóstico que, normalmente, precede a atuação
psicoterapêutica.
Segundo Ancona-Lopez (1995), ao assumir uma postura investigativa,
o profissional se aproximando do lugar de um observador imparcial, o
processo psicodiagnóstico perde seu sentido para o outro, indo mais além ao
afirmar que em toda atuação psicológica está compreendida a ação de
intervenção peculiar ao momento vivido onde seu significado se estabelece.
A entrevista consiste em importante ferramenta de levantamento de
informações, de contato e de estabelecimento de vínculo inicial, necessário
para a continuidade do processo investigativo e processo de acompanhamento
de caso. Envolve a coleta de dados, assim como outras formas de
intervenções presentes no momento inicial da inserção do sujeito em um
processo de acompanhamento mais estreito e sistemático dentro do serviço
onde ocorre o atendimento.
Temos um lugar cuja prática força o abandono da utópica postura de
neutralidade e distanciamento, uma vez que se objetiva uma intervenção
profissional para atender a demanda inicial e também a ressignificação dessa
demanda que poderá ganhar um sentido de busca do indivíduo. Isto é,
pretende-se abrir um espaço de reflexão sobre o que originou aquela
demanda, qual o contexto mais amplo subjacente a ela, por exemplo. Para
tanto, exige-se a percepção de uma relação de confiança naquele espaço
suscitador de segurança e favorecedor de continuidade. É preciso trazer o
individuo para uma ação co-participativa no processo.
Nessa forma de processo psicodiagnóstico, nos deparamos com um
contexto que exige de psicólogos o partilhar de percepções e conhecimento
com aquele que atende e também com outros profissionais envolvidos na
manutenção de uma escuta cuidadosa e, ao mesmo tempo, aberta. Nesse
contexto, o psicodiagnóstico pode ser capaz de levar a pessoa à reflexão e à
percepção de si própria, considerando o que lhe cerca, as interferências com
as quais se depara e a sua maneira de interagir. Dessa forma, é possível se
abrir para uma nova imagem de si e descortinar o novo.
É preciso abandonar práticas engessadas para que seja possível se
abrir para o novo, atendo-se ao que se apresenta no real do cotidiano de
trabalho, vislumbrando possibilidades mais amplas que objetivam uma escuta
cuidadosa, atenta ao sofrimento que não se origina de uma causa única e sem
querer identificar um responsável pela sua existência.
Enfoca-se compreender por quais formas cada indivíduo se constituiu
internamente e os fatores externos associados, determinando uma forma de se
relacionar com o outro e os mundos internos que se multiplicam derivados
disso. É nesse esforço de compreensão que se estabelece efetivamente um
processo psicodiagnóstico com o caráter de uma investigação que não se
encerra em si mesmo, mas que traduz um dado momento de vida do sujeito.
É importante a compreensão de que a Psicologia advém de um campo
da ciência e se insere nas políticas públicas; deve constituir uma prática que
considere o contexto social de sujeitos e coletivos e possa, nesse lugar,
apresentar a interface da Psicologia, considerando a intervenção psicossocial
em equipe multiprofissional.

Considerações Finais
Tendo como base os caminhos percorridos em minha prática
profissional, posso apontar que profissionais de outras áreas afins
contribuíram para a constituição de minha forma de atuação, que sempre foi
em políticas públicas no campo da Assistência Social e no trabalho em
equipe multiprofissional. Isso favoreceu para busca de um aprofundamento
em referenciais teóricos da Psicologia comprometidos com uma escuta
ampliada e uma intervenção que leva em conta as transformações sociais,
exigindo dos profissionais estratégias interventivas renovadas e afeitas à
especificidade desse campo de conhecimento.
É possível afirmar que a Psicologia nem se distancia nem perde de
seu referencial; nós, psicólogos, não perdemos nossa identidade profissional,
e se ampliam as possibilidades de atendimento às demandas sociais. Isso se
concretiza em ações profissionais de escuta atenta, que atribui novos e
diferentes valores àquilo trazido pelo outro e contribui para o desvelamento
daquilo que não pode ser compreendido apenas na ordem do individual;
reflete, ainda, contextos maiores marcados por aspectos culturais, históricos e
sociais, além do subjetivo.
Por isso, o processo psicodiagnóstico não se perde; ele se reescreve
com mais plasticidade na definição de estratégias pautadas muito mais na
viabilização de variados espaços e formas de expressão, do que propriamente
o desenvolvimento de procedimentos.
As reflexões que trouxe têm apoio no novo lugar que a Psicologia
ocupa na sociedade e no compromisso que ela tem de ser uma ciência com
participação no processo de mudança de indivíduos e de coletivos, pela
identificação de percepções que definem as relações e a subjetividade que
dessas se originam.
Dessa forma, as contribuições apresentadas aqui expressam uma
breve reflexão sobre o tema e apresentam alguns elementos que apontam para
a necessidade de se aprofundar o estudo, assim como a importância de
constituir processos de constante reflexão sobre a ação e o espaço onde essas
ocorrem, de maneira a considerar a necessidade de adequação aos contextos.
Não se trata aqui de apresentar como realizar, mas de se atentar que lidamos
com sujeitos que apresentam demandas que exigem detida atenção, com
novos elementos que integram o cenário. O trabalho na atualidade se
desenvolve em parceria com outros profissionais.
Trata-se aqui de refletir sobre os desafios postos à Psicologia
enquanto ciência que se insere em contextos de trabalho multiprofissional
para oferta de atendimento qualificado em serviços, projetos e programas
vinculados a políticas públicas. Esse trabalho contribui para ressignificação
do fazer técnico dos profissionais envolvidos na construção de estratégias de
intervenção que rompem com a fragmentação do trabalho e da compreensão
de sujeitos e suas relações. Isso implica em processo de transformação da
Psicologia que deve ser continuo e atento às mudanças da sociedade, assim
como aponta para a necessidade de aprimoramento constante dos
profissionais. Compreendo que é nesse lugar e com essas exigências que se
desenvolve o processo psicodiagnóstico.
REFERÊNCIAS
ANCONA-LOPES, S.. Psicodiagnóstico: processo de intervenção. In:
_______ (Org.), Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo:
Cortez, p. 09-36, 1995.
OCAMPO, M. L. S., ARZENO, M. E. G., PICCOLO, E. G. et. al. (1979). O
processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. São Paulo: Martins
Fontes, 1985.

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