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ABORDAGENS
COL. CLÍNICA DE PSICOLOGIA PARA RECÉM-FORMADOS
ABORDAGEM PSICANALÍTICA
1 - O Psicodiagnóstico e a Teoria do Amadurecimento Pessoal de Winnicott
Miguel Antônio de Mello Silva
2- Psicodiagnóstico e Psicanálise de Winnicott: O Valor da Experiência Com Supervisões em Uma
Clínica Escola.
Gláucia Telles Sales
3- O Jogo dos Rabiscos no Psicodiagnóstico e na Relação da Criança Com o Analista
Josiane Cristine Ramos Ferreira
4- O Lugar dos Pais no Psicodiagnóstico: Do Manejo À Intervenção
Rita Nicioli Cerioni
ABORDAGEM COMPORTAMENTAL
5- Contribuições da Terapia Analítico-Comportamental e da Análise Funcional do Comportamento
Denise Rosolen Sanson
6- Psicodiagnóstico e a Análise Funcional do Comportamento
Gabriel Fachini
ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA
7- Psicodrama e o Encontro Fenomenológico de Terapeutas Iniciantes no Processo de
Psicodiagnóstico Interventivo
Erika Sproesser
CONTEXTO SOCIAL
9- Intervenção da Psicologia no Contexto das Políticas Públicas: Psicodiagnóstico e Avaliação
Diagnóstica da Ação Técnica em Equipe Multiprofissional
Rita de Cássia Oliveira Assunção
Dos Autores
Miguel Antônio de Mello Silva (organizador) - Psicólogo com
Doutorado em Ciências Médicas e Mestrado em Saúde Mental pela
Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, é especialista em diversas
áreas da ciência psicológica. Atua como psicoterapeuta, supervisor clínico e
psicanalista da abordagem winnicottiana. Docente no ensino superior, leciona
em vários cursos. Contribuiu com pesquisas dentro da área psicológica e da
formação de psicólogos, com o apoio de órgãos de fomento à pesquisa. Tem
interesse pelos campos-limites da ciência psicológica e por novos paradigmas
da Psicologia, sobre os quais é conferencista e autor de livros. Há mais de
uma década, participa do grupo de estudos A Teoria do Amadurecimento de
Donald W. Winnicott, da Profa. Dra. Elsa Oliveira Dias, fundadora da
Sociedade de Winnicott. Contato: psicmello@gmail.com
Denise Rosolen Sanson - Psicóloga pela Universidade Metodista de
Piracicaba. Especialização em Análise do Comportamento – Terapia por
Contingências de Reforçamento. Possui título de Especialista em Psicologia
Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia, área em que atua com
atendimentos a crianças, adolescentes e adultos. Atuou como responsável por
psicodiagnóstico de pessoas portadoras de múltiplas deficiências. Contato:
deniserosolen@yahoo.com.br
Erika Sproesser - Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica
de Campinas. Especialista em Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de
Campinas. Mestre e Doutora pelo Departamento de Neurologia da Faculdade
de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Atuou como
docente e orientadora de Estágio nas disciplinas de estágio de
Psicodiagnóstico Interventivo, Psicoterapia Familiar e de Casal, Atendimento
Psicoterapêutico individual na abordagem Fenomenológico-Existencial e
Plantão Psicológico. Contato: erikasproesser@terra.com.br
Gabriel Fachini - Psicólogo, formado pela Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar), com Mestrado e Doutorado pela mesma instituição em
Ciências Fisiológicas, com ênfase em Neurociências e Comportamento.
Atuação na Clínica utilizando a abordagem Comportamental e é
professor/orientador de estágio de Ensino Superior na mesma orientação.
Contato: fachinigabriel@gmail.com
Gláucia Telles Sales - Graduação em Psicologia, Licenciatura,
Bacharelado e Formação de Psicólogo pela Fundação Universidade Estadual
de Londrina – FUEL. Mestra em Saúde Mental pela FCM – Faculdades de
Ciências Médicas da Unicamp. Tema: Fatores que Influenciam as Indicações
de Tratamento Psiquiátrico nas Unidades Básicas de Saúde. Especialista em
Psicodrama e Psicoterapia de Grupo pelo IPPGC – Instituto de Psicodrama e
Psicoterapia de Grupo de Campinas e ex- docente nesse Instituto no Curso de
Formação e Especialização. Membro Fundador do Grupo de Estudos A
Teoria do Amadurecimento de Donald W. Winnicott sob orientação da Profa.
Dra. Elza de Oliveira Dias (fundadora do Centro Winnicott de São Paulo e da
Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana). Membro da Sociedade de
Psicanálise Winnicottiana. Psicoterapeuta em Clínica Particular com ênfase
na Psicanálise de Donald W. Winnicott. Professora de Pós Graduação em
Gestão de Pessoas, Graduação em Psicologia, Supervisora de Clínica,
Psicodiagnóstico e Ênfase em Saúde na Anhanguera Educacional. Trabalhou
na IMF – Fundação Internacional de Mieloma – seção Brasil/ América
Latina. Autora dos artigos publicados na pagina Espaço de Vida, no site da
IMF <www.myeloma.org.br> Contato: glauciatelles@gmail.com
Josiane Cristine Ramos Ferreira - Psicóloga (UNIMEP) e
Psicanalista na abordagem Winnicottiana. Membro da Sociedade Brasileira
de Psicanálise Winnicottiana, onde faz a segunda formação como
psicanalista. Formada psicanalista pela Sociedade de Psicanálise de
Campinas (SPCAMP), grupoterapeuta pela Sociedade de Psicoterapia
Analítica de Grupo (SPAG), terapeuta de casal pelo Centro de Formação e
Assistência à Saúde (CEFAS). Especialista em Psicoterapia de Grupo
(UNICAMP) e em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia
(CFP). Realiza atendimento individual, em grupo, orientação a pais, análise
de casais e de famílias. Contato: ramosjosianec@gmail.com
Priscila Camile Barioni Salgado - Psicóloga, professora,
supervisora de estágio clínico e de grupos de estudos com ênfase na
Abordagem Centrada na Pessoa. Coordenadora do curso de graduação em
Psicologia da Faculdade Anhanguera de Campinas. Pesquisadora
colaboradora do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências
Médicas da UNICAMP. Possui pós-doutorado em Ciências Biomédicas. É
estudiosa da área de interface da Neurociências, Psicologia Humanista e
Psicologia Positiva. Contato: priscila.salgado@anhanguera.com
Rita Aparecida Nicioli Cerioni - Doutoranda em Psicologia Clínica
pela USP, Psicóloga Clínica e Psicanalista, Supervisora em Intervenções
Clínicas na Universidade Paulista. Contato: ritacerioni@usp.br
Rita de Cássia Oliveira Assunção - Formação na Faculdade de
Psicologia da Universidade São Francisco de Itatiba. Atuação em clínica e
políticas públicas, especificamente na Assistência Social. Atuou como
coordenadora técnica em instituição voltada para violência doméstica,
famílias, dependência química, áreas em que possui formação. Presta
supervisão institucional e de equipes técnicas. Especialista em Psicoterapias
Institucionais (PUC-Campinas), Psiquiatria e Psicologia Forense
(UNICAMP). Contato: ritac.assuncao@gmail.com
ABORDAGEM PSICANALÍTICA
CAPÍTULO 1
O Psicodiagnóstico e a Teoria do
Amadurecimento Pessoal de Winnicott
Miguel Antônio de Mello Silva
Introdução
O psicodiagnóstico é um momento da atividade clínica em que o
profissional busca obter uma compreensão sobre o paciente e a questão que
ele pode estar lhe apresentando. É um momento complexo que normalmente,
na mente do psicólogo, vai além da queixa e dos sintomas, buscando a
compreensão daquilo que observa no encontro com o paciente, relacionando-
o com o desenvolvimento (longitudinal) e no momento de vida (transversal)
do sujeito.
Essa busca compreensiva só é possível se o profissional estiver
munido de uma formação sólida teórica que lhe permita desvendar sentidos e
configurar a condição psíquica do sujeito para lhe oferecer alternativas
terapêuticas.
Isto é, por detrás da atividade de pensamento e de decisão do
profissional, tem que haver um conjunto de referências cientificamente
consistentes e capazes de embasá-lo naquela tarefa específica com aquele
paciente particular.
É sobre uma dessas teorias consistentes que pretendo discorrer neste
capítulo, tentando apresentá-la como útil no psicodiagnóstico, ainda que de
maneira bem geral, mas com o intuito de instigar no leitor o desejo de
conhecer mais a respeito dela e de seu autor. Eu me refiro à teoria do
processo do amadurecimento pessoal e ao seu autor, o psicanalista Donald
Woods Winnicott.
Sobre o psicodiagnóstico
Um psicodiagnóstico do tipo mais tradicional seria aquele realizado
com o profissional adotando uma atitude alienista, na qual ele pretende
comparar evidências de comportamentos com descrições nosológicas. Esse
modelo é coordenado pelo estatuto da doença, sendo a atitude do profissional
como a de um detetive diante do crime – dogmática e moralista – buscando
relacionar o que é percebido com modos de viver considerados
desqualificados, influenciadores da higiene mental do sujeito e que se
expressam naquilo que é percebido como doença. É uma atividade
classificatória embasada em padrões absolutos, impessoais e biológicos na
qual todo o paciente é estigmatizado e o seu discurso desqualificado,
conforme o conto de Gabriel García Marquez Eu só vim telefonar, parte de
seu livro Doze Contos Peregrinos cuja essência do estigma da loucura e
consequente perda da autonomia é discutida por Naffah Neto (1998), a partir
da personagem Maria de la Luz Cervantes, uma atriz mexicana casada com
um prestidigitador de salão, que tem o seu carro quebrado em uma estrada
deserta e que, ao buscar socorro, entra em um ônibus estranho, repleto de
mulheres sonolentas envoltas em cobertores. No conto, a personagem Maria,
ao buscar socorro, não sabia que essas mulheres eram as loucas de um
hospício dali perto e, cansada, ela se enrola em um cobertor adormecendo até
ser acordada pelo guarda, já nos hospício, que a manda entrar em uma fila.
Maria, então, lhe pergunta onde teria um telefone para usar, ao que lhe
respondem – dissimuladamente e sem confrontar – igual ao que se ensina
sobre como se comportar com loucos: "Por aqui, gracinha, o telefone é por
aqui." Maria foi vista como louca só por estar no ônibus do sanatório, uma
paciente identificável em um mundo binário onde ou se é funcionário ou se é
louco. Não sendo Maria funcionária, logo era uma louca! A interessante
narrativa percorre diversos momentos que indicam como a palavra de Maria
não valia mais pelo o que ela dizia: o seu discurso possui apenas valor de
sintoma. Querer um telefone era ou um pleno delírio ou um estratagema
ingênuo para escapar do hospício.
Conforme escreveu Michel Foucault (1979, pág. 121), essa atitude de
suspeição era sustentada pelo psiquiatra moralista Esquirol ao afirmar que em
certos alienados, o delírio quase não pode ser percebido e que, em todos eles,
sempre haveria paixões e afeições morais que, quando não desordenadas,
seriam pervertidas ou anuladas. Ainda segundo Foucault, Esquirol
recomendaria ao profissional ter a cautela de não se deixar ser enganado por
eles, visto que eles possuem o pensamento perturbado e desordenação da
maneira de agir, de querer, de sentir paixões, decidir e de serem livres.
(FOUCAULT, 1979, pág. 121)
Quando o discurso do paciente perde a credibilidade, essa se desloca
para a figura do médico como sendo o intérprete credenciado, o detentor da
"verdade" do louco que justifica o comportamento por meio de explicações
que incluem explosões graves de aspectos latentes. Um mero acaso de
ocorrência e lugar tornou Maria uma louca. Ações e enunciações de discurso
não encerram mais um sujeito, mas uma doença mental.
Outra postura menos tradicional de psicodiagnóstico é mais
questionadora e não aceita dogmas ou verdades a priori. Essa forma
privilegiaria uma atitude científica do clínico, pela qual pretende não
empregar julgamentos morais. Seria uma atividade prática pautada mais na
observação, na compreensão, mas que, no entanto, não abre mão da
identificação de alterações de natureza psicopatológica no sujeito e faz isso
iludido com a possibilidade de isenção ou de ausência de viés cultural,
segundo Dalgalarrondo (2008).
Para os profissionais com uma prática profissional em contextos de
pessoas muito prejudicadas mentalmente, fica difícil o psicodiagnóstico se
distanciar dos fundamentos técnico-históricos da psicopatologia. No entanto,
a própria psicopatologia inclui inúmeras coisas: vivências, estados mentais,
padrões comportamentais sob uma vasta variedade de fenômenos humanos
que, quando muito especiais, passam a ser associados ao que se denominou
historicamente de doença mental.
Seria uma negação da obviedade se, no terreno das doenças mentais,
negássemos a possibilidade de alterações de funções psíquicas do sujeito, tais
como alterações da consciência, da atenção, da orientação, da memória, da
afetividade, da vontade, do pensamento, do juízo de realidade, da
sensopercepção, da inteligência etc. Existem casos que ensejam alterações
grosseiras dessas funções psíquicas.
No entanto, essas funções são compostas em torno de eixos que se
articulam em torno de um sentido que configura a personalidade do sujeito,
uma especificidade psicológica que é dotada de elementos que, muitas vezes,
não são exageros do normal, mas são conexões complexas de vivências do
sujeito vivo, de suas relações com o ambiente, de sua história, de seu
desenvolvimento infantil e que dão o contorno de uma Psicologia do
indivíduo normal. Isso bem revela o fato de que o mundo da doença mental
não é totalmente estranho ao mundo das experiências ditas “normais”.
Talvez devamos enfocar sob a sombra de qual tradição realizamos o
psicodiagnóstico: uma tradição médica calcada em um modelo biológico
uniforme, uma tradição psiquiátrica moral, uma tradição humanista e mais
compreensiva que leva em conta as questões existenciais debatidas pela
Filosofia presentes na Literatura, nas Artes e em uma disciplina complexa
que engloba tudo isso, como é o caso da Psicanálise.
Em outras palavras, uma postura compreensiva amplia a noção de
certos padrões sintomáticos, mas não a revoga. Ela busca não reduzir os
sujeitos aos sintomas. Pelo contrário, tenta integrar, compreensivamente,
aspectos da pessoalidade diante dos quais os sintomas não são organizações
de ocorrência aleatória, mas reflexos de como aquela pessoa conseguiu se
constituir frente às impossibilidades de ser e de fazer. Existem sentidos
subjacentes ao adoecimento. É semelhante à sensação de total
incompreensão que sentimos ao assistirmos ao filme Estamira, dirigido por
Marcos Prado (2005), mas que, aos poucos e com mais atenção, vão se
tornando totalmente compreensíveis, possibilitando uma pessoa e o seu
sofrimento emergirem na percepção do expectador.
Devemos preservar parâmetros comunicáveis de nomenclatura para
expressões sintomáticas agrupáveis por tipos de sintomas. Contudo, listar
sintomas não significa compreender existências. No processo
psicodiagnóstico, devemos ter a clara noção de que empreendemos uma
atividade que a remete a descrições psicopatológicas que diferem da
Neurologia e que incluem a Psiquiatria enquanto campo de conhecimento
aplicado à prática profissional e social concreta, mas, muitas vezes,
autoenredada e incapacitada de compreender ou explicar o que existe em um
homem. Conceitos psicopatológicos são limitantes para essa finalidade.
Na atividade profissional, o psicólogo constata que saúde e doença
surgem mescladas, enfeixadas em conteúdos que têm a ver com os temas
centrais da existência humana: a sobrevivência, a busca de segurança, o
exercício ou não da sexualidade, a religiosidade e os temores básicos sobre,
por exemplo, a morte, a doença, a miséria etc.
Ainda que protocolos diagnósticos como a Classificação Internacional
de Doenças (CID-10) e o Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos
Mentais (DSM-V, sigla em inglês), por serem excelentes compilações de
sintomas, tentem apontar muitas possibilidades para alguém ser
diagnosticado como doente, eles estão longe de ser capazes de resumir todas
as agruras humanas causadoras de sofrimento a pessoas envolvidas em
embates com o ambiente.
Nessa discussão sobre psicodiagnóstico, aos poucos, vou me
aproximando das contribuições de D. W. Winnicott, muito pertinentes ao
assunto, porque o próprio autor vinculava a essência do seu trabalho na
questão do diagnóstico, como vemos a seguir:
O fato essencial é que baseio meu trabalho no diagnóstico. Continuo a
elaborar um diagnóstico na continuidade do tratamento, um diagnóstico
individual e outro social, e trabalho de acordo com o mesmo diagnóstico.
Nesse sentido, faço psicanálise quando o diagnóstico é de que este
indivíduo, em seu ambiente, quer psicanálise [tradicional]. Posso até tentar
estabelecer uma cooperação inconsciente, ainda quando o desejo consciente
pela psicanálise está ausente. Mas, em geral, a psicanálise [cujo método por
excelência é a interpretação do conflito reprimido inconsciente] é para
aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la (WINNICOTT, 1983,
pág. 154).
Sendo a doença uma conceituação oposta à saúde, os protocolos, aos
quais nos referimos anteriormente, falham sobremaneira com a possibilidade
de apontar a participação do ambiente na implantação da saúde, algo que a
Psicologia acadêmica tampouco conseguiu realizar satisfatoriamente,
porque, ao tentar explicitar o papel do ambiente na estruturação da
personalidade da criança, o incluiu associando-o a qualidades desfavoráveis e
traumáticas causadoras de distúrbios mentais (WINNICOTT, 2005).
Esse recorte, dado pela Psicologia Acadêmica, da participação
ambiental como tendo um cunho exclusivamente prejudicial qualificou a
pessoa como sendo uma entidade que lhe é totalmente subordinada, um
reflexo dessas condições ambientais desfavoráveis e isso, mais tarde, resulta
na relutância dos psicanalistas em considerar o fator ambiental como um fator
constitutivo, algo que Winnicott discute nos trechos seguintes:
É fácil verificar porque os psicanalistas relutaram em escrever sobre o fator
ambiental, uma vez que tem sido frequentemente verdade que aqueles que
tentaram ignorar ou negar o significado das tensões intrapsíquicas
ressaltaram principalmente o fator externo desfavorável como causa de
doença na psiquiatria infantil. Contudo, a psicanálise está agora bem
estabelecida e podemos nos permitir examinar o fator externo tanto bom
quanto mau. (2005, pág. 251)
Estremeço ante o perigo de que meu trabalho seja tomado como uma
tentativa de fazer a balança da argumentação pender para o lado ambiental,
embora eu realmente seja da opinião de que a psicanálise tem agora
condições de dar importância plena aos fatores externos, tanto bons como
maus, e, especificamente, à parte desempenhada pela mãe no estágio bem
inicial, quando o bebê ainda não separou o “eu” do “não eu”
(WINNICOTT, 1990a, pág. 122).
Considerações finais
O psicodiagnóstico pode ser feito com uma atitude tradicional
alienista, ou com uma postura menos tradicional compreensiva e
pretensamente isenta que, no entanto, deixa de oferecer a percepção de
problemas psicopatológicos do sujeito. Existe a necessidade de o psicólogo
ser capaz de notar alterações de funções psíquicas do sujeito, de ser capaz de
comunicá-las aos pares, se for o caso, e sem perder a especificidade daquele
sujeito e de sua história.
Na atividade profissional, o psicólogo constata que saúde e doença
surgem mescladas e que os protocolos diagnósticos estão longe de resumirem
as agruras humanas.
Sobre o psicodiagnóstico, as contribuições de D. W. Winnicott são
riquíssimas pela participação do ambiente na formação da saúde de uma
pessoa e que culmina em uma teoria do processo de amadurecimento pessoal
tão potente que foi capaz de instaurar um novo paradigma psicanalítico, bem
como servir de parâmetro para se realizar o psicodiagnóstico.
Tendo conhecido a Psicanálise na minha adolescência, iniciei o
estudo com (acrescentar) vários psicanalistas durante a faculdade de
Psicologia. Depois de formado, trabalhei vários anos dentro do referencial
psicanalítico kleiniano, mas, por conta de novas perguntas e de perguntas
antigas que nunca foram respondidas, tomei contato com os livros de Joyce
McDougall (hoje uma lacaniana) que, tendo sido analisada por Winnicott, me
levaram a esse último. Foram vários anos estudando a sua obra em português
e em inglês – língua original na qual foi escrita e da qual muitas vezes mal-
traduzida para o idioma pátrio – que me convenceram da consistência de sua
teorização e da eficácia prática que ela oferece.
Para estar apto a realizar um psicodiagnóstico denso, gostaria de
deixar a recomendação ao leitor da leitura da obra direta de Winnicott, escrita
em um estilo coloquial que permite o fácil entendimento das palavras (nem
tanto o dos conceitos nela contidos). Faço tal recomendação para que,
diferente da maioria dos profissionais, as ideias de Winnicott figurem menos
nas citações e dedicatórias de trabalhos acadêmicos e muito menos ainda
infundadamente por estarem mal-interpretadas.
REFERÊNCIAS
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos
mentais. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.
FOUCAULT, M. A casa dos loucos. In: ___________. Microfísica do
poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. pág. 121.
GUNTRIP, H.(1975). Minha experiência de análise com Fairbairn e
Winnicott: quão completo é o resultado atingido por uma terapia
psicanalítica? Traduzido por Miguel Antônio de Mello Silva. Natureza
Humana. v.8, n.2, 2006. 383-411.
MÁRQUEZ, G. G. Só vim telefonar. In: ___________. Doze contos
peregrinos. Rio de Janeiro: Record, 1992.
MILROD, D. Meeting of the New York Psychoanalytic Society. Natureza
Humana. v.7, n.1. 2005. 237-242
NAFFAH NETO, A. O estigma da loucura e a perda da autonomia. Revista
Bioética. v.6 n.1. p. 81-87,1998.
PRADO, M. (dir.) Estamira. Filme longa metragem. Produzido por José
Padilha. 2005. Disponível em: https://youtu.be/KFyYE9Cssuo Acesso em: 25
de Agosto 201
WINNICOTT, D. W. O uso de um objeto. In: MILROD, D. Ata da Reunião
da Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque de 12 de Novembro de 1968a.
Traduzido por Miguel Antônio de Mello Silva. Natureza Humana. v.7, n.1.
2005. 243-253
_____________. O uso da palavra uso [1968b]. In: ___________.
Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed. 199
_____________. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre
a teoria do amadurecimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas,
1983.
_____________. O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1990a.
pág. 122.
_____________. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990b.
_____________. Dependence in infant-care, in child-care, and in the psycho-
analytic setting. In:___________. The Maturational Processes and the
Facilitating Environment. London: Karnac Books. 2005. Capítulo 23 p.
249-259.
CAPÍTULO 2
Psicodiagnóstico e Psicanálise de Winnicott: O
Valor da Experiência Com Supervisões em Uma
Clínica Escola.
Gláucia Telles Sales
Uma coisa é necessária aqui
Neste nosso mundo difícil
De sem-abrigos e desterrados.
Fixares residência em ti.
Hans Borli (1974)
Psicodiagnóstico
Conforme já informei anteriormente neste capítulo, o objetivo
primeiro do Estágio em Psicodiagnóstico era o próprio psicodiagnóstico,
tanto em relação aos seus constructos, quanto às suas variações práticas. Era
preciso estudar com os alunos esse trabalho clínico que tem por função
auxiliar o psicólogo a obter informações sobre a história de vida do paciente,
seu dinamismo psíquico, suas funções cognitivas, potencial criativo e outras
funções mentais, bem como traços de personalidade que orientam o terapeuta
na formulação de hipóteses diagnósticas. É a avaliação psicológica mais
utilizada para identificar, compreender e descrever um determinado distúrbio
(MARQUES, 1989).
Trata-se de uma prática clínica bem delimitada que pretende chegar a
uma descrição e compreensão, a mais completa possível, da personalidade
total do paciente, ou do grupo familiar, da patologia e das medidas
terapêuticas enquanto abrange os aspectos passados, presentes (diagnóstico) e
futuros (prognóstico) da personalidade do paciente (LOPES, 2002;
OCAMPO e ARZENO, 2003).
O processo começa pela solicitação de consulta feita pelo paciente e
prossegue através de etapas que se iniciam com a anamnese permeada por
entrevistas, observações clínicas, aplicação de testes psicológicos, podendo se
intercalar, também, o brincar lúdico (ludodiagnóstico) com crianças
(ARZENO, 1995).
Existem vários tipos de atuação e procedimentos clínicos como o
modelo mais tradicional que reserva a devolutiva geral resultante do processo
avaliativo para o final dos atendimentos e o que efetua intervenções durante
todo o processo. Esta proposta emprega técnicas projetivas como meios de
comunicação entre o psicólogo e o paciente e pode ser realizada de acordo
com o modelo Psicométrico, o Fenomenológico-Existencial e o Psicanalítico
(BARBIERI, 2009).
Mas os alunos queriam saber de Winnicott, aquele que tinha a sua
teoria como única companhia ao explorar um novo caso:
A única companhia que tenho ao explorar o território desconhecido de um
novo caso é a teoria que levo comigo e que se tem tornado parte de mim e
em relação à qual sequer tenho que pensar de maneira deliberada. Esta é a
teoria do desenvolvimento emocional do indivíduo, que inclui, para mim, a
história total do relacionamento individual da criança até seu meio ambiente
específico (WINNICOTT, 1984, p.14).
Sendo assim, fomos a ele com o que deu.
Psicanálise de Winnicott e as Consultas Terapêuticas
De início, ajudei os alunos a entender que, para Winnicott, as coisas
são sempre uma questão de crescimento e desenvolvimento esclarecendo que,
em termos desse último aspecto, “saúde significa uma maturidade relativa à
idade do indivíduo” (WINNICOTT, 1999, p.4). Indo além, dizia o autor,
“nunca penso no estado de uma pessoa aqui e agora a não ser em relação ao
meio ambiente e ao crescimento dela desde sua concepção até a época do
nascimento” (WINNICOTT, 1999, p.139).
Cabe lembrar que ele dá especial ênfase ao fato de que um bebê nasce
em um ambiente real, externo, cuja concretude terá participação e influência
determinantes no amadurecimento do ser em desenvolvimento. Ou seja, para
que um bebê e uma criança se tornem pessoas reais, precisa existir um
ambiente que sustente e facilite os processos de amadurecimento.
[...] a mãe e o pai não produzem um bebê como um artista produz um
quadro ou o ceramista um pote. Eles iniciam um processo de
desenvolvimento que resulta em existir um habitante no corpo da mãe, mais
tarde em seus braços, e após no lar proporcionado pelos pais; este habitante
se tornará algo que está fora do controle de qualquer um (WINNICOTT,
1983, p.81).
Quanto ao uso das palavras “normal” e “saudável”, ao nos referirmos
a pessoas, ele considerava que, provavelmente, sabíamos o que queríamos
dizer (WINNICOTT, 1999, p. 3). Essa maneira de Winnicott se expressar é
genuína e cativante, aplicando-se a tudo o que ele abordou em seus textos.
Por exemplo, quando ele fala sobre o trabalho com análise no seu sentido
original, a sua autenticidade e firmeza de personalidade transparecem em
suas palavras: “ao praticar psicanálise, tenho o propósito de: me manter vivo;
me manter bem; me manter desperto. Objetivo ser eu mesmo e me portar
bem” (WINNICOTT, 1983, p.152).
Mas, por volta dos anos vinte, havia uma excessiva demanda por
tratamento psicológico, o que tornou inviável a proposta de uma psicanálise
segundo os termos clássicos originais. Frente à impossibilidade, a proposta de
Winnicott foi a de realizar atendimentos em poucas sessões, entre uma a três,
e é essa prática denominada de Consultas Terapêuticas que faz a interface
com o psicodiagnóstico. São intervenções rápidas, pontuais, junto ao
paciente, nas quais as entrevistas fazem parte do manejo clínico. A ideia
fundante da proposta pode ser abstraída das palavras do autor a respeito do
quanto se deve fazer em um trabalho clínico: “Em análise se pergunta: quanto
se deve fazer? Em contrapartida, na minha clínica, o lema é: quão pouco é
necessário ser feito?” (WINNICOTT, 1983, p.152).
É importante esclarecer que, com as consultas terapêuticas, Winnicott
tratou da aplicação da Psicanálise na Psiquiatria Infantil. Ele considerou
difícil chamar de técnica o que se aplica a esse trabalho, principalmente pela
proposta ser extremamente flexível, uma vez que não existem casos iguais, e
a troca que se dá entre o psicanalista e o paciente é muito mais livre em
relação a como seria no caso de um tratamento psicanalítico puro. Disse,
ainda, que “não seria possível a alguém saber o que fazer baseando-se no
estudo de apenas um caso. Vinte casos podem dar uma boa ideia, mas o fato é
que não há casos semelhantes” (WINNICOTT, 1984, p.10).
Winnicott considerava, ainda, que a mera explanação dos casos não
levava à aprendizagem. Os estudantes deveriam ler cuidadosamente, estudar
os casos em sua totalidade e serem precisos e honestos quanto aos registros
dos mesmos. Ele usava de entrevistas e fazia anotações de todas as falas,
incluindo as suas. Considerava a importância dessa prática porque muito da
entrevista e seus principais detalhes se perdem “como um sonho morre ao
nascer do dia” (WINNICOTT, 1984, p.11).
O brincar, para ele, era um tema em si, sendo que a atenção deveria
estar voltada à brincadeira, não importando tanto o seu conteúdo. Intercalava
desenhos, técnica que ficou conhecida como o Jogo dos Rabiscos, que é um
meio do analista entrar em contato com a criança participando, livremente, do
jogo. Vale dar espaço às palavras do próprio autor a respeito dessa premissa:
É quase como se a criança, através dos desenhos, estivesse lado a lado
comigo e, de certo modo, tomando parte ao descrever o caso, de forma que
o relatório do que a criança e o terapeuta dizem tende a soar como verdade
(WINNICOTT, 1984, p.11).
Nesses atendimentos, a primeira entrevista deve ser bastante
valorizada tanto pela busca de informações as mais completas possíveis a
respeito do paciente, quanto por ser um momento importante para o
estabelecimento da confiança do paciente no terapeuta.
[...] o trabalho feito nessa entrevista é simplesmente um prelúdio para uma
psicoterapia mais demorada ou mais intensa, mas pode facilmente acontecer
que uma criança esteja preparada para isso somente após experimentar o
entendimento concernente a essa espécie de entrevista. Naturalmente, a
criança pode se sentir mais compreendida do que realmente foi, mas o
efeito terá sido o de haver dado à criança alguma esperança de ser
compreendida e talvez até mesmo de ser ajudada (WINNICOTT, 1984,
p.13).
Outro ponto importante e que deve ser observado neste trabalho é a
necessidade de se proceder a uma avaliação do meio ambiente do paciente. O
ambiente não deve ficar de fora em nenhum momento, uma vez que tem
participação significativa sobre o que se passa com a criança.
A importância da comunicação deve ser relevada a partir dos contatos
iniciais com o paciente lembrando, sempre, que nenhuma consulta se
assemelha à outra uma vez que se trata de um encontro real construído por
particularidades tanto do analista, quanto do paciente (WINNICOTT, 1984).
Quanto à saúde da psique, a avaliação deve ser feita pautando-se no
crescimento emocional que consiste em uma questão de maturidade. “O ser
humano saudável é emocionalmente maduro tendo em vista sua idade no
momento” (WINNICOTT, 1990, p. 30). A relação entre saúde e maturidade
é, portanto, absoluta. A saúde, então, deve constantemente ser avaliada em
termos de crescimento emocional.
O Valor da Experiência
Mesmo pesando o pouco domínio teórico dos alunos a respeito da
Psicanálise de Winnicott, procurei me valer, durante o percurso das
supervisões, das considerações do próprio autor a respeito de ambiente
satisfatório:
[ ...] se o ambiente for satisfatório, então o bebê, a criancinha, a criança em
crescimento, a criança mais velha e o adolescente, têm chances de crescer
de acordo com o potencial herdado. Do outro lado da linha, em que a
provisão ambiental não é satisfatória, o indivíduo, em alguma medida, ou,
talvez, em grande medida, não é capaz de alcançar plenitude em relação a
seu potencial (WINNICOTT, 1999, p.246).
Então, tratei de criar um ambiente que os ajudasse a compreender o
mínimo que fosse do novo paradigma, mas o suficiente para que o gesto do
futuro terapeuta no setting clínico, junto ao paciente, fosse obra de sua
espontaneidade e criatividade. Foi assim que trabalhei, desde os nossos
primeiros encontros, sem a preocupação de avançar na riqueza da obra do
autor. Pelo contrário, não me incomodava, por exemplo, repetir e repetir, o
quanto fosse necessário, arranjos conceituais de maneira a plantar o
entendimento inequívoco de que o paciente deve ser visto em sua
individualidade e não reduzido a sintomas e rótulos psicopatológicos. É
preciso chegar a um diagnóstico, sim; o próprio Winnicott disse a respeito do
quanto economizaríamos de tempo, isso valendo tanto ao paciente, quanto a
nós mesmos, se o fizéssemos com mais rapidez. Mas, é necessário dar tempo
ao tempo de cada um e, no caso, o tempo era do aluno.
Assim, eu procurei trabalhar os conceitos e principais autores que
falam sobre psicodiagnóstico, introduzindo a Psicanálise de Winnicott a
partir de uma compreensão interativa sobre a relação paciente e terapeuta.
Mas, embora a tarefa tenha sido desde o início apaixonante, eu me
questionava o tempo todo sobre a melhor maneira de ajudar alunos
incipientes nesse autor e sua teoria a se sustentarem nela em sua primeira
prática clínica. Vale lembrar que Winnicott não mais pensava sobre a teoria
em seus atendimentos. Isso porque Winnicott é a sua teoria do
desenvolvimento emocional do indivíduo. Na apresentação à Edição
Brasileira de Explorações Psicanalíticas, Outeiral, em Winnicott (1994, p.ix),
disse que para se compreender esse autor “é necessário brincar com seu
pensamento, ou seja, criar um espaço transicional que permita brincar, antes
de compreender, a experiência que sua teoria possibilita.”
Então, valendo-me dessa concepção, de muita espontaneidade e
criatividade, pus-me a brincar com a teoria no setting de supervisão através
de manejos que dessem conta de cobrir a lacuna teórica, enquanto
amparavam o exercício da prática. Uma tentativa, às vezes bem sucedida,
outras não, de assegurar condições mínimas que fossem para que eles
conseguissem sustentar o trabalho com os pacientes e familiares. Foi uma
tentativa quase mágica de introduzir o que chamei de retalhos teóricos no
escasso tempo acadêmico do estágio, costurando pedaços entre as
apresentações orais dos casos intercaladas por implacáveis, ora
comemorados, ora lamentados, feriados.
Para orientar o início dos atendimentos, lancei mão dos conselhos do
próprio autor:
Se uma pessoa vem falar com você e, ao ouvi-la, você sente que ela o está
entediando, então ela está doente e precisa de tratamento psiquiátrico. Mas
se ela mantém o seu interesse independentemente da gravidade do conflito
ou sofrimento, então você pode ajudá-la (WINNICOTT, 2001, p.1).
Em referência às nossas batalhas pessoais e fortalecendo a
importância da psicoterapia pessoal, Claire Winnicott relatou que durante
toda a vida o autor sempre se manteve em contato com o seu mundo onírico e
deu continuidade à sua própria análise. “Isso foi a corrente subterrânea
profunda de sua vida, o acompanhamento orquestral do tema principal, e,
aqui, seu poema chamado Sono é importante: Deixe que a sua raiz vá ao
fundo de sua alma. Sugue a seiva da fonte infinita de seu inconsciente e
permaneça sempre verde” (WINNICOTT, RAY, MADELEINE, 1994, p. 13).
Mas, apesar de todos os limites e dificuldades, a experiência foi
coroada com a sutileza do despertar de paixões por Winnicott e a sua teoria
do amadurecimento, o que pude observar através do brilho no olhar e
expressões de encantamento na face de alguns alunos. A observação se
confirmou pela escolha de muitos em prosseguir com a abordagem nos
estágios clínicos subsequentes.
Encerrando minha participação nesta obra, gostaria de relatar o que se
passou entre mim e uma aluna que atendeu a uma adolescente no estágio. Ela
me fez a seguinte solicitação ao final de uma supervisão na qual falávamos
sobre a difícil missão de ser terapeuta: então me ensina!
Foi a essa aluna que, na ocasião da solicitação, eu escrevi as reflexões
que seguem: quando uma pessoa chega para uma psicoterapia, pode ser um
sinal de que ela tem esperanças de ali obter algum tipo de auxílio que
precisa. Em toda busca por um terapeuta, está implícito um pedido de ajuda.
Em todo gesto do paciente, está implícita a tentativa de alcançar o mundo
que, por alguma razão, está difícil, ou impossível de ser alcançado sozinho.
Em nosso trabalho, às vezes, precisamos retomar a parceria mãe-bebê desde
o princípio dos tempos, só que, agora, como parceria paciente-terapeuta.
Quando o gesto de busca é feito, é preciso que o terapeuta esteja inteiro e
disponível ao encontro, despido tanto de pretensões, quanto de julgamentos.
O momento do psicodiagnóstico tem o privilégio de poder inaugurar essa
relação pautada na confiabilidade. É importante que a paciente, nesses
poucos encontros, possa falar de si mesma, trazer as suas angústias na
presença de alguém atento a ela, que não a deixará sozinha, falando com o
vazio como se dá no próprio lar, onde o que está à revelia do desejo e
expectativa dos pais é de única e total responsabilidade da filha ingrata.
Porque eles, os pais, entendem que ‘fizeram tudo o que puderam e que estava
ao alcance deles’. Apenas esqueceram que desejar uma filha não estava em
seus planos e negligenciaram, desde o início, o amor que resultaria em
cuidados para com ela. O seu nascimento foi um grave acidente do qual eles
jamais se recuperaram. Embora tenham evitado tocar neste assunto durante
todo o crescimento da criança, esqueceram que ela tinha ouvidos por todo o
corpo e, assim, apreendeu as coisas de maneira própria. Portanto, quando o
pai, lá na frente, disse que ela era linda, já era tarde. Ela já tinha dado um
jeito de fazer as suas ‘agiotagens’ e buscar os seus lucros, mesmo que falsos.
Enfim, ela irá precisar de muita ajuda. Tomara que volte para atendimento o
ano que vem.
No mais, que as palavras de Winnicott permaneçam vivas:
[...] as teorias serão reformuladas, propondo que os distúrbios psiquiátricos
não são produzidos por conflitos emocionais, mas pela hereditariedade,
constituição, desequilíbrio hormonal e ambientes brutais e inadequados. O
fato, porém, é que a vida em si mesma é difícil e a psicologia se refere aos
problemas inerentes ao desenvolvimento individual e ao processo de
socialização; mais ainda, na psicologia infantil temos de nos defrontar com
a batalha em que nós próprios estivemos uma vez, ainda que em geral já a
tenhamos esquecido, ou da qual jamais estivemos conscientes
(WINNICOTT, 1990, p.28).
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CAPÍTULO 3
O Jogo dos Rabiscos no Psicodiagnóstico e na
Relação da Criança Com o Analista
Josiane Cristine Ramos Ferreira
Introdução
O convite para contribuir com este capítulo foi muito importante para
mim por ter acontecido justamente quando eu estava aposentando a minha
última caixa lúdica usada para atendimento infantil. Eu não estava
abandonando o atendimento de crianças, mas passando por mudanças de
manejo que refletiam mudanças da teoria. Eis que me chega este desafio de
estabelecer uma conversa imaginária com você, leitor, sobre o jogo do
rabisco no processo psicodiagnóstico infantil, tema estritamente
winnicottiano, que pretendo abordar a partir da minha experiência clínica.
Terminei a minha graduação em Psicologia em 1996. Desde então,
atendo adultos, adolescentes e crianças. No que tange especialmente às
crianças, eu me lembro de uma supervisora de formação kleiniana que me
dizia: “nunca deixe de atender crianças, porque elas nos colocam em contato
direto e bem vivo com o mundo interno.” Isso é uma verdade mesmo.
Iniciei os atendimentos infantis totalmente baseada na teoria de
Melanie Klein. No decorrer do meu trabalho, ao atender uma criança de três
anos e meio de idade, me deparei com Winnicott. A partir disso, me dediquei
a estudar a sua teoria para compreendê-la. Atualmente, todos os meus
atendimentos seguem essa abordagem teórica.
Minha análise pessoal faz parte desse processo de mudança, pois o
meu analista é winnicottiano; e, é muito natural que, mesmo sem desejar ou
perceber, passemos a atender nos moldes de nossa análise pessoal.
Quando iniciei a minha análise, estava dando andamento à formação
na Sociedade de Psicanálise de Campinas (antigo CPCAMP), vinculado à
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Com todas as mudanças
pessoais que vivenciei e que repercutiram nos atendimentos que eu fazia, me
aproximei da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana (SBPW), em
São Paulo, onde hoje faço formação.
Percebo que Winnicott é um autor que mexe no mais profundo e
primitivo de nossas vidas. Ele apresentou uma teoria muito útil para nós
atingirmos um processo de integração, reparando os nossos traumas e
percorrendo uma linha pessoal de amadurecimento. Ele apresenta algo muito
diferente da Psicanálise clássica e da Psicologia de base analítica: um novo
olhar sobre a importante relação do analista com o paciente.
Winnicott, por exemplo, não faz referências à tão famosa
neutralidade, bastante prestigiada na Psicanálise clássica. Ele não afirma que
o analista deve se empenhar em se manter neutro para permitir ser o alvo das
projeções do paciente; pelo contrário, diz que o analista precisa se apresentar
como pessoa, sendo isso parte da técnica. Apresenta-se como pessoa não quer
dizer que o analista vai contar tudo de sua vida ao paciente. O sentido é o de
ser um analista verdadeiro, espontâneo e real com seu paciente.
Outro aspecto da teoria de Winnicott digno de nota é que ela é
totalmente construída sobre o amadurecimento pessoal, algo inato ao ser
humano, sendo a saúde o foco. Quando o amadurecimento não ocorre como
deveria, indica que deve ter havido falhas ou traumas que interromperam,
distorceram e dificultaram o desenvolvimento daquela pessoa.
Um outro ponto da técnica winnicottiana, eu diria que é um grande
marco, é aquilo que diz respeito ao manejo: a forma pela qual o analista lida
com o paciente. Isso fundamenta o enfoque de não ser a cura pela palavra,
mas a cura pelo cuidado.
A partir dessa descrição sobre a teoria inicial que eu seguia e aonde
cheguei teoricamente depois, posso afirmar que ocorreu a inserção de um
novo paradigma nos meus atendimentos, sendo isso sentido também no
psicodiagnóstico infantil.
Por mais de dez anos, procedi ao psicodiagnóstico infantil da seguinte
forma: primeiro atendia os pais e fazia a anamnese, em uma ou duas sessões;
depois, atendia a criança por cinco ou seis sessões, sendo que na primeira lhe
explicava o motivo de ela estar ali, que seria para ajudá-la a entender o que
estava acontecendo, sendo isso a justificativa para fazer algumas atividades
comigo.
Geralmente começava pelo teste do desenho-estória (do qual ainda
gosto), pedia para a criança fazer um desenho livre com lápis preto de
escrever em uma folha horizontal, que fizesse o melhor que pudesse, mas
sem preocupação com desempenho. Terminado o desenho, ela me contava
uma história e dava um título a ele. Então, eu lhe entregava uma segunda
folha e procedia da mesma forma. No total, eram 5 folhas, tomando por volta
de duas sessões. Na terceira sessão fazia o teste House Tree Person (HTP) e o
Teste da Família. Na quarta, fazia a Hora do Jogo.
Na Hora do Jogo ou Hora Lúdica, eu utilizava uma caixa lúdica, que
ficava aberta no chão, e brinquedos postos sobre a mesa. Eu dizia que a
criança poderia brincar como bem entendesse sem, contudo, destruir a sala ou
me bater – evitando algo que colocasse a nossa segurança em risco –
enquanto eu permaneceria observando-a. Essas instruções são bem clássicas
no trabalho com crianças feito dentro dos moldes da técnica que estou
descrevendo.
A caixa aberta tem o sentido de não torná-la um elemento
persecutório à criança sendo que, caso estivesse fechada, poderia gerar
expectativas e até temores à criança quanto ao que poderia estar ou sair de
dentro da caixa. Quando necessário, me valia de outros testes como, por
exemplo o WISC. Nesse caso, demandaria mais encontros com a criança.
Na última sessão, eu fazia a devolutiva com a criança e, finalizando o
psicodiagnóstico, a devolutiva com os pais quando, então, lhes apresentava
algumas hipóteses sobre a dificuldade da criança.
Com relação ao lugar dos pais no atendimento infantil, vivenciei algo
muito marcante durante uma supervisão de caso, durante a minha primeira
formação em Psicanálise, na qual questionei um professor que dissera que
não precisaríamos atender os pais nenhuma vez. Como assim? perguntei. Eu
me lembro dele tentando me convencer que aquilo que realmente importava
era a criança diante de mim e nada mais: nem a sua história, nem seus pais e
nem o que eles diziam sobre a criança. Em vão, rebatia: “mas eu preciso dos
pais, tanto para fazer a anamnese e conhecer a história da criança, como
depois para fazer a devolutiva, talvez algumas intervenções com os pais,
aliás, é assim que funciona o psicodiagnóstico.”
Esse assunto de “quando atender aos pais” era uma discussão
recorrente em vários grupos que participei junto do debate sobre como
envolver os pais ou sobre encaminhá-los a outro colega. São várias as
opiniões, umas bem diferentes das outras.
A experiência que tive naquela supervisão só hoje consigo entender
(não naquela época, porque certas coisas só entendemos com o tempo) que
era coerente com a teoria sobre o aparelho psíquico da criança, que era o que
interessava àquela abordagem de meu professor. Isto é, ele buscava entender
como era o funcionamento desse aparelho, os seus mecanismos, a
organização dele, aspectos inconscientes necessitando se tornar conscientes e
condicionados à melhora daquela criança, as projeções, os fenômenos
transferenciais, contratransferenciais e como intervir com interpretações
sobre o conteúdo manifesto. Observem que, segundo a linha teórica desse
professor, o ambiente não era real e que, portanto, não haveria mesmo a
necessidade de envolver os pais visto que ele considerava tudo uma
manifestação do aparelho psíquico da criança.
Winnicott, na verdade, quando fala de inconsciente, não é no sentido
de algo a ser necessariamente interpretado. Aliás, ele postula dois tipos de
inconscientes: um “reprimido”, igual ao que Freud postula, e outro
originário, que contém todas as experiências – desde as mais primitivas –
revisitadas dentro da relação com o analista.
Uma coisa que aprendi é que sempre que ouvimos algo, é preciso
saber de qual lugar a pessoa nos fala, quais os pressupostos teóricos
envolvidos na afirmação. Há situações impossíveis de ser debatidas porque
estamos falando a partir de paradigmas muito distintos. Nesses casos, resta-
nos entender e respeitar o caminho de cada um na abordagem teórica que
cada um acredita. Isso aconteceu muito com Winnicott quando trouxe um
novo “paradigma”, de não considerar o aparelho psíquico e considerar de
extrema importância o ambiente e a relação entre o analista e o paciente.
No entanto, atualmente, continuo envolvendo os pais, nem sempre no
primeiro contato: às vezes vejo a criança primeiro, às vezes os pais,
dependendo da situação. Por exemplo, pais muito ansiosos são atendidos
primeiro.
Percebam que parcialmente realizo as sessões conforme a sugestão
desse meu professor, contudo, a motivação é diferente: ela se apoia no
relacional, no ambiente e não na teoria do aparelho psíquico. A diferença
também se evidencia quando, em determinado momento, envolvo aos pais
que, para mim, podem fazer parte do tratamento, assim como nos diz
Winnicott.
Para avaliar um paciente, Winnicott não utilizava o termo
psicodiagnóstico, como habitualmente a Psicologia usa, e nem estudo de
caso, termo coloquialmente usado entre os psicanalistas para se realizar
avaliações.
Em toda sua obra, o que encontro é o termo Entrevista, Avaliação
Psicológica, Consulta Terapêutica, Avaliação de Caso, Entrevista
Reduplicada, Atendimento de Caso e Diagnóstico. Aparece bastante o termo
Entrevista para se referir ao diagnóstico, termo que escolhi para usar neste
capítulo toda vez que me referir ao “psicodiagnóstico” para facilitar a leitura.
Winnicott, num primeiro encontro, não fazia somente observações ou
diagnósticos, muitas vezes realizava intervenções efetivas, tocava em pontos
específicos e necessários que promoviam mudanças reais nos pacientes, por
vezes em apenas uma sessão, que são as chamadas Consultas Terapêuticas.
Por vezes ele utilizava uma técnica criada por ele mesmo: o Jogo dos
Rabiscos.
Winnicott fala muito de integração, desintegração e não-integração
do eu (self). Nos atendimentos, ele não utilizava a caixa lúdica. Essa postura
pressupõe que pode não haver um eu integrado, não restando sentido de
haver uma caixa lúdica representando o conteúdo desse eu. Em meus
atendimentos, agora, há brinquedos na sala, mas eles não ficam mais dentro
da caixa lúdica, ficam soltos e ao alcance da criança.
Penso que se Winnicott tivesse que opinar sobre a caixa aberta, vazia,
como dito anteriormente, ele opinaria sobre o vazio da caixa como um
disparador de agonias impensáveis.
Uma outra questão é que não se faz necessário fazer referência, via de
regra, ao paciente não machucar o analista ou não se machucar a si próprio
como uma condição de ele estar ali com o analista na sessão. A postura do
analista é de conter o paciente e intervir, se for o caso, não só com palavras,
com atitudes também. A função do analista é estar disponível para o paciente
vir a ‘existir’ como pessoa.
Para a entrevista, não há um tempo pré-estipulado, e quando se chega
a algumas hipóteses sobre a criança e sobre seu ambiente (família, escola
etc.), há uma conversa com os pais ou cuidadores e com quem for necessário
e também quantas vezes forem necessárias (e possíveis).
Os pais são boa parte do ambiente da criança e, muitas vezes, a
criança está adoentada em decorrência da doença dos pais. Isso justifica se
fazer um trabalho com os pais. No mesmo sentido, é com os outros ambientes
da criança como a escola, por exemplo, que, às vezes, precisa ser envolvida
no tratamento.
A entrevista para Winnicott, como todas as sessões, é totalmente
relacional, experiência mútua e única entre analista e paciente. Essa vivência
com a criança tem o intuito de perceber em quais momentos do
amadurecimento dela ocorreram falhas ambientais traumáticas que
obstaculizaram o seu desenvolvimento pessoal.
Perceber os tipos de medos, angústias, agonias impensáveis a que a
criança está submetida, se o self está integrado ou não e as características do
ambiente da criança são parte da preocupação na prática Winnicottiana.
Toda sua teoria é baseada na relação. Sem desconsiderar a
hereditariedade e a genética, Winnicott considera o ser humano totalmente
como sendo fruto da relação dele com o ambiente. Ou seja, uma pessoa pode
ter uma predisposição genética ou uma influência hereditária para algo, mas é
o ambiente que lhe dará o contorno e o seu real destino do amadurecimento.
Levo bastante em conta o fato de que, enquanto analistas, temos que
ser fiéis a uma teoria: já vi profissionais de outras abordagens fazendo uso da
teoria de Winnicott apenas quando lhes é conveniente ou quando não sabem
mais onde encontrar apoio teórico para as complexidades da clínica
psicológica moderna e afirmam, equivocadamente, que “partem para o
acolhimento, holding, handling...”, quando diante de pacientes mais
regredidos.
Se estamos em uma teoria, ela tem que ser a nossa base. Isso é ainda
mais verdade na teoria winnicottiana, cujo setting é composto pelo manejo,
algo totalmente diferente da Psicanálise clássica. Só o fato de não estar
focada no desvelamento do inconsciente, por exemplo, mas no aspecto
relacional, já faz toda uma diferença.
Ao fazer essas afirmações, não desmereço a base psicológica do
psicodiagnóstico. Simplesmente, tento mostrar a necessidade de estarmos
bem localizados quanto a uma teoria, que se realiza com uma técnica e que
tem meandros no manejo de situações práticas, como as que vêm a seguir.
Mudar de teoria foi algo parecido com o término da minha Faculdade
de Psicologia, claro que, com uma outra qualidade de sentimentos. Lá atrás,
quando iniciei a prática dos atendimentos, havia muitas coisas a considerar:
fazer corretamente, anotar tudo, buscar ajuda total de supervisores, ter certeza
de estar no caminho certo. Isso faz parte do desenvolvimento de bons
psicoterapeutas: praticar a clínica, estudar, fazer análise, buscar clareza
teórica na prática do trabalho, participar de grupos de estudos etc.
Ser eclética não me é confortável. Podemos e devemos conhecer
vários autores, mas temos que ter domínio do que estamos fazendo, qual
autor estamos considerando e qual tipo de intervenção ou manejo estamos
realizando.
Nessa introdução tão pessoal, gostaria de lembrar que, muitas vezes a
criança ou o adulto que atendemos precisa também de alguma avaliação e/ou
tratamento com outro profissional, e não está descartado encaminhar para o
neuropsicólogo, o médico psiquiatra, o fonoaudiólogo, o psicopedagogo,
dentre tantos que podem complementar o nosso trabalho. O diagnóstico que
recebemos de outros profissionais pode nos ajudar a entender a criança que
estamos atendendo.
Antes de passar adiante, não tenho a intenção de, neste capítulo, me
deter em teorias que abordam o psicodiagnóstico de uma maneira geral,
tampouco como seria feito psicodiagnóstico à luz da teoria de Melanie Klein,
Anna Freud, Arminda Aberastury, para citar alguns exemplos. Embora elas
tenham lugar como pioneiras no trabalho com crianças, pretendo me deter na
teoria de Winnicott, que compreende o manejo, a atitude relacional do
analista com o paciente, a relação do analista com o ambiente da criança, o
uso da técnica do Jogo dos Rabiscos e a relação que ela suscita entre a
criança e o analista. Assim, pretendo primeiro discorrer sobre Winnicott e,
por fim, sobre o Jogo dos Rabiscos.
E continua:
A criança normal, ajudada nos estágios iniciais pelo seu próprio lar,
desenvolve a capacidade para se controlar. Desenvolve o que é
denominado, por vezes, “ambiente interno”, com uma tendência para
descobrir um bom meio.
Winnicott destacava também que “muitas vezes nos vemos fazendo
diagnóstico de normalidade, ou saúde, diante da existência indiscutível de
sintomas da criança desenvolvendo relacionamentos com seu self, com os
pais, com a unidade familiar e com o ambiente em geral” (Winnicott,
1979/1983, p.176).
Toda a obra de Winnicott, então, é permeada pela questão do ser
humano ter uma tendência inata ao amadurecimento e que a saúde é o foco
mais importante. O termo doença nem é usado em sua obra, mas utiliza, sim,
o termo psicopatologia ou distúrbios maturacionais para se referir a traumas e
falhas que ocorreram no processo de amadurecimento da pessoa e que
obstaculizam ou até mesmo interromperam o seu processo de
amadurecimento, produzindo, inclusive, sintomas.
As falhas que ocasionam o trauma precisam ser consideráveis (perda
da mãe, mudança de casa, alguma invasão, um roubo na casa, reforma, entre
outras coisas) ou repetidas, na relação com os pais (ambiente) - jeito dos pais
se relacionarem com a criança, que não fizeram bem à criança e que viraram
padrões de relacionamento. Tais situações abrangem desde a vida
intrauterina, o parto, o início da vida após o parto e toda a infância da pessoa.
Todo evento traumático pontual pode ser mais ou menos marcante na
vida da pessoa, porque ele na verdade coroa todo um padrão de possíveis
falhas ocorridas anteriormente e depende também de como a pessoa reage a
todas essas falhas. O conjunto falha versus reação, poder-se-ia assim dizer, é
que produzem ou não os distúrbios emocionais, no caso, os distúrbios
maturacionais.
Winnicott, diferentemente de muitos autores, voltou
bastante sua pesquisa, estudo, observações e tratamento às psicoses. Freud,
por exemplo, no início de sua pesquisa, classificava os pacientes como
histéricos ou psicóticos, sempre esteve interessado nos fatores constitucionais
e, depois, passou a desenvolver sua visão estrutural da personalidade. No
centro de tudo, estava a ansiedade de castração e o complexo de Édipo.
Winnnicott disse que Melanie Klein nunca fez um estudo pessoal do
cuidado com a criança psicótica e, assim como Ferenczi, reduziu a questão
das manifestações psicóticas da infância à uma questão de uso adequado da
técnica (1979/1983, pág. 115,116). No entanto, Winnicott foi o autor que
mais se deteve nos casos psicóticos, na questão das ansiedades mais
primitivas, nas agonias impensáveis, tendo observado muitas mães e bebês e
atendido muitas crianças também. Segundo a sua teoria (1979/1983, pág.
116), o ego da criança, inicialmente, depende de um ego auxiliar da mãe (ou
de sua substituta) que atua se adaptando às necessidades da criança,
possibilitando que, gradativamente, a criança possa emergir de um estado de
fusão com a mãe, se separe dessa, e se torne capaz tanto de amar como odiar.
A psicose não fica mais restrita a uma reação à ansiedade associada ao
Complexo de Édipo, ou a uma regressão a um ponto de fixação, ou a ser
ligada especificamente com a posição no processo do desenvolvimento
instintivo do indivíduo (Ibid, pág. 117).
Winnicott nos coloca que, com a vivência obtida na relação com o
analista, o paciente pode e deve “regredir”:
a regressão representa a esperança do indivíduo psicótico de que certos
aspectos do ambiente que falharam originalmente podem ser revividos com
o ambiente essa vez tendo êxito ao invés de falhar na sua função de
favorecer a tendência herdada do indivíduo de se desenvolver e amadurecer
(Ibidem).
Todo ser humano, para Winnicott, parte de um estado de não-
integração para, através da tendência inata ao amadurecimento e um
ambiente suficientemente bom, atingir a integração. Se isso não ocorre, o
analista, que é responsável por criar um ambiente suficientemente bom,
favorecerá, via relação com o paciente, a retomada do processo de
amadurecimento.
O diagnóstico em Winnicott, então, é algo a ser bem entendido, pois
vemos que ele considera muito o quanto a pessoa consegue ser criativa em
sua vida a respeito de si própria e com o outro, como ela toca a sua vida
adiante, se ela consegue produzir e se é capaz de fazer integração com o
sentido de amadurecimento pessoal e também considera a psicopatologia ou
os distúrbios maturacionais.
Ao atender uma pessoa, Winnicott nem sempre fazia psicanálise,
muitas vezes era psicoterapia, atendimento de caso, consulta terapêutica,
outras vezes utilizava só a entrevista.
O atendimento de caso (casework) é descrito por Winnicott
(1965/2011, p. 177) como:
“[...] um processo de solução de problemas. O termo atendimento de caso é
usado para descrever a função total de uma agência particular no trato de
um determinado problema”. Muitas vezes acontecia pelo assistente social, e
o “atendimento de caso torna-se o elemento principal nos casos que, além
do distúrbio da criança, há uma deficiência ambiental que precisa ser
corrigida” (Ibidem, p.192).
Winnicott sempre estava em contato com outros profissionais e ele
mesmo tinha uma equipe junto com ele, uma equipe bem preparada e
sintonizada com ele, e até imcumbia a assistente social a fazer intervenções
na casa da criança.
A psicoterapia,
é coisa totalmente diferente, e muitas vezes se desenrola sem que um
atendimento de caso se desenvolva em paralelo [...] esses dois processos, o
atendimento de caso e a psicoterapia, na prática, muitas vezes coexistem e
se tornam mutuamente dependente; vale notar, porém, que o atendimento
de caso não pode ser utilizado para escorar ou remediar uma terapia
fracassada, nem pode transformar-se em psicoterapia sem acarretar uma
grande confusão. (Ibidem, pág. 177)
Na entrevista, Winnicott diz que
haverá aqueles casos em que se faz um profundo trabalho na circunstância
especial da primeira entrevista (ou entrevistas) e as mudanças resultantes na
criança podem ser utilizadas pelos pais e aqueles que são responsáveis no
meio social imediato, de modo que, considerando uma criança com
dificuldade em relação ao desenvolvimento emocional, a entrevista
resultará na dissolução da dificuldade e num momento progressivo no
processo de desenvolvimento (Winnicott 1971 a/1984 p.13).
Em contrapartida, “há uma categoria de casos que essa espécie de
entrevista psicoterapêutica deve ser evitada”, não no sentido de que com uma
criança muito doente não é possível um trabalho eficaz, mas no caso de a
criança sair bem desse atendimento e retornar para uma situação familiar
ruim ou anormal. Por conta disso, Winnicott fazia questão de checar se o
ambiente da criança era ao menos médio, para que o trabalho terapêutico
pudesse realmente ter sua continuidade em casa: “Confio em um ambiente
desejável médio para encontrar e utilizar as mudanças que ocorrem no
menino ou na menina durante a entrevista, mudanças que indicam uma
anulação da dificuldade no processo de desenvolvimento” (Ibidem).
Ele via que a principal “dificuldade na avaliação dos casos para essa
espécie de trabalho é a de avaliar o meio ambiente imediato da criança”
(Ibidem). E eu vejo que ainda é até hoje. E ainda acrescentou:
Onde há um poderoso e contínuo fator externo adverso ou ausência de
consistente cuidado pessoal, é preciso evitar essa espécie de procedimento,
devendo-se sentir inclinado a explorar o que pode ser feito mediante
“tratamento cuidadoso” ou ainda instituir uma terapia que possa dar à
criança a oportunidade para um relacionamento pessoal do tipo geralmente
conhecido como transferência” (Ibidem, p.13,14).
Não me deterei aqui neste tópico do “tratamento
cuidadoso”, só salientarei que Winnicott sempre pensava em formas de
atender seu paciente.
Em algumas situações, a entrevista era um prelúdio para a
psicoterapia mais demorada ou mais intensa:
[...] mas pode facilmente acontecer que uma criança esteja preparada para
isso somente após experimentar o entendimento concernente a essa espécie
de entrevista. Naturalmente, a criança pode se sentir mais compreendida do
que realmente foi, mas o efeito terá sido o de haver dado à criança alguma
esperança de ser compreendida e talvez até mesmo de ser ajudada (Ibidem,
p. 13).
Ele atesta que não existe nada original no Jogo dos Rabiscos e que
seria incorreto alguém sentir-se preparado para fazer uma consulta
terapêutica simplesmente porque aprendeu a usá-lo. Por isso o jogo simples
tem, em realidade, uma natureza bem complexa porque requer um
entendimento razoável da teoria winnicottiana para a aplicação e trabalho.
Em essência, o jogo se resume em o terapeuta fazer um risco a esmo
no papel, pedindo para o paciente transformá-lo em alguma coisa. Em
seguida, o paciente faz um risco qualquer, como a olhos fechados, para o
analista transformá-lo em alguma coisa. A quantidade de desenhos dependerá
da dupla.
O Jogo é uma experiência mútua. É quase como se a criança, através
dos desenhos, estivesse lado a lado com o analista, e isso a faz se sentir muito
bem quando é compreendida e ajudada.
No Jogo é preciso estar bem atento à dinâmica dos
desenhos que surgem na hora e quais revelações únicas eles possuem.
Um outro ponto importante dos desenhos, como ocorre
também na entrevista e no tratamento propriamente dito, é que a interpretação
do inconsciente não é o mais importante. Mesmo quando Winnicott fazia
interpretações, ele ainda fazia valer da relação dele com o paciente. Ele conta,
por exemplo, que quando fazia uma interpretação errada, a criança era capaz
de corrigi-lo. “Uma interpretação que não funciona significa, sempre, que a
fiz no momento errado ou da maneira errada, e a revogo incondicionalmente”
(1971a/1984, p.18,19). Ele esperava que as crianças sentissem que tinham o
direito de rejeitar o que ele dizia ou a maneira como recebiam alguma coisa
nesse relacionamento.
Afirmava ser um fato as entrevistas estarem sob o domínio da criança
e não dele; e ele tomava o cuidado de nunca fazer interpretações para seu
próprio benefício. “Interpretações dogmáticas deixam à criança apenas duas
alternativas: a aceitação do que eu disse como uma doutrina ou a rejeição da
interpretação, de mim e de toda a situação” (Ibidem p.18).
Com relação aos desenhos ainda, quando, por exemplo, uma criança
desenha uma cobra, Winnicott não relaciona o desenho como um símbolo
fálico, como é habitualmente interpretado até a senso comum. Winnicott não
desconsidera tal possibilidade, mas traz algumas outras contribuições,
(WINNICOTT, 1971a/1984 p. 18):
Se pegar o material primitivo e as raízes do que um pênis pode significar
para uma criança, ver-se-á que o desenho feito pela criança de uma cobra
pode ser a configuração do eu (self) que ainda não usa braços, dedos,
pernas e artelhos. Pode-se ver quantas vezes pacientes não conseguem
exprimir um senso do eu (self) porque o terapeuta interpreta uma cobra
como um símbolo fálico. Longe de ser um objeto parcial, uma cobra num
sonho ou fobia pode ser um primeiro objeto integral. (....)
REFERÊNCIAS
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CAPÍTULO 4
O Lugar dos Pais no Psicodiagnóstico: Do
Manejo À Intervenção.
Rita Nicioli Cerioni
O primeiro espelho da criatura
humana é o rosto da mãe: a sua expressão,
o seu olhar, a sua voz (Winnicott).
O processo psicodiagnóstico foi construído, inicialmente, a partir de
um modelo médico adotado pelos psicólogos, buscando localizar nos
protocolos dos testes, sinais de patologias específicas e era compreendido
como um processo de avaliação no sentido mais estrito da palavra
(BARBIERI, 2010). A entrevista inicial com os pais, anamnese, observação
lúdica, aplicação de técnicas projetivas, testes de inteligência e devolutiva
tinham um único objetivo: compreender a demanda, chegar a uma hipótese
diagnóstica e fazer a mais adequada indicação de tratamento.
Vários modelos foram adotados para traçar uma compreensão ou
conclusão diagnóstica. Na abordagem psicanalítica, o modelo proposto
orienta o trabalho de grande parte dos profissionais da área e sistematizou os
conceitos pertencentes ao psicodiagnóstico de forma rica e profunda, levando
em conta os conceitos de transferência e contratransferência, as relações
transferenciais e contratransferenciais presentes do início ao fim do processo.
O psicodiagnóstico seria, portanto, uma prática bem delimitada, com objetivo
de “obter uma descrição e compreensão a mais profunda e completa possível
da personalidade total do paciente ou do grupo familiar” (OCAMPO,
ARZENO e PICCOLO, 1981, p.18).
Para autores como Ancona-Lopez (1995), Trinca (1998), Barbieri
(2002), e Tardivo (2007), o psicodiagnóstico deve ser compreendido como
um procedimento de intervenção psicológica, diagnóstico e encaminhamento.
O objetivo deste capítulo é refletir sobre o papel dos pais no
psicodiagnóstico interventivo sendo que vou me ater apenas ao
psicodiagnóstico de crianças.
Uma criança só chega ao psicólogo pelas mãos dos pais, e este é um
momento em que o sofrimento familiar está em pauta. O que mobiliza a
busca por atendimento psicológico é que o sintoma da criança se tornou
insuportável para os pais (ROSENBERG, 1994). Os pais se sentem
angustiados diante de um sentimento de derrota, feridos e muitas vezes
“entregando os pontos” (FRANÇA E RADINO, 2002). Chegam para o
atendimento, seja em consultório ou serviço público, e depositam no
profissional toda sua ânsia de resolução. Cada qual a partir de sua própria
história, de sua construção como pai e mãe e da sua concepção de mundo.
O contato inicial: quem virá?
Geralmente, quando um dos pais procura por atendimento
psicológico, procuro agendar uma primeira entrevista com ambos os pais,
sem a presença da criança. Por que sem a criança? Porque não sei de antemão
quem e como são os pais: se superprotegem ou se expõem tudo aos filhos
sem hesitação. Atender os pais em um momento e a criança em outro
propicia que se crie um espaço de diferenciação e discriminação de papéis e
lugares (AMPESSAN, 2005). Procedo assim com crianças de até 12 anos. A
partir desta idade, marco primeiro com o paciente, pois se trata de um
adolescente, e depois com os pais.
Na minha experiência clínica, é comum a mãe realizar o primeiro
contato em busca de atendimento. Ressalto sempre a importância de
convidar o pai e a mãe para as entrevistas iniciais. Quando é a mãe quem liga,
sempre pergunto sobre o pai da criança, e não sobre o marido, pois não
necessariamente a mãe tem um marido, ou o marido da mãe é o pai da criança
a quem ela pede atendimento.
Quando os pais já não funcionam mais como casal e não conseguem
estar juntos, os atendo separadamente de início, se assim desejarem. Porém,
já começo um trabalho com eles para que possam desenvolver uma
comunicação, já que são pais de uma mesma criança e tem uma empreitada
em comum, embora muitas vezes se esqueçam disso.
Se a mãe funciona como porta-voz do pai com falas do tipo: “Ele não
consegue vir por causa do trabalho”, ou “ele não acredita em psicólogo”,
solicito o telefone do pai para que eu própria entre em contato e o convide
para a entrevista. O profissional não pode compactuar com essa posição,
como se fosse normal a ausência do pai na busca por atendimento
psicológico. E sempre informo a ambos: a cadeira do pai não pode estar
vazia. Se a cadeira está vazia, significa que há um lugar vazio na mente da
criança. Isso vale também para o inverso, quando o pai comparece e a mãe
não. Porém, na prática, isso é bem mais raro.
Por que a presença de ambos é tão importante? Porque ao aceitar uma
criança para o psicodiagnóstico, estamos nos comprometendo a compreender
o mundo interno que é construído na complexa rede de relações, vínculos e
identificações com os pais. Não só os pais físicos, reais, mas as imagens
paternas, as que foram internalizadas nessa relação que envolve o discurso
que um dos pais tem sobre o outro e sobre si mesmos. E pode ocorrer que, ao
nos deparar com o pai, ele não corresponder ao discurso da mãe, por
exemplo.
Se negligenciarmos a importante presença de um dos pais, não nos
importando com sua ausência, compactuamos e nos tornamos cúmplices do
outro, reforçando o domínio de um dos dois em detrimento do outro.
Quando um dos pais verbaliza ao psicólogo sua discordância com a
avaliação, isso deve ser levado em conta e o profissional pode trabalhar no
sentido de auxiliá-los, pai e mãe, em busca de uma concordância em realizar
o processo ou não.
Em situações em que todas as tentativas de incluir um dos
pais no processo fracassam, o trabalho a ser realizado levará em conta essa
ausência como um elemento importante na compreensão da dinâmica
psíquica e na intervenção. Isso pode acontecer em casos específicos, por
exemplo, quando um dos pais se desligou da criança e não temos como entrar
em contato, se um dos pais está gravemente adoecido física ou mentalmente a
ponto de impedi-lo de participar do processo, ou quando um dos pais está
preso.
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ABORDAGEM
COMPORTAMENTAL
CAPÍTULO 5
Contribuições da Terapia Analítico-
Comportamental e da Análise Funcional do
Comportamento
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ABORDAGEM
FENOMENOLÓGICA
CAPÍTULO 7
O Psicodrama e o Encontro Fenomenológico de
Terapeutas Iniciantes no Processo de
Psicodiagnóstico Interventivo
Erika Sproesser
Apresentação
Durante os anos atuando como professora supervisora de clínica-
escola, pude acompanhar as angústias que cercam os estudantes de Psicologia
que adentram à clínica universitária, iniciando os atendimentos no estágio em
psicodiagnóstico. Em muitos momentos, deparei-me com reações de medo e
de impotência frente aos primeiros atendimentos clínicos. Como lidar com a
angústia do cliente se os terapeutas estão angustiados? Como propiciar o
desenvolvimento do cliente, se as conservas e as angústias trazem amarras à
espontaneidade dos terapeutas?
Neste capítulo, faço a tentativa de responder a tais questões que estão
presentes na clínica dos terapeutas iniciantes, discorrendo sobre o
psicodiagnóstico na abordagem fenomenológico-existencial e psicodramática,
sobre o conceito de psicodrama e de encontro terapêutico, bem como sobre as
angústias que cercam o papel do terapeuta iniciante frente às angústias dos
pacientes. Abordo a clínica e as técnicas psicodramáticas que contribuem
para a percepção e para o desvelamento da verdade e das necessidades
existenciais, para o co-construir – na relação terapeuta-paciente – da
compreensão e da ressignificação da queixa apresentada.
Considerações finais
No psicodiagnóstico, o terapeuta deve ouvir atentamente o seu cliente,
o que se apresenta na sessão. Ao lado dele, compreender de forma
compartilhada e ativa os conflitos relatados, com devolutivas constantes, num
processo de co-construção espontânea e criativa de se relacionar.
O terapeuta deve se sentir livre e sem as amarras das conservas
impostas, muitas vezes, pela própria expectativa imaginária de resolver as
questões existenciais do cliente.
A relação télica, entre terapeuta e paciente, leva ao verdadeiro
encontro, um encontro de afetividade e de acolhimento com novas
possibilidades de um resignificar existencial, na busca do sentido: do sentido
enquanto terapeuta e do sentido enquanto cliente. Para Moreno (1993), a
troca entre pacientes e terapeutas é constante e recíproca, entrando em jogo a
espontaneidade natural de cada um.
REFERÊNCIAS
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ABORDAGEM CENTRADA NA
PESSOA
CAPÍTULO 8
O Que Eu Tenho, Doutora? - A Relevância do
Psicodiagnóstico Sob o Enfoque da Abordagem
Centrada na Pessoa
Priscila Camile Barioni Salgado
O convite para escrever este capítulo, que faz parte do segundo
volume da série “Psicologia para recém-formados”, foi recebido com muita
alegria, principalmente por saber que haverá a oportunidade de explorar
outros aspectos da prática clínica sob o olhar de diferentes abordagens.
No capítulo que escrevi no primeiro volume (SALGADO, 2015),
discorri sobre a prática clínica sob o olhar da Abordagem Centrada na Pessoa
(ACP). Nele, foi descrita a nossa visão de homem, os principais conceitos da
ACP, a teoria de um desenvolvimento saudável, a teoria do desajustamento
(desenvolvimento não-saudável) e as contribuições da prática
psicoterapêutica para o melhor ajustamento dos clientes.
A partir daquela leitura, já é possível perceber que a ACP parte de
uma premissa básica que é a tendência atualizante, ou seja, a crença plena de
que todo ser humano (aliás, todo ser vivo!) tem, inerente a si, recursos para se
autocompreender e se modificar em direções que promovam o seu
aperfeiçoamento.
Guardem isso! A compreensão e a concordância com o conceito de
tendência atualizante é crucial para o entendimento de como o ser humano se
desenvolve e também de como ele adoece.
O desenvolvimento humano ocorre por meio de um processo
dinâmico, ou seja, só acaba no dia em que morremos. Portanto, desde o dia
em que nascemos até o dia de nossa morte, estamos caminhando rumo à
melhor forma de ajustamento que somos capazes de atingir, considerando
nossa percepção dos vários obstáculos que encontramos em nossa história de
vida. Nesse sentido, dependendo de como a nossa vivência é percebida e
vivida, o nosso desenvolvimento pode ser mais ou menos desajustado em
diferentes fases da vida.
Bem, se falamos do desenvolvimento como um processo contínuo, é
claro que compreendemos que a psicopatologia – enquanto uma característica
estática e estruturada – não existe. Quando falamos em psicopatologia,
estamos compreendendo um ser humano que não está conseguindo fazer
escolhas autênticas e flexíveis no direcionamento de sua vida, o que o torna
incongruente, frágil e vulnerável.
Nesse momento de vulnerabilidade, suas escolhas estão direcionadas
a atualizar o seu self rígido e incongruente com o seu ser organísmico que
precisa distorcer ou negar qualquer percepção do mundo que seja contrária ao
seu autoconceito. A fim de continuamente atualizar o self, a pessoa utiliza
critérios condicionados ao amor e aceitação do outro, ao invés do seu eu
organísmico. Ou seja, a pessoa só percebe como sendo verdadeiro aquilo que
se encaixa no seu autoconceito. O self/autoconceito, por sua vez, desenvolve-
se de forma rígida, possibilitando apenas simbolizações de experiências que
estejam de acordo àquilo que foi valorizado positivamente e tenha
possibilitado aceitação das pessoas importantes em sua vida.
As experiências que estão de acordo com seu autoconceito passam a
ser simbolizadas corretamente em sua consciência. A simbolização de outras
experiências é distorcida ou interceptada, deixando de ser incorporada na
noção de eu. Dessa forma, se eu, por exemplo, tenho um self rígido de que
sou uma pessoa incapaz e incompetente, vou distorcer simbolicamente
qualquer experiência de sucesso que eu possa ter. Tais experiências serão
compreendidas como sorte, ou mérito de outras pessoas, mas nunca como
resultado de minha competência. Já as experiências de fracasso serão
integradas ao self e contribuirão para sua atualização. Estabelece-se com isso
um estado de incongruência entre o self e a experiência, causando
desajustamento e vulnerabilidade psicológicos. A personalidade se encontra
dividida e alienada de si mesmo. Por um lado, o autoconceito do indivíduo
passa a incluir percepções distorcidas que não representam com veracidade a
sua experiência. Por outro lado, a experiência real vivida pelo sujeito não se
encontra simbolizada em seu autoconceito.
Nesse estado de incongruência, o sujeito não consegue mais viver na
sua integralidade, pois ora seu comportamento é regulado pelo seu
autoconceito, e ora por experiências organísmicas que não têm sua
simbolização incluída nele. Essa incongruência também cria uma divergência
na tendência atualizante, que em alguns momentos irá atualizar as
necessidades do self e em outros as do organismo. Com isso, o indivíduo
passa a ter comportamentos incompreensíveis e divergentes. Essa
incongruência que vulnerabiliza o indivíduo representa o seu adoecimento
psíquico. Assim, de forma bem geral e em poucas palavras, podemos
começar a compreender o processo de adoecer humano.
No entanto, vocês podem estar se perguntando: “se acreditamos na
tendência atualizante, e a mesma descreve a tendência ao aperfeiçoamento
humano, onde entra o adoecimento?” Acho importante que tenhamos claro
que desenvolvimento e aperfeiçoamento não são contrários a sofrimento e
adoecimento. O processo de desenvolvimento inclui diversas fases e desafios
que ocorrem de forma desordenada e até simultânea. Nem sempre
funcionamos de forma ajustada, e também nem sempre fazemos escolhas
desajustadas.
Falar sobre o adoecer psíquico nos leva a pensar sobre o conceito de
psicopatologia e as formas de diagnóstico empregadas para esse
conhecimento. Por isso, é importante que, antes de qualquer coisa, possamos
nos situar historicamente sobre o processo de construção da compreensão do
adoecer psíquico e do psicodiagnóstico como um instrumento para essa
compreensão.
O conhecimento da psique como sendo algo situado além do corpo
data dos estudos do criador da Psicanálise, Sigmund Freud. Na condição de
neurologista, passou a observar que, em algumas das pacientes que atendia,
havia algo que não podia ser explicado pela ciência médica: algo fruto da
mente delas, ao invés dos seus corpos, que demandava uma ciência de outro
tipo para ser estudado. Apesar de a concepção de um corpo separado da
mente ser algo bem anterior a Freud – os pensadores gregos já falavam de
corpo e alma como entidades distintas – foi a Psicanálise de Freud que
buscou uma maneira científica de explicar a mente humana.
Se estamos empregando uma explicação originada do conhecimento
médico, é óbvio que parte da explicação do fenômeno é construída a partir da
doença. Portanto, enquanto médicos diagnosticavam enfermidades do corpo,
psicólogos passaram a buscar, através do psicodiagnóstico, a causa dos
sintomas psíquicos.
Esse movimento foi necessário para a Psicologia ser reconhecida
como uma nova ciência. Na época da construção da Psicologia, a prática do
psicodiagnóstico exigia objetividade e a utilização de métodos quantitativos
de medição de sintomas. Os sintomas precisavam ser observados e
mensurados para resultar em dados confiáveis. Foi nesse contexto que o
Behaviorismo desenvolveu sua teoria da análise do comportamento.
O desenvolvimento da Psicanálise de Freud trouxe uma visão
determinista ao psicodiagnóstico, que buscava na estória passada do sujeito a
explicação que determinava os sintomas presentes.
A abordagem humanista, surgida mais recentemente, na década de 50,
trouxe uma nova contribuição à Psicologia ao buscar compreender os então
chamados “sintomas” a partir da vivência atual do sujeito, buscando
compreender o sentido das experiências vivenciadas por ele. Sintomas
deixam de ser explicados como uma expressão comportamental de algo que
aflige a mente e passam a ser compreendidos como parte constituinte do
sujeito na sua forma de perceber e viver no mundo.
Este é o olhar que adotamos dentro da ACP: nos importa mais a
compreensão dos significados das experiências do sujeito, do que a busca de
sintomas ou classificações psicopatológicas. Isso não quer dizer que partimos
do princípio de que a psicopatologia não existe, apenas olhamos o sujeito a
partir de um outro prisma. É sob esse novo prisma que tratamos da relevância
do psicodiagnóstico no olhar da ACP.
Certa vez, conversando com uma colega psicanalista, ela comentou o
quanto as pessoas estão doentes e o quanto estava aparecendo pessoas com
sérias patologias em seu consultório. Essa fala me soou estranha, porque, no
meu consultório, atendo pessoas que entendo serem saudáveis, embora vivam
experiências de forma inautêntica. Ficamos pensando o que poderia ocasionar
essa diferença de “clientela”. Talvez fosse pelos encaminhamentos que ela
recebe de psiquiatras, e eu não. Essa seria uma hipótese a ser considerada.
Porém, acredito que seja mais uma diferença de olhar quando nos
debruçamos à prática clínica. A ACP favorece um olhar que facilita o
desenvolvimento saudável do sujeito. Nesse olhar, as potencialidades
importam muito mais do que as dificuldades.
Rogers, durante toda sua obra, não desenvolveu um estudo específico
acerca das doenças mentais. Seu enfoque sempre foi a compreensão do que
seria uma relação de pessoa para pessoa, aquela relação que Martin Buber
chamou de eu-tu (BUBER, 2012). Uma relação que considerasse o cliente em
sua totalidade sem a necessidade de enquadrá-lo em classificações
diagnósticas.
O adoecimento é, portanto, parte da dimensão existencial do ser
humano. Uma parte de si que se relaciona consigo mesmo e com o mundo à
sua volta de forma incongruente e inautêntica. Como vivemos em eterno
processo de construção e desenvolvimento, experiências inautênticas também
fazem parte de nós, assim como experiências autênticas. A situação passa a
ser considerada um problema quando a falta de congruência frente à vida leva
ao sofrimento psíquico.
A incongruência é, portanto, a única fonte para qualquer
psicopatologia, ou seja, para qualquer desajustamento. O que estou tentando
mostrar é que, qualquer que seja a forma ou comportamento na condição de
desajuste que se manifeste, sempre devemos buscar sua causa naquilo que é
incongruente na existência do ser. Acharemos então os significados que
existem por detrás desses comportamentos e as motivações que os atualizam
de forma incongruente.
Os transtornos mentais são compreendidos pela ACP como uma
condição de existência adoecida, o que ultrapassa o modelo bipolar entre
saúde ou doença, normalidade ou patologia.
O olhar da ACP, proposta por Rogers, trouxe um modelo alternativo
ao modelo médico de explicação psicodiagnóstica vigente na época. A partir
desse novo olhar, outras abordagens e teorias adaptaram seus conceitos de
doença e saúde e passaram a compreender o ser humano de formas que não
reduzem ou coisificam o cliente a um mero conjunto de sintomas.
Olhar o ser humano como um ser cindido entre corpo ou mente,
saudável ou doente deve ser coisa do passado. Se ainda não é por completo,
deveria ser! Rogers relata muito bem no texto “Ellen West - a solidão”
(ROGERS, 1977) quais seriam as consequências do psicodiagnóstico que
rotula e coisifica a existência humana. Ao descrever a estória de Ellen West,
Rogers relata como que a passagem por diferentes médicos e diferentes
psicodiagnósticos fizeram com que ela se distanciasse cada vez mais de seu
ser organísmico. Os diagnósticos não possibilitaram que Ellen se sentisse
compreendida; muito pelo contrário: a coisificaram como algo sem valor.
A ACP reluta em trabalhar com a linguagem psiquiátrica de quadros
psicopatológicos. Ela rompe com o modelo classificatório que compreende a
doença como um objeto a ser tratado. Ao invés disso, busca compreender
qual o lugar que o sujeito ocupa ao viver uma vida desajustada a si mesmo e
ao mundo à sua volta. A pessoa é uma entidade única, não podendo ser
compreendida em dimensões distintas de saúde e doença. Por isso, o
psicodiagnóstico, no seu enquadre de conhecimento e explicação de sintomas
psíquicos e da natureza das causas dos mesmos, não existe na prática clínica
da ACP.
Falar isso não significa que entendemos que o psicodiagnóstico não
seja uma prática psicológica importante para determinados recortes. Ele
somente não tem razão de existir dentro dos preceitos da ACP, como Rogers
exemplificou no caso de Ellen West (ROGERS, 1977).
Se o motivo pelo qual digo que o psicodiagnóstico não tem razão de
existir dentro da prática clínica da ACP ainda não ficaram claros para você,
podemos pensar no que um psicodiagnóstico implica. Em primeiro lugar,
para haver psicodiagnóstico, precisa haver uma psicopatologia, certo?
Depois, precisa haver algo que a anteceda, que determine a existência dela,
isto é, uma causa que possa ser determinada a partir do ato de diagnosticar. A
possibilidade de psicodiagnóstico implica também na possibilidade de
tratamento e controle das causas e sintomas. Por fim, o psicodiagnóstico
implica que exista alguém que tenha autoridade de diagnosticar e tratar aquilo
que torna o homem doente, concorda?
Certo. Vamos então refletir sobre cada um desses pontos a luz da
ACP. O meu intuito é que você seja capaz de perceber a irrelevância do
psicodiagnóstico dentro dessa abordagem. Se além disso, você perceber o
quanto ele pode, muitas vezes, ter um caráter devastador no processo de
desenvolvimento humano, eu terei atingido plenamente o meu objetivo!
Bom, vamos lá! O primeiro ponto que salientamos é a necessidade da
existência de uma psicopatologia naquele que se submete ao
psicodiagnóstico. Já falamos que não compreendemos o ser humano a partir
de qualquer denominação de psicopatologia. A partir de sua tendência
atualizante, esse ser sempre tenderá para formas de aperfeiçoamento de seu
ser. O que ocorre é que as formas que ele busca nem sempre são as melhores,
ou as que promovem maior ajustamento de seu ser organísmico. Portanto, ao
invés de olhar para a psicopatologia, Rogers sempre buscou estudar quais
seriam as formas de possibilitar ao ser humano maneiras mais ajustadas de
desenvolvimento. A simples explicação da psicopatologia serve apenas para
reduzir a existência do sujeito a um conjunto de sintomas previamente
estabelecidos e classificados segundo critérios populacionais gerais, que,
muitas vezes, não têm qualquer sentido para a pessoa que os sofre.
Nossa visão de homem como um ser integrado, sem divisão entre seu
ser individual e seu ser mundano, que possui na sua essência a motivação
constante de se atualizar, tornando-se cada vez mais integrado, mais
organizado e mais autônomo, que está sempre se projetando, escolhendo,
crescendo, transformando e desenvolvendo, não se adequa à visão estanque
de uma classificação psicodiagnóstica que identifica uma patologia ou doença
nesse contínuo processo de transformação.
Vamos ao segundo ponto. O ato de diagnosticar implica na existência
de algo que antecede, que determina a existência da psicopatologia, ou seja,
uma causa que possa ser determinada. A pergunta, para nós, soaria da
seguinte forma: “Qual é a causa do desajustamento que vive o sujeito?”. O
problema aqui é que não há uma única causa ou algumas causas que
antecedem o desenvolvimento do sintoma, ou da forma de vida desajustada.
A causa, se é que podemos chamar assim, é a maneira pela qual o sujeito
percebe e dá significado à toda a sua existência. Ou seja, a “causa” é a
própria existência do sujeito: é a sua forma inautêntica e incongruente de
vida. Toda a sua existência está relacionada à sua forma de ser. Como
diagnosticar uma existência?
Um terceiro ponto a ser considerado é o de que a possibilidade de
diagnóstico implica na possibilidade de tratamento e controle das causas e
sintomas. Vamos supor (ainda que acreditemos o contrário!) que o
psicodiagnóstico acurado do sofrimento psíquico fosse algo viável e possível.
O que faríamos com ele? De que forma ele poderia nos ajudar? Deveríamos
falar ao sujeito sobre seu psicodiagnóstico? Isso o ajudaria? A meu ver,
precipitar ao sujeito suas áreas de conflito e vulnerabilidade apenas
aumentaria seu sentimento de ameaça e a sua resistência de perceber a sua
existência a partir de outras formas. Quando o cliente encontra dificuldade
em se relacionar de forma autêntica consigo e/ou com o mundo, busca formas
que entendem serem as melhores dentre as suas possibilidades. Apontar que
ele está “fazendo errado” sem compreender empaticamente as razões pelas
quais passou a perceber os fenômenos de determinada maneira – ainda que
ela seja uma maneira que gera mais incongruência em sua vida – não irá
ajudá-lo em nada. Apenas o próprio cliente pode decidir o momento em que
se sente capaz de suportar o sofrimento de suas vivências e pode de fato
decidir o que fazer com elas.
O tratamento de sintomas, ou melhor dizendo, a abertura de
consciência para uma forma mais ajustada de vida se dá em um processo
vivencial, e não racional. A mudança só ocorre se experimentada como uma
mudança de percepção. Nesse sentido, o processo psicoterapêutico é em si,
em sua totalidade, um processo de psicodiagnóstico, feito processualmente
pelo próprio cliente. Ao tomar consciência de percepções distorcidas e
substituí-las por percepções mais adequadas e saudáveis, o cliente está
traçando o seu próprio psicodiagnóstico e tratamento.
Chegamos, então, ao último ponto de implicação do ato de
diagnosticar. O psicodiagnóstico implica que existe alguém com autoridade
para diagnosticar e tratar aquilo que torna o homem doente. Esse alguém, no
caso o psicólogo, deveria deter o saber da ciência Psi para dizer àquele que
busca ajuda qual é a razão de seu sofrimento. E aí eu pergunto: “Você acha
mesmo que pode compreender a existência de outro ser humano mais ou
melhor do que ele mesmo a compreende?”. Para mim, parece que esse
“superpoder” foi necessário na construção da Psicologia como ciência e
profissão. Hoje, porém, podemos nós ter o privilégio de estar com o cliente
de pessoa para pessoa, e, com isso, realmente ajudá-lo.
Só o próprio cliente pode conhecer por completo as suas percepções.
Só ele pode dizer sobre si de forma acurada, ainda que vivendo em um
mundo de contradições e de incongruências. O conhecimento racional de si,
promovido pelo psicólogo que “diz quem ele é” não pode ser substituído pela
compreensão vivencial de seu ser organísmico.
O papel do psicólogo é, portanto, criar condições para que o cliente
possa perceber o mundo e a si, de forma mais flexível e aberta possível e,
com isso, ser seu próprio “psicodiagnosticador” e “tratador”. É claro que essa
visão exige do psicólogo um mergulho em si próprio para que se torne cada
vez mais capaz de propiciar esse ambiente facilitador, sendo congruente,
empático e aceitando o outro incondicionalmente.
Vale ressaltar, também, que essa visão muitas vezes dificulta a nossa
relação com a equipe médica, que busca formas deterministas e específicas
para explicar o comportamento humano. Nosso linguajar é outro, assim como
nossa forma de compreender a existência saudável ou adoecida.
Não posso deixar de salientar que o psicodiagnóstico se faz necessário
em diversos contextos de avaliação psicológica, inclusive no cenário de
pesquisa científica que promove a construção e crescimento da Psicologia. A
reticência que encontramos na ação psicodiagnóstica é quando ela adota a
prepotência do saber médico sobre a existência do ser que está sendo
avaliado.
Rogers sempre compreendeu o ser humano a partir de suas
potencialidades. Transtornos severos não eram alvos de sua observação e ele
nunca trabalhou em hospitais psiquiátricos para desenvolver sua teoria.
Talvez essa vivência tivesse propiciado um olhar diferente para a
psicopatologia na ACP, mas, certamente não para o psicodiagnóstico como
um instrumento de categorização e rotulação da existência humana.
Na ACP, a saúde é expressa em um comportamento livre,
espontâneo, autêntico e fluído. A patologia, por sua vez, aparece na
cristalização de uma mesma atitude diante de qualquer experiência. O
sintoma é o resultado dessa cristalização, é sinal de incongruência e remete a
significados que possibilitam compreender a existência da pessoa.
O processo psicoterapêutico busca esses significados e sua
ressignificação. Não é possível simplesmente eliminar sintomas, pois eles
foram desenvolvidos pelo próprio organismo com a função de ajustamento do
mesmo. O importante é compreender o significado daquilo que gera o
sintoma. O homem, portanto, não tem sintoma, ele é o sintoma. É através do
sintoma que, muitas vezes, a pessoa encontra a única forma de ser no mundo.
A ressignificação dos sintomas ocorrerá somente quando eles forem
verdadeiramente trazidos e aceitos na consciência. Essa aceitação é facilitada
na medida em que o terapeuta aceita incondicionalmente seu cliente, sem
qualquer juízo de valor. No processo, a pessoa sente-se aceita em ser como é,
não precisando ajustar-se de forma incongruente para se perceber
reconhecida. Inicia-se então, um processo de desenvolvimento saudável.
REFERÊNCIAS
BUBER, M. Eu e tu. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SALGADO, P.C. Contextualizando a prática clínica sob o enfoque da
abordagem centrada na pessoa. In: Gláucia Telles Sales. (Org.). Clínica de
psicologia para recém-formados. 1 ed. Campinas: [s.n.], Kindle Edition,
2015.
ROGERS, C. Ellen West - a solidão. In: _______. A pessoa como centro. São
Paulo: EPU, 1977.
CONTEXTO SOCIAL
CAPÍTULO 9
A Intervenção da Psicologia no Contexto das
Políticas Públicas: Psicodiagnóstico e Avaliação
Diagnóstica da Ação Técnica em Equipe
Multiprofissional
Rita de Cássia Oliveira Assunção
O convite para escrever um texto que contribua com a prática
profissional de recém-formados vem ao encontro de inquietações que
vivencio na prática cotidiana, enquanto psicóloga inserida em serviço
público, cujo objetivo é viabilizar o acesso a direitos sociais por meio de
atendimento multiprofissional, e que suscita constante reflexão por parte da
equipe técnica.
A Psicologia, enquanto ciência e campo de conhecimento, tem muito
a contribuir com referenciais teóricos-técnicos e vem se inserindo em
diferentes áreas de atuação das políticas públicas no setor da Saúde, da
Assistência Social, da Educação, do Esporte, dentre outras. Dessa forma,
psicólogas e psicólogos estão sendo cada vez mais cobrados a ampliar a
forma de atuação e trazer à reflexão as exigências atuais postas aos
profissionais envolvidos na construção de novas práticas e formas de atuação
multiprofissional, cujo trabalho extrapola o âmbito individual, e de maneiras
tais que mantém a identidade profissional dos psicólogos envolvidos.
A forma de intervenção da Psicologia nesses contextos se difere do
modelo ao qual estamos acostumados a pensar essa intervenção: ela se
distancia do campo individual e do diagnóstico que define o terreno que
diferencia a saúde da doença e avança na busca da compreensão diagnóstica
que afeta planos coletivos. Igualmente, essa atuação aponta caminhos de
construção de possíveis meios de atuação diferente da clínica individual sem,
no entanto, abandonar o conhecimento psicológico.
Enquanto o processo psicodiagnóstico se caracteriza na investigação
objetiva para levantar aspectos psicológicos de um caso individual, no âmbito
da atuação social, o exercício cotidiano é buscar formas de aliar esse
conhecimento psicológico do psicodiagnóstico como uma ferramenta de
trabalho que viabilize uma compreensão de âmbito coletivo.
O processo psicodiagnóstico configura uma situação de duas pessoas
envolvidas e com papéis bem definidos. Contudo, o novo lugar de
intervenção, do qual venho falando, já não conta com papéis e participantes
tão delimitados. Isso abre caminho para que seja considerado que o processo
de investigação e de construção de diagnóstico abandone esse lugar comum à
Psicologia e se abra para uma frente de configuração inovadora em que a
posição de centralidade da figura do analista sai de cena e passa a ser
ocupado por uma equipe que, por meio do seu método de trabalho, precisa
manter a sua capacidade de investigação para subsidiar a intervenção
necessária.
Nessa nova perspectiva, muda-se o contexto no qual surgem novas
possibilidades de atores envolvidos no espaço de intervenção psicológica.
Temos a presença de equipes multidisciplinares, compostas de profissionais
variados, igualmente visando intervenção psicossocial. No entanto, não é
revogada a compreensão sobre sujeitos, mas que, dessa forma, são
contemplados dentro de uma coletividade e partilhando de fenômenos sociais
que apresentam a necessidade de um processo investigativo compreensivo
desses contextos e da necessidade de construir estratégias interventivas nas
quais a Psicologia não atua mais enquanto uma ciência isolada, mas integrada
com o objetivo último de viabilizar a percepção do sujeito interagindo com o
meio, afetando e sendo afetado por ele, compondo uma totalidade de ser.
O processo psicodiagnóstico, enriquecido de novos instrumentais,
ganha densidade em: entrevista objetivando a inserção do sujeito em serviços,
programas, benefícios sociais e projetos de políticas públicas, entrevistas de
acolhimento específicas para inserção no atendimento em serviços públicos,
preenchimento de cadastro social, dentre outros.
O processo de construção dessa nova forma e lugar de fazer da
Psicologia envolve muitas dúvidas e exige um profissional questionador
sobre suas práticas. Por vezes, observa-se uma não identificação com o
campo das políticas sociais, sendo que isso ocorre pelo entendimento de que
a Psicologia, enquanto ciência, estaria ligada apenas à área da saúde.
Portanto, é preciso romper com isso que está instituído no imaginário do
profissional psicólogo e aceitar o desafio de se ajustar o olhar ao próprio
campo de atuação – que oferece um cabedal próprio de conhecimento – e ser
capaz de assimilar diversas noções trazidas por autores variados, que
configuraram a Psicologia como contributiva no desvelar de fenômenos além
do indivíduo, ampliando-a para o âmbito social. Tudo isso requer formas
ampliadas de intervenção da Psicologia, que permitam o lançar mão de
estratégias de construção de dispositivos sociais promotores de transformação
de qualidade de vida e direcionados ao rompimento com processos de
adoecimento, ou seja, de práticas que configuram uma atenção de qualidade
psicossocial.
À Psicologia também se pede que emita parecer sobre quadros e
situações, uma vez que no atendimento vinculado a serviços ofertados em
políticas públicas – como é o caso da assistência social e da saúde – os
profissionais são solicitados a fornecer informações sobre os casos em
acompanhamento. É necessária a compreensão da necessidade de uma
prestação de serviço ofertada com clareza do atendimento pretendido e da
relação a ser estabelecida com o outro dentro desses espaços. Isso é que irá
determinar a forma de atuação.
Na relação com o sujeito atendido anteriormente, o procedimento
adotado pela Psicologia era o de manter um distanciamento, uma forma de
prática enraizada no modelo médico, cuja atuação se concentrava nos
serviços de saúde por meio de atendimentos individualizados.
O processo psicodiagnóstico não se insere mais apenas como um
coadjuvante cuja finalidade é a proposição de uma psicoterapia. Pelo
contrário, ele se apresenta como fundamental ao levantamento de
informações sobre o sujeito, como meio de aprofundamento do entendimento
da demanda e levantamento dos aspectos passados e da situação presente.
Isto é, ele é importante para ampliar a compreensão sobre aquilo no qual se
pretende intervir. É a partir disso que é possível definir o melhor
enquadramento da situação-problema e a melhor abordagem dela. A partir da
avaliação diagnóstica, se identifica os elementos presentes a fim de traçar a
forma como a equipe irá conduzir a intervenção e como será a atuação de
cada profissional. Tendo feito isso, também é importante que o profissional
se mantenha aberto para rever a sua conduta e refazê-la, para melhor atender
as exigências, que são sempre mutáveis.
A Psicologia oferece o escopo necessário para contribuir no trabalho
construído em equipe ao permitir a análise e a reflexão frente à situação-
problema, bem como a tomada de decisão para promover ações de atenção,
proteção e prevenção. No entanto, para fazer uma avaliação diagnóstica,
torna-se necessária a apropriação dessa informação.
O trabalho no campo social deve incorporar outras ações e integrar
diferentes práticas e linguagens com o intuito de aprofundar a compreensão
sobre o que se pretende intervir. É importante observar que a subjetividade é
parte do mundo interno, mas também está presente em todas as formas de
relações; ou seja, é a partir de como se dá a experiência internamente, que se
configura as relações de um sujeito com o outro. Isso equivale a dizer que
esse é um campo fértil para a inserção e a atuação da Psicologia, pois os
sujeitos são constituídos a partir de dimensões tanto subjetivas como
objetivas.
É preciso desconstruir a noção de a prática clínica ser a norteadora da
atuação psicológica por oferecer escuta de aspectos subjetivos. Mesmo em
situações diferentes da clínica, é possível fazer uma avaliação diagnóstica
sobre outras bases e outros elementos capazes de definir quais as estratégias
possíveis que permitem levantar as informações necessárias para diagnosticar
e definir as ações. Por exemplo, uma abordagem consistente seria não se ater
apenas à situação-problema apresentada, mas superá-la oferecendo
possibilidades para o sujeito realizar uma transformação individual.
Em nossa atuação cotidiana, lidamos com fenômenos complexos
multifacetados que exigem uma leitura profissional ampliada, enriquecida
com diversos tipos de conhecimento e, consequentemente, meios variados de
intervenção. Nesse sentido, a utilização de uma abordagem tradicionalmente
dicotômica e desvinculada da consideração de um contexto mais amplo dos
sujeitos e das situações pode levar a efeitos sociais perversos, como aquela
que constrói percepção na qual se busca identificar responsáveis. Ao invés
disso, seria recomendável um olhar mais atento que contemple histórias
individuais se entrelaçando com efeitos de vivências sociais que condicionam
a real natureza dos traumas. Isso pode ser descrito assim porque se considera
que o sujeito não se constitui apenas de seu mundo interno, mas também de
interferências externas.
No psicodiagnóstico, os novos modelos e as novas formas rompem a
dicotomia indivíduo-sociedade e incluem a perspectiva da vivencia concreta
dos sujeitos. É um psicodiagnóstico ampliado, que se vale de meios diversos
diferente da aplicação de testes, com uma escuta local na entrevista, mas que
se expande para outros contextos de vivência e, por fim, sem a intenção única
de fazer uma intervenção psicoterapêutica, ainda que essa possa estar
contemplada na intervenção.
Outro ponto importante a ser considerado é o de que, no atendimento
feito em serviços públicos, o sujeito não busca obrigatoriamente um
atendimento psicológico. Na maioria dos casos, ele busca ser atendido e tem
uma demanda pontual e específica ao campo no qual o serviço se insere. Ao
interagir com esse indivíduo, os psicólogos identificam que a primeira
necessidade é o estabelecimento de um vínculo que permita a continuidade e,
embora se esteja dando início a um processo de avaliação, que seja possível
identificar o início de uma intervenção. Essa característica já difere do
modelo tradicional de psicodiagnóstico que, normalmente, precede a atuação
psicoterapêutica.
Segundo Ancona-Lopez (1995), ao assumir uma postura investigativa,
o profissional se aproximando do lugar de um observador imparcial, o
processo psicodiagnóstico perde seu sentido para o outro, indo mais além ao
afirmar que em toda atuação psicológica está compreendida a ação de
intervenção peculiar ao momento vivido onde seu significado se estabelece.
A entrevista consiste em importante ferramenta de levantamento de
informações, de contato e de estabelecimento de vínculo inicial, necessário
para a continuidade do processo investigativo e processo de acompanhamento
de caso. Envolve a coleta de dados, assim como outras formas de
intervenções presentes no momento inicial da inserção do sujeito em um
processo de acompanhamento mais estreito e sistemático dentro do serviço
onde ocorre o atendimento.
Temos um lugar cuja prática força o abandono da utópica postura de
neutralidade e distanciamento, uma vez que se objetiva uma intervenção
profissional para atender a demanda inicial e também a ressignificação dessa
demanda que poderá ganhar um sentido de busca do indivíduo. Isto é,
pretende-se abrir um espaço de reflexão sobre o que originou aquela
demanda, qual o contexto mais amplo subjacente a ela, por exemplo. Para
tanto, exige-se a percepção de uma relação de confiança naquele espaço
suscitador de segurança e favorecedor de continuidade. É preciso trazer o
individuo para uma ação co-participativa no processo.
Nessa forma de processo psicodiagnóstico, nos deparamos com um
contexto que exige de psicólogos o partilhar de percepções e conhecimento
com aquele que atende e também com outros profissionais envolvidos na
manutenção de uma escuta cuidadosa e, ao mesmo tempo, aberta. Nesse
contexto, o psicodiagnóstico pode ser capaz de levar a pessoa à reflexão e à
percepção de si própria, considerando o que lhe cerca, as interferências com
as quais se depara e a sua maneira de interagir. Dessa forma, é possível se
abrir para uma nova imagem de si e descortinar o novo.
É preciso abandonar práticas engessadas para que seja possível se
abrir para o novo, atendo-se ao que se apresenta no real do cotidiano de
trabalho, vislumbrando possibilidades mais amplas que objetivam uma escuta
cuidadosa, atenta ao sofrimento que não se origina de uma causa única e sem
querer identificar um responsável pela sua existência.
Enfoca-se compreender por quais formas cada indivíduo se constituiu
internamente e os fatores externos associados, determinando uma forma de se
relacionar com o outro e os mundos internos que se multiplicam derivados
disso. É nesse esforço de compreensão que se estabelece efetivamente um
processo psicodiagnóstico com o caráter de uma investigação que não se
encerra em si mesmo, mas que traduz um dado momento de vida do sujeito.
É importante a compreensão de que a Psicologia advém de um campo
da ciência e se insere nas políticas públicas; deve constituir uma prática que
considere o contexto social de sujeitos e coletivos e possa, nesse lugar,
apresentar a interface da Psicologia, considerando a intervenção psicossocial
em equipe multiprofissional.
Considerações Finais
Tendo como base os caminhos percorridos em minha prática
profissional, posso apontar que profissionais de outras áreas afins
contribuíram para a constituição de minha forma de atuação, que sempre foi
em políticas públicas no campo da Assistência Social e no trabalho em
equipe multiprofissional. Isso favoreceu para busca de um aprofundamento
em referenciais teóricos da Psicologia comprometidos com uma escuta
ampliada e uma intervenção que leva em conta as transformações sociais,
exigindo dos profissionais estratégias interventivas renovadas e afeitas à
especificidade desse campo de conhecimento.
É possível afirmar que a Psicologia nem se distancia nem perde de
seu referencial; nós, psicólogos, não perdemos nossa identidade profissional,
e se ampliam as possibilidades de atendimento às demandas sociais. Isso se
concretiza em ações profissionais de escuta atenta, que atribui novos e
diferentes valores àquilo trazido pelo outro e contribui para o desvelamento
daquilo que não pode ser compreendido apenas na ordem do individual;
reflete, ainda, contextos maiores marcados por aspectos culturais, históricos e
sociais, além do subjetivo.
Por isso, o processo psicodiagnóstico não se perde; ele se reescreve
com mais plasticidade na definição de estratégias pautadas muito mais na
viabilização de variados espaços e formas de expressão, do que propriamente
o desenvolvimento de procedimentos.
As reflexões que trouxe têm apoio no novo lugar que a Psicologia
ocupa na sociedade e no compromisso que ela tem de ser uma ciência com
participação no processo de mudança de indivíduos e de coletivos, pela
identificação de percepções que definem as relações e a subjetividade que
dessas se originam.
Dessa forma, as contribuições apresentadas aqui expressam uma
breve reflexão sobre o tema e apresentam alguns elementos que apontam para
a necessidade de se aprofundar o estudo, assim como a importância de
constituir processos de constante reflexão sobre a ação e o espaço onde essas
ocorrem, de maneira a considerar a necessidade de adequação aos contextos.
Não se trata aqui de apresentar como realizar, mas de se atentar que lidamos
com sujeitos que apresentam demandas que exigem detida atenção, com
novos elementos que integram o cenário. O trabalho na atualidade se
desenvolve em parceria com outros profissionais.
Trata-se aqui de refletir sobre os desafios postos à Psicologia
enquanto ciência que se insere em contextos de trabalho multiprofissional
para oferta de atendimento qualificado em serviços, projetos e programas
vinculados a políticas públicas. Esse trabalho contribui para ressignificação
do fazer técnico dos profissionais envolvidos na construção de estratégias de
intervenção que rompem com a fragmentação do trabalho e da compreensão
de sujeitos e suas relações. Isso implica em processo de transformação da
Psicologia que deve ser continuo e atento às mudanças da sociedade, assim
como aponta para a necessidade de aprimoramento constante dos
profissionais. Compreendo que é nesse lugar e com essas exigências que se
desenvolve o processo psicodiagnóstico.
REFERÊNCIAS
ANCONA-LOPES, S.. Psicodiagnóstico: processo de intervenção. In:
_______ (Org.), Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo:
Cortez, p. 09-36, 1995.
OCAMPO, M. L. S., ARZENO, M. E. G., PICCOLO, E. G. et. al. (1979). O
processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. São Paulo: Martins
Fontes, 1985.