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MODULO l - Fundamentos

Estratégias de avaliação:
perspectivas em psicologia clínica
Jurema Alcides Cunha

A s sementes da avaliação psicológica, que


hoje constitui uma das funções do psicó-
logo, foram lançadas numa fase que abrangeu
damentalmente influenciada, durante o sécu-
lo XX, pelas principais correntes de pensamen-
to que salientaram, cada uma, a primazia do
o fim do século XIX e o início do século XX, comportamento, do afeto e da cognição, na
época que marcou a inauguração do uso dos organização e no funcionamento do psiquis-
testes psicológicos. Historicamente, portanto, mo humano.
justifica-se a imagem que o leigo formou do Na primeira metade do século XX, predo-
psicólogo, como um profissional que usa tes- minaram "conceituações comportamentais e
tes, já que principalmente testólogo é o que psicanalíticas", enquanto a segunda metade foi
ele foi, na primeira metade do século XX (Gro- assinalada pela chamada "revolução cogniti-
th-Marnat, 1999). Atualmente, o psicólogo uti- va" (Mahoney, 1993, p.8).
liza estratégias de avaliação psicológica, com A tais linhas de pensamento corresponde-
objetivos bem definidos, para encontrar res- ram, originariamente, estratégias de avaliação
postas a questões propostas com vistas à solu- específicas, isto é, métodos e instrumentos tí-
ção de problemas. A testagem pode ser um picos. Mas, já nas últimas décadas, foi toman-
passo importante do processo, mas constitui do corpo uma tendência para a integração, que
apenas um dos recursos de avaliação possíveis. já vinha se esboçando há algum tempo. Desse
Psicodiagnóstico é uma avaliação psicológica, modo, a estratégia da avaliação comportamen-
feita com propósitos clínicos; portanto, não tal foi abdicando da simples identificação de
abarca todos os modelos de avaliação psicoló- comportamentos-alvo, perfeitamente distin-
gica de diferenças individuais (Cunha et alii, guíveis e observáveis, mas numa abordagem
1993; Cunha, 1996). muito idiossincrásica, para começar a incorpo-
Estratégias de avaliação psicológica, como rar modalidades cognitivas e, mesmo, afetivas,
expressão cada vez mais utilizada na literatura apesar das fortes objeções iniciais. Por outro
específica, aplicam-se a uma variedade de abor- lado, até psicólogos da mais tradicional orien-
dagens e recursos à disposição do psicólogo tação dinâmica têm, muitas vezes, recorrido a
no processo de avaliação. estratégias de outra orientação conceituai,
Em primeiro lugar, estratégia de avaliação devido a razões práticas ou científicas, neste
pode-se referir ao enfoque teórico adotado caso, por vezes, pressionados por membros da
pelo psicólogo. A avaliação psicológica foi fun- comunidade académica para serem mais efi-

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cientes, com menos tempo e custo. Também, Goldstein e Hersen (1990) apresentam a en-
profissionais com referencial cognitivo passa- trevista como um exemplo característico desse
ram a lançar mão de técnicas projetivas para tipo de movimento. Historicamente, como o
entendimento de motivações pessoais e de método mais antigo, individualizado e, portan-
outros aspectos idiossincrásicos (Piotrowski & to, não-estruturado, utilizado por psicólogos,
Keller, 1984) e igualmente incorporaram avan- psiquiatras e por seus predecessores, foi con-
ços do campo da neurociência (Mahoney, 1993). siderado não-fidedigno, já em 1967, por Zu- T . _ . . -

Tal tendência a mesclar estratégias de dife- bin, ao analisar a concordância entre avaliado- -
rentes abordagens teóricas pode ser conside- res em entrevistas psiquiátricas. Não obstan-
rada positiva como um recurso científico de nos te, sob a influência de tendências científicas, ::
aproximarmos de nosso objeto de estudo, para que incentivavam o uso de critérios mais obje- •BB necessárias |
explicar aspectos clinicamente relevantes. Po- tivos, a entrevista voltou a ganhar seu status mormer
rém, como salienta Gabbard (1998), "para al- na psiquiatria, num formato estruturado, com : : : :_;:•
guns clínicos, o desvio de uma perspectiva te- propriedades psicométricas bem estabelecidas
órica para outra, dependendo das necessida- e refletindo avanços recentes. Ias casos sorr
des do paciente, pode ser embaraçoso e difícil Assim, no momento em que a ciência e o T : : r:: : -
de manejar", e, a propósito, lembra que Wal- mercado tornaram acessíveis vários tipos de en- científi
lerstein, em 1988, "assinalou que é possível trevistas estruturadas, no campo da psiquia- í disso, nas cl
para os clínicos prestarem atenção ao fenóme- tria, tal estratégia pareceu sobrepor-se, quan- i regras de exc
no clínico descrito através de cada perspectiva to à sua utilidade, em relação a qualquer mé- ia uma consid
teórica, sem adotar o modelo metapsicológico todo da psicologia, objetivo ou projetivo. As • ::-: I ' . : - ' : :
completo". Ainda comenta que Cooper, em considerações levantadas, em princípio, foram Um dos proble
1977, propugnou por maior flexibilidade teó- absolutamente lógicas, pois, se pensarmos que, com transtornos i
rica, afirmando que "diferentes pacientes e uma vez que a entrevista psiquiátrica tem sido incidência mais 1
categorias diagnosticas sugerem diferentes utilizada como critério externo para a valida- uma posição hi(
modelos teóricos" (p.57). ção de testes, é claro que a entrevista terá prio- transtorno de d<
Outro emprego da expressão estratégia de ridade, "quando se pode usar igualmente, de (AFÃ, 1980), e, t
avaliação se refere à metodologia adotada pelo preferência o próprio critério de medida do que critérios diagnósl
psicólogo. Numa avaliação com propósitos clí- o teste" (Goldstein & Hersen, 1990, p.5). Po- tomo de ansiedac
nicos, por exemplo, é possível usar métodos rém, embora a entrevista estruturada tenha como diagnósticc
mais individualizados ou qualitativos ou, ain- boas características psicométricas, a questão dição de co-morb
da, métodos psicométricos, em que o manejo diagnostica, ainda que em situação melhor, o episódio de de
se fundamenta em normas de grupos. A tais "permanece mais complexa do que seria dese- nhecidamente m
métodos, pode-se acrescentar a entrevista, que jável" (Kendall & Clarkin, 1992, p.833). ginar os reflexos
tem precedência histórica sobre os demais Já na psicologia, a entrevista estruturada trás, não só para
(Goldstein & Hersen, 1990), bem como a ob- não teve tão grande aceitação, uma vez que, co e de sua etioli
servação sistemática de comportamentos, da na avaliação com propósitos clínicos, o psicó- determinação de
linha comportamental. logo, em princípio, não se limita a um único Entretanto, as m
Também no que se refere à metodologia, método (como a entrevista), mas tende a aliar classificações, ap
observa-se que o psicólogo não costuma se- enfoques quantitativos e qualitativos e, assim, de dificuldades, t
guir uma orientação puramente nomotética ou consegue testar, até certo ponto, a consistên- coes não só para
idiográfica. Por outro lado, a própria opção cia e a fidelidade dos subsídios que suas estra- pêuticas, como tí
quanto a métodos sofre a influência de even- tégias lhe fornecem, para chegar a inferências flexos em model
tos e avanços que ocorrem nesta e noutras com grau razoável de certeza. Por outro lado, vallée, 1993;Cloi
áreas da psicologia, bem como de outras ciên- mesmo considerando a qualidade psicométrica 1998; Hiller, Zar
cias afins. Nota-se ascensão e declínio de al- da entrevista estruturada, "faltam-lhe elementos 1991; Mineka, W
guns métodos e vice-versa, como numa "espi- importantes de rapport, riqueza idiográfica e a Dessa maneir
ral histórica, com vários níveis deixados de lado flexibilidade que caracteriza interações menos o decorrer do tei
e retomados em diferentes níveis" (p.4). estruturadas" (Groth-Marnat, 1999, p.7). te, refinamentos

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presentam a en- Aqui, é o momento de lembrar o outro sen- como, da mesma forma, ficou mais;
acterístico desse tido em que pode ser empregada a expressão te o conceito de co-morbidade, com conse-
mente, como o estratégias de avaliação, agora com referência quente melhoria das estratégias de avaliação.
lizado e, portan- específica às medidas do psicólogo. Embora, Mas estas sofrem, também, reflexos de ques-
por psicólogos, como no caso da entrevista, elas tenham sido tões pendentes, tanto no que se refere à in-
;ssores, foi con- algo desacreditadas, durante certo período, em tensidade de sintomatologia, clinicamente im-
i 1967, por Zu- vários países, estão numa fase de ascensão, não portante para definir a situação de co-morbi-
i entre avaliado- só por apresentarem, cada vez mais, melhor dade (Boulenger & Lavallée, 1993), como na
as. Não obstan- qualidade metodológica, mas porque, especial- caracterização de síndromes e na formulação
icias científicas, mente do ponto de vista clínico, tornaram-se diagnostica. Por exemplo, se, por um lado, a
:érios mais obje- mais necessárias para resolver questões diag- classificação do transtorno misto de ansieda-
nhar seu status nosticas, mormente após a valorização cien- de e depressão foi proposta aparentemente
itruturado, com tífica dos quadros de co-morbidade psiquiá- para resolver um problema diagnóstico rela-
m estabelecidas cionado com co-morbidade, por outro lado,
trica.
Tais casos somente passaram a se consti- "carrega consigo o ónus dessa situação, isto é,
je a ciência e o tuir em objeto de investigação por parte da co- confronta a questão de se determinar que ca-
irios tipos de en- racterísticas distinguem tal categoria nosoló-
munidade científica a partir de 1987, porque
ipo da psiquia- antes disso, nas classificações nosológicas, ha- gica, que sintomas se superpõem e em que
>repor-se, quan- via regras de exclusão hierárquica, que leva- medida" (Cunha, Streb & Serralta, 1997b, p.237).
a qualquer mé- ram a uma considerável perda de informações Em pesquisa, tal problemática pode ser fasci-
ju projetivo. As nante, mas, na avaliação psicológica do caso
clínicas (Di Nardo & Barlow, 1990).
princípio, foram Um dos problemas observados teve relação individual, pode resultar em dúvidas cruciais,
pensarmos que, com transtornos de ansiedade que, apesar da se está em jogo uma formulação diagnostica.
liátrica tem sido incidência mais tarde verificada, ocupavam Por outro lado, o psicólogo, muitas vezes,
D para a valida-
uma posição hierarquicamente inferior ao identifica sintomas subclínicos ou não, reco-
revista terá prio- nhecendo a necessidade de definir níveis de psi-
transtorno de depressão maior, no DSM-III
igualmente, de copatologia, uma vez que estes costumam di-
(APA, 1980), e, então, mesmo preenchendo
; medida do que ferir se o examinando é um caso que está em
critérios diagnósticos de um ou outro trans-
1990, p.5). Po-
torno de ansiedade específico, eram excluídos tratamento psiquiátrico na comunidade, é um
ruturada tenha sujeito que recorre a centros de atenção médi-
como diagnóstico adicional. Ora, como a con-
iças, a questão
dição de co-morbidade desses transtornos com ca primária ou é um paciente de uma unidade '
tuacão melhor,
o episódio de depressão maior, hoje, é reco- psiquiátrica (Katon & Roy-Byrne, 1991). Consi-
i que seria dese- derando a importância de definir tais níveis de
nhecidamente muito comum, é possível ima-
t p-833). ginar os reflexos de tal exclusão, como de ou- psicopatologia, vem se observando um cres-
sta estruturada
tras, não só para a compreensão do caso clíni- cente interesse por um modelo dimensional,
>, uma vez que,
co e de sua etiologia, como, também, para a relacionado com instrumentos psicométricos,
línicos, o psicó-
determinação de focos de intervenção clínica. na avaliação de pacientes, que provavelmente
lita a um único
Entretanto, as mudanças que ocorreram nas terá reflexos no formato do DSM-V (Brown &
ias tende a aliar classificações, apesar de resolverem uma série Barlow, 1992).
tativos e, assim, de dificuldades, trouxeram complexas implica- Tais estratégias de avaliação incluem instru-
ito, a consistên-
ções não só para questões diagnosticas e tera- mentos de auto-relato e podem ser considera-
; que suas estra-
pêuticas, como também tiveram profundos re- das como medidas de sintomas ou de síndro-
lar a inferências
flexos em modelos teóricos (Boulenger & La- mes (Clark & Watson, 1991). Um exemplo do
Por outro lado,
vallée, 1993; Cloninger, 1990; Cunha & Streb, primeiro caso é o Inventário de Depressão de
ide psicométrica
1998; Hiller, Zandig & Bose; 1989; Lydiard, Beck, que é uma escala sintomática, e do se-
m-lhe elementos
1991; Mineka, Watson & Clark, 1998). gundo caso, um dos instrumentos mais usa-
a idiográfica e a
Dessa maneira, pode-se afirmar que, com dos no mundo, o MMPI. Outras estratégias
teracões menos
o decorrer do tempo, houve, indiscutivelmen- desse tipo podem diferir conforme a orienta-
999/p.7). te, refinamentos nos sistemas de classificação, ção teórica do examinador, de acordo com as

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características do examinando e a questão pro- tos em seus sistemas de avaliação e interpre-
posta. tação" (p.98). Já Dana (1984) comentava, com
Com tais perspectivas do ponto de vista clí- certo senso comum, que também se mantêm
nico, salienta-se a importância do psicólogo os instrumentos que aprendemos a usar em
bem se instrumentalizar, principalmente no que nossos cursos de graduação. É difícil substituí-
se refere a recursos psicométricos, já que a ne- los por instrumentos mais sofisticados e, as-
cessidade principal, em nível de contribuição sim, permanecem como herança académica de
para o diagnóstico, tem sido definida como di- professor a aluno. As substituições, em seu
mensional (Brown & Barlow, 1992). Escalas, in- modo de ver, ocorreriam por razões pragmáti-
ventários e check-lists estão na ordem do dia. cas ou éticas. De nossa parte, acreditamos que
As escalas Wechsler e muitos outros instrumen- um dos mais importantes fatores para a inova- Fum
tos vêm sendo constantemente revisados, re- ção e renovação, na área de testes, é a partici-
normatizados ou reapresentados (Hutz & Ban- pação em encontros ou em congressos de psi-
deira, 1993), e intensificam-se os esforços para cólogos.
adaptações no Brasil. As chamadas WIS (We- De alguma forma, pode-se pensar que as
chsler Intelligence Scales), cada vez menos técnicas projetivas ambicionam medir o que
empregadas para a determinação de nível in- Herman van Praag (1992) chamou de "psico-
telectual, constituem-se em importantes ins- patologia subjetiva", que, embora considere,
trumentos para atender necessidades muito es- "por definição", mensurável, verificável e ex-
pecíficas no diagnóstico de psicopatologias e tremamente importante para o diagnóstico, ao I a disseram e rep
na avaliação neuropsicológica, e são um bom mesmo tempo, acha que tais recursos virtual- J :: : ; : s e ~ ;
exemplo de tais esforços. mente inexistem (p.255). ooáogos dirúcos, et
Quanto às técnicas projetivas, também po- Na realidade, ainda que as técnicas projeti-
dem ser consideradas estratégias de avaliação. vas não tenham justificado todo o entusiasmo r ,~
Historicamente caracterizadas por seu estilo de com que foram recebidas por muitos psicólo- (fagnostíco é uma
avaliação impressionista (Cronbach, 1996), que gos, nem mereçam se constituir como meros com propósitos dir
causa pruridos em académicos mais compro- estímulos para interpretações subjetivas, bas- gê todos os mode
metidos com uma posição científica sofistica- tante literárias, e sejam suficientemente com- de diferenças indr
da, tiveram um declínio de seu uso em pesqui- plexas para serem manejadas apenas numa visa a identificar fc
sa, apesar de continuarem populares. "A maio- base quantitativa, cientificamente muitas de- namento psicológi
ria dos autores que defendem o seu uso o faz las possuem o seu status indiscutível como re- cia ou não de psic
visando à exploração de aspectos dinâmicos da cursos importantes de avaliação psicológica e, ca que a classificai
personalidade, que adquirem significado sob segundo Gabbard (1998), especialmente, na jetívo precipuo de
a ótica de um referencial teórico ao qual há avaliação psicodinâmica. que, para medir f c
difícil acesso via psicométrica" (Cunha & Nu- Estratégias de avaliação é, pois, uma expres- namento psicológ
nes, 1996, p.341). Isso significa que não se são com uma abrangência semântica muito como parâmetros
pode simplesmente transformar uma técnica ampla e flexível, ainda que possa ser usada de normal (Yager & (
projetiva num teste psicométrico, embora mui- maneira muito específica. Psicólogos lançam gem que confere
tas delas suportem o uso de procedimentos que mão de estratégias quando realizam avaliações. tipo de avaliação
permitem avaliar sua qualidade como medida. Numa perspectiva clínica, a avaliação que é fei- O psicodiagnó
As razões pelas quais conservam sua popu- ta comumente é chamada de psicodiagnósti- clínica, introduzi!
laridade são variadas. Hutz e Bandeira (1993) co, porque procura avaliar forças e fraquezas 1896, e criada sob
acham que, dentre as técnicas projetivas, se no funcionamento psicológico, com um foco dêmica e da tradk
mantêm aquelas que "receberam refinamen- na existência ou não de psicopatologia. ao fundador da [
designação "clínic
ta de melhor altei
obstante, tudo ini
ca, associada à p<
marcantes na fon

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