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Professor: Paulo Rogers.

Discente: Gabriel Calhau Simões

Ensaio escrito para a disciplina “Produção do cuidado em saúde: Sujeito, saberes e


prática.”

FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de campo, USP, n. 13, p. 155-161, 2005


LATOUR, B. Faturas/Fraturas: da noção de rede à noção de vínculo. Ilha, v. 17, n. 2, p.
123-146, 2015.
STENGERS, I. Estamos divididos. São Paulo, Edições N-1, 2020.

Sobre Vínculos, Divisões e Afetos na minha experiência de pesquisa.

Ao ser afetado pelas reflexões provocadas ao longo deste ano, desde a outa matéria,
pude perceber um novo mundo onde os meus vínculos, as cadeias de dependência que
eu me ligo, e consequentemente, minhas afetações usuais, puderam ser confrontadas
frente a vastidão das relações de interdependências presentes no mundo, e que minha
experiência ignorava. Diante deste universo desconhecido, que constantemente
tentamos dominar ou nos libertar, pude perceber como estou condenado aos vínculos,
descentrando-me de qualquer projeto antropocêntrico, que me veja como exterior a tudo
que me cerca, pois tudo isso me faz ser quem eu sou.
Neste momento que escrevo, conecto me com diferentes seres técnicos que possibilitam
esse encontro virtual entre mim, e tudo aquilo que porventura se ligará a esse texto. O
notebook, a cadeira, a fumaça do cigarro em meu pulmão, o café que eu bebo, os
princípios ativos que correm no meu sangue, o ar que respiro... Estabeleço relações com
tudo isso e muito mais que existe no momento que não consigo sequer pôr em palavras,
ou me aperceber. ainda as cadeias de dependência com qual eu me ligo eventualmente
dissolva a sutileza dos detalhes dos quais eu dependa para ser quem eu sou, eles ainda
estarão lá existindo e estabelecendo relações próprias as suas dimensões de vinculação.
Na medida em que Latour expõe seu texto ele questiona a ficção de dualidade entre o
externo e o interior, o ser humano e o ambiente, como se fossemos ou senhores ou
escravos como propõe a dialética de Hegel, ele traz à tona a complexidade que existe
nas vinculações, que tem sua compreensão limitada ou a relação de dominação ou
liberdade. Ao suspendermos ferramentas conceituais que não fazem parte da natureza
do vínculo, e ao traçarmos a movimentação estabelecida nessa vinculação,
compreendemos que a manutenção desse funcionamento se dá por vontade dos entes
desse vínculo, ainda que essa vontade seja ora atravessada de felicidades e ora de
infelicidades.
A relação complexa de gaia, já trabalhada por Latour exemplifica que a coesão e a
lógica e paz não fazem parte da natureza de gaia, sendo o conflito a sua essência, tensão
que se expressa nos vínculos de interdependência dos diferentes modos de existir que
gaia comporta. Ao estudar esses assuntos me recordei de um livro de Schopenhauer,
sobre a vontade na natureza, no qual ele exemplifica como esses conflitos se exprimem
nas relações entre todos os seres da natureza, que manifestam sua existência através da
metafísica da vontade, que exprimem tensão e tesão, manifestos nas suas formas de
existir.
A constatação de Isabelle Stengers de que estamos divididos, trabalha a factualidade da
pluralidade de conexões com quais nos vinculamos, sejam elas de ordem de cadeias de
dependências que canalizam a sensibilidade imaginativa a uma fantasia, que ignora o
conteúdo real, sejam elas conexões do real de nossa existência, em vínculos si ne qua
nom para existirmos, tais como ar, as plantas, as águas... Conexões próximas ou
distantes, mas que ainda estão ai e nos afetam ainda que não percebamos. Diante desse
universo amplo e dividido de existências quiméricas de seres e mediadores, em que
desconhecemos as afetações que sustentam as vontades e os vínculos tais como eles são,
cabe a nós pesquisadores termos sensibilidade de não irmos a campo confirmar nossas
próprias cadeias de dependência dissolvendo as factuais interdependências em questão,
cometendo verdadeiras cruzadas intelectuais.
Devemos no entanto, como pude refletir a partir de Favret Saada, sermos afetados
enquanto pesquisadores pelas conexões do que desejamos conhecer, ainda que em
muitos momentos isso seja assignificantes para nós, não bloqueando a existência de
relações que escapem as palavras em conceitos que são vazios a experiência em
questão, tal como cultura, crenças, ou eficácia simbólica. A factualidade e o desejo que
organiza a conexão entre os vínculos abertos pela experiência transcende o vocabulário
científico, e deve ser compreendido na terra em que a afetação floresce e se estabelece
ou se acaba, ao final da vinculação.
Nesse sentido, enquanto pesquisador, pude experienciar os impasses de um projeto de
pesquisa, e vi como primeiro deles me desvincular de conceitos prévios a experiência de
pesquisa, uma vez que estes conceitos são a prioris que podem enviesar o olhar de
pesquisa. Despido dessas cadeias de dependência me vejo curioso a me afetar por aquilo
que desconheço. O não saber me opera o desejo de saber, e isso enche a pesquisa de
desejo.
Tive que mudar de projeto de pesquisa por conta de impasses institucionais, e esta é a
segunda dificuldade com a pesquisa que acredito que vale a pena pontuar teoricamente.
Sou trabalhador da instituição que iria pesquisar, e minha atuação fundamentada
teoricamente na psicanálise, e que vem se misturando com os ensinamentos da sua aula,
conflitaram com os vínculos estabelecidos pelos profissionais com a instituição e com o
tratamento dos pacientes. A pesquisa na ala psiquiátrica do hospital geral foi impedida
por forças políticas maiores que fizeram oposição a presença desse tipo de psicologia no
local. As perspectivas biomédicas tradicionais que operam naquele espaço ao se
depararem com a forte vinculação que os pacientes estavam estabelecendo com a
atuação da psicologia naquele espaço, cercearam a minha atuação enquanto psicólogo
no local, por alegarem uma postura contraria aos interesses dos médicos, uma vez que
os pacientes passaram a adotar uma outra postura após minha presença no espaço,
passando a serem mais questionadores com relação ao que era feito com seus próprios
corpos, e mais agitados após as intervenções voltadas para a arte.
Em um ambiente onde os diagnósticos eram todos iguais, as prescrições
medicamentosas também, e as evoluções de prontuários copiadas e coladas umas atrás
da outra, de maneira igual a todos os pacientes, somente a lógica de guerra pode
sustentar esse saber biomédico no seu lugar, uma vez que outras alternativas que
possibilitam o aparecimento do desejo afetam, conectam e tendem a se sustentar mais
com os pacientes, pois estão aberta a seus devires, e não vinculados a enunciados que
reduzem seu desejo a irracionalidade.
Como diz Stengers na guerra, não há lugar para diplomacia, e assim se sucedeu em
minha pesquisa. Foi Engolida pelas relações de interdependência e cadeias de
dependência que regem o funcionamento de uma ala psiquiátrica. As contenções
mecânicas, e químicas, as discursivas, formam um cenário onde a sua recorrência
ofuscam qualquer tentativa de mudança para novos vínculos, e a formação de novos
vínculos são constantemente suprimidas por aqueles que acostumados a usar objetos
técnicos de contenção, foram transformados nos vínculos com esses objetos, e se
transformam em “contenções-humanas”, seres humanos que em seu modo de existência
se vinculam na relação com o mundo pela via da contenção, contendo tudo aquilo que
ouse afrontar as cadeias de dependência do discurso médico psiquiátrico presente ali.
Diante da impossibilidade de permanecer com a pesquisa naquela instituição, tive que
reinventar a via de acesso para a pesquisa. A investigação de como se dá a inserção da
arte nos serviços de saúde mental da RAPS de Jequié é meu novo objeto de estudo, que
por sua vez trabalhará com entrevistas com os profissionais, os pacientes de saúde
mental, e com a observação das oficinas de arte (se existirem), nos serviços de saúde
mental do município. Espero nas entrevistas acessar o discurso de maneira onde não
haja diretividade, em que o encontro possibilite o acesso aos afetos dos sujeitos e a
afetação propiciada pelas oficinas, para então trabalhar de maneira reflexiva sobre essa
experiência.
Sendo assim, os textos lidos me ajudaram a compreender limites pessoais e
institucionais relacionados a vinculação estabelecida por mim enquanto pesquisador, e
pela instituição em seu modo de existir. Ao lidar com esses limites busquei renegociar o
objeto de investigação e a minha entrada em campo, fazendo valer a arte da diplomacia,
me permitindo afetar pela pesquisa. Acredito que o trabalho mais direto com a arte,
assim como o rompimento da vinculação com a instituição e com a pesquisa passada,
conduziu a uma direção em que eu me permitisse não saber o que de fato aconteceria
naquelas instituições, e a posteriori, tensionar os funcionamentos dado as vinculações de
arte, loucura e saúde nos serviços de jequié, com outras experiencias de vinculações,
produzindo um produto novo genuíno do encontro possibilitado pela pesquisa.
A formação de novos vínculos e o rompimento de vínculos antigos foi extremamente
necessário na medida em que a pesquisa avançava. Foi necessário me afastar das minhas
cadeias de dependência, deixar de pertencer as cadeias interdependência institucional,
para conseguir agora chegar a uma pesquisa que se vincule a algo que diga respeito aos
entes envolvidos nela, com vinculações não contidas, mas aberta aos devires que a
pesquisa irá possibilitar.
Estamos divididos por diferentes conexões que nos fazem ser quem nós somos. Como
são conexões, podemos e devemos eventualmente nos desconectar do que nos faz
sermos quem nós somos constantemente, para experienciar outras formas si ou de estar
fora de sí. Se a pesquisa não possibilita o pesquisador ir para além de sua zona de
conforto, e vivenciar imagens e feelings somente experienciados em conexões que
ocorrem fora do padrão de conexão usual do pesquisador, nada de novo se descobre, e
então não existe pesquisa. Mas se a pesquisa permite o pesquisador transformar seu
acervo de imagens e feelings, a partir das novas conexões abertas a partir do
rompimento de suas cadeias de dependência, então a pesquisa produz algo novo e
original.
Ao trabalhar com o registro exploratório de como se da a conexão de arte loucura e
saúde nos serviços de saúde mental de Jequié, pretendo não me ater ao discurso de
manter a tradição dos serviços, ou de libertar eles de sua ignorância, mas sim ser vetor
de provocar a reflexão ao observar as vinculações e seus desejo, e quais afetos e desejos
mantém esses vínculos. Sendo assim, o objetivo é verificar as ambiguidades próprias do
desejo dessas conexões, traçando sua ancoragem discursiva, suas cadeias de
dependência e as relações de interdependência para esse funcionamento, para além do
bem e do mal e da moralidade científica tradicional.
Obrigado pelos aprendizados Paulo!

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