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Marcio Pimentel

O poder da clínica psicanalítica como dispositivo de

transformação da subjetividade: um relato de experiência

Ciclo I -quarta-feira noite

1º Semestre 2023
Estou propondo compartilhar uma narrativa de experiência: minha vivência na

clínica psicanalítica. Neste breve ensaio, descreverei como descobri esse

espaço clínico através de dois relatos. O primeiro é o relato de uma amiga que

passou por um acompanhamento no Centro de Atenção Integrada à Saúde

Mental (CAISM); sendo analisada por um psiquiatra com formação em

psicanálise. No segundo, abordarei minha própria experiência na clínica, que

será contextualizada através da narrativa das minhas vivências de luta política

por uma educação de “qualidade” no Estado de São Paulo, uma vez que a

minha chegada à clínica aconteceu após um longo período de resistência e foi

justamente para tratar das questões que me afetaram muito durante essas

lutas, que deixaram em mim marcas dolorosas, de modo que abalaram

demasiadamente a minha saúde mental; por fim, relatarei como foi a

adaptação ao atendimento online durante a pandemia e a descoberta do poder

da análise como constituinte do dispositivo clínico.

Relato I

Iniciemos de um ponto que chamarei de início dessa experiência. Por volta de

2010; um pouco antes de finalizar minha graduação em Filosofia, tive o que

chamarei de meu primeiro contato com a clínica psicanalítica. Naquela época,

ouvia relatos de uma amiga que havia sido atendida em uma instituição, ela

descrevia como um jogo de sedução o processo de ir ao consultório e passar

pela análise, uma batalha de palavras travada com seu analista.

Durante uma de nossas conversas sobre suas consultas, ela confessou ter se

apaixonado pelo psicanalista que a atendi, já fazia algum tempo desde que

havia sido diagnosticada com transtorno de personalidade borderline e em

posse de seu diagnóstico, sempre procurava uma justificativa para seu


comportamento impulsivo; segundo ela, isso também se tornou uma forma de

sabotar seu próprio tratamento.

Essa amiga, a quem chamarei de T.M., é uma pessoa muito articulada e

curiosa, possuía uma disciplina de estudos bastante particular e demonstrava

grande interesse na Filosofia do existencialismo, além dos trabalhos de Freud

e Jung; este último autor era, sua preferência para leitura.

Em uma ocasião, T.M. me contou que seu analista parecia sugerir interromper

as sessões, pois, ela insistia em investigar a vida acadêmica dele; descobrir,

qual era a linha teórica à qual estava associado e confrontá-lo com essas

informações. Segundo o relato dela, esses enfrentamentos lhe davam uma

sensação de poder, como se estivesse de certa forma dominando a situação.

Com ingenuidade e arrogância, ela acreditava que poderia subverter qualquer

tratamento clínico ao identificar a linha teórica do analista; pelo menos era essa

a esperança dela.

Sempre respeitando a privacidade de minha amiga, eu a questionava sobre a

efetividade de continuar um tratamento que ela procurava sabotar, tentava

fazer uma escuta ativa de suas incursões na clínica e suas “peripécias”. No

entanto, por mais detalhadas que fossem suas descrições sobre as consultas

- a rua, o consultório, a sala de espera e até mesmo a aparência do analista -

eu não conseguia ter uma noção concreta do que era aquele encontro, e das

potências envolvidas, faltava-me vivenciar essa experiência para compreender

plenamente os relatos de minha amiga.

Agora, ao final deste ciclo, estou me aventurando a repensar e buscar uma

nova interpretação do que me foi relatado, uma vez que estou me

familiarizando com os conceitos básicos desse vasto campo que é a

psicanálise. A partir das leituras, aulas e horas clínicas, adquiri um


entendimento diferente das histórias compartilhadas por ela. Como exemplo,

observei a maneira pela qual ela tentava estabelecer uma relação forçada com

seu analista, enquanto investigava sua vida pessoal ou estudava psicanálise,

na esperança de ter controle sobre o próprio tratamento. Nesse processo, fica

evidente a resistência ao tratamento. De acordo com o Dicionário Psicanalítico

a resistência é definida como o conjunto de reações de um paciente que, no

contexto do tratamento, cria obstáculos para o progresso da análise

(Roudinesco & Plon, 1998, p. 659). A resistência pode ser entendida aqui como

uma defesa inconsciente do analisando contra o acesso a conteúdos

emocionalmente dolorosos, traumas ou conflitos internos. T.M deixava

escapar alguns vestígios de seus traumas nas suas piadinhas sexuais ao se

referir a seu analista, ou mesmo brincava dizendo que essa seria a sabotagem

perfeita, em vez de largar a análise iria implodi-la ao seduzir o psicanalista.

Outro ponto que me chamou atenção é justamente essa confissão de que ela

estava apaixonada pelo analista; por vezes, ela mesma dizia ser uma forma

de amor platônico. No entanto, sabia que sentia algo além de uma simples

admiração intelectual; era justamente isso que a excitava e a motivava a

buscar o conhecimento da teoria e método, na esperança de se aproximar do

seu analista e vivenciar um processo de sedução e conquista. À medida que

ela aprofundava essa relação com o analista, percebia um forte laço de

confiança se desenvolvendo, permitindo que suas emoções e experiências

fossem projetadas nele; daí que de posse dessas informações me foi possível

perceber o processo de transferência acontecendo, o qual é fundamental na

análise para a investigação mais profunda da vida psíquica. De acordo com

Freud a transferência também propicia acesso ao inconsciente, tornando-o


acessível; portanto, o manejo da transferência é condição indispensável para

a realização do tratamento psicanalítico (Freud, 1912/2017).

Esses dois conceitos, resistência e transferência, despertaram muito interesse

em mim, na medida em que são conceitos que sustentam a atuação do

analista, proporcionando uma base para a compreensão das dificuldades no

processo terapêutico e avanço desse.

RELATO II

Passaram-se alguns anos e finalmente chegou minha vez de vivenciar

experiências com a clínica psicanalítica; por volta de 2015, já havia concluído

minha graduação e estava atuando como professor na rede pública estadual

há aproximadamente quatro anos.

Durante esse tempo, acabei me envolvendo no movimento sindical da

categoria e participei da greve dos professores, que se estendeu por mais de

90 dias. Durante essa longa jornada, enfrentei inúmeros desafios, desde ações

políticas, passeatas até intervenções nas escolas como representante sindical;

além disso, também enfrentei dificuldades pessoais que afetaram minhas

relações pessoais; pesar disso, reconheço que essa experiência foi

extremamente enriquecedora tanto politicamente quanto pessoalmente; tive a

oportunidade de aprender com colegas de outras escolas e estabelecer laços

afetivos que ultrapassaram a esfera da luta sindical.

Infelizmente, a greve terminou sem que nossas demandas fossem atendidas,

o que foi frustrante; porém, sentia um senso de dever cumprido diante da

comunidade escolar, dos alunos, dos pais e dos poucos colegas que

compartilharam a luta comigo; sentia uma responsabilidade em defender o

direito à educação pública de qualidade para meus pares. Entretanto, esse


sentimento de dever cumprido foi rapidamente abalado quando, por volta de

setembro daquele ano, o então Secretário de Educação, Herman Voorwald,

decidiu reorganizar a rede de ensino paulista. Isso deu início a um novo

processo de lutas, liderado pelos estudantes secundaristas, que se depararam

com o plano de fechamento de escolas e realocação de pessoas como se

fossem meros objetos, sem considerar a história e o vínculo afetivo da

comunidade escolar com aquele espaço.

Os estudantes secundaristas se organizaram contra a reorganização escolar,

promovendo debates dentro das escolas, ocupando os intervalos ou aulas

cedidas por professores contrários à reorganização. As discussões se

intensificaram rapidamente, e o movimento secundarista ganhou força nas

redes sociais e nas ruas, com passeatas e palavras de ordem contra a medida

autoritária do então governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, por

meio da Secretaria de Educação, liderada por Herman Voorwald.

Os dias se passavam, mas nenhuma abertura para o diálogo com as

comunidades escolares sobre os rumos dessa reorganização ocorria. Dessa

forma, surgiu um fenômeno político de resistência e defesa da permanência

das escolas abertas: os estudantes secundaristas começaram a ocupar as

escolas. Como professor da rede, não podia ser apenas um espectador nesse

processo de luta, então me envolvi profundamente nas mobilizações

secundaristas, ajudando na organização e manutenção da ocupação na escola

em que trabalhava. No entanto, o protagonismo da luta era exclusivo dos

estudantes, que deram uma verdadeira aula de como lutar por uma educação

de “qualidade” e defender sua escola. Foi emocionante e inspirador

testemunhar jovens se organizando e colocando em prática conceitos


aprendidos em sala de aula, como prática democrática e consciência política

de seus direitos e deveres como cidadãos.

O meu envolvimento nesse movimento teve um custo muito alto. Revivia

experiências traumáticas da greve, desde os confrontos com a polícia militar

até as noites mal dormidas, preocupado com estudantes ocupando uma escola

em um bairro periférico de São Paulo. Houve momentos extremamente

delicados, como as tentativas de invasão da polícia nas primeiras semanas de

ocupação e as disputas internas do movimento. Gradualmente, comecei a

sentir um medo generalizado e uma ansiedade constante, sempre à espera de

algo ruim acontecer aos alunos ou a mim mesmo. Esses sentimentos foram

intensificados à medida que a luta se estendia sem resultados efetivos. Foi

nesse momento que os estudantes decidiram voltar às ruas e bloquear

cruzamentos importantes da cidade. Como participante ativo desse processo,

prontamente me voluntariei para ajudar nesses bloqueios. No entanto, as

ações resultaram inicialmente em forte repressão policial. Lembro-me com

muita dor de ter sido atingido por cassetetes durante uma manifestação que

bloqueou a ponte João Dias. Naquele dia, quase fui levado preso para a

delegacia, juntamente com um grupo de estudantes, mas conseguimos

contornar a situação e evitar a detenção. Essa jornada deixou cicatrizes em

mim, tanto físicas quanto emocionais. Passei noites com sonhos

perturbadores, revivendo cenas de violência policial contra mim e meus

alunos.

A reorganização foi barrada, mas o preço pago em termos de saúde mental foi

elevado. Sofremos muito nesse processo de luta. Não posso negar que o

aprendizado tenha sido muito significativo e poderoso, superando o que

vivenciei durante a greve no início do ano. No entanto, os traumas foram


profundos, e acabei reprimindo essa dor, evitando falar sobre o assunto e

seguindo em frente como se estivesse tudo bem. Meus amigos e familiares

sabiam que eu estava passando por um momento difícil, mas eu fingia estar

bem. Continuava trabalhando em uma escola dividida entre os apoiadores da

ocupação, que saíram vitoriosos, e aqueles que eram contrários ao

movimento; essa situação, gradualmente minou minha saúde, chegando ao

ponto de perder a motivação para continuar na educação pública me fazendo

considerar abandonar o ofício de professor. Na busca de melhorar minha

situação decidi me inscrever no Programa de Ensino Integral, ao ser aceito fui

transferido de escola, Foi uma mudança para enfrentar novos desafios em um

ambiente de trabalho completamente diferente.

Inicialmente, estar em um espaço novo e construir novas relações de afeto

com professores e estudantes foi gratificante, um contraste com o passado

conturbado que eu havia vivido; porém, não demorou muito tempo para que

eu sentisse o esgotamento mental. A falta de criatividade para dar

continuidade ao meu trabalho e as noites mal dormidas voltaram a me

atormentar. Apesar de terem se passado três anos desde que mudei de

escola, ainda carregava sentimentos presos na garganta daquele período

turbulento da minha vida. Essa carga emocional resultou no rompimento de

um relacionamento que já durava quatro anos, causando ainda mais

sofrimento.

Já em meados de 2019 uma amiga muito querida que hoje tornou-se minha

companheira de vida me sugeriu que procurasse ajuda de um psicanalista.

Inicialmente, resisti fortemente a ideia, acreditando que estava bem e que a

consulta não traria benefícios. Como estudioso das questões existenciais,

pensava que minha própria análise interna deveria ser suficiente e que a
intervenção de um especialista não faria diferença. Além disso, alimentei a

fantasia de que seria imune a qualquer processo de análise, pois acreditava

que poderia identificar prontamente a linha teórica do analista, anulando assim

qualquer possível efeito do tratamento recomendado. No ápice da minha

arrogância intelectual, caí na armadilha da autoanálise.

Quando me vi diante de um sofrimento psíquico insustentável, percebi que era

hora de baixar a guarda e buscar ajuda no Centro de Estudos Psicanalíticos:

CEP. Passei por uma triagem e fui encaminhado a uma analista que atendia

na região do Shopping Ibirapuera. Confesso que todo o processo foi bastante

desafiador, mas decidi enfrentar os primeiros encontros.

Desde o momento em que decidi buscar ajuda de um psicanalista, deparei-me

com a complexidade e o poder transformador da clínica. Não percebia o

quanto estava me transformando. Lembro-me de ir às primeiras sessões um

tanto contrariado, pois não me era nada confortável falar das dores que me

atravessavam, ainda mais com uma psicanalista que atendia naquela região

da cidade. Isso, com certeza, acionou em mim uma série de preconceitos a

respeito da clínica como um todo. Achava que não era para mim, que minha

analista jamais iria me entender, sendo eu um professor de escola pública, já

muito ferido pelas lutas e oriundo de uma classe social muito diferente daquela

que eu julgava ser a clientela da minha analista.

Confesso que não me sentia no direito de estar ali, seja porque achava que

não seria compreendido em minhas questões, uma vez que não teria relação

nenhuma com os possíveis outros pacientes dela, ou por nunca antes ter

vislumbrado a possibilidade de me cuidar e ser cuidado. Veja-se que mais uma

vez é possível observar o processo de resistência à análise. Hoje compreendo

que esse primeiro momento fazia parte do tratamento e estava totalmente


permeado pelo que Freud denomina de resistência à análise. Em seu célebre

livro A Interpretação dos Sonhos lê-se textualmente: "A psicanálise é

justificadamente desconfiada. Uma de suas regras é que tudo o que

interrompe o progresso do trabalho analítico é uma resistência” (Freud,

1900/1987, p. 475).

Ao me debruçar nos escritos de Freud tive o entendimento de que a psicanálise

reconhece e lida com a resistência como parte integrante do processo

analítico, sendo essa uma manifestação natural e esperada por parte do

paciente durante a análise, e que ela poderia surgir de várias formas. No meu

caso, como desconforto e racionalizações para justificar minha negativa ao

processo de análise, sejam elas da ordem dos preconceitos que tinha em

relação à clínica psicanalítica ou mesmo da suposta capacidade de me

autoanalisar, descartando assim o tratamento. Ainda vale dizer que também

manifestei resistência à própria pessoa da analista que se dispôs a me

atender.

Da mesma forma que minha amiga passou por esse processo de resistência,

seguido de transferência, também me vi atravessado por eles, de modo que

acabei por embarcar de vez no espaço da clínica psicanalítica na tentativa de

compreender e lidar com meu sofrimento psíquico. Ao adentrar esse espaço,

fui confrontado com a dimensão do poder que a clínica psicanalítica possui.

Não se trata de um poder hierárquico, ou mesmo físico, mas sim da

capacidade de mergulhar nas vivências e narrativas que eu trazia,

desvendando as dinâmicas do meu inconsciente na medida em que eu falava

sobre minhas vivências. Esse poder tem a capacidade de promover uma

transformação profunda na subjetividade, é incrível perceber essa

transformação ao longo dos anos.


Neste ano de 2023 completo quatro anos como "paciente" da clínica

psicanalítica construída pela minha analista, habitar o setting que ela construiu

me exigiu muita paciência e chegar até aqui não foi nada fácil, principalmente

por ter passado pelo período de pandemia no qual migramos para as consultas

online. Foi desafiador, no entanto ela me ofereceu um espaço seguro para a

expressão e o processamento de sentimentos, medos e vivências dolorosas

que haviam se acumuladas em mim. Através do cuidado, do poder da análise

e do processo de transferência, que se estabeleceu entre a minha analista e

eu, pude trazer a consciência alguns afetos gravados no meu inconsciente ao

longo da minha vida, compreendendo como esses influenciavam minhas

interações e percepções com a realidade imediata do risco de vida ao qual a

pandemia de COVID-19 nos submeteu.

A minha jornada na clínica psicanalítica proporcionou uma compreensão mais

profunda de mim. Através da exploração do poder transformador da análise,

do enfrentamento do sofrimento psíquico, do entendimento dos traumas que

me assolavam e da importância da minha saúde mental, pude constatar a

potência da clínica psicanalítica em diversas dimensões da minha existência.

Confesso que ainda tenho muito a percorrer, mas sinto que estou no caminho

certo.

Hoje me reconheço como um analisando da clínica psicanalítica e sujeito aos

seus efeitos sobre minha experiência de vida. Também vale dizer que muito

desse efeito se dá justamente pela forma em que a clínica se configura, como

um dispositivo de produção de uma certa subjetividade.

Ao fazer esse exercício de relato de experiência, deparei-me com aquilo que

Michel Foucault denominou de "dispositivo". Segundo ele, um dispositivo é

composto por uma série de elementos heterogêneos que se relacionam


aparentemente de forma desconexa, abrangendo discursos, instituições,

organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas

administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e

muitos outros elementos a depender da especificidade de cada urgência. O

dispositivo é a rede que se estabelece entre esses elementos, incluindo o que

é dito e o que é silenciado. (Foucault 1982)

No contexto da análise psicanalítica, podemos compreender que o efeito de

transformação da subjetividade que ocorre nesse processo também é oriundo

dessa relação em rede de saber/poder na qual a clínica psicanalítica se

inscreve. Gilles Deleuze considera o dispositivo (clínico psicanalítico) como

uma máquina de fazer ver e fazer falar, que tem o poder de trazer à tona e

explorar os pensamentos, desejos, memórias e pulsões, entre outros

elementos do inconsciente. (Deleuze 1990). É uma relação dinâmica, como

um jogo de forças. Nas palavras de Foucault, "O dispositivo, portanto, está

sempre inscrito em um jogo de poder, permanecendo sempre, no entanto,

ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que

igualmente o condicionam.

O dispositivo clínico psicanalítico não se trata apenas de trazer à tona

memórias e sentimentos reprimidos, mas também de compreender as relações

de poder que influenciam a subjetividade de cada um, uma vez que os

dispositivos clínicos, como a psicanálise, podem criar espaços para a

produção de subjetividades, permitindo que as pessoas se reconheçam e se

modifiquem. Ao mesmo tempo que molda e regula o indivíduo exercendo

poder sobre ele.

Foucault nos lembra que os dispositivos clínicos não são neutros, mas estão

imbuídos de relações de poder. Durante a minha análise, pude perceber como


a relação com a analista também envolvia a dinâmica do poder; minha analista,

ao se colocar como uma figura de autoridade, tem o poder de interpretar e

direcionar minha fala, guiar-me pelo fio que conduz aos meu inconsciente

trazendo à luz do que é dito ou não dito na sessão.

Ao decidir iniciar a análise, eu não tinha plena consciência de que estava

adentrando nesse dispositivo clínico, no qual todos esses elementos seriam

investigados e trabalhados. No entanto, ao passar por esse processo, pude

experimentar os efeitos transformadores desse dispositivo. Através da relação

estabelecida com a analista, fui incentivado a expressar livremente meus

pensamentos e emoções, explorar as origens e os seus significados.

Nesse processo, pude perceber como as diferentes dimensões do dispositivo

clínico - a escuta atenta da analista, a interpretação das palavras e dos

silêncios, as reflexões teóricas e os conceitos psicanalíticos, ou mesmo a tela

que media nossa relação - se entrelaçaram para promover minha

transformação subjetiva. Foi através dessa rede de elementos que fui capaz

de desconstruir padrões limitantes, compreender minha relação com o

passado e construir novas narrativas sobre minha própria vida.

Ao reconhecer a presença desse dispositivo clínico em minha jornada de

análise, pude compreender como ele funcionava como uma máquina de fazer

ver, trazendo à luz aspectos ocultos de minha subjetividade, e uma máquina

de fazer falar, estimulando-me a encontrar palavras para expressar o que

muitas vezes estava guardado em meu inconsciente.

A experiência de passar por esse processo me fez reconhecer a importância

e o poder desses dispositivos clínicos na transformação da subjetividade. Eles

nos convidam a explorar e compreender os meandros de nossa mente, a

questionar as normas e as estruturas que nos moldam e a construir novos


significados para nossa existência. A clínica psicanalítica, enquanto dispositivo

clínico, revela-se como um caminho para a autorreflexão, a autoconsciência

ao passo que também atua como ferramenta de constituição e organização de

sujeitos e subjetividades.

Referências.

DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo.


Barcelona: Gedisa, 1990, pp. 155-161. Tradução de Wanderson Flor do
Nascimento. Disponível em<<http://bit.ly/3rkqH3E>>.
Freud, S. (1900/1987). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud
(Vols. 4-5) (2a ed.). Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S. Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico. In Obras
incompletas de Sigmund Freud (vol. 6, pp. 93-106). Autêntica.
FOUCAULT, Michel (1971). Sobre a história da sexualidade. In: Microfísica do
poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de
Janeiro:JorgeZahar.

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