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Fetlife é uma rede social voltada para o público fetichista, praticantes de BDSM ou qualquer
pessoa que se identifique com uma expressão sexual não normativa.
social. Ao fazer autoetnografia, enfrentamos "a tensão entre prática social e
constrangimento social" (ADAMS, ELLIS e JONES, 2015, p.14, tradução
minha).
O grande desafio do pesquisador ao realizar um trabalho autoetnográfico
é que apesar de centrado em uma trajetória individual, sua concentração deve
estar naquilo que é socialmente compartilhado e gera identificação, bem como
nos silêncios e naquilo que se escolhe não externalizar para não expor um self
vulnerável. Por isso, a autoetnografia nesta pesquisa é tão importante, como
ressalta Fabiene Gama:
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Esses honoríficos ou formas de tratamento além de fazer com que as pessoas se
reconhecessem como pertencentes ao universo fetichista, também servia para marcar as
diferentes posições que os praticantes poderiam assumir em uma prática BDSM, como
personagem ativo (Top), ou seja aquele que vai praticar a ação, ou como personagem passivo
(bottom), isto é, aquele que vai receber a ação.
Então, em um determinado momento, surgiu a ideia de criar um espaço
na internet para compartilhar todas as minhas experiências como novata desde
o momento em que descobri essa nova expressão da sexualidade, expondo
todas as minhas vulnerabilidades, erros e acertos para que outras pessoas
pudessem identificar-se e sentirem-se acolhidas em suas inseguranças, além
de conscientizar sobre cuidados necessários que os indivíduos que se
submetem a essas práticas devem sempre estar atentos.
O projeto teve grande aceitação e eu passei a registrar tudo que eu
vivenciava na prática e também a explicar de forma didática, tudo o que eu
estava estudando sobre a temática do BDSM. Além disso, convidava outros
praticantes a contarem um pouco de suas experiências através de textos
disponibilizados publicamente primeiro no Medium3 do projeto e mais tarde no
famoso e maior site de conteúdo fetichista, BDSM e Leather4 do Brasil.
E, dessa forma, desnudando todos os meus medos, inseguranças, erros
e acertos, eu fui ganhando a confiança das pessoas que se identificavam com
as minhas vulnerabilidades e, nesse momento, eu entendi que estava
produzindo uma autoetnografia.
Uma das pesquisadoras mais importantes e responsável pelo
reconhecimento da autoetnografia como gênero de pesquisa, Carolyn Ellis,
define assim uma autoetnografia:
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Medium é uma plataforma digital para compartilhamento de textos no formato de uma rede social.
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O movimento Leather faz parte de uma contracultura nascida entre os anos 1950 e 1960 com
a proposta de romper com os modelos sociais e com comportamentos vigentes até então.
Através de uma estética baseada em roupas e acessórios de couro, a comunidade buscava
estabelecer novos paradigmas sociais e aceitação de minorias pela sociedade conservadora
da época.
tanto processo quanto produto (ELLIS, ADAMS & BOCHNER, 2011,
p.1, tradução minha).
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Golden shower é um fetiche em que um parceiro urina no outro e scat é o fetiche que envolve
atos com a presença de fezes, seja passar fezes no parceiro, defecar no outro ou comer fezes.
masoquista é necessariamente a pessoa que está abaixo (bottom) no jogo de
hierarquia e que um sádico é obrigatoriamente a pessoa que está acima (Top)
nesse jogo, e que eu acredite por tudo que observei e presenciei que é
possível um dominador ser masoquista, isso é algo que não se admite
publicamente, porque o código moral estabelecido não permite que a figura
dominante se coloque em qualquer posição que possa indicar alguma
vulnerabilidade.
Os pares que compõem o guarda-chuva de práticas do BDSM nem
sempre estão presentes ao mesmo tempo, isto é, uma pessoa pode se
considerar um BDSMer por sentir prazer na dor, mas não ter qualquer fetiche
com hierarquia, ou ainda justamente ter o prazer na hierarquia e nas relações
de poder e não ter nenhuma atração pela dor. Porém, é comum os discursos
de deslegitimação por parte dos membros do grupo quando alguém menciona
não gostar de hierarquia. Essa pessoa sofre uma exclusão e passa a ser
chamado de fetichista, como se fosse algo de menor valor, pois não há como
manter as estruturas de poder entre iguais.
Tanto a humilhação, como a vergonha e o medo precisam da
desigualdade para serem erotizadas. E, embora haja exceções, essas
desigualdades acabam mostrando como as emoções são generificadas em
razão das moralidades instituídas. A maioria dos meus interlocutores que
relataram sentimento de culpa em suas primeiras sessões BDSM foram
mulheres. Eu mesma vivenciei essa culpa ao confrontar o que estava fazendo
com os meus valores e crenças.
Não há como negar que o BDSM erotiza a violência, assim como satiriza
convenções sociais, então quando uma mulher tem suas primeiras
experiências como submissa e percebe que seu corpo sexual responde a
estímulos de degradação, quando sai da sessão ela começa a confrontar
aquilo que permitiu com a situação de tantas outras mulheres que são vítimas
de abusos não consensuais. Algumas, inclusive, não conseguem prosseguir,
mas a maioria precisa de um tempo para processar a diferença entre simular
situações de violência dentro de um campo lúdico controlado e violências reais
indesejadas.
Após ter a minha primeira sessão BDSM passei por um processo
complexo e angustiante de dúvidas culpa e arrependimento, mesclados com
satisfação, conforme relatei em meu diário pessoal:
RUBIN, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of
sexuality. In: VANCE, Carole (ed). Pleasure and Danger: Exploring Female
Sexuality. London: Pandora. 1984.