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Prefácio de “A Personalidade Autoritária:

Estudos sobre Preconceito” de T. W. Adorno(1)


Max Horkheimer
1950

Primeira Edição:
Fonte: LavraPalavra https://lavrapalavra.com/2019/07/24/prefacio-de-a-personalidade-autoritaria-estudos-
sobre-preconceito-de-t-w-adorno/
Tradução: Thiago Marques Leão
HTML: Fernando Araújo.

Este é um livro sobre discriminação social. Mas seu propósito não é simplesmente
acrescentar algumas descobertas empíricas a um corpo de informações já bastante extenso. A
temática central do trabalho é um conceito relativamente novo – o surgimento de uma espécie
“antropológica”, que podemos chamar de homem autoritário. Em contraste com o intolerante
tradicional, o homem autoritário parece combinar as idéias e habilidades típicas da sociedade
altamente industrializada com crenças irracionais ou anti-racionais. Ele é ao mesmo tempo
esclarecido e supersticioso, orgulhoso de ser um individualista e sempre temeroso de não ser
igual aos outros, intransigente sobre sua independência, mas inclinado a se submeter cegamente
ao poder e à autoridade. A estrutura de caráter que abarca estas tendências conflitantes já atraiu
a atenção dos pensadores políticos e filósofos modernos. Este livro aborda o problema com os
meios da pesquisa psicossociológica.

As implicações e valores do estudo são práticos tanto quanto teóricos. Os autores não
acreditam que existe um atalho que leve à educação, que elimine a longa e, muitas vezes,
sinuosa estrada da pesquisa árdua e da análise teórica. Também não pensam que o problema das
minorias na sociedade moderna, e mais especificamente o problema dos ódios raciais e religiosos,
possam ser tratados com sucesso seja por campanhas de propaganda em defesa da tolerância,
seja pela refutação apologética dos seus erros e mentiras. Por outro lado, a atividade teórica e a
aplicação prática não estão separadas por um abismo incontornável. Muito pelo contrário: os
autores estão imbuídos da convicção de que a elucidação científica, sistemática e sincera de um
fenômeno de tamanho significado histórico pode contribuir diretamente ao melhoramento da
atmosfera cultural da qual o ódio se alimenta.

Trata-se de uma convicção que não deve ser recusada como se fosse uma ilusão otimista. Na
história da civilização, tem havido muitos momentos em que as ilusões coletivas não foram
curadas pela propaganda, mas, em última análise, porque acadêmicos, com seus métodos
discretos mas insistentes de trabalhar, estudaram o que há na raiz da ilusão. Sua contribuição
intelectual, atuando no contexto do desenvolvimento da sociedade como um todo, foi decisiva.

Gostaria de citar dois exemplos. A crença supersticiosa na feitiçaria foi superada nos séculos
dezessete e dezoito, depois que os homens começaram a viver sob influência dos resultados da
ciência moderna. O impacto do racionalismo cartesiano foi decisivo. Essa escola filosófica
demonstrou – e as ciências naturais que a seguiram fizeram uso prático desse conhecimento –
que a crença anterior no efeito imediato dos fatores espirituais no domínio corporal, até então
aceita, era uma ilusão. Quando este dogma cientificamente insustentável foi eliminado os
fundamentos da crença na magia foram destruídos.
Em um exemplo mais recente, basta pensar no impacto do trabalho de Sigmund Freud sobre
a cultura moderna. Sua importância primordial não está no fato de a pesquisa e o conhecimento
psicológicos terem sido enriquecidos por novas descobertas, mas que, por cerca de cinquenta
anos, o mundo intelectual, especialmente o educacional, tornou-se cada vez mais consciente da
conexão entre a repressão de crianças (dentro e fora de casa) e a ignorância geralmente ingênua
da sociedade a respeito da dinâmica psicológica tanto de crianças como de adultos. A penetração
na consciência social em geral da experiência, cientificamente adquirida, de que os eventos da
primeira infância são de primordial importância para a felicidade e o potencial de trabalho do
adulto promoveu uma revolução na relação entre pais e filhos que seria considerado impossível
há cem anos atrás.

O presente trabalho, esperamos, encontrará um lugar nesta história da inter-dependência


entre ciência e ambiente cultural. Seu objetivo final é abrir novos caminhos em uma área de
pesquisa que pode se tornar de importância prática imediata. Busca desenvolver e promover uma
compreensão dos fatores psicossociais que tornaram possível ao tipo autoritário do homem
ameaçar substituir o tipo individualista e democrático, predominantes no século passado (séc.
XIX) em meio à nossa civilização, e dos fatores pelos quais essa ameaça pode ser contida. A
análise progressiva desse novo tipo “antropológico” e de suas condições de crescimento, com
uma diferenciação científica cada vez maior, aumentará as chances de um contra-ataque
genuinamente educativo.

Confiança na possibilidade de um estudo mais sistemático sobre os mecanismos de


discriminação e, especialmente, de um tipo de discriminação caracterológica, não se baseia
apenas na experiência histórica dos últimos quinze anos, mas também nos desenvolvimentos
dentro das próprias ciências sociais, nas últimas décadas. Esforços consideráveis e bem sucedidos
têm sido feitos neste país (EUA), assim como na Europa, para levantar as várias disciplinas que
tratam do homem como um fenômeno social, em um nível organizacional de cooperação que tem
sido uma tradição nas ciências naturais. O que estou pensando não são meramente arranjos
mecânicos para unir o trabalho realizado em vários campos de estudo, como em simpósios ou
livros didáticos, mas a mobilização de diferentes métodos e habilidades, desenvolvidos em
distintos campos da teoria e da pesquisa empírica, para um programa comum de pesquisa.

Tal fertilização cruzada de diferentes ramos das ciências sociais e da psicologia é exatamente
o que ocorreu no presente volume. Especialistas nas áreas de teoria social e psicologia profunda,
análise de conteúdo, psicologia política, sociologia política e testes projetivos reuniram suas
experiências e descobertas. Tendo trabalhado juntos em cooperação mais próxima, eles agora
apresentam como resultado de seus esforços conjuntos os elementos de uma teoria do tipo
autoritário do homem na sociedade moderna.

Eles não desconsideram que não foram os primeiros a estudarem este fenômeno.
Reconhecem com gratidão a sua dívida com os notáveis ​perfis psicológicos do indivíduo
preconceituoso previstos por Sigmund Freud, Maurice Samuel, Otto Fenichel e outros. Essas
brilhantes percepções eram, de certo modo, os pré-requisitos indispensáveis ​para a integração
metodológica e a organização da pesquisa que o presente estudo tentou, e achamos alcançado
em certo grau, em uma escala que antes não era acessível.

Institucionalmente, este livro representa um empreendimento conjunto do Berkeley Public


Opinion Study e do Institute of Social Research. Ambas as organizações já haviam deixado sua
marca nos esforços para integrar várias ciências e diferentes métodos de pesquisa. O Berkeley
Public Opinion Study e se dedicou ao exame do preconceito a partir da psicologia social e havia
encontrado a estreita correlação entre o preconceito manifesto e certos traços de personalidade
destrutiva de natureza niilista, ligadas a uma ideologia irredutivamente pessimista do intolerante.
O Institute of Social Research foi dedicado ao princípio de integração teórica e metodológica
desde seus primeiros dias na Universidade de Frankfurt, e publicou vários estudos que emergiram
dessa abordagem básica. Em um volume, sobre autoridade e família, o conceito de
“personalidade autoritária” foi apresentado como um elo entre as disposições psicológicas e as
inclinações políticas. Pereguindo esta linha de pensamento, o Instituto formulou e publicou em
1939 um amplo projeto de pesquisa sobre o antissemitismo. Cerca de cinco anos depois, uma
série de discussões com o falecido Dr. Ernst Simmel e com o professor R. Nevitt Sanford, da
Universidade da Califórnia, estabeleceu a base do presente projeto.

Quando finalmente organizada, a equipe de pesquisa era liderada por quatro membros
sêniores, Dr. R. N. Sanford, do Berkeley Public Opinion Study e Dr. T. W. Adorno do Institute of
Social Research, que eram os diretores, Dr.ª Else Frenkel-Brunswik e Dr. Daniel Levinson. A
colaboração deles era tão próxima, talvez eu devesse dizer democrática, e o trabalho tão
igualmente dividido entre eles que ficou claro desde o início que eles deveriam dividir igualmente
a responsabilidade e o crédito pela presente publicação. Os principais conceitos do estudo foram
desenvolvidos pela equipe como um todo. Isso é verdade, acima de tudo, para a ideia da medição
indireta de tendências antidemocráticas (fascistas), a escala F. Algumas divisões de trabalho não
poderiam ser evitadas, no entanto, e se mostrou aconselhável ter os vários capítulos assinados
por membros individuais da equipe. O processo efetivamente de escrita envolve necessariamente
um envolvimento mais íntimo com os materiais sob análise e, portanto, a medida mais específica
de responsabilidade. No entanto, permanece o fato de que cada um dos quatro membros seniores
contribuiu para cada capítulo e conclui que o trabalho como um todo é totalmente coletivo.

É interessante observar as atribuições primárias de cada um dos membros da equipe durante


o processo real de pesquisa. O Dr. Sanford concebeu a maneira como as várias técnicas deveriam
ser combinadas e planejou os procedimentos de pesquisa. Muito de seu tempo foi dedicado a
estudos de casos detalhados, especialmente à etiologia dinâmica da personalidade
preconceituosa. Adorno introduziu dimensões sociológicas relacionadas a fatores de personalidade
e conceitos caracterológicos concomitantes ao autoritarismo. Ele também analisou as seções
ideológicas das entrevistas por meio de categorias da teoria social. O Dr.ª Brunswik formulou
algumas das primeiras variáveis ​de personalidade da pesquisa. Com base em seu trabalho
anterior, ela realizou a categorização e quantificação sistemáticas e dinamicamente orientadas do
material da entrevista. O Dr. Levinson era o principal responsável pelas escalas AS, E e PEC, pela
análise da Ideologia em termos psicológicos, pela análise das Questões Projetivas, pelo designe
estatístico e procedimento.

Três capítulos monográficos, um sobre a apresentação geral da metodologia e dos resultados


de uma das principais técnicas, o Teste de Apercepção Temática, e dois lidando com grupos
“críticos” foram escritos por Betty Aron, Maria Levinson e William Morrow. Todos os três estavam
permanentemente na equipe de estudo e completamente familiarizados com seu progresso.

O projeto não poderia ter sido realizado sem o apoio generoso e inteligente do Comitê
Judaico Americano. Em 1944, o Comitê, sentindo a necessidade de uma sólida base de pesquisa
para o suporte financeiro e organizacional que planejava dar aos estudos cooperativos, de um
tipo que este livro é exemplo, decidiu criar um Department of Scientific Research. Desde o início,
o Departamento foi concebido como um centro científico para estimular e coordenar o trabalho
dos principais cientistas na sociologia e na psicologia do preconceito e, ao mesmo tempo, como
um laboratório para avaliar os programas de ação. Embora os membros da equipe de pesquisa do
Departamento estejam constantemente sob pressão para resolver os problemas que se lhes
apresenta o trabalho cotidiano de uma extensa organização que luta pelos direitos democráticos
em várias frentes, eles nunca se esquivaram da responsabilidade de promover programas básicos
de pesquisas. Este volume simboliza essa ligação entre formação democrática e pesquisa basal.
Nota do tradutor:

(1) O texto ora apresentado foi escrito por Max Horkheimer, Diretor do Instituto de Pesquisa
Social da Universidade de Frankfurt, como Prefácio para o livro “A Personalidade Autoritária:
Estudos sobre Preconceito” (The Authoritarian Personality, Studies in Prejudice) de Theodor
Adorno (et al) [Original disponível em http://www.ajcarchives.org/main.php?GroupingId=6490].
O livro, publicado em 1950, retoma sua atualidade e relevância sociológica e política, enquanto
tentamos compreender a psicologia que estrutura a adesão popular ao autoritarismo de extrema-
direita, nas democracias ocidentais contemporâneas. Trata-se de uma pesquisa
“psicossociológica” sobre um novo “tipo antropológico” próprio das sociedades modernas
industrializadas: o “homem autoritário”. Diferente dos intolerantes e autoritários “raízes” ou da
“velha-guarda” (old style, como diz Horkheimer no original), o “homem autoritário” de Adorno
tem características típicas da modernidade industrial e traz elementos fundamentais para pensar
a Contemporaneidade. É nesta obra que os autores desenvolvem a famosa (mas pouco discutida
fora do ambiente acadêmico) “Escala F” para medição indireta de tendências fascistas,
autoritárias e/ou antidemocráticas entre indivíduos. Ao apresentarmos este texto, seguindo a
intenção dos autores, buscamos apresentar elementos de renovada atualidade e pensamento
teórico consistente que talvez deem instrumentos para atuar concretamente sobre a sociedade
atual e sua cultura ideologicamente orientada, na qual o “homem autoritário” contemporâneo
parece encontrar solo fértil. O livro busca compreender os fatores psico-sociais que possibilitam
que o homem autoritário ameace substituir os tipos individualista e democrático – e no plano
político o autoritarismo ameace as formações neoliberais e social-democratas – bem como pensar
de que maneira essa ameaça pode ser contida. É neste sentido que apresentamos esta
despretensiosa tradução na expectativa de que desperte interesse na densa e rica discussão que
o livro (e a Teoria Crítica como um todo) traz à tona, apesar das reservas (questionáveis) de
parte da Esquerda com relação às leituras adornianas. (retornar ao texto)

Inclusão 15/10/2019

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