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Índice
Apresentaçã o
Apresentação
1. O envelhecer
envelhecer e o tempo: um olhar filosófico
Bi  bliografia
Bi
2. Saber che
chegar,
gar, saber
saber passar, saber partir 
Citações
Citaçõ es Bibliográficas
3. Espelh
Espel ho, espe
espelho
lho meu...
meu...
Bi  bliografia
Bi
4. Metam
Metamorfoses da alm almaa após a meia-i
meia-idade...
dade...
Começando
Co meçando a refletir...
Questões
Questõ es fundament
fundamentais ais da meia-i
meia-idade
dade
Onde me encontro? Qual Qual o sentido da vida?
Metamorfoses
Metam orfoses reativas ao envelhecer 
envelhec er 
Questões
Questõ es fundamentais da meia-idade
meia-ida de
As metamorfoses
metamorfoses da alma de Nietzsche e a metanóia de Jung
Parandoo de refletir.
Parand r efletir.....
Bi  bliografia
Bi
5. Metanóia 
Metanóia e história : Conflitos e rupturas na meia-idade
Referência
Referê ncia Bibliográfica
6. A dimensão
dimensão religiosa da existência e o envelhecer – Diálogo entre entre
Kierkegaard  e Jung
Kierkegaard
A dimen
imensão
são estética e a sedução pelo prazer 
O sentido
sentido do Ético e o jog j ogoo dos opostos
O envelhecer
envelhecer e a dim dimensãoensão religiosa
reli giosa da existên
e xistência
cia
Bibliografia
7. Serenidade – ser é unidade: Um encontro entre Heidegger e Jung
METANÓIA: A Virada no Caminho
ENVELHECER COMO ENCONTRO DO SER: os desafios do caminho
ANGÚSTIA E MORTE: na contradição da experiência para o sentido do
ser 
A IDADE DO SER: ser realizando o Ser 
SER É SABER:
SABER: a conquista
conquista do não-ser através da serenidade
Bibliografia
8. Sobre a vida
vi da e a dor da meia-idade: Articu Articulação
lação ent
entre
re Ju
J ung e Schopenhauer 
Schopenhauer 
Considerações Gerais

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Sobre as considerações teóricas
Sobre a idéia de vontade
Sobre o mundo, a vontade e a representação
Sobre as dores do mundo – viver é sofrer?
A supressão das dores do mundo
A velhice, metanóia e transcendência
Referências
Referên cias Bibliográficas
9. O caminho do espírito na ciência e nos sonhos
Introdução
O inconsciente e o “sopro espírito”
Testemunho do espírito e testemunho histórico
O testemunho do espírito e o Processo de Individuação
A atividade do espírito no sonho de Jung e a formação da consciência de si
O Plano A e o Plano B
Conclusão
Referência
Referên cia Bibliográfica
10. Metanóia e mudança de paradigma
Referências
Referên cias Bibliográficas
11. A psicologia junguiana e a física no tempo da maturidade
Introdução
Rupturas e resgates na ciência
O início da ciência e suas transform
transformações
ações
O tempo origem e totalidade múltipla: no indivíduo e na ciência
Discussão final
Referências
Referên cias Bibliográficas

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Apresentação

Idade, plural-idade, meia-idade, envelhecimento, velhice... quantas significações,


mistérios, mitos e preconceitos!
 Numa sociedade
sociedade cada vez mais impregnada
mpregnada pelos
pelos valores
valores da eterna juventude, como
envelhecer?
Como assumir as marcas do tempo, que fazem suas inscrições no corpo e na alma?
Como assumir a passagem do tempo que vai levando esta vida para uma finalização,
quando a sociedade materialista e consumista quer negar tal realidade?
As marcas do tempo se revelam nas rugas, nos óculos, nos cabelos brancos, na
menopausa, no colesterol, na aposentadoria, nos lutos cotidianos pelos que partem...
Enfim, como disse Jung, as perdas são sinais que a vida nos dá de que somos seres de
 passagem.
assagem. Mas atualmente
atualmente parece que é normal negar isso, queremos parecer eternos e
eternamente jovens, porém não tem como reverter tal situação; pelo menos por 
enquanto, todos nós envelhecemos – bem ou mal, esta é a única opção que nos cabe ter.
Quando acontece a meia-idade? Poderíamos situá-la entre os 40 e os 50 anos, período
que traz muitos questionamentos e ressignificações – período de trevas e luz. Mas como
envelhecer numa sociedade que privilegia de forma tão acentuada os valores da
uventude? Um dia chegamos à meia-idade, normalmente com certa estranheza ou até
constrangimento mas sempre há algo de perturbador. Marta Medeiros, em artigo da
revista Globo  de 11/9/2005, diz que, ao envelhecer, descobrimos que a grama do vizinho
não é mais verde coisa nenhuma; estamos todos no mesmo barco, com motivos para
dançar e para se refugiar no escuro, alternadamente. Nesta linha de pensamento, Jung
diz: “A vida é, ao mesmo tempo, significativa e louca. Se rirmos de um dos aspectos e
não rirmos e especularmos acerca do outro, a vida se torna banal; e sua escala se reduz
ao mínimo. Há, então, igualmente pouco sentido e pouco absurdo”.
Envelhecer é um processo vital inerente ao viver, vai do nascimento à morte, mas
ganha maior visibilidade após os 40 anos. É uma grande experiência que põe à prova a
nossa caminhada existencial, que pode ser uma aventura ou um desastre. Porém, diante
de uma sociedade que privilegia os valores da eterna juventude, acontece uma ferrenha
negação desse processo natural e irreversível. Estamos premidos pela necessidade de
querer parecer sempre jovens. A partir do século XX, os valores cultivados foram:
SENSAÇÕES, APARÊNCIA e IMAGEM. Busca-se a todo o preço ter um corpo de
ovem, sentir prazer e ser feliz, manter a boa forma, tendo sempre como referência de
desempenho o padrão jovem. Isto é o que mais importa. Vale a  performance  externa, e

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cada vez mais corremos o risco de nos tornar escravos desses valores sociais. Nossa
sociedade atual tem sido denominada a Sociedade do Espetá culo (Debord, 1997), isto é,
das aparências, da deificação do efêmero, do presente.
Um querido professor de Filosofia e colaborador neste livro, Tiago Lara, falando sobre
temporalidade e travessia, afirma que nos cabe conciliar o  sabor do tempo que flui com
o  sabor do eterno. Isto nos lembra Guimarães Rosa, que por meio de Riobaldo diz: “Ah!
Tem uma repetição que sempre, outras vezes, em minha vida acontece. Eu atravesso as
coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido com a idéia dos
lugares de saída e de entrada”. Portanto, cabe-nos a inserção na consciência da passagem
do tempo, da travessia, e saborear cada etapa ou estação da vida, pois todas elas têm
suas riquezas e suas privações. Talvez o maior perigo seja nos iludirmos com as
máscaras de  juventude  e negarmos a beleza de sermos eternos aprendizes do viver,
como canta Gonzaguinha: “viver e cantar e cantar a alegria de ser um eterno aprendiz...”,
aprendiz do desejo de viver o mais plenamente possível, independentemente da idade.
 Numa sociedade
sociedade em que, a cada ano, à medida
medida que aniversari
aniversariamos,
amos, começamos a
esconder a idade, passamos a ter vergonha dela. Como é comum ouvirmos: “Parei nos
40, 50...”. Enquanto continuarmos a fazer isso, estaremos perpetuando o preconceito
contra a velhice e fazendo a apologia da juventude. Cada vez mais, se faz necessário
assumir a realidade da passagem dos anos com seus prós e contras. Qual o  glamour  da
segunda metade da vida? O que significa metanóia?
 Nos tempos atuais,
atuais, cada vez mais
mais estamos nos distanci
distanciando
ando das dinâmi
dinâmicas
cas do SER 
 para o TER, e indo além, além, estamos caminhando
caminhando para o PARECER T ER. Lembrando
Platão, podemos dizer que estamos deixando de nos conectar com o Mundo das Idéias,
com a subjetividade e a consciência de si mesmo, e nos articulando predominantemente
com a realidade dos Simulacros. Nossa sociedade individualista, consumista e
materialista, vive sob o domínio da mídia, que nos impõe modelos. Estamos, segundo a
visão de Jung, massificados e alienados, nos distanciando de nossas raízes, de nossa
alma. Quando em contato com ela – nossa alma –, somos levados a ter consciência do
tempo, pois nele tecemos nossa história, nos construímos. Na consciência do fluir de
nossa temporalidade, temos a possibilidade de questionar o viver, suas verdades e
mentiras, e esta possibilidade se acerca de nós de modo mais evidente após a meia-idade.
Passamos a buscar o sentido da vida. A idade em si é o que menos importa, pois, afinal,
somos uma  plural-idade. Porém, o que realmente importa é o questionamento do que
fazemos de nossa vida. O que realmente vale a pena? Aos questionamentos dessa fase
Jung denominou metanóia.
 Metanoein significa mudar a maneira de pensar, sair para outro nível de consciência ou
de atitude mental. Jung anunciou a necessidade de mudanças, de expansão da
consciência ao longo da vida, sempre ligada às demandas externas tanto quanto às
internas e do inconsciente. A esta realidade transformacional, de encontro com a própria
 potencial
otencialiidade intrínseca, chamou de P rocesso de Individuação.
Individuação.
Como fica nossa auto-imagem? Como saímos da identificação com os valores da
massa impostos pela mídia e ganhamos espaço para nossa singularidade ou nossa

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individuação, como propôs Jung?
Jung foi um dos pensadores da atualidade que, de fato, estudou e deu valor à segunda
metade da vida; assim, reunimos um grupo de psicólogos e professores de filosofia com a
leitura junguiana pra refletir acerca deste processo vital. Visando enriquecer nossas
reflexões, fizemos a articulação do pensamento de C. G. Jung com alguns filósofos:
Platão, Heidegger, Schopenhauer, Nietzsche, Hegel, Kierkegaard, Benjamin e com o
 pensamento quântico.
quântico.
Torcemos para que estas reflexões possam ajudar a compreender as belezas e as luzes,
tanto quanto as trevas e o sofrimento da travessia – vida  após a meia-idade. Viver e ser 
feliz não é só valorizar a alegria e o prazer, mas também aprender e refletir sobre as
 perdas, o fracasso e o sofrimento.
sofrimento. Jung diz que precisamos
precisamos forjar um Eu que suporte a
verdade, que seja forte para aceitar a realidade do vivido: perdas, nãos, críticas, erros,
decepções... que são inerentes à vida. Poeticamente, nos dando setas de orientação na
caminhada,
caminhada, na velhice,
velhice, Cora Coralina
Coralina nos presenteou com um de seus belos poemas:

 A P   ROCURA
A NDEI PELOS CAMINHOS DA VIDA,
CAMINHEI PELAS RUAS DO DESTINO
PROCURANDO O MEU SIGNO.
BATI  NA PORTA DA  F ORTUNA
ORTUNA
MANDOU DIZER  QUE  NÃO ESTAVA.
BATI  NA PORTA DA  F  AMA
ELA  NÃO QUIS ME RECEBER .
PROCUREI A MORADA DA  F  ELICIDADE 
A VIZINHA DA FRENTE ME AVISOU
QUE ELA SE MUDOU SEM O  NOVO ENDEREÇO.
PROCUREI A MORADA DA  F ORTALEZA
ORTALEZA
ELA ME FEZ ENTRAR : DEU-ME VESTE  NOVA
OVA,
PERFUMOU-ME OS CABELOS ,
FEZ-ME BEBER  DE SEU VINHO.
ACERTEI O MEU CAMINHO.

Rio de Janeiro,10 de janeiro de 2007.


 Dulcinéa da Mata
M ata Ribeir
R ibeiroo Monteiro (org.)
(org.)

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1
O envelhecer e o tempo: um olhar filosófico
Estrella Bohadana*

QUANDO ALGUÉM DIZ QUE SABE ALGUMA COISA,


FICO PERPLEXA:
OU ESTARÁ ENGANADO, OU É UM FARSANTE,
OU SOMENTE EU IGNORO E ME
IGNORO DESTA MANEIRA?
E OS HOMENS COMBATEM PELO QUE
J ULGAM SABER .
E EU, QUE ESTUDO TANTO
I NCLINO A CABEÇA SEM ILUSÕES,
E A MINHA IGNORÂNCIA ENCHE-ME
DE LÁGRIMAS AS MÃOS . 1
Cecília Meireles,
 Não sei distinguir no céu as várias constelações,
constelações, 1960.

Pensar talvez seja o maior desafio no alvorecer do terceiro milênio. Alvorecer que traz
o seu próprio entardecer, que anuncia este “novo” Tempo. Tempo de excesso. Excesso
de informação, de imagem, de movimento. Mas também excesso de petrificação, de
mumificação, de padronização intercambiável, de imobilismo. Tempo de paradoxos, em
que jamais se produziu tanta informação e tão pouco conhecimento; tempo em que o
conhecimento consagra-se matéria-prima da trama das decisões e do poder, enquanto o
ato de educar é posto em xeque e não raro tornado obsoleto.
Os novos horizontes abertos parecem conduzir a um sem-fim, desenhando o século
XXI como um mundo de sólida forma, mas de pérfida opacidade, de onde surgirão as
ressignificações e o nascimento de civilizações.
 Neste novo cenário, emergem interrogações
interrogações básicas
básicas do homem sobre si mesmo,
me smo, sobre
seu estar no mundo e na sociedade. Valores existenciais são afetados e questionados. O
saber é posto à prova assim como sua impossibilidade de controlar o todo do
conhecimento. Discriminações antes feitas entre o objeto e sua imagem correspondente
desaparecem. O tempo extensivo, garantia de um tempo infinitamente grande, se
desvanece, enquanto o tempo intensivo, acentuando o infinitamente pequeno, encarrega-
se de dissimular o futuro, abrindo possibilidades de um tempo real. Tempo instantâneo,

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interativo, concomitante, do qual reverbera a presença real do acontecimento que, à
espreita, aguarda o insólito, o abrupto. Nesse tempo de simultaneidade, a surpresa – o
acidente – sobrepuja o suspense: aquilo que preserva a substância durável da mensagem
(VIRILIO,
(VIRILIO, 1994).
São épocas como estas, nas quais dúvidas e incertezas se aprofundam, que Hannah
Arendt situa como propícias a falar-se de crise (1972). No entanto, no seu sentido mais
originário, crise quer dizer movimento, mudança, e não necessariamente desastre. U m
movimento de crise é de (de)cisão do padrão ou do arranjo sistemático (arcabouço) das
 partes repetidas
repetidas ou correspondentes que constituem
constituem o cenário de uma época. Trata-se,
enfim, de um “momento” crucial ou ponto de inflexão, de transformações inesperadas e
repentinas, no curso dos eventos, que rompem com o estabelecido, com o paradigma.
Articular crise e desastre é retirar da crise o que nela há de criativo, revelando um gosto
 pela
ela fixi
fixidez, pela
pela permanência. Vivemos hoje numa realirealidade que, à tradici
tradicional
onal fixi
fixidez,
dez,
contrapõe todas as “surpresas” da circulação e do movimento.
É, portanto, do interior do movimento que ocorre a oportunidade de se retornar ao
cerne de algumas interrogações. As respostas não devem visar necessariamente ao que se
apresenta como novo. O que faz de qualquer resposta algo criativo é o fato de ela nos
conduzir a um novo pensar.
As possibilidades tecnológicas trazidas pelo universo digital favorecem o
 prolong
rolongamento
amento da juventude, criando
criando a ilusão de que é possível evitar
evitar o envelheci
envelhecimento
mento
 – e, por consegui
conseguinte,
nte, a morte. E, ainda
ainda que pareça uma questão própria
própria do terceiro
milênio, esse é um desejo atávico, já presente em alguns mitos, em que a busca pela
eternização vincula-se à busca pela eterna juventude, como na história do herói
 babil
abilônico
ônico Gilgamesh.
Gilgamesh.
Gilgamesh, fitando o cadáver do amigo Enkidu, interroga: “Também eu terei, um dia,
de me deitar como ele, para não mais levantar?”. Ciente de que dificilmente escaparia do
mesmo fim, Gilgamesh vai ao encontro de Ut-Napishtim para pedir-lhe ajuda. Único
sobrevivente do dilúvio, e a quem os deuses concederam a imortalidade, o sábio Ut-
apishtim habitava a “foz dos rios”. Apesar do caminho longo e cheio de obstáculos,
Gilgamesh não mede esforços e enfrenta as águas da morte que rodeavam a ilha em que
morava o sábio. Diante deste, Gilgamesh é submetido às mais diversas provas e, tendo
fracassado, o sábio não lhe concede a vida eterna. Mas, atendendo às súplicas da esposa,
Ut-Napishtim revela a Gilgamesh a existência de uma planta “cheia de espinhos” que,
localizada no fundo do oceano, embora não lhe fornecesse a vida eterna, prolongar-lhe-ia
a juventude por um tempo indeterminado. Gilgamesh aceita o desafio e parte, feliz,
finalmente retornando com a planta. Durante o percurso de volta, Gilgamesh pára em
uma fonte. Atraída pelo odor da planta que ele deixara ao lado, uma serpente – 
adversária da imortalidade, sempre à espreita do homem que almeja sair de sua condição
de humano – aproxima-se e a devora, tornando-se ela própria viva e jovem para sempre.
Seja “escondida” em meio ao Éden, como no caso do mito hebreu, seja no fundo do
oceano, como aquela tão procurada pelo herói babilônico, a Árvore da Vida revela, em
suas diferentes formas, o atávico anseio do homem por uma existência plena, na qual

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nada jamais lhe venha a faltar – principalmente a própria Vida.
Em face dessa busca que, de diferentes formas, tem permeado a existência humana, é
 bem-vindo
em-vindo o exercício
exercício de contrapor visões
visões de mundo que tentam neg negar
ar a perspectiva
perspectiva
ontológica contida no tempo cronológico. É desde o interior dessa perspectiva que
consideramos importante compreender a noção de envelhecer. O envelhecimento como
 próprio
róprio de quem vivevive as vicis
vicissi
situdes
tudes do humano. Humano, expostoexposto à linearidade
nearidade
intrínseca à cronologia e ao movimento incontido nela presente. É neste sentido que
lançamos um olhar filosófico sobre as diversas noções de tempo que desde a aurora do
Ocidente marcam nossas experiências.
 Numa breve apreensão da históri históriaa da Grécia
Grécia An
Anti
tigga, verifi
verificamos
camos que os
acontecimentos concernentes ao apogeu do império micênico foram conservados durante
vários séculos, embora tenham sofrido modificações em seus conteúdos graças a
acréscimos resultantes do folclore popular, fundando a poesia épica grega. Tais
acontecimentos foram recitados pelos aedos – cantores que iam de cidade em cidade
narrando os feitos dos heróis, acompanhados pela musicalidade emanada da cítara. Esses
cantos criaram a história dos aqueus desse período e nos deixaram como legado três tipos
de personagens que se caracterizavam pela relação temporal que estabeleciam. Assim,
encontramos nas narrativas épicas o aedo, o profeta e o velho. O aedo conhece os
conteúdos passados, o profeta conhece o  por-vir , enquanto o velho conhece o passado,
o presente e sabe avaliar o  por-vir ; dos três, é o único que traduz o percurso
 propriamente
ropriamente humano.
Cabe ressaltar que, na própria poesia épica, como no caso da Ilíada, a morte é vista
como um acontecimento “nefasto”. Já no primeiro canto, Aquiles ressalta sua condição
de mortal, dizendo: “Mãe, que me dotaste de uma vida tão curta, não devia o Olimpo
cumular-me de honras?” (HOMERO, 2002. Canto 1: 352-4). A mãe, Tétis,
reconhecendo essa “triste” condição do filho, em tom lamentoso diz: “Ai de mim! Te
criei nutrido de infortúnios: Sem lágrimas, sem dor, assim eu te quisera sentado junto às
naves, pois te espreita a Moira, tens vida breve” (HOMERO, 2002. Canto 1: 414-17).
Passagens desse tipo nos mostram a importância da questão da imortalidade na épica
homérica.
Se por um lado a guerra mata, por outro a poesia revive. Portanto, o aedo canta o que
supostamente teria passado e que, ao ser lembrado, é assim perenizado. Neste caso, o
aedo, mais do que sabedor de um conteúdo ou dotado de uma memória eficaz que
armazena informações, é o pretexto de um ritual que, tendo em si o motivo, não o
encerra. Ao longo de suas narrativas, o aedo, trazendo para o presente algo que pertencia
ao passado, leva seus ouvintes a reviver um mundo de acontecimentos antigos que, ao
ser revivido, funda um novo estar no tempo. Tempo que dissolve as noções de passado,
 presente e futuro, instaurando o que estamos
e stamos chamando de tempo do acontecer.
Tempo desobediente a qualquer cronologia, funda a noção de tempo kairótico. Assim,
o aedo esquece que o passado é passado, e por isso pode torná-lo presente; não há,
então, retorno ao passado, é o passado que se torna presente. Nessa junção, passado e
 presente se fundem e, lançando-se para o  por-vir  , constroem-se num único tempo: o

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tempo do acontecer; tempo que é pura duração. Fora da linearidade cronológica, o tempo
dá-se na experiência kairótica, tempo sinuoso que arrebata os aconteceres, assim como
faz o deus Crono, que, ao lhe nascerem os filhos, incontinente, os devora. No eclodir do
acontecer, já lá está, impaciente, a sua dissolução: a ação é tudo. Instauradora do
acontecer, a ação não é desdobrável em causa e efeito. Aquém e além dela nada há.
O profeta – o adivinho – é aquele que tem a capacidade especial de interpretar os
ambíguos sinais que os deuses enviam aos homens, na forma de sinais atmosféricos, de
vôo das aves, aspecto das entranhas de animais, entre outros, predizendo o futuro.
Já no primeiro Canto da  Ilíada, diante da terrível peste enviada por Zeus e que
dizimava o exército grego, Aquiles solicita que se reúna a assembléia a fim de saber do
adivinho Calcas como proceder. Ou, ainda, no Canto VI da mesma  Ilíada, quando o
herói troiano Heitor segue as orientações de seu irmão, o adivinho Heleno, que ordena
 preces públi
públicas à deusa Atená para aplacá-la.
aplacá-la. Nas duas situações,
situações, o adivi
adivinho
nho é chamado
 para fazer a mediação entre a fúria de deuses e mortais (HOMERO, 2002).
O adivinho vive, assim, nas bordas do divino e do humano. Nos dois cantos
mencionados, o adivinho faz a decifração das imagens divinas. Vincula essas imagens,
simultaneamente, às ações dos deuses e dos homens, pois está imerso em duas
temporalidades: a kairótica e a cronológica.
Diferente do adivinho, o velho participa, na épica grega, do tempo cronológico, tempo
dos mortais. No Canto IX da  Ilíada, o velho Nestor é consultado quando Agamêmnon,
rei de Micenas, reúne os chefes aqueus para lhes propor o levantamento do cerco. Nesse
momento, Nestor, após avaliar a situação, julga fundamental, antes, aplacar a ira de
Aquiles. O rei concorda. E logo uma embaixada, formada por Fênix, Ájax e Ulisses,
dirige-se à tenda de Aquiles e, sem êxito, busca aplacar a ira do herói (HOMERO, 2002).
De maneira similar, no Canto III da Odisséia, o velho Nestor também é mencionado
como alguém que é consultado, no momento em que Telêmaco chega a Pilos, buscando
notícias do seu pai, Odisseu. É Nestor quem conta o trágico fim de Agamêmnon e
aconselha a ida do jovem Telêmaco a Esparta (HOMÈRE, 1999).
 Nas duas situações,
situações, Nestor é apresentado como aquele
aquele que sabe analis
analisar
ar as situações
situações
 próprias
róprias da guerra. É aquele que tem serenidade capaz de direcionar
direcionar as ações dos heróis.
heróis.
Ao averiguar o passado, o velho analisa o presente a fim de que as situações do futuro
 possam ocorrer de forma satisfatória.
satisfatória. Na épica, o velho é respeitado pelos
pelos heróis. A título
título
de ilustração, o dizer de Cícero talvez possa nos ajudar a compreender a função do velho
na épica grega: “Viver na ignorância do que aconteceu antes de nascermos é ficar para
sempre na infância. Pois qual é o valor da vida humana se não a relacionarmos com os
eventos do passado que a história guardou para nós?” (CÍCERO, s/d).
Diferente do tempo kairótico, que se volta para o tempo mítico – a duração –, o
tempo cronológico é um tempo mensurável, que se nutre de acontecimentos tornados
fixos. Assim, espera-se que o velho tenha a habilidade de relacionar os acontecimentos
 passados com o presente, a fim de poder balizar
balizar a ação futura.
A partir de Platão, no entanto, dois novos termos são introduzidos para designar a
noção de tempo: aion e chronos. O primeiro significa em grego “época da vida”,

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“tempo da vida”, “duração da vida”. De forma geral, o termo se prestava para designar 
vida ou destino de uma existência individual. O termo chronos  designava “duração do
tempo”; tempo, portanto, em todo o seu conjunto, inclusive “tempo infinito”.
Segundo Ferrater Mora (1982), aion e chronos  significavam, respectivamente, “uma
época ou parte do tempo e o tempo em geral. No entanto, o vocábulo aion passou logo a
ser usado para designar eternidade, de tal forma que chegou um momento em que o
significado de aion  passou a ser mais amplo do que o de chronos”. Ao analisar os
motivos dessa mudança, Mora, citando A. J. Festugière, lembra que, já no século V a.C.,
 produz-se entre alguns
alguns gregos trágicos
trágicos uma extensão
extensão do conceito
conceito de aion, que deixa de
significar “período da vida” para designar um tempo que abrange desde o “início até o
final da vida”. Concebida a vida num sentido amplo, o termo aion  passou a indicar “vida
sem fim”, então, “eternidade”.
Sob essa perspectiva, encontramos a noção de arquétipo tal qual a formulou Jung, cuja
expressão ocorre por meio de símbolos variados, e não por meio de um símbolo único e,
fixo.. Em seu  Aion – Estudos sobre
 por isso, fixo sobre o simbolismo
simboli smo do si mesmo  (1988), Jung
ressalta que “a este nível do mito, que é provavelmente o que melhor expressa a natureza
do inconsciente coletivo, a mãe é, simultaneamente, velha e jovem, Deméter e
Perséfone, e o filho é, ao mesmo tempo, esposo e criança adormecida”.
 Neste sentido,
sentido, compreende-se o porquê de P latão usar para o termo “eternidade”
“eternidade” o
vocábulo aion. Em o Timeu  (37d, 1979), Platão define o tempo ( chronos) como sendo
“a imagem móvel da ‘eternidade’ – aion. Neste caso, aion  passa a ser entendido como
‘totali
‘totalidade do tempo, modelo
modelo do tempo’”.
A associação entre velhice e finitude confronta o homem com sua condição ontológica:
a de ser mortal e de ser o seu viver não só um constante processo de envelhecer, mas
também um percurso para a morte. Portanto, o tempo não envelhece, quem envelhece é
o homem. Como lembra Cícero: “Curto na verdade é o tempo da nossa vida, mas é
 bastante longo
longo para se viver
viver bem e honradamente” (CÍCERO,
(CÍC ERO, s/d).
O envelhecer, visto como um processo inevitável, é afirmado e tornado algo positivo
 por Pl
P latão. A crença de que a velhice
velhice confere ao ser humano melhores condições
condições de lidar 
lidar 
com o poder talvez explique por que o filósofo, em sua proposta para a Pólis ideal, criou
um programa de educação no qual somente após os 50 anos o homem seria capaz de
exercer a dialética. Pessoas mais velhas estariam mais aptas a realizar tal “estudo” por 
serem mais comedidas, podendo honrar suas atividades. Esta serenidade seria
fundamental para o aprendizado da “dialética”, o qual só ocorreria por meio de
“continuidade e aplicação”. Os mais dedicados poderiam contemplar a verdade do ser e
das idéias (o que é belo, por exemplo), obtendo as condições para desempenhar 
adequadamente suas funções governamentais. De posse desse saber, deveriam retornar à
“caverna”, para que pudessem “exercer os comandos mili militares”, alternando
alternando “a vida
vida social
com o exercício da contemplação”. Vale mencionar que o ideal de educação, nesse
quadro, é comum para os dois sexos. As mulheres e os homens poderiam igualmente ter 
acesso aos cargos públicos, ambos devendo prestar o serviço militar segundo tempos
diferenciados: para as primeiras, até os 50 anos, para os segundos, dos 20 aos 60 anos

13
(PLAT
(PLAT ON, 1979).
Para Platão, a autoridade está ligada, assim, à construção, e não à prepotência, ao
obstáculo, à repressão e ao despotismo que caracterizam o autoritarismo. A autoridade é
um elemento estruturante de crescimento, operador de desenvolvimento, enquanto o
autoritarismo é o uso indiscriminado do poder, diametralmente oposto à verdadeira
educação que transforma e forma cidadãos livres.
livres.
É interessante ressaltar a diferença apresentada por Arendt entre os conceitos de
autoridade e de autoritarismo que, trazidos da esfera política para a educação, são,
muitas vezes, mal assimilados e motivo de confusão e perplexidade para muitos
educadores. Remontando à origem latina de autoridade, auctoritas, derivada do verbo
augere,  aumentar, significa aquilo que a autoridade ou os de posse dela, constantemente,
fazem de todas as coisas futuras. Quem detinha a autoridade eram os anciãos, o Senado
Romano e os  patres,atres,  que a obtinham por descendência e transmissão de seus
antepassados. Em contraposição à força ou ao poder, a característica mais proeminente
dos que detêm autoridade é não possuir poder : “Enquanto o poder reside no povo, a
autoridade repousa no Senado”, mostra Arendt citando Cícero (1972: 164). Assim era
que a idade provecta, distinta da simples maturidade, continha para os romanos “o
 próprio
róprio clímax
clímax da vida
vida humana, não tanto pela
pela sabedoria
sabedoria e exp
experiênci
eriênciaa acumuladas,
acumuladas,
como porque o homem velho crescera mais próximo aos antepassados e ao passado”
(1972: 166). Se, para o mundo moderno, o crescimento é dirigido para o futuro, para os
romanos, o crescimento se dava no sentido do passado, santificado através da tradição, a
qual leva de uma geração a outra “o testemunho dos antepassados que inicialmente
 presenciaram
resenciaram e criaram
criaram a sagrada
sagrada fundação e, depois,
depois, a eng
engrandeceram
randeceram por sua
autoridade no transcurso dos séculos” (p. 166).
Apesar desse olhar que os romanos lançam sobre o velho, parece que o Ocidente se
ocidentalizou na perspectiva da modernidade, lançando e dirigindo seu olhar para o
futuro. Olhar que, traduzindo as diversas lógicas explicativas, construiu uma história que
 passou a dizer
dizer o Ocidente.
Ocidente. Nela,
Nela, o pensamento mergulhou
mergulhou na ilusão de que somente o
explicável existe, ficando o inexplicável encarcerado no lugar do irracional. Ofuscado pela
clareza dos signos, o homem ocidental, arauto do raciocínio, chega mesmo a acreditar 
que o viver ocorre obediente à ordenação que lhe é conferida. Transbordando cada vez
mais em humanidade e reivindicando um sentido para a vida, o homem ocidental impõe-
se a si mesmo a tarefa de conhecer, momento que se revela mais dedicado às
empreitadas do raciocínio do que às do pensamento, ambicionando conhecer o conjunto
dos objetos – conhecidos e desconhecidos.
Em face da existência, que, como nos lembra o já esquecido Lucrécio, é composta
deste mundo do qual se pode ter uma percepção parcial – haec summa  – e de vários
outros mundos dos quais não se pode ter praticamente nenhuma percepção –  summa
rerum  –, o raciocínio vagueia, buscando um conhecimento que explique o viver 
(LUCRÉCIO, s/d).
A constante construção de sentido, contexto e palavra, verdadeira modelagem e
remodelagem do mundo das significações, talvez justifique a conhecida profecia de

14
ietzsche, segundo a qual “não se pode demonstrar nem o sentido metafísico, nem o
sentido ético, mas somente o sentido estético [sensação] da existência” (NIETZSCHE,
1984). Com esta sentença, Nietzsche, dispensando qualquer pergunta sobre o sentido do
acontecer da existência, revela o acontecer como sendo o próprio sentido. Entretecidos,
acontecer e existência confundem-se. Indissociável do acontecer, o sentido nele se faz.
Sem nada dizer, deslizando sem território ou localidade, o sentido brota, efêmero, das
rugas do próprio acontecer. São rugas do tempo, de onde nasce a condição do
envelhecimento, do sentir-se envelhecer, e da consciência da morte.
Vendo na arte uma afirmação da vida, Nietzsche propõe “uma nova imagem do
 pensamento”, em que o conceito
conceito de verdade, até então um “uni
“ universal
versal abstrato”, vincul
vincula-
a-
se às noções de sentido e valor (NIETZSCHE, 1984). Percebida como “a efetuação de
um sentido ou a realização de um valor”, a verdade torna-se uma busca, na qual o
 pensado, ao encontrar uma força correspondente no pensamento, apropria-se
apropria-se também de
toda força fora do pensamento. Somente através da avaliação das forças e do poder que
conduzem o pensamento a pensar é que a verdade de um pensamento seria encontrada,
nunca enquanto elemento intrínseco ao próprio pensamento. Ironizando o entendimento
dos filósofos quanto à verdade, Nietzsche proclama: “A arte foi-nos dada para nos
impedir de morrer
morrer de verdade” (NIETZSCHE, s/d). Como arte, o pensamento abandona
o “cogito”, e a vida deixa de se mostrar uma reação, enquanto a ação do pensar torna-se
a expressão do amálgama entre o pensamento e a vida. Assim, “a vida faz do
 pensamento uma coisa
coisa ati
a tiva”
va” e o “pensamento faz da vida
vida qualquer
qualquer coisa de afirmativ
afirmativo”
o”
(NIETZSCHE, 1984). A verdade de um pensamento deve ser, então, avaliada a partir 
das forças ou do poder que se apropriam do pensamento, momento no qual se efetua o
sentido estético da existência.
Talvez a apreensão desse sentido estético da existência possa ser comparável ao
venerável conto oriental que, exilado há muito para as sombras do esquecimento, fala de
um rei que, tendo sido coroado muito jovem, resolve, para tornar-se erudito, convocar 
sábios do mundo inteiro a fim de lhe ensinarem a verdade sobre o homem. Os sábios
trabalharam por vinte anos e trouxeram 500 volumes contendo a “verdade”, para que o
rei conhecesse. Mas, como o rei já estava com 40 anos, solicitou-lhes que reduzissem o
número de volumes. Mais vinte anos se passaram e os sábios retornaram com 100
volumes. Mas a essa altura o rei já estava com 60 anos e pediu nova redução. Mais dez
anos se passaram e os sábios voltaram com cinco volumes. Mas agora o rei já tem 70
anos, está quase cego, e solicita a redução da obra para um único volume. Após cinco
anos os sábios finalmente trazem ao rei um único pequeno livro, mas o encontram
agonizante. Ao avistar os sábios, ele diz: “Morrerei sem conhecer a verdade do
homem!”. Aproxima-se o mais velho dos sábios e diz: “Em três palavras eu vos contarei
a verdade do homem, Majestade: o homem nasce, anseia e morre”. E o rei, feliz, morre.
Diante desse pequeno conto, constatamos que a consciência de que o envelhecer é um
inevitável percurso de todo ser humano e pode nos consagrar uma espécie de viajantes
do tempo. Viajante cuja única companhia é o tempo. Viajante cujas viagens serão sempre
solitárias. Que, livre do passado e do futuro, afirma o presente. Viajante privado de

15
esperança e nostalgia, e assim livres da frustração do ideal não alcançado, do paraíso não
reconquistado. Viajante que vive o que é e não o que era ou o que será.
Envelhecer na vitalidade própria da vida é viver livre das amarras do passado e do
futuro, mas sem negar as forças que invadem a memória. Nessa liberdade de ação, vive-
se tão intensamente as experiências do presente, que elas jamais se tornarão passado. E o
futuro? Este existirá com tal grau de flexibilidade que nos colocará abertos o suficiente
 para redimensi
redimensionar
onar o mais grandioso
randioso dos projetos. Quando inscrito
nscrito na ordem do
 possível,
ossível, nosso futuro jamais se sobreporá ao presente. O futuro não será a marca
 projetada do presente adiado,
adiado, mas
m as o tempo do tempo. Tempo que se faz simul
simultâneo,
tâneo, um:
 passado, presente e futuro. Nessa fusão temporal, somos o que vivemos e, por isso, nada
somos. Afirmamos o que a nós não é dado eludir: termos sido lançados na vida de modo
idêntico a como dela seremos retirado. Submetidos às forças que nos ultrapassam,
apostamos na vivacidade da vida, só encontrável no vigor do eterno presente. Neste
 presente, podemos rir rir do que nos é apresentado. Rir o riso
riso da criança, do poeta e do
dançarino. Riso que acompanha a simplicidade e a grandeza do viver. Riso do brincar,
riso que, guardando a inocência e a sabedoria, desfruta do brilho e do terror da vida. Riso
que esconde a sabedoria que secretamente sabe que a vida nos ultrapassa. Riso que faz
enternecer um conjunto de valores, toda vez que com eles depara. Riso que nada valora,
 pois
ois o que é valorar,
valorar, senão julg
julgar as forças da vida?
vida? Seria
Seria a vida
vida julg
julgável?
ável? E nós,
seríamos nós os melhores juízes?

Bibliografia

ARENDT, Hannah.  Entre o passado e o f uturo


uturo. São Paulo: Perspectiva, 1972.
BRANDÃO, Junito.  Mitologia grega.
grega.  Petrópolis: Vozes, 1986.
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CÍCERO, Marco
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T úlio. Oração. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
DREIFUSS, René Armand.  A época das perplexidades.
perplexidades. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
JUNG.  Aion - Estudos
E studos sobre
sobre o simbolismo do si mesmo. 
mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988.
 _____. Simbolismo da transformação.
transformação. Petró
P etrópoli
polis:
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Vozes,, 1989.
198 9.
LEITE, Marques e JORDÃO, Novaes.  Dicionário latino vernáculo.
vernáculo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lux Ltda., 1956.
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HOMERO,  Ilíada.
líada . 3ª ed. São Paulo: Arx, 2002. Tradução de Haroldo de Campos. Edição bilíngüe.
HOMÈRE. Odyssée; texte traduit e établi par Victor Bérard, notes de Silvia Milanezi. Édition bilingue. Paris:
Les Belles Lettres, 1999 (3 vols.).
MORA, Ferrater.  Diccionario de Filosofi
MORA Fi losofiaa. 4ª ed., Madri: Alianza editorial, 1982, vol. IV, p. 3240.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência
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ASCENTES, Antenor.  Dicionário da língua portuguesa
 NASCENTES, portuguesa. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras/Departamento de Imprensa Nacional, Brasil, 1961.
 NIETZSCHE,
IETZSCHE, Friedri ch.  A Vontade de potência.
Fr iedrich. potência. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d

16
Crepúsculo dos ídolos.
 _____. Crepúsculo ídolos. São Paulo: Hemus, 1984.
 _____.  Para além do bem e do mal . Lisboa: Irmãos Guimarães, 1987.
PLATON. Obras completas.
completas. Madri: Aguilar, 1979.
VIRILIO, Paul.  A máquina de v isão.
isão. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1994.

1 . Agradeço
Agradeço ao meu filho Henrique
Henrique Bursztyn
Bursztyn que,
que, quando
quando tinha apenas 23 anos, apresento u-me este poem a.

* Doutora em História dos Sistemas de Pensamento pela ECO – UFRJ. Professora de Filosofia do Mestrado de Educação e Cultura
Contemporânea, e da graduação da Faculdade de Psicologia da Universidade Estácio de Sá. Publicações: Ver a Vida,
ida , Ver
Ver a Morte: da
 filosofia e da linguagem
lingu agem . Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1987.  Mito-im agem : o corpo e a palavra
pala vra.. Rio de Janeiro: Ed.
Tempo Brasileiro, 1989. Sobre Deuses e Poetas.
Poetas . Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro,
Brasileiro, 1 991

17
2
Saber chegar, saber passar, saber partir 
Roberto Crema*

É interessante imaginar um ser humano de remotas épocas visitando a nossa


civilização ocidental contemporânea: um antigo egípcio, um chinês da época de Lao-Tsé,
um hindu de alguns séculos antes de Cristo, um grego da Antigüidade Clássica, um asteca
ou maia ou nativo americano de séculos atrás. Qual não seria a sua surpresa diante de
nosso espetacular avanço científico e tecnológico? Como resistiria a um gesto de
maravilhamento diante de um computador, de um arranha-céu, de veículos maravilhosos
e velozes deslizando em pistas, singrando mares e atravessando nuvens no espaço?
Passada a vertigem desta comoção diante do espetacular progresso material e exterior,
 prossegui
rosseguindo
ndo em sua atenta observação, qual não seria
seria a desilu
desilusão
são de nosso visi
visitante
tante do
longínquo passado, ao constatar a nossa inépcia e incompetência quase total no comando
e na movimentação do mundo interior, dos pensamentos, sentimentos, desejos e
imaginação? Como resistiria a expressar um gesto de pura decepção diante do
analfabetismo psíquico e consciencial, da estupidez no mundo relacional com suas
guerras infindáveis e a barbaridade atitudinal diante dos fatos básicos da existência, como
o nascer, o existir, o coexistir e o morrer? Em grande medida, esta deplorável miséria
 psíquica,
síquica, conscienci
consciencial
al e ética
ética se deve ao que denominamos
denominamos de normose, uma patolog
patologiia
da normalidade (1), caracterizada pela adaptação a um sistema dominantemente doente e
corrompido e a um estado de estagnação evolutiva.
Eis a grande contradição implícita na megacrise sem precedentes que testemunhamos:
todo o poderio racional e técnico que desenvolvemos encontra-se nas mãos,
dominantemente, de seres desprovidos de qualidade subjetiva, padecendo de anemia da
alma e da consciência. Neste contexto, vale escutar a mensagem de sabedoria dos antigos
chineses que afirma que um instrumento justo, nas mãos de uma pessoa não justa, terá
conseqüências não justas...  A emergente visão holística (2) e abordagem transdisciplinar 
da realidade
realidade (3, 4) são respostas da inteligência humana, visando transcender esta ruptura
dissociativa entre a razão e o coração, a efetividade e a afetividade, a sensação e a
intuição, o masculino e o feminino, geradora de um desequilíbrio, que pode ser fatal para
a humanidade. Nesta visão emergente, é preservado o positivo das conquistas analíticas e
do progresso exterior, do ter, do poder e do parecer, ao mesmo tempo em que é feita
uma premente convocação para o investimento maciço no mundo da subjetividade, da
convivência e dos valores, no terreno da consciência e nos domínios do Ser.

18
Tudo indica que a humanidade encontra-se no limiar de um despertar para uma nova
idade da consciência (5). Recentemente, comemoramos os cinco séculos das descobertas
marítimas, que descortinaram o Novo Mundo. A partir do início do Século XIX,
chegamos aos confins dos átomos e nos aventuramos, nas últimas décadas, pelo espaço
sideral e também pelo virtual, o ciberespaço, de um mundo em processo frenético de
globalização. A grande questão é: quando iniciaremos a viagem de autodescoberta, com a
investigação do cosmo interior e com o processo de globalização dos múltiplos mares,
continentes e universos da alma humana? Neste tempo, onde um processo de metanóia
coletiva encontra-se em curso, o investimento no fator humano, da subjetividade,
intersubjetividade, dimensão onírica e noética, é o grande imperativo, no marco de uma
estratégia de auto-sustentabilidade e de reencantamento do mundo. É tempo premente de
cuidar, de cuidar-se.
Bem sabemos, como nos recordava Buda, que o oposto da morte é o nascimento, pois
a Vida é eterna. Assim, o processo existencial evolutivo transcorre no reino das
 polari
olaridades,
dades, através de estações defini
definidas,
das, cada uma soli
solicitando
citando a atuali
atualização de valores
valores
que lhe são próprios (6). Sempre implica esta tarefa de morrer para uma etapa a fim de
renascer para a seguinte. A primavera é a estação das flores, do brincar e do
desenvolvimento psicossomático, onde necessitamos inclinar o coração para aprender,
sobretudo, quem somos, de onde viemos e para onde vamos. O verão é a estação da
maturidade, onde urge cultivar os valores da cidadania e da vocação, para que possamos
nos enraizar, de forma criativa e proativa, contribuindo para a sociedade a que
 pertencemos. O outono, às vezes denominado
denominado de meia-idade,
meia-idade, é a estação dos frutos,
onde o mais fundamental é transmutar os valores do ter e poder para os do ser e
transparecer. Finalmente, o inverno é a estação da partida, do silêncio e da prece, quando
nos preparamos para o retorno ao Lar, de onde jamais partimos... Nessa visão,
 processual e de indivi
ndividuação,
duação, juventude nada tem que ver com a idade cronológ
cronológiica. É
um estado de consciência jovial, de alguém que conquistou uma dimensão de Sujeito e se
capacitou para a tarefa fundamental de amar e de servir, já que só nos pertence o que
ofertamos. Enfim, estamos aqui de passagem e o único passaporte que levamos é o das
nossas ofertas, das nossas doações.
Como afirmavam os antigos Terapeutas de Alexandria e, posteriormente, o criador da
terapia iniciática, Graf-Durckheim, segundo Jean-Yves Leloup (7), a trilha evolutiva nos
apresenta sete portais, referindo-se a sete etapas de um itinerário de realização, a saber:
1. experiência do numinoso; 2. a metanóia; 3. as consolações; 4. a dúvida; 5. o
esvaziamento; 6. a transformação; 7. o retorno à vida cotidiana.
A experiência do numinoso significa a irrupção do sagrado em nossas existências, esta
vivência que constela luz e sombra, fascinação e terror, que nos coloca de pé para uma
travessia que nos conduzirá, da margem da ignorância existencial para a da iluminação.
Ocorre, então, a metanóia, ir além de nous, onde o Mistério habita (8). Trata-se de um
 processo de retorno ao nosso eixoeixo essencial
essencial,, que alg
alguns denominam
denominam de conversão. A
etapa seguinte, das consolações, constela sincronicidades e encontros inesperados, como
se o próprio Mistério estivesse conspirando pelo caminhante, estimulando-o a seguir 

19
adiante, no caminho com coração. Desponta, então, o portal da dúvida, que João da
Cruz indicava como a noite escura da alma, quando somos acossados pelo que Graf-
Durckheim denominava de inimigo, Satã, segundo a tradição hebraica, que tem a função
de nos tentar e testar. É quando o que nos impulsiona precisa ser a força da fidelidade.
Se insistirmos, apesar de tudo, haverá a passagem pelo vazio, um processo de
desnudamento do conhecido e do passado, que antecede a transformação. Como afirma
Leonardo Boff (9), a ressurreição é a resposta total de Deus ao esvaziamento total de
esus!...  A última etapa é o regresso à  yoga  do cotidiano, esta ascese do dia-a-dia,
quando tudo se torna uma ocasião de consciência, com a suprema arte de se fazer grande
as pequenas coisas. Esta é uma descrição meramente indicativa e didática, para o desafio
infindável da individuação que, como indicava Jung (10), trata-se de um borboletear em
torno do eixo do Self ...
...
A aventura humana tem início com o assombro do nascimento e finda com o ritual de
assagem da morte, um amanhecer , de acordo com a feliz expressão de Kubler-Ross
 passagem
(11), que representam as duas faces do milagre da existência. Como afirma a tradição
mística basca, todos chegamos pelo portal de prata do nascimento e partiremos pelo
 portal de ouro da passagem
passagem – já que a morte não existe existe –, após a travessia
travessia de muitos
muitos
outros portais, que caracterizam o processo evolutivo de nossa jornada. Lembro-me de
certa ocasião em que estava sendo entrevistado, e a jornalista indagou-me se eu tinha
contato com “pacientes terminais”. Respondi, para a sua surpresa, que eu só tenho
contato com terminais! Afinal, quem não é terminal? Todos caminhamos para o fim e
este deveria ser um tema fundamental de estudo e consideração.
Infelizmente, refletindo sobre esta alienada cultura normótica de compulsividade
racionalista e tecnicista, a reflexão sobre a finitude não é apenas desconsiderada como
também banida e reprimida. Não consta de nossos programas sociais e educacionais, o
que determina um completo despreparo para o enfrentamento desta realidade inexorável,
no que diz respeito à sua vivência individual bem como à imprescindível tarefa de
acompanhar o outro no processo de findar. Mesmo os profissionais de saúde não são
educados para lidar com este fato (12). Este disfuncional tabu com relação à morte e ao
morrer impede a atitude saudável e a conquista de qualidade e dignidade no que deveria
ser uma arte de viver o ritual de passagem, com lucidez, aconchego e consciência.
 Na tarefa da reconstrução humana, necessitamos
necessitamos de uma alfabeti
alfabetização
zação psíquica
psíquica e
consciencial, de uma imprescindível  pedagogia inici ática  (13), que nos possibilite o
ini ciática
enfrentamento criativo com os desafios inexoráveis de uma existência evolutiva. Para
 poder,
oder, em algum
algum dia, feliz
feliz e justo, cantar este poema de fé, de Rabindranath Tagore
Tagore (14):

DORAVANTE  NADA MAIS TEMEREI  NEST E MUNDO, E TU CONQUISTARÁS A VITÓRIA EM TODAS AS MINHAS LUTAS.
DESTE-ME A MORTE POR  COMPANHEIRA, E EU VOU COROÁ -LA COM A MINHA VIDA. A T UA ESPADA ESTÁ COMIGO PARA
CORTAR  AS MINHAS AMARRAS , E  NADA MAIS TEMEREI  NEST E MUNDO.

Citações Bibliográficas

20
1. Leloup, J-Y; Weil, P.; Crema, R.  Normose,
ormose, a patologia da normalidade. 
normalidade. São Paulo: Verus, 2003.
2. Crema, R.  Introdução
ntrodução à Visão Holística. 
Holística. São Paulo: Summus, 1989.
3. Weil, P.; D’Ambrosio, U.; Crema, R.  Rumo à Nova Nov a Transdisciplinaridade
Transdisciplinaridade – sistemas abertos de conhecimento.
São Paulo: Summus, 1991.
4. Nicolescu, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. 
Transdisciplinaridade.  São Paulo: Triom, 1999.
5. Crema, R. Saúde e Plenitude. 
Plenitude. São Paulo: Summus, 1995.
6. Crema, R.  Antigos e Novos Terapeutas.
Terapeutas.  Petrópolis: Vozes, 2002.
7. Leloup; J.-Y.; Boff, L. Terapeutas do Deserto. 
Deserto. Petrópolis: Vozes, 1997.
Nicolescu, B. (org).  Le Sacré aujourd’hui.
8. Nicolescu, aujourd’hui.  Paris: Éditions du Rocher, 2003.
9. Boff, L.; Betto, Frei.  Mística e Espiritualidade. 
Espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
10. Jung, C. G. “A dinâmica do inconsciente.” In: Obras completas,
completas,
v. 8. Petróp
P etrópoli
olis:
s: Vozes,
Vozes, 1984.
11. Kubler-Ross, E.  La Muerte: um amanecer.
amanecer.  Barcelona: Ediciones Luciérnaga, 1989.
12. Leloup, J.-Y.; Hennezel, M.  A Arte de Morr
M orrer
er.. Petrópolis: Vozes, 1999.
13. Crema, R.; Washigton, A.  Liderança em Tempo de Transformação.
Transformação.   Brasília: Letrativa, 2001.
13. Tagore, R.  Poesia Mística. 
Mística.  São Paulo: Paulus, 2003.

* Coordenador do Colégio Internacional dos Terapeutas - Brasil, vice-reitor da Rede Unipaz. Publicações: - Crema, R.  Introdução
ntroduçã o à
Visão Holística.
Holística . São Paulo: Summus, 1989. -  Crema, R.; Washigazton, A.  Liderança em Tempoem po de Transformação
ransform ação .   Brasília:
Letrativa, 2001.

21
3
Espelho, espelho meu...
Celso Magalhães da Cruz Lima*

“EU  NÃO TINHA ESTE ROSTO DE HOJE,


ASSIM CALMO, ASSIM TRISTE, ASSIM MAGRO,
 NEM ESTES OLHOS TÃO VAZIOS,  NEM O LÁBIO AMARGO.

EU  NÃO TINHA ESTAS MÃOS SEM FORÇA,


T ÃO PARADAS E FRIAS E MORTAS ;
EU  NÃO TINHA ESSE CORAÇÃO QUE  NEM SE MOSTRA.

EU  NÃO DEI POR  ESTA MUDANÇA,


T ÃO SIMPLES, TÃO CERTA, TÃO FÁCIL:
- EM QUE ESPELHO FICOU PERDIDA A MINHA FACE?”

( R ETRATO. CECÍLIA M EIRELES, 2001)

Quarenta e cinco anos seria uma boa idade para comemorar um aniversário, mas ele
não andava pensando exatamente assim. Fazia algum tempo que se via estranho, meio
virado pelo avesso, apático e, ao mesmo tempo, repleto de sensações e sentimentos à sua
revelia.
Tudo vinha acontecendo aos poucos, quando começou a ser tomado por 
reminiscências inusitadas: lembrava-se de coisas que pareciam estar esquecidas para
sempre. Era como se houvesse algo a resgatar, ou existisse outro ou outros dentro dele.
Sentia-se um tanto à deriva, puxado de seu centro por forças autônomas e
desconhecidas. Se não tivesse praticamente esquecido os gregos antigos ou, quem sabe,
folheado vez por outra a Bíblia – São Paulo, por exemplo – e mesmo lido um pouco de
 psicol
sicolog
ogiia, reconheceria
reconheceria mais rapidamente uma crise existenci
existencial
al específica,
específica, “...uma
“.. .uma época
crítica, pois representa o início da segunda metade da vida de um homem, quando não
raro ocorre uma metanóia, uma retomada de posição na vida” (Jung, O.C., v. V: XXV).
 Na aparência, continuava
continuava o mesmo. Bem...
Bem.. . Não exatamente
exatamente o mesmo. Começara a
sentir mais fortemente a passagem do tempo. O bigode que embranquecia, assim como
uns fios do cabelo, e a disposição de vida perdera em animosidade. Quase havia
recusado o convite para tomar um chope após o expediente, mas acabara sendo levado

22
 pelo
elo entusiasmo
entusiasmo dos coleg
colegas
as da repartição.
repartição. Festejaria
Festejaria com eles
eles e depois
depois voltari
voltariaa para
casa. Afinal, sua família não o esperava mais em casa por causa de um aniversário.
 No início
início estavam presentes no bar os homens e as mulheres, de modo que a conversa
transcorreu fraternalmente, a despeito de uma ou outra piada maliciosa ou comentário
inadequado. Embora um tanto ausente, tentou não decepcionar, pois era seu aniversário
e sempre soubera corresponder às expectativas alheias. Atualmente, porém, algo nele
 parecia
arecia se rebelar,
rebelar, como na adolescênci
adolescência.
a. Nesta idade, havia
havia se sentido
sentido meio
meio especial
especial,,
como que designado. Seria uma espécie de retorno? Talvez, já que com o passar do
tempo...

A VOZ INTERIOR  É SUBSTITUÍDA PELA VOZ DO GRUPO SOCIAL E DE SUAS CONVENÇÕES ; EM LUGAR  DA DESIGNAÇÃO
IDADES DA COLETIVIDADE.
APARECEM AS  NECESS IDADES A  NÃO POUCOS SUCEDE QUE, MESMO ESTANDO  NESS E ESTADO SOCIAL
INCONSCIENTE , SÃO CHAMADOS POR  UMA VOZ INDIVIDUAL E ASSIM COMEÇAM A DISTINGUIR -SE DOS OUTROS E A
DEPARAR  COM PROBLEMAS A RESPEITO DOS QUAIS OS OUTROS  NADA SABEM. EM GERAL É IMPOSSÍVEL PARA ESSE
INDIVÍDUO EXPLICAR  ÀS OUTRAS PESSOAS O QUE LHE  ACONT ECEU  ,  POIS  EXISTE COMO QUE UM MURO DE FORTÍSSIMOS
PRECONCEITOS A IMPEDIR  A COMPREENSÃO (J UNG, O.C., V. XVII, § 302).

De fato parecia suceder com ele algo de tal natureza, embora não pretendesse se isolar 
ou ser diferente dos demais. Simplesmente se sentia um pouco isolado e diferente.
Queria estar entre as pessoas e não se encaixava inteiramente. Tinha certeza de que se
tratava de uma vivência particular e solitária por natureza, mas, paradoxalmente, era
como portar um segredo exclusivo que também pertencia a todos. Isto o tornava um
estranho e diferente, ainda que entre os iguais. Quase podia dizer que crescia dentro de si
mesmo uma vida maior do que a dele... Sozinho e solidário na multidão. Melhor seria
 pedir
edir outro chope.
Individuação – “processo de diferenciação do indivíduo do inconsciente coletivo e da
coletividade” (Ulson, 1988: 76). Mais especificamente, “...significa tender a tornar-se um
ser realmente individual, na medida em que entendemos por individualidade a forma de
nossa unicidade, a mais íntima, nossa unicidade última e irrevogável; trata-se da
realização de seu si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda
comparação... O si-mesmo, no entanto, compreende infinitamente mais do que um
simples eu... A individuação não exclui o universo, ela o inclui” (Jung, 1996: 355).
Depois de algum tempo, as mulheres foram se retirando e ficaram apenas os homens.
Inevitavelmente a conversa mudou. É verdade que continuaram a falar do trabalho, de
automóveis, de futebol e de assuntos variados, evitando, claro, suas vidas mais íntimas e
 problemas
roblemas pessoais.
pessoais. Começaram, porém, a falar
falar das mulheres.
mulheres. E de modo diferente
diferente de
quando elas se achavam presentes. Ele notou a transição de modo acentuado e
incomodou-se, como se reparasse naquilo pela primeira vez. Falavam das mulheres como
quem fala de estranhos seres adversos e quase combatentes. Devia já estar um pouco
 bêbado, pois,
pois, na realidade,
realidade, o mundo era assim mesmo e as mulheres,
mulheres, entre elas, falavam
falavam
dos homens do mesmo jeito. Aliás, todo mundo fala diferente sobre os outros que não
estão presentes. Mas aquele dia...

23
...DEUS, LANÇANDO POR  ASSIM DIZER  UM OLHAR  DE REPROVAÇÃO PARA “ ESTES TEMPOS DE IGNORÂNCIA ”
(INCONSCIÊNCIA), ENVIOU À HUMANIDADE A MENSAGEM: “PANTAS PANTACHÕN METANOIEN”, ISTO É, QUE EM TODA
PARTE TODOS SE ARREPENDESSEM ( MUDASSEM DE PENSAR ); ); COMO, AO QUE PARECE, O ESTADO INICIAL FORA
INTEIRAMENTE DEPLORÁVEL, O VERBO “ METANOEIN” (MUDAR  DE MENTE) ASSUMIU CARÁTER  MORAL DE
ARREPENDIMENTO DOS PECADOS , DE MODO QUE A V ULGATA O TRADUZIU POR  “ POENITENTIAM AGERE” (FAZER 
PENITÊNCIA). O PECADO DO QUAL SE DEVE FAZER  PENITÊNCIA É EVIDENTEMENTE A “ AGNOIA” OU “ AGNOSIA”, A
INCONSCIÊNCIA ( IGNORÂNCIA ) (J
( J UNG, O.C., V. IX/2, § 299).

E ele não pediu mais um chope. Olhou para os amigos como quem se compadece e
sentiu uma espécie de pena – deles e de si mesmo. Diabo de chope – pensou. Levantou-
se, disfarçou a emoção e, antes que surgisse o “...lobo cansado, carente de cerveja e
velhos amigos” (Teixeira, 1998), despediu-se, deixando-os sob protestos. Estava perto de
casa e decidiu caminhar para espairecer e espantar aquela paranóia que o invadia. Teria
se saído melhor se dissesse metanóia, ou seja, a já citada palavra, também de origem
grega, que significa “mudança essencial de sentimentos, pensamento ou de caráter;
transformação espiritual; arrependimento por falta cometida; penitência. Mágoa ”
(Houaiss,
(Houaiss, 2001).
O tempo avançara rapidamente, como tudo parecia avançar nos últimos anos. Já era
quase meia-noite quando cruzou com um adolescente parado na esquina, um desses
andarilhos sem eira nem beira. Pensou desviar, como sempre fazia, mas seguiu em
frente. Ao passar por ele, não conseguiu evitar o confronto. Encararam-se brevemente
com a intimidade dos andarilhos e viu nos olhos do menino dois brilhos que lhe eram
conhecidos: um, sereno, benigno e outro, desesperado, decididamente maligno. Luz e
escuridão, deuses e demônios, o bem e o mal pedindo passagem em igualdade de
condições. Acelerou os passos, antes que topasse com um gato preto ou algo pior. Não
acreditava em tais coisas, mas, naquele dia parecia estar fugindo de sua “sombra” ...

...
.. . A PARTE INFERIOR  DA PERSONALIDADE. SOMA DE TODOS OS ELEMENTOS PSÍQUICOS PESSOAIS E COLETIVOS QUE,
INCOMPATÍVEIS COM A FORMA DE VIDA CONSCIENTEMENTE ESCOLHIDA,  NÃO FORAM VIVIDOS E SE UNEM AO
INCONSCIENTE , FORMANDO UMA PERSONALIDADE PARCIAL, RELATIVAMENTE AUTÔNOMA, COM TENDÊNCIAS OPOSTAS
ÀS DO CONSCIENTE. A SOMBRA SE COMPORTA DE MANEIRA COMPENSATÓRIA EM RELAÇÃO À CONSCIÊNCIA . SUA AÇÃO
PODE SER  TANTO POSITIVA COMO  NEGAT IVA.
EGAT IVA NO SONHO, A SOMBRA TEM FREQÜENTEMENTE O MESMO SEXO QUE O
SONHADOR   (J UNG, 1996: 359).

Entrou em casa e foi recebido pelo silêncio. Era sexta-feira e sabia que não encontraria
nem a mulher, nem os filhos. Com certeza estariam ausentes no final de semana e teria o
apartamento só para si. Pouco depois se deitava e, antes de adormecer, pensou no sonho
que tivera há uns cinco anos. Nunca mais se esquecera dele. Sonhara que estava em seu
antigo quarto de solteiro, da época de universitário, com a premente sensação de que
alguém invadira sua intimidade. Não um ladrão, mas uma espécie de novo morador que
ali se alojava contra sua vontade, vindo não se sabe de onde. Os móveis tinham sido
tirados do lugar, incluindo sua cama, arrastada, e notou em um canto uma estranha
cômoda antiga, com um espelho grande e uma banqueta. Um toucador feminino...

24
Tenso, e achando tudo aquilo muito esquisito, aproximou-se e sentou-se diante do
espelho. Olhou-se. Mas não foi a própria imagem que viu. Refletida no espelho, móvel e
completamente nítida, como se fosse ele mesmo, uma mulher antiga, talvez grega, triste
e calma, mas sabiamente firme e inquisitiva. E ela lhe disse:

 – OLÁ! LEMBRA-SE DE MIM? PELO JEITO QUE ME OLHA, CREIO QUE  NÃO. JÁ FAZ ALGUM TEMPO. MAS O TEMPO
AGORA CORRE DEPRESSA,  NÃO É MESMO? AINDA LHE RESTA UM TANTO DELE E VOCÊ VAI SE LEMBRAR . QUEIRA OU
 NÃO QUEIRA, ESTA VEZ EU VIM PARA FICAR . SE ME ACEITAR , SORTE SUA. SE  NÃO ME QUISER , AZAR  O SEU.

Dito isto, desapareceu, levando qualquer imagem no espelho. Ele acordara aos gritos,
suando, com a nítida impressão de que aquilo era real. Custou muito a cair em si e voltar 
ao presente. Tinha sido apenas um sonho. Estranho demais, é verdade, mas um sonho.
Um pesadelo de retorno a um passado que julgava esquecido. E que mulher tinha sido
aquela que se atrevia a penetrar em seu sonho, apoderar-se de seu quarto de rapaz, de
sua imagem e propor-lhe tamanho disparate? Uma espécie de alma do outro mundo?
Ora, vá lá se dar crédito aos sonhos! No entanto, a sensação de realidade e de certeza no
que ela dissera tinham sido impressionantes. Tratara-o com intimidade, como se o
conhecesse desde sempre. Mais do que isso, comportara-se como se fosse sua dona.
Com tais pensamentos na mente, receou ter outro sonho como aquele. A noite estava
 bem propícia para tanto... Por fim,
fim, adormeceu.

 NÃO HÁ DÚVIDA DE QUE O PROCESSO DE TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAQUILO QUE SE ACHA GUARDADO E MANTIDO
SECRETAMENTE  NO RECÔNDITO DE  NÓS MESMOS  NOS PÕE DIANTE DE UM CONFLITO INTERIOR  INSOLÚVEL. É ASSIM,
PELO MENOS, QUE SE AFIGURA À CONSCIÊNCIA . MAS OS SÍMBOLOS QUE EMERGEM DO INCONSCIENTE  NOS SONHOS
REVELAM A CONFRONTAÇÃO DOS OPOSTOS , ENQUANTO AS IMAGENS DE FINALIDADE REPRESENTAM A UNIÃO BEM -
SUCEDIDA DESSES OPOSTOS .NESTE PONTO  NOSSA  NATAT UREZA INCONSCIENTE  NOS VEM AO ENCONTRO COM UMA AJUDA
QUE PODEMOS CONSTATAR  EMPIRICAMENTE. É TAREFA DA CONSCIÊNCIA COMPREENDER  ESTAS INDICAÇÕES. MESMO
QUE ISTO  NÃO ACONTEÇA, O P ROCESSO DE I  NDIVIDUAÇÃO
DIVIDUAÇÃO CONTINUA , APESAR  DE TUDO; SÓ QUE  NESS E CASO SOMOS
VÍTIMAS DESTE PROCESSO E ARRASTADOS PELO DESTINO PARA AQUELA META INEVITÁVEL QUE PODERÍAMOS TER 
ALCANÇADO COM PASSO FIRME E CABEÇA ERGUIDA, E  NO MOMENTO DEVIDO, SE TIVÉSSEMOS APLICADO T ÃO- SOMENTE
 NOSSA PACIÊNCIA E  NOSSO ESFORÇO, A FIM DE COMPREENDER  OS “  NUMINA” [ NUMES ] DO DESTINO (J UNG, O.C., V.
XI/4, § 746).

Ao despertar na manhã seguinte, parecia não se lembrar de sonhos, numes ou


quaisquer revelações das profundezas de si mesmo. Suspirou aliviado. No entanto, ao
 pôr no chão os pés descalços
descalços em busca dos chinel
chinelos,
os, como um raio,
raio, atravessou-lhe
atravessou-lhe a
mente uma nova reminiscência. Sentiu-se como Sócrates, o antigo filósofo que andava
 pelas
elas ruas de Atenas a fazer discursos
discursos para o povo. Às vezes, descalço,
descalço, sem as
tradicionais sandálias gregas. Sócrates? Que história! Havia lido Sócrates e Platão na
época do colégio, muitos anos atrás... Por que se lembrar dele agora? Se não tivera outro
 pesadelo,
esadelo, as lembranças inesperadas continuavam
continuavam a lhe ocorrer. Aliás, já não estava tão
certo de que não havia sonhado com nada, pois lhe veio a repentina sensação de ter sido
 persegui
erseguido
do a noite
noite inteira
inteira por um nome. Uma palavra incomum e alhei
alheia,
a, talvez
talvez um nome

25
de mulher. O que seria? Parecia ser uma palavra estrangeira, embora lhe soasse um tanto
familiar, como se ecoasse no passado. Dione? Dionísia? Fátima? Firmina? Havia muitas
mulheres em sua vida. Só uma delas levara a sério e com ela se casara. No entanto...
Sócrates e Platão... Fazia sentido. Não eram eles os homens das reminiscências?
Aqueles que diziam que não aprendemos nada e que o conhecimento já está dentro de
nós? Basta que nossa alma lembre o que viu lá em cima, antes de vir para a Terra dentro
de um corpo... Coisa mais estranha. De fato, ainda jovem, havia lido um pouco de
filosofia, até mesmo de poesia e preocupara-se com assuntos tais como a vida, a morte,
quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Coisas de jovens. Emocionou-se e
 pensou que, se tivesse
tivesse permanecido mais tempo no bar, a noite
noite anterior
anterior,, correria
correria o risco
risco
de fazer para os colegas um discurso perigoso. Achariam que estava ficando louco...
Todos conheciam dele apenas o chefe objetivo, camarada e até afetuoso, mas dirigido
 pela
ela reali
realidade da vida
vida e pela
pela conquista
conquista dos valores
valores mais comuns e coleti
coletivos.
vos. A pessoa,
pessoa, o
indivíduo, a alma mesmo... Pelo visto nem mesmo ele conhecia ou dela se lembrava.
Depois das rotinas habituais do despertar, tomou seu café da manhã e decidiu
caminhar pela praia, tentando, mais uma vez, voltar à vida normal. Encontrou uns
amigos, tomaram algumas cervejas, conversaram e falaram de tudo um pouco, como
sempre. Nunca havia entre eles um assunto definido ou mais explorado. Todavia, a
natureza do grupo, exclusivamente masculino, trouxe-lhe de volta os antigos filósofos
gregos. Mais uma vez, admirou-se por lembrar uma palavra que nunca mais pronunciara:
 symposium. Os contemporâneos de Sócrates, filósofos uns, pretensiosos outros, faziam
reuniões que levavam esse nome, quando escolhiam um assunto e discorriam sobre ele
ao sabor de muito vinho e comidas. Olhou para os amigos de cerveja e de praia e não
 pôde conter o que teriateria sido
sido uma risada.
risada. Será que o entenderiam?
entenderiam? Quem sabe também
andavam se lembrando de coisas esquecidas e não se arriscavam a compartilhá-las com
os demais. Como homens que crescem urgentemente. Um dia encerram não apenas a
adolescência, mas também seus sonhos e terminam por esquecer o todo que um dia
foram... Decidiu não arriscar e despediu-se. Mais uma vez.
Desistiria de brigar com as lembranças e com os sonhos. Que viessem e que o
levassem para onde pareciam pretender. Começava a achar que havia uma intenção em
tudo aquilo. Nunca se importara seriamente com filosofia e muito menos com sonhos,
mas a insistência do que lhe acontecia era evidente e talvez significativa. Sócrates, por 
exemplo, nunca havia escrito um livro. Platão escrevia-os e, como discípulo de Sócrates,
revivia a sabedoria do mestre, colocando-o como personagem em seus “Diálogos”. Um
conhecimento que retornava, como que pedindo para ser inscrito no tempo. Quem nunca
teve vontade de escrever um livro? Como ter um filho que deixe para sempre a marca da
 passagem
assagem pela
pela exis
existênci
tência.
a. E ele?
ele? Não estaria
estaria na hora de escrever ou, pelopelo menos,
imaginar o livro de sua vida? Pensando assim, voltou para casa decidido a dar uma
olhada em suas antigas leituras. Talvez ainda houvesse entre elas aqueles exemplares de
Sócrates e Platão que lera no colégio.
Diotima! Este era o nome. A mulher do sonho, cinco anos atrás? O nome de mulher 
que o perseguira a noite anterior? Talvez ambas as coisas e talvez estivesse mesmo

26
ficando maluco. A estranha criatura do sonho dissera-lhe que tinha vindo para ficar,
quisesse ele ou não. Fosse lá o que significasse tudo aquilo, era o que parecia estar 
acontecendo. Nunca mais esquecera o sonho e, agora, revisando por curiosidade os
textos de Platão, dera com aquele nome. Nem Dione, nem Dionísia, tampouco Fátima ou
Firmina, mas Diotima, a mulher sábia da Mantinéia.
Anima e animus - Personificação da natureza feminina do inconsciente do homem e da
natureza masculina do inconsciente da mulher. Tal bissexualidade psíquica é reflexo de
um fato biológico: o maior número de genes masculinos (ou femininos) determina os
sexos. Um número restrito de genes do sexo oposto parece produzir um caráter 
correspondente ao sexo oposto, mas, devido à sua inferioridade, usualmente permanece
inconsciente.
C. G. Jung:

DESDE A ORIGEM, TODO HOMEM TRAZ EM SI A IMAGEM DA MULHER ;  NÃO A IMAGEM DESTA OU DAQUELA MULHER ,
MAS A DE UM TIPO DETERMINADO . TAL IMAGEM É,  NO FUNDO, UM CONGLOMERADO HEREDITÁRIO INCONSCIENTE , DE
ORIGEM REMOTA, INCRUSTADA  NO SISTEMA VIVO, TIPO DE TODAS AS IMPRESSÕES FORNECIDAS PELA MULHER ,
SISTEMA DE ADAPTAÇÃO PSÍQUICO HERDADO... O MESMO ACONTECE QUANTO À MULHER ...
.. .
A FUNÇÃO  NAT
AT URAL DO  ANIMUS  ( COMO A DA  ANIMA) CONSISTE EM ESTABELECER  UMA RELAÇÃO ENTRE A CONSCIÊNCIA
INDIVIDUAL E O INCONSCIENTE COLETIVO . A NALOGAMENTE
ALOGAMENTE , A  PERSONA REPRESENTA UMA ZONA INTERMEDIÁRIA ENTRE
A CONSCIÊNCIA DO EU E OS OBJETOS DO MUNDO EXTERIOR  . O  ANIMUS  E A  ANIMA DEVERIAM FUNCIONAR  COMO UMA
PONTE OU PÓRTICO, CONDUZINDO ÀS IMAGENS DO INCONSCIENTE COLETIVO , ASSIM COMO A  PERSONA REPRESENTA UMA
PONTE PARA O MUNDO . A  ANIMA DO HOMEM PROCURA UNIR  E JUNTAR , O  ANIMUS  DA MULHER  PROCURA DIFERENCIAR  E
RECONHECER  . SÃO POSIÇÕES ESTRITAMENTE CONTRÁRIAS ... .. .
A  ANIMA É O ARQUÉTIPO DA VIDA... POIS A VIDA SE APODERA DO HOMEM ATRAVÉS DA  ANIMA, SE BEM QUE ELE PENSE
QUE A PRIMEIRA LHE CHEGUE ATRAVÉS DA RAZÃO. ELE DOMINA A VIDA COM O ENTENDIMENTO , MAS A VIDA VIVE  NELE
ATRAVÉS DA  ANIMA. E O SEGREDO DA MULHER  É QUE A VIDA VEM A ELA ATRAVÉS DA INSTÂNCIA PENSANTE DO
 ANIMUS , EMBORA ELA PENSE QUE É O E ROS QUE LHE DÁ VIDA. ELA DOMINA A VIDA, VIVE, POR  ASSIM DIZER ,
HABITUALMENTE, ATRAVÉS DO E ROS ; MAS A VIDA REAL, QUE É TAMBÉM SACRIFÍCIO, VEM À MULHER  ATRAVÉS DA
RAZÃO, QUE  NELA É ENCARNADA PELO  ANIMUS  (J UNG, 1996: 351-352).

Platão escrevera um diálogo chamado Banquete e nele, além do personagem Sócrates,


havia também uma mulher sábia chamada Diotima. Se Platão escrevia as palavras que
Sócrates havia dito, Diotima falava por Sócrates coisas que ele não se atrevia a dizer 
diretamente a seus ouvintes. Então, invocava uma voz feminina em um mundo de
homens. Eram todos homens os antigos filósofos gregos. E o que pretendia Platão, ou
Sócrates, deixando que uma mulher falasse em seu lugar? Naqueles tempos, então... A
verdade é que também em seu sonho uma mulher lhe roubara a própria imagem. Será
que também falava coisas que ele não se atrevia a revelar ou, mesmo, admitir? E havia
falado dentro dele, como se fosse ele, uma mulher dentro dele...
Todo mundo cresce ouvindo dizer que homem não chora, pois chorar é coisa de
mulher. Acontece que as coisas parecem realmente mudar com a idade e para ambos os
sexos. Seu casamento, por exemplo. Anos de convivência e nunca se entenderam de
fato. Ele, sempre lógico, objetivo e prático, seguidor de normas e atento observador da

27
opinião comum, do chamado bom senso e amante dos bens materiais. Ela, subjetiva,
sonhadora e sentimental, questionando todas as regras e priorizando os relacionamentos
individuais. Opostos em muitas coisas que só a paixão dos primeiros anos equilibrou.

AO ATINGIR  A IDADE ADEQUADA PARA O CASAMENTO, JÁ TEM


TE M O JOVEM A CONSCIÊNCIA DO EU... MAS SÓ HÁ POUCO
TEMPO ELE EMERGIU DO  NEBULOSO INCONSCIENTE INICIAL... IST O SIGNIFICA  NA PRÁTICA QUE O JOVEM T EM UM
CONHECIMENTO INCOMPLETO TANTO DE SI MESMO COMO DO OUTRO; POR  ISSO TAMBÉM CONHECE DE MODO
INSUFICIENTE OS MOTIVOS DO OUTRO COMO TAMBÉM OS PRÓPRIOS. NA MAIORIA DAS VEZES O JOVEM COSTUMA AGIR 
LEVADO APENAS POR  MOTIVOS INCONSCIENTES  (J UNG, O.C., V. XVII, § 327).

 Nos últimos
últimos tempos, porém, os opostos pareciam estar trocando de lugar:
lugar: ele,
ele, cada
c ada vez
mais crítico e introspectivo; ela, cada vez mais voltada para fora, como que disposta a
reconquistar um lugar no mundo e o tempo perdido. Homem não chora. Chorar é coisa
de mulher... Se assim fosse, então ele teria amolecido com o passar dos anos, enquanto
sua mulher teria endurecido. Talvez, o que antes era por dentro tivesse ficado por fora; e
vice-versa em cada um deles. Quem sabe tivesse visto na esposa a imagem de uma
mulher que não era de fato ela? A contrapartida também podia ter sido verdadeira.
Quando se casaram estavam fortemente apaixonados e atraídos um pelo outro e, nesse
 período...

O RELACIONAMENTO SE CONSERVA DENTRO DOS LIMITES DA FINALIDADE BIOLÓGICA DO INSTINTO: A CONSERVAÇÃO DA


ESPÉCIE. SENDO ESTA FINALIDADE DE  NAT
AT UREZA COLETIVA, O RELACIONAMENTO PSÍQUICO DOS ESPOSOS É TAMBÉM
ESSENCIALMENTE COLETIVO E  NÃO PODE, PORTANTO, SER  CONSIDERADO RELACIONAMENTO PESSOAL EM SENTIDO
PSICOLÓGICO . SOMENTE PODEREMOS FALAR  EM TAL RELACIONAMENTO , QUANDO SE TORNAR  CONHECIDA A  NATUR
ATUR EZA
DA MOTIVAÇÃO INCONSCIENTE E QUANDO ESTIVER  SUPRIMIDA EM LARGA ESCALA A IDENTIDADE INICIAL. R ARASARAS
VEZES, OU AT É MESMO  NUNCA, UM MATRIMÔNIO SE DESENVOLVE TRANQÜILO E SEM CRISES , ATÉ ATINGIR  O
RELACIONAMENTO INDIVIDUAL. NÃO É POSSÍVEL TORNAR - SE CONSCIENTE SEM PASSAR  POR  SOFRIMENTOS .
GERALMENTE A MUDANÇA COMEÇA COM O INÍCIO DA SEGUNDA METADE DA VIDA (J UNG, O.C., V. XVII, § 331-
331A).

 No Banquete, a tríade P latão, Sócrates e Dioti


Diotima
ma fala
fala do amor imperfeito,
mperfeito, incompleto
ncompleto
e carente, do amor que deseja aquilo que não tem e que, portanto, sofre. Fala-se do
amor humano. Segundo Diotima, Eros não seria filho de Afrodite com Ares, o deus da
guerra, ou com Hermes, o mensageiro dos deuses. Seria filho de Poros, a Fartura ou a
Atividade, com Penia, a Miséria ou a Inércia. Apesar de muitas vezes ser esperto e
 pleno,
leno, o Amor seria
seria também miserável
miserável e mendig
mendigo, como também tolotolo e sábio.
sábio. Eros não
seria um deus tão poderoso como os demais, pois seria quase humano – um gênio, um
filósofo, um intermediário entre os homens e os deuses, um daimon ou demônio...
Sorriu, entristecido e pensou nos filhos. Fossem filhos dos deuses, ou dos homens, a
verdade é que estavam cada dia mais longe do pai. O que ele tinha feito da própria vida?
Também havia sido jovem e, quando jovens, sonhamos tanto com uma vida que
queremos, que esquecemos da vida que vamos tendo. Depois, como na canção, dizemos

28
“que a vida é aquilo que a gente não quer” (Caymmi – Lobo, 1975). Claro, se a
recusamos. E se a aceitarmos? Ou seja, se deixarmos que Diotima – a Alma de Sócrates,
a alma dos homens – fale o que dificilmente conseguimos dizer? E fazer? Será a vida tão
ruim que até as flores têm espinhos? Ou ela é tão boa que até os espinhos têm flores?

O MEIO DA VIDA É UM TEMPO DE DESENVOLVIMENTO MÁXIMO , QUANDO A PESSOA AINDA ESTÁ TRABALHANDO E
OPERANDO COM TODA A SUA FORÇA E TODO O SEU QUERER . MAS  NESSE MOMENTO T EM INÍCIO O ENTARDECER  , E
COMEÇA A SEGUNDA METADE DA VIDA. A PAIXÃO MUDA DE ASPECTO E PASSA A SER  DEVER , O QUERER  TRANSFORMA -
SE INEXORAVELMENTE EM OBRIGAÇÃO; AS VOLTAS DA CAMINHADA , QUE ANTES ESTAVAM CHEIAS DE SURPRESAS E
DESCOBERTAS , AGORA  NADA MAIS SÃO DO QUE ROTINA... EM VEZ DE SE OLHAR  PARA A FRENTE, MUITAS VEZES, SEM
QUERER , SE OLHA AGORA PARA O PASSADO; PRINCIPIA- SE A PRESTAR  CONTAS SOBRE A MANEIRA PELA QUAL A VIDA SE
DESENVOLVEU ATÉ O MOMENTO. PROCURA - SE ENCONTRAR  SUAS MOTIVAÇÕES VERDADEIRAS E SURGEM DESCOBERTAS .
O INDIVÍDUO CONSEGUE CONHECER  SUA PECULIARIDADE POR  MEIO DA CONSIDERAÇÃO CRÍTICA DE SI PRÓPRIO E DE SEU
DESTINO. MAS ESSES CONHECIMENTOS  NÃO LHE SÃO DADOS DE GRAÇA. CHEGA- SE A TAIS CONHECIMENTOS APENAS
POR  ABALOS VIOLENTOS” (J UNG, O.C., V. XVII, § 331A).

Abalos não haviam faltado durante os últimos anos. No princípio, ao surgirem as


 primeiras
rimeiras difi
dificul
culdades
dades e diferenças
diferenças mais sérias,
sérias, optara comodamente por satisfações
satisfações
egocêntricas e soluções que evitassem grandes confrontos. E assim prosseguiu. Era o
carro do ano, os inúmeros casos sem compromissos com outras mulheres, os presentes
 para os filh
filhos
os e para a esposa, o conforto que o dinhei
dinheiro
ro possibi
possibillita
ita e um casamento de
aparência. Os anos foram passando e nem sequer se separaram...

MAS AQUILO QUE SUSTENTA A VIDA TAMBÉM  NOS CRUCIFIXA ; A SALVAÇÃO E A PLENITUDE DA VIDA PODEM OCORRER 
MESMO ATRAVÉS DA PERDA OU DA RENÚNCIA DAQUILO QUE PARECIA SER  A ÚNICA VIDA – A VIDA SOB A VONTADE DO
EGO CONSCIENTE, DEVOTADA À SATISFAÇÃO DE SUAS EXIGÊNCIAS ... (WHITMONT , 1995: 78).

 Na verdade, o que parecia ser vida


vida já não era mais. As estratégi
estratégias manipul
manipuladoras
adoras se
repetiam, enquanto a vida seguia na frente e exigia mudanças. Era como se ele ainda
insistisse em atingir seus propósitos da maneira mais protegida possível. Deveria, porém,
estar se perguntando: “O que devo à vida? Onde fui incapaz de corresponder àqueles
sacrifícios que a vida exige de mim?” (Idem). E, de repente, o casamento desandou de
vez e o carro do ano não satisfazia mais; o filho envolvia-se com drogas; a filha revelava-
se um tanto promíscua e, ele próprio, viu-se com problemas de depressão e impotência
sexual. Castigos? Ou avisos definitivos da exaustão de um padrão coletivo de vida que
chegava a seu limite? Tratava-se de sua vida e de sua família, e não da vida de todos ou
da família de qualquer um. Finalmente concluía que ignorar a situação ou trocá-la por 
outra não resolveria sua própria implicação nela.

CONTRA O EFEITO MASSIFICADOR  DE TODAS AS MEDIDAS COLETIVAS, EXISTE SOMENTE UM MEIO: A ACENTUAÇÃO E A
ELEVAÇÃO DE VALOR  DO INDIVÍDUO. FAZ-SE  NECESS ÁRIA UMA MUDANÇA DE CONCEITO, OU SEJA, UM VERDADEIRO
RECONHECIMENTO DO HOMEM TODO. IST O SÓ PODE SER  TAREFA DE CADA UM, E T EM DE COMEÇAR  POR  CADA UM,

29
PARA SER  VERDADEIRO (J UNG, O.C., V. 10/4, § 719).

Mudar de atitude e de valores? Ele sentia que seria como trocar o certo que não dava
mais certo pelo incerto, desconhecido e duvidoso. Uma vida inteira que se pensava
decidida como que desmoronava. Se acaso houvesse escolhas, eram como se fossem
nada. Mas era possível sentir que algo dentro dele escolhia em silêncio, enquanto outro
algo gritava. E só ele ouvia.

À MEDIDA QUE O CONSCIENTE ASSUME A RESPONSABILIDADE E FAZ SUAS DIFÍCEIS ESCOLHAS , E ACEITA OS RISCOS
INERENTES A ELA, ESSES ELEMENTOS QUE, À PRIMEIRA VISTA, PODEM PARECER  DESENCORAJADORES , OU DAR  A
IMPRESSÃO DE QUE ESTÃO FECHANDO A PORTA, TENDEM A MUDAR  SEU CARÁTER   (W HITMONT , 1995: 82).

Realmente, o sentimento era de derrota, de humilhação, de perda e fracasso. Um


espaço aberto de desamparo e sofrimento onde, aparentemente, só restava esperar que a
fé surgisse e prevalecesse. Um aprendizado de humildade perante a desorientação. Foi
quando entendeu a necessidade humana de religiosidade e aprendeu a respeitar o lugar 
sagrado onde os deuses nascem. Um lugar bem além de meros desejos e vontades.

É CURIOSO QUE TAMBÉM AS I GREJAS , COM A PROMESSA DE CUIDAR  DA SAÚDE DA ALMA INDIVIDUAL, SIRVAM
OPORTUNAMENTE À AÇÃO MASSIFICADA, EXORCIZANDO O DIABO COMO B ELZEBU. PARECE QUE ELAS  NÃO SE DÃO
CONTA DA CONSTATAÇÃO MAIS ELEMENTAR  DA PSICOLOGIA DE MASSA, SEGUNDO A QUAL O INDIVÍDUO  NA
MASSIFICAÇÃO SOFRE UMA DEGRADAÇÃO MORAL E ESPIRITUAL, E ELAS SE ESQUECEM DE QUE SUA PRÓPRIA TAREFA É
POSSIBILITAR  AO HOMEM SINGULAR  – COM A GRAÇA DE D EUS – A METANÓIA, OU SEJA, O RENASCIMENTO ESPIRITUAL.
J Á SABEMOS QUE SEM UMA RENOVAÇÃO ESPIRITUAL DO INDIVÍDUO, A SOCIEDADE EM SI  NÃO CONSTITUI UM CAMINHO
DE RENOVAÇÃO, JÁ QUE ELA  NADA MAIS É DO QUE A SOMA DE INDIVÍDUOS QUE  NECESS ITAM DE SALVAÇÃO (J UNG,
O.C., V. X, § 536).

Ele ainda não sabia o que fazer, mas sabia o que devia tentar. Acordou tarde no
domingo, fez um lanche e saiu para a rua. A vida seguia seu ritmo normal. Logo na
 primeira
rimeira esquina,
esquina, ouviu
ouviu a conversa de dois dois homens de meia-idade
meia-idade que passavam a
caminho da praia.
 – Envelhecer,
Envelhecer, meu
m eu amigo?
amigo? – dizia
dizia um deles.
deles. – É uma merda!
m erda!
 – Merda mesmo
me smo ou merda como se diz no teatro? – comentou o outro.
 – Você quer dizer
dizer sorte? Sei lá eu! Acho que nem a Fernanda Montenegro
Montenegro responde a
esta pergunta!
E afastaram-se, às gargalhadas. Um pouco mais adiante, outro representante da meia-
idade falava ao celular com o filho.
 – Mas meu querido, dois mil e trezentos? E você acha que eu sempre tenho de lhe dar 
tudo, não é mesmo? Ah, meu Deus! E como faço para mandar isso on, on, on, on, on
on... – ele parecia estar latindo, até que soltou: – On-line!
 – Coitado! – comentou alguém
alguém passando. – É assim que cachorro aprende a latir!
atir!
Parecia que se tornava realmente difícil ficar on-line  após a meia-idade. Já chegando à

30
rua da praia, uma cigana saiu detrás de uma árvore e veio em sua direção.
 – É ela! Aquela
Aquela mulher de novo! – quase gritou.
gritou. – O que será que ela quer agora?
 – Moço, quer ler a mão? Ver Ver a sorte?
 – Só isto? – suspirou alialiviado
viado e estendeu-lhe a mão. – Pode
P ode ler à vontade.
 – Que confusão, moço! Muita Muita mudança, não é mesmo? Mas está aqui, aqui, veja: mais ou
menos aos quarenta e cinco anos...
Ele apenas seguiu adiante, rumo ao espaço aberto na direção do mar. Nunca soube se
foi do céu claro e azul, do vento nas copas das árvores, das vozes das pessoas, do
 burburinho
urburinho das crianças ou da cig cigana... Quem sabe foi do fundo de seu coração? Mas
teve certeza de ouvir:
 – Feliz
Feliz aniversário,
aniversário, coroa!
c oroa!

Bibliografia

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JUNG, C. G.  Resposta a Jó.Jó. O .C., v. XI/4. Petrópolis: Vozes, 1971.
 _____.  Aion.
ion . O.C., v. IX/2, Petrópolis: Vozes, 1988.
 _____. Um mito moderno sobre coisas vistas no céu.  céu.  O .C., v. X/4. Petrópolis: Vozes, 1991.
 _____.  Memórias, sonhos e ref
reflexões.
lexões.   Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
 _____.  Presente
resente e Futuro.
Futuro. O.C., v. X. Petrópolis: Vozes, 1999.
 _____. O Desenvolvimento da Personalidade. 
Personalidade.  O .C., v. XVII.
XVII. Petrópolis:
Petr ópolis: Vozes, 2002.
MEIRELLES, Cecília.  Antologia Poética. 
Poética.   Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
PLATÃO.  Diálogos: Mênon-Banquete-Fedr
Mênon-B anquete-Fedro. o.   Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
TEIXEIRA, Renato. Sentimental eu fico.
TEIXEIRA, fico. CD Elis, Polygram, Philips, 1998(1977).
Glauco. O Método Junguiano. 
ULSON, Glauco. Junguiano.  São Paulo: Ática, 1988.
WHITMONT, E. C.  A Busca do Símbolo. 
Símbolo.   São Paulo: Cultrix, 1995.

* Psicólogo Clínico, pós-graduado em Psicologia Junguiana, membro Analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA.

31
4
Metamorfoses da alma após a meia-idade...
Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro*

Começando a refletir...

“VIVER  E  NÃO TER  A VERGONHA DE SER  FELIZ


CANTAR  E CANTAR  E CANTAR 
A BELEZA DE SER  UM ETERNO APRENDIZ, AH, MEU D EUS...”
GONZAGUINHA

A natureza, em sua sabedoria, entrelaça-se em ciclos sucessivos: dia e noite;


 primavera,
rimavera, verão, outono, inverno; infância,
nfância, adolescênci
adolescência,
a, maturidade
maturidade e velhi
velhice...
ce... Os
exemplos seriam intermináveis. Portanto, nosso processo vital explicita diferentes ciclos
ou fases de transformação, deixando claro que não há uma fixação de datas ou limites,
 pois
ois a subjetivi
subjetividade
dade humana está além
além da rigi
rigidez do tempo cronológ
cronológico
ico.. Rubem Alves,
em seu Tempus Fugit (2002: 11), diz: “Quem sabe que o tempo está fugindo descobre,
subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será...”. Na realidade, nossa
subjetividade, segundo a sabedoria grega, está articulada não só ao tempo secular, do
corpo e do relógio, referente ao deus Kronos, mas também, ao tempo mítico e ao da
subjetividade, referente ao deus Kairos, em que segundos podem trazer a sensação de
séculos. Sendo assim, falamos de tempos diferentes. Por isso, a questão da idade se
torna tão complexa; mas de que idade estamos falando? Somos uma  plural-idade!
O que diretamente nos interessa é refletir um pouco acerca das marcas do tempo em
nossos corpos, em nossa alma ou psique, com seus afetos, seus valores, enfim, em nossa
vida. Como vivenciamos estas marcas do tempo que se manifestam com maior clareza a
 partir
artir da meia-idade.
meia-idade. Quando acontece a meia-idade?
meia-idade? P oderíamos situá-l
situá-laa entre os 40 e
os 50 anos. Período que traz muitos questionamentos, ressignificações, período de trevas
e luz. Mas como envelhecer bem numa sociedade que privilegia de forma tão acentuada
os valores da juventude?
Meia-idade, envelhecimento, velhice... quantas significações, mistérios, mitos e
 preconceitos!
reconceitos! Envelhecer
Envelhecer é um processo vital
vital inerente ao viver,
viver, vai do nascimento
nascimento à
morte, porém, ganha maior visibilidade após a década dos 40 anos. Envelhecer é uma
grande experiência, que põe à prova a nossa caminhada existencial. Pode ser uma

32
aventura ao darmos o burilamento de nosso ser, como diz Hillman, ou pode ser uma
desgraça. O envelhecer pode articular-se a ver a vida sob prismas diferentes, armazenar 
um arsenal de experiências e recordações, fazer o confronto com as marcas e a passagem
do tempo, poder rir de si mesmo, libertar-se de tantas convenções... Mas, também, pode
articular-se a lamentar pelo que passou, contabilizar só as perdas, se isolar, ficar triste,
reclamar de tudo, se sentir inútil, ser só deterioração... Nesse prisma, envelhecer é uma
triste realidade, é uma danação! Inegavelmente todas essas possibilidades estão
 presentes, cada um de nós fará a sua escolha. escolha. Talvez
Talvez a questão essencial
essencial seja,
 parafrasendo Descartes, escolho,
escolho, loglogo exi
existo. Daí, a natureza tão plural
plural,, heterogênea
heterogênea e
singular da velhice.
Viver é estar a cada momento diante de encruzilhadas, elas definem nossa vida; mas as
escolhas são sempre de nossa responsabilidade. Segundo Hillman (2001), precisamos
 perceber o que expressa
expressa a nossa natureza mais íntima, com que nos identificamos:
dentificamos: com
as estruturas da fisiologia  e as limitações do corpo, ou com as estruturas da psicologia
e do caráter,  com suas possibilidades de contínua recriação? A escolha sempre será
 pessoal e única,
única, com todas as a s suas conseqüências.
conseqüências. Compete a cada um de nós descobrir 
descobrir 
a verdade e a riqueza do envelhecer, pois se ele é inerente à vida, deve ter um sentido,
afirma Jung. Velhice é um modo de ser, de existir; é uma realidade arquetípica, isto é, faz
 parte da estrutura, da genética
enética da alma. Viver para camuflar
camuflar esta realidade
realidade será sempre
uma contrafação, um engodo.
Talvez, o que de pior possa acontecer seja a não-aceitação desse processo,
 promovendo a necessidade
necessidade de querer parecer sempre jovem. P or quê? Ao long ongoo da
história há uma contínua mudança de valores, costumes... Antigamente, a velhice não era
vista como decadência e um caminhar rumo à morte. Os velhos eram os guardiães dos
costumes e dos valores, eram conselheiros e balizadores do viver cotidiano. A morte não
era articulada à longevidade, mas à vida em si, pertencia tanto à infância e à juventude
quanto à velhice; pois morriam natimortos, crianças, jovens e adultos em guerras, brigas
e epidemias... Foi a partir do século XIX que se iniciou essa articulação entre
longevidade e mortalidade, como também uma mudança de valores acerca do
envelhecimento e da morte.
 Numa anális
análisee mais próxima
próxima de valores
valores dominantes,
dominantes, podemos afirmar,
afirmar, segundo
segundo alg
alguns
estudiosos da cultura, como Freire (2004), que a partir do século XVIII os valores
cultivados foram:  sentimentos e interiori dade/ subjetivi dade; buscava-se ser uma pessoa
i nterioridade/
íntegra, honesta, sensível, ter uma rica vida psicológica, ser capaz de mergulhar em seus
conflitos psíquicos; os valores éticos estavam presentes. A partir do século XX os valores
 passaram a ser o culti
cultivo
vo das  sensações, da aparência  e da imagem; busca-se a todo o
 preço sentir
sentir prazer e ser feli
feliz, manter a boa forma, ter um corpo saudável,
saudável, tendo como
referência o padrão jovem. Isto é o que mais importa, é a referência vital. Vale a
erformance  externa, e cada vez mais corremos o risco de nos tornar escravos desses
valores sociais. Nossa sociedade atual tem recebido várias denominações que expressam
os valores nela embutidos, como vemos em alguns autores: Sociedade do Espetáculo
(Debord, 1997);  A barbárie interior: sobre o mundo moderno  (Mattéi, 2002);
interi or: ensaio sobre

33
 Era do Vazio e o Império do Efêmero (Lipovetskz, 2004); Sociedade Escópica  (Quinet,
2000);  Amor Líquido(  Baumann, 2004)...
A pergunta que se impõe é: Como envelhecer na Sociedade do Espetáculo?
Compartilho com vocês um texto que encontrei, pela internet, como sendo de Hebert
Viana, do conjunto Paralamas do Sucesso, e que cabe perfeitamente em nossas
reflexões.

“HOJE, DEUS É AUTO-IMAGEM . R ELIGIÃO


ELIGIÃO É DIETA. FÉ, SÓ  NA ESTÉTICA. R ITUAL
ITUAL É MALHAÇÃO... GORDURA É PECADO
MORTAL. R UGA
UGA É CONTRAVENÇÃO... ESTRIA É CASO DE POLÍCIA. FILHO DA PUTA BEM - SUCEDIDO É EXEMPLO DE
SUCESSO... A SOCIEDADE CONSUMIDORA, A QUE TEM DINHEIRO , A QUE PRODUZ ,  NÃO PENSA MAIS EM  NADA ALÉM DA
IMAGEM , IMAGEM , IMAGEM . IMAGEM, ESTÉTICA, MEDIDAS , BELEZA... ADULTOS PERDEM O SENSO EM BUSCA DA
JUVENTUDE FABRICADA...”

Os valores da juventude estão tão difundidos, que, diante da inevitabilidade das marcas
do tempo no corpo e com o passar dos anos, é muito comum dizer que
“o corpo está velho, mas o espírito está jovem”. Luft (2003: 128) expressa com
veemência a repulsa a essa atitude tão preconceituosa, por que o espírito jovem seria
melhor que o espírito de um velho sábio? Ambos os espíritos tem seus prós e seus
contras, suas alegrias e suas dores.
Mas predomina a idéia de que a velhice é uma sentença da qual se deve fugir a
qualquer custo – até mesmo nos mutilando ou nos escondendo. No espírito de manada
que nos caracteriza, adotamos essa hipótese sem muita discussão, ainda que seja em
nosso desfavor. Isso se manifesta até na pressa com que acrescentamos, como desculpa:
“Sim, você está, eu estou, velho aos 80 anos, mas... jovem de espírito”. Por que ser 
ovem de espírito seria melhor do que ter um espírito maduro ou velho?... Vou detestar 
se, ficando velha, alguém quiser me elogiar dizendo tenho espírito jovem.
Quase poderíamos afirmar que envelhecer é estar na contramão da cultura. Então, o
que fazer? Nós nos enquadramos nesses valores? Nós nos rebelamos? Albon (1998:
117), em sua obra  A Última Grande Lição,   tem um capítulo sobre o medo de
envelhecer, onde questiona a ênfase que é dada à juventude como se fosse uma
maravilha, mas ela também é tão cheia de conflitos, problemas e grilos, que muitos
ovens pensam em se matar. Os velhos que dizem “ah, se eu fosse jovem...?” revelam
vidas insatisfeitas, sem realizações, sem sentido, pois quem encontra sentido não quer 
voltar, deseja ir em frente.

“QUEM PASSA O TEMPO BATALHANDO CONTRA O ENVELHECIMENTO SEMPRE SERÁ INFELIZ, PORQUE O
ENVELHECIMENTO É INEXORÁVEL . (...) PRECISAMOS DESCOBRIR  O QUE EXISTE DE BOM E VERDADEIRO E BELO EM
CADA FASE DA VIDA. (...) SOU TODAS AS IDADES , DA ATUAL PARA BAIXO.”

Envelhecer é um processo vital de construção individual e singular, cada um o viverá


segundo suas escolhas. “O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e
nunca ficar pronta uma edição
edição convincente”, disse o poeta Drummond.

34
Questões fundamentais da meia-idade

DEIXE-ME ENTRAR   NA HISTÓRIA DO MUNDO / N EM QUE SEJA PARA SEGURAR  UMA MAÇÃ (W IM W ENDERS E P ETER 
HANDKE, 1987,  A SAS   DO D  ESEJO).

Onde me encontro? Qual o sentido da vida?

Essas questões fundamentais são colocadas normalmente a partir da meia-idade e na


velhice. Individuação, para Jung, constitui o processo de constituição e particularização
da essência individual e original que cada um de nós é; implica o desenvolvimento do
“individuum”, como um ser único e original, não há cópias.
O processo de desenvolvimento da personalidade é obra de toda uma vida, processo
que só deveria terminar na experiência da morte. Na mesma perspectiva do
desenvolvimento por toda vida, encontramos Luft (2003: 22):
“A elaboração desse ‘nós’ iniciado na infância ergue as paredes da maturidade e culmina
no telhado da velhice, que é o coroamento, embora em geral seja visto como
deterioração”. Também Heráclito diz: “Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais
encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu logos”. Portanto, não podemos fixar 
um tempo para o desenvolvimento, é o tempo da vida de cada um até seu momento
derradeiro, e quantas ressignificações a consciência da morte pode trazer!
A plena expressão da personalidade leva uma vida inteira para atualizar-se. Do
nascimento até a morte, vivemos um contínuo de transformações e opções. Envelhecer 
implica acolher e desenvolver o seu “quinhão” com a sua singularidade específica.
Hillman (2001) explicita que os velhos tornam-se com maior clareza aquilo que sempre
foram. O centro da personalidade permanece constante, exceto que talvez mais
intensamente, não há uma descontinuidade da personalidade com a idade, mas sim uma
crescente consistência em contínuo refinamento e modificação. Em sintonia com esta
verdade, diz Luft (2003: 92): “Existir é poder refinar nossa consciência de que somos
demais preciosos para nos desperdiçarmos buscando ser quem não somos, não podemos,
nem queremos ser”. O Processo de Individuação é obra de toda uma vida em contínua
transformação, exigindo o esforço de se gerar e se recriar sempre. Também, para
Spinoza, “a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam”. Contudo,
esse impulso não se atualiza espontaneamente, ele requer muito esforço e transpiração.
Viver e tornar-se si-mesmo requer 10% de inspiração e 90% de transpiração, proporção
que foi dada por Thomas A. Edson para o processo criativo.
Segundo Jung, em  A Natureza
Natureza da Psique  (O.C., vol. 8/2), no processo vital de
desenvolvimento acontecem dois ciclos (ou fases): o natural e o cultural . A fase natural  é
a fase heróica da expansão egóica, com lutas e enfrentamentos principalmente focados
no mundo externo, estende-se do nascimento até a meia-idade. A libido ou energia vital
concentra-se principalmente no campo sexual e no profissional; os mecanismos
 psicol
sicológ
ógiicos buscam a expansão
expansão egói
egóica
ca no mundo externo
externo e na adaptação.

35
Independentemente das diferenças culturais, há um padrão arquetípico que é esperado do
ovem – o padrão heróico – imagem ideal de realização. Nesse processo de expansão e
conquistas, criam-se as máscaras sociais ou  personas  para se ter melhor aceitação social;
contudo, corre-se o risco de ficar aprisionado pelas máscaras, levando ao processo de
massificação (Jung) e à escravização aos valores sociais (Nietzsche).
Após a meia-idade, inicia-se a  fase cultural,  o desenvolvimento físico começa a
apresentar o declínio das funções orgânicas, aparecem as rugas, flacidez, dores etc.,
lembretes constantes da passagem do tempo e da finitude.
“Querer ter os mesmos impulsos e igual velocidade de antes deixa-nos claro que houve
falhas, paralisia no processo de iniciação para a vida adulta”, diz López-Pedraza (1997).
A velhice traz uma aceleração do declínio físico, ela é dirigida por um programa genético
e é inexorável – é assim que é. Como experiência clínica, percebo que é quando
realmente começa a vir à consciência a realidade da passagem do tempo. “Tempus
fugit”, como disse Rubem Alves. Esta consciência nos remete à questão do sentido ou do
significado da vida. Cada etapa da vida humana ativa alguns instintos e arquétipos, que
resultam em padrões de sentimentos, pensamentos e comportamentos; por exemplo,
 podemos falar dos arquétipos – do herói e do velho sábio que predominam em diferentes
diferentes
fases da vida, mas devem estar sempre presentes em todas as fases.
Gabriel Garcia Marquez, em sua última obra,  Memória de mis putas tristes  (2004:
14), relata vivências de um homem aos 90 anos, que começa descrevendo como se deu a
 percepção de estar envelhecendo.
envelhecendo. AoAoss 40 anos, como primeiro
primeiro sinal,
sinal, começa a perceber 
que se parece com seu pai e também começam as dores ocasionais que seu médico diz
serem naturais, ao que ele questiona: “O que não é natural?”. A verdade é que as
 primeiras
rimeiras mudanças são tão lentas que apenas se notam, e segue-se segue-se vendo-se desde
dentro como havia sido sempre, mas os outros as percebem desde fora. Aos 50 anos,
começam os lapsos de memória e a constatação de que o que estamos dizendo, já
havíamos dito antes. Quanto à vida sexual, diz não se preocupar muito, pois ela dependia
tanto de si mesmo como delas e elas sabem o como e o porquê, quando querem. Mas
apesar dos sobressaltos sexuais, eles sempre são rasgos de estar vivo. E isso é o que
importa, conclui ele.
 Nesta segunda
segunda fase, segundo
segundo Jung,
Jung, a expansão
expansão da libido
bido deve buscar o mundo interno
e o encontro com o  self   ou si-mesmo – nossa totalidade originária e original, que contém
as predisposições, tendências, inclinações em nossa genética da alma ou do  self . Essa
transição – metanóia – significa que a personalidade passa a estar mais articulada ao  self ,
que é um núcleo organizador e irradiador de potencialidades e energia para o ego.
Passamos a ter uma maior consciência do nosso Processo de Individuação, de nos tornar 
cada vez mais fiéis a nós mesmos, ao nosso  self , isto é, únicos, excêntricos ou diferentes.
Inevitavelmente, a meia-idade nos arremessa ao confronto com o sentido da vida e com
a finitude.
METANÓIA, época de balanço de vida, mudanças de rota, desesperos existenciais
 pela
ela consciência
consciência do não vivido,
vivido, do tempo que não volta
volta mais... Trevas e luz, luz e trevas
alternando-se, mas promovendo a possibilidade do aumento da consciência e o resgate de

36
desejos, sonhos etc.

Metam
Metamorfoses
orfoses reativas ao envelhecer 
envelhecer 

PRECISAMOS FORJAR  UM EU QUE SEJA CAPAZ DE SUPORTAR  A VERDADE (J UNG).

Repetindo, a realidade do processo de envelhecimento não é um acidente em nossa


vida, ela é estrutural, tem um sentido, está contida na genética do corpo e da alma. Ele
não é aleatório, é necessário. Como diz Hillman (2001), a biologia é um processo que
leva à inutilidade, mas a velhice, em vez de processo, pode ser considerada como uma
estrutura da alma, que permite a mais plena auto-realização de nossa totalidade. A grande
questão que se impõe é: qual o sentido do envelhecer? Para Jung, seria justamente a
 possibi
ossibillidade de dar um maior
maior buril
burilamento à alma,
alma, à personali
personalidade ou ao caráter.
Portanto, a velhice traz uma oportunidade única, realmente nos permitir ser nós mesmos,
nada além ou diferente.
Será decadência ou auto-realização? Será transformação e individuação ou rigidez de
 papéis
apéis e massifi
massificação?
cação? O aspecto psicol
psicológ
ógiico básico
básico do processo de envelhecer
envelhecer é o
 balanço
alanço entre os limites
mites e as perdas e a abertura para novas possibi
possibillidades
idades exi
existenciai
stenciais.
s.
Rollo May (1979) diz que o ser humano é incapaz de suportar constantemente a expe -
riência da impotência. Nós somos uma construção ideativa com a qual nos identificamos
ao longo de nossa vida, mas, após a meia-idade, nossa identidade enquanto auto-imagem
é constantemente afetada. Acontecem as perdas narcísicas e nosso corpo é o primeiro a
sinalizar a passagem do tempo. Jung nos conclama a pensar:

PARA O SEGUNDO OBJETIVO, CONTAMOS COM POUCA OU  NENHUMA AJUDA. FREQÜENTEMENTE REINA UM FALSO
TE M DE SER  COMO O JOVEM, OU PELO MENOS FINGIR  QUE É... É POR  ISSO QUE A PASSAGEM
ORGULHO QUE O VELHO TEM
ATUR AL PARA A CULTURAL É T ÃO TREMENDAMENTE DIFÍCIL E AMARGA PARA TANTA GENTE, AGARRAM -SE
DA FASE  NATUR
ÀS ILUSÕES DA JUVENTUDE OU AOS FILHOS PARA ASSIM SALVAR  UM RESQUÍCIO DE JUVENTUDE  (...). N ÃO É DE
ADMIRAR  QUE MUITAS DOENÇAS GRAVES SE MANIFESTEM  NO INÍCIO DO OUTONO DA VIDA... MAS ANTIGAS RECEITAS
 NÃO SERVEM MAIS PARA RESOLVER  OS PROBLEMAS QUE SE COLOCAM  NESTA IDADE. T AL RELÓGIO  NÃO PERMITE GIRAR 
OS PONTEIROS PARA TRÁS . O QUE A JUVENTUDE ENCONTROU FORA, O HOMEM  NO ENTARDECER  DA VIDA TEM DE
ENCONTRAR  DENTRO DE SI... MUITAS VEZES É  NECESS ÁRIO PERCEBER  O ENGANO DE CONVICÇÕES DEFINIDAS ATÉ
ENTÃO, DE RECONHECER  E SENTIR  A INVERDADE DE VERDADES ACEITAS ATÉ O MOMENTO, E RECONHECER  E SENTIR 
TODA RESISTÊNCIA E MESMO A INIMIZADE DO QUE AT É ENTÃO JULGÁVAMOS AMAR  .

De um modo geral, podemos considerar três reações possíveis diante do


envelhecimento: negativa, involutiva e evolutiva. As metamorfoses da alma, segundo
ietzsche (2002), foram descritas como sendo: Camelo, Leão e Criança, que serão
exploradas a seguir, mas podemos desde já associar a dinâmica do Camelo, o que
carrega, suporta todos os valores, à reação negativa; a dinâmica do Leão, o que tudo
 pode, à reação involuti
nvolutiva;
va; e a dinâmi
dinâmica
ca da Criança,
Criança, a que se renova e cria,
cria, à reação

37
evolutiva.
A reação negativa  expressa uma fixação no passado, há um saudosismo, uma perda
da dimensão do agora; tudo é desconstrução, só decadência. Viver é um pesado fardo – 
como a carga pesada do Camelo. Geralmente, tende a só contabilizar perdas e danos,
vive-se premido pelo “ter sido”; há um real desinvestimento na realidade externa e no
ego. O poeta W. B. Yeats, referindo-se ao corpo que envelhece, diz: “Um homem idoso
é uma coisa sem valor, um casaco esfarrapado sobre uma vareta...”. Infelizmente, para
muitos essa pode ser a realidade escolhida. Vivem um narcisismo negativo, como que na
antecâmara da morte. Geralmente, tais pessoas, ao longo de suas vidas, abriram mão de
si mesmas, de seus desejos e sonhos em prol de outros (marido, filhos...), viveram
dominadas pelo apego e dedicação exclusiva a pessoas, a coisas, e isto normalmente gera
a necessidade do reconhecimento, que é muito difícil de concretizar. A conseqüência
inevitável é o crescimento da tristeza e do ressentimento. Esta realidade foi explorada por 
ietzsche em Genealogia da Moral   (1998), mostrando como o ressentido vive inspirado
no mundo exterior, e não sobre si mesmo, e sua impotência transforma-se em bondade,
submissão, obediência... O ressentimento pode ser considerado como o cupim da alma,
vai corroendo, corroendo por dentro e deixando um grande vazio no viver. E à medida
que essas pessoas vão se fechando, se isolando, correm o risco de ser tomadas pela
desilusão e pela depressão. Descrevendo fenomenologicamente a depressão,
encontramos sintomas negativos como: irritabilidade, rigidez, desconfiança, desânimo,
mau humor, diminuição da atividade sexual e da fantasia... Jung explica:

A TONICIDADE CEDE, O QUE É SENTIDO SUBJETIVAMENTE COMO DESÂNIMO, MAU HUMOR  E DEPRESSÃO. A PESSOA JÁ
 NÃO TEM  NENHUM DESEJO OU CORAGEM DE ENFRENTAR  AS TAREFAS DO DIA- A- DIA. ELA SE SENTE COMO UM CHUMBO ,
PORQUE  NENHUMA PARTE DO SEU CORPO PARECE DISPOSTA A SE MEXER , O QUE É CAUSADO PELO FATO DE A PESSOA
ENHUMA ENERGIA À SUA DISPOSIÇÃO   (O.C., VOL. 10/1, § 213).
 NÃO MAIS POSSUIR   NENHUMA

A reação involutiva expressa uma regressão, uma negação da passagem do tempo e da


idade, a pessoa não quer aceitar o envelhecimento de forma alguma, mobiliza a potência
do Leão para manter a aparência da juventude. Nessa perspectiva, a velhice também é
um mal, é feia, triste, deprimida e inútil... cada marca da passagem do tempo é vista
como decadência trazendo tremor e temor: “Oh! meu Deus? O que será de mim? Como
estou horrorosa! Já fui bonita, agora...”. O espelho torna-se o pior inimigo. A pessoa vive
como se fosse uma máscara de juventude, há uma hiperatividade social, esportiva ou
sexual, busca-se uma intensidade extrovertida da juventude como uma defesa, uma
forma de não entrar em contato com a realidade
realidade vivenciada.
vivenciada.

“TODO INTERVALO ENTRE AS OCUPAÇÕES É UM FARDO”, OS OCUPADOS SÃO OS QUE MAIS MENDIGAM EM SUAS
ORAÇÕES POR  ACRÉSCIMO DE POUCOS ANOS , PROCURAM PARECER  MENOS IDOSOS, LISONJEIAM-SE COM MENTIRAS E
ENCONTRAM ENORME PRAZER  EM ENGANAR  A SI PRÓPRIOS  (S ÊNECA, 1993: 48).

38
É nessa perspectiva que constatamos o quanto é difícil revelar a idade, e o quanto as
 pessoas começam
come çam a ocultar
ocultar a idade – parei nos 40, nos 50... P assamos ao long
ongoo da vida
vida
cantando em todos os aniversários: “Parabéns pra você, nesta data querida, muitos anos
de vida...”. Os anos vão se acumulando se tivermos o lucro dos anos, e no entanto,
 passamos a nos envergonhar deles! Que paradoxo!
paradoxo! Nesta reação involuti
involutiva,
va, envelhecer
envelhecer é
estar totalmente na contramão da vida e dos valores culturais. Talvez pudéssemos mudar 
a letra e cantar: “Parabéns pra você, nesta data querida, muitos anos de vida e muita vida
em seus anos...”
A reação evolutiva  é a que realmente expressa a inserção no processo vital de
contínuo desenvolvimento, como a Criança de Nietzsche, que está sempre se renovando.
A pessoa é capaz de encarar a velhice como a última etapa do desenvolvimento vital,
fase que traz declínios e perdas, como também abre novas possibilidades existenciais.
Portanto, significa continuar inserido no processo de viver, aceitando as mudanças e as
limitações inerentes. A vida, podemos dizer, é um jogo de perdas e ganhos, isto perfaz
todas as idades, do nascimento à morte. Viver requer aprender a mais básica verdade – a
aceitação do inevitável. Nietzsche (2000) afirma que fixaria até mesmo a posição e o
valor de um homem conforme a amplitude e diversidade do que ele pode suportar e
assumir. Poeticamente, Rubem Alves (2002) explicita a reação evolutiva:

HÁ MORANGOS QUE SE COMEM SOBRE ABISMOS .


BALÕES QUE SOBEM AO CREPÚSCULO.
E BELEZAS QUE SÓ EXISTEM  NO O UTONO.
É PRECISO BEBER  A TAÇA, AT É O FIM .

Estamos num contínuo devir, pois o desenvolvimento é obra de toda vida, do


nascimento à morte os porquês se farão presentes, o que vai se modificando são as
respostas que damos e o como vivemos. Jung (O.C., vol. 8/2 &785) diz:

O HOMEM QUE ENVELHECE DEVERIA SABER  QUE SUA VIDA  NÃO ESTÁ EM ASCENSÃO  NEM EM EXPANSÃO, MAS  NUM
PROCESSO INTERIOR  INEXORÁVEL QUE PRODUZ UMA CONTRAÇÃO DA VIDA. (...) PARA O HOMEM QUE ENVELHECE É UM
DEVER  E UMA  NECESS IDADE DEDICAR  ATENÇÃO SÉRIA AO SEU PRÓPRIO SELF . DEPOIS DE HAVER  ESBANJADO LUZ E
CALOR  SOBRE O MUNDO , O SOL RECOLHE OS SEUS RAIOS PARA ILUMINAR  - SE A SI MESMO. EM VEZ DE FAZER  O MESMO,
MUITOS IDOSOS TORNAM-SE HIPOCONDRÍACOS , AVARENTOS, DOGMÁTICOS E LOUVADORES DO PASSADO OU AT É MESMO
ETERNOS ADOLESCENTES, LASTIMOSOS SUCEDÂNEOS DA ILUMINAÇÃO DO SELF , CONSEQÜÊNCIA INEVITÁVEL DA ILUSÃO
DE QUE A SEGUNDA METADE DA VIDA DEVE SER  REGIDA PELOS MESMOS PRINCÍPIOS DA PRIMEIRA.

Questões fundamentais da meia-idade

OLHAR  TE M DE SE CONVERTER  EM OLHAR  PARA DENTRO DE SI (J UNG).


PARA A FRENTE TEM

Individuação, vista como uma contínua iniciação em nossa realidade interna, requer a

39
metanóia. Bonder (2001: 5) refere-se a essa fase como de libertação do círculo vicioso
do eu e do meu, passando-se a ter o senso de forças além do ego, de um criador interno
ou do  self , na expressão de Jung. Viver em plenitude é estar “antenado” com o  self ,
aceitando o chamado ou inspirações internas. A individuação é uma predeterminação que
vem de dentro, é um processo permanente de autotranscendência que culmina com a
consciência do  self , pela qual o ego ou a consciência percebe que há poderes “além” de
si, que a ultrapassa.
Jung (vol. 8/2) denominou metanóia  – mudança de mentalidade, transformação da
mente além do mental, reorientação do eixo vital, do sentido da vida ou conversão. São
essas mudanças que dão toda densidade à concepção de vida. Época de reavaliação, de
captar o não vivido, o não realizado e de tornar-se cada vez mais si-mesmo; ser seu
 próprio
róprio “co-criador”,
“co-criador”, reconhecer o que nos compete e descobrir
descobrir que cada um de nós é
um milagre. Nossa memória, sexualidade, afetividade, relações sociais e entusiasmo
 perduram em nossa vida, mas com modifimodificações;
cações; aceitar
aceitar essas transformações é o único
único
caminho para ser feliz. Nós escolhemos como queremos viver e, conseqüentemente,
envelhecer; a escolha sempre será de nossa responsabilidade, ninguém pode escolher por 
nós. Aliás, isso até pode acontecer, quando cedemos ao outro o domínio de nossa vida.
ietzsche nos alerta dizendo que só pode obedecer a outrem quem não pode obedecer a
si mesmo. Mais uma vez, podemos afirmar que a escolha e a responsabilidade são
empre nossas.  Contudo, nessas mudanças, também percebemos que não somos os
 sempre
únicos autores de nossa vida, somos movidos por forças que nos antecedem e nos
determinam. Para Nietzsche: “A potência do super-homem é a fidelidade ao seu destino”.
A principal tarefa dos que iniciam a segunda metade da vida é a mudança de
mentalidade, é voltar-se para si. Conclui Jung: “Olhar para a frente tem de se converter 
em olhar para dentro de si”.
Helio Pellegrino resume, sem o saber, o Processo de Individuação proposto por Jung,
na introdução de O Encontro Marcado, de Fernando Sabino:

O HOMEM, QUANDO JOVEM, É SÓ , APESAR  DE SUAS MÚLTIPLAS EXPERIÊNCIAS . ELE PRETENDE,  NESSA ÉPOCA,
CONFORMAR  A REALIDADE COM SUAS MÃOS , SERVINDO DELA, POIS ACREDITA QUE, GANHANDO O MUNDO , CONSEGUIRÁ
GANHAR  - SE A SI PRÓPRIO...
É MEIO-DIA EM  NOSSA VIDA E A FACE DO OUTRO  NOS CONTEMPLA COMO ENIGMA. FELIZ
DAQUELE QUE, AO MEIO-DIA, SE PERCEBE EM PLENA TREVA, POBRE E  NU. EST E É O PREÇO DO ENCONTRO, DO
POSSÍVEL ENCONTRO COM O OUTRO. A CONSTRUÇÃO DE TAL POSSIBILIDADE PASSA A SER  , DESDE ENTÃO, O TRABALHO
DO HOMEM QUE MERECE O SEU  NOME.

Jung confirma que fugir disso torna a vida frívola. Usou a imagem do rizoma como
sendo uma “lasca da eternidade infinita”:

A VIDA PARA MIM SEMPRE PARECEU COMO UMA PLANTA QUE VIVE DO SEU PRÓPRIO RIZOMA. A SUA VERDADEIRA VIDA
É INVISÍVEL , OCULTA  NO RIZOMA. A PARTE QUE APARECE ACIMA DO CHÃO SÓ DURA UM ÚNICO VERÃO, ENTÃO MURCHA
 – UMA APARIÇÃO EFÊMERA. QUANDO PENSAMOS  NO CRESCIMENTO E  NA DECADÊNCIA INFINITOS DA VIDA E DA
CIVILIZAÇÃO,  NÃO PODEMOS DEIXAR  DE T ER  A IMPRESSÃO DE UMA ABSURDA  NULIDADE
ULIDADE. NO ENTANTO,  NUNCA PERDI O

40
SENTIMENTO DE PERENIDADE DA VIDA SOB A ETERNA MUDANÇA. O QUE VEMOS É A FLORAÇÃO E ELA DESAPARECE ,
MAS O RIZOMA PERMANECE  (O.C., VOL. 8/2).

Raul Seixas, com irreverente sabedoria, diz com acerto: “Tem gente que passa a vida
inteira travando a inútil luta com os galhos sem saber que é lá no tronco que está o
coring
coringaa do baralho”.
baralho”. Parece
Pa rece que ambos falam da mesma realidade.
realidade.
Entramos despreparados na segunda metade da vida, mantendo, segundo Jung, a falsa
suposição de que nossas verdades e ideais continuarão como dantes, a tarde da vida deve
ter um significado e finalidade próprios. O processo de metanóia, descrito por Jung (vol.
8/2), pode ser assim sintetizado:
 – buscar conscientemente sentidosentido para a vida;
vida;
 – voltar a libi
libido
do para o  self , ter o movimento da sístole;
 – ressigni
ressignifi
ficar
car as ex
e xperiênci
periênciasas vividas,
vividas, ter maior
maior consciência
consciência da realidade
realidade dos opostos;
 – compreender a vida como um contínuo processo de auto-eco-organização;
auto-eco-organização;
 – reconhecer o envelhecimento
envelhecimento como sinali sinalização de que somos seres de passagem;
 – ter consci
c onsciênci
ênciaa da fi
f initude;
nitude;
 – encarar a morte como meta, potencialpotencialiizando a vida.

PARA ENHUMA AJUDA.


O SEGUNDO OBJETIVO CONTAMOS COM POUCA OU  NENHUMA FREQÜENTEMENTE REINA UM FALSO
TE M DE SER  COMO O JOVEM, OU PELO MENOS FINGIR  QUE É... É POR  ISSO QUE A PASSAGEM
ORGULHO QUE O VELHO TEM
ATUR AL PARA A CULTURAL É T ÃO TREMENDAMENTE DIFÍCIL E AMARGA PARA TANTA GENTE; AGARRAM -SE
DA FASE  NATUR
ÀS ILUSÕES DA JUVENTUDE OU SEUS FILHOS PARA ASSIM SALVAR  UM RESQUÍCIO DE JUVENTUDE  (...). N ÃO É DE
ADMIRAR  QUE MUITAS DOENÇAS GRAVES SE MANIFESTEM  NO INÍCIO DO OUTONO DA VIDA. (...) MAS AS ANTIGAS
RECEITAS  NÃO SERVEM MAIS PARA RESOLVER  OS PROBLEMAS QUE SE COLOCAM  NESS A IDADE. T AL RELÓGIO  NÃO
PERMITE GUIAR  OS PONTEIROS PARA TRÁS . O QUE A JUVENTUDE ENCONTROU FORA, O HOMEM  NO ENTARDECER  DA
TE M DE ENCONTRAR  DENTRO DE SI. (...) MUITAS VEZES É  NECESS ÁRIO PERCEBER  O ENGANO DAS CONVICÇÕES
VIDA TEM
DEFENDIDAS ATÉ ENTÃO, DE RECONHECER  E SENTIR  A INVERDADE DAS VERDADES ACEITAS AT É O MOMENTO, DE
RECONHECER  E SENTIR  TODA A RESISTÊNCIA E MESMO A INIMIZADE DO QUE AT É ENTÃO JULGÁVAMOS AMAR  (J UNG
O.C.,VOL. 8/2).

Transferir-se são e salvo para a segunda metade da vida requer viver a metanóia, o
esforço e o risco para fazer um mergulho na interioridade, na busca de ser cada vez mais
si-mesmo e de forjar um ego que suporte as transformações e verdades, muitas vezes
difíceis de ser vividas. Há o encontro com o “centro vazio”, tudo é relativizado. Jung
(O.C., vol. 9/1) expressa este processo comparando o ego sendo forjado entre “o martelo
e a bigorna” num todo, num individuum. O ego reconhece as limitações e o poder de
forças que o transcendem. Platão também fala de duas forças primordiais: Ananque e
Razão. Ananque refere-se ao que é necessário, tem de acontecer, portanto, não é
acidental à vida. Razão é o que explica o que podemos entender, isto é, não explica tudo.
o Processo de Individuação após a meia-idade, é da ordem de Ananque que a própria
 psique
sique passe a ser o foco da atenção, havendo a possibi possibillidade de um maior 
maior 
reconhecimento da unidade entre psique e mundo ou do unus-mundus, como diziam os
alquimistas medievais. Essa manifestação da consciência da unidade que o envelhecer 

41
 propici
ropicia,
a, está articul
articulada
ada à dimensão
dimensão espiri
espiritual
tual da libido;
bido; para Jung (vol. 10/1, § 505): “A
religiosidade significa dependência e submissão aos dados irracionais”, isto é, aos dados
que a razão, a consciência não explicam, mas estão no inconsciente. Hillman (1997: 23)
questiona: “Por que não de fato na psicologia, o que antigamente se chamava de
 providênci
rovidênciaa – algo
algo invisível
invisível que vela
vela por nós?” .

As metamorfoses da alma de Nietzsche e a metanóia de Jung

POSSIBILITAR  A METANÓIA, OU SEJA, O RENASCIMENTO ESPIRITUAL. (...) A RELAÇÃO INDIVIDUAL COM D EUS SERIA
UMA PROTEÇÃO EFICAZ CONTRA A INFLUÊNCIA  NEFASTA DA AÇÃO MASSIFICADA (J UNG, O.C., VOL. X, § 536).

 No Processo
Pr ocesso de Indivi
Individuação,
duação, entre os vários
vários eix
eixos do desenvolvi
desenvolvimento
mento psíquico,
psíquico,
encontra-se o eixo Criança / Velho ou  Puer  / Senex. “O padrão ordenador de  puer  e
 senex  é essencial a uma noção sadia e saudável de autocontinuidade e auto-identidade,
nos diversos estágios da existência” (Yeoman, 2002: 24). Pode-se dizer que esse eixo é
como um arquétipo de duas cabeças, dois lados da mesma moeda, um não existe sem o
outro, e quanto mais um aspecto for polarizado e o outro pólo que traz dentro de si ficar 
inconsciente, maior será a tendência a projetar e a invalidar o que não pertence ao seu
dinamismo. Quando polarizados, são vividos de forma negativa, tornando-se, quando
ovem, o  puer-eterno  e, na velhice, o velho senil . Vale lembrar o quanto nossa sociedade
atual está impregnada pelos valores do  puer , em todos os seus aspectos, desde o comer,
o vestir, a estética; o viver é regido pela fantasia e imagética do jovem, quase não se
considerando o pólo oposto; e se o faz, geralmente, é de modo negativo e/ou destrutivo
(López-Pedraza, 1997). Essas duas dinâmicas psicológicas trazem aspectos positivos e
negativos, na Criança / Puer   encontramos: espontaneidade, curiosidade, liberdade,
mudança, pressa, fantasia, tanto quanto irresponsabilidade, desligamento da realidade,
onipotência...; no Velho / Senex  encontramos: compreensão, lentidão, sabedoria, tanto
quanto rigidez, impotência, negatividade...
O arquétipo da Criança / Puer   tem função vital na maturidade e na velhice, é ele que
nos distanciará dos aspectos negativos do velho senil. Dinamizar o eixo Criança–Velho,
expressa-se
expressa-se sob diferentes
diferentes formas:
 – capacidade de ser mais pleno
pleno de si,
si, de buscar integrar
ntegrar o fazer, o sentir
sentir e o pensar,
pensar,
evitando desequilíbrios devido ao excesso ou atrofia de algumas dessas dinâmicas;
 – capacidade
capacidade de deix
deixar que nossa energia
energia flua
flua de modo mais natural, com uma maior maior 
capacidade de aceitação das coisas, pessoas e acontecimentos. A individuação, vista
sob o prisma do eixo Criança x Velho, explicita que o homem é sempre “co-criador 
de si”, reconhece a sua missão, o que lhe cabe fazer ou ser nesta vida. Isso equivale
à capacidade definida no hassidismo (Bonder, 2001), de sermos tudo o que somos e
não de sermos mais do que somos; precisamos, sim, ser tudo o que potencialmente
 podemos ser.
ser. P ortanto, ser velho
velho pode sign
signiificar paz para sermos nós mesmos,
sermos diferentes e em sintonia com nossa chama interior, respeitando nossos

42
 potenciais
otenciais disti
distintos,
ntos, e ao mesmo tempo
tem po nos sentindo profundamente ig iguais;
uais;
 – interagi
nteragir mais
mais pela
pela experiênci
experiênciaa e busca das verdades do que pela pela necessidade
necessidade de
certezas. É articular-se cada vez mais à realidade do E / E , isto é, a capacidade de
integrar os opostos inerentes à tudo o que é humano, de ver os dois lados da
realidade, e que a filosofia hindu chama de Neti-Neti – nem isto, nem aquilo, para
não cair na unilateralidade dos opostos, que propicia o dogmatismo. Sem os
contrários, sem a tensão dos opostos não há progresso nem vida saudável, segundo
Jung (1975);
 – manter os investimentos
nvestimentos libidi
bidinai
naiss orientados
orientados na plural
pluraliidade da busca dos sentidos
sentidos
existenciais, que levam naturalmente à consciência da passagem do tempo, ao
confronto com a finitude e à morte. A busca do significado da vida equivale à
dimensão espiritual para Jung, e é tão vital para o homem como o é a dimensão
sexual da libido. Envelhecer requer ativar o “revolucionário” que existe em cada de
nós, precisamos dele para encararmos as limitações do envelhecer e seguirmos em
frente. Só assim poderemos ser os artífices de nossa própria vida.
Vivenciar as dinâmicas da velhice requer esforço para confrontar e integrar novos
valores. Envelhecer saudável é poder aceitar as inverdades que nos escravizaram e que
agora delas podemos nos libertar. Segundo Jung, o enrijecimento das posições é medo,
medo de confrontar o problema dos contrários, de poder ver o outro lado da questão, o
 ponto de vista
vista do outro. Talvez
Talvez seja mais fácil
fácil segui
seguirr unil
unilateralmente
ateralmente apegado
apegado ao seu
 próprio
róprio ponto de vista,
vista, se colocando
colocando sempre como dono da verdade; ficar ficar encarcerado
na postura unilateral do OU / OU. Envelhecer desenvolvendo-se requer manter sempre
ativada a curiosidade e abertura para o novo, requer ativar sempre o arquétipo criança
dentro de si.
Envelhecer crescendo, isto é, aumentando a própria sonoridade, segundo o Aurélio,
requer a atualização das potencialidades originais do nosso “DNA” psíquico –  self .
Portanto, é vital fazer acontecer o seu  self , a totalidade originária ou o caráter. Segundo
Hillman, (2002), nossa diferença é a diferença ativa da forma, isto é, do  self , da alma;
nossa herança genética ganha forma individual através do caráter: traços, fraquezas,
gestos, relações, nossa história e nosso rosto, tudo espelha a nossa alma. Construir o
caráter aumenta a longevidade, conclui Hillman, pois permite ser o que se é, nada além
ou diferente. “Existe na vida uma inteligência que tem a intenção do envelhecimento,
assim como, também, tem a intenção de crescimento na juventude.”
Envelhecer requer impregnar-se do sentido da transformação, crer mesmo que a vida é
como um laboratório de mudanças e não fixação em certezas ou em posições
anteriormente assumidas. Buscar, sempre que for possível, transformar os  fatos  (algo
que aconteceu) em experiências  (o que isso significa). O que importa é poder se
 perguntar
erguntar sempre: Qual o sig signifi
nificado
cado disso
disso para minha
minha vida?
vida? O que posso modifi
modificar?
car?
Podemos afirmar, que talvez o maior perigo da velhice é ter a alma empacotada, é não
estar inserido na vida, não ser senhor(a) de si mesmo, é não ter a própria “tábua de
valores”, é viver de forma unilateral, sem integrar a dinâmica do E / E. É seguir pela vida
com: rigidez de papéis, impessoalidade de relações (solidão/depressão),  performance

43
centrada no trabalho, no desempenho sexual, alienação das vivências da criança que
trazem a espontaneidade, a curiosidade, a imaginação...
O Processo de Individuação no envelhecer requer descobrir objetivos diferentes dos da
 primeira
rimeira metade, senão a aproxi
aproximação da velhi
velhice
ce só será vista
vista como uma dimin
diminui
uição
ção da
vida. Segundo Jung:

SE TAIS PESSOAS TIVESSEM ENCHIDO , JÁ ANTES, A TAÇA DA VIDA AT É TRANSBORDAR , E A TIVESSEM ESVAZIADO ATÉ
A ÚLTIMA GOTA, CERTAMENTE SEUS SENTIMENTOS AGORA SERIAM OUTROS ; TUDO O QUE QUISESSE PEGAR  FOGO
ESTARIA CONSUMIDO, E A QUIETUDE DA VELHICE SERIA BEM -VINDA PARA ELAS. MAS  NÃO DEVEMOS ESQUECER  QUE SÓ
POUQUÍSSIMAS PESSOAS SÃO ARTISTAS DA VIDA, E QUE A ARTE DE VIVER  É A MAIS SUBLIME E A MAIS RARA DAS
ARTES   (O.C., VOL. 8/2 & 789).

 Nietzsche
ietzsche (2000: 51), em sua obra  Assim falou Zaratustra,  expressa possibilidades
inerentes ao desenvolvimento da personalidade e ao Processo de Individuação. Destaco
de modo privilegiado e recomendo a leitura do capítulo “As metamorfoses da alma”,
onde descreve, com mestria, três estados de alma que nos são inerentes e peculiares:
Camelo, Leão e Criança.
O estado de Camelo, de modo geral, expressa as vivências de submissão e obediência,
de assimilação dos valores impostos. É o espírito de  suportação, que geralmente se liga
ou só faz amizade com os surdos, os que nunca ouvem o que dizemos, não nos escutam.
Impera o eu devo, eu preciso, eu tenho da força civilizatória, é o viver carregado pelas
obrigações. “Todos esses pesadíssimos fardos tomam sobre si o espírito de  suportação;
e, como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele para o próprio
deserto. ” Ao vivermos sempre voltados para fora e para os compromissos, não criamos
nosso oásis interno. Vivemos escravizados ao profano  sim   aos outros, mais do que a nós
mesmos, pois é o constante  sim   aos outros que nos distancia de nós mesmos, nos faz
seguir sempre o desejo ou a lei do outro, seja ele marido, mulher, patrão, filho, amigo...
Encontramos afinidade com o pensamento de Sêneca (1993: 53), que diz:

A CONDIÇÃO DE TODOS OS OCUPADOS É MISERÁVEL , CONTUDO A MAIS MISERÁVEL É A DAQUELES QUE  NEM SE
MOLESTAM COM SUAS PRÓPRIAS OCUPAÇÕES, QUE REGULAM SEU SONO PELO ALHEIO, QUE CAMINHAM SEGUNDO AS
PASSADAS DE OUTRO E QUE ESTÃO SOB ORDENS , MESMO  NAS MAIS LIVRES DAS COISAS : AMAR  E ODIAR  .ESSES, SE
QUISEREM SABER  QUÃO BREVE É A VIDA, QUE CONSIDEREM QUÃO INSIGNIFICANTE É A PARTE QUE LHES CABE.

O estado de Leão tende a surgir ao se tomar consciência do deserto da vida, do estar 


estagnado nas obrigações cotidianas, esta consciência ocasiona uma mexida em direção à
conquista da liberdade, começa-se uma fase de correr riscos. Os riscos devem ser 
corridos, senão nada de novo acontece. Viver a dinâmica Leão é desacorrentar-se das
atitudes escravas, é dar um grito de liberdade. Impera o eu quero, aprende-se a dizer o
sagrado não, indo cada vez mais em busca da própria autodeterminação, na busca da
liberdade para novas criações. Adélia Prado (1991: 19) poeticamente fala do movimento:
“Eu sempre sonho que uma coisa gera, nunca nada está morto. O que parece vivo,

44
aduba. O que parece estático, espera”. O estado de Leão nos incita ao movimento, à
geração de algo. Para viver este estado, é preciso quebrar a tábua de valores imposta e
começar a criar a própria tábua de valores, para isso, é vital enfrentar nosso maior 
inimigo – o medo. As regras seguidas serão as que estiverem a serviço da vida, e não
mais as que serviam para reprimir a vida. É a fase de abandonar as regras, de despir as
máscaras da  persona  ou das convenções sociais e ir em busca da própria auto-afirmação.
Permite o início da aventura da criatividade, e só então poderá surgir a Criança. O que
será que a Criança pode que o Leão não conseguiu, pergunta Nietzsche.
Criança expressa uma referência de conquista e liberdade. Representa, assim, a fase da
mais plena criação, de inocência, do esquecimento, da curiosidade, da espontaneidade.
Expressa o começo e o fim, um começar de novo, um sagrado  sim   a si-mesmo e à vida.
Impera o eu crio, e isso possibilita uma ligação visceral com a alegria. Pois, para
ietzsche, o único pecado original seria a falta da alegria, e ela está em coisas singelas e
 passagei
assageiras,
ras, basta ter olhos
olhos para ver.
ver. Trazer à tona o arquétipo
arquétipo da Criança
Criança que vive
vive em
nossa psique, é uma forma de buscar a realização pessoal, não significa voltar a ser 
criança ou a ter uma máscara juvenil. Viver a criança pode significar tantas coisas! Viver 
essas metamorfoses da alma em época de metanóia é estar em constante transformação,
abrindo-se para possibilidades impensáveis, que muitos chamam de sabedoria. Jung
(O.C., vol. IX & 260) diz que o “velho mestre vê no opus(obra) alquímica uma espécie
de ‘apokatástasis’, o restabelecimento de um estado inicial na ordem escatólogica – o fim
olha para o começo, e vice-versa. É precisamente isto que acontece no Processo de
Indivi
Individuação”,
duação”, cita
cita a mensagem
mensagem cristã: “Se não vos tornardes como as crianças...”.
crianças... ”.
Significa estar aberto ao agora,  ao momento presente, esse é o tempo que temos,
tempo vital de ação –  gerúndio. “Fazem-se planos a longo prazo; no entanto, protelar é o
maior prejuízo para a vida: arrebata-nos cada dia que se oferece a nós, rouba nosso
 presente ao prometer o futuro”, Sêneca (1993: 37). Com beleza,
beleza, Mário
Mário Quintana nos dizdiz
qual é a idade para ser feliz:

EXISTE SOMENTE UMA IDADE PARA A GENTE SER  FELIZ


SOMENTE UMA ÉPOCA  NA VIDA DE CADA PESSOA
EM QUE É POSSÍVEL SONHAR  E FAZER  PLANOS
E T ER  ENERGIA BASTANTE PARA REALIZÁ-LOS
A DESPEITO DE TODAS AS DIFICULDADES E OBSTÁCULOS .
UMA SÓ IDADE PARA A GENTE SE ENCANTAR  COM A VIDA.
...
.. .
ESS A IDADE T ÃO FUGAZ  NA VIDA DA GENTE
CHAMA-SE PRESENTE
E T EM A DURAÇÃO DO INSTANTE QUE PASSA.

Significa colocar pra fora as emoções, ser capaz de expressar os sentimentos, de dizer 


“estou com medo, estou triste, chateado ou estou feliz, eu te amo...”. Pois só se nos
abrirmos, teremos chance de sermos compreendidos, vale a pena tentar. Atualmente,
tenho observado o quanto as pessoas acariciam, tocam, demonstram o maior carinho aos

45
seus animais de estimação, normalmente não ficam esperando uma demonstração de
carinho, elas logo se doam, elas iniciam o vínculo, o afago. Digo então que, se elas
dessem 10% desse carinho ao seu companheiro, filho, amigo etc., a vida seria bem
melhor. Realmente, são as relações afetivas que nos dão sustentação e fazem a vida ser 
gostosa de ser vivida.
Significa  ser capaz de brigar , negar, se opor e logo em seguida perdoar e pedir perdão.
Talvez o maior aprendizado seja perdoar a si mesmo, nos perdoar pelos erros e também
 pelo
elo que não fizemos, mas como gostamos de nos culpar culpar e criti
criticar. Leloup
Leloup (1999) diz
diz
que se seu coração lhe condena, lembre-se de que Deus é maior que seu coração. Como
as crianças sabem, o que dá pra rir dá pra chorar, e elas choram e riem, sem medo de
serem taxadas de neuróticas. Deixar as lágrimas se soltarem, esvaziar , vale a pena; os
estudiosos da medicina psicossomática recomendam como sendo eficaz na prevenção de
muitas doenças, incluindo a depressão.
Significa  ser capaz de esquecer , as crianças têm memória curta e como isso é
saudável. Elas não ficam remoendo raivas, dores de mil anos atrás, elas não vivem
tirando mágoas
mágoas e ressentimentos do baú, porque elas não deixam nada se acumular.
Como as crianças têm memória curta  para esquecer as coisas ruins, tudo passa rápido.
Mas, como elas têm memória longa  para buscar a realização de seus desejos, para lutar 
 pelo
elo que querem, elas
elas sabem insisti
insistirr como ninguém.
ninguém. Porém,
Porém , muitas vezes, ao envelhecer,
envelhecer,
 paramos de expressar
expressar nossos desejos, como se os outros tivessem
tivessem obrig
obrigação de saber; e
se não advinham, nos sentimos magoados – “como até hoje ele(a) não sabe que eu ...”.
Significa manter ativada a capacidade de fantasiar , a fantasia pode levar a fugas,
como Peter Pan, e viver na terra do nunca, ou viver o mito da criança eterna – a que é
sempre incapaz de... (Yeoman, 2020). Mas a fantasia traz a chance de crescimento
 psíquico,
síquico, abre possibi
possibillidades de lidar com a realidade
realidade de forma maismais criati
criativa
va e bem-
humorada. Hillman (2001: 134) falando especialmente da fantasia/ imaginação erótica,
acredita que ela possa fazer mais para o vigor físico e intelectual da velhice que halteres
etc. Relata descrições do diário do psicanalista Samuel Atkin, afligido pela doença de
Parkinson, aos 88 anos. Relatos:

ACORDEI EM ESTADO DE EXCITAÇÃO SEXUAL. VIVA


IVA! O IMPULSO ERÓTICO AINDA FUNCIONA.... EU AINDA ME SINTO
ANIMADO. ESTOU ME DIVERTINDO. ESTA ERUPÇÃO ERÓTICA. UM IMPULSO CRIATIVO.PIRUETAS. UM PALHAÇO ....
COMECEI O DIA EM ESTADO DE DEPRESSÃO – MEIO MORTO. VOU TERMINÁ-LO COM GLÓRIA . PENSAMENTOS ERÓTICOS:
POSSUO TRÊS COISAS : 1 - UMA MENTE ATIVA, TALVEZ PELO MENOS CAPAZ DE LIDAR  COM AS TAREFAS DA VIDA
MADURA, MAS INTEIRAMENTE CAPAZ DE FANTASIAS ERÓTICAS; 2 - UM FALO QUE PERDEU A CAPACIDADE TOTAL DE
VIRILIDADE E DE EJACULAÇÃO, MAS AINDA É CAPAZ DE SENSAÇÕES AGRADÁVEIS , GRAÇAS À IMAGINAÇÃO ; 3 - MINHA
MULHER ...
. .. OBJETO DE MEUS SENTIMENTOS ROMÂNTICOS ...
.. .

E o brincar? Winnicott (1975) diz que é brincando e só brincando que a criança ou o


indivíduo adulto torna-se criativo; só sendo criativo, o indivíduo descobre o seu eu e
 pode dar vazão a tantas potenciali
potencialidades ainda inconsci
inconscientes.
entes.
Significa estar aberta ao novo, as crianças são curiosas e não se sentem na obrigação

46
de saber tudo, elas não têm medo de errar. No aprendizado de seus primeiros passos, do
caminhar, como as crianças caem, elas caem e logo em seguida se levantam e vão em
frente, sem medo do outro ou de ser feliz. Podemos aprender que todo novo caminhar 
requer aprendizagem, e para isto precisamos cair e levantar sem ficar nos criticando pelos
erros e quedas. Uma das aventuras da velhice é estar aberta, ainda que com lentidão, a
novas aprendizagens. Como tem sido enriquecedor para tantos idosos, e de modo
especial para os deprimidos, abrir-se para as saídas criativas, seja elas quais forem
(Monteiro, 2002); podemos falar da mobilização de capacidades expressivas, de recursos
lúdicos, de vivências grupais, da capacidade criativa.
Significa  ser capaz de mudar a experiência
experi ência. Albon (1998) expressou essa verdade que
muito me fez refletir, pois somos condicionados a repetir, a pensar igual. Relata a
realidade de um professor que contrai ELA (esclerose lateral amiotrópica) e, questionado
sobre o que seria para ele a maior impotência, a rendição máxima quando paralizado pela
doença, afirmou ser quando “precisasse que limpassem sua bunda”. Finalmente esse dia
chegou. Deve-se ficar deprimido diante dessa realidade imutável ou mudar a experiência?
Percebeu que o bebê recebe todos os cuidados, é banhado, carregado, limpo em sua
higiene, acariciado, e como isso é agradável! Por que não poderia ser assim também? Ele
aprendeu aos 78 anos a se dar como um adulto e receber como uma criança.
Finalizando  As metamorfoses da alma, conclui Nietzsche: “Sim, meus irmãos, para o
ogo da criação é preciso dizer um sagrado sim: o espírito, agora, quer a sua vontade,
aquele que está perdido para o mundo conquista seu mundo”.

Parando de refletir.
r efletir.....

SONHAR  , MAS UM SONHO IMPOSSÍVEL. LUTAR , QUANDO É FÁCIL CEDER  (F ERNANDO P ESSOA).

Parando de refletir ou concluindo significa dizer que estamos no tempo verbal mais
 propício
ropício ao desenvolvi
desenvolvimento
mento – o  gerúndio. É esse tempo verbal que nos coloca sempre
na atividade, que nos retira do lugar das certezas e nos coloca no lugar da busca e na
eterna aventura de sermos eternos aprendizes de nossos desejos. Estarmos, ou não,
inseridos nessa perspectiva nos abre diferentes possibilidades.
Delineamos duas possibilidades de trilhar o nosso processo de envelhecimento após a
meia-idade. Uma nos articula ao crescimento quantitativo, à plasticidade biológica, à
criatividade e produtividade de algo, portanto, tendo um foco mais no externo, nas
realizações. A outra nos articula ao refinamento qualitativo, à articulação com as
capacidades psíquicas e à criatividade e desenvolvimento de si mesmo, portanto, tem o
foco mais no interior, na subjetividade. Norberto Bobio (1997:55), aos 87 anos, escreve:

DEVEMOS EMPREGAR  O TEMPO MENOS PARA FAZER  PROJETOS PARA UM FUTURO DISTANTE AO QUAL JÁ  NÃO
PERTENCEMOS, E MAIS PARA TENTAR  ENTENDER  , SE PUDERMOS , O SENTIDO OU A FALTA DE SENTIDO DE  NOSSAS
VIDAS . CONCENTREMO- NOS. NÃO DESPERDICEMOS O POUCO TEMPO QUE  NOS RESTA.

47
Podemos nos fixar nas ilusões e no apego articulando possibilidades de maior 
sofrimento e dor ou buscar aprender o desapego elaborativo, que é ligado às
 possibi
ossibillidades de sabedoria.
sabedoria. “Somos o limite
mite de nossas ilusões perdidas”,
perdidas”, disse
disse
Bachelard.
Como encarar as perdas, dores e desilusões inerentes ao processo do viver e do
envelhecer? “Ninguém é sábio se não conhecer a escuridão”, diz Herman Hesse. Muitas
vezes são os tempos difíceis, de perdas, de sofrimento que nos levam aos
questionamentos sobre os motivos para viver, o sentido e a buscar respostas. A vida é
repleta de momentos difíceis e no envelhecer eles se acentuam. A experiência do
sofrimento diante das perdas da pessoa amada, dos filhos que se ausentam, do trabalho
que se encerra, dos ouvidos surdos que não captam a melodia, dos olhos que não
vislumbram a beleza do pôr-do-sol, das mãos já tão debilitadas que não alcançam os
lábios, das pernas que não nos conduzem ao alcance dos objetos desejados, da memória
que se esvai deixando nossa identidade difusa ou perdida... Como vivenciar tudo isto?
Para vivenciar tudo isto, precisamos forjar um eu que suporte a verdade, aprendizagem
de toda uma vida.
Para Boff (2000), o sertão, a seca, o deserto, são a pátria da humanidade, pois eles
 propici
ropiciam
am a transcendência.
transcendência. A emergência
emergência da dimensão
dimensão espiri
espiritual
tual da libido/energ
bido/energiia
 psíquica,
síquica, se não tiver
tiver sida
sida ativada,
ativada, encontra nesses momentos oportunidade
oportunidade de se
atualizar (Monteiro, 2006). Na penumbra, os olhos enxergam de um modo que a
claridade não permite, pois na claridade os “olhos vêem apenas o que a mente está
 preparada para compreender”
compre ender” (Bonder, 2001: 80). Assim,
Assim, os que estão acostumados com
a penumbra discernem as formas no escuro, conclui, que por si só o sofrimento não é
capaz de ver, mas faz com que acendamos as lanternas do “encontro” que se abre em
infinitos caminhos. Também Platão (2002) finaliza seu discurso afirmando que a visão do
 pensamento começa a ver com agudeza agudeza quando os olhos
olhos começam a perder a força.
Envelhecer é arte e sabedoria, mais que biologia, disse Hillman.
As provações do tempo são inevitáveis e podemos escolher vê-las como inimigas a nos
destruir ou como amigas a nos ensinar que “As coisas humanas não são eternas e vão
sempre em declinação desde o início até o seu último fim, especialmente a vida dos
homens”, como disse Cervantes. Isso nos remete ao budismo, ao afirmar que uma das
maiores causas de sofrimento humano é a crença na permanência das coisas, levando ao
apego e à posse. Porém, tudo, tudo na vida e na natureza passa e se vai. Como canta
Lulu Santos: “Nada do que foi será /do jeito que já foi um dia/ tudo passa/ tudo
 passará.../
assará... / como uma onda no mar/ como uma onda no mar...”.
 No processo vital
vital do desenvolvi
desenvolvimento,
mento, na contínua autoconstrução do eu após a meia-
meia-
idade, na vivência do eterno sou, e não do fui ou do serei, inerente ao Processo de
Individuação, compete-nos ao chegar à velhice alcançar o estado ideal desejado de se
tornar um velho sábio  e não um velho senil.  Como lembra Shakespeare (2002: 40): “Tu
não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”. O que é exatamente a sabedoria? É
quase inefável, mas sabemos que existe, sabemos principalmente quando a encontramos.
Quando jovens esperamos um dia compreender o mundo e ficar mais sábios, mas, ao

48
ficar velhos, nem por isso nos sentimos sábios; seguimos sendo eternos aprendizes de
nossos desejos e da vida. Contudo, para Leloup (1999) sábio é o homem que tem o
gosto de ser. Sábio vem do verbo  sapere
apere, isto é, saborear o seu ser, seu centro, ter seu
eito estruturado de ser. Esta estrutura interior não é a aparência, é o sabor, a “delícia de
ser o que é”. Tudo vai depender diz Luft (2003: 113), “de cada um de nós, que sua vida
seja território seu ou apenas emprestado, com má vontade, de outros – mesmo filhos.
Que seja campo para correr perseguindo projetos e colhendo vivências, ou cova estreita
onde a gente se esconde e aguarda o golpe final”.
Para Jung, a meta da vida é “criar consciência”, é nos tornarmos especiais,
alcançarmos a plenitude de nossa identidade, essa é a nossa maior responsabilidade, é o
nosso livre-arbítrio.  A responsabilidade
esponsabili dade de sermos quem e como somos, não cabe ao
outro ou até mesmo a Deus, ela cabe exclusivamente a cada um de nós.
Em um depoimento ao final da vida, Jung expressa de forma singela o que para ele era
essa meta ou seja, essa sabedoria, ele diz:

O ARQUÉTIPO DO HOMEM IDOSO QUE CONTEMPLOU SUFICIENTEMENTE A VIDA É ETERNAMENTE VERDADEIRO; EM


ÍVEIS DA INTELIGÊNCIA, ESSE TIPO APARECE E É IDÊNTICO, QUER  SE TRATE DE UM VELHO CAMPONÊS OU
TODOS OS  NÍVEIS
DE UM GRANDE FILÓSOFO COMO L AO-T SÉ . ASSIM, A IDADE AVANÇADA É... UMA LIMITAÇÃO, UM ESTREITAMENTO. E,
 NO ENTANTO, ACRESCENTOU EM MIM TANTAS COISAS : AS PLANTAS , OS ANIMAIS , AS  NUVENS, O DIA E A  NOITE E O
ETERNO  NO HOMEM. QUANTO MAIS SE ACENTUOU A INCERTEZA EM RELAÇÃO A MIM MESMO, MAIS AUMENTOU MEU
SENTIMENTO DE PARENTESCO COM AS COISAS . SIM, É COMO SE ESSA ESTRANHEZA QUE HÁ TANTO TEMPO ME
SEPARAVA DO MUNDO TIVESSE AGORA SE INTERIORIZADO, REVELANDO-ME UMA DIMENSÃO DESCONHECIDA E
INESPERADA DE MIM MESMO (1975: 310).

Que possamos aprender sempre :


 – a não abrir
abrir mão do próprio
próprio desejo de ser nós mesmos, do jeito
jeito que formos – pois
pois
esse é o nosso jeito, nossa essência;
- a manter presente o arquétipo da criança para nos colocar na aventura do momento
 presente;
 – a ser feliz,
feliz, pelo milag
milagre
re ou pelo dom da vida
vida em si e não por ela ser desse ou daquele
daquele
 jeito...
eito...
Que possamos todos dizer, com a mestria de Cervantes em Dom Quixote:

“EU TIREI O MÁXIMO DE MIM MESMO. ESTA É A MELHOR  VITÓRIA QUE SE PODE DESEJAR .”
.”

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* Graduada em Filosofia, Educação e Psicologia. Mestre em Educação; Analista Junguiana – AJB (Associação Junguiana do Brasil) e da
IAAP (Associação Internacional de Psicologia Analítica); Professora de Psicologia da Pós-graduação do Instituto Brasileiro de
Medicina de Reabilitação (Uni-IBMR); Gerontóloga – Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Publicações: -  Mulher:
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FREITAS, E. V. et al. Tratado de Geriatria e Gerontologia.   Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2004.
Envelhecimento ”, cap. 113, In: FREITAS,

50
5
Metanóia e história: Conflitos e rupturas na meia-
idade
Fernando Cavalheiro*

 No livro  Aion – Estudo sobre


sobre o simbolismo
simboli smo do si-mesmo  (O.C.,V 10/2, § 299), Jung
cita uma passagem do apóstolo Paulo na qual Deus, vendo a “ agnóia” (ignorância) dos
homens, sua inconsciência, deu início à redenção da humanidade. Lembrou-lhes de sua
linhagem divina e enviou uma mensagem que clamava para que “mudassem de pensar”.
O verbo citado é “ metanoein”, que significa “mudar” a maneira de pensar, sair da
inconsciência na qual viviam para uma outra atitude mental diante do mundo e
compatível com uma nova condição humana. Aqui Jung fala da necessidade de
mudanças ao longo da vida, compatíveis com a demanda inconsciente e a expansão da
consciência. Para isso, é preciso um outro pensar e um outro sentir o mundo. A
acomodação leva à inibição da pessoa que permanece a mesma, até que a doença ou a
morte decida mexer as peças. Essa questão se dá no coletivo, como no caso acima,
quando a humanidade precisa mudar sua visão de mundo e entrar numa outra ordem de
existência. Assim como, da mesma forma, ela ocorre nas etapas da vida de cada um, na
adequação a um novo momento, a um novo desafio pertinente à individuação, ou, como
Jung também costuma dizer, em acordo com a totalidade da personalidade.
Metanóia significa mudança radical vinda de uma força inconsciente que entra em
conflito com a consciência sintônica com o  status quo  adquirido com tanto esforço. Ela
 produz angústia,
angústia, depressão, pensamento de morte, assim
assim como perspectiva
perspectiva de liberdade,
de planos, de um novo renovador que muda o rumo de uma vida. Enfim, remete-os ao
conflito. A metanóia remete ao corte que rompe o contínuo da história, estabelecendo
uma outra ordem. Um início, uma mutação, um outro que traça no presente uma origem.
Queremos dizer com origem uma eterna condição de possibilidade do novo adentrar na
consciência e desviar a história para um outro modo de ser.
A metanóia enfrenta uma enorme resistência na forma do progresso histórico. A crença
no progresso é a grande ilusão iluminista: desvendar todos os mistérios e dar à
humanidade o conforto da certeza do descanso eterno. Mas o progresso é tão-somente o
 prolong
rolongamento
amento do presente, do mesmo, no qual a orig
origem é o início
nício de uma históri
históriaa dada
que termina no juízo final. Por isso mesmo é preciso o corte que rompe o contínuo e
 permita
ermita uma nova origorigem. Essa é a abertura da metanóia
metanóia e, ao mesmo tempo, sua

51
angústia
angústia dilacera
dilacerante.
nte.
O contínuo do progresso, essa agnóia  atávica, em nossa sociedade é camuflado em
novidades permanentes que nos dão a ilusão do novo, mas que nasce envelhecido e
superável. A crença é que haverá um novo que nos dará uma longa vida, o hedonismo
terreno ou o descanso eterno ao lado de um Deus ocioso que nos aguarda para gozarmos
de uma lassidão infindável. Construímos e destruímos nossa escada rumo ao céu, numa
ansiedade estonteante que nos faz antever, através de ilusões, o último degrau, antes de
cairmos.
A corrida por esse troféu do prazer infinito, prometido pelo progresso, expressa o
individualismo que se diferencia do que Jung chama de individualidade. Enquanto a
individualidade é o indivíduo no mundo, o individualismo é o indivíduo em si mesmo. É
a radicalidade da linguagem babélica, na qual cada um só fala e entende a si mesmo.
Todo outro é um potencial competidor a ser excluído. Basta ouvi-lo e logo estaremos em
 pânico,
ânico, desejando seu fim imediato.
mediato. A estranha presença do outro é como Pã saltando
saltando
dos arbustos. O olhar, a fala, o toque, tudo nos assusta, nos põe em prontidão. O motivo
dessa luta é inconsciente, ele é apenas um grito, mudo. Por ela, nos esquivamos do
outro, nos isolamos. O encontro é fugaz ou tão-somente parte de um rígido contrato
social. Sem abertura e sem espaço para mudar o pensar, somos atormentados pelo
 pânico.
ânico.
Como tememos a nós mesmos, perdemos a presença de Deus. Para nós ele morreu.
ão havendo outra intervenção apostólica, o mundo da revelação adormeceu em seu
crepúsculo. Preces e loas se perdem em nosso assustado vazio. Carecemos de cortes, de
quebras, de dobras. Aquilo que mude o rumo e rasgue a história como o mesmo,
apropriada na engessada forma narrativa. Essa tarefa de ruptura passou a ser humana,
 pois
ois o Deus de Paul
P auloo emudeceu, ou não mais o ouvimos.
A tarefa criativa de falar de nós mesmos e, na medida em que nos reconhecemos nessa
fala, adquirirmos uma identidade, teve início na elaboração da história humana pela
descrição dos mitos de origem. E origem aqui significa um início absoluto. A partir dela
tece-se o relato interpretado da história. De início, a história, mesmo sem ser dessa forma
nomeada, é relatada oralmente. “Fala de um tempo longínquo, de um tempo das origens,
tempo dos deuses e dos heróis, do qual só as musas podem nos fazer lembrar, pois, sem
elas, não podemos saber ( idein) daquilo o que não vemos” (Gagnebin,1997: 17). Essas
memórias dão algum sentido ao homem solitário e desprotegido; gerando neste ser 
humano um sentido de identidade, de grupo, de parceria e proteção. A linguagem cria e
une um povo, dá-lhe identidade e proteção diante do vazio. A linguagem constitui uma
nação, por necessidade.
 Nesse mundo, o tempo é circul
circular,
ar, retorna com a narrativa
narrativa fácil e acolhedora
acolhedora de uma
grande mãe, contando histórias de ninar. Ela é um útero que gera e aborta seus rebentos,
acostumando-os com a idéia de um nós, dando o ponto na mistura. Mas esse fechamento
 permanente empobrece a ling nguag
uagem
em e atrofia
atrofia o sujeito.
sujeito. P or isso mesmo, o discurso
discurso
mítico vai sendo substituído pelo discurso lógico; embora a linguagem mítica permaneça
sempre ao seu lado. Há um tempo em que um grego chamado Heródoto passa a escrever 

52
o que se dizia. Que descreve em seus escritos o que viu e pesquisou do relato dos outros.
Para Gagnebin, “a palavra grega historiè  tem, nesta época e neste contexto, uma
significação muito mais ampla: ela remete à palavra histôr , àquele que viu,
testemunhou’”. (Gagnebin, 1997: 16). Portanto, há de se ter pesquisa, testemunha e
relato coerente dos fatos. Curiosamente, o objeto de pesquisa e de descrição histórica
 pode variar
variar no tempo e no espaço. “A historiè  pode pesquisar a tradição dos povos
longínquos, as causas das enchentes do Nilo ou as razões de uma derrota militar”
(Gagnebin,1997: 16). É essa forma ilógica que não cessa de evocar o logos como forma,
mas que é flexível com o conteúdo, que nos importa. É a forma cruzada onde o tempo
retilíneo atravessa o circular, abrindo uma fenda por onde entra o passado. Walter 
Benjamin diria que é por essa abertura que passa o messias, a origem, a possibilidade de
uma nova história.
Com Tucídides, a retificação da história se estabelece por inteiro. Não admite emoções
no relato, pois ficaria à mercê da simpatia do relator, modificando os fatos. Desconfia da
memória, falha e enganadora. Bastava perguntar para algumas pessoas sobre o ocorrido
 para verifi
verificar
car as diferenças
diferenças nos relatos
relatos e confirmar
confirmar a desconfiança
desconfiança nas emoções e na
memória. “Tucídides não se contenta com um ceticismo benevolente; exige uma
reconstituição crítica dos acontecimentos, cujos critérios racionais são a verossimilhança
da situação e a pertinência das palavras pronunciadas” (Gagnebin, 1997: 28). O logos se
impõe no discurso histórico, retificando a história e fechando as possibilidades de
abertura, da fenda por onde o estranho ao logos possa se insinuar. A semente iluminista
se põe na linguagem que passa a descrever e construir racionalmente a história.
Paradoxalmente, é por isso mesmo que ela se transforma em versão, a versão unilateral
da consciência.
Sendo assim, a história só tem um sentido, e ele aponta para o progresso. O progresso
iluminista, de salvação do homem pelo homem, se põe a caminho irreversivelmente.
ele, a memória “pertence ao mythodes  e ao engodo” (Gagnebin, 1997: 29). O passado
deve ser verificado, racionalizado, compreendido, interpretado e explicado como um
registro a ser lido no futuro com a autoridade da verdade. Antecipando Descartes, deve-
se desconfiar do sentimento, da memória, do mito ou de qualquer coisa que possa cruzar 
a linearidade da razão.
Ao encadear os fatos racionalmente, a história adquire uma forma lógica, um
encadeamento de fatos, onde causas e efeitos ordenam o processo histórico. O que de
fato se inicia é um projeto que trata menos de colher dados e encadeá-los numa
seqüência lógica para a compreensão da história do que a criação de um modelo que fará
do tempo um ponto único que se estende infinitamente. O pré-posto determina o
 presente, cujo futuro é sua extensão.
extensão. O determinismo
determinismo divino
divino é copiado,
copiado, com nuanças, do
determinismo histórico, do qual também não podemos escapar. A história vai se
configurando como um enquadramento, um roteiro que não cessa de se repetir, em
remakes trash. Não há espaço, não há fresta, tudo está previsto e contado. A isso se deu
o nome de historicismo, a historiografia iluminista do progresso. Como dito por 
Benjamin, “um contínuo homogêneo e vazio” (Benjamin, 1996: 229).

53
A história pessoal e a história coletiva passam a ter uma forma rígida, cujo conteúdo
não cessa de se repetir. Na juventude olhamos o futuro como descobridores de um
mundo inexplorável, com mil possibilidades e novidades, mas logo recebemos o diário de
 bordo com todas as regras
regras e uma lista fechada de opções. A sociedade nos enquadra.
este período da vida, não olhamos para trás, pois não há uma história, apenas traços
espaçados de memória, como estrelas cadentes fugidias. Quando adultos jovens,
começamos a realizar o que projetamos na crença na liberdade das escolhas. Ficamos
felizes pelas conquistas e não nos damos conta de que, cada vez mais, nos enquadramos
na história, no processo que promete nos levar a algum lugar importante, referendado e
legitimado pela sociedade.
Estamos dentro do contínuo homogêneo e vazio, e por isso mesmo não identificamos
a mão invisível da história que nos faz deslizar no mesmo, com a ilusão de que
experimentamos o novo. No texto intitulado “Sobre o Conceito da História”, Benjamin
diz que:

CONHECEMOS A HISTÓRIA DE UM AUTÔMATO CONSTRUÍDO DE TAL MODO QUE PODIA RESPONDER  A CADA LANCE DE UM
JOGADOR  DE XADREZ COM UM CONTRALANCE , QUE LHE ASSEGURAVA A VITÓRIA. UM FANTOCHE VESTIDO À TURCA,
COM UM  NARGUILÉ  NA BOCA, SENTAVA- SE DIANTE DO TABULEIRO, COLOCADO  NUMA GRANDE MESA. UM SISTEMA DE
ESPELHOS CRIAVA A ILUSÃO DE QUE A MESA ERA TOTALMENTE VISÍVEL, EM TODOS OS SEUS PORMENORES . NA
REALIDADE , UM ANÃO CORCUNDA SE ESCONDIA  NELA, UM MESTRE  NO XADREZ, QUE DIRIGIA COM CORDÉIS A MÃO DO
FANTOCHE  (B ENJAMIN, 1996: 222).

 Nós fazemos a história


história ou a história
história nos faz? O que vivemos é a presença do corcunda
dirigindo os cordéis de nossa história, enquadrando-nos num modelo que enrijece, mas
que, pela ilusão dos espelhos, nos dá a certeza do livre-arbítrio. Jung nos fala que é na
meia-idade que ocorre a metanóia. O momento de desmascarar e destituir o corcunda. A
meia-idade é o ponto de desequilíbrio, onde as certezas da juventude se foram e as
incertezas da velhice se apresentam. A finitude bate na porta e o que sentimos é medo.
Medo porque a continuidade da nossa história está ameaçada. A certeza de que o futuro
é uma continuação natural do presente se desfaz no ar. Olha-se para trás e o passado está
tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Olhamos para a frente e deparamos com a
certeza da morte. Nesse ponto surge uma fenda, uma fratura, uma possibilidade que
 permite
ermite o desvio, uma nova origem.
origem.
O passado não é um lugar para se passear ociosamente na lembrança triste do que se
foi, contemplando o crepúsculo do processo linear de nossa história. Para Benjamin, o
 passado pode ter outra sigsignifi
nificação.
cação. Para
Pa ra ele,
ele, o passado é “uma construção cujo lug
ugar 
ar 
não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’” (Benjamin,
1996: 229). Esses “agoras” são, por exemplo, lembranças casuais, espontâneas, que
chegam intuitivamente na consciência. Como as lembranças de Proust, que, ao sabor das
madeleines, marcas de sua infância, fragmentos foram avivados em seu inconsciente,
despertando no presente uma nova constelação, uma nova história, que se constituiu em
sua obra.

54
Às vezes, nos assustamos com fragmentos de lembranças inesperadas que irrompem
na consciência. Pensamos serem os primeiros sinais de demência. O temor nos impede
de ver o fragmento de ouro assentado no leito do rio que nos revela “um passado
carregado de ‘agoras’” explodindo a história (Benjamin, 1996: 230). Um toque na água
estagnada revela sua riqueza, oculta no véu que a embaçava. “O historicista apresenta a
imagem ‘eterna’ do passado, o materialista histórico faz do passado uma experiência
única” (Benjamin, 1996: 231), um instante revolucionário.
A imagem eterna do passado, a água estagnada, nos faz crer na mudança repetindo o
mesmo. A revolução, e não o instante revolucionário, é o que, ardilosamente, preconiza o
 personagem
ersonagem Tancredi, do filme
filme “O Leopardo”, de Visconti:
sconti: há de se mudar para que tudo
 permaneça igual.
ual. A experi
experiênci
ênciaa única
única é a irrupção no presente de fragmentos
fragmentos da históri
história,
a,
como fragmentos significativos de memória, liberados das amarras da censura, que
transformam o presente. São instantes, momentos que a idade sabe reconhecer. Com o
tempo, cada vez mais vivemos de fragmentos, que são significativos quando plenos de
silêncio e de reticências sensíveis.
Jung, no texto chamado “As Etapas da Vida Humana”, nos remete aos conflitos da
meia-idade. A soberba, ensinou Paulo (2Cor 12,7), foi tratada pela compensação de um
espinho na carne. Quando se chega à meia-idade é comum a escolha defensiva de uma
das polaridades entre o passado e o futuro. Para Jung: “Quem se protege contra o que é
novo e estranho e regride ao passado está na mesma situação neurótica daquele que se
identifica com o novo e foge do passado” (8/767). Regredir e retornar à infância, ao
 passado como uma linhalinha histórica
histórica na qual se desliza
desliza de volta,
volta, é estancar a vida, negando,
 por temor, o novo. Assi
Assim
m como agarrar-se
agarrar-se ao novo cortando a linha da históri
históriaa é viver
viver a
ilusão da jovialidade eterna, na qual o passado é o apêndice que testemunha a
temporalidade. Então Jung, numa passagem iluminada, nos diz que: “Em princípio, os
dois fazem a mesma coisa: mantêm a própria consciência dentro de seus estreitos limites,
em vez de fazê-la explodir na tensão dos opostos e construir um estado de consciência
mais ampla e mais elevada” (O.C., V. 8, § 767).
Os opostos neste caso são o passado e o futuro. Entre eles está o presente, onde as
coisas acontecem. E é na linha processual da história que o velho encontra-se com o
novo explodindo o contínuo neurótico “homogêneo e vazio” da história. Esse salto
significativo do fragmento histórico no presente abre uma fresta por onde passa o novo,
 pleno
leno de sig
signifi
nificado,
cado, mudando a maneira de pensar,
pensar, de sentir
sentir, de ser. Jung finali
finaliza esse
 parágrafo,
arágrafo, sobre a Metanóia,
Metanóia, dizendo
dizendo que “este resultado
resultado seria
seria ideal, se pudesse ser 
conseguido nesta segunda fase da vida”v ida” (O.C.,
(O.C. , V.
V. 8, § 767).
A fixação no passado diz respeito à rememoração de um Senex  saudosista que reifica a
história fazendo-a retornar em círculo. O tempo circular imposto pelas lembranças
cristalizadas, muitas vezes acompanhadas pelo ressentimento, aprisiona os sonhos,
desfaz a perspectiva e mergulha a vida na escuridão de uma morte em vida. Os conflitos
da juventude nos levam a uma adaptação social como modo de sobrevivência.
Ocupamos um lugar no mundo, fechado, competitivo e assustador. Finalmente aceitos,
respeitados e valorizados, procuramos manter, com todas as nossas forças, o que deu

55
certo, evitando qualquer desejo que possa abalar essa estrutura social protetora, que, por 
outro lado, nos começa a engolir. Falando da juventude, Jung mostra que:

A EFICIÊNCIA, A UTILIDADE ETC . CONSTITUEM OS IDEAIS QUE PARECEM APONTAR  O CAMINHO QUE  NOS PERMITE SAIR 
DA CONFUSÃO DOS ESTADOS PROBLEMÁTICOS. ELES SÃO AS ESTRELAS QUE  NOS GUIARÃO  NA AVENTURA DA
AMPLIAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE  NOSSA EXISTÊNCIA FÍSICA; AJUDAM - NOS A FIXAR   NOSSAS RAÍZES  NEST E MUNDO, MAS
 NÃO PODEM  NOS GUIAR   NO DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA HUMANA, OU SEJA, DAQUILO A QUE DAMOS O  NOME DE
CULTURA OU CIVILIZAÇÃO  (O.C., V. 8, § 769).

 Na meia-idade
meia-idade esse ali
alicerce, até então natural,
natural, passa a ser uma questão. São pressões
internas e externas, associadas a uma cornucópia de novos desejos, que devolvem os
sonhos, as descobertas, mas também o medo e a angústia. Momento mágico e trágico.
Como deixar para trás a proteção e a aceitação social e buscar a individualidade. O que
significa individualidade? Primeiro a liberdade. Mas o que fazer com a liberdade depois
de tantos anos aninhado no colo social e familiar? Dela nada precisa ser feito, porque ela
é. É a condição de possibilidade de mudanças que possam nos fazer tocar o que somos.
E o que somos, não é nada? Essa é também uma questão, basicamente neurótica, do
isso ou aquilo. Se o passado nos aprisiona à terra como forte raiz, ele é também, e por 
isso mesmo, o esteio que nos possibilita a inserção no mundo e nossa produção. Mas é
também a possibilidade do salto deste passado, da nossa história, no presente, rompendo
o contínuo homogêneo e vazio de que falamos. O passado, bem entendido, como
fragmentos significativos, que se liguem ao presente por afinidades eletivas, constelando
uma nova configuração que nos dê um insight , um impulso, levando-nos a uma
“mudança de mente”.
Lembranças ocasionais, espontâneas e intuitivas, aparentemente desconectadas do
nosso contínuo histórico, costumam causar estranheza e rejeição. São perturbadoras e
angustiantes exatamente porque desfazem um caminho rígido e repetitivo. Ao explodir o
contínuo de uma maneira de pensar e sentir, tais lembranças se transformam em
centelhas que iluminam a escuridão de um futuro que se põe como extensão do presente,
uma linearidade que apaga nossos sonhos. Jung descreve com mestria o conflito entre o
enquadre social que sacrifica a individualidade e as centelhas aparentemente apagadas
que fazem renascer a esperança:

QUANTO MAIS  NOS APROXIMAMOS DO MEIO DA EXISTÊNCIA E MAIS CONSEGUIMOS FIRMAR - NOS EM  NOSSA ATITUDE
PESSOAL E EM  NOSSA POSIÇÃO SOCIAL, MAIS  NOS CRESCE A IMPRESSÃO DE HAVERMOS DESCOBERTO O VERDADEIRO
CURSO DA VIDA E OS VERDADEIROS PRINCÍPIOS E IDEAIS DO COMPORTAMENTO. POR  ISSO, CONSIDERAMO -LOS
ETERNAMENTE VÁLIDOS E TRANSFORMAMOS EM VIRTUDE O PROPÓSITO DE PERMANECERMOS IMUTAVELMENTE PRESOS
A ELES, ESQUECENDO- NOS DE QUE SÓ SE ALCANÇA O OBJETIVO SOCIAL COM SACRIFÍCIO DA TOTALIDADE DA
PERSONALIDADE. SÃO MUITOS  – MUITÍSSIMOS – OS ASPECTOS DA VIDA QUE PODERIAM SER  IGUALMENTE VIVIDOS , MAS
JAZEM  NO DEPÓSITO DE VELHARIAS , EM MEIO A LEMBRANÇAS RECOBERTAS DE PÓ ; MUITAS VEZES,  NO ENTANTO, SÃO
BRASAS QUE CONTINUAM ACESAS POR  BAIXO DE CINZAS AMARELECIDAS  (O.C., V 8, § 772).

56
A fixação no futuro nos remete a uma busca desenfreada do novo, muitas vezes
desconectado da realidade, numa repetição frenética de novidades que nos garanta a
uventude e nos afaste da temida velhice. O apelo para regredirmos quase à infância,
acaba por revelar uma puerilidade encoberta em projetos políticos e consumistas
 pretensamente edifi
edificantes.
cantes. Aqui surge
surge a questão entre o que é o novo e a novidade.
novidade. O
novo diz respeito às brasas acesas adormecidas em cinzas, que podem irromper na
consciência e constelar uma nova percepção, uma nova maneira de ser no mundo. Isto
diz respeito à conexão com o mundo interno e suas expressões. A novidade é um
sucedâneo consumista que conecta com o mundo externo e faz do consumo um ritual de
uventude, situado num futuro que não cessa de escapar. O véu de Maia transformou,
aos olhos do interessado, a subjetividade da personalidade em objeto fetiche de
consumo. Ele hipnotiza e faz esquecer o passado e seus conflitos, mimetizando uma
superação, fazendo
f azendo do futuro um “novo controlado” que aplaca o medo do imprevisível
imprevisível..
A fixação no passado nos remete a uma espécie de demência que repete o mesmo
tema, protegendo do novo assustador. A fixação no futuro nada repete, não permitindo,
dessa forma, qualquer conexão. O objeto de consumo não se liga a nada, não tem
história para contar. Essa é sua função. Enquanto no primeiro a história enrijecida,
homogênea e vazia, obstrui a fresta por onde entraria o novo adormecido em cinzas, no
segundo o objeto isolado e repetidamente trocado impede qualquer continuidade e
memória, não havendo nem fresta nem conteúdo para irromper.
A metanóia é, principalmente, uma questão da meia-idade. Nela surgem sentimentos
ambíguos e conflitantes que, por isso mesmo, representam uma possibilidade de
mudança, a partir do abalo das certezas que até então nos amparavam. É um momento
importante, um jogo de forças entre o enquadre social e a liberdade, entre novos e velhos
valores. Onde estará presente e respeitada a nossa individualidade? Onde estará o ponto
de equilíbrio após a tempestade que provoca o mar revolto do inconsciente e
desestabiliza a consciência, convocando-a para o conflito? As escolhas precisam ser 
feitas e a dor das perdas é inerente. Resta-nos a certeza de que todo o conflito acaba e
que as mudanças, com seu novo arranjo, compensarão a travessia angustiante pelo
desfiladeiro guardado por Cila e Caríbdis.

Referência
Referência Bibliográfica

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. 


História.   In: Idem. Obras Escolhidas. 
Escolhidas.  Vol. I. São Paulo: Brasiliense,
1996.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História. 
História. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

* Psiquiatra; Analista Junguiano - membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e da IAAP- Associação Internacional de
Psicologia
Psicologia Analítica; Mestre em Filosofia.
Filosofia. P articipação: - “Mit o do Herói e do Velho Sábio”,
Sábio”, In: MONT EIRO, Dulcinéa
Dulcinéa M. R. (o rg.).
 Dimensões
ime nsões do Envelh ecer.
ecer.   Rio de Janeiro: Revinter, 2004. - “Sincronicidade e witz: Jung e o fenômeno de conexão acausal.”  Arquivo rquivoss
 Brasileiros
rasileiros de Psicologia,
Psicolog ia,   vol. 53, número 01, 2001 - UFRJ,CNPQ, Imago. - “Herói e violência.”  Revista Ju nguiana ngu iana  13, SBPA, 30-
45, 19 95. - “A Ética do jogador lugar e do amor.”  Revista Jungu
jogador na relação analítica - Uma ética do lugar Ju ngu iana  10, SBPA, 72-79, 1992.

57
58
6
A dimensão religiosa da existência e o envelhecer – 
Diálogo entre Kierkegaard e Jung
Luiz José Verís
Veríssimo*
simo*

 Nosso mapa nos aponta para entrarmos no novelo novelo da Fil


Filosofia
osofia com a P sicol
sicolog
ogiia
Analítica, e focarmos a questão do envelhecer através da consideração da experiência
religiosa em Jung e em Kierkegaard. Estimamos que o Processo de Individuação anuncia
 para quem se defronta com o envelhecer
envelhecer a chamada dimensão
dimensão reli
religiosa da exi
existência.
stência.
Para chegarmos até ela, precisamos, antes, passar pela descrição das dimensões que
estruturam o desenvolvimento humano como um todo, que culminam na mais radical
experiência humana, a dimensão da fé em sentido existencial.
O filósofo dinamarquês Kierkegaard (1813-1855) é considerado por alguns
apreciadores da filosofia existencial como o pai do existencialismo. Numa época, em
 pleno
leno século
século XIX, em que se fazia apolog
apologiia da ciênci
ciência,
a, em que nos vemos diante
diante da
implantação das fábricas, do capitalismo, Kierkegaard procura resgatar a importância dos
 processos de subjetivação, diante da moral coletiva
coletiva e da preponderância na vida social da
racionalidade e da técnica. Ele descreve a existência através da concepção de três
“estádios”, ou seja, de três dimensões que se apresentam como possibilidades de
vivência para o ser humano: estética, ética e religiosa.
A dimensão estética é voltada para a busca do prazer como sentido da vida. Na
dimensão ética, o sujeito se defronta com suas próprias contradições, e sente que está
diante de uma escolha fundamental entre tornar-se mais autêntico ou esconder-se nas
máscaras das normas sociais. A dimensão religiosa não significa a adesão a um culto em
 particul
articular,
ar, mas diz
diz respeito
respeito a uma questão deci
dec isiva
siva para o ser humano: a fé. Fé para nós
funciona em termos psicológicos, e significa nada menos que a adesão ao si-mesmo (o
 self ),
), uma entrega, uma decisão de conversão ao  self , o que pode implicar no sacrifício
da racionalidade calculadora e voltada para o externo em prol do desenvolvimento e da
ampliação do mundo interior.
Associamos essas três formas existenciais propostas por Kierkegaard ao Processo de
Individuação, descrito por Jung como um processo de constituição da pessoa.

A dimensão
dimensão estética e a sedução pelo
pel o prazer 

59
A primeira dimensão da existência é fundamentada na sedução e no prazer.
Kierkegaard se refere a uma história que ele cria para desfilar a sua filosofia. Era uma
vez um sedutor, Johannes, um mestre na arte da sedução. O objetivo da sua vida era
obter das suas “presas” uma conquista avassaladora, um apelo irresistível, um desejo
incoercível. Ele não mede esforços para obter sucesso nas suas empreitadas. Não tem
nenhum compromisso ético, vale dizer, não tem nenhum compromisso com o outro que
não o de conduzi-lo até o terreno das paixões, levadas ao total entorpecimento da razão,
até o insuportável, e, a partir daí, desenvolver uma ansiedade sôfrega na amante, que
culmine numa entrega total. Sua vida se resume nisso: no ato ritual, de certo modo
repetitivo, da sedução, ao mesmo tempo criador, pois, cada caso demanda uma estratégia
 própria,
rópria, uma articul
articulação
ação engendrada
engendrada por um intelecto
ntelecto ávido
ávido por uma aventura
desafiadora.
A sedução ocupa o lugar central para Johannes. As pessoas são vistas pelo sedutor não
como gente, mas como objeto. Não têm sentimentos merecedores do cuidado e da
responsabilidade. São tidas como vulneráveis, sentimentais e, sobretudo, regidas pelo
desejo. O desejo comanda toda a série de articulações erótico-racionais. O desejo é o que
guia o indivíduo, atravessando-o do corpo à alma. As pessoas não são estimadas como
dignas de subjetividade, de reconhecimento da alteridade, elas são puro desejar. Um tipo
específico de desejar: deixar-se perder, desejar-se esquecer por completo, desejar ser 
 possuído pelo invólucro
invólucro da sedução. Elas
Elas sofrem com isso, mas, no prisma
prisma sedutor,
sedutor, elas
querem se ver envolvidas no véu da sedução. O véu é uma mortalha. Leva à morte de
muitas ilusões. Dispõe o ser para a perda da ingenuidade, consumida no fogo da paixão.
Então, o sedutor aparece diante de si mesmo com pretensões ao termo “mestre”. Ele
se justifica como o iniciador. Graças a ele, no seu ângulo de abordagem, a perda da
inocência é, a bem da verdade, um ganho. De fato, devemos reconhecer que para aquele
que se vê seduzido abre-se uma oportunidade: a passagem da consciência para um nível
mais amplo. É passagem naufragada em tormento e desespero. Ela lembra uma imagem
fortíssima de Schopenhauer citada por Nietzsche (2003: 30): o barquinho em meio às
ondas.
Tal como em meio ao mar enfurecido que, limitado em todos os quadrantes, ergue e
afunda vagalhões bramantes [estrondosos], um barqueiro está sentado em seu bote,
confiando na frágil embarcação, da mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos,
o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no princípio de
individualidade.
O mar representa o mundo das paixões, a existência na imagem acima é apresentada
como uma navegação sem fim, onde o barqueiro pode se iludir que tem como conduzir 
seu barquinho para onde a sua vontade individual, narcísica e independente do  sel 
quiser. Tais ilusões naufragam quando emerge com toda a potência e incontida energia o
mundo das paixões. Num momento de crise, em que as paixões deixam em aberto o
colapso das ilusões do ego de controle sobre o mundo interior, o barqueiro se dá conta de
que está diante de um mar imprevisível, dentro do qual ele não tem mais o controle, ou,
ao menos, todo o controle. De fato, na paixão sentimos bem no íntimo o que significa o

60
tema típico da perda da alma. Algumas paixões são sentidas como a perda da alma diante
do sedutor. A alma inundada pela paixão sente-se como que sendo roubada pela pessoa
amada. “Só penso nela, o tempo todo, tudo o que faço já não tem mais muito sentido. O
que eu gostava, já não quero mais. Só quero a pessoa amada. O tempo todo.”
E o que significa a sedução no prisma de Kierkegaard? A busca desesperada de ser 
amado, de ser amado acima de tudo. O sentido psicológico desse “ser amado” assinalado
 pelo
elo filó
filósofo
sofo dinamarquês
dinamarquês sugere
sugere nas formas comportamentais
comportamentais reveladoras
reveladoras da condição
condição
humana, a necessidade do sujeito de um acolhimento, de aceitação, de inclusão. Para
isso, ele parte para o mundo da relação munido de duas atitudes básicas que estendem
um eixo de sedução. Primeira atitude: ele desenvolve a necessidade de capturar as
escolhas do outro, ele quer como que drenar o desejo do outro para a sua direção. Ele
 pretende fazer o outro seduzir-se
seduzir-se ao seu próprio
próprio desejo, e assim
assim submeter o desejo do
outro, através do fascínio da sedução ao seu desejo. Ou, então, numa tentativa
desesperada, o sujeito quer avidamente corresponder de qualquer jeito, a qualquer preço
ao desejo do outro, e, para isso, abre mão de suas necessidades e formas de ser mais
 próprias
róprias para levar adiante
adiante o seu intento. No estádio
estádio sedutor,
sedutor, permanecemos num jogojogo
de sedutor-seduzido, buscando intensivamente uma mistura com o outro, sem buscarmos
uma identidade mais própria, em termos junguianos, sem ativar a descoberta e o
desenvolvimento do  self , sentido do Processo de Individuação.
O estádio estético equivale em Jung à noção de  persona. A  persona  é uma máscara
que o indivíduo veste para lidar com uma apresentação de si perante o outro. É um
 personagem
ersonagem criado pelo indi
indivíduo
víduo para dar conta de um modo como arquiteta se mostrar,
selecionando e medindo seus gestos, palavras e atitudes, semelhante ao modo do sedutor 
kierkegaardiano. A  persona, não raras vezes, corresponde a uma imagem idealizada do
eu que se tenta passar para os outros, por vezes, até para si mesmo. A  persona se
constela quando nos identificamos com um determinado papel que desempenhamos ou
queremos desempenhar – o sério, o crítico, o perfeccionista, o disciplinador, o juiz, o
 pensador,
ensador, o agüenta tudo, a ovelha
ovelha negra, o “do contra”, o conselheiro...
conselheiro... Esses papéis se
ustificam a partir do momento em que tentamos criar um personagem para que o outro
nos veja segundo a nossa manipulação de uma imagem, tal como na sedução apontada
 por Kierkegaard.
Kierkegaard.

O sentido
sentido do Ético e o jogo
j ogo dos opostos

A abertura do sujeito do ego para o  self   corresponde a uma chance para rasgar a
cortina de ilusão das personas. Quando percebemos o quanto é falaz a tentativa de
manter uma imagem apenas parcial, apenas montada para vender uma imagem para o
outro, na medida em que não conseguimos nos fixar nos próprios papéis que tentamos
desempenhar, que somos algo mais do que isso, começamos a ter uma oportunidade para
adentrar na instância do ser mais próprio, o si mesmo (  self ). ). Desenvolvemos a
 personali
ersonalidade não mais basicamente
basicamente a partir
partir dos olhares
olhares externos
externos e das convenções

61
morais, mas sim somos remetidos a um princípio originário, o  self , que clama
 permanentemente por ser exp expresso,
resso, e se manifesta
manifesta em sonhos, em fantasias,
fantasias, em nosso
imaginário. O  self   alcança um âmbito de se constituir como nossa autenticidade, como
querem os existencialistas, e ele não fica só nesse parâmetro. Ele atinge uma camada
 profunda do psiqui
psiquismo
smo humano, o inconsciente
nconsciente coleti
coletivo,
vo, onde habitam
habitam os “deuses” que
 povoam o imagi
imaginário em todas as eras, mudando de nomes, mas m as com funções estruturais
 bem semelhantes:
semelhantes: o feminino,
feminino, o masculi
masculino, o sagrado,
sagrado, a medida,
medida, a perda da medida,
medida, a
culpa, a liberdade, a lei, o destino, o herói, assim por diante. Por isso, o Processo de
Individuação concebido por Jung é tão complexo. Envolve o que há de mais singular,
mais próprio, misturado à dimensão arquetípica, a experiência existencial do ser humano
em sua totalidade, incluindo a sua relação com a natureza.
Voltando a Kierkegaard, o filósofo concebe uma dimensão do existir que implica uma
radical mudança no modo de viver. No estágio ético, o indivíduo realiza um salto da
consciência. O ético remete o sujeito para o reconhecimento do conflito que habita
dentro de si, entre duas figuras, que não são meras abstrações, são duas figuras bem
concretas que se digladiam, como um embate entre dois heróis, ou mesmo dois deuses,
em que nunca surge um definitivo vencedor. O ser e o não ser. Eis a luta encarniçada que
se trava dentro de nós, no correr de nossa existência, envolvendo, simbolicamente, os
tremendos poderes dos titãs, simbolizando princípios psíquicos da inércia, da regressão,
do manter-se atrelado aos impulsos mais primitivos com a polaridade oposta, os
tremendos poderes dos olímpicos, simbolizando a geração, a criação, a ordenação, a
vontade de ser. A dissolução, o caos, a geração e a desenvoltura da vida disputam a
negação e a afirmação da existência, quando conclamamos com Nietzsche o problema de
tornar-se aquilo que se é.
 No estádio
estádio ético
ético eu saio
saio da sedução, ouso romper com o desespero não assumido assumido de
tentar girar minha vida em função do outro, seja pelo modo da submissão, seja pelo
modo da sujeição do outro a mim. Sai do cenário a disputa entre o eu e o outro, para
entrar um drama que se desenvolve lá, bem dentro de mim mesmo: o desespero de ser e
o desespero de não ser. Como costumamos dizer nas salas de aula, nessa fase
 permiti
ermitimos
mos que o confli
conflito visite
visite a nossa consciênci
consciência.
a.
 Nessa instância
instância da exiexistência,
stência, o sujeito começa a desenhar uma imagem
magem mais fidedign
fidedignaa
de si mesmo, o que em linguagem junguiana equivale a admitirmos que ele começa a
assumir uma ligação com o  self , o significado mais próprio do Processo de Individuação.
Ao mesmo tempo que tem algum contato efetivo com a sua interioridade, em que
começa a estabelecer uma ligação com o seu inconsciente, ele se assusta com essa
 perspectiva;
erspectiva; então, esquiva-se
esquiva-se e quer se manter ali alienado do  self , regredindo para os
níveis da  persona. Por isso, Kierkegaard percebe que, afinal, ele quer ser e não quer ser.
Para o filósofo, o ser humano é uma síntese de infinito (desejo de liberdade, âmbito das
escolhas) e finito (a precariedade da existência), de temporal e de eterno, de liberdade e
de necessidade. Ora, uma síntese é a relação de dois termos.

UMA RELAÇÃO DESSE MODO DERIVADA OU ESTABELECIDA É O EU DO HOMEM, É UMA RELAÇÃO QUE  NÃO É APENAS

62
CONSIGO PRÓPRIA, MAS COM OUTREM. DAÍ PROVÉM QUE HAJA DUAS FORMAS DO VERDADEIRO DESESPERO. SE O
 NOSSO EU TIVESSE SIDO ESTABELECIDO POR  ELE PRÓPRIO, UMA SÓ EXISTIRIA:  NÃO QUEREMOS SER   NÓS PRÓPRIOS,
QUEREMO- NOS DESEMBARAÇAR  DO  NOSSO EU, E  NÃO PODERIA EXISTIR  ESTA OUTRA: A VONTADE DESESPERADA DE
SERMOS  NÓS PRÓPRIOS  (K  IERKEGAARD, 1979: 195).

Kierkegaard assinala que o nosso eu não foi estabelecido apenas por si próprio. No
entender do filósofo, que tem uma forte marca teológica em sua filosofia, quem põe a
relação finito/infinito que constitui o eu é Deus. Em termos junguianos, quem no fundo
estabelece a relação entre finito e infinito, com seus desmembramentos de criatividade e
necessidade é o  self . No  self   está contido, a um só tempo, o temporal, o ego consciente,
investido nas estruturas lógicas de espaço e de tempo, e o eterno: a dimensão dos
arquétipos do inconsciente coletivo.
O desespero de ser e de não ser, a vontade de assumir quem se é potencialmente, e,
simultaneamente, a dificuldade de se mostrar tal como se é nos fazem notar o jogo de
opostos, apontado por Nise da Silveira ao tecer considerações sobre o Processo de
Individuação.
Aquele que busca individuar-se não tem a mínima pretensão de se tornar perfeito. Ela
visa completar-se, o que é muito diferente. E para completar-se terá de aceitar o fardo de
conviver conscientemente com tendências opostas, tragam estas as conotações de bem
ou de mal, sejam escuras ou claras (1981: 88).
Essa atitude corajosa dá acesso ao reino da interioridade profunda, ao inconsciente em
níveis cada vez mais originários, como descreve Nise da Silveira:

QUANTO MAIS A  PERSONA ADERIR  À PELE DO ATOR  , MAIS DOLOROSA SERÁ A OPERAÇÃO PSICOLÓGICA DE DESPI- LA.
QUANDO É RETIRADA A MÁSCARA QUE O ATOR  USA  NAS SUAS RELAÇÕES COM O MUNDO, APARECE UMA FACE
DESCONHECIDA. OLHAR  -SE  NO ESPELHO, QUE REFLITA CRUAMENTE ESTA FACE, É DECERTO ATO DE CORAGEM . SERÁ
VISTO  NOSSO LADO ESCURO ONDE MORAM TODAS AS COISAS QUE  NOS DESAGRADAM EM  NÓS , OU MESMO QUE  NOS
ASSUSTAM (1981: 91).

O período das máscaras e da sedução é um primeiro momento de uma biografia, do


qual muitos não passam, permanecem apegados à imagem construída de si perante o
outro o resto da vida, numa busca desesperada de aprovação, segurança, prazer,
gratificação. Tudo o que possa contribuir para que a exterioridade esconda a perda de
sentido da vida é avidamente buscado. A perda de sentido pode ser encarada como
 perder de vista
vista a realização
realização de si mesmo,
me smo, essa meta oculta
oculta que vai sendo desvelada
desvelada ao
longo do nosso existir quando conectados com o  self  através da individuação.
Ao longo de nossa existência, nos confrontamos com a sombra, ou seja, com as
tendências, impulsos e desejos que não gostamos muito de admitir. É o desmanche da
ersona. O outro, não raras vezes, é quem denuncia conteúdos próprios aos quais damos
as costas. Além disso, no decorrer do processo de maturação interior, as situações de
vida, tais como relacionamento amoroso, trabalho, família, relacionamento com pais e
filhos etc., vão nos apresentando oportunidades muito concretas para percebermos onde,

63
através de nosso desejo e de nossas crenças, fala a personalidade coletiva em detrimento
de uma voz mais autêntica.
A diferença básica para o estádio estético é que, na dimensão ética de vida, o sujeito
está mais aberto a assumir de forma consciente a dialética entre o que acha que deve
fazer e o que realmente deseja (quais as suas reais necessidades). Esse dilema persegue o
indivíduo aonde quer que vá, e ele não consegue resolvê-lo de todo, ainda que tente
várias operações para, ao menos, minimizar sua situação existencial, como terapias,
aconselhamentos, remédios, oráculos, orações, meditação. Por mais que algumas
abordagens da alma humana sejam bem intencionadas, o sujeito não tem como se
“curar”, pois mal percebe que os problemas não são externos, que a crise de identidade
que marca o ser adulto é constituinte do próprio Processo de Individuação. É
 precisamente
recisamente nesse sentido
sentido que Sartre sugere
sugere que o indivíduo
ndivíduo não tem angústia,
angústia, mas que
ele é  angústia, enquanto Kierkegaard utiliza-se da imagem do desespero como uma
questão ontológica (essencial).

O envelhecer
envelhecer e a dimensão
dimensão religiosa
reli giosa da existên
e xistência
cia

Do adulto para o envelhecer, passamos lentamente para a fase da vida muito bem
desenhada por Nietzsche como o “ocaso do sol”, mencionada por Jung como “o
entardecer da vida”. Essa idéia não tem nada a ver com algo parecido com perda de
energia ou vitalidade. Ela quer trazer à luz que passamos da extroversão para a
introversão, da remissão às exterioridades, aos apelos cada vez mais prementes da
interioridade, a que Jung se refere de vários modos, entre eles, “a voz do íntimo”:

ALIÁS, A MIM ME PARECE QUE AS REALIDADES PSÍQUICAS FUNDAMENTAIS SE ALTERAM ENORMEMENTE  NO DECORRER 
DA VIDA. TANTO É QUE QUASE PODEMOS FALAR  DE UMA PSICOLOGIA DO AMANHECER  E OUTRA, DO ENTARDECER  DA
VIDA (J UNG, 1987C: 37, §75).

A terceira e última fase da existência, a que Kierkegaard chama religiosa, coloca como
trabalho para a alma a experiência originária da fé. Para entrar na consideração dessa
etapa, Kierkegaard recorre à história de Abraão e Isaac. Abraão se vê dilacerado entre o
amor ao filho e o amor a Deus, e não renuncia a nenhum dos dois. Kierkegaard
interpreta a fé como um salto no absurdo; onde nada mais faz sentido, a não ser a
verdade de cada um. A fé proposta pela via vivencial está acima da moral. Kierkegaard
estabelece uma comparação entre a fé e a instância moral. A moral significa aderir aos
valores socialmente instituídos. O indivíduo se orienta pela norma “geral”. A consciência
coletiva fala mais alto. O sujeito moral, que, diga-se de passagem, somos todos nós,
 presta contas a uma ordenação de vida vida que acata regras que são justifi
justificadas
cadas como
facilitadoras ou reguladoras da convivência com os seus pares. Na fé, há o movimento de
se dobrar sobre a moral, mas também ir além da moral. Pois a fé não se baseia mais em
regras estabelecidas, mas, sim, na voz do coração, na voz do íntimo. Passamos do

64
sujeito moral para a descoberta mais plena possível do sentido existencial. As regras
desse sentido são dadas pelo  self   e pelas relações que vamos estabelecendo com as
 pessoas, mas não mais no modo do teatro, e sim sim no modo da descoberta de si mesmo e
do outro ao longo da imensa teia de relações que a vida nos faz tecer.
Vejamos como o filósofo da paixão não tem meias palavras para interpretar, nas
imagens envolvendo Abraão e seu filho, o ponto de vista da fé em sentido existencial em
confronto com o ponto de vista restrito à moral vigente:

SOB O PONTO DE VISTA MORAL, A CONDUTA DE A BRAÃO EXPRIME- SE DIZENDO QUE QUIS MATAR  I SAAC E, SOB O
PONTO DE VISTA RELIGIOSO, QUE PRETENDEU SACRIFICÁ- LO.NESSA CONDIÇÃO RESIDE A ANGÚSTIA QUE  NOS CONDUZ
À INSÔNIA E SEM A QUAL, ENTRETANTO, ABRAÃO  NÃO É O HOMEM QUE É (1979: 125).

Deus recomenda a Abraão imolar o próprio filho em sacrifício. Abraão mantém-se


com Deus, apesar da alma dilacerada em angústia pelo seu amor incomensurável ao
filho. Ao final, Deus acata a prova de fé de Abraão, e um carneiro é sacrificado em lugar 
de seu querido filho. Ao final, pai e filho são salvos pela própria fé. Tal tipo de
experiência não é uma apologia do crime, do assassinato de um filho. Jung percebe a
experiência religiosa com a nitidez de quem a vivenciou em sua profundidade e alcance.
Jung tenta se referir ao que é muito difícil traduzir em palavras:

A  NÃO POUCOS SUCEDE QUE, MESMO ESTANDO  NESSE ESTADO SOCIAL INCONSCIENTE , SÃO CHAMADOS POR  UMA VOZ
INDIVIDUAL E ASSIM COMEÇAM A DISTINGUIR - SE DOS OUTROS E A DEPARAR  COM PROBLEMAS A RESPEITO DOS QUAIS
OS OUTROS  NADA SABEM. EM GERAL É IMPOSSÍVEL PARA ESSE INDIVÍDUO EXPLICAR  ÀS OUTRAS PESSOAS O QUE LHE
ACONTECEU  (1988: 182, § 302).

O que nos faz existenciais é justamente a decisão de optar para além da moral
instituída pelas convenções. Porque, quando procuramos seguir regiamente as
 prescrições
rescrições morais sem confrontá-las
confrontá-las com a nossa autentici
autenticidade,
dade, estamos botando a
 perder o nosso próprio
próprio projeto de ser ético.
ético. Eis
Eis aí o que disti
disting
ngue
ue a ética
ética da moral.
moral. A
ética implica uma escolha. Uma escolha muito difícil, pois é feita a partir de um valor 
íntimo, que responde também ao íntimo, vale dizer, ao  self , e não apenas ao passivo
acatamento ou mesmo a submissão à “autoridade” moral. Caso nossa opção seja o
monopólio da vida exterior dos valores, nossa sombra e nossos sintomas irão expressar-
se, e anunciar que nosso desejo de agir à revelia do mundo interior é uma tentativa de
manipulação infrutífera.
O estágio religioso não se contenta apenas em nos ater a problemáticas éticas. As
questões que implicam o envelhecer levam a alma até os seus mais extremos limites: não
apenas o sentido da vida, como o sentido da morte. Tudo o que foi experimentado até
então sedimenta um conhecimento prático, a chamada “sabedoria prática”, aquela que é
assimilada, tijolo por tijolo ao longo de uma história. Essa experiência, agora familiar,
chega a seu ponto limítrofe. Daqui para a frente, o ser depara com o que ele é, mas

65
também com possibilidades que foram ficando para trás, devido à atenção dada ao
exterior, ao mundo das tarefas, dos desafios, da convivência social, para muitos a
educação dos filhos, o trabalho, as responsabilidades, a busca da afirmação e da
realização de si no mundo. “Devedora” do mundo, agora no entardecer da vida, a pessoa
encontra-se “devedora” de si mesma. É quando entra o aspecto da fé existencial no que
toca a uma redescoberta, revisão e transformação (“metanóia”) do “tornar-se quem se
é”.

O HOMEM QUE ENVELHECE DEVERIA SABER  QUE SUA VIDA  NÃO ESTÁ EM ASCENSÃO  NEM EM EXPANSÃO , MAS UM
PROCESSO INTERIOR  INEXORÁVEL PRODUZ UMA CONTRAÇÃO  NA VIDA. (...) PARA O HOMEM QUE ENVELHECE É UM
DEVER  E UMA  NECESS IDADE DEDICAR  ATENÇÃO SÉRIA AO SEU PRÓPRIO S I- MESMO  (1986: 348, § 785).

Quem sabe, agora, possamos entender melhor o que quer dizer Kierkegaard quando
 pensa que além
além de pontuar os dil dilemas éticos,
éticos, a fé ating
atingee o fundo exi
existencial
stencial:: “(...)
“(.. .)
entendo eu por fé o que torna difícil o sacrifício” (1979: 125). Hora de recorrer 
novamente a Jung. Ele assinala que o desenvolvimento da personalidade requer um
sacrifício da nossa vontade à designação: “Se aceitarmos que a designação equivale à
noção de destino, (...) ressoa a resposta de que o indivíduo tem diante de si um destino
fundamental:  ser , vale dizer, a experiência do si-mesmo” (Veríssimo, 2005: 159). Para
Jung, “somente pode tornar-se personalidade quem é capaz de dizer um ‘sim’ consciente
ao poder da destinação interior que se lhe apresenta” (1988, 185, § 308).
Esse processo só é acessado à consciência pelo dia-a-dia, pelo viver e pelo conviver.
Leva um longo tempo de maturação. No envelhecer, estamos diante das mais radicais
experiências. Nossa existência depara com a totalidade de nosso ser, quando as
convenções, organogramas e fórmulas de nossa vida não mais são suficientes para fazer 
todo o sentido. Cada vez mais o exterior tornar-se relativo, e o interior remete à voz do
íntimo. Dar ouvidos à voz do íntimo constitui a tradução de Jung para a  pistis isti s. Jung,
ali
aliás, prefere o termo  pistis
isti s  ao termo “fé”. A  pistis
isti s “costuma ser traduzida erroneamente
 por ‘fé’, mas o sentido
sentido específico é confiança, lealdade
lealdade repleta de confiança” (1988: 179,
§ 296). Essa lealdade é uma entrega ao  self , uma sintonia com o  self , buscando um
sentido para a vida afinado com uma dimensão profunda da psique. Para além da
ciência, para além da religião instituída, para além da moral, para além da própria
filosofia está o nosso confronto com a totalidade humana, o  self . Ela orienta uma
sabedoria prática. Não está escrito em manuais. As regras são quebradas a toda hora pelo
 particul
articular
ar de cada situação,
situação, pelapela sing
singul
ulari
aridade
dade de cada pessoa, pelaspelas travessuras do
destino. Mas o problema da ética nos diz que isso não nos autoriza a uma moral de
casuísmos, como aquela a que muitos querem se entregar.
O grande mestre, junto ao  self   é o tempo. O destino se articula ao tempo. Ninguém faz
um destino sem tempo de maturação. Nenhuma semente eclode antes do tempo, já nos
ensina a natureza. A nossa vida é natural e existencial. Por isso, somos tão complexos. O
tempo, se não traz a questão da fatalidade como um destino com o qual nada há que se
fazer, traz de forma cabal a questão da morte. “Articulada à espiritualidade está a questão

66
da finitude e da morte. Na busca do sentido (espiritualidade), nós nos defrontamos com a
finitude e a morte, somos seres que temos consciência que caminhamos para o próprio
fim” (Monteiro, 2004: 60). Faz parte do destino humano não a morte apenas como fato
 – biol
biológ
ógiico inex
nexorável
orável,, mas como o mistéri
mistérioo que radical
radicaliza
iza a consciênci
consciênciaa acerca da
existência em seu jogo de finitude e infinitude. No cruzamento dessas duas instâncias
encontramo-nos todos. O envelhecer nos coloca diante de uma janela de percepção para
sentir mais proximamente o confronto dessas duas modalidades que definem a existência.
Chega um tempo em que não dá mais para adiar a percepção e o sentido da questão mais
radical: o próprio tempo e sua dissolução. “O que significa morte?” ,“Apenas um fim?”.
“Existirão outros significados importantes para morte?” Para Jung, justamente na
segunda metade da vida nasce a morte. Porque ela se coloca como uma perspectiva de
uma meta de vida: elaborar o sentido da morte. Nessa elaboração, descobrimos o sentido
da própria vida: “A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim.
Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver. E não querer viver é
sinônimo de não querer morrer (1986: 360, § 800).” Aqui, parece fazer diferença qual o
sentido que se dá para “fim”: fim como fim de linha ou fim como uma finalidade da
 própria
rópria existênci
existência,
a, ou seja, como o que dá sentido
sentido a partir
partir do ocaso do sol em nossa
existência. Vale aqui a
 ponte com Kierkeg
Kierkegaard:
aard: para o desespero, a morte é destituída
destituída de um sentido
sentido
significativo, nada mais que um término. Eis o destino de nosso eu,

ETERNAMENTE MORRER , MORRER  SEM TODAVIA MORRER , MORRER  A MORTE. PORQUE MORRER  SIGNIFICA QUE TUDO
ESTÁ ACABADO, MAS MORRER  A MORTE SIGNIFICA VIVER  A MORTE; E VIVÊ-LA UM SÓ INSTANTE É VIVÊ-LA
ETERNAMENTE. PARA QUE SE MORRESSE DE DESESPERO COMO DUMA DOENÇA , O QUE HÁ DE ETERNO EM  NÓS ,  NO EU,
DEVERIA PODER  MORRER , COMO O CORPO MORRE DE DOENÇA. ILUSÃO! (...); ASSIM COMO UM PUNHAL  NÃO SERVE
PARA MATAR  PENSAMENTOS, ASSIM O DESESPERO  (...)  NÃO DEVORA A ETERNIDADE DO EU, QUE É O SEU PRÓPRIO
SUSTENTÁCULO  (1979: 199).

 Nos dias atuais


atuais se perdeu muito
muito da elaboração do tempo, como nota Jung:

DISSE HÁ POUCO QUE  NÃO TEMOS ESCOLAS PARA OS QUE CHEGARAM AOS QUARENTA ANOS . MAS ISTO  NÃO É
TOTALMENTE VERDADEIRO. NOSSAS RELIGIÕES TÊM SIDO SEMPRE, OU JÁ FORAM, ESTAS ESCOLAS; MAS PARA
QUANTOS DE  NÓS ELAS O SÃO AINDA HOJE? QUANTOS DOS  NOSSOS MAIS VELHOS SE PREPARARAM REALMENTE  NESSAS
ESCOLAS PARA O MISTÉRIO DA SEGUNDA METADE DA VIDA, PARA A VELHICE, PARA A MORTE E A ETERNIDADE? (1986:
349, § 786).

Jung, ciente das questões do envelhecer, confronta o “amanhecer” da vida, com o


sujeito em seu processo de envelhecimento. A vida do jovem está em expansão-
extroversão, tem em vista metas objetivas a serem cumpridas. A sociedade demanda essa
tarefa, ou, antes, ele mesmo se cobra isso. Sendo assim, a neurose liga-se sobretudo à
hesitação ou ao recuo diante do rumo a seguir:

67
EM CONTRAPARTIDA , A VIDA DA PESSOA QUE ENVELHECE ESTÁ SOB O SIGNO DA CONTRAÇÃO DAS FORÇAS , DA
CONFIRMAÇÃO DO QUE JÁ FOI ALCANÇADO E DA DIMINUIÇÃO DA EXPANSÃO. SUA  NEUROSE CONSISTE ESSENCIALMENTE
EM QUERER  PERSISTIR  INADEQUADAMENTE  NUMA ATITUDE JUVENIL . ASSIM COMO O JOVEM  NEURÓTICO TEME A VIDA,
O VELHO RECUA DIANTE DA MORTE (J UNG, 1987C : 37, § 75).

Esse “juvenil” não é a instância criadora e imaginadora do ser humano, mas, sim, uma
atitude passiva e reprodutora do que foi vivido como “assim foi, logo, assim é, e assim
será e deve ser”. Em se mantendo a crença de que tudo já foi visto e esgotado, a morte
aparece como um ponto terminal, até mesmo um alívio, por mais assustador que seja, de
carregar o peso de toda uma vida.
As potencialidades do  self   não têm a marca exata do tempo cronológico, e sim, são
marcadas pelo tempo existencial, pela vivência, pela abertura a essa mesma vivência do
Eu profundo, de si como uma totalidade. A partir do envelhecer, o ser humano depara
com limites: seu corpo, a morte de pessoas queridas da sua convivência, a mudança das
condições de vida, as mudanças das pessoas de seu convívio, que saem do estado “de
estar sob suas asas”, como se costuma dizer. Ao mesmo tempo, as novas condições de
vida colocam o sujeito diante de uma renovada perspectiva. Ele tem o seu chamado
interior ativado, ele tem a voz do íntimo menos sujeita a ruídos pelas ocupações com as
demandas do modo de ser voltado para o mundo das ocupações antes tidas como
“urgentes”.
Eis o momento crucial da fé (“estágio religioso”): a  pistis isti s, o termo que Jung toma
emprestado da concepção grega de “fé”, cuja etimologia aponta para confiança. Jung
(1988: 178, § 295-96) acrescenta: uma lealdade repleta de confiança ao interior, um dar 
ouvidos ao que há de mais profundo e fundamental do ser de cada um, uma descoberta
que pode se dar tardia, não porque tenha perdido, como se diz, o trem da história, mas
 porque se dá a partir partir da tarde, ao anoitecer,
anoitecer, quando o interesse pelopelo externo
externo pode
decrescer em favor das expressões que exigem o silêncio da rua para poder ouvir a voz
do íntimo.
A questão-problema do envelhecer não é uma colocação intelectual, ela está posta pelo
 próprio
róprio existi
existirr e passa a ser, mai
m aiss do que nunca, o sentido
sentido da vida.
vida. Uma chave aqui é que
esse sentido é trazido justamente pela dimensão religiosa da vida, aquela em que estamos
diante da chamada mais orquestrada ao religare: conectar o consciente ao inconsciente, e
a um apelo íntimo à conversão ao inconsciente, ao mundo interior. O sentido de vida é
em Jung um sentido religioso   de vida, convergindo com a dimensão religiosa do filósofo
Kierkegaard. “Religião” é associada pelo senso comum à instituição petrificada e sem
vida. Porém, submetida à tradução etimológica, temos a chance de verificar que ela vem
de a) religare, b) relegere  e c) religere: respectivamente a) ligar-se a, religar (em termos
 psicológiicos, ao  self ),
sicológ ), b) reler (interpretar a vida sob uma nova óptica) e c) eleger como
valor. O valor é um revisitar a existência não somente como um álbum de fotografias,
como uma grande parcela das pessoas faz, mas rever sobretudo sob a experiência do
entrelaçamento da vida com a morte, da transcendência com a finitude, da abertura a
 possibi
ossibillidades ainda
ainda não devidamente
devidamente expl
exploradas
oradas sem perder os pés no chão, ou seja,

68
dentro de um âmbito de aceitação das condições remetidas à fase noturna (remetida ao
amadurecimento e ao envelhecer) da vida. Nada disso pode ser feito sem uma profunda
transformação, uma conversão ao valor decisivo, à descoberta do significado mais amplo
do  si-mesmo.
Gostaríamos de convidar
convidar Jung para a conclusão
conclusão de nosso trabalho.

E NTR E TODOS OS MEUS DOENTES  NA SEGUNDA METADE DA VIDA, ISTO É, TENDO MAIS DE TRINTA E CINCO ANOS ,  NÃO
HOUVE UM SÓ CUJO PROBLEMA MAIS PROFUNDO  NÃO FOSSE CONSTITUÍDO PELA QUESTÃO DE SUA ATITUDE RELIGIOSA.
T ODOS , EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, ESTAVAM DOENTES POR  T ER  PERDIDO AQUILO QUE UMA RELIGIÃO VIVA SEMPRE DEU
EM TODOS OS TEMPOS AOS SEUS ADEPTOS, E  NENHUM CUROU- SE REALMENTE SEM RECOBRAR  A ATITUDE RELIGIOSA
QUE LHE FOSSE PRÓPRIA. ISS O ESTÁ CLARO,  NÃO DEPENDE ABSOLUTAMENTE DE ADESÃO A UM CREDO PARTICULAR  OU
TORNAR - SE MEMBRO DE UMA IGREJA (S ILVEIRA, 1988: 141-42).

Bibliografia

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 _____.  A natureza
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Fr iedrich
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obra. 11.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
VERÍSSIMO, Luiz José. Jos é.  A Psicologia do Self e a Função Religiosa
R eligiosa da Alma. Um Estudo a partir de C. G. Jung.
Campinas: Livro Pleno, 2005.

* Doutor
Dout or em Filosofia (UE RJ), psicológo clínico , professor
pr ofessor de P sicologia da Universidade
Universidade Sant
Sant a Úrsula e Veiga de
de Almeida, e de
Filosofia na UniBennett. Publicações: - A Psicologia do  do   Self e a Função Religiosa da Alma. Um Estudo a Partir de C. G. Jung.
Campinas: Livro Pleno, 2005.  Participação:
articipa ção:   - “Algumas Considerações Sobre a Experiência Religiosa”, In: ANGERAMI-CAMON,
Valdemar
aldema r Augusto (or g).. Espiritualidade
( org) Espiritualidade e Prática Clínica.
Clínica.  São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

69
70
7
Serenidade – ser é unidade: Um encontro entre
Heidegger e Jung
Gelson Luis Roberto*

METANÓIA: A Virada no Caminho

Caminhos, não obras, esta é a proposta de Heidegger, enfatizando o caráter não-


sistemático e não-linear de seu pensamento. O caminho é o encontro que nos move.
Viver é caminhar em busca do ser. Talvez essa seja uma das questões essenciais para
quem entrou na crise da meia-idade e um dos resultados da metanóia: reconhecer que
aquilo que conquistamos não é mais do que o exercício do caminhar, e que o caminho se
faz sempre e cada vez mais em favor da busca do nosso ser, de sermos inteiros, plenos
em nós mesmos, um caminho que Jung chamou de individuação. E isso não é uma tarefa
fácil.
Caminhos, possibilidades... O primeiro aspecto que podemos apresentar desse
cruzamento entre Heidegger e Jung é que o próprio envelhecer, o processo que todos
enfrentamos, é um grande e complexo caminho, um jogo de muitas possibilidades. Isso
quer dizer que a metanóia da meia-idade nos joga para além de uma visão estreita, de
declínios e perdas, todo caminho é cheio de possibilidades e envelhecer é uma aventura
de mil possibilidades em busca daquilo que Heidegger e Jung exaustivamente, cada um a
sua maneira, refletiram: o encontro com o ser. A realização do ser, enquanto ser-aí e ser-
no-mundo de Heidegger e a realização do ser através do Processo de Individuação de
Jung. O envelhecer, e todas as implicações que isso conduz, é o desafio para que a vida
seja vivida por inteiro, uma inteireza que se manifesta na proposta desse trabalho de
chegarmos a ser uma pessoa não dividida, um indivíduo, uma unidade plena, atingindo
assim a serenidade.
Idealmente, a adultez  pressupõe a capacidade de: relacionar-se com o outro, de uma
mutualidade do orgasmo com um partícipe amado, de compartilhar confiança mútua, de
regular e gerar os ciclos de trabalho, procriação, recreação, busca de ideais e
transcendência. Uma das qualidades mais especial e esperada no adulto é a capacidade
de dialogar. O diálogo pressupõe maturidade para acontecer, pois o indivíduo necessita se
colocar no lugar do outro, saber falar de seus sentimentos e refletir sobre a situação
apresentada. É um ato de humildade e de amor para consigo e com o outro.

71
A personalidade adulta também requer determinação, inteireza e maturidade. Em
outras palavras, um indivíduo dotado de decisão, resistência e força, sem perder a
espontaneidade e a criatividade.
O período que antecede os 40 anos tende a ser de conflitos diversos entre as
aquisições e orientações externas e impulsos de ordem interior. Pode-se ter a sensação de
estar “andando para trás” pela pressão dos outros e de conflitos e inibições próprias. O
indivíduo vivencia sentimentos de ansiedade por estar dividido entre a necessidade de
 status  e necessidades reprimidas, entre aprovação ou necessidade de afirmação e
vocações esquecidas que restringem o amor-próprio. Esses desejos de virilidade acabam
fazendo ressurgir o “garotinho” no homem. Existe realmente uma ativação do ego infantil
neste período.
Essa transição que ocorre na faixa dos 40 é chamada de transição da meia-idade. Ela
representa o confronto do eu superficial com o eu mais profundo do ser humano. É
como se um outro ser dentro de nós, mais profundo, começasse a reclamar a sua
 particip
articipação
ação na vida,
vida, com suas intenções e impulsos.
mpulsos. O resultado
resultado desse desencontro
interno gera inúmeras reações, a mais comum é a do indivíduo tentar negar esse conflito
e buscar soluções superficiais que acabam afastando mais ele de si mesmo, gerando
atitudes ainda mais infantis, ou seja, ele busca vivenciar impulsos regressivos para
compensar essa crise. Podemos dizer que na meia-idade as partes negligenciadas da
nossa psique buscam insistentemente a sua manifestação. O indivíduo ouve vozes de
uma identidade prematuramente rejeitada, de um amor perdido ou interrompido, de
 possibi
ossibillidades abandonadas para se tornar o que ele é agora.
O fato de se estar na vida adulta não quer dizer que não haja espaço para mudanças e
transformações, pois o desenvolvimento da personalidade ocorre em qualquer idade
através da interação das situações de desafio e de descoberta de si mesmo. Mas o
desenvolvimento da personalidade nos adultos requer um reconhecimento de suas
imagens interiores e uma participação ativa de avaliação e auto-análise de sua postura,
visando à descoberta de si mesmo. Nenhuma soma de situações ou comportamentos em
mudança levará ao crescimento pessoal sem uma tomada de consciênci
consciência.
a.
Devemos nos perguntar, como fez Jung, por que o adulto recua assustado diante da
segunda metade da vida, como se o aguardassem tarefas desconhecidas e perigosas, ou
como se sentisse ameaçado por sacrifícios e perdas que não teria condições de assumir,
ou ainda como se a existência que ele levara até agora lhe parecesse tão bela e tão
 preciosa,
reciosa, que eleele já não seria
seria capaz de passar sem ela.
ela. Talvez
Talvez isto seja fruto de um
 processo de transição
transição onde as energias
energias que estavam projetadas para as conquistas
conquistas do
mundo começam a se recolher, num processo de introversão que o leva para dentro de
si, o que gera medo e imprevisto, pois o homem ocidental não foi preparado para um
encontro consigo mesmo, perdido que se encontra diante dos estímulos da vida material.
A indagação pelo ser tem como objetivo devolver à vida o mistério que ameaça
desaparecer na modernidade. A filosofia de Heidegger interpela o indivíduo em sua
liberdade e responsabilidade, e leva a morte a sério.

72
ENVELHECER COMO ENCONTRO DO SER: os desafios do caminho

O problema do ser é para Heidegger o problema por excelência da filosofia. Para isso
ele parte da distinção entre o ser (essência) e o ente (existência) e passa a refletir o ente
que pode compreender o ser: o homem. Nessa reflexão, Heidegger se utiliza da palavra
 Dasein , um termo do alemão corrente que significa existência e que é geralmente
traduzido como  ser-aí . Palavra que designa a livre dimensão do aberto. Conforme refere
Michelazzo (1999), é interpretado como aquele que é sempre capaz de revelar um
sentido para o homem que já se encontra lançado e imerso num mundo de significados
que se mostram em sua existência fáctica e cotidiana. No seu dia-a-dia, o homem lida a
todo o instante com coisas ou situações que lhe são significativas, isto é, têm valor de
signo para um sentido de tal forma que elas sempre lhe despertam interesse ou lhe
mostram alguma
alguma utilidade.
utilidade.
Esse processo dinâmico de fazer, desfazer e refazer vínculos com aquilo que lhe é
significativo, é o que constitui essencialmente o “como” do seu estado de aberto (o  Da).
A este “como”, Heidegger dá o nome composto de ser-no-mundo.  Dasein   quer colocar 
na maior proximidade homem e mundo, até poder significar “morar junto a, ser familiar 
com”. O Homem somente “existe” enquanto é, ou seja, um vínculo com aquilo que lhe é
significativo.
 Dasein   é um ente que revela o seu “é” apenas enquanto se acha prometido ao seu
“poder ser”, isto é, vincula do com o projeto de ser. Por outro lado, somos dotados de
incapacidades e limitações que fazem com que ele fique apenas na promessa de poder 
ser, sem efetivamente ser.
Resumindo, o homem é  Dasein   (ser-aí), o ente aberto ao ser e que, além disso, esse
 Dasein   é um ser-no-mundo que é designado como cuidado. Vamos tentar então
compreender um pouco desse caminho para o ser e sua relação com as idéias de Jung.
Para Heidegger, o homem é o que há de mais estranho no estranho (1988: 172). O
estranho é aquilo que nos retira do que nos é familiar e seguro e nos coloca diante do
desconhecido e do nada. É aquilo que não nos deixa estar em casa, pois é da condição do
homem ser lançado em direção ao aberto e ao imponderável do seu ser, embora ele tente
o tempo todo contornar essa sua condição buscando abrigo e proteção no familiar e
conhecido. Essa condição de ser levado para além de si mesmo é uma outra forma de
entender o homem como aquele ente que habita a intimidade com o ser.
Proximidade e intimidade são traços característicos da relação do homem com o ser.
Ser significa aparecer, e este aparecer não é um atributo casual do ser, mas o modo
constitutivo de sua presença. Aparecer aqui significa poder acontecer enquanto ser e isso
não é tarefa fácil. Em uma vida humana são precisos vários nascimentos e pode
acontecer que nunca se chegue inteiramente ao mundo e muito menos ao ser. Isto pode
ser entendido que todo ser só existe enquanto relação e paradoxalmente ainda assim se
encontra isolado de tudo. O ser-em não significa que estamos em alguma parte, mas que
sempre lidamos com algo, sempre temos a ver com algo. Existência é um modo-de-ser, e
é o  ser acessível a si mesmo.

73
A existência cotidiana é a existência de um mundo compartilhado, mas esse ser-com-
outros degenera em mero ser-entre-outros, e, assim, em inautenticidade. Isso é o que
sucede quando não possuímos a nós mesmos – quando negligenciamos a peculiaridade
de nossa existência como intérpretes do mundo, isto é, como  Daseins. Em nossa
ansiedade de nos distinguir dos demais tornamo-nos, porém, dependentes deles – não de
alguém em particular, mas do outro em geral.
O homem existe não como um fato objetivo, mas como um acontecimento vivido e
isto significa que em cada instante ele se manifesta no Ser. Mas, em nossa realidade
cotidiana, temos uma pálida consciência do nosso ser-no-mundo, uma existência
superficial. Vivemos num jogo de projeções sobre as coisas e os outros de modo a não
sermos nós mesmos. Contrapondo essa atitude, devemos estar atentos ao apelo do ser e
assumir a sua própria estranheza diante do nada. Esse é o modo autêntico de existência
que Heidegger propõe, um modo de ser-no-mundo que estabelece sua condição mais
essencial, o seu poder-ser, além do cotidiano mediano.
 Não somos itens “sem mundo” no interi
interior
or do mundo, mas locais
locais nos quais o mundo se
revela – se mostra para cada um de nós de acordo com os nossos vieses e ângulo de
interpretação. Somos essencialmente “dotados de mundo”, ou seja, seres no mundo e
não do mundo. Nosso ser é nossa abertura, estamos clareados em nós mesmos enquanto
ser-no-mundo, onde nós mesmos somos a clarificação. Essa idéia de uma existência
como clarificação está toda ela compreendida na palavra cuidado. O mundo pode ser 
definido como aquilo a que dedicamos cuidado, e nós podemos ser definidos como
aquilo que dedica cuidado ao mundo.
Aliás, a vida adulta é a vivência da capacidade de saber cuidar-se e cuidar dos outros.
Assim, produtividade e criatividade estão inseridas nas diversas áreas do ser adulto: no
seu trabalho, na procriação, nas relações em geral, na preocupação com as outras
 pessoas, com as próprias idéi
idéias
as e produtos.
Durante este período, o indivíduo geralmente assume muitos compromissos com o
trabalho e com a família. Podemos dizer que ele, nesta fase inicial, procura estabelecer 
uma base por intermédio de uma carreira profissional e familiar. Características como
falar mais por si próprio, ter mais autoridade e tornar-se menos dependente faz parte
desses compromissos. Este desejo de afirmação na sociedade o torna sensível à reação
de outros bem como suscetível a suas influências. Parece que é fundamental termos
consciência sobre esse cuidado, como nos movemos no ser-no-mundo, para reconhecer 
se estamos presos num jogo de valores coletivos ou se o cuidado é fruto de uma
 profunda e intensa relação com a vida. vida. Não poderemos caminhar
caminhar nessa direção
direção até
termos feito mudanças radicais de orientação. Faz-se necessário reelaborar nossa noção
de realidade, que implica reelaborarmos nossa formação. Buscarmos o coração do
mundo, um mundo com alma. Um lugar onde o respeito possa estar presente. E respeito
vem do latim respectare, que significa “olhar de novo” (Hillman, 1993). Precisamos
 parar um pouquinho
pouquinho e olhar
olhar de novo o outro, a situação que está ali,
ali, um segundo olhar
olhar,, o
olhar do coração. Para que possamos fazer de nossa vida um encontro de almas; de
nossa realidade, poesia.

74
Aqui encontramos a necessidade de um viver por inteiro. A individuação para Jung é a
capacidade do indivíduo de se tornar cada vez mais ele mesmo, um ser indivisível.
Diante disso tudo, devemos recuperar a noção de um todo integrado e com vida, onde
cada coisa, cada elemento do universo ocupa um lugar de importância própria e
intransferível. O que queremos mostrar é a necessidade de resgatar um mundo com
alma. A hipótese de que o mundo está vivo representa uma reversão completa de
valores, e o grande fator revolucionário é o amor. O que pode mexer com nossas
 profundezas bem como com as profundezas da vida, do sexo, sexo, do outro? Só o amor pode
dar o sentido e o significado que mantenham viva a nossa alma. É ele que concede
vitalidade e um interesse em que se apóiam todos os outros esforços. E amar pressupõe
saber aceitar o que é diferente.
Para Heidegger, amar diferentemente pressupõe pensar diferentemente, pois, para ele,
não há separação entre ambos, ou seja, existe uma relação essencial entre amar e pensar.
A partir dos versos de Hölderlin: “quem pensa o que há de mais profundo, ama o que há
de mais vital”, ele vai dizer que mais do que afirmar que o amor pelo que é mais vital
seja uma conseqüência do pensar, o próprio pensar é ele mesmo um amor, o amor para o
que é mais vivo. Sugere Oliveira (2000) que esta é uma indicação de que, para
Heidegger, o pensar e o amar têm uma dimensão patológica, ou seja, ambos são afetados
 pelo
elo desejo e pela
pela sensibi
sensibillidade. Esse caráter patológ
patológiico não deve ser sanado, mas
assumido. Isto significa que o pensamento está misturado e contaminado de maneira tão
 primordi
rimordial
al com o sensível,
sensível, que não é mais mais lícito
ícito falar
falar nem de mistura
mistura nem de
contaminação, mas sim de uma concretude originária do pensar. Isto implica deixar o
 pensamento se guiar
uiar pela sensibil
sensibilidade, deix
deixar o pensamento ser o que ele é: apaix
apaixonado,
 passivo,
assivo, enfim, patológi
patológico.
Esse processo patológico e apaixonado de sentir e pensar é fundamental para que o
significado do ser não se perca, pois temos uma tendência a cair num processo de
acomodação e condicionamento diante da realidade. Como um poema ou uma prece que
aprendemos de cor na infância, a questão sobre o significado de ser soa tão embotada e
familiar, que nunca nos damos conta de que ignoramos esse significado.

ANGÚSTIA E MORTE: na contradição da experiência para o sentido do ser 

O processo de envelhecer nos confronta com diversos temores, mas também com o
desafio do apóstolo Paulo quando propõe que, mesmo que a carne envelheça, o corpo se
glorifica. É preciso reconhecer que o corpo é muito mais do que carne e é esse corpo
carne/psique que encerra a vida plena. Para isso, não evitemos a angústia do envelhecer.
Para Heidegger, a angústia é o caminho mais fácil para a autenticidade. É como o medo,
só que pior, uma apreensão insondável que jamais podemos compreender. Um tipo de
náusea ontológica que nos apodera sempre que chegamos perto de compreender a
instabilidade inerente da existência. A natureza indefinida da angústia que nos ameaça
oferece paradoxalmente a qualidade de existência autêntica. Na angústia nos sentimos

75
estranhos, diz Heidegger, e isso traz de volta o ser de sua queda e absorção no mundo. O
ser se individualiza, mas como ser-no-mundo. O solipsismo existencial é o oposto do
sentido clássico: não uma tímida retirada do mundo, mas uma ousada descoberta e
reapropriação deste (Rée, 2000).
Ser-no-mundo é ser um ente que possui na sua morte um duplo acabamento em seu
mais agudo contraste: é tanto a apreensão de sua totalidade e aperfeiçoamento, quanto a
apreensão de sua mortalidade
mortalidade e desaparecimento.
desaparecimento.
Com a expressão “ser-para-a-morte”, Heidegger quer indicar que a vida do homem é a
trágica tensão entre ser e não-ser. O ser-para-a-morte exprime o fato de a vida do
homem ser uma vida criadora, em que viver é configurar-se, estruturar-se em limites, em
delimitações. A vitalidade consiste não simplesmente em preservar a força da vida, mas
de só poder preservá-la fixando a vida em construções, em modos de viver. Esses modos
de viver é o fechamento numa forma, uma fixação que nega a vida, uma espécie de
morte. Assim, podemos afirmar que a vida se realiza na sua própria negação, na sua
morte. O ser-para-a-morte refere que a vida do homem é vida criadora, confronto com o
aberto das possibilidades para reuni-las numa unidade, numa forma, num limite. A vida
se define, então, numa tensão entre a abertura de possibilidades e a sua própria inscrição
no limite. Ter limite então não é necessariamente ser limitado, mas ser forçado a se abrir 
 para outras possibi
possibili
lidades,
dades, e a metanóia
metanóia que se impõe com o envelhecer
envelhecer é exatamente
exatamente
isso, uma busca de novas e mais profundas possibilidades para o ser.
A morte é uma manifestação da própria vida, tudo que começa a viver também
começa a morrer, a caminhar para a morte. A palavra grega  Eksístasthai, ou seja,
existência, significa não ser, isto porque o não-ser tem para eles o sentido de desistir, a
existência é o que declina o ser e o faz declinar. Apreendemos a nossa existência
desistindo continuamente de sua consistência, para posteriormente expressá-la através do
declinar das palavras. O seu morrer não é acidental, mas a derradeira manifestação do
contínuo declinar de sua própria existência. A morte é a proximidade segura da terra
natal. A morte como uma certeza indefinida, mas iminente que é a cada instante possível.
Cada momento de sua existência é afetado por morte, por seu ser para a morte. Nossa
vida está sempre impregnada pelo sentido que você tem de seu fim.
Também na psicologia junguiana a morte se encontra intimamente ligada à vida, sendo
que viver bem também pressupõe um morrer bem. Aniela Jaffé (1989) nos mostra que
“Vida” significa ascensão e queda, desenvolver-se e definhar, ou seja, uma totalidade
vida-morte. Nascimento e morte são elementos de uma mesma equação que é a vida.
Mas quantos se preocupam com este lado da questão da vida?
O pensamento de Heidegger e de Jung nos lança para uma perspectiva mais ampla e
nos leva para uma nova postura na preparação e no enfrentamento da morte.
O homem moderno, carente de fé religiosa, em geral vai despreparado ao encontro da
morte. O medo da morte e sua negação parece ter se constelado de modo
 particul
articularmente
armente elevado
elevado na época atual.
atual. Lil
Liliane FreyRohn (1989: 26), analista
analista jungui
junguiana,
ana,
numa conferência realizada em 30 de abril de 1979, em Zurique, coloca brilhantemente a
questão quando refere que no medo da morte se

76
EVIDENCIA O DESAMPARO DO HOMEM, QUE PERDEU A CONEXÃO COM SEUS PODERES  NUMINOSOS
UMINOSOS . DEIXADO POR  CONTA
PRÓPRIA, O HOMEM SE SENTE INTIMIDADO, TANTO  NA VIDA SOCIAL COMO  NA VIDA ÍNTIMA. O HOMEM  NÃO SENTE
APENAS O MEDO DE UMA CATÁSTROFE MUNDIAL, MAS É ACOMETIDO TAMBÉM PELO MEDO E PELA AMEAÇA CONTIDOS
 NO QUE CONSTITUEM AS PREDISPOSIÇÕES DEMONÍACAS , TAIS COMO A INVEJA, O ÓDIO, BEM COMO A CRUELDADE DA
SUA PRÓPRIA ALMA. A VALORIZAÇÃO DESMEDIDA ATRIBUÍDA, POR  UM LADO, AO PODER  , AO CONHECIMENTO E À
FORTUNA OCASIONA, POR  SUA PRÓPRIA  NAT
AT UREZA, UMA DESVALORIZAÇÃO CORRESPONDENTE DOS VALORES
ESPIRITUAIS DO ALÉM. ISS O FAZ COM QUE O INDIVÍDUO SE DISTANCIE DAS FORÇAS  NORMALIZADORAS
ORMALIZADORAS DA SUA PRÓPRIA
PSIQUE . A MORTE TORNA-SE ENTÃO UM FANTASMA  NOTURNO , TOTALMENTE ESTRANHO, QUE ABRE BRECHAS
AMEAÇADORAS DE INCRÍVEIS DIMENSÕES E QUE ANIQUILA A SUA PERSONALIDADE. NÃO É DE ESTRANHAR  QUE, DIANTE
DO ESVAZIAMENTO E DA DESPERSONALIZAÇÃO CRESCENTE DO INDIVÍDUO, O INCONSCIENTE EXERÇA PRESSÃO,
PROCURANDO ELEVAR  VALORES ESPIRITUAIS REPRIMIDOS AT É O CONSCIENTE ATRAVÉS DE PROJEÇÕES. AS
EXPERIÊNCIAS RELATIVAS À MORTE PRESTAM DE MODO PARTICULAR  A ISSO, COMO PROJEÇÕES PORTADORAS DESSES
VALORES, JÁ QUE PARECEM ABRANGER   NÃO SÓ O MISTÉRIO DO DESTINO  NO ALÉM, COMO TAMBÉM PODEM CONTER 
UMA AMPLIAÇÃO DO ESPÍRITO QUE TRANSCENDE AS FRONTEIRAS DA VIDA ATÉ AGORA EXISTENTE. A CONSCIENTIZAÇÃO
DE AMBAS AS COISAS PODE LEVAR  O INDIVÍDUO DE VOLTA AO SEU CENTRO, À SUA TOTALIDADE.

Podemos dizer que a experiência da morte chama a atenção para algo que procura
restabelecer o equilíbrio com a Unidade e a Ordem perdidas. “Os mortais são os homens.
ós os chamamos de mortais porque eles podem morrer. Morrer significa: ser capaz da
morte como morte. Só o homem morre. O animal perece” (Heidegger, 1958: 212).
Queremos dizer com tudo isso que só podemos superar o medo da morte e
transcendê-la como simples término quando conseguirmos entender que a finitude da
vida material não determina a minha vida e que o morrer então é na verdade uma
realização. Como colocamos anteriormente, precisamos encontrar novas possibilidades
dentro das nossas limitações. Para isso, precisamos ter consciência do tempo. Quando a
casa dos quarenta é deixada para trás, o tempo passa a constituir um drama entre o
mundo que nos impõem suas necessidades e as necessidades esquecidas que começam a
nos exigir atenção. Aí deparamos com um outro tempo, o tempo da alma a exigir mais
qualidade, entrega e cuidado. Não um cuidado neurótico em torno do medo, mas o
cuidado de alguém que busca profundidade. Aí a limitude  da idade se torna um amplo
campo para a alma. No dizer de Hillman, a alma precisa ser adequadamente envelhecida
 para partir
partir e esse processo faz do idoso uma figfigura de valor
valor única
única e insubstituível
nsubstituível no
teatro da civilização, faz do processo de envelhecer uma forma de arte. E toda arte é, ao
mesmo tempo, dura e deslumbrante,
deslumbrante, exi
exigente
gente e encantadora.

A IDADE DO SER: ser realizando o Ser 

Existem diferentes regiões de realidade ou de objetividade e que, em cada uma dessas


regiões, as categorias têm sentidos diferentes. Os objetos da física, por exemplo,
constituem um domínio dos atos psíquicos: os primeiros são mortos e, por isso mesmo,
matematizáveis. Os atos psíquicos são momentos do espírito humano abertos para Deus
e, por conseguinte, exigem, a fim de ser compreendidos, a elaboração de conceitos
capazes de captar de maneira viva a orientação do ser humano para o Deus vivo.

77
A experiência humana dá-se no mundo do si-mesmo, o mundo compartilhado (família
etc.) e o mundo ambiente (a natureza e o social). Embora aconteça nesses três espaços, a
vida humana é centrada no mundo do si-mesmo, no qual é experienciada a origem, isto
é, o Absoluto. Conta-nos Loparic (2004) que, no enterro de Heidegger, foram lidos
fragmentos extraídos da poesia de Hölderlin, evocando a paisagem do aberto, da
verdade, da presença, o lugar da manifestação originária do ser, o ponto extremo ao qual
Heidegger buscou pensar a origem, o “Absoluto” sem mediação do conceito. Ser humano
como signo, carente de interpretação (um signo não interpretado).
Ser e dizer torna-se uma busca de unidade original, a fim de que se torne visível a
intimidade de ser e homem. O pensamento de Heidegger se consolida cada vez mais por 
meio do sagrado. Entre fatos naturais que podem ser mostrados e também ditos, existem
coisas que só podem ser mostradas, mas não ditas. Espanto e angústia diante de algo que
existe e o sentido além da verbalização.
Como nos propõe Safranski (2000), Heidegger quer ser o mestre do princípio. Queria
descobrir o ponto em que a filosofia renasce. Isso acontece na disposição. Ele critica a
filosofia que finge começar com pensamentos. Na realidade, diz Heidegger, ela começa
com uma disposição, com o espanto, a preocupação, a curiosidade, o júbilo. A disposição
liga a vida com o pensamento. É como se tivéssemos uma pergunta a priori   que nos
orienta, e toda pergunta é uma busca. Toda busca é previamente orientada pelo que é
 buscado. Isso é um convite
convite para entrarmos num processo de problematização
problematização sem fim fim
especificável, em um acontecer não gerado por nós – por nosso espanto diante do que há
ou por nossas necessidades –, mas pela retenção por um retraimento.
 Alétheia   é desvelamento, desocultação. Mas na busca de um sentido ainda mais
originário, Heidegger refere algo que vai além do desvelamento. Para Michelazzo (1999),
ele procura onde a coisa se mostra e encontra a abertura, isto é, o âmbito da aparição das
coisas, onde o ser da coisa e o  Dasein   se encontram. Assim, o ser-aí descobre os entes
não porque ele possua a abertura, mas porque o ser dos entes se abre a ele,
 possibi
ossibillitando a sua relação,
relação, o seu encontro com os entes. Essa possibi
possibillidade é possível
 pelo
elo dom da presença do ser e pelo deixar-ser do  Dasein. Ambos, dom e deixar-ser,
pelo deix
repousam na liberdade. Esta é a própria essência da verdade. O deixar-ser então se
transforma numa prática meditante, uma busca pelo ser das coisas, um deixar que o ente
seja ele mesmo. Um engajamento cujo propósito fundamental é abandonar-se ao ser.
Atende ao seu apelo: pôr-se à sua escuta.
Esse encontro demonstra que, mais cedo ou mais tarde, devemos nos confrontar com
a nossa natureza essencial e nos posicionarmos diante dela. Geralmente, esse processo
ocorre durante a segunda metade da vida, momento que tudo aquilo que está dentro de
nós e que foi esquecido começa a fazer pressão para ser reconhecido. Este processo todo
também é chamado de arquétipo de Jó por Edinger (2004). Arquétipo porque é um
 padrão universal,
universal, e Jó por sua históri
históriaa na Bíbli
Bíblia ser um relato exemplar
exemplar e simból
simbóliico desse
encontro com o si-mesmo. A partir desse autor e das referências de Jung, podemos
resumir os aspectos maiores desse encontro como:
1. Encontro eu/si-mesmo, que se manifesta na imagem divina ou em algum ser 

78
superior, seja personificado simbolicamente, seja por um acontecimento;
2. Ferida ou sofrimento do eu (ego) como resultado do encontro;
3. O ego persevera, suportando pacientemente a prova, para entender o significado do
encontro;
4. A combinação da experiência como uma revelação divina, na qual o eu é
recompensado através de um entendimento em nível de psique transpessoal. Neste
momento, o eu reconhece a sua posição subordinada e está preparado para servir à
totalidade e aos seus fins. Jó se tornou um eu individuado.
A vida adulta, depois dos 40 anos, necessita do reconhecimento de que cada vida é
completamente singular e peculiar. Cada pessoa, em sua experiência, está realizando a
 parte que lhe cabe no universo. Sendo assim,
assim, podemos dizer que nesta fase se inici
niciaa uma
derrota do ego individualista e que necessita de auto-afirmação para um outro elemento:
o Si-Mesmo (Self, Eu Maior, Centelha Divina que habita em todo ser humano).
O Si-Mesmo seria uma força superior, de orientação, que impulsiona para a auto-
realização do indivíduo dentro de uma ética de plenitude e crescimento. Pode vir como
uma intuição ou sensação vaga de busca de algo que implica um sentido maior e religioso
 para a sua vida. É como
com o se a nossa natureza mais essencial
essencial nos confrontasse com aquil
aquilo
que nossa vida íntima está comprometida na atual encarnação, aquilo que a psicologia
chama o mito pessoal de cada indivíduo.
Embora toda essa inclinação do Si-Mesmo, a maioria dos indivíduos acaba se
identificando ainda mais com o ego, não deixando espaço para este sentido maior. Isto
acaba gerando uma dissociação interna que provoca várias perturbações ou mesmo
situações-limite de vida que podem colocar esse indivíduo em colapso, pois quanto mais
o ego resiste e se “infla”, mais o si-mesmo tenta compensar essa unilateralidade. Onde
 podemos encontrar um contato com o si-mesmo?
si-mesmo? Jung busca na experi
experiênci
ênciaa simból
simbóliica,
Heidegger na poesia.

SER É SABER:
SABER: a conquista
conquista do não-ser através da serenidade

Heidegger encontra na poesia a manifestação de toda a linguagem originária. Aquela


linguagem que mais se aproxima do ser por ela ser especialmente capaz de realizar, de
forma mais direta, sem intermediações, a conversão do Ser em palavra. A poesia, como
linguagem primordial, suspende o nosso modo corriqueiro de falar e de nos comunicar,
 pois
ois ela
ela retira
retira o véu que constantemente encobre a ling
linguag
uagem
em corrente. Com a poesia,
poesia,
diz Michelazzo (1999), o sentido usual dado às coisas sai do domínio do público para
tornar-se singular, novo e problemático, obrigando-nos a ver o mundo numa outra
 perspectiva.
erspectiva.
Aprendemos com Heidegger que o poeta é aquele que mais está exposto à excessiva
claridade dos relâmpagos de Deus, correndo assim um supremo risco. A poesia também
é uma luta entre o que se desvela e, ao mesmo tempo, se oculta da verdade do ser.
O sagrado é o sinal do mistério de tudo o que se apresenta e se oculta e que provoca

79
no homem tanto a atração do maravilhoso (  fascinans ), quanto o recuo do espantoso e
monstruoso (tremendum). Sagrado como o centro onde o poeta se encontra, um papel
mediador no entrelace da vida, sendo a linguagem poética a única que pode traduzir esse
sagrado.
Como podemos ligar o poético dentro da temporalidade de uma vida que se impõe
inexoravelmente? Um tempo que não deixa dúvidas em relação ao seu poder. Quais as
imagens que podem melhor nos falar sobre o envelhecer? Segundo Almeida (apud Dias,
2001), essas são aquelas que tratam de forma mais poética, mais humana e conflituosa a
questão da velhice, o poético é lento e complexo, não é explícito, mostra a ambivalência
o tempo inteiro. A sociedade, porém, não suporta a ambivalência, a ambigüidade, e tudo
deve ser muito rápido e tudo deve ser muito explícito.
A temporalidade pertence por essência ao sentido do ser, o tempo é o fundamento da
manifestação e da apreensão do ser. O ser é aquele que sai do puro infinito para ser 
modulado no tempo. O tempo é produção do instante. Os idosos deveriam ser 
exploradores, diz o poeta T. S. Eliot.
Temos aí uma relação entre tempo e finalidade, uma vida de significado que se
constrói no viver com inteireza o que a vida lhe propõe. Assim, uma vida orientada para
um objetivo maior em geral é melhor, mais rica e mais saudável do que uma vida sem
objetivos, e que é melhor seguir em frente acompanhando o curso do tempo, do que
caminhar para trás e contra o tempo. O idoso que for incapaz de se separar da vida é tão
fraco e doentio quanto o jovem que não é capaz de construí-la.
O tempo como presença, o ser como um dar-se, um se mostrar como presença, dom e
gratuidade, ele não é. Um sentido de destinar, aquilo que nos foi enviado como presença
(ser) em determinada época. A conjunção de presença e história como destinação. Um
acontecer que se dá no âmbito dinâmico em que o homem e ser atingem a sua essência.
Apreender o real em sua unidade é conseguido através do entendimento de dar-se do ser 
e do tempo por intermédio da metáfora poética, proferida no horizonte mítico do
sagrado.
Para Schuback (2000), a filosofia de Heidegger tem no seu  pathos  o clamor 
nietzscheano da vida e a força antidogmática do mote fenomenológico de Husserl, “para
as coisas elas mesmas”. A vida se apresenta em sua determinação radical, na
indeterminação aberta da possibilidade.
Esta capacidade e coragem para uma entrega ao que é indeterminado, é fruto daquele
confronto com o Ser, com o si-mesmo (  self ).
). Em nossa busca, em algum ponto, somos
confrontados com a queda: sermos abandonados ou cairmos em nosso próprio mundo,
(a)traídos para o interior de nós mesmos, onde somos deixados sós. Para Jung, a mais
decisiva experiência de todas é estarmos sozinhos com o nosso próprio si-mesmo.
Devemos ficar sozinhos se quisermos encontrar aquilo que nos sustém quando não
 podemos suportar a nós mesmos. Só essa experi experiênci
ênciaa pode nos dar uma base
indestrutível.
Assim, segundo Jung, o homem que envelhece deveria saber que sua vida não está em
ascensão nem em expansão, mas em um processo interior inexorável que produz uma

80
contração da vida. O homem que envelhece tem o dever e a necessidade de dedicar séria
atenção ao seu interior, ao seu si-mesmo.
A partir de então, ser e ente, essência e existência não serão interpretados como
 pertencentes a “dois
“dois âmbitos
âmbitos irredutíveis”,
rredutíveis”, mas, ao invés, como exp
expressão
ressão de um jogo
jogo
ininterrupto entre aquilo que uma coisa é (ente) e aquilo que nela provoca a sua própria
ultrapassagem (ser).
Aonde leva esse pensamento que renuncia a todo o conhecimento proposicional e se
entrega a essa simplicidade do apelo do ser? Esse modo de pensar, segundo Heidegger,
leva ao despertar da serenidade. Um repouso como atitude do pensamento, que, diante
da presença das coisas, não toma nenhuma iniciativa, nem faz interferência alguma,
apenas compreende e abriga, recebe e guarda o que nessa abertura é revelado, seja ele
agradável ou estranho, sublime ou espantoso. A serenidade se torna o centro e a força de
todo o movimento. Percebemos que a razão de nossas vidas e o seu maior momento é o
encontro do eu com a Grande Personalidade. Um encontro que determina a possibilidade
de um novo amanhã. Só quem teve esse tipo de experiência sabe o que isso significa, é
algo extremamente difícil de fazer entender. Mas isso não importa, pois, como diz Jung,

SE ALGUÉM SE OPUSER  A ESSA EXPERIÊNCIA, SÓ PODEMOS DIZER  “ SINTO MUITO, EU TIVE”. NÃO OBSTANTE O QUE O
MUNDO PENSE A RESPEITO, AQUELE QUE VIVENCIA POSSUI UM GRANDE TESOURO, ALGO QUE SE TORNOU PARA ELE UMA
FONTE DE VIDA, SIGNIFICADO E BELEZA, PROPORCIONANDO AO MUNDO E À HUMANIDADE UM  NOVO ESPLENDOR  . ELE
POSSUI  PISTIS  ( CONFIANÇA, FÉ ) E PAZ  (O.C., V. XI, § 116).

Chegamos então à grande questão que moveu essa discussão: que o envelhecer bem
vivido resulta no sentimento sólido e amplo da serenidade. Passamos pelos vincos das
experiências que ficam marcadas em nosso corpo velho, passamos pela superação de não
nos assustarmos com a presença acelerada da vida, conquistando nosso próprio tempo,
 passamos pela consciênciaa da nossa limitude  e da não mais necessidade de sermos
pela consciênci
heróis, passamos pelo desafio de romper com as exigências e deixar que as coisas
 partam, que nosso corpo possa partir
partir e assim
assim ficar só o que é essencial
essencial,, ficar
ficar com a
condição de ser. E ser é encontrar a unidade essencial de uma vida inteiramente vivida,
com todas as suas contradições. Ser é unidade, ser e unidade, serenidade: o fruto suave e
doce que resultou da força sábia da metanóia que não pede, exige que sejamos
devolvidos a nós mesmos.
Este estado de serenidade, de um ser que sabe, mas que se comporta como uma
espera e um não-saber, uma atitude humilde que é conquistada por aquele que se espanta
diante do que é simples e aceita este espanto como morada. Este ser é, então, aquilo que
liga os entes na sua totalidade, o que reúne as coisas na unidade, o que provoca e
conduz, aproxima e tece a nossa realidade (Michelazzo, 1999). Uma teologia mítico-
 poética
oética segundo Resweber (1979).

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* Psicólogo, mestre em Psicologia Clínica, analista junguiano, membro da Internacional Association for Analytical Psychology.
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Tempo.  Porto Alegre: Age,
2004; Participação: - “Novas Questões em Psicologia Clínica: O Sujeito Contemporâneo e a Crise da Subjetividade”, In:  Revista
Cadernos Junguianos,   n.º 01, 2005. - “Xamanismo e Psicologia Junguiana”, In: VERRES, Joyce (org.).  Ensaios
nsaio s sobre a Clínica
 Jung uiana.
uian a.   Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005.

82
8
Sobre a vida e a dor da meia-idade: Articulação entre
Jung e Schopenhauer 
Jorge Luiz de Oliveira Braga*

Considerações Gerais

 Na medida
medida em que nos propomos a examinar examinar e discuti
discutirr alg
algumas das impli
mplicações
inerentes à fenomenologia da meia-idade, nada mais adequado do que fazê-lo a partir do
 ponto de vista
vista da P sicol
sicolog
ogia
ia Analíti
Analítica,
ca, do psiqui
psiquiatra
atra suíço C. G. Jung.
Jung. Sua abordagem
abordagem é
de inequívoca singularidade, já que considera essa etapa como um dos momentos
cruciais da existência humana, a que denominou: Processo de Individuação. Jung a
considera como uma experiência plena de transformações onde cada qual, a seu modo,
se defronta com seu próprio mito pessoal, seu destino e, enfim, com sua própria vida.
A argumentação a ser utilizada é fiel à proposição de Jung, que considera a
Individuação como um processo inerente e inato ao homem de todos os tempos, e
articulada com alguns elementos da filosofia de Arthur Schopenhauer. O que na verdade
se pretende examinar e discutir são os fenômenos desta etapa da vida que estão
implicados no processo da busca de si-mesmo. Enfim, o eixo central é: “Conhece-te a ti
mesmo e torna-te aquilo que realmente és”, a finalidade transcendente do viver e do
Processo de Individuação que encontra em  Memórias, sonhos e reflexões  um respaldo
relevante e uma síntese da vida e obra de C. G. Jung.

Sobre as considerações teóricas

Das várias concepções próprias do universo junguiano, destacaremos três delas que
são de grande valor teórico e dão consistente sustentação filosófica à discussão do tema
 proposto que são: lilibido,
bido, arquétipos e inconsciente
inconsciente coletivo
coletivo e P rocesso de Individuação.
Individuação.
A articulação psicologia e filosofia é natural e uma aliança necessária e usual às
tentativas de compreensão dos fenômenos da psique e da vida. A escolha de
Schopenhauer é quase auto-explicativa, pois, por diversos motivos e analogias pessoais,
entendemos ser surpreendente e, por demais evidente, a nítida impressão de que, a
exemplo de Nelson Rodrigues e Machado de Assis, o filósofo nos mostra “ a vida como

83
ela é” em um estilo de narrativa tão particular que nos remete, a exemplo de uma das
grandes expressões da literatura mundial, ao poeta Jorge Luis Borges, quando afirma que:
“...Schopenhauer
“... Schopenhauer que acaso descifró el universo”
universo” (Borges, 1981: 78).
O filósofo introduz a dor, o sofrimento na concepção do processo da vida e do viver e,
conforme cita Jung em suas memórias:

O GRANDE ACHADO DE MINHAS INVESTIGAÇÕES FOI S CHOPENHAUER . PELA PRIMEIRA VEZ OUVI UM FILÓSOFO FALAR 
DO SOFRIMENTO DO MUNDO , QUE SALTA AOS OLHOS E  NOS OPRIME, DA DESORDEM , DAS PAIXÕES , DO M AL, FATOS QUE
OS OUTROS FILÓSOFOS APENAS TOMAVAM EM CONSIDERAÇÃO , ESPERANDO RESOLVÊ- LOS MEDIANTE A HARMONIA E A
INTELIGIBILIDADE. E NCONTRARA , ENFIM, UM HOMEM QUE TIVERA A CORAGEM DE ENCARAR  A IMPERFEIÇÃO QUE HAVIA
 NO FUNDAMENTO DO UNIVERSO. NÃO FALAVA DE UMA PROVIDÊNCIA INFINITAMENTE BOA E INFINITAMENTE SÁBIA  NA
CRIAÇÃO ,  NEM DE UMA HARMONIA DA EVOLUÇÃO; PELO CONTRÁRIO, DIZIA CLARAMENTE QUE O CURSO DOLOROSO DA
HISTÓRIA HUMANA E A CRUELDADE DA  NATUR ATUR EZA PROVINHAM DE UMA DEFICIÊNCIA: A CEGUEIRA DA VONTADE
CRIADORA DO MUNDO (J UNG-MSR 1968:71).

Em seu referido trabalho, Jung ainda discute profundamente sobre as influências


sofridas ao longo de sua vida e de sua obra em todos os âmbitos e, ainda no capítulo
“Anos de Colégio” faz um interessante comentário no que diz respeito ao pensamento do
filósofo:

APROVAVA SEM RESTRIÇÕES O QUADRO SOMBRIO QUE S CHOPENHAUER  FAZIA DO MUNDO, MAS  NÃO CONCORDAVA COM
SUA MANEIRA DE RESOLVER  O PROBLEMA. ESTAVA CERTO QUE SEU TERMO V ONTADE CORRESPONDIA , DE CERTA
FORMA, A D EUS, AO C RIADOR  E QUE ELE O CONSIDERAVA “ CEGO”. COMO SABIA POR  EXPERIÊNCIA PRÓPRIA QUE
 NENHUMA BLASFÊMIA PODE FERIR  A D EUS, MAS QUE, PELO CONTRÁRIO, ELE PODE PROVOCÁ-LA PARA SUCITAR   NÃO
SÓ O ASPECTO LUMINOSO E POSITIVO DO H OMEM, MAS TAMBÉM SUA OBSCURIDADE E SUA OPOSIÇÃO A E LE, A
CONCEPÇÃO DE S CHOPENHAUER   NÃO ME CHOCOU (J UNG, MSR, 1968: 71).

A filosofia de Arthur Schopenhauer, em articulação com a psicologia de C. G. Jung,


 para discussão do tema da Metanóia como tema central deste trabalho,
trabalho, estará circunscri
circunscrita
ta
essencialmente à articulação da idéia e do conceito de Vontade e às concepções de Jung
no que diz respeito ao Processo de Individuação, principalmente em relação à
fenomenologia que envolve a segunda metade da vida.
A Metafísica de Schopenhauer pode ser entendida como de natureza ontológica
apresentando fundamentos teleológicos, uma vez que discute a finalidade do mundo, da
vida e principalmente do homem. Esse voluntarismo, tido como pessimista, no qual se
insere o autor e sua obra, parte de princípios específicos, como se a vida fosse, em
forma geral, dor; uma forma defendida tanto pelo Budismo quanto por Schopenhauer.
Ainda dentro dessa visão, o mundo seria, em sua totalidade, uma manifestação de uma
força irracional, uma “vontade de vida” que se dilacera e atormenta.

Sobre a idéia de vontade

84
A articulação proposta entre psicologia-filosofia nos permite apreender o berço
ilosófico  de onde podem ter sido originados muitos dos conceitos psicológicos sobre a
 psique.
sique. Todavia,
Todavia, tomaremos em particul
particular
ar o conceito
conceito psicol
psicológ
ógico
ico de libido, articulado
com o de vontade, aproveitando o significado do termo em sua origem latina libidum, ou
seja: vontade.
Schopenhauer considera a natureza e o mundo como dominados e movidos por um
impulso e um querer, um querer viver cego,  uma vontade considerada como sendo toda
a realidade. Essa idéia poderia ser articulada tanto com o conceito de libido como o de
desejo, id  ,  self , ou mesmo de energia psíquica.
A libido, tanto para Schopenhauer quanto para Jung, é a priori   um conteúdo sem
forma que dá ao Ser as suas respectivas “infinitas possibilidades” de existência. E é ba -
seado na concepção dessa libido, ou vontade, que podemos, ainda segundo
Schopenhauer,
Schopenhauer, enunciar:
enunciar:

AT É MESMO O CORPO É O PRODUTO DA VONTADE . O SANGUE, IMPELIDO POR  AQUELA VONTADE A QUE VAGAMENTE
CHAMAMOS VIDA, CONSTRÓI SEUS PRÓPRIOS VASOS IMPRIMINDO SULCOS  NO CORPO DO EMBRIÃO; OS SULCOS FICAM
MAIS FUNDOS , FECHAM - SE E PASSAM A FORMAR  AS ARTÉRIAS E VEIAS   (...) A VONTADE DE ENXERGAR  CRIA OS OLHOS ,
A VONTADE DE SABER  FORMA O CÉREBRO, EXATAMENTE COMO A VONTADE DE AGARRAR  FORMA A MÃO OU COMO A
VONTADE DE COMER  DESENVOLVE O TUBO DIGESTIVO  ( ...) N A VERDADE ESSAS FORMAS DE VONTADE E ESSAS FORMAS
DE CARNE  - “  NÃO SÃO SENÃO DOIS LADOS DO MESMO PROCESSO E REALIDADE ” (D URAT , 1996: 241).

 No entanto, Schopenhauer afirma que a vida vida segue


segue uma espécie
espécie de movimento
movimento em
direção à individualidade perfeita. Em sua obra máxima, O Mundo como Vontade e
epresentação,  podemos ler que é nos extremos graus da objetividade ( objektitä) da
 Representação,
vontade que vemos a individualidade
individua lidade se produzir de uma maneira significativa,
especialmente no Homem, sendo que a escala dos seres vivos segue um movimento em
direção ao indivíduo.
E, segundo o autor, só o Homem é um indivíduo, pois no reino inorgânico da natureza
toda individualidade desaparece em murmúrios anônimos da vida, da pedra e do vegetal.
De certa forma conclui que devemos observar que a vontade obscura que habita todo ser 
existente se objetiva seguindo uma regra geral que é a vida se elevar em direção à maior 
das individualidades, ou seja, ao homem.
O princípio da individuação parece ser essa luta sem trégua que é a vida, a vida como
ela é. A analogia com o Processo de Individuação abordado na psicologia de Jung parece
evidente, e as palavras parecem se alternar entre um discurso filosófico e um psicológico.

Sobre o mundo, a vontade e a representação

“O mundo é minha representação”  (Schopenhauer, 1990: 7). É com essa afirmação


que o filósofo Arthur Schopenhauer inicia sua obra magna, O Mundo como Vontade e
epresentação, conteúdo fundamental de toda a sua doutrina. E é justamente assim que
 Representação

85
ele próprio quis que a posteridade a ele se referisse, ou seja, como o autor desta grande
obra e como aquele que deu ao grande problema da existência uma solução que iria,
talvez, substituir as soluções anteriores e, de qualquer forma, ocupar os pensadores dos
séculos vindouros.
Apesar do estigma de pessimista, em grande parte das vezes em sentido pejorativo,
Schopenhauer defende a compaixão como base da ética; critica a produção de fantasmas
 pela
ela razão, prega
prega o respeito
respeito aos animais
animais e à natureza em geral,
geral, ex
e xortando à união mística,
mística,
a nos consolarmos por termos em nossa subjetividade, integralmente, a unidade do
mundo esclarecendo a arte de tornar a vida o mais feliz e agradável possível, fazendo
uma espécie de síntese explicativa das principais características de seu pensamento.
A partir das distinções apresentadas na doutrina de Kant, Schopenhauer encerra sua
visão de que o mundo não seria mais do que representações, entendidas por ele, num
 primeiro
rimeiro momento, como uma espécie
espécie de síntese entre o subjetivo
subjetivo e o objetivo,
objetivo, entre a
realidade exterior e a consciência humana. Como afirma em O Mundo como Vontade e
 Representação
epresentação:

POR  MAIS MACIÇO E IMENSO QUE SEJA ESTE MUNDO, SUA EXISTÊNCIA DEPENDE, EM QUALQUER  MOMENTO, APE 
APE NAS DE
UM FIO ÚNICO E DELGADÍSSIMO: A CONSCIÊNCIA EM QUE APARECE (S CHOPENHAUER , 1990: 137, § 19).

Schopenhauer constrói uma filosofia original muito mais diferente e ousada do que a
de Kant, em que a coisa-em-si   é inacessível ao conhecimento humano, um elemento
além dos limites das estruturas do próprio ato cognitivo. Schopenhauer, ao contrário,
abordar a própria coisa-em-si   como a raiz metafísica de toda a realidade como
 pretendeu abordar
sendo a vontade.
A filosofia de Schopenhauer entende o real como se fora, em si mesmo, cego e
irracional, enquanto a vontade e as formas racionais da consciência não passariam de
ilusórias aparências, e a essência de todas as coisas seria alheia à razão. Em síntese,
afirma que: “A consciência é a mera superfície de nossa mente, da qual, como da terra,
não conhecemos o interior, mas apenas a crosta” (Schopenhauer, 1990; 228, § 32).
Vemos assim iniciada a dialética inconsciente x consciente, irracional x racional, onde o
 primeiro
rimeiro representa, assim, papel fundamental nana filosofi
filosofiaa de Schopenhauer
Sc hopenhauer..
Sob esse aspecto, podemos dizer que o filósofo Schopenhauer antecipou-se a uma das
concepções mais importantes da psicologia de Jung, a realidade objetiva da psique, uma
experiência superlativamente real conforme discute em suas obras completas.

Sobre as dores do mundo – viver é sofrer?

Para Schopenhauer, a idéia da vontade ocupa o lugar de raiz metafísica do mundo e da


conduta humana sendo, a um só tempo, razão e fonte de tudo, inclusive de todos os
sofrimentos. É um querer irracional e inconsciente, inerente à existência do homem,
gerando inevitavelmente a dor. Segundo o filósofo, o que se conhece como felicidade

86
seria apenas a interrupção temporária de um processo de infelicidade, e a lembrança de
um sofrimento passado criaria a ilusão de um bem-estar presente.
É complexa a compreensão dessa visão de mundo, já que exige que tenhamos
condição de apreender, até mesmo pela observação não-sistemática, que a vida vive e se
alimenta da morte. Em suas memórias, no ápice de sua maturidade, Jung mostra-se
sensível a esse ponto de vista quando fala da crueldade da natureza proveniente da
cegueira da vontade criadora do mundo quando assim enuncia:

T UDO O QUE OBSERVARA EM MINHA INFÂNCIA CONFIRMAVA ESSA VISÃO: OS PEIXES DOENTES E AGONIZANTES, AS
RAPOSAS SARNENTAS , OS PÁSSAROS MORTOS DE FRIO E FOME, A TRAGÉDIA IMPIEDOSA ENCOBERTA PELAS CAMPINAS
FLORIDAS : MINHOCAS TORTURADAS AT É A MORTE PELAS FORMIGAS , INSETOS QUE SE DESPEDAÇAVAM AOS POUCOS
ET C.
ETC POR  OUTRO LADO, MINHAS EXPERIÊNCIAS ACERCA DOS HOMENS CONTRADIZIAM A CRENÇA  NUMA BONDADE
HUMANA ORIGINAL E EM SUA MORALIDADE . JÁ ME CONHECIA SUFICIENTEMENTE PARA SABER  QUE  NÃO HAVIA ENTRE
MIM E UM ANIMAL MAIS DO QUE UMA DIFERENÇA DE GRAU (J UNG, MSR, 1968: 71).

Todo prazer é ponto de partida de novas aspirações, sempre obstadas e sempre em


luta por sua realização: “Viver é sofrer”. Sua compreensão sobre a existência, o ser e o
viver em muito pode contribuir para a discussão sobre o processo e o fenômeno da
metanóia e da individuação. É preciso que nos aproximemos um pouco mais de sua
doutrina quando diz que:

SENTIMOS A DOR , MAS  NÃO A AUSÊNCIA DA DOR ; SENTIMOS


SENTIMOS A INQUIETAÇÃO , MAS  NÃO A AUSÊNCIA DA INQUIETAÇÃO ;
O TEMOR , MAS  NÃO A SEGURANÇA . SENTIMOS O DESEJO E O ANELO, COMO SENTIMOS A FOME E A SEDE; MAS APENAS
SATISFEITOS, TUDO ACABA, ASSIM COMO O BOCADO QUE, UMA VEZ ENGOLIDO, DEIXA DE EXISTIR  PARA A  NOSSA
SATISFEITOS
SENSAÇÃO. E NQUANTO
QUANTO POSSUÍMOS OS TRÊS MAIORES BENS DA VIDA, SAÚDE, MOCIDADE E LIBERDADE,  NÃO TEMOS
CONSCIÊNCIA DELES, E SÓ OS APRECIAMOS DEPOIS DE OS HAVERMOS PERDIDO
PERDIDO, PORQUE ESSES TAMBÉM SÃO BENS
EGAT IVOS. SÓ  NOTAMOS
 NEGAT OTAMOS OS DIAS FELIZES DA  NOSSA VIDA PASSADA DEPOIS DE DAREM LUGAR  AOS DIAS DE TRISTEZA.
À MEDIDA QUE OS  NOSSOS PRAZERES AUMENTAM, TORNAMO- NOS CADA VEZ MAIS INSENSÍVEIS; O HÁBITO  NÃO É JÁ UM
PRAZER . POR  ISSO MESMO A  NOSSA FACULDADE DE SOFRER  É MAIS VIVA; TODO O HÁBITO SUPRIMIDO CAUSA UM
SENTIMENTO DOLOROSO. AS HORAS CORREM TANTO MAIS RÁPIDAS QUANTO MAIS AGRADÁVEIS AGRADÁ VEIS SÃO, TANTO MAIS
DEMORADAS QUANTO MAIS TRISTES, POR  QUE O GOZO  NÃO É POSITIVO, MAS SIM A DOR , CUJA PRESENÇA
PRESENÇA SE FAZ
SENTIR . O ABORRECIMENTO DÁ- NOS A  NOÇÃO DO TEMPO, A DISTRAÇÃO TIRA- A. (...). É POR  ESTE MOTIVO QUE
TODOS OS POETAS SÃO OBRIGADOS A COLOCAR  OS SEUS HERÓIS EM SITUAÇÕES CHEIAS DE ANSIEDADES E DE
TORMENTOS , A FIM DE OS LIVRAREM DELAS : DRAMA E POESIA ÉPICA SÓ  NOS MOSTRAM OS HOMENS QUE LUTAM
LUTAM, QUE
SOFREM MIL TORTURAS , E CADA ROMANCE OFERECE- NOS EM ESPETÁCULO OS ESPASMOS E AS CONVULSÕES DO POBRE
PO BRE
CORAÇÃO HUMANO. VOLTAIRE, O FELIZ V OLTAIRE, QUE T ÃO FAVORECIDO FOI PELA  NATUR
ATUR EZA, PENSA COMO EU,
QUANDO DIZ:“A FELICIDADE  NÃO PASSA DUM SONHO, SÓ A DOR  É REAL”; E ACRESCENTA: “HÁ OITENTA ANOS QUE O
EXPERIMENTO. NÃO SEI FAZER  OUTRA COISA SENÃO RESIGNAR  - ME E DIZER  A MIM MESMO QUE AS MOSCAS  NASCERAM
PARA SEREM COMIDAS PELAS ARANHAS , E OS HOMENS PARA SEREM DEVORADOS PELOS PRAZERES” (S CHOPENHAUER ,
1931: 25-26).

Em sua obra  As dores


dores do mundo,  o filósofo elabora questionamentos pertinentes ao
nosso tema no que diz respeito à segunda metade da vida, em que parece referir-se a um
encontro com o destino e, fundamentalmente, à transcendência como fenômeno natural,

87
inerente à individuação conforme fala da dor na segunda metade da vida. Nesse
 particul
articular,
ar, lemos:
lemos:

E NQUANTO
QUANTO A PRIMEIRA METADE DA VIDA É APENAS UMA INFATIGÁVEL ASPIRAÇÃO DE FELICIDADE, A SEGUNDA
METADE, PELO CONTRÁRIO, É DOMINADA POR  UM SENTIMENTO DOLOROSO DE RECEIO, PORQUE SE ACABA POR 
PERCEBER  MAIS OU MENOS CLARAMENTE QUE TODA A FELICIDADE  NÃO PASSA DE QUIMERA, QUE SÓ O SOFRIMENTO É
REAL. POR  ISSO OS ESPÍRITOS SENSATOS VISAM MENOS AOS PRAZERES DO QUE A UMA AUSÊNCIA DE DESGOSTOS, A UM
ESTADO DE ALGUM MODO INVULNERÁVEL . – NOS MEUS ANOS DE MOCIDADE , UMA CAMPAINHADA À PORTA CAUSAVA-
ME ALEGRIA PORQUE PENSAVA: “BOM! É QUALQUER  COISA QUE SUCEDE”. MAIS TARDE, EXPERIMENTADO
EXPERIMENTADO PELA VIDA,
ESSE MESMO RUÍDO DESPERTAVA- ME UM SENTIMENTO VIZINHO DO MEDO; DIZIA DE MIM PARA MIM: “QUE SUCEDERÁ
SUCEDERÁ?”
(S CHOPENHAUER , 1931; 17).

Sua perspectiva é contundente quando fala da velhice, como um ocaso da pessoa e da


 personali
ersonalidade, do viver
viver e do próprio
próprio ser, quando continua a comentar:

 NA VELHICE AS PAIXÕES E OS DESEJOS EXTINGUEM-SE UNS APÓS OUTROS , À MEDIDA QUE OS OBJETOS DESSAS PAIXÕES
SE TORNAM INDIFERENTES ; A SENSIBILIDADE DIMINUI, A FORÇA DA IMAGINAÇÃO TORNA-SE SEMPRE MAIS FRACA, AS
IMAGENS EMPALIDECEM, AS IMPRESSÕES
IMPRESSÕES JÁ  NÃO ADEREM, PASSAM SEM DEIXAR  VESTÍGIOS , OS DIAS DECORREM CADA
RÁPIDOS, OS ACONTECIMENTOS PERDEM A SUA IMPORTÂNCIA
VEZ MAIS RÁPIDOS IMPORTÂNCIA, TUDO SE DESCOLORA . O HOMEM
CAMBALEANDO OU REPOUSA A UM CANTO,  NÃO SENDO MAIS DO QUE A SOMBRA,
ACABRUNHADO PELA IDADE PASSEIA CAMBALEANDO
O FANTASMA DO SEU SER  PASSADO. VEM A MORTE, QUE LHE RESTA PARA DESTRUIR . UM DIA A SONOLÊNCIA MUDA-SE
EM ÚLTIMO SONO E OS SEUS SONHOS ... JÁ INQUIETAVAM
INQUIETAVAM H AMLET  NO CÉLEBRE MONÓLOGO . CREIO QUE DESDE ESSE
MOMENTO SONHAMOS (S CHOPENHAUER , 1931; 18).

Em seu livro de memórias, cabe observar e ratificar que esse é um dos aspectos que
revela a singularidade e a propriedade de Schopenhauer, ou seja, inserir o sofrimento e a
dor que constituem uma das faces mais significativas da vida humana.
Sua dura e pouco simpática obra foi profundamente influenciada pelo pensamento e
filosofia dos Upanishades e, de alguma forma, também influenciou o pensamento de
ietzsche no que diz respeito à concepção da vida, da tragédia e do destino.
Dentro do tema que procuramos discutir, podemos ainda destacar uma outra passagem
apropriada à discussão com expressivo destaque em sua obra  As Dores do Mundo:

T ODO HOMEM PRI MEIROS SONHOS DA MOCIDADE , QUE TEM EM CONSIDERAÇÃO A SUA PRÓPRIA
QUE DESPERTOU DOS PRIMEIROS
EXPERIÊNCIA E A DOS OUTROS , QUE ESTUDOU A HISTÓRIA DO PASSADO
PASSADO E A DA SUA ÉPOCA, SEM QUAISQUER  PRECON-
TURBAM O ESPÍRITO, ACABARÁ POR  CHEGAR  À CONCLUSÃO QUE
CEITOS DEMASIADO ARRAIGADOS QUE  NÃO LHE PER  TURBAM
ESTE MUNDO DOS HOMENS É O REINO DO ACASO E DO ERRO, QUE O DOMINAM E O GOVERNAM A SEU MODO SEM
ALGUMA, AUXILIADOS PELA LOUCURA E PELA MALDADE
PIEDADE ALGUMA MALDADE, QUE  NÃO CESSAM DE BRANDIR  O CHICOTE. POR  ISSO,
HOMENS SÓ APARECE APÓS GRANDES ESFORÇOS ; QUALQUER  INSPIRAÇÃO  NOBRE E
O QUE HÁ DE MELHOR  ENTRE OS HOMENS
DIFICILMENTE ENCONTRA OCASIÃO DE SE MOSTRAR  , DE PROCEDER , DE SE FAZER  OUVIR  , AO PASSO QUE O
SENSATA DIFICILMENTE
ABSURDO E A FALSIDADE  NO DOMÍNIO DAS IDÉIAS , A BANALIDADE E A VULGARIDADE  NAS REGIÕES
RE GIÕES DA ARTE, A MALÍCIA
E A VELHACARIA  NA VIDA PRÁTICA, REINAM SEM PARTILHA, E QUASE SEM INTERRUPÇÃO;  NÃO HÁ PENSAMENTO, OBRA
EXCELENTE QUE  NÃO SEJA UMA EXCEÇÃO, UM CASO IMPREVISTO, SINGULAR , INCRÍVEL, PERFEITAMENTE
PERFEITAMENTE ISOLADO,
COMO UM AERÓLITO PRODUZIDO DAQUELA QUE  NOS GOVERNA.
PRODUZIDO POR  UMA ORDEM DE COISAS DIFERENTE DAQUELA COM RESPEITO

88
A CADA UM EM PARTICULAR  , A HISTÓRIA DE UMA EXISTÊNCIA É SEMPRE A HISTÓRIA DE UM SOFRIMENTO
SOFRIMENTO, PORQUE
DESGRAÇAS , QUE CADA UM PROCURA
TODA A CARREIRA PERCORRIDA É UMA SÉRIE ININTERRUPTA DE REVESES E DE DESGRAÇAS
OCULTAR  , POR  QUE
QUE SABE QUE LONGE DE INSPIRAR  AOS OUTROS SIMPATIA OU PIEDADE, DÁ- LHES ENORME SATISFAÇÃO
DE TAL MODO SE COMPRAZEM EM PENSAR   NOS DESGOSTOS ALHEIOS A QUE ESCAPAM  NAQUELE MOMENTO; É RARO QUE
UM HOMEM  NO FIM DA VIDA, SENDO AO MESMO TEMPO SINCERO E PONDERADO, DESEJE RECOMEÇAR  O CAMINHO, E
 NÃO PREFIRA INFINITAMENTE O  NADA ABSOLUTO (S CHOPENHAUER , 1931; 18-19).

A supressão das dores do mundo

Mas, apesar de todo o seu pessimismo, Schopenhauer aponta algumas duas grandes
formas para a suspensão da dor. No primeiro momento, o caminho para a supressão da
dor encontra-se na contemplação artística. A contemplação desinteressada das idéias
seria um ato de intuição artística e permitiria a contemplação da vontade em si mesma, o
que, por sua vez, conduziria ao domínio da própria vontade.
Assim, o intelecto e a inteligência deixam de ocupar a posição ativa, de atriz, para
assumir a posição contemplativa, de espectadora. A atividade artística revelaria as idéias
eternas, os protótipos, por intermédio de diversos graus, passando sucessivamente por 
diferentes expressões até que encontrasse na música sua máxima expressão. Para
Schopenhauer, pela primeira vez na história da filosofia, a música ocupa o primeiro lugar 
entre todas as artes. Liberta de toda referência específica aos diversos objetos da
vontade, a música poderia exprimir a vontade em sua essência geral e indife renciada,
constituindo um meio capaz de propor a libertação em face dos diferentes aspectos
assumidos pela vontade.
A libertação proporcionada pela contemplação da arte, segundo Schopenhauer, não é,
contudo, total e completa. A arte significa apenas um distanciamento relativamente
 passagei
assageiro
ro e não a supressão da vontade. P ara que atinja
atinja a libertação, é necessário que o
homem ascenda a um nível da conduta essencialmente ética, uma espécie de etapa
superior no processo de superação das “dores do mundo”, a grande e definitiva
metanóia.
A ética de Schopenhauer, a grande transformação que elevaria o Homem ao Princípio
da Individuação não está em nenhuma condição ligada à noção de “dever”.
Schopenhauer não menciona quaisquer formas imperativas de filosofia, já que assim
seria considerada como formas de coerção. Prefere não se apoiar em mandamentos, mas
sim, na noção de que o caminho é a contemplação da verdade e o caminho de acesso ao
 bem.
Para Schopenhauer, o egoísmo, aquilo que faz do homem seu pior inimigo, advém da
ilusão ou mesmo de vontades independentes que afirmam seus ímpetos individuais e
assim constrói sua visão moral do mundo a partir de uma profunda reflexão sobre esse
tema. Para ele, o egoísmo é a própria forma da vontade de viver, e, através do egoísmo
do eu, considerado como uma gota d’água no oceano, se revela a contradição íntima da
vontade.
O egoísmo, para Schopenhauer, atinge a sua suprema intensidade nos casos aberrantes

89
dos grandes tiranos, sendo o princípio e a fonte do que denomina como maldade. Em
síntese, o egoísmo e a crueldade são duas molas de impulso, todas fundamentais,
fazendo a diferença entre o eu e o não-eu, entre mim e alguém. Em sua visão, todos
somos egoístas, os animais inclusive, os cruéis, e de fato, é bastante elogiado quando
alguém abandona essa perspectiva em favor de um eu carente, o qual pode até matar a
 pessoa caridosa após essa tê-lo ajudado.
 No entanto, a pessoa compassiva
compassiva deix
deixa-se seduzir
seduzir pelo
pelo amor puro e ampli
amplia seus
horizontes para o bem da humanidade e se torna benevolente e misericordiosa. O
fundamento da ética de Schopenhauer indica um otimismo prático, ou seja, estar à mercê
da mola, impulso fundamental de uma boa ação, que anula as duas outras, o egoísmo e a
crueldade. Para ele o egoísmo é a fonte da injustiça e esta é tida como ato de empurrar a
afirmação de nossa vontade para além dos limites de sua forma visível, até negá-la.
A superação do egoísmo somente seria possível mediante o conhecimento da natureza
única universal da vontade. Como conseqüência moral do desaparecimento de sua
individualidade, o homem pode tornar-se bom; ao espírito de luta contra os semelhantes
segue-se o espírito de simpatia. Libertado, pela etapa ética, o homem atinge o princípio
que é o fundamento de toda verdade moral: “Não prejudiques pessoa alguma, sê bom
com todos”.
Essa ética da piedade e da comiseração, segundo Schopenhauer, encontrou sua mais
acabada expressão nos evangelhos, onde “ama a teu próximo como a ti mesmo” constitui
o princípio fundamental da conduta. Mas nem mesmo a ética da piedade possibilitaria ao
homem atingir a felicidade última. Para Schopenhauer, a mais completa forma de
salvação para o homem somente pode ser encontrada na renúncia quietista ao mundo e a
todas as suas solicitações, na mortificação dos instintos, na auto-anulação da vontade e
na fuga para o nada.
Um dos aspectos mais surpreendentes em Schopenhauer é sua capacidade de retratar 
o sofrimento do homem comum valendo-se de um estilo de narrativa simples, porém
contundente. Mesmo diante desse pessimismo podemos encontrar, paradoxalmente, em
sua doutrina, palavras que expressam a possibilidade de felicidade em um mundo até
então concebido onde só a dor é real. Em  A arte de ser feliz, obra composta por 
cinqüenta máximas de seu pensamento, de natureza quase pedagógica, o filósofo
apresenta um prontuário de regras e comportamentos, contemplando também algumas
questões pertinentes a esse trabalho, quando afirma:

O QUE TORNA INFELIZ A PRIMEIRA METADE DA VIDA, QUE APRESENTA TANTAS VANTAGENS EM RELAÇÃO À SEGUNDA, É
A BUSCA DA FELICIDADE, COM BASE  NO FIRME PRESSUPOSTO DE QUE ESTA DEVA SER  ENCONTRÁVEL  NA VIDA: O
RESULTADO SÃO ESPERANÇAS E INSATISFAÇÕES CONTINUADAMENTE FRUSTRADAS . VISUALIZAMOS IMAGENS
ENGANOSAS DE UMA FELICIDADE SONHADA E INDETERMINADA, ENTRE FIGURAS ESCOLHIDAS POR  CAPRICHO, E
PROCURAMOS EM VÃO SEU ARQUÉTIPO.

 Na segunda
segunda metade da vida,
vida, a preocupação com a infelici
nfelicidade
dade toma o lug
ugar
ar da
aspiração sempre insatisfeita à felicidade; no entanto, encontrar um remédio para tal

90
 problema
roblema é objetivamente
objetivamente possível (Schopenhauer,
(Schopenhauer, 2001: 64-65).

A velhice, metanóia e transcendência

 No prólogo
prólogo do seu livro de memóri
mem órias,
as, Jung afirma:
afirma:

MINHA REALIZOU.
VIDA É HISTÓRIA DE UM INCONSCIENTE QUE SE REALIZOU TUDO O QUE  NELE REPOUSA ASPIRA A TORNAR - SE
UM ACONTECIMENTO, E A PERSONALIDADE, POR  SEU LADO, QUER  EVOLUIR  A PARTIR  DE SUAS CONDIÇÕES
INCONSCIENTES E SE EXPERIMENTAR  COMO TOTALIDADE (J UNG, MSR, 1968: 19).

Com essas palavras, parece sintetizar a mais pura essência de seu pensamento e o que
há de mais significativo, íntimo e delicado no que se refere à metanóia ou ao Processo de
Individuação e à vida. Com a simplicidade que só a sabedoria pode trazer, apresenta o
Processo de Individuação, a metanóia, como um inevitável e insólito encontro com o
destino, ou seja, com a realização, até as últimas conseqüências, de seu próprio Eu em
todas as suas potencialidades, luzes e sombras, a totalidade de cada singularidade.
Temos a íntima sensação de que nessas palavras estão contidas de forma sinóptica a
compreensão e a visão de mundo de um homem que viveu até as últimas conse qüências
a sua própria individualidade e seu destino. Jung parece apresentar a narrativa de seu
 próprio
róprio processo e confronto indivi
ndividual
dual com a velhi
velhice,
ce, com o destino
destino e com o seu
 próprio
róprio caráter. James Hill
Hillman,
man, em seu livro  A Força do Caráter   lida com o velho
ditado: ”caráter é destino”, onde lemos:

(...) POIS O QUE RESTA É O PEDAÇO DE DESTINO QUE O CARÁTER  ÚNICO DE CADA PESSOA PERSONIFICA. SER  ÚNICO É
SER  ÍMPAR  , DIFERENTE, ATÍPICO, DIVERSO DE QUALQUER  OUTRA COISA EM QUALQUER  LUGAR  ; AS SINGULARIDADES
QUE UMA PESSOA TENTA ABAFAR  DURANTE A MAIOR  PARTE DA VIDA REEMERGEM  NO FINAL DA VIDA PARA COMPOR  A
IMAGEM QUE É DEIXADA (H ILLMAN, 2001: 28).

Ao enfocar propriamente a metanóia como um fenômeno natural e inerente ao


Processo de Individuação, observa-se que, no âmbito das relações familiares, é com o
momento e com a dimensão psíquica da velhice que a família e o indivíduo deverão,
ambos, se confrontar, suscitando assim o caráter e o destino pessoal de cada um, tendo
em vista que os artifícios e as necessidades da adaptação social não só não funcionam
mais, como também não fazem mais sentido, pois, nesse momento, o que se constitui
como o mais importante e significativo é o encontro com o si-mesmo.
As discussões sobre as relações com a velhice e com o idoso parecem sugerir, em
essência, a mesma problemática em que estão envolvidas as relações com a infância e
com as crianças. Os fenômenos inerentes às relações familiares e culturais para com
essas dimensões psíquicas vistas como extremos da vida são praticamente análogos.
O mundo, criado à imagem e semelhança de seus criadores, parece não contemplar um

91
lugar natural referente aos extremos da existência, fenômeno que faz com que grande
 parte dos programas
programas de inclusão
nclusão promovida
promovida pelos
pelos órgãos
órgãos e disposi
dispositi
tivos
vos governamentais
overnamentais
careça de sensibilidade e profundidade na abordagem do tema.
Habitualmente, os programas públicos e privados para idosos lembram muito o de
creches para crianças, onde cada qual procura, a seu modo, a formação de grupos
lúdicos para lazer criando, tal como é feito com crianças, um mundo à parte, onde todos
 poderão continuar
continuar a viver
viver livremente
livremente em outro tipo de isol
isolamento
amento social.
social.
A utopia da inclusão social e cultural parece terminar na concepção com a formação de
grupos específicos para idades específicas voltados para um tipo de recreação que, por 
vezes, conduz ao isolamento. A velhice, ou mesmo o velho, são tratados de forma
equivocada, pois, lamentavelmente, ainda são sinônimos de um significado muito distante
da concepção filosófica e psicológica de individua ção, espiritualidade e transcendência.
O comportamento do idoso e seu caráter individual e particular em muitos detalhes são
considerados como desvio típico da idade e daí parece surgir a necessidade de isolar 
essas características em pequenos grupos, evitando vários incômodos e o contágio
 psíquico
síquico que podem gerar. gerar. Criam-se para tal,
tal, espaços, ativi
atividades,
dades, dietas,
dietas, programas,
programas,
vestuário e diversos outros elementos que, agregados, definem um grupo social típico
que poderá “aproveitar a vida” de forma descompromissada, tendo em vista a utilidade,
útil ao mundo patriarcal.
Há, no entanto, uma outra idéia de velho e de velhice que é interessante identificar e
desenvolver a fim de que possa ser possível apontar para a condição e para a
 possibi
ossibillidade de transcendência.
transcendência. Sabendo que essa possibi possibillidade
idade é viva viva e ageage
sincronisticamente ao longo da vida e vem por isso esboçando sua ação, mais
 particul
articularmente
armente na segunda
segunda metade da vida, vida, onde nos apresenta o encontro
transcendente com o caráter e com o próprio destino que, acima de tudo, sempre
estiveram presentes em todos os momentos da existência. Parece que é essa dimensão
 psíquica,
síquica, e não uma época específica
específica com uma psicol
psicolog
ogiia própria,
própria, que ainda
ainda é vista
vista
como uma ameaça a um ego que insiste narcisicamente em se perpetuar petrificado.
Velhice e velho ainda sugerem um significado de petrificação, decrepitude, feiúra,
inutilidade e tudo o que há de pior, concepção que contradiz diametralmente a idéia de
um encontro com o destino e com o si-mesmo.
Jung parece sugerir e anunciar, em grande parte de sua obra, esse encontro e a
 possibi
ossibillidade da transcendência
transcendência com o confronto origoriginado com o destino
destino superior
superior,, uma
dimensão e uma necessidade inerente ao Processo de Individuação. Jung também afirma
que uma psicologia da individuação sugere a vida de Cristo como um modelo mítico, ou
seja:

O DRAMA DA VIDA DE C RISTO DESCREVE, EM IMAGENS SIMBÓLICAS , OS EVENTOS DA VIDA CONSCIENTE – ASSIM
COMO DA VIDA QUE TRANSCENDE A CONSCIÊNCIA , DE UM HOMEM QUE FOI TRANSFORMADO PELO SEU DESTINO
SUPERIOR  (J UNG, OC XI: 233).

Assim sendo, achamos interessante poder pensar em uma analogia da velhice e do

92
idoso com a transcendência a partir do encontro com seu próprio eu, o si-mesmo e
conseqüentemente o  self . Psicologicamente, seria partir da condição inicial da psique
como um só centro, o  self   para uma condição final na individuação que é a elipse com
dois centros e uma interessante relação entre esses focos, uma nítida analogia com a
formação do eixo ego-self .
A melhor representação do si-mesmo para Jung é a imago-dei, uma expressão que se
conceituou como sendo de natureza numinosa  e, em alguns textos de sua obra,
 particul
articularmente
armente no volume
volume IX, fez a representação através de Cristo
Cristo como a melhor 
melhor 
representação do arquétipo
arquétipo do  self . Em outra obra afirma:

SEMPRE QUE O ESPÍRITO DE D EUS É EXCLUÍDO DOS CÁLCULOS HUMANOS , SEU LUGAR  É TOMADO POR  UM SUCEDÂNEO
INCONSCIENTE . EM S CHOPENHAUER  ENCONTRAMOS A VONTADE INCONSCIENTE COMO  NOVAOVA DEFINIÇÃO DE D EUS; EM
CARUS É O INCONSCIENTE E EM H EGEL A IDENTIFICAÇÃO E A INFLAÇÃO, A EQUIPARAÇÃO PRÁTICA DA RAZÃO
FILOSÓFICA AO ESPÍRITO PURO E SIMPLES, TORNANDO, ASSIM, APARENTEMENTE POSSÍVEL AQUELE APRISIONAMENTO
DO OBJETO, CUJA FLORAÇÃO MAIS FULGURANTE É A SUA FILOSOFIA DO E STADO (J UNG, O.C., VIII: 359).

 Na verdade, o encontro com o caráter, com o destino


destino e com a indivi
ndividual
dualiidade dá
condições e possibilidades para um encontro consigo mesmo, com sua própria história,
uma verdadeira re-significação e re-ligação do significado de cada existência, tarefa que
faz da segunda metade da vida uma experiência tão plena, estruturante e, sobretudo,
necessária. De acordo com as palavras do filósofo, temos:

POUCOS HOMENS , PELO SIMPLES CONHECIMENTO REFLETIDO DAS COISAS , CONSEGUEM PENETRAR  A ILUSÃO DO
“PRINCIPIUM INDIVIDUATIONIS”, POUCOS HOMENS POSSUIDORES DUMA PERFEITA BONDADE DE ALMA, DE CARIDADE
SAL, CHEGAM POR  FIM A RECONHECER  TODAS AS DORES DO MUNDO COMO AS SUAS PRÓPRIAS , PARA OBTEREM
UNIVER  SAL
A  NEGAÇÃO DA VONTADE . MESMO  NO QUE MAIS SE APROXIMA DESSE GRAU SUPERIOR , AS COMODIDADES PESSOAIS, O
ENCANTO FASCI  ADOR  DO MOMENTO, A VISÃO DA ESPERANÇA, OS DESEJOS INCESSANTEMENTE RENOVADOS SÃO UM
FASCI NADOR 
ETERNO OBSTÁCULO À RENÚNCIA, UM ETERNO INCENTIVO À VONTADE ; DONDE RESULTA QUE PERSONIFICARAM  NOS
DEMÔNIOS A INFINIDADE DE SEDUÇÕES QUE  NOS TENTAM E ATRAEM.
T EM, PORTANTO, A  NOSSA VONTADE DE SER  QUEBRADA POR  UM IMENSO SOFRIMENTO, ANTES QUE CHEGUE À
RENÚNCIA DE SI PRÓPRIA. QUANDO PERCORREU TODOS OS GRAUS DA ANGÚSTIA
ANGÚSTIA, QUANDO, APÓS UMA SUPREMA
RESISTÊNCIA, TOCA O ABISMO DO DESESPERO, O HOMEM VOLTA SUBITAMENTE A SI, CONHECE-SE , CONHECE O MUNDO,
TRANSFORMA - SE -LHE A ALMA, ELEVA- SE ACIMA DE SI MESMO E DE TODO O SOFRIMENTO; ENTÃO PURIFICADO ,
SANTIFICADO DE ALGUM MODO  NUM REPOUSO,  NUMA FELICIDADE INABALÁVEL ,  NUMA ELEVAÇÃO INACESSÍVEL,
RENUNCIA A TODOS OS OBJETOS DOS SEUS APAIXONADOS DESEJOS , E RECEBE A MORTE COM ALEGRIA. COMO UM
PÁLIDO CLARÃO , A  NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIVER  ; ISTO É, A LIBERTAÇÃO, JORRA SUBITAMENTE DA CHAMA
PURIFICADORA DA DOR  (S CHOPENHAUER , 1931: 142-143).

Retomando à eudemonologia do filósofo, finalizamos com a  Máxima 28  – “Ainda


sobre as idades”, quando se refere às idades:

93
SEM RAZÃO, COMPADECE- SE DA FALTA DE ALEGRIAS  NA VELHICE E LAMENTA- SE QUE VÁRIOS PRAZERES LHES SÃO
EGADOS .
 NEGADOS TODO PRAZER  É RELATIVO, OU MELHOR , É UMA SIMPLES FORMA DE SATISFAZER  E SACIAR  UMA
 NECESS IDADE. O FATO DE O PRAZER  SE EXAURIR  COM A ELIMINAÇÃO DA  NECESS IDADE É T ÃO POUCO DEPLORÁVEL
QUANTO O DE ALGUÉM  NÃO CONSEGUIR  MAIS COMER  DEPOIS DA REFEIÇÃO, OU  NÃO CONSEGUIR  MAIS DORMIR  DEPOIS
DE UMA  NOITE DE SONO. DE MODO MAIS CORRETO, PLATÃO CONSIDERA A VELHICE COMO UM ESTÁGIO FELIZ DA VIDA,
POIS  NELA SE AQUIETA O DESEJO DE POSSUIR  MULHERES . COMODIDADE E SEGURANÇA SÃO AS PRINCIPAIS
 NECESS IDADES DA VELHICE: POR  ISSO,  NESSA ETAPA DA VIDA, AMA- SE SOBRETUDO O DINHEIRO, COMO O SUBSTITUTO
DAS ENERGIAS QUE FALTAM. ALÉM DISSO, OS PRAZERES DA MESA SUBSTITUEM OS DO AMOR  . A  NECESS IDADE DE VER ,
IDADE DE ENSINAR  E FALAR  . MAS É UMA SORTE QUANDO AO ANCIÃO
VIAJAR  E APRENDER  É SUPLANTADA PELA  NECESS IDADE
RESTA O AMOR  PELO ESTUDO, PELA MÚSICA E PELO TEATRO (S CHOPENHAUER , 2001: 70-71).

Enfim, sabemos todos que a maior transcendência é a re-significação da morte como


uma meta natural que abre as portas do eterno e do infinito, pois sabemos, conforme diz
Jung:

(...) DO MEIO DA VIDA EM DIANTE, SÓ AQUELE QUE SE DISPÕE A MORRER  CONSERVA A VITALIDADE , PORQUE  NA HORA
SECRETA DO MEIO- DIA DA VIDA INVERTE- SE A PARÁBOLA E  NASCE A MORTE. A SEGUNDA METADE DA VIDA  NÃO
SIGNIFICA SUBIDA, EXPANSÃO , CRESCIMENTO, EXUBERÂNCIA, MAS MORTE, PORQUE O SEU ALVO É O SEU TÉRMINO. A
RECUSA EM ACEITAR  A PLENITUDE DA VIDA EQUIVALE A  NÃO ACEITAR  O SEU FIM . T ANTO UMA COISA COMO OUTRA
SIGNIFICAM  NÃO QUERER  VIVER  . E  NÃO QUERER  VIVER  É SINÔNIMO DE  NÃO QUERER  MORRER . A ASCENSÃO E O
DECLÍNIO FORMAM UMA SÓ CURVA (J UNG, O.C., VOL. VIII, § 800).

Além dessas citações e considerações apresentadas, tenho a convicção, extraída de


mim mesmo e de minha própria vida, de que, até hoje, cada instante vivido foi trilhado
rumo a uma meta. Experimento a cada momento a consciência de uma finalidade que
haverá de se revelar em sua totalidade, permitindo que eu possa nascer e abrir as portas
que me conduzam para a eternidade e para a infinitude da vida, pois, em total acordo
com Jung: “a meta não está no cume, mas no vale onde a subida começou” (Jung, O.C.,
Vol. VIII, § 798).

Referências Bibliográficas

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94
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* Graduado em Engenharia Civil; Psicologia; pós-graduado em Psicoterapia Analógica Holista (SBH-SP); em Psicologia Junguiana
(IBMR-RJ); mestre em Filosofia; professor do curso de pós-graduação em Psicologia Junguiana (IBMR-RJ); Psicólogo clínico e
trainee da AJB.
AJB. Part icipação: - “ Pinochio e Gepeto - Uma abordagem
abordagem arquetípica do Puer e do Senex”, In: BOECHA
BOECHAT, T, W.  Masculino
em questão. 
questão.   Pet rópolis:
róp olis: Vozes, 1998.
19 98. - “ Per spect ivas de abordagem
abordagem da religião Junguina” –  Revista de Filosofia e
religião – Abordagem Junguina”
Teologia d o I nstituto
nstituto Teológico Arquidiocesano
Arquidiocesano S to. An tônio  – vol. 6, n.° 23, – 2000.

95
9
O caminho do espírito na ciência e nos sonhos
Alvaro de Pinheiro Gouvêa*

Introdução

A HISTÓRIA DO E SPÍRITO É SUA AÇÃO ( ATIVIDADE), POIS O E SPÍRITO É O QUE FAZ E SUA AÇÃO CONSISTE EM FAZER 
QUE SE TORNE, ELE PRÓPRIO, ENQUANTO ESPÍRITO, OBJETO DE SUA CONSCIÊNCIA , APREENDENDO- SE E EXPLICITANDO-
SE PARA SI MESMO. ESS A APREENSÃO DE SI MESMO É SEU SER  E SEU PRINCÍPIO, EFETUA-SE POR  ETAPAS SUCESSIVAS E
CADA APREENSÃO, UMA VEZ COMPLETA, É, AO MESMO TEMPO, SUA ALIENAÇÃO E SUA PASSAGEM PARA UM OUTRO
(HEGEL IN  CORBISIER, 1981: 126).

Ao escrever sobre as pulsões e os destinos das pulsões em seu livro  Metapsicologia


etapsicologi a,
Freud reconhecerá, desde o início, que os conceitos científicos que fundamentam as
ciências nem sempre começam com precisão e nitidez. Freud diz textualmente: “Sempre
escutamos formular a seguinte exigência: uma ciência deve ser construída a partir de
conceitos fundamentais claros e muito bem definidos. Na realidade, nenhuma ciência,
mesmo a mais exata, segue essa norma” (FREUD, 1940: 11). Na verdade os conceitos
nascem de fenômenos observados em nosso cotidiano. Ao juntar e ordenar 
sistematicamente tais conteúdos, estaríamos produzindo conhecimento e,
conseqüentemente, fazendo ciênciciência.
a.
Os fenômenos por nós observados transformam-se em idéias e finalmente em
conceitos científicos. Qualquer observação científica está fundada em fenômenos
constatados e testemunhados pelo homem. As ciências e as teorias científicas nascem de
nossas experiências subjetivas quando em relação com o mundo que nos cerca. Sendo
assim, a vida cotidiana com a série de nossas experiências e percepções diárias está na
 base das teorias
teorias científi
científicas.
cas. P oderíamos então dizer
dizer que mesmo o homem mais comum
está fazendo ciência quando expõe no cotidiano sua interioridade e intimidade.
Como é o próprio homem que faz ciência, necessitamos de uma ferramenta humana
capaz de tratar a relação Homem/Natureza dentro de certa objetividade. Essa ferramenta
é o “testemunho”. Em meio às incertezas e indeterminações produzidas por nossa mente
somente pelo “testemunho” é que poderemos registrar de maneira correta um fato
científico. Pelo “testemunho” é que transformamos os fatos da vida cotidiana em
 pesquisa
esquisa científica.
científica. O “testemunho” é a chave mestra para aquisi
aquisição
ção de conhecimento.
Hegel, com muita propriedade, procura examinar as formas ou manifestações do “ser”

96
naquilo que ele pode saber de si mesmo. Ao tomar consciência de si mesmo, o espírito
objetiva-se em direito, em moralidade e em vida ética. Assim o espírito, além de
consciência, é consciência de si e razão. Von Franz vê a obra de Hegel como sendo “a
tentativa de dominar tudo com o intelecto” e fugir às experiências das influências
inconscientes, considerando essa atitude uma “fraqueza de Hegel” (Von Franz, 1992: 43).
Mas, na verdade, a obra de Hegel é a obra de um gênio preocupado em explicar 
racionalmente aquilo que escapa ao racional, ou seja, o próprio inconsciente. Vejo em
Freud e Jung esse mesmo desejo quando procuram mapear topograficamente através de
conceitos a estrutura básica da psique. Existe fragilidade em Hegel como existe em Freud
e na obra de Jung. Não é nada fácil fazer ciência procurando dar uma forma
sistematizada aos mecanismos que escapam ao raciocínio científico.
Escrever sobre a fenomenologia do Espírito engaja Hegel na difícil tarefa de ajuizar 
 pela
ela experi
experiênci
ênciaa precisa
precisa de uma lóg ógiica formal o que a dinâmi
dinâmicaca intersubjetiva
ntersubjetiva e
imaginária convencionou chamar de Espírito. O próprio título do livro de Hegel já
anuncia essa complexidade que é a questão da condição de possibilidade de o Espírito
 poder encarnar-se na realidade
realidade sistemati
sistematizada
zada da ling
nguag
uagem
em filo
filosófi
sófica
ca e científi
científica
ca e de
como isso se daria.
Abordar a diversidade da alma humana em seus fenômenos ditos ocultos, de forma a
trazê-los para a luz da lógica racional, não é tarefa nada fácil. Escrever ou falar sobre
essa nossa metamorfose cotidiana muitas vezes nos deixa confusos. Certamente que é
 por esse motivo que, como Hegel,
Hegel, Jung é por muitos
muitos considerado um escritor
escritor confuso.
A dramaturgia do texto  em alguns momentos  ,  tanto em Hegel como em Jung, parece
 perder o ritmo, e as idéias
déias começam
c omeçam a se embaral
e mbaralhar
har entre os concei
c onceitos
tos criados por eles.
eles.
Contudo, penetrar essa riqueza infinita que reside por trás de nossas emoções diárias,
dando a essas emoções uma sintaxe, emprestando-as conceitos novos de forma a
reproduzir em imagens o mundo imaginário do Espírito é o que Hegel tentou fazer no
que chamou “A ciência da fenomenologia do Espírito” e Jung em sua concepção do
aparelho psíquico. Ciência com consciência é o que busca Hegel, Freud e Jung.
Em a  Fenomenologia do Espírito,
Espíri to,  Hegel desenvolve idéias e mostra o poder que tem
nossa mente de tirar de si mesmo, através de um esforço da razão, da inteligência e do
afeto, o entendimento que precisamos para desvendar esse misterioso mundo
inconsciente que habita em nós. Para Hegel, o “testemunho do Espírito” é a auto-
atestação da essência absoluta, assim como para Jung todo testemunho humano não
deixa de ser um apelo à sinceridade na fé de um processo energético, originário de um
centro ordenador presente na alma humana e, denominado por ele de si-mesmo. Assim,
razão e emoção se traduziriam em imagens, produzindo nossos sonhos e nos ajudando a
“acordar para dentro”.
O Espírito se move dialeticamente de dentro para fora e de fora para dentro, que
aparece em nossos sonhos através de imagens simbólicas e nos leva a ter sonhos
 premonitóri
remonitórios.
os. Quando essas imagens premonitórias
premonitórias são discerni
discernidas
das pelo
pelo intelecto
ntelecto e pelo
pelo
ego, são anunciadoras de possíveis saídas para os acontecimentos dramáticos de nossa
vida. Tais premonições nos ajudam a ampliar nossa visão de mundo e dão sentido às

97
nossas transformações diárias.
 Nossa inspiração
nspiração básica
básica nesse trabalho
trabalho é a  Fenomenologia do Espírito, publicada em
1807 e que de início foi pensada por Hegel como ciência da experiência da consciência.
Assim, longe de ser um aprofundamento sistemático das idéias de Hegel, queremos
apenas refletir sobre a idéia de “Testemunho Histórico” e de “Testemunho do Espírito”,
relacionando essas idéias ao conceito de Si-mesmo ( Selbst  ou Self ) e Processo de
Individuação de C. G. Jung. Quando Jung fala em Processo de Individuação e da relação
 Eu-Si-mesmo  (Eixo  Ego-Self ),), de certa forma ele está abordando dentro do universo
 psicanal
sicanalíti
ítico
co a problemáti
problemática
ca da “Fenomenolog
“Fenomenologiia do Espírito”.
Espírito”. Em Jung,
Jung,  Individuação
ndivi duação é
etanóia  sendo também uma expressão psicológica para o fenômeno da exteriorização
do Espírito no mundo, o “  Zeitgeist 
eitgei st ” (Espírito da época).

O inconsciente e o “sopro espírito”

O mundo exterior não satisfaz inteiramente o íntimo encadeamento de forças interiores


que interferem e condiciona o nosso ser no mundo. Inicialmente, a urgência em nomear 
essa força indeterminada que produz padrões instintivos de comportamento no homem
(o instinto, o desejo) foi o que levou os alquimistas a falar de um princípio masculino e
ativo gerador de vida.
Hoje, o homem continua a se perguntar sobre o que ocorre em nosso interior que nos
leva a produzir um mundo ideal e subjetivo que muitas vezes se opõe ou escapa
radicalmente ao mundo exterior. Assim, a ciência continua pesquisando sobre a
imaginação e as produções de imagens com o intuito de, se não elucidar, pelo menos, vir 
a entender o fenômeno do “espírito” como lugar de produção de nossos sonhos e
devaneios.
Falar de “Espírito” é falar do “sopro” do Espírito. A noção de “Espírito” vem
associada à noção de “sopro”. O sopro de vida nasce do Espírito. Todo princípio de
entendimento da noção latina de Espírito nos remete ao termo hebreu  Ruah e à palavra
grega  pneuma.  Mas como nos diz Chevalier (Chevalier, 1982: 900): “Em todas as
grandes tradições, o sopro possui um sentido idêntico, quer se trate de  pneuma  ou de
espírito ”.
Em alemão, a palavra utilizada exaustivamente por Hegel é “ Geist ”. ”. Hegel em  A
enomenologia do Espírito( Phänomenologie des Geistes), enumera possibilidades de o
Espírito se manifestar no mundo e nos fala sobre a existência do espírito, sobre as
experiências anteriores e exteriores do espírito, sobre as figurações do espírito, sobre a
força do espírito, sobre a linguagem do espírito, sobre a representação e imagem do
espírito etc. Trata-se verdadeiramente de uma obra monumental que procura dar conta
do dinamismo do espírito no mundo e que certamente vai fundamentar todas as teorias
agora existentes sobre a noção de consciente e inconsciente.
Embora Jung tenha revelado sua admiração profunda pela obra de Kant, a sua noção
de Si-mesmo (Selbst ) nos remete à noção hegeliana de Geist   – o espírito que em sua

98
virtualidade arquetípica e inconsciente é, por excelência, o doador da forma. Enquanto
uma potência virtual, o Si-mesmo (base arquetípica do Ego) aparece como aquele que
dinamiza os pólos “matéria/espírito” e “consciência do Ego/inconsciente”. Na origem, o
Si-mesmo, enquanto “arquétipo da divindade”, é que impulsiona o inconsciente para a
fabricação de nossos sonhos, nossas crenças e imagens simbólicas.
Quando Jung fala em Processo de Individuação, ele está falando também de
fenomenologia do Espírito. O Espírito aparece então como uma espécie de atenção
interior que forma em nós esse centro ordenador (si-mesmo) que vai dar origem ao  Ego
(centro da consciência), criando uma espécie de eixo entre o Ego e o Si-mesmo (eixo
 Ego-Self ).
).
Através das imagens simbólicas produzidas pela dinâmica dialética entre o  Ego e o
Self , personificadas em nossos sonhos e devaneios, podemos avaliar a intensidade de
nosso instinto de poder, de nossa vontade, como diria Schopenhauer, da “pulsão” como
nos falou Freud, de nosso desejo e afeto como nos fala Lacan e da força de trabalho
como aparece em Marx.

Testemunho do espírito e testemunho histórico

Em seu livro  Fenomenologia do Espírito, Hegel aborda o problema do espírito como


 propici
ropiciador
ador de consciênci
consciência,
a, deix
deixando entrever duas espécies
espécies de testemunho: o
“testemunho do espírito” e o “testemunho histórico”. Pode ríamos, então, abordar o
“testemunho” de duas maneiras: a primeira seria o “testemunho do espírito” que nos
reenvia a nós mesmos em busca de uma certeza indubitável, de um cogito  que legitima e
dá veracidade àquilo que nosso ser invisivelmente capta de si mesmo, do próprio
inconsciente.
Trata-se de um testemunho que por natureza engendra sua própria veracidade. Já o
“testemunho da história”, essa segunda forma de testemunho, deixa um lastro de
evidências que só poderiam ser examinadas à luz de documentos ou da consulta às
 pessoas que viveram
viveram em determinada
determinada época. Essa exterio
exteriorização
rização na históri
históriaa será
imperfeita por estar limitada no espaço e no tempo, necessitando compor com o
“testemunho do espírito” para se tornar ciência com consciência.
Como nos diz Hegel, as ciências contêm nelas mesmas a necessidade de se
exteriorizar. Mas o objetivo primeiro continuará sempre sendo “o saber absoluto”. E
“saber seu limite é saber se sacrificar”, diz Hegel (HEGEL, 1993: 693). E este sacrifício
é a exteriorização do ser no mundo, esse parto doloroso da alma humana. Portanto, o
espírito exteriorizado guarda um movimento que se instaura no sujeito e que o faz intuir 
seu Si-mesmo em estado puro.
 Num segundo
segundo momento, essa exteri
exteriori
orização
zação se faz históri
históriaa numa sucessão lenta de
espíritos   e numa galeria de imagens dotadas de uma riqueza enorme de substâncias
advindas do próprio Si-mesmo. Assim, num afrontamento radical com a exterioridade, o
espírito se torna capaz de determinar e de ser determinado por ele mesmo, juntando as

99
imagens da consciência com as imagens do mundo. O resultado é a totalidade das
imagens do inconsciente, fruto de um saber absoluto que, ao gerar um saber lógico, será
capaz de produzir imagens fenomenológicas. Portanto, para Hegel, a consciência é a
relação determinada de um Eu com a coisa  e suas propriedades. Mas, ao mesmo tempo,
é na relação consigo mesmo que o espírito vai testemunhar dele mesmo e exercer sua
função de automediador.
Segundo Hegel, em sua própria natureza interna, o espírito testemunha dele mesmo
mediante um testemunho automediador. Assim, o Espírito seria “sujeito e objeto” de seu
 próprio
róprio testemunho. Nessa dinâmica
dinâmica automedi
a utomediadora,
adora, o homem prolong
prolongaa a voz interna do
espírito promovendo a passagem dialética à natureza. Aqui o espírito se definiria como a
idéia, que, ao alcançar o seu ser  para si,
si ,  levaria o homem a se posicionar nesse sistema
como mediador da passagem da natureza ao espírito.
espírito.

O testemunho do espírito e o Processo de Individuação

Ao se perguntar como se manifestam as formas da consciência, Hegel procura


conduzir a consciência ao nível do saber absoluto. Para isso, Hegel constrói um sistema
de significação objetiva sobre a subjetividade do espírito. Nasce assim uma Metafísica da
Subjetividade, lugar central cujo papel decisivo é levar o homem a ultrapassar a
consciência individual encaminhando-se na direção de uma consciência universal. A
consciência do Outro libera o indivíduo dele mesmo inscrevendo-o numa nova ordem
social antes percebida de maneira ingênua sem traços definidos do que era o inconsciente
e o consciente.
Em Hegel, viver é fazer história. Assim, a racionalidade se junta ao testemunho das
evidências históricas, às intuições e às certezas internas testemunhadas pelo espírito,
 para formali
formalizar em nós e no social
social o que Jung nomeou de Processo
Pr ocesso de Indivi
Individuação.
duação.
esse sentido, individuar-se também é fazer história. Todos nós somos testemunhas
históricas pelo testemunho do espírito em nós mesmos. A fenomenologia do espírito une
o visível e o invisível em nós mesmos pelo desejo e pela operação de uma “consciência
de si”, que nos insere no mundo como agentes e sujeitos desse mundo.
Percebemos, então, que a atestação da verdade que tanto buscamos em fatos do
cotidiano precisa também ser encontrada em nós mesmos pela faculdade do espírito.
Existem intuições que só o espírito poderá ofertar às nossas pesquisas científicas. Mas
essas evidências intuídas de modo nenhum escapam definitivamente ao modelo racional
das ciências exatas. As ciências exatas não podem abrir mão do modelo “subjetivo” do
“testemunho do Espírito” e, por outro lado, as ciências humanas, na qual incluímos a
 psicol
sicolog
ogiia e as diferentes
diferentes formas de abordagens
abordagens psicanal
psicanalíti
íticas,
cas, também não podem elas
 prescindi
rescindirem
rem do testemunho históri
histórico
co dos fenômenos psíquicos.
psíquicos.
Todo o trabalho de Hegel segue uma orquestração precisa que procura encarnar o
Espírito na gênese mesma da linguagem e de sua sintaxe. Jung, por sua vez, teve a
coragem de fazer ciência a partir de suas próprias experiências, procurando captar o que

100
desse processo viria de dentro do indivíduo.
O olhar de Jung é mais um olhar de dentro para fora, enfocando o espírito naquilo que
emerge dele em sua substância. Certamente que Jung, para criar a noção de Si-mesmo,
de forma consciente e racional e formalizá-lo como um dos conceitos principais da teoria
dos arquétipos, contará com a influência da filosofia de Hegel.
Seu livro  Memórias, Sonhos e Reflexões  consegue dar conta de maneira brilhante do
“testemunho histórico” e do “testemunho do espírito”, o que torna esse livro uma peça
imprescindível no domínio das ciências humanas. Nesse livro, encontramos a base
estrutural de sua teoria sobre a relação entre o Eu e o inconsciente, e da noção de “in-
consciente coletivo”.
Em sua reflexão, Jung tece um duplo caminho: primeiramente narrando suas próprias
experiências e sonhos e, num segundo momento, de maneira sistemática, inclina-se de
maneira racional e científica sobre a significação simbólica e psicológica das experiências
 por ele
ele narradas. A partir
partir dos próprios
próprios sonhos, como sujeito
sujeito e objeto de sua própria
própria
 pesquisa,
esquisa, Jung perscruta o inconsciente
inconsciente em sua dial
dialéti
ética
ca com o Eu.
Assim, empenha-se em testemunhar sobre si mesmo num “testemunho do espírito”. E,
como sujeito do discurso, procura distanciar-se de si mesmo ao perceber-se como sujeito
e objeto de sua própria pesquisa. Aborda o desejo, teoriza sobre a origem e destino das
 pulsões
ulsões e sobre a dial
dialéti
ética
ca do Eu e do Inconsci
I nconsciente,
ente, construindo
construindo a noção de Processo
Proce sso de
Individuação como sendo um movimento interno do Si-mesmo  na direção de um Eu que
se faz história na natureza e no social.

A atividade do espírito no sonho de Jung e a formação da consciência de si

Em seus escritos, Hegel e Jung anseiam por compreender de que maneira nossa
consciência se forma no mundo. Ambos apresentam a consciência de si   como vindo
tanto do interior como do exterior, embora a ênfase de Jung seja no inconsciente como a
mola propulsora da dialética entre o Si-mesmo e o Eu. Como vimos anteriormente, o
olhar de Hegel se dirige justamente para as manifestações do ser para si, ou seja, Hegel
vê o espírito subjetivo como sendo aquele que se sabe a si mesmo e, enquanto sabe, é
consciência de si e razão.
Para Jung, o Espírito empenha-se em revelar-se a si mesmo ao se movimentar para o
mundo exterior levando o indivíduo a criar consciência e a individuar-se. Numa dialética
intermitente entre “mundo interno” e “mundo
externo”, o Eu, como uma tênue luz, nasceria do arquétipo do Si-mesmo, formalizar-se-
ia em imagem simbólica para depois se constituir numa identidade em si mesma pela
relação com a natureza e o homem. O resultado seria a síntese de algo de novo e de
singular que, numa dialética construtiva e produtiva (dialética entre o Eu e o
Inconsciente), revelaria o desejo em si e para si numa unidade criadora com o mundo
(unus- Mundus).
Como Hegel, Jung não considera, como no platonismo, a essência como sendo exterior 

101
e transcendente ao real, nem “em si” como no kantismo. Para ambos, a realidade nasce
de um movimento muitas vezes contraditório que nos insere num movimento dialético
entre o mundo interno e o mundo externo. A meu ver, o sonho de Jung relatado abaixo
 pode nos ajudar a compreender essa dinâmica
dinâmica fenomenológi
fenomenológica do espíri
e spírito
to no mundo:

DE  NOITE ,  NUM LUGAR  DESCONHECIDO, EU AVANÇAVA COM DIFICULDADE CONTRA UMA FORTE TEMPESTADE. HAVIA
UMA BRUMA ESPESSA. IA SEGURANDO E PROTEGENDO COM AS DUAS MÃOS UMA PEQUENA LUZ QUE AMEAÇAVA
EXTINGUIR -SE A QUALQUER  MOMENTO. SENTIA QUE ERA PRECISO MANTÊ- LA A QUALQUER  CUSTO, POIS TUDO
DEPENDIA DISSO.SUBITAMENTE TIVE A SENSAÇÃO DE QUE ESTAVA SENDO SEGUIDO; OLHEI PARA TRÁS E PERCEBI UMA
FORMA  NEGRA E GIGANTESCA ACOMPANHANDO MEUS PASSOS . NO MESMO INSTANTE, DECIDI, APESAR  DO MEU TEMOR 
E SEM PREOCUPAR  -ME COM OS PERIGOS , SALVAR  A PEQUENA LUZ, ATRAVÉS DA  NOITE E DA TEMPESTADE. AO
ACORDAR  , COMPREENDI IMEDIATAMENTE QUE SONHARA COM O “ FANTASMA DE B ROCKEN”, COM MINHA PRÓPRIA
SOMBRA PROJETADA  NA BRUMA PELA PEQUENA LUZ QUE EU BUSCAVA PROTEGER . SABIA QUE ESSA PEQUENA CHAMA
ERA A MINHA CONSCIÊNCIA , A ÚNICA LUZ QUE POSSUÍA. O CONHECIMENTO DE MIM MESMO ERA O ÚNICO E MAIOR 
TESOURO QUE POSSUÍA. APESAR  DE INFINITAMENTE PEQUENO E FRÁGIL COMPARADO AOS PODERES DA SOMBRA , ERA
UMA LUZ, MINHA ÚNICA LUZ. ESS E SONHO TROUXE-ME UM GRANDE ESCLARECIMENTO: SABIA AGORA QUE O MEU  N.º 1
ERA QUEM LEVAVA A LUZ, ENQUANTO O  N.º 2 O SEGUIA COMO UMA SOMBRA (JUNG, 1975: 86).

Aventuraremo-nos a explicar a seguir o sonho de Jung, utilizando algumas idéias de


Hegel ( Fenomenologia do Espírito e  parágrafo 1 do 2.º Curso da Propedêutica Propedêutica
 Filosófica
ilosófi ca), sobre o papel do desejo e do mundo externo na formatação da consciência
em nós mesmos.
A propósito desse sonho de Jung, a meu ver, Hegel interpretaria dizendo que, enquanto
consciência de si, o Eu de Jung inicialmente tivera a intuição de si mesmo dividindo-se no
n.º 1 e no n.º 2 e, numa segunda operação (da consciência), esse duplo se metamorfoseia
numa nova unidade simples enunciando-se na pureza dessa equação: Eu=Eu, ou Eu sou
Eu. Quando Jung diz: “Esse sonho trouxe-me um grande esclarecimento: sabia agora que
o meu n.º 1 era quem levava a luz, enquanto o n.º 2 o seguia como uma sombra”; a meu
ver ele está falando de um Eu que se reconhece em si mesmo a partir de seu duplo, ou
seja, como consciência de si, como nos fala Hegel. Assim, no exato momento que
 percebe a existênci
existênciaa de sua enorme sombra projetada, o Eu frui puramente na forma de
consciência e executa uma nova síntese.
Contudo, é preciso ter em mente que, para chegar a essa consciência na qual Jung se
 percebe existi
existindo
ndo na fragi
fragilidade
idade de uma luz tênue, seria
seria preciso
preciso antes que ele tivesse
tivesse
reconhecido em si mesmo o que seria os poderes desse Eu como uma  sombra  projetada.
Isso nos leva a concluir que o Espírito, em sua atividade intrínseca e dialética, conduz o
Eu a uma divisão para em seguida tornar-se efetivo e chegar às suas próprias
determinações como “sujeito” no mundo. No sonho, vemos que a consciência de si
mesmo (Eu=Eu) se produziu a si mesma na medida em que se orientou para a luz da
consciência. O espírito determinou esse exterior e, em seguida, se referiu a si mesmo, e
às suas próprias determinações como sujeito de consciência.
Diríamos que esse sonho de Jung revela que a pulsão ou o desejo aparece inicialmente
envolto em sombras e inconsciente de si mesmo. Só depois ele (o desejo) se orienta

102
duplamente para outra consciência de si (luz e sombra), a princípio desigual em relação
ao próprio desejo originário (mundo dos arquétipos) e, num segundo movimento, agora
dialético, se faz novamente igual pela consciência universal de si mesmo (evidente na luz
 precária
recária da reali
realidade exterior
exterior simboli
simbolizada no sonho de Jung pela
pela luz tênue).
A meu ver, Hegel finalizaria sua interpretação dizendo: “Para a consciência de si, há
uma outra consciência de si (o n.º 1 e o n.º 2). Apresenta-se a ela como vindo do
exterior”. Ou melhor: “A consciência é, absolutamente falando, o saber de um objeto,
interior ou exterior, quer esse objeto se ofereça à consciência sem nenhuma interferência
do espírito, quer seja produzido pelo espírito”.

O Plano A e o Plano B

As mudanças internas subjetivas se associam às mudanças corporais e leva nossa


inteligência a lidar com a díade “vida e morte”. Assim, paradoxalmente, nos
aproximamos mais da vida ao nos aproximarmos da morte. Incluímos nosso mundo
onírico ao nosso mundo de vigília, ampliando nosso tempo imaginário e, ao mesmo
tempo, percebemos que a morte se aproxima, ou melhor, que ela sempre está por perto,
no passar dos dias, das horas e dos instantes que vivemos em nossas emoções. Se antes
a nossa sensação era de que o Outro é quem morria, aos poucos vamos dando conta de
que a morte faz parte da vida; são dois aspectos da mesma emoção de viver e que por 
isso deveriam ser abordados com mais sabedoria.
Vivemos continuamente em metamorfose. Assim, nossa mudança corporal e hormonal
nos aproxima de uma consciência de finitude e nos leva a conviver, querendo ou não,
com essa realidade que é viver e morrer. Se levássemos em conta nossos sonhos,
 poderíamos antecipar os acontecimentos,
acontecimentos, quer sejam eles bons ou difíceis
difíceis de aceitar.
aceitar.
Freud nos fala, em seu primeiro volume do seu livro sobre os sonhos, que qualquer 
mudança corporal que durante a noite nosso corpo possa estar vivendo, tal sensação é
comunicada ao psiquismo e é transformada em imagens e, conseqüentemente, em
símbolos que de certa forma poderiam anunciar transformações que estariam começando
a acontecer. Sendo assim, qualquer transformação hormonal que esteja acontecendo em
nosso corpo será detectada pela nossa mente em forma de imagens, e seu conteúdo
 poderia
oderia anunciar
anunciar uma gravidez,
ravidez, um tumor malimalign
gnoo ou desejos que aindaainda estariam
estariam
adormecidos no inconsciente.
Segundo Jung, por volta dos quarenta anos a consciência já avançou bastante no lidar 
com as imagens das emoções e poderia nos informar, sempre por meio dos sonhos e dos
eventos sincronísticos da vida, a quantas andam nosso Plano A e se esse plano estaria em
consonância com o Plano B de forma a não nos inserir em crises constantes em nosso
envelhecer. Sem dúvida a nossa metamorfose é contínua e implica a administração pelo
nosso espírito (o Si-mesmo) que pode pressentir e levar para o  Ego  analisar e discernir 
qual seria a melhor atitude diante dessa dinâmica normal de nosso existir. Na verdade,
envelhecer é viver e exige de nós o prazer de se deixar levar pelo Espírito.

103
Acredito que uma atitude de fixação tanto na questão da juventude como na questão
da velhice nos leva a uma visão de mundo que nos levaria ao desequilíbrio. Lembro-me,
ainda hoje, de que a minha primeira experiência de velhice foi aos dez anos de idade,
quando percebia que deixava a vida de criança que tanto amava. As pessoas que me
rodeavam insistiam em me tratar de maneira diferente. Meu corpo havia se
transformado, eu havia crescido muito e fui obrigado a mudar minha maneira de encarar 
o mundo.
 No começo
come ço detestei toda aquela
aquela mudança e só quando comecei a compreender
com preender que na
verdade a vida se manifestava nessas pequenas mudanças diárias comecei a amá-las e a
tentar desvendá-las antes que se impusessem na minha vida de fora para dentro. A
melhor atitude é perceber as pequenas mudanças cotidianas, mesmo as mais dramáticas,
 pensarmos sobre elas
elas e deix
deixar que o Ego
Ego fortalecid
fortalecidoo seja capaz de adminis
administrar
trar pela
pela
individuação nosso ser no mundo.

Conclusão

Quando somos crianças e adolescentes, nossa vida de vigília parece mais um sonho.
Existe um corte profundo entre o “estar acordado” e o “estar dormindo”. Lembro-me
que, quando criança, fazia uma distinção muito radical entre dormir e acordar. Ao
dormir, sentia que desaparecia do mundo e só percebia que continuava vivo quando era
despertado durante a noite por um sonho ou um pesadelo. Ainda dominado pela emoção
do sonho que se estendia por bastante tempo depois de acordado, gritava pelo meu pai
ou por minha mãe dizendo: “Sonhei!”. Minha mãe, experiente, dizia: “Vira para o lado!”.
Assim acontecia com todos os meus irmãos e a técnica da minha mãe em nos livrar 
dos sobressaltos noturnos era sempre a mesma: “Vira para o lado!”. Só assim o sonho se
distanciava da vida de vigília e com ele nossos medos noturnos eram elaborados ou
 permaneciam
ermaneciam nessa outra dimensão
dimensão do inconsciente.
inconsciente. P or meio
meio dos sonhos, acordávamos
 para dentro de nossas ang
angústi
ústias
as infantis
nfantis e, de alg
alguma forma, aos poucos, tomávamos
consciência da existência de um outro mundo que até então nos era completamente
desconhecido.
Com o passar dos anos, conclui que a metamorfose em seu processo inconsciente aos
 poucos nos leva
leva a contatar com esse mundo onírico
onírico de uma maneira mais objetiva.
objetiva. A
idade avança e os sonhos nos ensinam a aproximar o dia da noite. Descobrimos que
existimos também durante nosso sono. Essa descoberta amplia e substancializa nossa
vida, aumentando a qualidade de vida no mundo. Aqui, a noção de tempo se amplia.
Ao incluirmos a noite em nosso dia, descobrimos que, na verdade, vivemos mais do
que antes vivíamos. Isso porque é a consciência que nos dá o sentimento de que estamos
vivendo no tempo e no espaço. Contudo, paralelamente ao sentimento de que estamos
vivendo mais, aos poucos percebemos com mais clareza que também morremos todos os
dias.
A morte, que para nós, como jovens, nos fazia sonhar acordado, aparecerá na velhice

104
como algo mais próximo da formação progressiva da consciência. Diante desse
fenômeno, podemos ter duas atitudes: fugimos dessa morte e de tudo o que possa nos
levar a pensar nela como realidade, procurando levar uma vida muito ocupada, sem
reflexão e sem contato com nosso mundo onírico; ou, em sentido inverso, usaremos de
tato e inteligência propondo às faculdades sensitivas de nosso ser atos positivos de
humildade e reflexão sobre nossa realidade singular de sujeito condenado a morrer 
sabiamente.
A perseverança e a coragem em lidar com nosso corpo através da vida de vigília e em
nossos sonhos determinarão o recolhimento decisivo de que necessitamos para que o
velho sábio ou a velha sábia que existe em nosso ser possa se manifestar. O espírito, em
sua capacidade de auto-reflexão, habilmente dinamizará, em benefício do  Ego, os nossos
desejos, nossas crenças, nossas alegrias e nossas dores.
Essa auto-reflexão, fruto de uma relação madura e dialética entre o  Ego e o Si-mesmo,
é, em sua própria natureza, geradora de um silêncio que será particularmente útil no
tratamento de nossas angústias, paixões tristes ou inflacionadas, sentimentos morosos,
egoístas, ciúmes, ou de qualquer ressentimento que ainda possa existir em nosso ser e
que nos visita nos sonhos, turbilhona nossa vida cotidiana e nossas relações. O resultado
final é sempre o mesmo: a intuição de si mesmo como uma essência livre.

Referência
Referência Bibliográfica

CHEVALIER, J. e GRERBRANT, A.  Dictionnaire


ictionnaire des symboles.
symboles. Paris: Robert Lafont/ Júpiter, 1982.
CORBISIER, Roland.  Hegel (Textos Escolhidos). 
Escolhidos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
FREUD, Sigmund.  Métapsychologie.
étapsychologie. Paris: Éditions Idées/Gallimard, 1940.
HEGEL, Georg W. Friedrich.  Phénoménologie de l’Esprit 
l’ Esprit . Paris: Gallimard, 1993.
JUNG, Carl G.  Memórias, Sonhos, Ref
R eflexões
lexões.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
LIMA VAZ, Henrique C.  Antropologia
ntropologia Filosóf
F ilosófica
ica.. Volume 1. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

* Doutor em Psicologia Clínica; DEA em Filosofia da Existência no Centro Gaston Bachelard de Pesquisa sobre o Imaginário e a
Realidade (Dijon – França); professor do departamento de psicologia PUC-Rio e coodenador do curso de pós-graduação lato sensu
“Psicologia Junguiana e Imaginário” (PUC-Rio). Publicações: - A Tridimensionalidade da relação Analítica.   São Paulo: Cultrix,
1999. - Sol da Terra:
Terra: o uso d o barro
barro em psicoterapia.
psicoterapia.  São Paulo: Summus, 1990.

105
10
Metanóia e mudança de paradigma
Tiago Adão Lara*

“NEM MESMO SEI


QUAL É A PARTE DA T UA ESTRADA
 NO MEU CAMINHO: SERÁ UM ATALHO
OU UM DESVIO?”

Fui convidado a participar da elaboração desta obra. A proposta pareceu-me tentadora,


a proponente seguramente sedutora. Deixei-me envolver e aceitei. Mas toda sedução tem
seu preço. Comecei a pagá-lo imediatamente. Vieram-me as inseguranças e, até, certa
dose de angústia. Como inserir-me numa reflexão um tanto alheia às minhas tarefas
atuais de professor de filosofia? Palavra dada, no entanto, é compromisso. Pus-me,
então, a ler Jung e sobre ele, nos limites das minhas possibilidades. Foi quando deparei
com estas suas palavras, na contracapa de um livro
livro de Ysé Tardan-Masquelier:
Tardan-Masquelier:

 NOVOS PONTOS DE VISTA  NÃO SÃO GERALMENTE DESCOBERTOS EM TERRITÓRIOS JÁ CONHECIDOS , MAS EM LUGARES
DISTANTES, QUE COSTUMAM ATÉ MESMO SER  EVITADOS PELA MÁ FAMA QUE POSSUEM (T ARDAN-MASQUELIER , 1994).

Essas palavras de Jung tranqüilizaram-me; e casaram-se com as de Zeca Baleiro que


escolhi como epígrafe desafiadora do meu escrito:

“NEM MESMO SEI


QUAL É A PARTE DA T UA ESTRADA
 NO MEU CAMINHO: SERÁ UM ATALHO
OU UM DESVIO?”

Atalho ou desvio, eis aqui minha colaboração nesta coleção, destinada à temática da
metanóia, em Jung.
1 – Vivemos tempos de mudanças. Mudanças radicais, ou seja, mudanças que chegam
a atingir as raízes. Dirigimo-nos a seres humanos e falamos de raízes. Trata-se
evidentemente de metáfora. As metáforas têm, porém, de ser levadas a sério. À
diferença dos conceitos que pretendem precisar ou definir, as metáforas transgridem

106
limites, soltam a imaginação, fazem explodir sentidos. Ligar ser humano a raízes é
descentrá-lo, torná-lo solidário, dar-lhe um chão, um território, convidá-lo à ciranda da
espacialidade e da temporalidade, como constitutivas do seu acontecer.
Tudo isso pode parecer, à primeira vista, de uma obviedade incontestável. Quem de
nós não se dá conta de que ocupa um espaço e preenche um tempo? Falamos tanto em
ocupar o nosso espaço e viver o nosso tempo. Mas a verdade é que a imagem que
cultivamos de homem, mesmo aquela imagem que os profissionais da cultura – teólogos,
filósofos e cientistas ocidentais – ajudaram a elaborar, em grande parte, camuflam a
espacialidade e a temporalidade que somos. É uma imagem que foca a transcendência
humana, como característica essencial, capaz de nos elevar acima das vicissitudes do
espaço e do tempo. Intuições da transcendência, sínteses transcendentais e leituras de
sentidos absolutos alicerçam nossas verdades e nossos valores; consolidam nossas
instituições e nossas normas de convivência; fundamentam nossos saberes; e têm, até, a
 pretensão de normatizar
normatizar nossos gostos, nossa estética.
estética. Em síntese, eng
engessam
essam nossas
subjetividades. Tudo em nome de uma sacralidade que se chama ordem da unidade. O
caos horroriza-nos. A multiplicidade, ou melhor, as reais diferenças incomodam-nos.
Queremos o mesmo, a identidade, o planejamento que a assegure: o controle, se possível
absoluto, do acontecer do ser. A força, na qual a modernidade aposta para garantir esse
intento, é a força da razão. A ela atribui-se o encargo da construção de uma civilização,
ou seja, de uma convivência, na qual o ser humano se defenda do caos da barbárie.
2 – É quase consensual apresentar-se Descartes (1596-1650), como o filósofo que
sinalizou, de maneira reflexivamente mais explícita, logo no início da modernidade, para
essa imagem de ser humano, que se tornou hegemônica; e, para alguns analistas,
definidora da própria modernidade.
Para Descartes, o homem é essencialmente o eu consciente, transparente a si mesmo,
auto-referente, bastião seguro das verdades de cunho absoluto. Em torno dele o mundo
se organiza, ou seja, o caos devém cosmo, pelo encadeamento lógico das razões, que
emanam das idéias claras e distintas.
Instrutivo é atentar aos pormenores da descrição que Descartes nos faz, no  Discurso
do Método, do seu itinerário intelectual e das disposições que requer de si mesmo, para
 produzir
roduzir o que lhe pareceu uma grande
grande conquista:
conquista: A descoberta de um caminho
caminho “para
 bem conduzir
conduzir a própria
própria razão e procurar a verdade nas ciênci
ciências”.
as”. No iníci
inícioo da segunda
segunda
 parte, escreve ele:
ele:

ACHAVA-ME, ENTÃO,  NA A LEMANHA, PARA ONDE FORA ATRAÍDO PELA OCORRÊNCIA DAS GUERRAS QUE AINDA  NÃO
FINDARAM, E, QUANDO RETORNAVA DA COROAÇÃO DO IMPERADOR  , PARA O EXÉRCITO, O INÍCIO DO INVERNO ME
DETEVE  NUM QUARTEL, ONDE,  NÃO ENCONTRANDO  NENHUMA FREQÜENTAÇÃO QUE ME DISTRAÍSSE, E  NÃO TENDO,
ALÉM DISSO, POR  FELICIDADE, QUAISQUER  SOLICITUDES OU PAIXÕES QUE ME PERTURBASSEM , PERMANECIA O DIA
INTEIRO FECHADO SOZINHO  NUM QUARTO BEM AQUECIDO , ONDE DISPUNHA DE TODO O VAGAR  PARA ME ENTRETER  COM
OS MEUS PENSAMENTOS (D ESCARTES , 1979: 34).

 No fim
fim da terceira
terceira parte, volta
volta à enfatização
enfatização das condições
condições ótimas
ótimas de que dispunha
dispunha

107
 para pensar o que lançou depois
depois no papel.
papel. Estava na Holanda,
Holanda, país que se tornou asil
asilo,
 para todos os intelectuai
intelectuaiss ousados, dado o clima
clima liberal
liberal que ali
ali reinava.
reinava. Escreve:

...
.. . E FAZ JUSTAMENTE OITO ANOS QUE ESSE DESEJO ME DECIDIU A AFASTAR  - ME DE TODOS OS LUGARES EM QUE
PUDESSE TER  CONHECIMENTOS , E A RETIRAR -ME PARA CÁ, PARA UM PAÍS ONDE A LONGA DURAÇÃO DA GUERRA LEVOU
A ESTABELECER  TAIS ORDENS , QUE OS EXÉRCITOS  NELE MANTIDOS PARECEM SERVIR  APENAS PARA QUE OS FRUTOS DA
PAZ SEJAM GOZADOS COM TANTO MAIS SEGURANÇA , E ONDE, DENTRE A MULTIDÃO DE UM GRANDE POVO MUITO ATIVO
E MAIS ZELOSO DE SEUS PRÓPRIOS  NEGÓCIOS, DO QUE CURIOSO DOS ASSUNTOS DOS DE OUTREM, SEM CARECER  DE
 NENHUMA DAS COMODIDADES QUE EXISTEM  NAS CIDADES MAIS FREQÜENTADAS , PUDE VIVER  T ÃO SOLITÁRIO E
RETIRADO COMO  NOS DESERTOS MAIS REMOTOS  (D ESCARTES , 1979: 45-46).

Descartes parece dizer-nos: a verdade só se revela em sua plenitude ao homem que


conseguir atingir a situação de calar seus instintos, suas paixões, suas relações com o
mundo, para fechar-se em si mesmo, enquanto racionalidade pura:

E ASSIM AINDA, PENSEI QUE, COMO TODOS  NÓS FOMOS CRIANÇAS ANTES DE SERMOS HOMENS , E COMO  NOS FOI
PRECISO POR  MUITO TEMPO SERMOS GOVERNADOS POR   NOSSOS APETITES E  NOSSOS PRECEPTORES, QUE ERAM AMIÚDE
CONTRÁRIOS UNS AOS OUTROS , E QUE,  NEM UNS  NEM OUTROS ,  NEM SEMPRE, TALVEZ  NOS ACONSELHASSEM O
MELHOR , É QUASE IMPOSSÍVEL QUE  NOSSOS JUÍZOS SEJAM TÃO PUROS OU TÃO SÓLIDOS COMO SERIAM , SE TIVÉSSEMOS
O USO INTEIRO DE  NOSSA RAZÃO DESDE O  NASCIMENTO E SE  NÃO TIVÉSSEMOS SIDO GUIADOS SENÃO PER  ELA
(DESCARTES , 1979: 35).

É, então, guiado tão-somente pela razão, que o homem pode atingir a verdade. O
indivíduo René Descartes, assim municiado, ousa duvidar de todo o patrimônio cultural
da humanidade, porque obtido no espúrio da vida, feita também de sensações, emoções,
desejos e fantasias, tudo partilhado na solidariedade das tradições. Não que Descartes se
arvore em único capaz dessa proeza. Apesar de reconhecer que nem todos tenham
disposição para perfazer o caminho da razão pura, esse é indicado como o caminho que
cada indivíduo pode e deve perfazer, se quiser atingir a essencialidade humana. O
homem racional puro, eis o herói da modernidade. Para definir-se, assim, o sujeito
humano teve de atribuir-se características, outrora conferidas à divindade.
Em  A barbárie interior: sobre o i-mundo moderno, escreve Jean-François
interi or: ensaio sobre
Mattéi:

QUALQUER  QUE SEJA O CAMINHO QUE ELA FAÇA  NA HISTÓRIA, A LÓGICA ESPECÍFICA DO SUJEITO É A DE RECUPERAR 
POR  SUA PRÓPRIA CONTA A DETERMINAÇÃO TRANSCENDENTE DE QUE ELE É ORIGINÁRIO E QUE DECIDIU ABOLIR : O
MUNDO GIRA DORAVANTE EM VOLTA DE UM E U HIPOSTASIADO E DILATADO À MEDIDA DO ABSOLUTO (M ATTÉI, 2002:
27).

Mattéi está se referindo a essa forma-homem que se tornou característica própria da


modernidade e que ele descreve assim:

108
O CARÁTER  MARCANTE DO HOMEM MODERNO, AQUELE QUE SE QUALIFICA COMO “ SUJEITO” E QUE  NEM SEMPRE
PONDERA SUA SUJEIÇÃO, É, COM EFEITO, A INTERIORIZAÇÃO E A  NECESS IDADE
IDADE DE TUDO RELACIONAR  CONSIGO MESMO.
PODEM -SE SALVAR  ESSAS APARÊNCIAS E FALAR  EM “ AUTONOMIA” PARA DESIGNAR  ESSA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, OU
ESSA VASSALAGEM ; RESTA QUE, DE FATO, A AUTONOMIA DO SUJEITO APARECE SOB MUITOS ASPECTOS COMO UM
LOGRO E UM ENCLAUSURAMENTO DO INDIVÍDUO EM SEU PRÓPRIO FUNDO (M ATTÉI, 2002: 22).

3 – A modernidade significou, contudo, um ousado projeto de emancipação humana.


Emancipação diante das forças brutas da natureza; emancipação diante de instituições
esclerosadas; emancipação diante de idéias e valores absolutizados e sacralizados, que
impediam o avançar dos saberes e a criatividade ética e estética. O ser humano se
 projetou, então, como o protagoni
protagonista
sta da própria
própria libertação,
libertação, do próprio esclarecimento,
esclarecimento, da
 própria
rópria realização.
realização. P ara isso, mirou
mirou o absoluto
absoluto de Deus, com quem passou a rivalrivalizar
izar,, e
atribuiu a si as qualidades divinas.
Daí a enfatização da individualidade, como traço marcante da subjetividade moderna,
ao lado do direito à crítica, da autonomia do agir e do que poderíamos definir como
consciência histórica. Essa enfatização da individualidade acarretou, contudo,
conseqüências,
conseqüências, hoje vistas como nefastas.
O paradigma cultural, sob cuja luz se concebeu e se gestou essa forma-homem tornou-
se veementemente questionado. Escreveu Miguel Doménech, Francisco Tirado e Lúcia
Gomes, no artigo “A dobra: psicologia e subjetivação”, da obra, organizada por Tomaz
Tadeu da Silva, intitulada  Nunca fomos humanos:

HÁ MAIS DE DUAS DÉCADAS AS CIÊNCIAS SOCIAIS ASSISTEM À MORTE DO S UJEITO. SOB A RUBRICA “ CRISE DO EU”,
CRITICA -SE E REJEITA-SE A DEFINIÇÃO DE UM SUJEITO UNIVERSAL, ESTÁVEL, UNIFICADO, TOTALIZADO E TOTALIZANTE,
INTERIORIZADO E INDIVIDUALIZADO. HÁ JÁ MAIS DE VINTE ANOS QUE O SUB - JECTUM  NÃO É O SOL EM TORNO DO QUAL
GIRA  NOSSO PENSAMENTO SOCIAL. EM SEU LUGAR  , APARECEM  NOVAS OVAS IMAGENS . FALA-SE DE SUBJETIVIDADE
DISTRIBUÍDA , SOCIALMENTE CONSTRUÍDA, DIALÓGICA , DESCENTRADA, MÚLTIPLA,  NÔMADE, SITUADA, DE
SUBJETIVIDADE INSCRITA  NA SUPERFÍCIE DO CORPO, PRODUZIDA PELA LINGUAGEM ETC
ET C (S ILVA, 2001: 113).

4 – É um novo paradigma de pensamento que está atrás dessa proposta de


entendimento do processo de subjetivação. Nada de pressuposto ontológico, potencial de
identidade já dada, a ser explicitada, realizada ou atualizada historicamente, segundo
roteiro de essencialidade humana, ligada a planos de transcendência ou
transcendentalidade. Continuar a afirmar isso implica fechar-se às reais diferenças
(singularidades); reduzi-las a simples repetições; esvaziar de sentido os acontecimentos e
a história; colocar em questão a criatividade e a liberdade humanas. Félix Guattari
escreve em Caosmose: um novo paradigma estético:

ESTAMOS DIANTE DE UMA ESCOLHA ÉTICA CRUCIAL : OU SE OBJETIVA, SE REIFICA, SE  “ CIENTIFICIZA ” A SUBJETIVIDADE
OU, AO CONTRÁRIO, TENTA- SE APREENDÊ- LA EM SUA DIMENSÃO DE CRIATIVIDADE PROCESSUAL (G UATTARI, 1992:
24).

109
É preciso, pois, levar a sério a experiência da multiplicidade e da dinamicidade. É
 preciso
reciso não transcender,
transcender, apressadamente, para princípi
princípios
os unifi
unificadores,
cadores, de ordem
epistemológica, ontológica, ética ou estética, os quais se mostraram terrenos férteis para
dogmatismos e autoritarismos comprometedores. É preciso tomar consciência de que a
imagem de cosmo, que fazemos da realidade, é uma produção humana e acarreta
limitações, cria exclusões, fecha-se à riqueza incomensurável da experiência do ser. O ser 
se revela como excesso, em relação à nossa capacidade de compreensão, que, no
entanto, parece regida por uma exigência de ordem, que gera segurança. Nesse sentido, a
dimensão caótica da revelação do ser nos causa medo, mas não pode ser recalcada sem
que percamos o concreto da experiência e das condições de vida humana rica e saudável.
5 – Sob esse novo paradigma, como, então, pensar a subjetividade? Ligando ao que
afirmamos no início, a primeira condição que se impõe é aquela de restituir o ser humano
aos aspectos concretos da sua existência, que passam pelas dimensões do espaço e do
tempo. Afirma Guattari:

A ÚNICA FINALIDADE ACEITÁVEL DAS ATIVIDADES HUMANAS É A PRODUÇÃO DE UMA SUBJETIVIDADE QUE ENRIQUEÇA
DE MODO CONTÍNUO SUA RELAÇÃO COM O MUNDO (G UATTARI, 1992: 33).

O ser humano não pode ser descrito ou definido como auto-referência transparente,
interioridade subsistente, mas como um estar-com, um ser-em, em estado de contínua
re-alocação existencial ou, falando de maneira mais radical, em contínuo estado de
azimento, no contato com o outro  si . Suely Rolnik, no artigo “Subjetividade antro-
 pológ ntegra o livro Texturas da psicologia: subjetividade e política no
ológiica”, que integra
contemporâneo, escreve:
escreve:

A NTES DE MAIS  NADA, ESTE MODO DE SUBJETIVAÇÃO DEPENDE DE UM GRAU SIGNIFICATIVO DE EXPOSIÇÃO À
ALTERIDADE: ENXERGAR  E QUERER  A SINGULARIDADE DO OUTRO, SEM VERGONHA DE ENXERGAR  E QUERER , SEM
VERGONHA DE EXPRESSAR  ESTE QUERER , SEM MEDO DE SE CONTAMINAR , POIS É  NESTA CONTAMINAÇÃO QUE A
POTÊNCIA VITAL SE EXPANDE, CARREGAM -SE AS BATERIAS DO DESEJO, ENCARNAM-SE DEVIRES DE SUBJETIVIDADE ...
.. .
ESTE TIPO DE RELAÇÃO COM A ALTERIDADE PRODUZ  NO CORPO UMA ALEGRIA... PROVA DA PULSAÇÃO DE UMA
VITALIDADE  (R  OLNIK  EM: MACHADO , 2001: 18).

Torna-se evidente, nessa concepção, que a subjetividade está em relação essencial


com a corporeidade. Quebra-se a dicotomia alma-corpo, interior-exterior, subjetivo-
objetivo. A subjetividade é vista, assim, como processo de dimensões incomensuráveis:

A SUBJETIVIDADE , DE FATO, É PLURAL , POLIFÔNICA, PARA RETOMAR  UMA EXPRESSÃO DE M IKHAIL B AKHTINE. E ELA
 NÃO CONHECE  NENHUMA INSTÂNCIA DOMINANTE DE DETERMINAÇÃO QUE GUIE AS OUTRAS INSTÂNCIAS , SEGUNDO UMA
CAUSALIDADE UNÍVOCA  (G UATTARI, 1992: 11).

De maneira literariamente linda, diz a mesma coisa João Guimarães Rosa, em Grande

110
Sertão: Veredas:

A VIDA INVENTA ! A GENTE PRINCIPIA AS COISAS  NO  NÃO SABER  POR  QUE, E DESDE AÍ PERDE O PODER  DE
CONTINUAÇÃO – PORQUE A VIDA É MUTIRÃO DE TODOS , POR  TODOS REMEXIDA E TEMPERADA (R  OSA, 1986: 406).

Essa nova compreensão da subjetividade quebra a auto-referência e a transparência


racional como constitutivas da essencialidade humana. Define a subjetividade não em
termos de identidade substantiva, mas relacional; não em termos de transparência, mas
de desafio a contínuo jogo interpretativo. Poderíamos recordar aqui a frase de Gadamer 
em Verdade e método:

A PARTIR  DA CONVERSAÇÃO QUE  NÓS MESMOS SOMOS , BUSCAMOS COMO  NOS APROXIMAR  DA OBSCURIDADE DA
LINGUAGEM  (G ADAMER  , 1997: 555).

Somos conversação, convivência, abertura para a alteridade e, por isso mesmo, nada
transparentes, mas carentes de interpretação. É como relação, abertura, processo,
 portanto, mudança e temporali
temporalidade essencial
essencial,, que a subjetivi
subjetividade
dade passa a ser pensada; o
oposto da interioridade auto-referencial e solidamente identitária da interpretação
cartesiana, na qual a temporalidade se subordina à eternidade das essências. Assim como
a categoria exterior ganhou predominância diante da categoria interior, a de acontecer,
que enfatiza o tempo e sobreleva aquela de ser.
6 – A temática do tempo ocupou lugar de destaque na filosofia moderna, como
injunção de libertação dos esquemas religiosos e metafísicos da Idade Média. No
entanto, uma crítica mais apurada aponta para a permanência do lastro metafísico e, até
do salvacionismo religioso, no historismo, que, durante bastante tempo, impregnou a
mentalidade e a produção filosófica e científica da cultura ocidental. A idéia de progresso
e de revolução encarnaram a aposta na história como unidade, em evolução; rumo à
meta única: racionalidade e liberdade em estados utópicos de perfeição.
O passo último para a ruptura com o paradigma moderno concretiza-se, agora, na
nova concepção de temporalidade, fora do viés metafórico. A primeira conseqüência é o
fato de o tempo se partir, não ser comandado por injunção nenhuma de síntese,
aprioristicamente delineada. Não mais um tempo da humanidade inteira, mas tempos
diferentes. Benedito Nunes, em Crivo de papel , comenta, então:
diferentes. Benedito

O RESULTADO DESSA APRENDIZAGEM, QUE RECUSA A TRAJETÓRIA DE UMA SÓ HUMANIDADE , UNIVERSALIZADA À


CUSTA DA EXCLUSÃO ETNOCENTRISTA DE TENTAR  OUTRAS , COMO O FEZ A H ISTÓRIA UNIVERSAL HEGELIANA, É
DESLOCAR  PARA OUTRO PLANO, SEM ABOLI- LA, A UNIDADE DO GÊNERO HUMANO. PELA MANCHA DA H ISTÓRIA EM
LINHA RETA, SEGUINDO AS LEIS DA EVOLUÇÃO OU DO DESENVOLVIMENTO DIALÉTICO,  NECESS ÁRIO E PREVISÍVEL ,
TERÍAMOS A UNIDADE, MAS COMO UNIFICAÇÃO DA ESPÉCIE POR  UM PROGRESSO IGUAL OU POR  UMA IGUAL REVOLUÇÃO
(NUNES , 1998: 152).

1111
11
 Na perspectiva nova:

O TEMPO PASSA ENTÃO A SER  CONCEBIDO  NÃO MAIS COMO LINHA, MAS COMO EMARANHADO ,  NÃO COMO RIO, MAS
COMO TERRA,  NÃO FLUXO, E SIM MASSA,  NÃO SUCESSÃO, PORÉM COEXISTÊNCIA ,  NÃO UM CÍRCULO , MAS TURBILHÃO,
 NÃO ORDEM, E SIM VARIAÇÃO INFINITA, DE MODO QUE  NÃO SE TRATA MAIS DE REMETÊ- LO A UMA CONSCIÊNCIA – A
CONSCIÊNCIA DO TEMPO – MAS À ALUCINAÇÃO . E NLOUQUECIMENTO
LOUQUECIMENTO DESSE TEMPO FORA DOS EIXOS ,  NÃO SEM
RELAÇÃO COM O TEMPO DAQUELES QUE FORA DOS EIXOS SÃO DITOS LOUCOS  ( P ELBART EM A LLIEZ [ ORG.] 2000: 90-
91).

Aplique-se a ousada riqueza dessa citação à subjetividade. Concebê-la não como linha,
unidirecionada, mas como emaranhado de possibilidades; não como rio que passa, mas
como terra, solo, chão, ligação-com, abertura-para; não como fluxo, mas sim como
massa de compromissos; não sucessão, mas sim coexistência de multiplicidades,
identidades complexas; não círculo de segurança e tranqüilidades, ou a redondez do ser 
de Parmênides, mas o turbilhão do devir de Heráclito; não ordem, mas incômodo
continuado de variações infinitas, novidades provocativas. Coragem da loucura para
saborear o estranho de novo, do excêntrico.
O novo paradigma de pensar a realidade e, concomitantemente, a subjetividade implica
inevitavelmente uma metanóia também cultural. Implica, aliás, mais. Implica aceitar a
metanóia não apenas como radicalidade de mudança, em determinado momento do
 processo de “indi
“indivi
viduação”,
duação”, mas como dimensão
dimensão intrínseca à totali
totalidade desse processo.
Jamais estamos prontos. Escreve Roberto Corrêa dos Santos, em  Modos de ser, ser, modos
de adoecer :

O EXTERIOR  OBRIGA- NOS A  NOS FORMAR , A ESTABELECER  RELAÇÕES COM PRÁTICAS – ESTÉTICAS, HISTÓRICAS,
CULTURAIS . A DEFINIR - NOS,  NÃO COMO UMA UNIDADE, MAS COM O MAIS VARIÁVEL POSSÍVEL, CONFORME A REDE
COMUNICACIONAL QUE ESTABELEÇAMOS COM O OUTRO, O MUNDO , O FORA. DEFINIR -SE SERÁ COMPROMETER  - SE COM
A EXISTÊNCIA DE MATERIALIDADES CORPORAIS ( AS FALAS , OS GESTOS , AS ESCOLHAS É QUE DÃO CORPOREIDADE
ÀQUILO QUE – INTERNO, PESSOAL, ÍNTIMO –  NOS FAZ AINDA INFORMES , OBSCUROS , HESITANTES, COMANDADOS ). NÃO
QUE A EXTERIORIZAÇÃO PONHA SOBRE A EXISTÊNCIA CERTEZAS, MAS POSSIBILIDADES DE AÇÃO, POR  ATOS QUE,  NUM
CERTO MOMENTO, FORMAM SENTIDOS ÚTEIS À VIDA. SAIR  PODE SER  UM DELES, COMO QUEM ESCOLHE O AR . E A
SAÚDE (S ANTOS , 1999: 58).

Pareceu-me, a partir do pouco que pude ler de Jung e sobre Jung, que a pergunta de
Tardan-Masquelier (1994: 37) justifica-se plenamente. Não para provar identidades ou
semelhanças, na linha de preocupações teóricas, à cata da unidade que gera a verdade.
Mas pesquisar Jung, na perspectiva da problemática dos nossos tempos de hoje que já
foram chamados, com razão ou não pouco importa, tempos pós-modernos. Tempos nos
quais temos de dar conta das diferenças que nos surpreendem e, muitas vezes, nos
atemorizam. É essa exterioridade cultural, é esse tempo despedaçado que parecem
oferecer-nos, como diz Roberto Corrêa, supracitado, uma saída para o ar puro, para a
saúde. E a tudo isso Jung visou.

112
Referências Bibliográficas

ALLIEZ, (org. ) Gilles Deleuze: uma vida filosófica. 


LLIEZ, Eric (org.) filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.
DESCARTES, René.  Discurso
iscurso do método; meditações; objeções e respostas; espostas; as paixões da alma; cartas. São
Paulo: Ed. Abril, 1979.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.  filosófica.   Petrópolis:
Vozes, 1997.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético.  estético.   Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
MACHADO, Leila Domingues (org.). Texturas da psicologia: subjetividade e política no contemporâneo. São
Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2002.
MATTÉI,
TT ÉI, Jean-Françoi s.  A barbárie
Jean-Fr ançois. barbárie interior: ensaio sobre
sobre o i-mundo
i -mundo moderno. 
moderno. São Paulo: UNESP, 2002.
 NUNES, Benedito. Crivo de papel. 
UNES, Benedito. papel. São Paulo: Ática, 1998.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 
Veredas.   Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
SANTOS, Roberto Corrêa dos.  Modos de saber,
saber, modos de adoecer: o corpo, a arte, o estilo, a história, a vida,
v ida, o
exterior. 
exterior. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
SILVA, Tomás Tadeu da. (org.).  Nunca fomos
f omos humanos:
humanos: nos rastros
rastros do sujeito. 
sujeito.  Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
TARDAN-MASQUELIER, Ysé. C. G. Jung: a sacralidade da experiência interior. 
interior.  São Paulo: Paulus, 1994.

* Doutor em Filosofia, professor de Filosofia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Publicações: - Curso de História da
 Filosofia,
ilosofia , vo l. 1, 2, 3. Pet rópolis: Ed.Vozes. - A  Escola q ue não
n ão tive... o professor que n ão fui.  São Paulo: Cortez, 2003.

113
11
A psicologia junguiana e a física no tempo da
maturidade
Elizabeth C. Cotta Mello*

Introdução

Este artigo visa introduzir a grande transformação da ciência protagonizada pela Física,
das quais C. G. Jung participou discutindo as transformações dessas duas áreas, e como
a metanóia no indivíduo pode contribuir para a compreensão dos resgates necessários na
ciência e no indivíduo (Mello, 2003).
Jung (IX/1) propôs um modelo esclarecedor que já apontava as transformações que
estão ocorrendo nos saberes em geral. A escolha da Física para dialogar com a Psicologia
de Jung é antiga. A Física esteve à frente dos movimentos de transformação da ciência
em geral, e esse foi um dos motivos de Jung poder contar com físicos por meio de suas
ligações com Einstein e Pauli (Von Franz in: Jung s/d; Jung, 1963).
A Psicologia de Jung rompeu com o modelo vigente, percebendo, com os físicos, a
necessidade de integrar na ciência, na cultura e no indivíduo diversos aspectos buscando
uma visão mais múltipla e integrada, evitando a separação entre as ciências naturais e
humanas. A última integração proposta por Jung é integrar o mundo interior com o
exterior. Como observamos nos livros sobre o assunto, e na convivência com os grandes
físicos brasileiros, ao olhar para o interior da matéria ou olhar para o cosmos, os físicos
são lançados na grande aventura rumo à interioridade, no microcosmo psíquico. O
homem, ao examinar a natureza e o universo, em lugar de procurar e achar qualidades
objetivas, “encontra-se a si mesmo” afirma Heinsenberg ( apud   Arendt, 1958: 26).
Analistas junguianos, ao aprofundarem o olhar para dentro, descobrem-se voltando o
olhar para o macrocosmo, para a exterioridade do universo.
 No indivíduo,
ndivíduo, o momento propício
propício para essas polarid
polaridades
ades virem
virem à tona e se
complementaram é a partir da segunda metade da vida. Para a psicologia de Jung, é
ustamente no alvorecer da vida, especialmente quando chegamos a refletir sobre o
tempo já vivido, que podemos entender o sentido psicológico das passagens da nossa
existência, e do cosmo em geral. Na Física também, a grande transformação final (com
grande colaboração da matemática) surge dentro da mesma temática, o tempo. A quebra
com o cenário linear do tempo aparece na física e na psicologia de Jung com o conceito

114
de  sincronicidade
incronici dade. A maturidade exige uma reflexão sobre o tempo. É importante frisar 
que não é por acaso que atualmente as psicologias, em geral, estão discutindo sobre a
maturidade e a terceira idade, bem como sobre a temporalidade em geral.

Rupturas e resgates na ciência

A psicologia (Jung, XIV/2) mostra que a ciência e o indivíduo precisam integrar vários
aspectos que a nossa cultura perdeu ao longo do tempo. Trataremos aqui da integração
da vivência corporal com os aspectos interiores (psíquicos) e exteriores do indivíduo
(sociais) (Mello, 2003).
Como afirma o antropólogo indígena Jecupé (1999), havia nas sociedades tradicionais
uma solidariedade humana e cósmica integral. Com a cultura ocidental, houve uma perda
das interconexões com a unidade original, ocorrendo uma primeira ruptura com a
totalidade do cosmos, o abandono do pensamento mítico, ou seja, a perda do sentido e
da busca de origem que inseria o ser humano dentro do cosmos (cf. Jung, op. cit .).
.).
Segundo a antropologia, quando o ser humano liberou as mãos e a boca, passando
literalmente a levantar a cabeça, aprendendo a ver o mundo, passamos a tocá-lo e
desenvolvemos a linguagem, que nos afastou do mundo (Leroi-Gourhan, 1985). O
homem passou a reconstruir, pelo menos em parte, esse mesmo mundo.
Ocorre, assim, o afastamento do olhar generoso e amplo do homem como criatura
dentro da vida e ela como parte nossa; passamos a enfatizar só o ser humano. É uma
espécie de segundo passo de afastamento mais definitivo, já que seria o abandono da
figura simbólica da mãe terra, da vida, do corpo. Ou seja, podemos dizer que há uma
atitude que enfatiza o nosso pensamento. Estamos diante da criação da racionalidade,
rumo à autonomia do humano e à independência do ser humano ( ibid ). ). Para esse
modelo de visão de mundo, só o homem passa a poder traduzir, com a sua linguagem, a
realidade. Estamos nos afastando cada vez mais do mistério.
Em termos de filosofia, podemos afirmar que, com Sócrates e Platão, ainda estamos
embebidos em um universo duplo: razão e irracionalidade, de mente e sentidos. Mas,
 posteriormente,
osteriormente, com Aristótel
Aristóteles,
es, aparece o afastamento defini
definiti
tivo
vo da ligação entre as
criaturas, passando a vigorar a classificação que individualiza os objetos, havendo a
criação de um modelo que acredita que a natureza é composta de substâncias que são
“[...] entidades puramente materiais, mecanicamente movidas por acaso ou pela
necessidade cega” (Tarnas, 1999: 35). No indivíduo, também vamos ter a idéia de que
devemos ser completamente racionais, sendo diferentes dos animais neste aspecto, como
imaginava a ciência dita clássica (Mello, 2002). Dentro da visão junguiana, é a última
separação do homem. Em nosso mundo desvitalizado (Tarnas, 1999), os outros seres
seriam vistos como objetos sem vida e sem inteligência. O homem passa a monopolizar a
verdade. Esse fato é tão determinante, que se instaurou uma percepção puramente
objetiva e neutra do sujeito do saber, agora afastado diante de seu objeto inerte. Será o
ser humano, sozinho e autônomo, capaz de todas as perguntas, fornecendo todas as

115
respostas. A experiência do homem é determinante, é um sujeito em busca de um objeto,
agora ele próprio passível de ser paralisado e eternizado no momento da investigação.
Em síntese, podemos afirmar que observamos: o rompimento com o pensamento
mítico; o afastamento posterior com a unidade natural do mundo; e por fim, o isolamento
radical do ser humano com a totalidade à sua volta. Porém, apesar da separação entre
natureza e cultura, sabemos que é “[...] ‘natural’ para os seres humanos construir cemité -
rios, mercados públicos, comunidades políticas e sociais e erigir estruturas para culto,
educação[...], como também colher nozes e frutas  ,  caçar animais ou lavrar a terra”
(Hillman, 1993: 124). O olhar científico é que se tornou restritivo. O homem diminuiu
seu espaço, mesmo em momentos marcantes como os da doença e da morte. Philippe
Áries (1981) comenta que, a partir aproximadamente do século XVIII, as portas da casa
dos indivíduos vão se fechando, como a ciência se fechou para os outros seres vivos (e
não vivos). Na doença, por exemplo, somente alguns membros da família vão poder 
entrar no quarto do doente. Com o tempo, sabemos, nem mesmo o doente vai poder 
decidir, algumas vezes até saber, sobre seu estado de saúde. Os espaços vão diminuindo
e a ciência ficou tão complexa que perdemos a noção de que os seres fazem parte de um
mesmo universo. Por exemplo, ao ter problemas de saúde, o ser humano passou a ter de
recorrer a diversos especialistas, sendo visto como órgãos e sistemas, e não como uma
 pessoa que adoeceu. O essencial
essencial no amadurecimento do homem e da ciência
ciência em geral é
admitir que:

[...] A OPOSIÇÃO ENTRE “ DADO POR  D EUS” E “ FEITO PELO HOMEM” É DESNECESSÁRIA, ATÉ MESMO FALSA, ENTÃO A
AT URAL POR  SEU PRÓPRIO DIREITO.
CIDADE FEITA POR  MÃO HUMANA É TAMBÉM  NAT [...] AS CIDADES PERTENCEM À
AT UREZA HUMANA; A  NATUR
 NAT ATUR EZA  NÃO COMEÇA  NO LADO DE FORA DOS MUROS DA CIDADE . ASSIM SENDO, A CIDADE
 NÃO PRECISA COPIAR  O MUNDO VERDE PARA SER  BONITA (H ILLMAN, 1993, P. 124-125).

Como desafio da ciência e do homem, surge a questão de unir o humano à natureza, o


natural junto com o sentido de vida, porém, em nossa civilização, ainda não conseguimos
unir de uma forma adequada, sem misturar.

O início da ciência e suas transform


transformações
ações

Para o homem ocidental do século XX, as perguntas essenciais do mundo pareciam ter 
sido respondidas. Mais que isso, ele tinha a convicção de que um dia tudo seria
desvendado pelas leis da ciência. Sem desmerecer os avanços realizados por pensadores
como Newton, Darwin, Marx e Freud, podemos dizer que o mundo interior, a intuição e
o irracional não foram devidamente valorizados em seus estudos (Silveira, 1981).
Evitando enveredar por uma investigação de como se deu o processo de mudança e
crise da ciência, é fato que, quanto mais os estudiosos se aprofundavam nas suas
especialidades, mais tiveram de se confrontar com situações que lhes retiraram a
segurança de leis eternas. A ciência deixou de ser simplista, e o estudo passou a ser feito

116
 buscando as partes isoladas.
soladas. Os mistéri
mistérios
os brotaram dentro dos campos que, para os
cientistas, eram invioláveis, como afirma o físico Nicolescu ( apud   Kuperman, 1993:
123): “A descontinuidade entrava pela porta principal - a da experiência científica”. Na
Psicologia a complexidade e o mistério permaneceram desafiadores. Como afirma Burton
(apud   Silgelmann, 1995: 6), na Psicologia produziu-se, ao contrário, uma entrada
envergonhada “pela porta dos fundos”. Atualmente, as próprias ciências naturais estão se
reestruturando em função das descobertas científicas e as novas teorias que se
aproximam da complexidade estão vendo todas as influências do externo e do interno. Ao
utilizar a Física como exemplo modelar nesse processo de questionamentos e mudanças,
 podemos dizer
dizer que o mundo não seria
seria mais “compromissado com essa visão
visão absoluti
absolutista
sta
e dogmática” (Novello, 993: 5) que dominara desde Newton e que influenciou
“praticamente todas as atividades do pensamento” ( ibid : 6). O aspecto fundamental que
operou essa mudança foi a questão do tempo. Todas as evoluções são histórias de perdas
e ganhos com as mudanças de visões. Sobre os progressos e retrocessos, podemos citar 
o historiador da arte Gombrich (1993, prefácio), que discorre sobre arte, mas que
também faz uma interpretação válida para toda a questão do tempo e da história; ele
afirma que é uma:

[...] INTERPRETAÇÃO INGÊNUA E ERRÔNEA DA CONSTANTE MUDANÇA  NA ARTE COMO UM PROGRESSO CONTÍNUO. É
VERDADE QUE TODO ARTISTA SENTE T ER  SUPERADO A GERAÇÃO QUE O PRECEDEU E, DO SEU PONTO DE VISTA, T ER 
FEITO PROGRESSOS EM RELAÇÃO A TUDO O QUE SE CONHECIA ANTES . [...] MAS DEVEMOS COMPREENDER  QUE CADA
GANHO OU AVANÇO  NUMA DIREÇÃO ACARRETA UMA PERDA EM OUTRA, E QUE ESSE AVANÇO SUBJETIVO, APESAR  DE
SUA IMPORTÂNCIA ,  NÃO CORRESPONDE A UM INCREMENTO OBJETIVO EM VALORES ARTÍSTICOS .

Isso significa que cada desenvolvimento no caminho da “maturidade” de um saber 


relega determinados aspectos a trevas. Se tomarmos consciência que desenvolvemos
certos aspectos e perdemos outros percebemos, o que não foi vivido, e que naquela
época talvez fosse mesmo inviável. O indivíduo e a ciência criam uma espécie de oposto
ou sombra em cada desenvolvimento da luz. Romperemos com nossas tendências
radicais produzindo uma transformação no “alvorecer da vida”, incluindo novos começos
e resgates de possibilidades antigas. Este é um momento em que o tempo nos convida a
refletir sobre a parcialidade e o limite em que estamos presos.
 Na ciência,
ciência, a perda da orientação
orientação no tempo reforça a idéia
déia de que a reali
realidade não se
reduz totalmente à seqüência de eventos à qual tínhamos acesso universalmente. Ou
seja, com a cosmologia quântica e com a psicologia de Jung, surge a introdução da idéia
de movimento energético (no psiquismo e no universo). As ocorrências da vida se
modificam com o tempo, há um ritmo de expansão e contração da vida; há influências
 biol
iológ
ógiicas, sociai
sociaiss e psicol
psicológ
ógicas,
icas, inclui
ncluindo
ndo as questões de diferentes
diferentes momentos na vida
vida
do indivíduo, dependendo da singularidade e do que cada sujeito faz com ela. Um dos
motivos a que os povos tradicionais dão tanta importância aos seus velhos e também
nossa psicologia (Jung, 1963) é que nos ensinam sobre o tempo. É partir da metanóia
que surge a reflexão sobre o que “se plantou”, tornando-se mais presente a importância

117
do sentido de vida, com a consciência da morte.

O tempo origem e totalidade múltipla: no indivíduo e na ciência

O TEMPO, PARA OS POVOS INDÍGENAS , É UMA DIVINDADE SAGRADA ENCARREGADA DE MANTER  A L EI DOS C ICLOS.
[...] O TEMPO FAZ A LIGAÇÃO DO RITMO – QUE É COORDENADO PELO CORAÇÃO. [...] QUANDO CHEGARAM AS
GRANDES C ANOAS DOS V ENTOS ( AS CARAVELAS PORTUGUESAS ), TENTARAM BANIR  O ESPÍRITO DO TEMPO,
ALGEMANDO - O  NO PULSO DO H OMEM DA CIVILIZAÇÃO. DESSA ÉPOCA EM DIANTE, O TEMPO PASSOU A SER  CONTADO
DE MODO DIFERENTE. ESS E MODO DE CONTAR  O TEMPO GEROU A H ISTÓRIA, E MESMO A H ISTÓRIA PASSOU A SER 
CONTADA SEMPRE DO MODO COMO ACONTECEU PARA ALGUNS E  NÃO DO MODO COMO ACONTECEU PARA TODOS
(J ECUPÉ, 1999: 70-71).

O rompimento com a totalidade do homem, e do universo, e seu resgate na segunda


metade da vida, tem como fio condutor as transformações científicas e a questão da
temporalidade. Há na quebra de cenário linear do tempo-espaço, ou seja, percebemos,
como nos sonhos, um espaço além do passado, presente e futuro; bem como através da
idéia de retorno à origem, ou seja, passamos a pensar no sentido de nossa existência e do
mundo.
Utilizando um breve resumo do conto oriental “A toalha mágica”, podemos
compreender melhor a questão das passagens da ciência; sobre o tempo do retorno e a
entrada na totalidade; o caos e a ordem e a importância do erro como fator irracional de
aprendizagem sobre a multiplicidade e a vivência da totalidade:

ERA UMA VEZ UMA VELHA QUE MORAVA COM O FILHO E A  NORA. [...] A MOÇA, MEIGA E BONDOSA,  NUNCA SE
QUEIXAVA, O QUE DEIXAVA A VELHA AINDA MAIS ENFURECIDA. UM DIA, MANDOU QUE A MOÇA PREPARASSE UNS BOLOS
DE ARROZ E, QUANDO PRONTOS , OS CONTOU. [...] UM MONGE ANDARILHO PAROU JUNTO À CASA E A MOÇA,
GENEROSA, LHE DEU UM BOLO DE ARROZ. [...] A SOGRA  [...] CONTOU OS BOLOS E  NOTOU ,  NA HORA, QUE ESTAVA
FALTANDO UM.
 – O QUE VOCÊ FEZ COMO BOLO QUE ESTÁ FALTANDO? – ESBRAVEJOU. – CRIATURA VORAZ E INÚTIL!
[A MOÇA EXPLICOU E A SOGRA GRITOU MANDANDO BUSCÁ-LO. APRESENTANDO MIL DESCULPAS , A MOÇA PEDIU O
BOLO DE VOLTA.]
O MONGE RIU E DEVOLVEU O PRESENTE. POR  SUA VEZ, DEU À MOÇA UMA PEQUENA TOALHA. – LEVE-A PARA
ENXUGAR 
O ROSTO – DISSE. – S EI QUE SUA VIDA, COM SUA SOGRA,  NÃO É FÁCIL.
A PARTIR  DE ENTÃO, A VELHA MÃE COMEÇOU A  NOTAR  QUE SUA  NORA FICAVA CADA DIA MAIS E MAIS LINDA. [AO VER 
A MOÇA ENXUGAR  O ROSTO COM A TOALHA, MURMUROU CONSIGO]. – ELA USA UMA TOALHA MÁGICA! [...]. NO DIA
SEGUINTE  [...] ROUBOU- LHE A TOALHA. LAVOU O ROSTO E OLHOU- SE  NO ESPELHO. [I NICIALMENTE  NADA  NOTOU ] – 
PRECISO ENXUGAR  COM MAIS FORÇA! – [...] P ARA SEU HORROR  SEU ROSTO TORNOU - SE LONGO E EQÜINO, DEPOIS
PELUDO E REDONDO , COMO A CARA DE UM MACACO . FINALMENTE , FICOU COM A CARA DE UM GNOMO FEIO E
GROTESCO !
[A  NORA] VIU O DEMÔNIO DENTRO DA CASA E PREPAROU-SE PARA FUGIR . A VELHA GRITOU: – SOCORRO ! [A  NORA
RECONHECEU A VOZ DA SOGRA E ESTA LHE IMPLOROU] [...] – VOCÊ PRECISA DAR  UM JEITO! E NTÃO A  NORA SAIU
CORRENDO , EM BUSCA DO MONGE.
E NCONTROU -O  NÃO MUITO DISTANTE DALI. [ELE EXPLICOU:] – QUANDO UMA PESSOA MALVADA USA A TOALHA  [ ...]

118
ACABA PARECENDO UM DEMÔNIO. [...] – DIGA À SUA SOGRA QUE USE O OUTRO LADO DA TOALHA!
A JOVEM  [...] DISSE À VELHA QUAL A SOLUÇÃO. [...] [ELA ENXUGOU O ROSTO]. NA PRIMEIRA VEZ, SEU ROSTO
TRANSFIGUROU- SE DE GNOMO EM MACACO ;  NA SEGUNDA VEZ, EM UM FOCINHO DE CAVALO E,  NA TERCEIRA ,
TRANSFORMOU -SE EM SEU PRÓPRIO ROSTO ENRUGADO , MAS HUMANO.
A VELHA ABRAÇOU A  NORA E CHOROU.
 – QUERIDA FILHA – A SOGRA FALOU, IMPLORANDO PER  DÃO DÃO –, EU  NÃO VIA COMO EU ERA MÁ COM VOCÊ! – E DESSE
DIA EM DIANTE,  NUNCA MAIS PRONUNCIOU UMA PALAVRA ÁSPERA PARA  NINGUÉMINGUÉM  [ ...]. T INHA A ESPERANÇA DE QUE O
VELHO MONGE DA TOALHA MÁGICA VOLTASSE UM DIA, PARA QUE PUDESSE AGRADECER  - LHE. ELE, PORÉM,  NUNCA
MAIS VOLTOU  –  NEM FOI PRECISO (C HINEN, 1993: 31-32).

Observamos três passagens e quatro fases, como na ciência em geral (cf. Mello,
2003). As personagens principais são representantes de um feminino dividido entre o
 bem e o mal.
mal. Ao virar
virar a toalha,
toalha, a sogra
sogra usa o mesmo instrumento, através do aspecto
destrutivo. A sogra, símbolo do feminino sombrio, neste caso negativo, diante da nora,
representa a nossa cultura e a nossa maneira de fazer ciência. No segundo momento, a
sogra usa a toalha e encara o seu desconhecido. Desvela seu aspecto mais envelhecido,
mostra uma faceta rígida associada à frieza em um rosto alongado. Essa “outra face”
seria um aspecto do desconhecido. Para alguns pensadores em psicologia, simboliza a
verdadeira face. Em um terceiro momento, sua face se transforma em um animal peludo
e redondo, como um macaco. Em um quarto e último estágio passa a ter o rosto de um
ser sobre-humano, um gnomo, o “demônio”.
Podemos fazer um paralelo com a ciência tradicional com o início do conto. Há uma
invasão do caos, que invadiu o saber e invade a ciência, como nas crises e nas mudanças
de idade. Na ciência (Mello, 2002), uma espécie de “fantasma” invade a ciência positiva,
ressurgindo: sentimentos, intuições, aspectos que foram alijados do processo do
conhecer, reapareceram nas discussões sobre cientificidade. Percebeu-se que o ritmo da
vida inclui racionalidade e irracionalidade. O imprevisto aparece como nas equações não-
lineares. Essas equações, características do espaço quântico, significam que a desordem,
como uma forma de “crise de meia-idade”, aparecem e mostram que se desenvolvem
como caóticas, mas possuem uma ordem que se faz naturalmente, pois com o tempo vão
se desenvolvendo de forma ordenada para um resultado posterior previsível (Eenwyk,
1991). Nestas equações, ocorrem rupturas de bifurcações. Mas também há, como
dissemos, um fio condutor, sendo periódicas, repetindo-se de forma similar, tal como o
ritmo da vida. Dessa forma, conclui o autor ( ibid.) que dinâmicas não-lineares, ou
caóticas, refazem percursos diferentes, mas demonstram padrões reconhecíveis. Como
cada indivíduo, após se ocupar com as tarefas da primeira metade da vida, é como que
convidado para rever sua vida e percorrer novos caminhos, dando um sentido para tudo
o que foi vivido e que, apesar de percursos aparentemente caóticos, guardavam também
uma coerência, um fio condutor que não se vê logo de início. Há peculiaridades óbvias,
aspectos de cada um, não se repetindo de modo previsível. Mas como na psicologia de
cada um, nas ciências também percebemos a necessidade de aceitar as rupturas de cada
nova teoria ou descoberta que “a vida apresenta”.
Podemos admitir que estamos diante da trajetória do herói no mito, esse caminho só se

119
cumpre após o tempo básico, na velhice, pois essas mudanças de rumo são não-lineares,
incluindo um retorno posterior à unidade perdida. Ou seja, após conquistar o mundo,
surge a necessidade de viver o que ainda não foi vivido e buscar a reflexão, retornando
ao lar de forma diferente. Muitas vezes não se sabe como e aonde chegar em um
 primeiro
rimeiro momento caótico, mas o herói cotidi
cotidiano
ano (Jung, O.C. XV
XVII)
II) é aquele
aquele que retorna
a si mesmo, deixando de lado a correria dos primeiros anos da vida para se entender,
 passando a construir sua existênci
existênciaa a partir
partir de seu próprio
próprio ponto de partida.
partida.
Com a Psicologia do alvorecer, nos lembramos da questão da origem e do fim.
Justamente por isso podemos afirmar ser a metanóia o final da fase heróica, onde
“muitos dos valores construídos [...], e que tanto serviram [...] à diferenciação, precisam
ser deixados de lado. É necessário permitir a morte do velho para que, outra vez, o novo
tenha lugar” (Grimberg, 1997: 176).
 Na Física,
Física, também aparece um outro lado “da toalha”,
toalha”, a entrada em um mundo onde
também existe o outro lado oposto que completava a metade perdida da unidade, ou seja,
tudo o que existe tem seu vazio fundamental (Novello, 1988). Atualmente no estudo do
cosmo existe um Pré-universo que é um vazio, um espaço anterior ao  Big-Bang.   Este é
um modelo de cosmologia que admite uma unidade anterior, tendo as mesmas
características do inconsciente coletivo. Como o inconsciente coletivo, é uma visão de
mundo que inclui a possibilidade de um vazio que não seja nulidade, um vazio quântico
que é cheio de potencialidade, podendo manifestar-se a partir de efeitos observáveis
(ibid. ).

[E: ...] ASSIM, O ESPAÇO VAZIO, DE MATÉRIA, [...] PLENO, [...] POIS EM SEU SUBSTRATO, EM SUAS ENTRANHAS ,
ENCONTRAMOS AQUELES PROCESSOS QUÂNTICOS DO ESTADO FUNDAMENTAL, REVISANDO-O, AGITANDO- O, EXCITANDO-
O, COMO QUE PROCURANDO REDUZIR - LHE A SIMPLICIDADE E O REPOUSO (N OVELLO,  IBID. : 89).

Como o inconsciente coletivo, o pré-universo é também um: “lugar sem diferenciação,


origem e concentração de toda vida psíquica. [...] por simbolizar a totalidade
indiferenciada, inclui todas as possibilidades do via-a-ser” (Mello, 2002: 71), e manifesta-
se através de seus efeitos, como o pré-universo. Como características fundamentais,
 podemos enfatizar que nele não há tempo, espaço ou causalidade.
causalidade.
Com a idade mais avançada, podemos também passar por experiências que nos levam
a entender (Jung, O.C., VIII) que há uma relação de sentido entre o fato subjetivo do
indivíduo e o fato objetivo “externo”, ligando o mundo material ao psicológico. Jung
(ibid. ) utiliza o termo sincronicidade como conexão acausal entre as dimensões do
material e do psíquico. Mais que isso, esse conceito nos coloca a questão sobre o tempo
que conecta essas duas instâncias. Nas palavras de Jung ( ibid., § 418):

COMO A PSIQUE E A MATÉRIA ESTÃO ENCERRADAS EM UM SÓ E MESMO MUNDO  [...] EM ÚLTIMA ANÁLISE, SE
ASSENTAM EM FATORES TRANSCENDENTES E IRREPRESENTÁVEIS, HÁ  [...] AT É MESMO CERTA PROBABILIDADE DE QUE
A MATÉRIA E A PSIQUE SEJAM DOIS ASPECTOS DIFERENTES DE UMA SÓ E MESMA COISA. OS FENÔMENOS DA
SINCRONICIDADE  NOS MOSTRAM QUE O  NÃO-PSÍQUICO PODE SE COMPORTAR  COMO O PSÍQUICO , E VICE- VERSA, SEM A

120
PRESENÇA DE UM  NEXO CAUSAL ENTRE ELES.

Desenvolver-se (o Processo de Individuação) seria “[...] cada um de nós tornarmos a


nós mesmos o mais completamente que formos capazes, dentro dos limites que nos são
impostos pela nossa sina” (Hollis, 2004, p. 133) .  Neste processo há a necessidade de
redirecionamento de energia envolvendo uma depressão. Por vezes ela é doentia, quando
a doença passa a ser crônica e não serve como um “mestre interior” nos fazendo refletir.
Porém pode ser chamada de “normal”, quando é uma entrada no inconsciente e nos
 possibi
ossibillita refletir
refletir. A atração interna da energi
energia é uma espécie
espécie de força gravitaci
ravitacional
onal e
aparece na forma de “fantasia ou imagem” para refazermos os nossos caminhos. Se o
indivíduo consegue trazer essa energia de volta e integrar a imagem, ela passa a ter o
sentido de “depressão criativa” (Ellemberger, 1970; Harding apud   Mello, no prelo;
Steinberg, 1989 apud   Mello, no prelo). Esse tipo de depressão criativa é capaz de curar a
dissociação entre nossos aspectos opostos (Jung, O.C., XIV/1). Precisamos da
depressão, pois ela faz parte da descida do mito de herói que caminha rumo ao
inconsciente, ao desconhecido. O herói é um símbolo de alguém capaz de também fluir,
de entrar em si (Steinberg, op. cit .). .). Segundo Campbell (1988: 91), é necessário
ultrapassar o limiar, ou seja  ,  “é jogado no desconhecido, dando a impressão de que
morreu”. A trajetória do mito de origem se completa quando, após o caos, o herói torna-
se independente e refaz o ciclo: retorna à totalidade com seu olhar não mais
indiferen
indiferenciado
ciado ( ibid.). Todo diferenciar-se é retornar ao Uno, esfacelar-se e refazer-se.
O autor aponta que fatos “[...] extraordinários são [...] necessários para forçar a
autoconfrontação” (Chinen, 1993: 34), rompendo com o que o autor chama de “lógica
típica da juventude, aceita as categorias de ou/ou, em que tudo se classifica como preto
ou branco”.
A ciência também precisa ultrapassar essa incapacidade de percepção (Pauli & Jung
apud   Jaffé, 1990: 37), já com a Física quântica admite-se que o “[...] único ponto de
vista aceitável parece ser o que reconhece, como mutuamente compatíveis, ambos os
lados da mesma realidade – o quantitativo e o qualitativo, o físico e o psíquico – podendo
abarcá-los simultaneamente...”. Em termos individuais e coletivos, há um sentido
quântico-mítico do tempo de resgate, de revirar as lembranças do passado, acertando
contas com nossos projetos. Eis outro paradoxo humano: precisamos mudar para
continuar ser o que somos, o que foi uma conquista para o indivíduo e a civilização.
Como no conto do mestre zen Fukushima-roshi:

O MESTRE CONTA UMA HISTÓRIA EM QUE UM VELHO HOMEM TENTAVA EXPLICAR  A SEU  NETO A CRENÇA DA SEITA
J ODO, DO BUDISMO,  NA QUAL O N IRVANA EXISTE A OESTE. PORÉM O  NETO COMENTOU QUE, SE ALGUÉM VAI SEMPRE
EM DIREÇÃO A OESTE, ACABA DANDO A VOLTA AO MUNDO E CHEGA AO PONTO DE PARTIDA. ISS O QUER  DIZER , [...]
QUE O N IRVANA ESTÁ ONDE  NÓS ESTAMOS, ‘É SÓ PARAR  DE OLHAR  EM VOLTA’. CONTUDO HÁ UM PARADOXO  NESSA
HISTÓRIA: A CHEGADA AO PONTO DE ORIGEM GERALMENTE SE DÁ APÓS TER  SIDO COMPLETADA A VOLTA AO MUNDO.
[....]. NAS HISTÓRIAS DE FADAS E  NOS MITOS, ESSE PARADOXO É USUALMENTE REPRESENTADO POR  UM HERÓI QUE
T EM DE PARTIR  EM DIREÇÃO A UM MUNDO TOTALMENTE DESCONHECIDO E,  NESSA PEREGRINAÇÃO , DESCOBRE SUA
PRÓPRIA IDENTIDADE, SUAS PRÓPRIAS POTENCIALIDADES  (S ALLES, 1992: 74).

121
Dentro desta múltipla temporalidade, o tempo de retorno à origem é resgatado por 
Gödel. O matemático fez uma enorme contribuição para a Física e para os fundamentos
da ciência (Novello, 1997), produzindo uma profunda alteração no conceito de
temporalidade (ibid.). Em 1949, Gödel apresenta uma nova geometria obtida a partir das
equações de Einstein da gravitação, que possuía uma propriedade que a singularizou
dentre todas as demais soluções. A geometria de Gödel é uma geometria onde há “uma
configuração métrica desprovida de dificuldades causais” ( ibid., p. 71). A particularidade
aparece quando se caracteriza o estado de movimento da matéria. O movimento da
matéria nesse espaço-tempo produz surpresa: sem evolução temporal, onde o fluido
cósmico que provoca essa geometria apresenta uma rotação interna, própria ( ibid.). Essa
 propriedade,
ropriedade, aparentemente inocente, traz como conseqüência
conseqüência excepcio
excepcional
nal de romper 
com a linearidade em todos os níveis, e significa que ir para o futuro é também revisitar 
o passado.
Para podermos entender a psicologia de C. G. Jung, precisamos alcançar a importância
do tempo e a metanóia.
 Na Física, a quebra de cenário
cenário ocorre como na Psicolog
Psicologiia, e na vida
vida indivi
individual
dual,, através
da noção de temporalidade. O tempo na Física tem como representação 3+1, e
associamos aos três aspectos do espaço e algo além, um retorno para o início. Na
Psicologia de Jung há um “eterno retorno”, a reflexão sobre todas as passagens da vida.
Surge a necessidade de um novo entendimento do tempo, rompendo com um tempo
rígido que faz do passado, presente e futuro uma linha sem possibilidade de retorno. Na
Física atual convivemos com essa interpretação matemática, ou seja, uma nova realidade
não-representável em termos de espaço-tempo (Novello, 1988). Como também afirma
Jung:

 NA CONCEPÇÃO ORIGINAL DO HOMEM  [...], O ESPAÇO E O TEMPO SÃO COISAS SUMAMENTE DUVIDOSAS . SÓ SE
TORNARAM UM CONCEITO “ FIXO” COM O DESENVOLVIMENTO  [...] DO HOMEM GRAÇAS À INTRODUÇÃO DO PROCESSO
DE MEDIR . [...] SÃO CONCEITOS   [... HIPÓTESES ]  NASCIDOS DA ATIVIDADE  [...] DA CONSCIÊNCIA E FORMAM AS
COORDENADAS INDISPENSÁVEIS PARA A DESCRIÇÃO DO COMPORTAMENTO DOS CORPOS EM MOVIMENTO [...]. M AS O
PARENT ES   DOS  CORPOS   EM   MOVIMENTO  [...]  NECESS IDADES INTELECTUAIS DO
 ESPAÇO  E  O TEMPO SÃO  PROPRIEDADES   APARENT
OBSERVADOR   (J UNG, OC VII, § 840).

 Na Psi
P sicol
colog
ogiia sabemos que a transformação só aparece quando se unem necessidade
necessidade e
força de vontade (Jung, O.C., XVII). A necessidade da desordem em nossa vida, e
mesmo do erro permite transformação. Não errar, não sofrer excessos, manter-se sempre
em completo equilíbrio, sem crises e sem adoecer, é estar cristalizado, é ser possuído
 pelo
elo poder da consciência.
consciência. Eis
Eis a metáfora cristã
cristã de que quem não peca não poderá ser 
 perdoado: eis
eis nossa humanidade
humanidade e seu paradoxo,
paradoxo, nossa possibi
possibillidade de mais
mais trevas para
alcançar mais luz.

 NO FUNDO, SÓ ESSA CORAGEM  NOS É EXIGIDA: A DE SERMOS CORAJOSOS EM FACE DO ESTRANHO, DO MARAVILHOSO E
DO INEXPLICÁVEL QUE SE  NOS PODE DEFRONTAR  . [...] AS EXPERIÊNCIAS A QUE SE DÁ O  NOME DE “ APARECIMENTOS ”,

122
TODO O PRETENSO MUNDO “ SOBRENATURAL ”, A MORTE, TODAS ESSAS COISAS TÃO PRÓXIMAS DE  NÓS T ÊM SIDO T ÃO
EXCLUÍDAS DA VIDA, POR  UMA DEFENSIVA COTIDIANA. [...] NEM FALO DE D EUS. MAS A ÂNSIA EM FACE DO
INESCLARECÍVEL  NÃO EMPOBRECEU APENAS A EXISTÊNCIA DO INDIVÍDUO, COMO TAMBÉM AS RELAÇÕES DE HOMEM
PARA HOMEM. [...] NÃO É APENAS A PREGUIÇA QUE FAZ AS RELAÇÕES HUMANAS SE REPETIREM  NUMA T ÃO INDIZÍVEL
MONOTONIA EM CADA CASO; É TAMBÉM O MEDO DE ALGUM ACONTECIMENTO  NOVO, INCALCULÁVEL, DIANTE DO QUAL
 NÃO  NOS SENTIMOS BASTANTE FORTES  (R  ILKE, 1985: 66).

A segunda metade da vida necessita do risco da mudança. Para uns, ter a humildade
de aceitar o erro, para outros, a coragem de enfrentar o desafio de viver. Há uma
necessária imprevisibilidade, as “bifurcações” ou “dobras” (Thom, 1985) como na física
mais ampla – na cosmologia (Novello, 1988) que representam aspectos internos/externos
que se “interpõem” no caminho do nosso eu conhecido.
Dois resgates são fundamentais e a metanóia nos habilita através da temporalidade: o
resgate da desmedida do viver e da entrega (Hillman, op. cit .):.): – a necessidade de se
assumir a beleza, admitindo as zonas reprimidas, participando das experiências em
comunidade, pois o protesto social e político não é suficiente. Resgatar a beleza não é
olhar, é reaprender a ver: as ondas do mar, o “falcão” planar, mergulhar ( ibid.), e entrar 
no ritmo da vida. Enfrentar o medo de amar está ligado a deixar que o belo – e a dor – 
toque o coração. Neste ponto, estamos diante da sincronicidade, pois receber a vida e
suas imagens é essencial: a imagem é um evento psíquico poderoso. Refletindo sobre a
etimologia latina da palavra imagem, “ imago, de in ager , [...] demarcar um campo,
aggerare, amontoar terra ou arar [...] terra arada, marcada” ( ibid. ). Se unirmos a
etimologia de amor que tem raiz dessa palavra indica “atividade”. O vocabulário egípcio,
afirma Sant’Anna, traz a raiz MR, MR J, no Egito:

ESCRITA COM HIERÓGLIFOS A PALAVRA MR ERA REPRESENTADA POR  UMA ESPÉCIE DE PÁ OU DE CAVADEIRA DE
CAMPONÊS ABRINDO A TERRA. HÁ UM SENTIMENTO AGRÁRIO DE FECUNDAÇÃO CÓSMICA. AMOR , ENTÃO, ERA COMO O
ATO DE CULTIVAR  A TERRA. [...] SEU ALFABETO ESPECIAL  [ ...] PORQUE SABIAM TAMBÉM QUE O AMOR  É COISA PARA
OS INICIADOS  (S ANT ’A NNA, 1975: 10).

Podemos arriscar uma interpretação: se o amor é o instrumento do próprio ato de


cultivar, e se imagem significa arar produzindo uma terra marcada, o resultado de termos
oferecido um instrumento capaz de semear, em função do amor, é tornar possível um
espaço vazio para que a semente brote: em síntese, a imagem é um resultado da própria
ação de amar. A ação de cultivar simplesmente e esperar a semente também produz
imagens. Cultivar entendido como viver, às vezes caminhando sem saber, aonde estamos
indo, mas não deixando de arar. Isso significa, em termos práticos, que é na busca, no
ato cotidiano que talvez melhor possamos deixar que o mundo nos ensine, enquanto nós
exercitamos o saber.
Lembro Jung (O.C., VIII), quando ele afirma que devemos beber o cálice de dor e
 prazer que nos cabe até a últi
última
ma gota; e Rilke
Rilke (1985): se você não consegue
consegue perceber 
 beleza
eleza à sua volta,
volta, não culpe
culpe o que você vê, mas a você que não está sendo

123
suficientemente poeta. Ou ainda, da sabedoria popular, cito a literatura dos bonecos do
ordeste (mamulengos), onde o “professor Bolastrino” nos ensina que descobriu o
segredo da felicidade, que é muito simples, nunca estagnar as energias e amar o dever e o
 prazer (Góis, M. H. & P lacer, 1960). Lidar com a diferença
diferença permite a aprendizagem
aprendizagem com
a nossa polaridade interior, viver a dor e o prazer, resgatando a beleza. No pessoal e no
coletivo, partimos do pressuposto de que cada mudança ocorre em um nível, ou seja, em
cada metanível   (Hofstader, 2001) expressam um dinamismo específico. A proposta de
Jung é a necessidade de uma circulação ( circulatio ) de todos os níveis de produzir saber,
de forma não hierárquica, onde cada nível continua sendo válido dentro de cada
contexto. Assim, na vida, necessitamos integrar uma multiplicidade de tempos: os
resgates do que foi perdido, quando precisa ser revivido, o tempo do que não tivemos
tempo, o tempo de agora e as novas perspectivas do amanhã. Afinal, na psicologia de
Jung, há uma necessária diversidade do momento vivido e da multiplicidade humana que
é o tempo de cada um (Jung, O.C., VIII).
 Na Psi
P sicol
colog
ogiia, podemos inclui
incluirr a necessidade
necessidade de lidar com os múltipl
múltiplos
os olhares sobre o
ser humano. Ou seja, incluir a importância de suas teorias e suas práticas, colocando-as
em contato, sabendo da diferença de cada uma, mas sem enfatizar uma em detrimento
da outra. Como admite a psicologia de Jung, só na maturidade da ciência e da psicologia,
como na vida do indivíduo, costumamos aceitar a necessidade de conviver com a
contradição entre a incerteza e a sensação de certeza interior,“[...] apostando na
totalidade, perseguindo-a como princípio inalcançável. E neste grande paradoxo reside a
utopia da ciência (MUNNÉ, 1997: 44). Temos apenas uma certeza, todos precisamos ter 
humildade para aprender a ver quando a vida nos convida, pois todos somos perigosos:
os humanos, quando deixam “estancar as energias”, e as “teorias, quando deixam de
 pensar”.
Podemos dizer que, a partir da meia-idade e a época chamada de velhice, somos
convidados a retirar as dependências pessoais, com os pais, que estão morrendo, com os
filhos, que estão partindo, com o corpo, que nos lembra, pelos seus limites “que somos
mortais, que existe um fim, mas também que não há como algum dia realizarmos tudo o
que o coração persegue e pelo que anseia” (Hollis, op. cit., p. 45). Principalmente
 passamos, como a CiênciCiênciaa em geral em sua maturidade,
maturidade, a ter de abandonar as certezas
cer tezas e
voltar a refletir sobre o mundo que vivemos. No ser humano, também precisamos,
“voltar à terra” (ibid.), simbolizada pelo corpo e pelos limites da humanidade em geral.
Ao mesmo tempo, na Universidade de Harvard (cf. Chinen, 1993: 29), pesquisadores,
utilizando 268 indivíduos nesta última etapa da vida adulta, comprovaram as teses de
Jung, pois “descobriram que as pessoas tendem na mocidade a usar a projeção com
freqüência, mas que deixam de fazê-lo na maturidade. Mais ainda, que aqueles que não
chegaram a amadurecer e que passaram por dificuldade psicológica – desde o alcoolismo
até a depressão crônica – continuam a abusar da projeção”. Em contrapartida, “a
autoconfrontação e a auto-responsabilidade corresponderiam à saúde e à felicidade”, pois
“enfrentar os demônios interiores é um pré-requisisto de uma velhice feliz” ( ibid.).
Esta época da metanóia é o final do caminho do herói, o retorno ao vazio fundamental.

124
Aqui não é o momento do herói guerreiro, nem do intelectual, mas aquele que, após a
conquista de ser criador, é alçado à condição de criatura. Um duplo lugar se estabelece:
desviar-se do que todos afirmam ser lugar de “velhice” como vazio, mas também
aproveitar das necessidades que a nossa idade nos convida e nos permite. Para a
 psicol
sicolog
ogiia de Jung,
Jung, é quando o ego  abandona seu lugar de única instância que aprende a
rever seu sentido. Na religião judaico-cristã, por exemplo, é um sentimento de que
aceitação da

“DEPENDÊNCIA” QUE SE EXPRIME  NAS PALAVRAS DE A BRAÃO  NÃO CONSISTE  NO FACTO DE T ER  SIDO CRIADO, MAS  NO
DE  NÃO SER  MAIS DO QUE UMA CRIATURA .
O CONTRASTE ENTRE A MAGESTAS E A CONSCIÊNCIA DE SER  APENAS  “ PÓ E
CINZA” [...]. CONDUZ ANTES , POR  UM LADO, AO “ ANIQUILAMENTO” DO EU E, POR  OUTRO, À AFIRMAÇÃO DA
ABSOLUTA E ÚNICA REALIDADE DO TRANSCENDENTE; O QUE É TÍPICO DE CERTAS FORMAS DO MISTICISMO ( O T TO , S /D,
P . 30).

O conto nos ensina sobre o sentimento de ser uma criatura, de reconsiderar nossas
ligações com a totalidade, onde há poderes maiores do que os nossos. Nos alerta sobre
como a dor e o errar (“só erra quem faz”), e tudo, começa com um bolinho de arroz.
Sabedoria é mais do que vivência, é vivência afetiva (Mello, 2002), de sabor, eis sua
etimologia, “Sapienter   [...] destino. É prudente, razoável. Sapientia, s. ap. f. (de
 sapiens). (...) Sabor. Ter bom paladar (para conhecer a bondade dos alimentos) [...]
Aptidão,
ptidão, habil
habilidade, capacidade,
capacidade, [...]
[... ] razão e bom senso” (Saraiva, 1993: 1061).

A DIFERENÇA ENTRE A SABEDORIA E O CONHECIMENTO APARECE  NA C IÊNCIA QUANDO ESTA VOLTA A DIALOGAR  COM A
 NATUREZA. ESTES SABERES E O HOMEM,  NA MATURIDADE , PASSAM A VIVER  O PARADOXO DE PODER   NOS
RELACIONARMOS MELHOR  PORQUE  NÃO SOMOS MAIS DEPENDENTES (H OLLIS, OP . CIT  .),
.),  NÃO TERMOS TANTAS
PROJEÇÕES, MAS PERCEBEMOS QUE SOMOS PARTE DE UMA TOTALIDADE QUE  NOS TRANSCENDE. PODEMOS  NEST E
MOMENTO  NOS ACEITAR  COMO PARTE DA REALIDADE POIS  NÓS CONSTRUÍMOS UM VITRÔ MISTERIOSO, UMA
TOTALIDADE SOCIAL E CÓSMICA. PASSAMOS A SER  CRIATURAS E CRIADORES DE  NOSSA VIDA. PODEMOS AGORA
ESCOLHER  SERMOS  NÓS MESMOS, COM O POTENCIAL QUE JÁ TRAZÍAMOS , EXPRESSANDO OUTRO PARADOXO , SENDO
ÚNICOS E MAIS INDEPENDENTES , MAS ACEITANDO FAZER  PARTE DE UM MUNDO OBJETIVO QUE  NOS ENVOLVE , OU SEJA,
ASSUMIR  A DEPENDÊNCIA: DO  NOSSO CORPO PELO AR  QUE RESPIRAMOS; DOS LIMITES DO PENSAMENTO DA  NOSSA
CIÊNCIA SOBRE O MUNDO; DA  NECESS IDADE DE ALGUM APEGO INEVITÁVEL DOS AFETOS ; E DA INTUIÇÃO QUE  NOS
APONTA PARA UM SENTIDO QUE  NUNCA TEREMOS CERTEZA DE SUA VERACIDADE .

Discussão final
final

A história da ciência é um caminho de substituição de perguntas, de redirecionamento


de olhares. Podemos dizer que a história do homem é a história da transformação de seu
olhar. Na ciência, abaixamos nosso olhar para o mundo, deixamos de esperar respostas
dos deuses e passamos a contemplar a natureza; o que inicialmente ganhamos em
horizontalidade, perdemos em amplitude. Quando ultrapassamos esse olhar puramente
objetivo, enfrentamos o limite da verdade científica, na Física a relatividade do

125
observador, resgatamos o desconhecido, explodimos na arte as formas rígidas e
imitativas, e aprendemos a ouvir o não dito. Nesta transformação dos saberes, passamos
a ter um olhar interior, subjetivo. Separamos o homem do contexto, enfim,
aprofundamos, verticalizamos a existência. Outra mudança surge, e a relação com o meio
externo acabou por ser resgatada, a interdependência do mundo, e para alguns até o
nosso lado animal. Após as guerras surge, assim, na Psicologia, uma nova postura onde
 passamos a enfatizar
enfatizar a relação com o outro, a questão da existênci
existênciaa do ser-no-mundo e a
angústia da mortalidade. Neste mesmo momento, a Física subatômica resgata a
importância dos instrumentos de observação e a impossibilidade de entender a realidade
de forma definitiva. Ainda faltava ampliar a noção de tempo. A grande transformação,
 para a psicol
psicolog
ogiia analíti
analítica,
ca, estaria
estaria por vir
vir, como vimos,
vimos, entrando em cena os “novos
tempos”, surgindo a discussão sobre o tempo como uma linha reta. Com a cosmologia
quântica, como no amadurecimento do indivíduo, surge a discussão sobre o tempo, sobre
a união da realidade objetiva com a subjetiva.
Todas as transformações na ciência nos direciona para abandonar o racionalismo sem
 perder necessariamente
necessariamente a racional
racionaliidade, a ciência
ciência necessita
necessita resgatar
resgatar o irracional
rracional,, sua
complexidade. As ciências humanas e naturais estão se contextualizando e aceitando o
natural e o cultural, o significado é grandioso: somos parte do planeta, a ecologia que nos
integra no todo.
Utilizamos aqui a história da arte e da vida de Monet para exemplificar estes resgates
que incluem o ser humano dentro da natureza, símbolo da maturidade após a vida adulta.
Cito dois momentos da busca dos pequenos detalhes, do sentido das pequenas coisas:
Monet, após as águas de Veneza no seu retorno à casa. As telas de Veneza são um adeus
às alegrias e aos dessabores do relativo  e do acidental.   Monet está preparado para o
desafio das ninféiais (Pessanha, 1999: 162).

[...] E, UNINDO SABEDORIA OCIDENTAL E SABEDORIA ORIENTAL, COLOCA SOBRE O LAGO PONTES JAPONESAS   [...].
CONVITE AO RITUAL DE PASSAGEM QUE É A AUTO-REFLEXÃO, UMA DAS PONTES ,  NA PRIMAVERA, VEGETALIZA-SE .
[...]. É TODA VERDE, CONDUZINDO DO VERDE AO VERDE, LIGANDO  NAT AT UREZA, MISTÉRIO AO
AT UREZA À PRÓPRIA  NAT
MISTÉRIO. AO SE PASSAR  POR  ELA, VIVE-SE UMA METÁFORA DA PRÓPRIA EXISTÊNCIA HUMANA. E PODE-SE OLHAR 
PARA BAIXO  [ ...], E SE VER  A SI MESMO SOBRE A ÁGUA SERENÍSSIMA DO LAGO. O QUE SE VÊ ENTÃO É O REFLEXO DO
PRÓPRIO ROSTO, ENTRE AS IMAGENS DAS RAÍZES DO UNIVERSO,  NO MEIO DE  NENÚFARES
ENÚFARES : AUTO-RETRATO SEMPRE
INACABADO , COMO O PINTADO POR   M ONET .

Monet, em seu último resgate, refaz o caminho de busca de sentido através do olhar,
como os físicos através do diálogo com a natureza, procurando o absoluto, e a idéia de
sagrado ressurge. “[...] Sobre as águas, boiando, as ninféias” ( ibid. : 162). O pintor 
acreditava no final de sua vida que “as grandes ninféias não são paisagens, mas ícones de
um novo sagrado que escolheu se manifestar através das aparências da natureza”. Como
um herói em busca de seu sentido reproduzirá obsessivamente essas flores: “[...]
Seduzida pela luz, no verão, em cada alvorecer, a flor da ninféia emerge das profundezas
escuras do lago, ovo noturno que lentamente desabrocha – para de novo se recolher sob

126
a água quando a luz desaparece ( ibid. : 162-163). Também no último estágio do
amadurecimento, o ser humano pode se arriscar a entrar no escuro, deprimindo-se,
aceitar ter medo e admitir que há sentidos além do que pode controlar. Resumindo, o
idoso é aquele, que como Monet ( ibid.) e os grandes cientistas, podem unir a
racionalidade e irracionalidade, dedicando-se a se entregar às expressões da vida em
geral.

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Natureza da Psique. 
Psique.  1.ª ed. O.C., VIII Petrópolis: Vozes, 1986.
 _____.  Desenvolvimento
esenvolvi mento da personalidade. 
personalidade. 1.ª ed., O.C., XV XVII.
II. Petrópolis:
Petrópolis: Vozes,
Vozes, 1981.
 _____.  Memórias, Sonhos, Ref
R eflexões.
lexões.  4.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963.
 _____.  Mysterium Coniunctionis.
Coniunctionis. 1.ª ed. O.C., XIV/1. Petrópolis: Vozes, 1990.
 _____. O homem e seus símbolos. 
símbolos. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.
KUHN, T. S.  A Estrutura das Relações Científicas.
Científ icas.   1.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.
KUPERMAN. Ciência e Tradição: Horizontes de Desarmonia. 
Desarmonia.  Publicação da Pós-Graduação ECO/UFRJ. V. 1, n.

127
3, Rio de Janeiro, 1993.
LEROI-GOURHAN, A. A. O gesto e a palavra 1 – Técnica e Linguagem. 
Linguagem.   Lisboa: Edições 70, 1985.
MELLO, E. C. C. “Introdução aos fundamentos do método clínico junguiano.” In: KAUFMAN, F. G. &
VALLADA, C. P.  Desafio da prática: o paciente e o continente. 
continente.  Anais do III Congresso Latino-Americano de
Psicologia Junguiana. São Paulo: Lector Editora, 2003, p. 463-468.
 _____. O Espaço Transdisciplinar – Origem e Totalidade: Contribuições Epistemológicas Interdisciplinares para
a Comunicação entre as Áreas do Saber: Psicologia, Física e Mitologia.  Mitologia.   Tese de doutorado. Rio de Janeiro,
I.P. /U.F.R.J., 2002.
 _____.  A Prática e os Fundamentos Epistemológicos da Clínica Clíni ca Junguiana. 
Junguiana. Rio de Janeiro: Aion, no prelo.
MUNNÉ, F. “Pluralismo teórico y comportamiento social.”  Psicologia & Sociedade; Sociedade; 9 (1-2): 31-46; jan. dez.
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 NOVEL
OVELLO, LO, M. Cosmos e contexto. 
contexto. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Florese Universitária, 1988.
 _____. O círculo do tempo – Um olhar Científico Sobre Viagens não convencionais no tempo. tempo. 1.ª ed. Rio de
Janeiro: Campus, 1997.
 _____. Totalidade: Uma Visão Científica. 
Científica.  Palestra para mesa-redonda sobre o tema geral Psicanálise, Ciência e
Cultura na sessão “O lugar de Deus no Pensamento Contemporâneo”, organizado pela sociedade Brasileira de
Psicanálise em 13 de setembro de 1993.
 _____.  Informação
nf ormação oral . Conteúdo da orientação de pós-doutorado, no primeiro semestre de 2004, no Centro
Brasileiro de Pesquisas Físicas – MCT, Rio de Janeiro.
PESSANHA, L. A. M. 1999. “Bachelard e Monet: o olho e a mão.” In: NOVAES, A. O Olhar.  Olhar.  São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 149-166.
RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta; A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão.  Cristóvão.   13.ª ed.
Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1985.
SALLES, C. A. C.  Individuação
ndiv iduação – O homem e suas relações relações com o trabalho, o amor e o conhecimento. 
conhecimento.  Rio de
Janeiro: Imago, 1992.
SANT’ANNA, A. R. “Entre Outras Palavras o amor.” Crônica,  Jornal do Brasil , Rio de Janeiro, 1975.
SARAIVA, F. R. S.  Novíssimo Dicionário Latino-Português
Latino-P ortuguês Etimológico, Prosódico,
Prosódico, Histórico, Geográfico,
 Mitológico, Biográfico
Biográf ico   etc. 10.ª ed., Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1993.
SIGELMANN, E.  A Homogênea das Teorias Teorias Psicanalíticas:
P sicanalíticas: Uma Questão de Interação. 1.ª
Interação. 1.ª ed. Rio de Janeiro:
Imago, n. 2 abr./jun. 1995.
SILVEIRA, N. Jung: Vida e Obra.  Obra.  1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
THOM, R.  Parábolas e Catástrof
Catástrofes. es.   Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985.
TARNAS, R. (1999). As Origens do Pensamento Grego. 1.ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.

*   Pós-Doutora em Ciências (CBPF - MCT); coordenadora do curso de especia lização de Teo ria e P rát ica Junguiana
Junguiana (UVA) - Rio de
Janeiro e Brasília; analista junguiana filiada à Association for Analytical Psycology (IAAP) pela Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica (SBPA); especialista em Psicologia Clínica e Psicologia Hospitalar (CFP). Publicações: -  Mergulh
ergulhand
andoo no
n o Mar sem Fundo
Fun do -
 Introdução sobre a Epistem ologia
olog ia Atual e a Clínica Jung uiana
uian a . Rio de Janeiro: Aion, 2003. Participação: - Mello, E. C. C. &
Damião, Jr. M. 2005. “A hermenêutica simbólica: uma reflexão sobre a epistemologia da clínica junguiana”, In SANTOS, M. A.,
SUNIBM, C. P. E Leal,Lea l, e MELO- SILVA, L.L . L. Contribuições teórico-clínicas. Formação em psicologia: processos clínicos. São
Paulo: Vetor, 200 5, p. 391-41 8.

128
129
Coleção PSICOLOGIA
PS ICOLOGIA E ESPIRITUA
ESPI RITUALIDADE
LIDADE
•  Psicologia e espiritualidade,
espiritualidade, Mauro Martins Amatuzzi (org.)
•  Espiritualidade e f initude,
initude, Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (org.)
•  Metanóia e meia-idade,
meia-idade, Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (org.)

130
Direção editorial
Claudiano Avelino dos Santos
Assistente
Assistente editor
editor ial
Jacqueline Mendes Fontes
Coordenação de desenvolviment
desenvolviment o digital
digital
José Erivaldo
Erivaldo Dant as

Dados
Dados Int ernacionais de Catalogação
Catalogação n a P ublicação
ublicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Metanóia e meia idade:
idade: tr evas e luz / Dulcinéa
Dulcinéa da Mata Ribeiro
Ribeiro Mo nt eiro (or g.). — 
 — São
São P aulo: Paulu
Pa ulus,
s, 200 8. — (Coleção psicologia e e spiritualid
spirit ualidade)
ade)
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-349-2900-4
1. Crise da meia-idade
meia-idade 2. Envelheciment o - Aspectos psicológicos
psicológicos
3. Meia-idade - Aspectos psicológicos 4. Pessoas de meia-idade - Psicologia
I. Mon teiro, Dulcinéa
Dulcinéa da Mata Ribeiro. II. Série.
07-9693 CDD-155.66

© PAULUS – 2013
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 – São Paulo (Brasil)
(Brasil)
Tel. (11) 5087-3700 – Fax (11) 5579-3627
www.paulus.com.br 
editorial@paulus.com.br 
eISBN 978-85-349-3773-3

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Scivias
de Bingen,
Bingen, Hildegarda
Hildegarda
9788534946025
776 páginas
páginas

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Scivias,
Scivias , a obra
obr a religiosa
rel igiosa mais
mais importan
importantete da santa e doutora
doutora da Igreja
Igreja Hildegarda
de Bingen,
Bingen, compõe-se
compõe-se de vint vi ntee e seis visões, que são primpri meiramente
eiramente escritas
escri tas de
maneira literal, tal como ela as teve, sendo, a seguir, explicadas exegeticamente.
Algu
Alguns dos tópicos present
pr esenteses nas visões
visõ es são a caridade
cari dade de Cristo, a natureza
natureza do
universo, o reino de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e o fi m do
mundo. Ênfase especial é dada aos sacramentos do matrimônio e da eucaristia,
em resposta à heresia cátara. Como grupo, as visões formam uma summa
teológica
teológica da doutrina
doutrina cristã.
cr istã. No fi nal de Scivias,
Scivia s, encontram
encontram-se -se hinos de louvor
l ouvor e
uma
uma peça
pe ça curta, provav
pr ovavelment
elmentee um rascunho
rascunho primitivo
pr imitivo ded e Ordo
Ord o virtut
vi rtutum
um,, a
 primeira obra de moralmoral conco nhecida. Hildegarda é notável
notável por ser capaz
c apaz de unir 
unir 
"visão com doutrina,
doutrina, relig
reli gião com ciência,
ciência, júbilo
júbil o carismát
car ismático
ico com indign
indignação
ação
 profética, e anseio
anseio por ordem
o rdem social com a busca por justiça justiça social".
soci al". Este livro é
especialm
especia lment
entee sign
s ignificativo
ificativo para
par a historiadores
historiador es e teólogas
teólogas feministas.
feministas. Elucida a
vida das mulheres medievais, e é um exemplo impressionante de certa forma
especial de espiritualidade
espiritualidade cristã.
cri stã.

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133
134
Santa Gemma Galgani - Diário
Galgani, Gemma
9788534945714
248 páginas
páginas

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Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me assegurar 


de que era verdadeiram
verdadei rament
entee a Mãe de Jesus:
Je sus: deu-me
deu-me sinal
si nal para me orient
or ientar.
ar.
Depois de um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a comoção que me
senti muito pequena diante dela, e tamanho o contentamento que não pude
 pronunciar
ronunciar palavra,
palavra , senão dizer,
dizer, repetidament
repetidamente, e, o nom
nomee de 'Mãe'. [...] Enquant
Enquantoo
untas conversávamos, e me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria
que fosse, estava quase chorando, e então me disse: 'Minha filha, agora basta;
Jesus pede-lhe
pede-l he este sacrifício,
sacrifício , por ora
or a convém que a deixe'. A suasua palavra
pal avra
deixou-me em paz; repousei tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'.
Deixou-me. Quem poderia descrever em detalhes quão bela, quão querida é a
Mãe celeste?
celes te? Não, certam
cer tament
entee não existe comparação. Quando
Quando terei a felicidade
felic idade
de vê-la novamente?

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135
136
DOCAT
Vv.Aa.
9788534945059
320 páginas
páginas

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Dando continuidade ao projeto do YOUCAT, o presente livro apresenta a


Doutrina Social da Igreja numa linguagem jovem. Esta obra conta ainda com
 prefácio do Papa Francisco, que manif
manifesta
esta o sonho
sonho de ter um
um milhão de jovens
leitores da Doutrina Social da Igreja, convidando-os a ser Doutrina Social em
movimento.

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137
138
Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição
Pastoral
Vv.Aa.
9788534945226
576 páginas
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A Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral oferece um texto


acessível, principalmente às comunidades de base, círculos bíblicos, catequese e
celebrações. Com introdução para cada livro e notas explicativas, a proposta
desta edição é renovar a vida cristã à luz da Palavra de Deus.

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139
140
 origem da Bíblia
McDonald, Lee Martin
9788534936583
264 páginas
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Este é um grandioso trabalho que oferece respostas e explica os caminhos


 percorridos
ercorr idos pela
pel a Bíblia até
a té os dias atuais.
atuais. Em estilo acessível
aces sível,, o autor
autor descreve
como
como a Bíblia cristã
cris tã teve seu início, desenvolveu
des envolveu-se
-se e por fim,
fim, se fixou.
fixou. Lee
Lee
Martin
Martin McDonald
McDonald analisa textos
textos desde a Bíblia
Bíbl ia hebraica
hebraic a até a literatura
 patrística.

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141
Índice

Apresentação 6
1. O envelhecer e o tempo: um olhar filosófico 9
Bibliografia 16
2. Saber chegar, saber passar, saber partir 18
Citações Bibliográficas 20
3. Espelho, espelho meu... 22
Bibliografia 31
4. Metamorfoses da alma após a meia-idade... 32
Começando a refletir... 32
Questões fundamentais da meia-idade 35
Onde me encontro? Qual o sentido da vida? 35
Metamorfoses reativas ao envelhecer 37
Questões fundamentais da meia-idade 39
As metamorfoses da alma de Nietzsche e a metanóia de Jung 42
P arando de refletir... 47
Bibliografia 49
5. Metanóia e história: Conflitos e rupturas na meia-idade 51
Referência Bibliográfica 57
6. A dimensão religiosa da existência e o envelhecer – Diálogo
59
entre Kierkegaard e Jung
A dimensão estética e a sedução pelo prazer 59
O sentido do Ético e o jogo dos opostos 61
O envelhecer e a dimensão religiosa da existência 64
Bibliografia 69
7. Seren
Serenida
idade
de – ser é unida
unidade:
de: Um
Um encon
encontr
troo entr
entree Heide
Heideggger e Jung
Jung 71
METANÓIA: A Virada no Caminho 71
ENVELHECER COMO ENCONTRO TRO DO SER: os desafios do caminho 73
ANG
NGÚS ÚSTIA
TIA E MOR
MORTE:
TE: na cont
contra
radi
diçã
çãoo da
da ex
experi
periên
ênci
ciaa par
paraa o sent
sentiido do ser
ser 75
A IDADE DO SER: ser realizando o Ser 77
SER É SABER: a conquista do não-ser através da serenidade 79
Bibliografia 81

142
8. Sobre a vida e a dor da meia-idade: Articulação entre Jung e 83
Schopenhauer 
Considerações Gerais 83
Sobre as considerações teóricas 83
Sobre a idéia de vontade 84
Sobre o mundo, a vontade e a representação 85
Sobre as dores do mundo – viver é sofrer? 86
A supressão das dores do mundo 89
A velhice, metanóia e transcendência 91
Referências Bibliográficas 94
9. O caminho do espírito na ciência e nos sonhos 96
Introdução 96
O inconsciente e o “sopro espírito” 98
Testemunho do espírito e testemunho histórico 99
O testemunho do espírito e o P rocesso de Individuação 100
A ati
ativida
vidade
de do espí
espíri
rito
to no sonh
sonhoo de
de Jun
Jungg e a form
formaç
ação
ão da cons
consci
ciên
ênci
ciaa de
de si
si 1011
10
O P lano A e o P lano B 103
Conclusão 104
Referência Bibliográfica 105
10. Metanóia e mudança de paradigma 106
Referências Bibliográficas 113
11. A psico
sicollogia ju
junguian
anaa e a fí
física
sica no temp
empo da mat
matuuridad
adee 114
Introdução 114
Rupturas e resgates na ciência 115
O início da ciência e suas transformações 116
O tempo origem e totalidade múltipla: no indivíduo e na ciência 118
Discussão final 125
Referências Bibliográficas 127

143

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