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REPRESENTAÇÕES DE MORTE
Origem da morte
"Uma mulher tinha dois filhos gêmeos, alguns dizem que eram
irmão e irmã,’ que desmaiaram. Possivelmente só estavam dor
mindo. Sua mãe os deixou de m adrugada e quando retornou à
noite, eles ainda estavam deitados lá. Ela notou pegadas como as
deles, e imaginou que eles tinham voltado à vida e brincado du
rante a sua ausência. Certa vez ela chegou, inesperadamente, e
encontrou-os discutindo dentro da cabana. Um deles dizia: ‘É
melhor estar morto’. O outro dizia: ‘É melhor estar vivo.’ Quando
a viram, pararam de falar e desde então as pessoas morrem de
tempos em tempos, portanto, sempre há vivos e mortos. Se ela
tivesse permanecido escondida e permitido que eles encerrassem
sua discussão, um teria vencido o outro, e daí não haveria vida
ou não haveria morte." (in Meltzer, 1984)
Sobre que morte falar? Existe uma morte, aquela do final da vida, da qual,
cm princípio, não temos consciência durante o seu processo, pois "ninguém
volta para contar", como diz o povo. Segundo os budistas, ou seja, de acordo
com a sua religião e filosofia, a morte é o momento de máxima consciência,
< os homens iluminados lembram suas mortes e suas outras vidas. Então
não há só uma morte, mas várias, durante todo o processo evolutivo. Esta é
,i minha crença, assim como cada pessoa tem a sua.
Qual delas poderia ser a "nossa morte"? A forma como a vemos certa
mente influenciará a nossa forma de ser. Entrelaçamos vida e morte, du
rante todo o nosso processo de desenvolvimento vital. Engana-se quem
acredita que a morte só é um problema no final da vida, e que só então
deverá pensar nela. Podemos, é claro, tentar esquecer, ignorar ou mesmo
"matar" a morte. Sabemos que a filosofia e o modo de viver do século XX
pregam veementemente esta atitude, porém, com um sucesso relativo,
como veremos. Na verdade, trata-se de um grande e inútil dispêndio de
energia.
Não nos iludamos, pois o que buscamos não é a vida eterna e sim a
juventude eterna com seus prazeres, força, beleza e não a velhice eterna
com suas perdas, feiúra, dores. Quantos "heróis" perderam a vida na bus
ca da imortalidade! Não acreditamos em nossa própria morte, agimos
como se ela não existisse, fazemos planos para o futuro, criamos obras e
filhos, imaginamos que estes perpetuarão o nosso ser. Em alguns casos,
isso ocorre, o homem é perpetuado pelas suas obras. Algumas vezes,
estas se mostram mais vivas depois da sua morte. Quantos foram reco
nhecidos só depois de mortos! Van Gogh é um exemplo destes "imortais"
depois da rnorte.
' A morte faz parte do desenvolvimento humano desde a mais tenra idade.
Nos pnm ejros meses de vida a criança vive a ausência da mãe, sentindo
que esta não é onipresente. Estas primeiras ausências são vividas como
mortes, a criança se percebe só e desamparada. Efetivamente não é ca
paz de sobreviver sem a mãe. São, no entanto*., breves momentós~òu, as
vezes, períodos mais longos, porém logolalguémVparece. Mas esta pri-
meira impressão fica carimbada e m arca uma das representações mais
fortes de todos os tempos que é a morte como ausência, perdã,~separa-
ção, e a conseqüente vivência de aniquilação e desamparo. A experiência
da relação m aterna tão acolhedora e receptiva, tambênT é responsável
por outra representação poderosa da morte, ou seja, a morte como figura
maternal que acolhe, que dá conforto. Esta representação provavelmente
é bastante acentuada em indivíduos que tentam suicídio diante de situa
ções insuportáveis, ou que originam impasses profundos.
vel. pode ser desfeita. H á diferenças entre vivos e mortos, mas os últimos
poderão ser ressuscitados sozinhos ou com ajuda de alguém. Na realida
de não é assim, os verdadeiros mortos não ressuscitam; como a criança
consegue elaborar esta contradição? A m orte se faz acompanhar de uma
tentativa de explicação e, por outro lado, fortes emoções assolam quando
de seu acontecimento. A dor acompanha as mortes e o processo de luto
se faz necessário; a criànçíT também processa as suas perdas, chora, se
desespera e depois se conforma como o adulto. Certamente não expres
sará a sua dor, se não souber que aconteceu uma morte, entretanto a
criança percebe que algo aconteceu pois todos estão agindo de uma for
ma diferente. Estes pontos serão melhor discutidos em outros capítulos
deste livro.
Outro elemento da morte que fica muito presente nesta fase da vida é o
elemento culpa. Esta relaciona-se muito com o pensamento mágico e
onipotente infantil e com os elementos de sociabilização que levam a
desejos de morte, de tal forma que, se ocorre uma morte, é inevitável que
a criança estabeleça uma relação entre esses desejos e a morte efetiva.
Representações de morte 5
M as em seu íntimo, ocorre um a dúvida: será ele apenas hum ano, frágil, e
te rá o m esm o destino do outro? A adolescência se configura pelas ambi-
valências. A o m esm o tem po que se sente todo-poderoso, o adolescente
tam bém "borra as calças", só que dificilm ente exterioriza essas fraquezas.
Assim, o herói tem os seus m om entos de dúvida e insegurança.
O uso de drogas pode ter como objetivo elevar o "pico" da vida ou servir
com o elem ento de alteração da consciência. Sabem os que o núm ero de
m ortes concretas associadas às drogas é m uito alto, envolvendo aciden
tes, doenças. N o entanto a droga traz a representação da m orte ligada às
grandes viagens, à percepção diferente do m undo, a um estado alterado
de consciência.
H á pessoas que chegam aos 90 ou 100 anos. Será para m orrer em vida?
Jung diz que se temos vinte anos para nos prepararm os para a vida,
deveríamos ter o mesmo tempo para nos prepararm os para a morte.
Pode-se preparar para a morte vivendo intensamente, obviamente não
estamos falando de negar a morte, ou esconder o sol com uma peneira,
mas de conviver com ela em busca do seu significado. Tfcmos observado
Representações de morte 9
A morte como limite nos ajuda a crescer, mas a morte vivenciada como
limite, também é dor, perda da função, das carnes, do afeto. E também
solidão, tristeza, pobreza. I Jma das imagensjn ais fortes da m orte é a da
velhice, representada por uma velha encarquilhada, magra, ossuda, sem
dentes, feia e fedida. É uma visão que nos causa repulsa e terror.
Neste capítulo que inicia esta obra, com poucas citações nós nos propu
semos estabelecer uma relação entre as representações mais comuns da
morte e as fases do desenvolvimento humano. Já que a tônica deste livro
6 falar da morte enquanto há vida, este é o lugar da psicologia no seu
estudo do homem.
1.
f,
da morte estão os seguintes (Ziegler, 1977):
— \S>U/<3 'VwtsTW'*’
Não-receptividade e não-reação total a estímulos externos, mesmo
que dolorosos. Não há emissão de sons, gemidos, contrações, nem
aceleração da respiração.
< nmo se vê, do ponto de vista somático há uma definição que perm ite a
><instalação da m orte sem maiores problem as. Em caso de dúvida,
pode se pedir que mais de um médico confirme o óbito. U m a vez dado
■>nteslado, iniciam-se os ritos funerários. Do ponto de vista psicológico
■ic.lc.in inúmeras mortes, como vimos, nas suas mais variadas repre-
m nt ações, inclusive podem os agir como se ela não existisse.
Referências Bibliográficas
JIJNG, C. G. - The soul and death. Vol. 8 Collected Works. London, Rou-
tledge and Keagan Paul, 1960.
Eros e Morte
humano. É neste sentido que a perda pode ser chamada de morte "cons
ciente" ou de morte vivida.
Como foi visto é necessário tempo para o processo de luto. O final deste
processo, segundo Raimbault, é a possibilidade de ter paz, disponibilida
de para novos investimentos. É a possibilidade de ter recordações, olhar
uma foto e sentir a presença na ausência.
O suicídio é uma das mortes mais difíceis de elaborar, pela forte culpa
que desperta. Ativa a sensação de abandono e impotência em quem fica.
O enlutado, além de lidar com a sua própria culpa, é freqüentemente alvo
de suspeita da sociedade como sendo o responsável pela morte do outro.
Em muitos ca^os, há uma dificuldade de desligamento da libido pela rup
tura inesperada.
Bowlby fez um estudo sobre o luto infantil e percebeu que este sofre in
fluência do processo de luto dos adultos, e também do nível de informação
que a criança recebeu, como foi visto no capítulo 4. Segundo Raimbault
(1979), a criança tal como o adulto começa negando que houve uma perda
e age como se a pessoa não tivesse morrido. Em virtude do pensamento
mágico acha que é responsável pela morte do outro. Pode também apresen
tar processos identificatórios com sintomas semelhantes aos da pessoa mor-
ta,Jnformações sonegadas e confusas atrapalham o processo de luto. Res
postas que escamoteiam o caráter de permanência da morte, que é a infor
mação mais difícil de ser comunicada, não permitem que a elaboração da
Morte, separação, perdas e o processo de luto 157
A criança passa pelas mesmas fases de luto que o adulto, desde que esteja
de posse dos esclarecimentos de que necessita e que devem ser forneci
dos, levando-se em conta o seu nível cognitivo e capacidade de com
preensão. É sabido que a continência e o apoio são extremamente impor
tantes para a criança. A falsa noção de que "proteger" a criança da dor,
escondendo fatos que são evidentes é uma das principais razões para a
manifestação de sintomas patológicos na criança. É um mito supor que o
processo de luto da criança é rápido e que logo ela se esquecerá da
pessoa perdida. Estudos realizados com bebês, nos quais já ocorreu o
estabelecimento de vínculos específicos, demonstram que a criança se de
sespera na ausência da mãe, que é sentida como morte. Suas primeiras
reações são de protesto e raiva, um esforço urgente para recuperar a mãe.
Logo se desenvolve um desespero, a esperança diminui, mas não o desejo,
...axriança então vai se tornando apática, podendo cessar o seu desenvolvi
mento, e nos casos mais críticos desenvolve-se a depressão anaclítica,
conduzindo à morte. Quando há o reencontro, em alguns casos, a criança
está tão abalada que não restabelece o vínculo prontamente. Em outros
casos, um substituto pode ser procurado. Com crianças institucionaliza
das, como não há uma pessoa única que cuida delas, este vínculo mais
profundo não se estabelece, e a criança pode tornar-se muito autocentra-
da, às vezes com comportamentos autistas.
A autora conclui que, tanto nós processos de luto normal, como no pato
lógico, a posição infantil depressiva é reativada. Os indivíduos maníaco-
depressivos e aqueles que não conseguem elaborar o luto têm em comum
o fato de que, na infância, não conseguiram estabelecer os seus objetos
internos "bons", e não se sentiram seguros no mundo.
D e todos os aspectos que vimos até agora, podemos observar que as per
das e a sua elaboração fazem parte do cotidiano, já que são vividas em
todos os momentos do desenvolvimento humano. São as perdas por m or
te, as separações amorosas, bem como, as perdas consideradas como "pe
quenas mortes", como, por exemplo, as fases do desenvolvimento, da in
fância para a adolescência, vida adulta e velhice. São também vividas
como "pequenas mortes" mudanças de casa, de emprego. O matrimônio e
o nascimento do filho também são "mortes simbólicas", onde uma pessoa
perde algo "conhecido”, como o papel de solteiro e o de filho, e vive o
"desconhecido" de ser cônjuge ou pai. Estas situações podem despertar
164 Morte e desenvolvimento humano
Referências Bibliográficas