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SÃO PAULO
2008
CAROLINA MOREIRA COIMBRA VIEIRA
SÃO PAULO
2008
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AGRADECIMENTOS
Aos meus amigos de faculdade pela diversão e pelas conversas, tanto das matérias,
quanto das dúvidas a respeito do futuro. Agora todos nós ganhamos asas e vamos voar...
As minhas grandes amigas Elô, Eri, Ana Carol e Jana, por entenderem que os meus
sumiços esporádicos nesses 5 anos eram conseqüência da paixão que sinto pela psicologia.
À Araci Linchevicins por me pegar pela mão e me guiar pelo meu processo de
individuação.
Finalmente, agradeço à minha família por sempre apoiarem as escolhas que fiz em
minha vida. À minha mãe, Wanda, amiga e parceira de vida e ao meu irmão, Rodrigo. E em
especial ao meu pai Alberto que me ensinou que a vida é feita de luta e os sonhos podem
ser alcançados.
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Área de conhecimento: 7.07.05.01-1
Carolina Moreira Coimbra Vieira: A mulher contemporânea e a possibilidade de escolha -
Um olhar para o Feminino sob a ótica da Psicologia Analítica. 2008.
Orientadora: Profª Drª Flávia Arantes Hime.
Palavra-Chave: Psicologia Analítica, Feminino, Animus, Escolha.
RESUMO
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 7
1. PSICOLOGIA ANALÍTICA........................................................................................ 13
Consciente e Ego .............................................................................................................. 13
Complexos ........................................................................................................................ 14
Arquétipos ........................................................................................................................ 15
Inconsciente Pessoal e Coletivo ....................................................................................... 16
Inconsciente Pessoal ..................................................................................................... 16
Inconsciente Coletivo ................................................................................................... 17
Anima e Animus............................................................................................................... 17
Sombra.............................................................................................................................. 21
Persona ............................................................................................................................. 22
Individuação ..................................................................................................................... 23
Self.................................................................................................................................... 24
Símbolo............................................................................................................................. 24
2. HISTÓRIA DA MULHER ........................................................................................... 26
Pré – História .................................................................................................................... 26
Suméria............................................................................................................................. 28
Egito ................................................................................................................................. 29
Grécia ............................................................................................................................... 30
Sociedades Feudais........................................................................................................... 31
A camponesa ................................................................................................................ 34
A nobre ......................................................................................................................... 35
A religiosa .................................................................................................................... 37
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Idade Moderna.................................................................................................................. 38
Séculos XIX e XX ............................................................................................................ 41
Século XXI – A mulher contemporânea .......................................................................... 54
3. O DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA ........................................................ 64
Fase Mágica...................................................................................................................... 65
Fase Mitológica ................................................................................................................ 66
Fase Mental ...................................................................................................................... 68
Novos Modelos de Orientação ......................................................................................... 71
4. O FEMININO E A POSSIBILIDADE DE ESCOLHA ............................................... 75
5. A IMPORTÂNCIA DOS MITOS ................................................................................ 79
Graal ................................................................................................................................. 80
Gawain e Ragnell ......................................................................................................... 83
6. OS CELTAS ................................................................................................................. 85
7. MÉTODO ..................................................................................................................... 88
8. O CASAMENTO DE SIR GAWAIN E DONA RAGNELL ...................................... 91
ANÁLISE E DISCUSSÃO .................................................................................................. 98
CONCLUSÃO.................................................................................................................... 116
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 123
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INTRODUÇÃO
Meu interesse pelo estudo do feminino ocorreu enquanto cursava a eletiva Gênero e
Feminilidade no 3º ano da graduação da Faculdade de Psicologia da PUCSP e, como gostei
muito das aulas, passei a ler mais sobre o assunto, tanto literatura acadêmica quanto leiga.
Sempre estive imersa no universo feminino, primeiro porque sou mulher, mas
também vivi o Feminino em minha experiência como estudante de psicologia nos estágios
oferecidos pelos núcleos do 4º ano (Núcleo de Saúde) e do 5º ano (Psicologia Hospitalar e
Psicologia Analítica) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É interessante
verificar como se manifesta o tema das escolhas das mulheres:
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Concordo com Bauer (2001), quando ele afirma que “A situação da mulher é hoje
um tema bastante estudado, provavelmente porque a sua condição nova traz à luz
questionamentos também novos, que muitos buscam responder” (BAUER, 2001:07).
Dentre os vários temas de interesse, neste trabalho busco compreender a questão da
possibilidade de escolha da mulher contemporânea.
Para Dowling (2002) “As mulheres hoje se acham entre o fogo cruzado de velhas e
radicalmente novas idéias sociais (...)” (DOWLING, 2002: 22). Portanto, esse meio termo
entre a possibilidade de escolher o rumo de sua vida e o conservadorismos que leva a
manter o status quo fazem parte da construção do que é ser mulher no mundo
contemporâneo, pois, estamos entre as lutas dos séculos passados e as possibilidades dos
séculos que estão por vir.
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O fascínio e a vida dos mitos e contos de fadas baseiam-se, pois, no fato de
que eles representam as formas primárias da experiência humana, razão
por que os mesmos motivos são difundidos no mundo inteiro, não apenas
em conseqüência da migração, mas também porque a psique humana que
produz estas formas é, por toda parte, a mesma (JUNG & VON FRANZ,
1980:27).
Isso pode ser feito já que o mito é universal e, portanto não possui apenas um único
ponto de vista, o que abre possibilidades para novas análises e novas descobertas acerca de
seu conteúdo.
9
do homem – não apenas uma situação histórica. Uma situação-limite é aquela que o homem
descobre ao tornar-se consciente do seu lugar do universo” (ELIADE apud WHITMONT,
2006: 69).
No segundo capítulo, faço uma revisão histórica sobre o feminino desde a pré-
história até os dias atuais para buscar compreender os nossos comportamentos, pois somos
todos afetados pela nossa própria história, mas também pelos conteúdos históricos
remanescentes da psique coletiva, afinal, “A preocupação com assuntos históricos pode
parecer, à primeira vista, ser meramente um passatempo pessoal do médico, mas para o
psicoterapeuta é, em certo sentido, uma parte necessária de seu equipamento mental”
(HARDING, 1985: 16).
No que diz respeito aos aspectos da vida da mulher contemporânea. Vou buscar na
literatura um recorte do feminino para traçar um panorama social da atualidade a fim de
refletir sobre as escolhas que as mulheres estão fazendo, suas expectativas e desejos
relativos à sociedade e o que esta espera dele, já que há recursividade entre o âmbito
pessoal e o social (Giddens, 1993).
Dessa forma, esse levantamento histórico tem a finalidade de compreender como foi
visto e vivido o feminino em diversos momentos históricos e buscar refletir porque e para
que o estamos vivenciando da forma como vivemos atualmente.
No sexto capítulo, faço um breve retrato sobre os celtas, sua sociedade, cultura e
comportamento para contextualizar o mito utilizado.
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A relevância desta pesquisa abrange várias áreas da psicologia, como a psicoterapia
individual/de casal, psicologia da saúde, pesquisas, promoção de saúde, dentre outras. A
possibilidade de fazer escolhas conscientemente e arcar com as conseqüências pode levar a
uma maior apropriação de si e das relações, sendo inclusive, considerada por autores
relevantes como um indício importante de saúde mental (Erikson, 1976).
As pesquisas sobre Gênero em Psicologia ainda são escassas, o que não ocorre em
outras áreas de conhecimento, como as ciências sociais, por exemplo. Meu estudo pode
contribuir para gerar novas informações que validem e aprofundem a comunicação entre
dados e reflexões teóricas.
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1. PSICOLOGIA ANALÍTICA
No presente capítulo, faço um resumo da teoria que servirá como base para a análise
deste trabalho. É uma teoria complexa e, por isso, aqui serão apresentados os principais
conceitos formulados por Jung.
Consciente e Ego
O ego é a experiência que a pessoa tem dela mesma, é o sujeito de todos os atos
conscientes de uma pessoa. Assim, para qualquer sentimento, percepção, fantasia ou
pensamento se tornarem conscientes, eles devem se ligar ao ego. Um ego adulto saudável
deve ser focado na ação (ter objetivo) e dispor de condições para fazer escolhas e bancá-las
(agüentar a perda), pois se o ego for suficientemente forte, dará passagem aos conteúdos do
inconsciente, se fortalecendo.
Stein (2005) afirma que é o ego que determina quais são os conteúdos que ficarão
na consciência e quais passarão para o inconsciente, assim, ele tem o poder de reprimir ou
resgatar material psíquico, portanto, é possível perceber que o ego tem poder de ação e não
apenas reage, já que todos os conteúdos estão, de alguma forma, ligados ao ego
funcionando como uma agência central, já que ele é a energia que move os conteúdos da
consciência. Dessa forma, o ego seria o lugar onde ocorre a tomada de decisão e o livre-
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arbítrio, sendo a instância que individualiza os seres humanos entre si. Ele influencia, mas
também pode ser influenciado por estímulos internos e externos.
Complexos
O Ego se fortalece ao interagir com o mundo, mas também existem conteúdos que
perturbam a consciência que nada tem a ver com o mundo externo, mas sim com fatores
internos. Os conteúdos que geram essas perturbações são chamados de Complexos. A
estrutura do complexo é
Essa reação emocional pode ser uma leve ansiedade até a loucura; dessa forma, uma
pessoa constelada por um complexo pode perder o controle de suas emoções e de seu
comportamento.
É necessário fortalecer o ego para não ficar à mercê dos complexos, para que ele
possa abafar em si mesmo uma parte dessa energia e, conseqüentemente, diminuir os
impulsos emocionais e físicos, porém, essa energia nunca será completamente eliminada.
Stein (2005) afirma que “em certa medida, nenhum de nós é inteiramente responsável pelo
que dizemos ou fazemos quando sob o domínio de um complexo” (STEIN, 2005: 48).
Arquétipos
Arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens. Demonstra a
existência de uma base psíquica comum a todos os seres humanos (contos de fadas,
dogmas, mitos, ritos religiosos, artes...). Quando essas energias psíquicas tomam forma,
geram as imagens arquetípicas, também chamadas de imagens primordiais.
Falamos de arquétipos quando nos referimos aos conteúdos que não foram
elaborados pelo consciente, pois se encontram nas camadas mais profundas do
inconsciente.
Inconsciente Pessoal e Coletivo
O inconsciente não é “inimigo” do ego, não o ataca, mas trabalha a seu favor. Tudo
dependerá da posição do próprio ego em relação ao material que desconhece. Dessa forma,
o inconsciente não é visto como apenas reativo ao consciente, mas também tem autonomia
em relação ao processo psíquico, formando assim, um mundo próprio que pouco sabemos:
Podemos entender, portanto que o inconsciente nunca está em repouso, ele “(...) está
sempre empenhado em agrupar e reagrupar seus conteúdos. Só em casos patológicos tal
atividade pode tornar-se completamente autônoma; de um modo normal ela é coordenada
com a consciência, numa reação compensadora” (JUNG, 2004a: 04).
Inconsciente Pessoal
Camada mais superficial da psique que contém os complexos. É constituído por
conteúdos individuais que foram esquecidos ou reprimidos.
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O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas
(propositadamente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por
assim dizer, não ultrapassam o limiar da consciência (subliminais), isto é,
percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a
consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência.
Corresponde à figura da sombra, que freqüentemente aparece nos sonhos
(JUNG, 2004b: 58).
Inconsciente Coletivo
É a camada mais profunda da psique, que possui conteúdos arquetípicos e, portanto,
inatos e não individuais que nunca emergiram à consciência. Como afirma Jung (2004), “O
inconsciente coletivo é uma figuração do mundo, representando um só tempo a
sedimentação multimilenar da experiência” (JUNG, 2004b: 86). Assim, o inconsciente
coletivo diz respeito “à comunidade humana em geral” (JUNG, 2004a: 54).
Anima e Animus
Anima(us) é um arquétipo da psique e tem uma enorme influência sobre os
indivíduos e a sociedade. Ele se situa fora da influência da consciência (família,
sociedade, cultura e tradição) e, por isso, podemos percebê-lo apenas observando suas
manifestações. De acordo com Stein (2005),
(...) o território de anima e animus parece, por vezes, uma selva profunda e
indevassável. Talvez isso deva ser assim mesmo, pois estamos penetrando aí
nas camadas mais profundas do inconsciente, o inconsciente coletivo, o
território das imagens arquetípicas, onde as fronteiras são imprecisas
(STEIN, 2005:117).
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O modo como as pessoas percebem seu profundo interior caracterizam sua
atitude de anima e animus, assim, a anima(us) diz respeito à relação do ego com o
sujeito e, por isso, seu interesse é se adaptar ao mundo interior, que deve funcionar
como uma ponte para as imagens do inconsciente coletivo.
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Ao ser percebida pela consciência do ego, a imagem da anima(us) estimula desejo
de união, gerando atração e vontade de participação, dessa forma, a anima(us) é um
arquétipo transformador. Mas para desenvolvimento psicológico e, conseqüentemente,
aumento de consciência, o ego e a anima(us) devem estar ligadas em um processo dialético
e não em obediência cega. Nesse processo, nos deparamos com nossas projeções e
questionamos nossas românticas e guardadas ilusões. Já que “A anima/us é a grande
criadora de ilusão que fornece estímulos exaustos e dilacera o coração dos ingênuos”
(STEIN, 2005: 129).
A sombra também pode agir coletivamente, pois será através dela que
discriminações raciais, religiosas, sexuais, etc podem ocorrer. Assim como no enfoque
individual, a sombra coletiva também deve ser reintegrada, afinal “(...) a sombra é o
arquétipo do inimigo” (WHITMONT, 2006: 151).
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Persona
Persona é a máscara da psique coletiva com a finalidade de se adaptar ao exterior.
Representa uma aparência referente ao desempenho de papéis na sociedade e, apesar da
persona fazer parte da psique coletiva, também existe uma escolha pessoal de seus
conteúdos, afinal é através da persona que o indivíduo se mostrará.
Uma consciência apenas pessoal acentua com certa ansiedade seus direitos
de autor e de propriedade no que concerne aos seus conteúdos, procurando
deste modo criar um todo. Mas todos os conteúdos que não se ajustam a
esse todo são negligenciados, esquecidos, ou então reprimidos e negados.
Isto constitui uma forma de auto-educação que não deixa de ser, porém,
demasiado arbitrária e violenta. Em benefício de uma imagem ideal, à qual
o indivíduo aspira moldar-se, sacrifica-se muito de sua humanidade
(JUNG, 2004a:32).
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Individuação
Individuação é um processo, uma busca, uma meta, por assim dizer. Esse processo
depende do ego que se fortalece ao longo da vida devido a interação com o seu interno e o
meio externo.
Enfim, todos os conceitos da teoria junguiana devem ser compreendidos e por fim
integrados na psique, o que não é um trabalho fácil, e sim um trabalho de uma (ou muitas)
vidas.
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Self
O Self seria a totalidade da psique no qual os opostos se equilibram, consciente e
inconsciente se somam e, portanto, a personalidade total não tem como centro o ego, mas o
self.
Símbolo
Símbolo não é um conceito fácil de compreender. “O símbolo é uma forma
extremamente complexa. Nela se reúnem opostos numa síntese que vai além das
capacidades de compreensão disponíveis no presente e que ainda não pode ser formulada
dentro de conceitos” (SILVEIRA, 2003: 71).
Em todo símbolo está presente uma imagem arquetípica como fator essencial. O
consciente e inconsciente se aproximam (uma parte é acessível à consciência, mas a outra
parte fica inconsciente).
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disponibilidade para compreender a mensagem e, por isso, muitas vezes,
precise de ajuda para elaborá-lo (PENNA, 2003: 178).
Expressões humanas, como rituais, arte e, no caso desta pesquisa, os mitos são
entendidos como símbolos e conseqüentemente, estudados já que nos fornece pistas de
materiais inconscientes. Isso acontece pelo fato do símbolo ser a expressão de algo
significativo; é uma linguagem universal que se exprime pelas imagens que transcendem a
problemática dos indivíduos.
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2. HISTÓRIA DA MULHER
Utilizo como base para fazer essa análise histórica as obras de J M Roberts (2002) e
Carlos Bauer (2001) e complemento com as obras de Esteca (2004), Showater (2004),
Stearns (2007) dentre outros e, na contextualização da mulher contemporânea (século XXI)
também faço uso da mídia impressa (jornais e revistas) por acreditar que é um instrumento
que mostra o que está sendo discutido atualmente sobre o tema.
Pré – História
Entre os historiadores e arqueólogos, ainda existe dificuldade em dizer de forma
definitiva quando, ao longo da evolução, deixamos de ser macacos para nos tornarmos
humanos. Mas sabemos que os primeiros hominídeos surgiram há 25 milhões de anos e o
descobrimento do fogo ocorreu por volta de 600.000 a.C. O fogo foi primordial para vida
em grupo, como afirma Roberts (2002):
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(...) O fogo de cozinhar como fonte de luz e calor teria reunido as pessoas à
sua volta, depois do anoitecer, e ajudou a formar um grupo mais consciente
da sua própria comunidade. De algum modo, os indivíduos conversavam: o
desenvolvimento da linguagem (...) deve ter sido acelerado neste cenário
(ROBERTS, 2002: 33).
Stearns (2007), afirma que a transição de caça e coleta para a agricultura, colocou
fim à igualdade de gênero que existia. Isso por que durante a caça e a coleta cada um
contribuía de forma significativa com a produção geral do grupo. A taxa de natalidade era
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baixa, pois o período de aleitamento materno era longo, o que impulsionava o trabalho das
mulheres que não precisavam passar mais tempo com as crianças.
Suméria
Surge a Suméria, por volta de 3500 a.C, em decorrência da invenção da roda e dos
instrumentos de metais e bronze (Stearns, 2007). A Suméria, para Roberts (2002), é
considerada a primeira civilização formada e se localizava no atual Iraque. Nesse período,
os sumérios formavam uma sociedade mais estruturada, constituída por grupos maiores
para proteção, dominavam a natureza ao redor e já era possível plantar mais que o
necessário para a sobrevivência.
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As mulheres sumérias parecem menos tiranizadas do que suas irmãs em
muitas outras sociedades posteriores do Oriente Próximo. As tradições
semitas e não-semitas podem divergir a este respeito. As narrativas
sumérias sobre os deuses sugerem uma sociedade muito consciente do
poder da sexualidade feminina; os sumérios foram o primeiro povo a
escrever a respeito da paixão (ROBERTS, 2002: 88).
Egito
Para Roberts (2002), as primeiras civilizações depois da Suméria foram encontradas
no Egito em torno de 3.200 até 1.075 a.C.
O trono é a razão pela qual havia casamentos consangüíneos, isto é, para que o
poder continuasse dentro das famílias e, por isso, casamentos entre irmãos e entre pai e
filha eram permitidos.
Apesar de algumas mulheres aprenderem a ler e a escrever, seu lugar seria dentro do
lar, pois não existia muito espaço para a mulher como profissional, a não ser se tornando
sacerdotisa ou prostituta. As mulheres egípcias tinham direitos sobre seus bens, assim como
as mulheres sumérias.
1
Ìsis foi venerada até aproximadamente VI d.C. Era considerada a mãe do Universo, mas também era vista
como uma das filhas do deus da terra com a deusa do céu. Várias características suas foram assimiladas na
Virgem Maria. (Husain, 2001).
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Grécia
As meninas não tinham acesso à educação e os meninos eram retirados dos cuidados
maternos desde cedo. A educação grega consistia na memorização, música, escrita,
literatura e ginástica.
Assim, os homens nunca se encontravam com as esposas dos seus amigos, nem em
ambientes festivos. Caso um encontro entre homens e mulheres acontecesse, significaria
que esta mulher era uma cortesã profissional (chamada de hetaira). Já Muraro (1992),
discorda e afirma que a minoria das hetairas eram prostitutas. Eram, na verdade, mulheres
estudadas e de alta sofisticação que poderiam conversar com os homens no mesmo nível.
A mulher rica não poderia trabalhar, mas a pobre sim; contudo, não eram permitidas
as profissões de enfermeira, atriz e escriba, dentre outras. Em compensação, em casa havia
muito o que fazer pois elas teciam, confeccionavam suas roupas e tinham como tarefa lavar
as roupas da família.
É interessante notar que Roberts (2002) relata em sua obra uma certa dominação
masculina na sociedade egípcia: a “sociedade era patriarcal, as mulheres não podiam
possuir propriedades, administrar negócios, e eram sempre tuteladas pelos maridos ou
parentes masculinos mais próximos.” (ROBERTS, 2002: 196). Porém, apesar da reclusão
feminina, ele afirma que não há indícios de falta de respeito em relação às mulheres gregas,
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pois iam ao teatro e, portanto, tiveram acesso às grandes tragédias gregas, além de
existirem dados que mostram que elas não eram submissas aos homens.
Sociedades Feudais
O Feudalismo, de acordo com Bauer (2001), surge entre os séculos IX e XIII
seguindo até o século XX (em algumas cidades européias).
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tinha um papel essencial na criação. A mulher começa a ser descrita como “um ser sem
vontade, fraco e sem inteligência” (ESTECA, 2004: 09).
Depois de 1453, o cristianismo se tornou mais forte do que nunca. Robert (2002)
afirma que a vida dos cidadãos passou ser marcada por rituais da igreja, como nascimento,
batismo, casamento e morte e, por isso, muitas pessoas de ambos os sexos se tornavam
religiosos.
A figura do Diabo ganha força por volta do século XIII e logo o demônio é
associado às feiticeiras que serão exterminadas em um dos maiores genocídios da história
da humanidade: a Caça às Bruxas, que ocorre entre os séculos XIV ao XVIII (ESTECA,
2004: 13). A bruxa passa a ser vista como adoradora do demônio e, conseqüentemente, leva
a culpa por todos os danos que ocorriam na época.
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diabo e a existência dos íncubos e súcubos 2 que invadiam o sono das pessoas e as
incitavam sexualmente.
A autora afirma que é nesse período que se fixam os papéis sociais vigentes
atualmente, pois o sistema econômico evoluiu para o mercantilismo e depois para o
capitalismo, mas a cultura patriarcal se manteve.
O casamento religioso foi estabelecido pela Igreja para fins econômicos, isto é, para
evitar que o patrimônio das famílias se dispersasse. Por isso o casamento sacramentado por
Deus deveria ser para sempre, como afirma Bauer (2001), “Quanto ao casamento, escreve o
historiador José Rivair Macedo, a maior vitória da Igreja foi inculcar a idéia de que esse é
indissolúvel” (BAUER, 2001: 22) o que faz com que o poder da igreja aumente e o poder
econômico continue nas famílias nobres. Além disso, as famílias nucleares eram à base da
sociedade e, portanto, era imprescindível que o casamento fosse “para sempre” para que
não houvesse transformações na vida individual, e como conseqüência, abalasse a estrutura
social vigente.
No século XII, o casamento se torna um ritual e entre os séculos XIII e XIV ele
toma a forma que vemos até hoje. Durante o matrimônio, o homem mandava e a mulher se
2
Os íncubos e os súcubos são, de acordo com a mitologia suméria, seres gerados por Lilith que, depois de
abandonar Adão no paraíso, passa a viver nas margens do Rio Vermelho transformando-se na demônia dos
cabelos longos (Sicuteri, 1998). Valores patriarcais da época impediram que Lilith fosse incorporada na
crença cristã. O estudo deste mito é importante para entender a sexualidade feminina, no que diz respeito à
dicotomia da procriação - sexualidade.
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submetia, ela deveria reverenciá-lo. A mulher, por sua vez, era vista como um fardo a ser
suportado e só poderia ser abandonada caso cometesse adultério. O contato sexual só era
permitido pela Igreja para a procriação e o homem não poderia amar muito a esposa, pois a
estaria tratando como uma prostituta, além de afastar-se do amor a Deus.
No geral, de acordo com Bauer (2001), existiam nas sociedades feudais, três tipos
de modos de viver para a mulher: a camponesa, a nobre e a que seguia a vida religiosa.
A camponesa
Existiam dois tipos de camponesas: as camponesas escravas e as camponesas livres.
As escravas se submetiam aos senhores feudais que inclusive escolhiam seu marido, e as
camponesas livres se submetiam ao pai ou cônjuge. Os homens não gostavam que as
camponesas livres tivessem o direito de trabalhar, pois sua mão de obra era barata (isto é,
ganhavam menos) o que prejudicava os homens pela concorrência, mas mesmo assim, elas
constituíam a maior parte da população e, por isso, tinham muitas atividades profissionais,
como: operárias na indústria têxtil, açougueiras, desempenhavam tarefas agrárias,
empregadas dos nobres, pastoras de ovelhas, dentre outras, além das tarefas domésticas.
Essas camponesas eram mulheres pobres que precisavam garantir seu sustento e de
sua família e, nessa época, tinham uma importante participação na vida rural ao lado do
homem; apesar de trabalharem em quase todos os ofícios da época, era difícil que fossem
reconhecidas como mestres de ofício, mesmo que atuassem como tal.
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Já Duby (1992) nos mostra outro recorte da vida das camponesas medievais:
De uma maneira geral, o próprio Duby (1992) afirma que é escasso o material sobre
as camponesas, pois o foco era a nobre e seus estilo de vida, como veremos a seguir.
A nobre
Duby (1992) nos mostra que na época medieval a “superioridade dos nobres
repousa num cabedal de poderio e glória.” (DUBY, 1992: 179). Existia uma transmissão de
valores de pai para filho de armas e coragem; o importante era que esses valores não se
desgastem ao longo das gerações, com isso, a “linhagem já constitui o arcabouço da
aristocracia.” (DUBY, 1992: 179). Dessa forma, para que essa linhagem não se
empobrecesse, os casamentos das filhas eram feitos da seguinte forma: as filhas eram
casadas com um dote de bens móveis e assim deixavam para trás toda a fortuna de sua
família, que voltava para os irmãos. Porém, não era feita partilha igual entre os irmãos, pois
também os empobreceria. Dessa forma, apenas o irmão mais velho se casava e recebia o
direito de gerenciar a fortuna da família.
A mulher que fazia parte da nobreza se casava por interesse econômico das famílias.
Elas eram prometidas desde crianças e seus casamentos geralmente aconteciam antes de
completarem quatorze anos e, por isso, não era incomum ver enormes diferenças de idade
entre os cônjuges.
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Duby (1992) relata que a endogamia era uma prática comum, já que a união de
primos impede que a fortuna se dissipe, mas essa prática batia de frente com os interesses
da igreja, que proibia o incesto.
Como o casamento era sinônimo de arranjo econômico, era comum que as pessoas
vivessem o chamado ‘amor cortês’, isto é, se apaixonassem platonicamente. Dante
Alighieri é um bom exemplo desta época ao demonstrar esse amor por Beatriz:
Vocês, na rua do Amor indo a passeio,
esperem, sem receio,
e sintam toda a dor do meu lamento.
Ouçam-me apenas, nada mais anseio.
Por isto, dói-me o seio:
Por fazer de um segredo o meu tormento (ALIGUIERI, 2006: 23).
O sofrimento faz parte da vida desses homens, pois passam a idealizar a amada, que
é vista como um ser divino e inatingível, já que elas eram prometidas a outro ou até mesmo
casadas.
Já Muraro cita que valores patriarcais eram veiculados sob forma de romances de
amor, que pareciam querer humanizar uma sociedade baseada em guerras e violência e com
isso exaltar o feminino, mas que, na verdade, mostrava as mulheres como seres estáticos e
passivos. Eram retratadas como “princesas adormecidas ou cinderelas à espera do príncipe
encantado” (MURARO, apud ESTECA, 2004: 13).
De qualquer forma, podemos perceber que a visão da mulher associada ao diabo foi
substituída pela idealização da Dama. Bauer (2001) afirma que o aumento da crença na
Virgem Maria contribuiu favoravelmente para a elevação da mulher na sociedade feudal.
Surge, então, a separação entre a mulher ideal e a mulher comum (Esteca, 2004).
As nobres tinham acesso à educação para que pudessem ter uma boa atuação na
sociedade – como a personagem de Emma Bovary. Essa educação era dada nos conventos e
constituía tanto o ensino religioso, como também ler e escrever, bons costumes, costura e
outras práticas domésticas. Tudo isso, simplesmente para agradar a corte:
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Fica-nos evidente que todas estas qualidades que as damas adquiriam
através desta educação formal estavam inexoravelmente vinculadas a
servirem de forma mais qualificada e agradável à corte a qual
entusiasmavam com sua argúcia no jogo de xadrez, contando ou lendo
histórias, cantando ou tocando diferentes instrumentos musicais,
respondendo com agilidade e destreza as perguntas mais agudas e
complexas e, principalmente, demonstrando serem esposas dignas e
devotadas (BAUER, 2001: 35).
Elas tinham como obrigação representar seu marido quando este se ausentava, o que
mostra que, apesar de submetida às ordens do marido, a mulher da nobreza atuava em seu
ambiente e era respeitada como tal. Quem se responsabilizava pela educação das crianças
eram as amas de leite. As mulheres da nobreza não tinham qualquer participação nessa
atividade sendo bastante distantes de seus filhos. Depois dos cuidados das amas, eles eram
enviados para os conventos para serem educados.
A religiosa
Geralmente, o convento era o destino das meninas da nobreza que possuíam muitas
irmãs, pois, além do casamento, a vida religiosa era um meio de ter reconhecimento social.
Era também o lugar das viúvas sem filhos depois da morte do marido e de mulheres que
acreditavam ser sua verdadeira vocação.
37
Tamanha era a riqueza e a importância da vida dos religiosos que estima-se que só
na Inglaterra, existiam cerca de 130 conventos na Europa medieval (Bauer, 2001). Esses
conventos eram ricos e grandes proprietários de terras e por isso eram equiparados com o
poder dos senhores feudais.
As atividades nos conventos eram oração, estudo e trabalho, além dos trabalhos
assistenciais que faziam com os idosos e doentes. A ocupação dependia do tipo de convento
em que se estava. Se o convento fosse rico, havia servos para o trabalho pesado, mas se o
convento não tivesse dinheiro, as internas eram responsáveis pelos afazeres domésticos,
como alimentação, vestimentas e o trabalho agrícola.
Idade Moderna
Para Bauer (2001), é na chamada Idade Moderna – datada entre os séculos XVI ao
XVIII – que surge a classe média formada pela burguesia. A expansão do comércio gera
riqueza em forma de dinheiro. Ela deixa de ser estática na forma de propriedades e começa
a ser uma riqueza mais ativa. A Igreja também perde terreno com o protestantismo e com o
pensamento Humanista que coloca o homem como centro de tudo – antropocentrismo.
O poder deixa de ser descentralizado nas mãos dos senhores feudais e passa a ser
centralizado nas mãos do rei: surgem as Monarquias Absolutistas, o que fez com que,
lentamente, as mulheres perdessem o poder que tinham na sociedade feudal e, como
38
conseqüência, seu trabalho passa a ficar cada vez mais marginalizado em detrimento do
trabalho masculino.
A vida familiar era diferente do que vemos hoje em dia. Dentro da casa, moravam
todos os familiares, como pai, mãe, filhos, cunhados, sobrinhos, etc., não existiam casa com
separações entre os cômodos e, muitas vezes, os animais viviam juntos com as pessoas. Os
homens deveriam trabalhar fora de casa (esfera pública) e as mulheres tinham como
responsabilidade o trabalho doméstico (esfera privada).
Não existia o conceito do amor materno e a mortalidade infantil era muito alta o que
obrigava a mulher a engravidar muitas vezes para que “vingassem” alguns. A criação ficava
a cargo da ama de leite que, de acordo com Bauer (2001):
(...) era muito custosa; por isto em épocas de crise econômica aumentava
consideravelmente o número de crianças abandonadas nas grandes cidades
39
européias. No final do século XVIII, por exemplo, as autoridades de Paris
recolheram, em apenas um ano, aproximadamente sete mil crianças
abandonadas, o que significava 1/3 de todos os nascimentos registrados na
cidade! (BAUER, 2001: 59).
Assim, podemos verificar que a maternidade nessa época ainda não estava
vinculada à maternagem. Mas com o surgimento da burguesia, a família passa por
modificações que persistem até os dias de hoje afetando a vida da mulher contemporânea:
dentro de casa, passam a morar apenas pais e filhos gerando o que conhecemos por família
nuclear; além disso, passam a existir o conceito de amor materno e conseqüentemente, o
conceito de infância:
Dessa forma, a dicotomia público - privado se configura, o trabalho fora de casa fica
a cargo do homem e o trabalho doméstico deixa de ser considerado “trabalho”, passando a
ter a simbologia de amor e felicidade familiar. Nessa época os homens ganharam o acesso
exclusivo à educação e as mulheres começaram a viver à margem da política e cultura.
Nasce então, de acordo com o autor, a noção de “rainha do lar” que acaba sendo
disseminada por toda a Europa, mesmo que tenha encontrado oposição de algumas
mulheres. Elas passam a fazer parte dos movimentos revolucionários da época contra a falta
de alimentos e o aumento dos impostos, além de se organizarem para que a voz feminina
tivesse mais força.
40
Começam, então, a surgir movimentos de luta por igualdade de gênero. A
Revolução Francesa deu um pontapé inicial na busca pelos direitos da mulher; no entanto,
os homens que lutavam pela libertação dos revolucionários acreditavam que o lugar das
francesas era dentro de casa; o movimento na França acabou por naufragar e uma das
líderes morreu na guilhotina.
Séculos XIX e XX
A Revolução Industrial é caracterizada pelo desenvolvimento de uma nova forma de
produção, na qual as máquinas tomam o lugar das ferramentas e do trabalho braçal. As
pessoas passam a ser responsáveis apenas por uma parte do processo com o propósito de
aumentar a produção e diminuir os preços (Bauer, 2001). Vale destacar que o trabalho
industrial era algo novo e, por isso, não existia nenhuma proteção aos trabalhadores, o que
gerava jornadas de trabalho abusivas e clandestinas, além de baixos salários e péssimas
condições de trabalho.
Bauer afirma que o trabalho feminino não teve um boom imediato. A entrada da
mulher nas fábricas foi lenta e atingiu a modificação social feminina de que ouvimos falar
na segunda metade do século XIX e mais propriamente na Primeira Guerra Mundial, para
que substituíssem os homens que estavam na guerra. Mas quando a guerra termina, uma
campanha é feita para que elas abandonassem seus postos e voltassem às tarefas naturais.
Muitas mulheres se sentiram aliviadas, outras foram obrigadas a deixar o que estavam
fazendo para realizar as tarefas que os homens não queriam realizar. Porém, alguns
empresários perceberam que a mão de obra feminina era algo a ser valorizado:
O trabalho nas minerações era considerado difícil para as mulheres e crianças, por
isso foi proibido em 1843, mas continuou sendo utilizado na clandestinidade. O trabalho
rural também foi atingido pela tecnologia; esse fato gerou a diminuição do número de
funcionários e, dessa forma, as mulheres foram perdendo espaço para que os homens
ficassem com os empregos restantes.
O serviço doméstico também ganha força com babás, criadas, cozinheiras, etc., mas
as condições de trabalho eram tão ruins quanto nas fábricas. No final do século XIX, a ama
de leite deixa de ter a importância dos últimos séculos; isso acontece pelo aumento do uso
das mamadeiras e a valorização do leite materno – concretiza-se a exaltação à maternidade
ligada a maternagem.
42
Nessa época, as máquinas passaram a ajudar o dia-a-dia das donas de casa, como a
máquina de costura e a calandra a manivela e, nas casas mais ricas, além das já citadas,
existiam aspirador de pó, elevadores elétricos e máquina de lavar roupa. Mas as invenções
também ajudavam a colocar a mulher no mercado de trabalho, como foi o caso da invenção
da máquina de escrever. Com o tempo, as mulheres assumiram novos postos: datilógrafas,
secretárias, telefonistas, operárias das fábricas, dentre outras e, dessa forma, essas mulheres
passaram a viver uma independência financeira.
As européias que não podiam viver suas potencialidades de forma mais integral
desenvolvem sintomas da doença que acomete o século XIX, a histeria. Showalter (2004)
cita a obra de Dianne Hunter ao afirmar que “(...) a histeria é uma forma de auto-repúdio ao
discurso feminista em que o corpo expressa aquilo que as condições sociais tornam
impossível afirmar em termos lingüísticos.” (SHOWALTER, 2004: 85). Isto é, as pessoas
falavam por meio de inúmeros sintomas corporais o que não poderiam expressar em
palavras devido às pressões dos papéis sociais. Dessa forma, é possível entender o porquê
da enorme maioria das pessoas diagnosticadas histéricas serem mulheres e por isso, a
palavra origina-se do grego hystera que significa útero.
43
Showalter (2004) também ressalta a frieza com que Charcot examinava as histéricas
ao afirmar que os sentimentos das pacientes não eram levados em conta, assim como critica
as palestras públicas que ele apresentava com seus casos clínicos.
De qualquer forma, os estudos de histeria de Charcot e Freud são, até hoje, motivos
de controvérsia resultando em diferentes visões sobre o assunto. A autora prossegue sua
obra afirmando que “as feministas tem visto a histeria como o resultado de conflitos do
século XIX em torno de papéis sexuais e sexualidade feminina” (SHOWALTER, 2004:
81). Assim, aponta um importante momento histórico que impulsionou a teorização da
psicologia do inconsciente feita por Sigmund Freud.
Surgem as sufragistas, que lutam pelo direito ao voto (Esteca, 2004). Elas
acreditavam que esse seria o primeiro passo para outras conquistas, como por melhores
condições de trabalho, mas não foi o que aconteceu. As sufragistas eram mais agressivas, o
que não agradou aos homens e nem às mulheres que não participavam do movimento. Nos
Estados Unidos, elas se uniram às operárias nas greves e na Inglaterra, entravam em
confronto com a polícia e foram as primeiras inglesas a irem para a cadeia por lutarem por
causas femininas.
Segue abaixo a tabela com o ano em que a mulher conquistou o direito de votar em
diversos países:
44
É importante salientar que o Dia Internacional da Mulher é comemorado anualmente
devido às lutas femininas que aconteceram neste período industrial, entretanto há muitas
controvérsias sobre o ocorrido; seguem abaixo duas versões encontradas:
2 Esteca (2004) cita que “No dia 08 de março de 1908, cento e cinqüenta mulheres
foram queimadas, trancadas dentro de uma fábrica por reivindicarem melhores
salários e menor jornada de trabalho” (ESTECA, 2004: 20).
2 Porém, no Guia Larousse da Mulher: “No dia 08 de março de 1857, 129 tecelãs e
costureiras morreram carbonizadas no incêndio de uma fábrica de roupas em Nova
York, motivado por instalações precárias, portas emperradas e grande quantidade de
material inflamável acumulado – condições de perigo inúmeras vezes denunciadas
mas jamais atendidas” (LAROUSSE DA MULHER, 2006: 292).
A busca por igualdade na educação também ganha força, já que “Entre 1800 e 1914, a
difusão da idéia de que as mulheres deviam ser adequadamente educadas, da mesma
maneira que os homens, transformara a vida das meninas de muitas famílias” (ROBERTS,
2002: 667).
Porém, Bauer (2001) demonstra que a necessidade da educação feminina surge de uma
forma paradoxal: ao mesmo tempo em que existia uma enorme oposição para que a mulher
tivesse acesso à educação, também surgiu a necessidade de educá-las já que ela passou a ser
responsável pela educação dos filhos. Conseqüentemente, surgem as lutas por uma
educação de qualidade.
De acordo com Roberts (2002), o ano de 1914 foi muito importante para consolidar
os direitos femininos. Em primeiro lugar, na Europa, em função do avanço da medicina,
diminuiu a probabilidade da mulher morrer no parto e conseqüentemente, começou a
preocupação com o crescimento da população gerando métodos anticoncepcionais e, em
segundo lugar, as americanas já podiam freqüentar as universidades (apesar de serem para a
minoria) fazendo com que já existissem médicas formadas, advogadas, etc.
Nos Estados Unidos, ocorre a chamada Depressão de 1929 com a quebra da bolsa
de Nova York; o desemprego toma conta do país e abafa a luta pela emancipação feminina.
A crise econômica gera um aumento no número de prostitutas e bordéis autônomos:
46
Depois, com a invenção dos automóveis, as prostitutas passam a não ter local fixo
de trabalho, o que futuramente irá gerar as chamadas call girls.
De uma maneira geral, as mulheres são ativas em suas funções, mas essas
colocações consideradas “femininas” eram desqualificadas em comparação com as dos
homens. Esteca (2004) afirma que até a segunda metade do século XX, a dicotomia homem
provedor e a mulher cuidadora se fez presente, mantendo-se como a base da família
nuclear: mesmo que as mulheres trabalhassem, a dupla jornada passava despercebida.
Nos anos 50, ainda existia o controle da sexualidade feminina, já que as moças que
não eram mais virgens deveriam esconder sua condição para manter o respeito social.
47
O início da comercialização da pílula anticoncepcional significou uma cisão entre
sexualidade e a procriação. A liberdade sexual feminina ocorria, mas na prática, essa
liberdade foi conquistada aos poucos.
Em 1836, começa a “literatura do amor romântico” (ESTECA, 2004: 16) que gerava
o ideal de relacionamento em suas leitoras, mas como a realidade é diferente dos livros as
mulheres se frustravam por terem que viver o tédio conjugal e os casamentos por interesse.
A educação feminina era baseada na crença de que seu papel era de educadora do
lar e em 1827 é publicada a primeira lei de instrução pública do Brasil:
As mulheres carecem tanto mais de instrução, porquanto são elas que dão a
primeira educação aos seus filhos. São elas que fazem os homens bons e
maus; são as origens das grandes desordens, como dos grandes bens; os
homens moldam sua conduta aos sentimentos delas (LOURO, 2001: 447).
Berta Lutz, filha de Adolfo Lutz, é um importante nome na luta por condições
igualitárias para as mulheres. Estudou na Europa e teve contato com as sufragistas e em
1919, cria no Brasil, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher; além disso, foi
48
deputada federal em 1936 e buscou igualdade salarial, licença-maternidade de dois meses e
redução da jornada de trabalho, que na época era de 13 horas (Bauer, 2001).
O voto feminino foi conquistado apenas em 1932, porém, “era preciso que o marido
consentisse que a mulher votasse. As mulheres solteiras e viúvas só poderiam votar se
comprovassem renda própria” (LAROUSSE DA MULHER, 2006: 292). O voto para todas
as mulheres só foi garantido a todas as mulheres com a consolidação da lei na Constituição
de 1934.
As historiadoras Maluf e Romero (2002) ressaltam o peso que a visão médica passa
a ter no que seriam os corretos dotes femininos ao afirmar que a “representação da mulher
como mãe começou a ser elaborada como um paradigma político cultural no Brasil a partir
das primeiras décadas do século XIX, justamente na primeira fase do desenvolvimento da
medicina” (MALUF e ROMERO, 2002: 225).
49
De acordo com Bassanezi (1997), na família-modelo dos chamados Anos Dourados,
o homem era responsável pelo sustento da casa e detinha autoridade sobre sua família e a
mulher era a responsável pelos trabalhos domésticos e cuidados com a família, além de
possuir certas características como “instinto materno, pureza, resignação e doçura”
(BASSANEZI, 1997: 608). Isso significa dizer que a dedicação ao lar que as mulheres
deveriam possuir era entendida como uma característica inata da essência feminina:
A virgindade feminina era vista como “um selo de garantia de honra e pureza
feminina” (BASSANEZI, 1997: 614). O Código Civil atestava a possibilidade de anular o
casamento se o marido se sentisse enganado.
O casamento era o foco das meninas que viam o namoro e noivado como etapas
para chegar ao matrimônio, dessa forma, elas não poderiam perder tempo em
50
relacionamentos que não a levariam ao objetivo de suas vidas. Nessa época, o casamento
arranjado já não era comum, mas a influência familiar tinha um enorme peso na escolha do
pretendente.
Caso a moça não se casasse, significaria fracasso social. Bassanezi (1997) afirma
que esse era o maior medo das meninas já que elas não poderiam ter aventuras amorosas
ocasionais e teriam que garantir seu próprio sustento:
Na classe média-alta, a esposa dos anos 50 era a total responsável pela harmonia do
casal, ela não deveria aborrecê-lo com as “atitudes típicas das mulheres” (BASSANEZI,
1997: 630). Além disso, a esposa ideal era considerada um complemento do marido e um
bom desempenho sexual não fazia parte as expectativas.
Nos anos 50, as mulheres começam a entrar no mercado de trabalho, porém essas
mulheres eram vistas com muito preconceito já que, ao trabalhar, elas deixariam suas
tarefas domésticas em segundo plano afetando a estabilidade do casamento além de perder
sua feminilidade e seus privilégios, como “respeito, proteção e sustento garantido pelos
homens” (BASSANEZI, 1997: 624).
Em 1922 é fundada a Federação pelo Progresso Feminino que lutou pelo voto
feminino, mas também buscava a igualdade de direitos e exaltaram o papel da maternidade.
Pedro (2002) relata que nos anos 60 e 70, houve uma grande discussão internacional
sobre uma ameaça de superpopulação mundial, e que a comercialização da pílula
anticoncepcional foi uma manobra política internacional para que os países pobres
(incluindo o Brasil) sofressem uma contenção populacional. E é por isso que, em 1962, a
primeira pílula anticoncepcional passa a ser comercializada no Brasil com o nome de
Enovid (PEDRO, 2002: 247), largamente consumida pela classe média:
52
Dessa forma, a autora afirma que o uso de métodos contraceptivos não foi uma
conquista pelas reivindicações de grupos coletivos e as brasileiras daquela época não viram
esse momento como significativo para sua autonomia.
53
Tabela 2: Folha de São Paulo-Caderno Mais, 2007.
Século XXI – A mulher contemporânea
Apesar de não abarcarmos toda a experiência feminina, escolho recortes acerca dos
aspectos da vida da mulher contemporânea. É importante ressaltar que serão dadas
pinceladas sobre as tantas possibilidades do feminino, pois não é possível no presente
trabalho fazer uma pesquisa minuciosa sobre todos esses aspectos.
54
Depois de enfrentar lutas feministas, a sociedade atual se encontra no que Salla
(2005) classifica de fase pós-feminista. Essa “nova mulher”, para se encaixar na sociedade,
deve continuar exercendo as funções tradicionais de cuidar do lar e da família, isto é,
funções que a colocam na esfera privada, mas também se preocupa com a carreira
profissional localizada na esfera pública.
Dessa forma, a mulher conseguiu em parte o que almejou, pois passou a vivenciar o
que se convencionou chamar de dupla jornada de trabalho, e essa dupla jornada certamente
tem conseqüências nos relacionamentos e na saúde das mulheres.
A mulher, de acordo com Sayão (2007), tem uma grande dificuldade em estruturar
sua vida privada: isso acontece devido à educação patriarcal que recebe e ao fato de ser
ainda a mulher a responsável pela educação das crianças brasileiras, seja pela proximidade
da figura materna ou da professora escolar, o que confirma a propagação dos preconceitos
de gênero pelas próprias mulheres.
55
A maternidade também é um fator importante no desenvolvimento feminino. De
acordo com a pesquisa de Saffioti (2004) que buscou traçar o perfil da mulher brasileira,
constatou-se o seguinte resultado: “Apenas 55% das entrevistadas valorizavam a
maternidade. Entretanto, 48% destas valorizavam a maternidade mesma, isto é, o fato
biológico, pois só 20% mencionaram o prazer enorme propiciado pela maternagem”
(SAFFIOTI, 2004: 47). Assim, somente 20% das mulheres acham a maternagem prazerosa.
Ventura (2006) cita uma pesquisa que relata que no SUS foram registradas 293
laqueaduras em 1998 contra 15.370 laqueaduras em 2001. Em contrapartida, a autora
também ressalta um importante dado:
Em relação aos aspectos da saúde, os múltiplos papéis que a mulher assume hoje em
dia não têm reflexo nos serviços de saúde, pois a maioria dos serviços para as mulheres
ocorrem nos períodos gestacionais, o que não a contempla como um todo, apenas o lado
mãe-cuidadora. Em adição, o médico encarna um papel de saber acima de tudo e as
mulheres acreditam que ele saberá o que é melhor para elas sem maiores questionamentos.
56
Mesmo assim, Costa e Silvestre (2004) afirmam que as mulheres são as principais
usuárias dos serviços de saúde, no qual 40,5% das mulheres buscam atendimentos de rotina
e prevenção, contra 32,2% dos homens que só buscam atendimento em casos de doença.
Essa busca por serviços de saúde carrega aspectos positivos, como uma maior
percepção de si, que ocasiona um maior auto-cuidado, mas também tem aspectos negativos
como, por exemplo, o uso indiscriminado de ansiolíticos, o que pode acarretar dependência,
além de não permitir que a própria mulher seja agente transformadora de sua vida através
de reflexões sobre sua realidade.
Pinho e Westin (2008) publicaram na Folha de São Paulo uma matéria que afirmam
que as mulheres estão iniciando sua vida sexual cada dia mais cedo: 32,6% das
entrevistadas afirmaram ter tido a primeira relação sexual aos 15 anos, em 1996, o índice
foi de 11,5%. Há falha no uso de métodos contraceptivos já que os bebês nascidos entre
2001 e 2006, 18% não foram desejados e 28% estavam nos planos futuros. O grau de
estudo das mulheres influencia os dados já que as mulheres “(...) com até três anos de
57
estudo têm o primeiro filho, em média, aos 19 anos. Para as que estudaram 12 anos ou
mais, a média sobe para 26 anos” (PINHO e WESTIN, 2008: C1). A matéria continua
afirmando que as meninas não pedem o uso de preservativos já que têm medo de
desagradar o parceiro.
Nos dias de hoje, é impossível falar sobre sexualidade e saúde sem citar as doenças
sexualmente transmissíveis. Atualmente as DSTs (principalmente o vírus da AIDS) têm
entrado nas grandes discussões sobre saúde pública e o número de mulheres contaminadas
vem aumentado consideravelmente. Isso acontece porque existe um grande gap entre saber
como se preservar e adotar métodos preventivos de fato. Além disso, as pessoas adotam o
preservativo como um contraceptivo e não necessariamente para a proteção de DSTs.
Dimenstein (2007) publica uma crônica em que relata que as adolescentes estão
utilizando como método contraceptivo a pílula do dia seguinte, mais uma evidência de que
58
o preservativo não está sendo utilizado pelas jovens brasileiras. O autor afirma que o lado
positivo do uso dessa pílula seria uma possível diminuição do número de gravidez
indesejada e do aborto, mas o lado negativo evidencia as doenças sexualmente
transmissíveis.
Assim, podemos supor que a não preservação das mulheres pode suscitar diversas
hipóteses: desde a crença de fidelidade do parceiro estável, a preocupação com a gestação e
não com DSTs/AIDS e até uma questão de baixa auto-estima, em que a mulher não se
coloca na relação como sujeito, mas como objeto se sujeitando ao desejo do outro sem levar
em conta seus desejos e necessidades.
Sayão (2007) afirma que a mulher tenta se encaixar nos valores idealizados desta
sociedade patriarcal em que vivemos e, o que impera atualmente, é a importância com a
aparência e, ilustra com as propagandas de cerveja.
Cirurgias plásticas estão cada vez sendo mais procuradas, o que confirma a
necessidade da brasileira em se corrigir, a fim de atingir a imagem considerada como ideal
de mulher.
Além desses aspectos, as mulheres cada vez mais buscam seu espaço no mercado de
trabalho. Esse fato é importante por ser o que mais assinala a entrada da mulher na vida
59
pública, afinal, é uma realidade que as mulheres adentraram no mercado de trabalho e não
há como voltar no tempo.
Rolli (2008) publica na Folha de São Paulo uma pesquisa realizada pelo Ibmec para
avaliar as desigualdades entre os sexos no que diz respeito ao trabalho dentro e fora de
casa. Foram utilizados homens e mulheres que trabalham 40 horas semanais ou mais. A
pesquisa conclui que as mulheres trabalham nas tarefas domésticas em média três vezes
mais do que o homem; assim, quando comparadas a quantidade de horas trabalhadas nos
afazeres domésticos, descobriu-se que eles trabalham por volta de cinco horas e as
mulheres por volta de dezoito horas por semana. Foi encontrado outro dado interessante:
quando maior a participação das mulheres na renda familiar, menor será a quantidade de
horas gasta nos serviços domésticos.
As mulheres atualmente têm sido bastante valorizadas nas empresas. De acordo com
um artigo do jornal do Administrador Profissional (2007), as mulheres agregam diferentes
características aos negócios e as empresas estão cada vez mais atentas para motivá-las a
conquistarem postos de maior liderança, pois as corporações acreditam que as mulheres são
tão preparadas quanto os homens. Porém, ainda existem obstáculos sócio-culturais e
biológicos como, por exemplo, a maternidade e sua dupla jornada de trabalho. O artigo cita
uma pesquisa realizada no Brasil com 322 executivas:
(...) a maioria com mais de 36 anos, casadas e com filhos, revelou que
72,3% estavam insatisfeitas com o tempo que dedicavam à família. Elas se
cobram, por exemplo, por não ter tempo para levar os filhos ao médico e de
não poder freqüentar as reuniões dos pais nas escolas
(ADMINISTRADOR PROFISSIONAL, 2007: 14).
60
O artigo, que fala sobre as mulheres do mundo corporativo, relata que, quando a
mulher decide engravidar, ela desacelera a carreira e as empresas têm um grande desafio
nas mãos para segurá-la no quadro de funcionários: O chamado kids day, em que mães e
pais podem levar seus filhos nas empresas, avanços tecnológicos que permitem formas
mais flexíveis de trabalho e leis trabalhistas são algumas das medidas tomadas – o que
denota a valorização do modo feminino de trabalho.
Apesar da autora claramente se posicionar contra essa situação (já que as chama de
criaturas), aqui ela aponta uma questão importante, o fato de que é familiar, isto é, comum
nas famílias brasileiras, a mulher ser sustentada pelo marido o que implica em sua
subordinação que pode chegar, muitas vezes, à vitimização.
Dessa forma, nos resta tentar compreender o que faz com que algumas mulheres
busquem sucesso profissional e o que faz com que outras mulheres não invistam na carreira
– seja aquela que não atue profissionalmente ou aquela que, apesar de trabalhar, não encara
a profissão como prioridade. Parece-nos que, apesar das desigualdades de gênero estarem
sendo revistas, tanto no âmbito público quanto no privado, elas ainda persistem nas
relações pessoais e nos valores assumidos e transmitidos pelas instituições (legais, famílias,
escolas, etc).
Zakabi (2006) publica uma matéria em que afirma que uma das conseqüências desta
entrada da mulher no mercado de trabalho é o aumento significativo de mulheres que
viajam sozinhas, fato este que no passado era impensável. “A Federação Brasileira de
Albergues da Juventude estima que 55% dos viajantes solitários que se hospedam em seus
albergues são mulheres. No fim da década de 80, esse porcentual não passava de 20%”
61
(ZAKABI, 2006: 60). Hoje em dia, as mulheres se casam mais tarde e têm dinheiro para
viajar, mas ainda têm que lidar com assédio dos homens que ainda as enxergam como um
alvo fácil para assédios, portanto, de abuso.
A revista elege uma mulher símbolo para colocar na capa e, no ano de 2007, a
escolhida foi Angelina Jolie: “A independência, o poder e a autenticidade de Angelina
justificam nossa escolha. Sobretudo ela se justifica pelo fato de nossa heroína ter olhos
voltados para o mundo real, que ela tenta melhorar com compaixão e bravura. Nada mais
feminino” (VEJA ESPECIAL MULHER, 2007: 18).
Já em 2008, Carla Bruni foi escolhida em que na capa tem a seguinte descrição: “A
primeira-dama da França, símbolo da mulher com poder – no caso dela, nuclear” (VEJA
ESPECIAL MULHER, 2008: capa).
Nos dois casos citados acima, as mulheres são exaltadas por diferentes motivos:
enquanto Angelina Jolie é citada por ser “heroína” pelo seu trabalho com os refugiados,
62
Carla Bruni é citada por ter se casado com o presidente da França, Nicolas Sarkozy. O que
demonstra que o feminino nos dias atuais pode ser vivenciado de diversas maneiras e a
liberdade de escolha está estampada até nas bancas de revistas.
A história da mulher revela como foi enfatizado o seu papel associado ao aspecto
relacional, baseado no cuidado, na proteção e acolhimento ao outro, tantas vezes justificado
pela naturalização dessas qualidades como fazendo parte da essência feminina, diferenciada
e oposta à masculina. Dessa forma, mulheres e homens foram mutilados, desenvolvendo-se
como sexos opostos: a ela, a frágil, era atribuída a delicadeza e a capacidade de cuidar
(negação dos aspectos do animus). A ele, o forte, era atribuído a objetividade, a
racionalidade e a independência (negação dos aspectos da anima). A ambos faltava uma
vivência mais harmônica e integral de múltiplas possibilidades humanas.
63
3. O DESENVOLVIMENTO DA
CONSCIÊNCIA
64
Fase Mágica
A primeira fase chama-se Fase Mágica. Esta tem um funcionamento ginecolátrico e
matriarcal e, portanto, os aspectos femininos são destacados. Caracteriza-se por uma
identidade pré-verbal, simbiótica e unitária.
O feminino não tem interesse no pensar e nem no poder, simplesmente existe no aqui
agora e no fluxo infinito. Valoriza a continuidade e a conservação das ordens naturais, é
global e funcional. A Grande Deusa é adorada e acreditava-se que ela se manifestava em
todas as coisas como nos corpos humanos, nos animais, na natureza, na terra e no céu. É o
auge do animismo e da religião panteísta – centrada na natureza.
Os eventos não são causados nem planejados racionalmente, eles acontecem como
uma força além da vontade do homem. Só é possível então, aceitar e adaptar-se ao próprio
destino.
65
Em relação ao desenvolvimento individual, o estágio mágico corresponde à criança
de até três ou quatro anos, que vive em um estágio simbiótico com a mãe e família que a
cerca. Nesse momento, a perda da identificação grupal equivale a perda da identidade e até
da própria vida.
Fase Mitológica
A Fase Mitológica da consciência é uma ponte que liga o nível mágico ao mental;
portanto, é uma transição do mundo ginecolátrico para o androlátrico. Whitmont (1991) faz
referência os deuses gregos Dionísio e Apolo como uma dualidade que, ao final da Fase
Mitológica, se estabelece como opostos e se excluem de forma recíproca – começa então a
era androlátrica.
Dionísio e tudo que ele representa é reprimido e Apolo governa sob formas
patriarcais de organização social. Para Whitmont (1991) “Esse passo da história da
consciência provavelmente ocorreu pela primeira vez no período Neolítico. Atingiu certa
expansão na Idade do Bronze e terminou na Idade do Ferro, heróica e crivada de lutas”
(WHITMONT 1991:68). As fases correspondentes do Neolítico, da Idade do Bronze e da
Idade do Ferro no desenvolvimento infantil ocorrem respectivamente dos 3 aos 7 anos, dos
7 aos 12 anos e na puberdade.
66
O senso inicial do eu, e conseqüentemente do tu, favorece a formações de grupos
sociais que impõem ordem e ethos que são expressos em rituais e celebrações comuns a
todos os pertencentes ao grupo. A moralidade é coletiva sendo que o que é considerado
bom é aprovado pelo coletivo e mal é o que causa prejuízo e pede uma retaliação de uma
força superior. A vergonha é uma reação mitológica ao medo do isolamento e implica a
perda da dignidade e menosprezo por parte dos iguais.
No início da fase mitológica, ainda existem imagens e ritos à Grande Deusa: “(...)
nada passa a existir sem que algo equivalente tenha deixado de existir” (WHITMONT,
1991:74), revelando os rituais de morte e renovação; mas no final desta fase, o patriarcado
domina e um novo senso de ética emerge, transformando em tabu a lei proclamada pelo
Deus monoteísta.
Na visão mágico-mitológica, para que a vida se renovasse ela deveria ser destruída,
dessa forma, vida e morte são vistos de maneira interdependente. Antes, o sacrificado
aceitava seu chamado, ele era um voluntário em prol da renovação, mas isso deixa de
acontecer e, por isso, o sacrificado passa a ser usado à força nos rituais em que o sangue
sacrificial se faz necessário.
O sacrifício não foi abandonado pela vida moderna. Whitmont nos mostra que, por
exemplo, “sacrificamos combustível para obter calor, ou dinheiro para obter um objeto
desejado, também sacrificamos, no plano psicológico uma atividade para obter energia para
outra” (WHITMONT, 1991: 74) Escolher significa crescimento e diferenciação da
consciência. A escolha é feita (de forma consciente ou não) na busca de um objeto desejado
e exercer uma escolha conscientemente envolve conflito e dor, mas também é uma
oportunidade de sermos ativos em relação à liberdade que dispomos.
67
A ênfase não recai mais sobre a renovação, a recuperação da luz depois de
atravessar a escuridão, mas sobre a preservação da vida e da luz pela
eliminação da escuridão, do que é ofensivo aos deuses e guardiães da
moralidade. E nome da clareza, da pureza, da ordem e da harmonia, Apolo
tem que prevalecer sobre Dionísio (WHITMONT, 1991: 76).
Na medida em que o estágio androlátrico vai emergindo, existe uma quebra entre
vida-morte, eu-mundo e a noção de continuidade é perdida. A conscientização passa a
ocorrer por intermédio de cisões, a realidade unitária se fragmenta em opostos que se
excluem: bom/mau; homem/mulher; bem/mal; certo/errado; razão/sentimento.
No final da fase mitológica, a fase androlátrica ganha espaço e, com isso, ocorre um
importante desenvolvimento psicológico em direção à individualidade e autocontrole, no
qual percebe-se um crescimento de uma sensação de responsabilidade pessoal sobre os
próprios atos, o que consolida ego. As emoções e desejos são reprimidos o que significa
reprimir o feminino em prol do autocontrole masculino.
Fase Mental
Na terceira fase do desenvolvimento da consciência – chamada Fase Mental – as
manifestações espontâneas são criticadas e reprimidas (a violência e a sexualidade não são
aceitos) e a mente racional é o árbitro supremo.
68
A fase mental é caracterizada como uma fase patriarcal, androlátrica, no qual
controla-se o ego que é dominado pela persona e o controle da natureza, tanto interna
quanto externa, se faz presente. Para Whitmont (1991) existem três elementos básicos do
patriarcado:
Dessa forma, o autor nos traz a idéia de que na fase mental, o feminino é reprimido em
todas as esferas e que a racionalização de faz presente.
Assim, a noção de realidade se limita ao que é visível, o que não é observável torna-
se inimaginável e, conseqüentemente, as percepções da psique diminuem e a noção de alma
perde seu sentido. O pensamento só tem efeito caso seja seguido de uma ação física direta,
isso ocorre pelo fato do pensamento passar a ser visto apenas como uma produção mental.
O ego toma consciência de si mesmo como corpo espacial e sua capacidade é medida pelo
uso da vontade individual:
Deus passa a ser abstrato, torna-se pensamento e idéia e o divino passa a ser usado
como um modo de diminuir ansiedades ou exercer controle político. As crenças são
deturpadas de acordo com os nossos interesses.
O trabalho ganha destaque já que será pelo trabalho que se conceberá a ordem. A
identidade do “fazer” assume a identidade do “ser”.
Nesta fase, a avaliação dos fatos e dos detalhes ganha o terreno antes ocupado pela
ordenação emocional da experiência. “Pensar, agora, está separado de sentir; a percepção
sensorial, da intuição e da imaginação” (WHITMONT, 1991: 91). Essas capacidades são
desvalorizadas a ponto de serem reprimidas e o ego parece ser a única fonte de vontade,
porém, as antigas dinâmicas não deixaram de funcionar, estão reprimidas longe desta nova
modalidade de consciência:
Para o autor, as fantasias míticas do nosso tempo, assinalam qual será o nosso
próximo desenvolvimento da consciência. E assim, os padrões e crenças hoje sedimentadas
refletem o resultado da mitologização passada. E por isso conclui-se que a moralidade e a
sabedoria atual sofrerão alterações no futuro.
70
Para Whitmont (1991) o novo nível de consciência está se voltando para o íntimo e,
cada vez mais, se distanciado da consciência vigente da fase mental. “Precisamos dar o
próximo passo na metamorfose da consciência, queiramos ou não” (WHITMONT, 1991:
93). O autor prossegue ao afirmar que não sabemos qual será o próximo passo da
humanidade e prever seria um erro projetivo de elementos passados e presentes.
Novos Modelos de Orientação
Whitmont (1991) segue refletindo sobre Novos Modelos de Orientação em que na
cultura patriarcal, imprevisibilidade, desejo, instintos e emoções eram considerados
naturezas selvagens que deveriam ser combatidas. Ao feminino cabia uma passividade
obediente, domesticidade e a maternidade. As mulheres foram ensinadas a desconfiar de
suas emoções. Aspectos da Grande Deusa eram reprimidos e os aspectos da Virgem Maria
eram considerados aceitáveis.
71
em uma imitação competitiva dos valores masculinos. Atualmente, em ambos os sexos,
uma profunda dimensão clama por uma expressão ativa da feminilidade.
Quando a integração acontecer, a vida não será mais vista com discriminações:
belo/feio, dentro/fora, bom/mau não serão separados, mas serão vistos como equilíbrios em
movimentos de criação e destruição. “É o desafio de ter coragem de olhar e ouvir a própria
profundidade, mesmo que aquilo que se venha a descobrir não esteja de acordo com o que
se acostumou a considerar certo” (WHITMONT, 1991: 207). É a experiência de perceber
aspectos que consideramos repreensíveis faz parte do outro, mas também de nós mesmos, e
que não pode ser expulso sem causar destruição a nós mesmos.
O novo ego é afirmativo, no sentido de aceitar o que antes fora rejeitado. Os aspectos
da sombra devem ser reconhecidos como elementos de transformação. A ação ainda deverá
ser controlada de forma responsável, mas o desejo e as ânsias serão afirmados. Discriminar
72
o que sentimos como bom/mau, belo/feio, agradável/desagradável é um passo indispensável
para a tomada de consciência. Isso ocorre devido ao recolhimento da projeção do bode
expiatório que deve ser redimido em nós, o que significa que nos responsabilizamos por
encontrar um lugar para esses aspectos, o que gera uma harmonização da totalidade de
nossa personalidade. Já passou a época da unilateralidade psicológica em que apenas as
virtudes eram identificadas com o ideal coletivo. Como afirma o autor, “A individualidade
única de cada um é seu destino” (WHITMONT, 1991: 209).
Assim, uma nova atitude é alcançada, na qual a busca incessante pela perfeição não
faz mais sentido e o indivíduo entra em contato com a vida e com os seus semelhantes.
Cabe à nova feminilidade se descobrir e não mais se limitar aos padrões vigentes.
Não podemos dar o que não temos e, por isso, é necessário a auto-afirmação para que seja
possível perceber a singularidade do outro, pois o tratamos como tratamos a nós mesmos.
Esta auto-afirmação pressupõe buscar uma manifestação essencialmente feminina e só
assim as mulheres terão algo com que contribuir; caso contrário, será apenas imitação e
competição com os valores masculinos.
73
Assim sendo, o novo Feminino requer coragem de submergir ao seu interior, o que
significaria “perder-se a fim de encontrar-se mais tarde” (WHITMONT, 1991: 211). Os
novos valores do ego precisam modificar os valores masculinos vividos pelos dois sexos, o
que acarretaria na tolerância dos opostos simultâneos, surgindo, assim, um novo sistema de
valores que iniciará uma nova ordem de característica integrativa, móvel e equilibrada.
74
4. O FEMININO E A
POSSIBILIDADE DE ESCOLHA
Para fazer uma pesquisa sobre escolhas, é necessário pensar sobre a liberdade, pois
acredito que o ato de escolher e o conceito de liberdade estão intimamente relacionados,
pois não há escolha sem a liberdade para fazê-la.
75
Jacoby (2007) nos ajuda a refletir sobre essa questão ao dissertar sobre a
emancipação, que seria um valor considerado importante na sociedade moderna.
Dessa forma, entendo que a queda dos valores de ordem impostos sem
questionamentos permite a emancipação, pois ela teria como base a tomada de consciência
e, conseqüentemente, o ato de escolher pode ser feito de forma mais libertária. Podemos
pensar esse conteúdo através do arquétipo do animus já que ele representa o logos e a força
para a ação. Caso ego feminino não esteja em contato com o animus,
Aqui não haverá espaço para as possessões já que quando é “(...) conscientemente
confrontado, o animus se torna um guia para o autoconhecimento, para uma capacidade de
pensamento claro, factual, com relações causais e uma habilidade para chegar a escolhas
conscientes e refletidas” (WHITMONT, 2006:189).
76
Jacoby (2007) alerta que a libertação destes valores também tem o outro lado –
como toda polaridade junguiana –, que gera insegurança e desorientação e as pessoas
acabam por se apoiar em verdades científicas (como a médica, psicológicas ou
pedagógicas) para guiar o seu cotidiano. Por isso, me atrevo a dizer que a emancipação ou
escolha consciente pode não estar sendo feita.
Whitmont (2006) afirma que quando a mulher entra em contado com seu animus,
ela aprende a dizer não de forma consciente e racional. Para o autor, quanto mais ela se
relacionar com seu masculino interno, mais aberta ela estará para um homem verdadeiro.
Entretanto, para Johnson (1987), as “mulheres foram educadas para considerar que
apenas as atividades masculinas, raciocínio, poder e sucesso, têm valor real.” (JOHNSON,
1987: 10). Salla (2005) concorda e ressalta que algumas filhas, criadas nas famílias
contemporâneas, acabam por desvalorizar o feminino tanto quanto a sociedade. São as
chamadas “filhas dóceis do patriarcado” (SALLA, 2005: 17), que continuarão a gerar uma
sociedade insensível à condição humana, acarretando a sensação de despersonificação e
77
frustração. Isso acontece pela tentativa de ambos os sexos em suprimir a anima na
sociedade atual em detrimento ao princípio do animus.
Jacoby (2007) alerta que “Se for bem compreendida, no entanto, a idéia de
emancipação da mulher como uma luta por auto-realização é vital do ponto de vista
psicológico” (JACOBY, 2007: 129). Não poderia mais haver a repressão da auto-
realização, pois o logos animus da mulher ergue resistências contra o total papel da
maternidade e é por isso, que o autor afirma que o conflito entre a maternidade e busca por
auto-realização é um dos mais fortes atualmente.
3
Utilizo aqui a metáfora utilizada por Jacoby (2007) em que a saída de Adão e Eva do Paraíso seria uma
metáfora para o desenvolvimento humano.
78
5. A IMPORTÂNCIA DOS MITOS
Os mitos podem ser considerados como sonhos coletivos, podem parecer tão irreais
quanto os sonhos, mas, se corretamente trabalhados, podem nos dar subsídios para entender
o desenvolvimento psíquico, pois ajudam o indivíduo a se tornar consciente do seu lugar do
universo.
Assim, o estudo dos mitos se faz uma excelente fonte de estudo, pois carregam
características arquetípicas. “O material do mito é o material da nossa vida, do nosso corpo,
do nosso ambiente” (CAMPBELL, 1992: 07).
Durante muito tempo o mito foi visto como inverdade, mas Whitmont (2006) se
questiona se ele não pode ser visto de outra forma, e afirma que o mito diz respeito à
verdade psíquica e, portanto se refere a uma visão simbólica. Devido à nossa educação
positivista, o autor acredita que a perda desse conhecimento mitológico resulta em um
sentimento de existência sem sentido.
Em minhas pesquisas percebi que esse mito celta é sempre analisado pela ótica do
cavaleiro (Sir Gawain) e proponho aqui olharmos do ponto de vista da mulher (Dona
Ragnell). Isso pode ser feito já que o mito é universal e, portanto não possui apenas um
único ponto de vista, o que abre possibilidades para novas análises e novas descobertas
acerca de seu conteúdo. Desta forma, podemos olhar o mito como uma representação da
vida.
Graal
O mito do Graal é um mito que permeia todas as histórias Arthurianas e, portanto,
engloba o mito escolhido para esta pesquisa. De acordo com Whitmont (1991), o mito do
80
Graal tem uma enorme importância para entendermos o desenvolvimento coletivo, pois diz
respeito à necessidade de integração do Feminino.
Como existem muitas versões, o autor não achou fácil resumir os elementos centrais
do mito, além da dificuldade por não existir uma imagem definitiva do Graal e nem
evidências de que tenha realmente existido. Seleciono na obra de Whitmont (1991) as
facetas do Graal que considero importantes para a presente pesquisa.
De acordo com a tradição Medieval, vaso – Graal – útero – pedra são imagens
sinônimas de Virgem Maria, mãe de Deus.
Ao herói, cabe fazer uma pergunta mágica, pois ele é o único que pode desfazer o
encantamento proposto no mito.
Whitmont (1991), afirma que a lenda do Graal está ligada à imagem de Aquário e
ao mito do Paraíso e Jardim do Éden.
82
Gawain e Ragnell
Whitmont (1991) faz uma análise do mito de Gawain e Ragnell trazendo
explicações relevantes para a presente pesquisa. Apesar de sua analise do mito ter como
ponto central o personagem masculino, seleciono os aspectos significativos para a análise
deste trabalho.
Outro personagem importante se chama Sir Gromer Somer Jour. O nome significa
“dia soturno e sinistro” (WHITMONT, 1991: 191). Ele é guardião e irmão da Morgan Le
Fay, também chamada de Governadora, Gorgo ou Medusa. Ela “representa o terror abismal
das dimensões profundas da Deusa, o escuro e misterioso útero do não-nascido”
(WHITMONT, 1991: 191). Esta mulher foi rejeitada pelo patriarcal e busca a recuperação
da sua soberania.
Gawain tem provas a ultrapassar, mas essas provas não têm como foco conquistas e
coragem, pois esses predicados já são pré-requisitos para o herói, portanto, o que interessa é
a aceitação que acontecerá como conseqüência de uma posição de lealdade e força. Assim,
a prova exige força para enfrentar a consciência e o sofrimento no conflito, e a capacidade
de se entregar e ele.
83
Outra importante característica das histórias do Graal são as perguntas formuladas:
“É significativo que, embora a importância da pergunta seja várias vezes enfatizada,
quando ela é finalmente enunciada não vem resposta alguma e, aliás, a coisa toda é deixada
sumariamente de lado” (WHITMONT, 1991: 193). Assim, o que importa é perguntar e não
a resposta em si (se é que existe uma resposta).
(...) somos também levados a pensar em Lady Ragnell e na questão que ela
encarna, a saber, a aceitação da soberania da mulher, aceitação do feio
com o belo, escuro com a luz. (...) A Rainha Deusa Sacerdotisa representa a
própria vida; a vida aceita como é, em sua escuridão e em sua luz, em seus
altos e baixos, em sua marés do destino. Não se deve apenas aceitá-la é
preciso também responder-lhe (WHITMONT, 1991: 193).
84
6. OS CELTAS
Como vou utilizar um mito neste trabalho teórico, acho importante contextualizar a
cultura celta para entendermos como seus mitos chegaram até nós.
Existem muitos mitos e lendas ligadas à cultura celta que foram registrados
principalmente nas regiões da Irlanda, Escócia e País de Gales. Porém, a grande maioria do
conhecimento de que dispomos sobre os celtas chegou até nós por vias não-celtas, que
seriam os povos que conquistaram as regiões por meio de guerras. De acordo com
Alvarenga (1997), o povo celta foi conquistado pelo Império Romano que o cristianizou e,
conseqüentemente, ocorreu um processo de sincretismo religioso 4 . A cristianização foi
conveniente para os sacerdotes celtas chamados Druidas que, ao se declararem cristãos,
poderiam continuar com seus estudos esotéricos e registrá-los em latim, o que não era
possível antes já que, de acordo com Cheers (2006), a cultura celta era fundamentada em
uma tradição oral que se baseava em narração de lendas. O que existe são inscrições,
moedas e nomes de locais que nos fornecem uma limitada visão de sua cultura e a
explicação pode estar no fato da cultura celta ter sido dominada pelo Império Romano.
(...) Júlio César deixou muitos registros, muitos dos quais podem ser úteis
para traçarmos uma imagem pormenorizada desse povo que viveu num
passado longínquo. Júlio César refere que os celtas eram valentes no
campo de batalha, que alguns combatiam nus, enquanto o grego Diodoro
Siculus (ca. 90-21 AC) nos dá a seguinte descrição: “os celtas eram altos,
com músculos salientes e peles brancas e cabelos louros.” As mulheres
“não têm uma estatura tão grande como os homens mas acompanhavam-
nos em coragem” (CHEERS, 2006:213).
A sociedade celta era uma sociedade tribal e cada tribo era liderada por um chefe ou
rei. As mulheres (aristocratas) tinham um papel ativo na sociedade e, apesar das tribos
lutarem entre si, elas possuíam certas características comuns, como o “amor pelas lendas,
4
Por exemplo, a deusa celta Brigitt foi incorporada no cristianismo como a Santa Brígida
85
pela sua recitação e pela música. Nessas áreas, os talentosos bardos eram excelentes,
criando um universo de grandes guerreiros, deuses poderosos, mulheres de espírito forte,
transformadores de formas, choros de fadas fúnebres e doentes” (CHEERS, 2006:213)
Para Alvarega (1997), o culto celta tinha como figura central a Grande Deusa e era
“ladeada por deuses masculinos menores que se apresentavam como seus filhos-heróis”
(ALVARENGA, 1997:29). As figuras masculinas podiam ser representadas por figuras de
animais que sofrem transformações físicas simbolizando o processo de morte e
renascimento e a figura da Grande Deusa possuía o controle sobre o tempo em que se
rejuvenesce ou se envelhece simbolicamente.
Na cultura celta, não existia o conceito de pecado ou traição sexual como existe na
nossa sociedade. Ao se casar, o Rei celebrava suas núpcias com a Deusa Terra e liberava
sua esposa para ter amantes se ela desejasse.
Em relação às crenças espirituais, Jung e Von Franz (1980) nos mostram que os
celtas acreditavam em um “país do além” habitado pelos imortais no qual não há doenças
ou morte e os homens vivem junto a seres similares aos deuses saboreando comidas e
bebidas e ouvindo músicas. Mas a humanidade perdeu esse país e somente um limitado
número de escolhidos pode encontrar o caminho até ele.
87
7. MÉTODO
Este estudo tem como objetivo refletir a mulher contemporânea e sua possibilidade
de escolha utilizando a Psicologia Analítica como instrumento de análise.
O inconsciente só pode ser acessado por meios indiretos e por isso, o material
inconsciente é apreendido através da realidade manifesta. Dessa forma, a apreensão das
manifestações inconscientes é feita pelo SÍMBOLO já que ele é a ponte entre os materiais
conscientes e inconscientes (pessoal e arquetípico), conforme descrito anteriormente no
capítulo 01.
90
8. O CASAMENTO DE SIR
GAWAIN E DONA RAGNELL
Em companhia de alguns de seus jovens cavaleiros, entre eles sir Gawain, o rei estava um dia
caçando na floresta. Todos conheciam bem a região e não esperavam nenhum acontecimento miraculoso.
No que o rei esporeou seu cavalo e adiantou-se, distanciando-se deles um pouco, foi quando lhe apareceu
à frente, de súbito, um grande cervo. O rei seguiu-o e, mal havia cavalgado meia milha, abateu-o.
Desmontou, atou o cavalo a uma árvore, sacou a faca de caça e começou a preparar a presa. Enquanto
estava debruçado sobre ela, num pequeno trecho coberto de musgo, percebeu que estava sendo observado;
ao erguer os olhos, viu diante de si um cavaleiro bem armado, de aspecto ameaçador, “cheio de força e
grande em poder”.
“Sede bem-vindo, rei Arthur!”, disse o homenzarrão. “Afrontais-me há muitos anos, e por isso hei
de vingar-me. Vossos dias de vida estão contados!”.
Assim ameaçado de morte imediata, o rei prontamente replicou, censurando, que pouca honra
teria o cavaleiro com tal façanha. “Estais armado, e eu apenas vestido de verde, sem espada e sem lança”.
E indagou o nome de seu desafiante.
“Meu nome”, disse o homem, “é Gromer Somer Joure”. O nome nada significava para o rei.
Sir Gromer Somer Joure exigiu que sua indefesa vítima jurasse voltar àquele mesmo local no
mesmo dia do ano seguinte, desarmado como agora, vestindo apenas seu traje verde de caçador, porém,
trazendo para resgatar a vida, a resposta a este enigma: “O que é que uma mulher mais deseja no
mundo?”.
91
O rei deu sua palavra e retornou, muito abatido, à companhia dos cavaleiros. Seu sobrinho, sir
Gawain, notou-lhe a melancolia do rosto e, chamando-o a parte, indagou-lhe o que acontecera. O rei
contou-lhe o segredo. Cavalgando ligeiramente afastados dos demais, ambos deliberaram, e finalmente
Gawain deu uma excelente sugestão:
“Deixai que preparem vosso cavalo para uma viagem por terras estranhas e a quem quer que
encontreis, seja homem ou mulher, perguntai o que pensam do enigma. Cavalgarei em outra direção,
inquirindo todos os homens e mulheres, a ver o que consigo; anotarei todas as respostas num livro”.
Agora só faltava um mês. O rei, inquieto, apesar da quantidade de respostas recolhidas, esporiou
o cavalo e aventurou-se na floresta de Inglewood, encontrando ali a bruxa mais feia já vista por olhos
92
humanos: rosto vermelho, nariz distilando muco, grande boca, dentes amarelos tendendo-lhe sobre o lábio,
pescoço comprido e grosso e pesados seios dependurados. Levava às costas um alaúde e cavalgava um
palafrém ricamente encilhado. Era uma visão inacreditável, a de tão horrenda criatura a cavalgar
radiosa.
Vindo diretamente ter com o rei, saldou-o e avisou, sem rodeios, que nenhuma das respostas que
ele e Gawain haviam obtido serviriam para nada. “Não vos ajude eu, e estareis morto”, disse ela.
“concedei-me apenas uma coisa, senhor rei, e garantirei vossa vida; caso contrário, perdereis a cabeça”.
“Que quereis dizer, senhora?” – perguntou o monarca. “A que vos referis, dizendo que minha vida está em
vossas mãos? Falai, e prometo-vos os que desejardes”. “Pois bem”, replicou a horrenda anciã, “assegurai-
me que dar-me-eis em casamento um de vossos cavalheiros. Seu nome é sir Gawain. Proponho-vos um
acordo: se vossa vida não for salva por minha resposta, meu desejo será vão; porém, se ela vos salvar,
havereis de conceder-me ser a esposa de Gawain. Decidi agora, e depressa, porque assim tem que ser, ou
estareis morto”. “Santa Maria!”, exclamou o rei. “Não concederei autorização a sir Gawain para
desposar-vos. Tal coisa diz respeito somente a ele”.“Bem”, replicou ela, “retornais agora ao castelo e tentai
persuadir sir Gawain. Apesar de feia, sou alegre”. “Oh, Deus!”, exclamou ele, “que desgraça se abate sobre
mim!”.
O rei Arthur retornou ao castelo e seu sobrinho Gawain respondeu-lhe cortesmente: “Possa eu
morrer em vosso lugar! Casar-me-ei com ela, uma e outra vez ainda que seja o diabo tão feio como belzebu
– ou não serei vosso amigo”. “Graças Gawain”, disse Arthur, o rei; “de todos os cavaleiros que jamais
encontrei, levais a palma”.
Dona Ragnell era o nome da bruxa. Quando rei Arthur, voltando, fez-lhe a promessa, em seu
nome e do sobrinho, ela respondeu: “Senhor, sabereis agora o que as mulheres desejam acima de tudo.
Uma coisa habita-nos todas as fantasias, e a conhecereis: acima de qualquer coisa, desejamos ter
soberania sobre o homem”. Disse ainda ao rei que o gigantesco cavalheiro seria tomado pela ira ao ouvi-lo.
“Maldirá aquela que vos ensinou, porque terá perdido seu trabalho”.
O rei Arthur galopou através de lama, pântano e charco para o encontro com sir Gromer Somer
Joure; no momento em que chegou ao lugar combinado, deparou-se com o outro.
“Adiantai-vos senhor rei”, disse-lhe o desafiante armado, “vejamos qual será vossa resposta”.
93
O rei Arthur estendeu-lhe os dois livros, na esperança de que alguma das respostas primeiramente
obtidas fosse suficiente, libertando-o e ao seu sobrinho do indesejável compromisso.
Sir Gromer percorreu as respostas uma a uma. “Não, não, senhor rei”, disse ele, “sois um homem
morto”.
“Esperai, sir Gromer. Ainda tenho uma resposta”. O outro deteve-se para escutar. “acima de tudo
mais”, disse o rei, “as mulheres desejam a soberania – é o que lhes apraz, e o seu maior desejo.”
E a ela, que tal vos contou, sir Arthur, suplico a Deus que possa vê-la arder em uma fogueira. É
minha irmã, dona Ragnell, aquela velha bruxa; cubra-a Deus de vergonha, pois se não fosse por ela, ter-
vos-ia subjugado...Que tenhais um bom dia!”. O peculiar cavaleiro a muito abrigava rancor contra o rei
Arthur, que outrora o despojara de suas terras concedendo-as, “com grande injustiça”, a sir Gawain.
Perdera-se agora sua oportunidade de vingança e foi-se, enfurecido, pois jamais teria novamente a sorte
de encontrar seu inimigo desarmado.
O rei Arthur voltou a cavalo para planície, logo encontrando dona Ragnell. “Senhor rei”, disse
ela, “sinto-me feliz porque tudo correu bem, como vos disse que ocorreria. Agora, desde que vos salvei a
vida, Gawain deve desposar-me. É um completo e gentil cavaleiro; casar-me-ei publicamente antes de
permitir-vos separá-lo de mim. Cavalgai à frente; seguir-vos-ei até a corte, rei Arthur”.
Muita vergonha causava ela ao rei; mas ao chegarem à corte, e todos se indagarem atônitos de onde teria
vindo tamanha monstruosidade, o cavaleiro sir Gawain adiantou-se sem qualquer sinal de relutância e
virilmente honrou a promessa de desposá-la.
Nessa noite, no leito, a princípio, sir Gawain não conseguia obrigar-se a voltar o rosto e encarar
o focinho pouco apetitoso da noiva. Após algum tempo, no entanto ela rogou: “Ah, sir Gawain, já que
nos casamos, demonstrai-me vossa cortesia na cama. Por direito, isso não me pode ser negado. Se eu fosse
bela, não vos comportaríeis assim; não fazeis a mínima conta dos laços matrimoniais. Em consideração a
Arthur, beijai-me ao menos; peço que atendais ao meu pedido. Vamos, vejamos quão ardente podei ser!”.
O cavaleiro e o leal sobrinho do rei reuniu cada pedacinho de coragem e gentileza. “Farei mais”,
disse, muito amável, “farei mais do que apenas beijar, por Deus!”. E, ao voltar-se deparou com a mais
formosa criatura que já vira.
“Oh, senhora mereço que me censureis; eu não sabia. Sois bela a meus olhos – apenas de terdes
sido a mais feia criatura que meus olhos já viram. Ter-vos assim, senhora, muito me agrada!”. Tomou-a
nos braços, beijou-a, e sentiram-se muito felizes.
“Senhor”, avisou ela, “minha beleza não durará. Ter-me-eis assim, mas apenas durante metade do
tempo. Esse é o problema: deveis escolher se me preferes bela à noite e horrenda durante o dia, diante dos
olhos de todos ou bela de dia e horrível à noite”.
“Oh, Deus, a escolha é difícil”, replicou Gawain. “Ter-vos bela apenas à noite entre entristeceria
meu coração, mas se decidir ter-vos bela durante o dia, dormirei em leito de espinhos. Quisera escolher o
melhor, mais não faço idéia do que dizer. Querida senhora, que seja como desejais; deixo a escolha em
vossas mãos. Meu corpo, meus bens, meu coração e tudo mais são vossos para que deles façais o que
quiserdes; juro-o diante de Deus!”.
95
“Ah, dou graça, cortês cavaleiro!”, exclamou a dama. “Abençoado sejais entre todos os cavaleiros
do mundo! Agora estou livre de meu encantamento, e ter-me-eis bela e atraente tanto de dia quanto à
noite”.
Então ela contou a seu deleitado esposo como sua madrasta (que Deus tenha piedade de sua
alma!) a encantara com suas artes de magia negra, condenando-a a permanecer sob aquela forma
asquerosa até que o melhor cavaleiro da Inglaterra a desposasse e lhe concedesse a soberania sobre seu
corpo e seus bens. “Assim fui deformada”, disse ela. “E vós, cortês sir Gawain concedestes-me, sem
condições, a soberania. Beijai-me agora, senhor cavaleiro, eu vos suplico; alegrai-vos e regozijai-vos”. E
desfrutaram deleitosamente um do outro.
97
ANÁLISE E DISCUSSÃO
Conforme dito no capítulo 05, este mito é normalmente analisado para compreender
o desenvolvimento masculino, mas como esta pesquisa se propõe a estudar a mulher
contemporânea, a análise central será realizada a partir da figura feminina (Ragnell) e tudo
o que se relaciona com ela. Assim, me proponho a analisar o mito para compreender como
a mulher se apropria de si para fazer escolhas conscientes.
98
contradições, da sobreposição de valores arcaicos e modernos e da inércia de subjetividade
(Figueira, 1987).
É importante dizer que não são apenas as mulheres que sofrem com a pressão social,
afinal, homens, idosos e crianças também buscam desempenhar papeis socialmente aceitos,
o que mostra que a influência do meio externo é inevitável: somos seres que se
desenvolvem nas relações, sejam relações próximas, como família e amigos, ou em outros
tipos de relações como nas instituições, normas e valores sociais, etc.
Voltando ao nosso mito, o rei, portanto, simboliza a pressão social que sempre
existiu por um comportamento dito “feminino”, por isso, relembro Whitmont 6 (1991) que
afirma que no “mundo androlátrico onde reina a ordem e a ilusão, as mulheres precisam ser
boas, delicadas, provedoras e receptivas” (WHITMONT, 1991: 79). Podemos imaginar,
neste contexto, a dificuldade para a mulher fazer escolhas autônomas e se comprometer
com elas, quando a autonomia e a independência eram símbolos do desenvolvimento e da
identidade masculina.
5
Conforme descrito no Capítulo 02.
6
Conforme descrito no capítulo 03.
99
O ideal de cavalaria se resume em um acordo de lealdade absoluta para
com as crenças e compromissos aos quais toda a vida está submetida.
O sonho do cavaleiro revela o desejo de participar de um grande
empreendimento, que se distingue por um caráter moralmente muito
elevado e de certo modo sagrado (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008:
201).
No começo do mito, o rei Arthur e os cavaleiros (entre eles Gawain) estão caçando
na floresta. Floresta aqui pode ser vista de duas formas complementares: como símbolo do
Feminino e símbolo do inconsciente (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 439).
Assim, a floresta será compreendida como um símbolo do dinamismo matriarcal, pois
possui a ligação com a natureza, já que este dinamismo corresponde à fase mágica do
desenvolvimento da consciência que tem como principal característica os aspectos da
Grande Deusa 8 que se manifestava em todas as coisas, como: natureza, animais, corpos
humanos, céu, terra, dentre outros. Além disso, nesta fase os eventos não dependem da ação
do homem, mas simplesmente acontecem, e ao homem cabia apenas se adaptar ao destino.
Mas no mito e na sociedade contemporânea isso deixa de acontecer, pois a dinâmica
patriarcal se apropria desta natureza, dominando-a. Como afirma Johnson (1987), as
“mulheres foram educadas para considerar que apenas as atividades masculinas, raciocínio,
7
Conforme descrito no capítulo 05.
8
Conforme descrito no capítulo 03.
100
poder e sucesso, têm valor real” (JOHNSON, 1987: 10) 9 . Assim, ou a mulher se sente
desvalorizada e, portanto, inferior ao homem, ou ela tenta ser igual ao homem e a possessão
pelo animus pode ocorrer, tornando-a agressiva e autoritária, dogmática, dentre outras
características (Whitmont, 2006) 10 .
No mito, os homens estão caçando nesta floresta e “Todos conheciam bem a região
e não esperavam nenhum acontecimento miraculoso”. Pode-se supor que este
conhecimento da região proporcione um certo controle sobre a natureza, costumando-se
associar conhecimento e poder. Portanto, neste momento, o funcionamento patriarcal
parece ter o controle e, por isso, pode se impor sobre a floresta. Assim, entendo que neste
momento, o patriarcal é o funcionamento dominante.
Entretanto, a figura do rei não dá ouvidos a esse chamado, pois ele é o símbolo da
busca pela perfeição patriarcal e não percebe que precisa se transformar, enxergando o
cervo como algo a ser dominado, pois ameaça o status quo patriarcal, por isso, o rei mata e
prepara a presa utilizando armas fálicas como a faca de caça, que também simboliza a
discriminação egóica extremamente necessária para o desenvolvimento humano, surgida
com o advento do patriarcado.
9
Conforme descrito no capítulo 04.
10
Conforme descrito no capítulo 01.
101
entre seres humanos e a natureza, características da fase de consciência matriarcal, não
existem mais (de forma consciente).
Nesse momento, o rei Arthur sente uma presença entre os musgos, é um “cavaleiro
bem armado, de aspecto ameaçador, cheio de força e grande em poder.” É uma figura mais
forte que o rei, que busca vingança e o ameaça matá-lo, mas o rei se defende com
argumentos patriarcais ao dizer que não haveria honra em matá-lo, pois ele está apenas
vestido de verde e não está devidamente armado, e por isso, não pode se defender, estando
vulnerável. Em momentos de crise, a nossa psique quer soluções rápidas e, por isso,
buscará caminhos previamente conhecidos – no caso do mito, são utilizados argumentos
patriarcais.
O nome do homem ameaçador é Gromer Somer Joure que significa “dia soturno e
sinistro” (WHITMONT, 1991:191) 12 . Para o autor, ele seria o guardião da figura feminina
11
Conforme descrito no capítulo 03.
12
Conforme descrito no capítulo 05.
102
que fora rejeitada durante o patriarcal e agora quer recuperar a sua soberania. Whitmont
(1991) afirma que ela “representa o terror abismal das dimensões profundas da Deusa, o
escuro e misterioso útero do não-nascido” (WHITMONT, 1991:191) 13 . O útero do não-
nascido remete a não saber o que está por vir e a vivência de processos não visíveis,
portanto, não controláveis racionalmente, como os conteúdos inconscientes. Assim, Arthur
deve viver essa busca, não tendo clareza dos resultados. Aqui percebemos que a perfeição
rígida patriarcal que Arthur representa deve ser revista, mostrando que não existe a
perfeição humana e, por isso, quanto maior a instrumentalização e flexibilidade para viver a
vida, melhor será.
O rei argumenta e Gromer Somer Joure negocia para que Arthur volte àquele local
no ano seguinte, vestido de verde e desarmado trazendo a resposta para o enigma: O que é
que uma mulher mais deseja no mundo?
Gromer impõe uma condição, pois é a única maneira de obter a atenção do rei para a
força do Feminino. Ele quer que Arthur volte apenas vestido de verde e, como vimos
anteriormente, significaria abdicar da agressividade masculina e estar vulnerável frente aos
aspectos do Feminino. Ele também deve estar desarmado, pois não poderá contar com suas
facas e espadas discriminativas do mundo governado pelo ego patriarcal. Além disso, o
tempo quando deve retornar é de um ano, que simboliza “a medida de um processo cíclico
completo. (...) É um modelo reduzido de um ciclo cósmico” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2008: 62). Desta forma, ao final do ciclo, o guardião do Feminino
rejeitado quer que a figura masculina já tenha entrado em contato com estas forças, pois só
assim, saberá a resposta do enigma.
O enigma deve ser conscientizado e integrado para que possa ser respondido. Mas
como todo enigma, não será fácil encontrar a resposta. Os enigmas são comuns nos mitos
do Graal e Whitmont (1991) 14 afirma que a resposta para o enigma não é o mais
13
Conforme descrito no capítulo 05.
14
Conforme descrito no capítulo 05.
103
importante. Entendo isso pelo fato de que o enigma pode ser importante para mobilizar a
busca pela resposta.
O rei não encontra outra opção, concorda e dá a sua palavra. Joure e o rei resolvem
a situação por vias patriarcais como: negociação, honra e dar a palavra – valores recorrentes
na mitologia celta –, ele terá que trazer a resposta de um enigma que simboliza algo
misterioso que o ego patriarcal não pode compreender, mas Arthur aceita o desafio para
continuar vivo. É interessante perceber que o ego (que está em conformidade com os
aspectos patriarcais) precisará aceitar e integrar o Feminino para continuar a viver, mas por
enquanto Arthur está abatido, pois quer manter seu status quo; porém percebe que não há
saída e está assustado pela força misteriosa, respeitando-a. Esta apatia do rei mostra como é
difícil mudar os comportamentos, reações e modos de vida que consideramos “corretos”,
pois no dia-a-dia somos rígidos em nossas condutas em relação ao mundo e em relação a
nós mesmos.
Jour é uma figura masculina, mas faz parte dos aspectos do Feminino, assim como
Dionísio é ligado à Deusa reprimida (WHITMONT, 1991: 77) 15 . É uma grande força a
serviço da anima e acredito que seja por isso que sua figura seja vista como maior do que a
de Arthur, afinal, tudo o que não é compreendido pelo ego é percebido como maior do que
realmente é e, como o ego tem dificuldade de absorver essas questões, uma crise se instala
e o ego terá que lidar com o que não compreende.
O rei está abatido e por isso, podemos supor que sua rígida noção de perfeição está
sendo abalada. Podemos fazer um paralelo com mulheres que internalizaram os estereótipos
sociais femininos e com isso, acabam por acreditar nesses estereótipos como única
possibilidade de ser. Como exemplo, posso citar a questão da obrigação da maternidade ou
ainda me remeter à dona de casa exemplar dos anos dourados. Esses valores enrijecidos são
internalizados e, por isso, não são fáceis de se transformar já que muitos dos nossos
comportamentos estão cristalizados, se tornando um empecilho para o desenvolvimento da
personalidade. O ego cresce na interação com o mundo externo e com o mundo interno,
15
Conforme descrito no capítulo 03.
104
assim as pessoas passam por frustrações, atrações e ameaças externas e o ego deve lidar
com estes aspectos para se fortalecer, mas também deve ouvir o seu mundo interno. Me
atrevo a dizer que um ego rígido é um ego “doente” e a busca por uma perfeição
simbolizada no rei deve ser revista para que a energia consiga fluir normalmente.
Gawain dá uma sugestão: “Deixai que preparem vosso cavalo para uma viagem por
terras estranhas e a quem quer que encontreis, seja homem ou mulher, perguntai o que
pensam do enigma. Cavalgarei em outra direção, inquirindo todos os homens e mulheres,
a ver o que consigo; anotarei todas as respostas num livro”.
Até essa parte do mito, o ego está assustado com forças que lhe parecem
desorganizadoras, pois ele só sabe atuar conforme regras patriarcais.
Assim, vivemos em uma sociedade em que a busca pelo conforto e a evitação da dor
é quase que obrigatória. Para isso, muitas mulheres fazem uso indiscriminado de calmantes
(ansiolíticos) 16 , essa busca por tranqüilidade acaba por impossibilitar a mulher de fazer
reflexões para ser agente transformadora da própria vida. Além disso, a questão se mostra
mais profunda, pois atualmente muitas das pessoas que tomam estas medicações querem
soluções a curto prazo, mas como os ansiolíticos podem causar dependência, podem
agravar a saúde da mulher a longo prazo, questão está que se torna um grande paradoxo.
Os aspectos do Feminino ainda não puderam ser aceitos e muito menos houve um
trabalho integrativo. Mas ao dizer: “temo ser pouco, Um pouco mais quero buscar ainda” o
rei Arthur pressente que as respostas não são o suficiente e ao confiar nessa intuição, abre
espaço para o Feminino emergir. Pois percebe que perguntar aos outros não resolverá. E ele
começa a entrar em contato com seus sentimentos, intuições e imaginação, isto é, suas
reações cristalizadas de uma perfeição inatingível começam a ser reconsideradas. Ele
adentra a floresta – símbolo do feminino – e se percebe em contato com essas novas
sensações e sentimentos.
16
Conforme descrito no capítulo 02.
106
A bruxa será entendida como o símbolo da mulher contemporânea que carrega
reminiscências de sua trajetória histórica 17 , isso quer dizer que “As mulheres hoje se acham
entre o fogo cruzado de velhas e radicalmente novas idéias sociais” (DOWLING, 2002:
22). Dessa forma, a mulher vive em uma sociedade patriarcal e para atingir o estereótipo
referente aos valores femininos, ela se afasta do animus para assumir o papel feminino
estipulado pelo patriarcal: “(...) quanto mais a mulher sente que tem que ser habitual e
estereotipadamente passiva e submissa, mais provável é que seu animus seja
compulsivamente hostil (WHITMONT, 2006:188), o que pode justificar que Ragnell
apareça como uma monstra horrorosa (“Era uma visão inacreditável, a de tão horrenda
criatura a cavalgar radiosa”).
O ego feminino deve sempre estar em contato com o animus para manter a
capacidade e o potencial do ego, assim quando houver equilíbrio no funcionamento interno,
o externo também estará equilibrado. Whitmont (2006), afirma que a mulher que não
integra o animus não conseguirá se enxergar capaz de realizar alguma coisa por si só. Isso
acontece porque o julgamento do animus será projetado e ela se sentirá criticada por todos,
sem considerar se a crítica é ou não realista.
A velha bruxa revela que as respostas até então coletadas não lhe salvariam a vida,
pois a resposta do enigma não está contida em um livro e Arthur percebe que só ela pode
17
Conforme descrito no capítulo 02.
107
salvá-lo: “Falai, e prometo-vos os que desejardes”, e a bruxa se propõe a ajudá-lo em troca
de se casar com Gawain. A escolha de Gawain (símbolo do animus) e não de outro
cavaleiro explicita a auto-regulação psíquica: Ragnell procura exatamente conteúdos em
que sua psique é inconscientemente desamparada e é atraída por isso, através da busca por
integração de conteúdos que são, a princípio, projetados. De acordo com Stein (2005), as
pessoas buscam nos outros uma parte perdidas delas próprias e, por isso, tornar-se
consciente não pode ser um processo individual, afinal, só podemos entrar em contato com
os conteúdos da anima(us) pela relação com o sexo oposto.
É por isso que o casamento tem uma simbólica importante na Psicologia Analítica,
pois “(...) simboliza, no curso do processo de individuação ou de integração da
personalidade, a conciliação do inconsciente, princípio feminino, com o espírito, princípio
masculino” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 197). Assim, o casamento simboliza
a integração do Feminino (na figura de Ragnell) com aspectos do animus (na figura de
Gawain).
Arthur reluta e diz que “Não concederei autorização a sir Gawain para desposar-
vos. Tal coisa diz respeito somente a ele”. O rei (que simboliza a pressão social) a princípio
não aceita que a mulher integre o arquétipo do animus, afinal, as mudanças podem ser
difíceis de serem aceitas e o rei faz mais uma tentativa de manter seu status quo; porém
também podemos fazer a leitura de que ao negar o consentimento do casamento sem
consultar Gawain, o rei provou que existe uma consciência de responsabilidade pessoal
sobre os próprios atos e escolhas. De acordo com Whitmont (1991), essa consciência
consolida ego 18 . Arthur desejava a resposta para se salvar, mas precisou de autocontrole
(energia do Masculino) em detrimento de seguir seus desejos (energia do Feminino) de
salvação. Apesar da psique precisar da integração das energias do Feminino e do
Masculino, o autocontrole é um indício de desenvolvimento da consciência importante,
pois é indispensável para o fortalecimento do ego: lidar com as frustrações faz parte do
crescimento e é imprescindível para que se saiba fazer as escolhas de forma consciente.
18
Conforme descrito no capítulo 03.
108
Gawain aceita se casar apenas por lealdade ao rei, devido aos valores da cavalaria,
em que a amizade entre homens era considerado algo nobre e a amizade com mulheres não
era aceitável, pois eram considerados seres inferiores, sendo incapazes de sentimentos
elevados. É interessante perceber que Gawain responde: “Possa eu morrer em vosso lugar!
Casar-me-ei com ela, uma e outra vez ainda que seja o diabo tão feio como belzebu – ou
não serei vosso amigo”. É interessante perceber que o casamento com Ragnell é visto
como morte no sentido de finitude, mas também considera o casamento uma oportunidade
de devolver a vida ao rei Arthur. Neste momento, o casamento é vivenciado como similar à
sensação de morte, isto é, como algo negativo, pois carrega um sentido de finitude de uma
boa vida. Se lembrarmos que a simbologia do casamento é a integração do princípio
Masculino com o princípio Feminino, perceberemos que a morte significa o fim de um
rígido funcionamento psicológico patriarcal, pois a morte “(...) tem um valor psicológico:
ela liberta das forças negativas e regressivas, ela desmaterializa e libera as forças de
ascensão do espírito” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 621). Dessa forma, essa
questão pode ser vista como parte do ciclo morte e renascimento, já que tanto o animus (na
figura de Gawain), quanto o Feminino (na figura de Ragnell) deverão ser devidamente
trabalhados e integrados na psique para que a alteridade seja possível. Como conseqüência
desta integração, ocorrerá uma vivência de morte do princípio Masculino onipotente e
patriarcal para Gawain poder se sentir mais vivo, isto é, mais integrado; entretanto, ele
considera esse ato um sacrifício, não um ganho para si, pois é válido por garantir a vida do
rei.
Ao ficar sabendo que seu pedido foi aceito, Ragnell finalmente dá a resposta do
enigma : “Uma coisa habita-nos todas as fantasias, e a conhecereis: acima de qualquer
coisa, desejamos ter soberania sobre o homem”. Neste momento, Ragnell ainda não tem
consciência que precisa integrar-se ao Masculino, mas que deseja ser o funcionamento
principal e, com isso, o princípio Masculino perderá sua soberania, sendo renegado às
profundezas do inconsciente. Porém, como conseqüência disto, não haveria
desenvolvimento, pois o Masculino e o Feminino ainda estarão baseados em uma relação
de poder e submissão numa reprodução do dinamismo patriarcal.
109
Arthur sai à procura do feminino reprimido e busca Gromer Somer Joure por
lugares úmidos – o que me remete ao inconsciente. Por isso, me atrevo a dizer que Gromer
poderia ser a personificação de aspectos da sombra coletiva, já que a sombra contém os
conteúdos reprimidos pela sociedade patriarcal. Esses conteúdos são projetados, o que
explicaria o fato de Gromer e Arthur serem personagens diferentes: Arthur simbolizando a
perfeição patriarcal e Gromer simbolizando aspectos do Feminino reprimido.
Jour revela que o rei havia retirado suas terras que foram para as mãos de Gawain e
por isso queria vingar-se. Assim, Gromer Somer Joure se desvela como símbolo dos
aspectos do Feminino que fora reprimido, assim como Dionísio que foi reprimido para que
Apolo pudesse emergir no desenvolvimento da consciência mitológica 19 . Gromer foi
destituído de suas terras o que significa dizer que ele fora reprimido e desapropriado de seu
poder em prol do patriarcado, já que na nossa cultura patriarcal, algumas características do
Feminino não são aceitáveis, como afirma Whitmont (2006) 20 “não é espírito mas natureza,
o mundo da formação, o ventre escuro da natureza que dá à luz os impulsos, os anseios e
instintos e a sexualidade; ele é visto no simbolismo da Terra e da Lua, da escuridão e do
espaço; é negativo, indiferenciado e coletivo” (WHITMONT, 2006: 154) e, por isso, esses
conteúdos são reprimidos e se tornam conteúdos separados da persona (que representa uma
aparência referente ao desempenho de papéis na sociedade).
Jour fica bravo pois o rei trouxe a resposta e afirma: “É minha irmã, dona Ragnell,
aquela velha bruxa; cubra-a Deus de vergonha, pois se não fosse por ela, ter-vos-ia
subjugado...” Jour e Ragnell são irmãos já que é o princípio Feminino que permeia os dois
personagens. Ragnell sabe que não pode deixar Jour (símbolo do Matriarcal) se sobrepor ao
Rei (símbolo do patriarcal), mas que deve haver uma integração destas forças, porque caso
19
Conforme descrito no capítulo 03.
20
Conforme descrito no capítulo 01.
110
uma se sobreponha a outra, significará que não houve desenvolvimento, e o funcionamento
na alteridade estará cada vez mais longe.
Na alteridade perceberemos que aspectos que não aceitamos, faz parte do outro e
também faz parte de nós e por isso, esses conteúdos não podem ser expulsos sem causar
destruição a nós mesmos. Assim, estamos seguindo para um momento em que a
unilateralidade psicológica está por acabar e deixamos de acreditar que apenas as virtudes
são identificadas com o ideal coletivo, pois “A individualidade única de cada um é seu
destino” (WHITMONT, 1991: 209).
Assim que o rei encontra Ragnell ela diz que quer se casar. A integração dos
princípios Masculino-Feminino deve acontecer, caso contrário, o processo de individuação
não poderá seguir seu caminho. Mas Ragnell pede um casamento público já que durante
anos ficou renegada ao privado, assim como tantas mulheres nos séculos passados e no
atual. Ragnell quer reconhecimento da possibilidade de escolher por sua própria vida, por
isso, Ragnell quer um casamento em que todos compareçam com missa e jantar,
compartilhando com os outros esta união: o princípio Feminino quer (e precisa) integrar o
animus.
Gawain não reluta em casar-se com ela, apesar de todos no castelo ficarem
horrorizados com sua feiúra. É importante ressaltar que os rituais facilitam os processos de
transformação em que algo deve morrer para que uma nova dinâmica possa nascer. No
ritual, os indivíduos em foco são acompanhados pelas pessoas significativas, que os acolhe,
validando esse novo passo rumo à mudança, como ocorre no processo de luto, no batizado,
casamento, etc. Porém, neste casamento, Gawain, encarnando o arquétipo do animus, busca
apenas honrar sua palavra não entrando em contato com seus desejos. Podemos pontuar que
é muito difícil aceitar as transformações – sejam elas impostas ou transformações
conscientemente escolhidas – pois elas sempre carregam uma sensação de perda, que é
inerente às vivências da vida.
21
Conforme descrito no capítulo 03.
112
Ragnell havia se afastado da força do animus para se adequar aos estereótipos
femininos, mas ela busca a integração, deixando de ser monstra para se tornar uma donzela.
Ao ocorrer a integração do animus, ele não será mais visto como uma força a
reprimir, o que o deixava inconscientemente hostil e portanto incontrolável, pois não
entrava em contato com o ego (Ragnell feia). Porém, o animus foi integrado de forma
apropriada e assim, a mulher percebe que pode ser ela mesma (Ragnell bela), mesmo
vivendo em uma sociedade em que a mulher muitas vezes é vista a partir de estereótipos.
Porém, Ragnell explica que sua beleza não é permanente. Assim, Gawain deverá
escolher se a quer bela durante o dia ou durante a noite. Podemos entender este momento
de duas formas: o dia seria símbolo de público (quando Ragnell estiver inserida no âmbito
social) e noite seria símbolo de privado (âmbito doméstico). Ao pensarmos na mulher
contemporânea, Gawain deve escolher se sua esposa terá chance de ter uma vida pública,
como ter uma vida profissional, por exemplo, ou se ficará em casa apenas atuando na vida
privada, isto é nos afazeres domésticos.
Com a integração foi possível a emancipação 22 que significa ter um ego fortalecido
que se comprometa com suas próprias escolhas, já que escolher significa ao mesmo tempo
ganho e perda. Por isso, o ato de escolher significa crescimento, pois exercer uma escolha
conscientemente envolve conflito e dor, mas também é uma oportunidade de sermos ativos
em relação à liberdade de que dispomos.
Nesse momento, o ego patriarcal percebe que não dá conta de todas as questões e
por isso, consegue aceitar a integração de forças que antes ele reprimia. Essa integração
quebra o encantamento, pois Ragnell não é mais vista como monstra: os conteúdos já foram
integrados. Gawain e Ragnell têm sua noite de núpcias, sendo que a relação sexual carrega
uma forte simbologia de integração, pois
22
Conforme descrito no capítulo 04
23
Conforme descrito no capítulo 04.
114
Ragnell é trabalhada como uma mulher que ainda não havia entrado em contato com
aspectos do logos e por isso não possuía o poder de decisão sobre própria vida e, dessa
forma, sua emancipação ficava prejudicada. Devido à pressão de uma sociedade patriarcal,
muitas mulheres reprimem sua agressividade, não confiando em seus instintos e
possibilidades, o que as tornam afastadas de sua essência. O equilíbrio será alcançado
quando a mulher passar a confiar em si e integrar o animus como (...) um guia para o
autoconhecimento, para uma capacidade de pensamento claro, factual, com relações causais
e uma habilidade para chegar a escolhas conscientes e refletidas” (WHITMONT,
2006:189) 24 .
Gawain e Ragnell se relacionam durante a noite e por isso entendo que a donzela
adentrou ao inconsciente para entrar em contato com o animus que precisava ser integrado.
O animus é um arquétipo transformador 25 , mas precisa estar ligado ao ego em um processo
dialético e não em obediência cega, pois só assim o auto-conhecimento é alcançado e as
escolhas podem ser feitas de forma mais assertiva.
Durante o dia (tomada de consciência), Gawain desperta e mostra a todos esta linda
mulher que simboliza, junto com ele, a integração de aspectos do Feminino e do Masculino,
pois na Psicologia Analítica nada é excluído, mas os conteúdos se transformam em direção
ao desenvolvimento da personalidade.
24
Conforme descrito no capítulo 04.
25
Conforme descrito no capítulo 01.
115
CONCLUSÃO
Fazer escolhas pressupõe que a mulher saiba seu lugar no mundo e aonde quer
chegar e foi exatamente isso que a vivência patriarcal proporcionou, pois deu a todos nós,
homens e mulheres, um ego discriminador. Atualmente, fazer escolhas faz parte da vida de
qualquer mulher, afinal, mesmo não escolher nada já é uma escolha por si só. Porém, a
escolha deve ser feita de forma consciente, caso contrário, gerará sofrimento e angústia,
pois ego deve bancar esta decisão com segurança; assim, um ego fortalecido é
imprescindível para amparar o ato de escolher e é por isso, que o animus deve ser
conscientizado e integrado, a sombra deve ser recolhida, as condutas cristalizadas pela
rigidez do ego devem ser revistas, pois conforme vimos no mito, o ego patriarcal ao
perceber que não dá conta de todas as questões, abre espaço para outras possibilidades
emergirem. Assim, qualquer escolha será vivida com sofrimento gerando inseguranças ou
frustrações, afinal o ego inseguro fica no meio dos fenômenos externos (referentes ao papel
social da mulher) e internos (referentes aos desejos e os chamados internos para a vida).
118
própria sombra e recolher todo o conteúdo que seu ego patriarcal tenta esconder em prol de
uma persona aceitável. Mas isso está mudando: percebe-se que a mulher está cada vez mais
buscando respostas para seus enigmas mais profundos, mas muitas vezes elas têm buscado
no externo, como por exemplo, nos livros auto-ajuda, os conteúdos que elas deveriam
procurar em si mesmas; dessa forma, percebemos que muitas vezes, as mulheres ainda não
sabem onde encontrar as respostas que tanto procuram.
Como o mito carrega conteúdos arquetípicos, posso concluir que a mulher luta com
as armas que possui para sobreviver; no caso do mito, Ragnell fez o que pode para se casar
com Gawain e conseguir fazer emergir este aspecto para viver de forma mais integrada Esta
integração Feminino-Masculino estimula o desejo de união, pois não podemos nos
desenvolver sozinhos, mas nos desenvolvemos com o sexo oposto, o que revela que não há
possibilidade do Feminino se desenvolver sem lidar com o princípio Masculino e vice-
versa; por isso o arquétipo anima(us) é um arquétipo transformador, mas tanto o ego quanto
a anima(us) devem estar em um movimento dialético, pois se houver obediência cega de
uma das partes, não há desenvolvimento, mas subordinação de aspectos importantes que
devem ser integrados à consciência.
Simbolicamente, Ragnell se casa com Gawain, o que significa que a mulher deve
estar em contato com o animus para que a consiga fazer escolhas para que sua autonomia
seja possível. Se a mulher não entrar com contato com o animus, haverá perda do potencial
do ego, o que significa dizer que a mulher terá um ego inseguro e que será dominado pelo
animus, afinal, apenas quando “(...) ela se torna consciente do seu próprio animus pode
começar a lutar por um relacionamento do tipo “eu-tu” ” (WHITMONT, 2006:182).
A bruxa precisou aparecer antes da donzela, e por isso, pudemos perceber que são
momentos diferentes do mesmo aspecto e, deste modo, o desenvolvimento da consciência,
tanto coletiva quanto individual, segue caminhos que precisam ser respeitados, pois esta
trajetória diz respeito ao processo de individuação de cada um de nós.
Para a mulher contemporânea, o ato de escolher é algo inerente à vida, mas a mulher
deve se perceber diferente do homem no que diz respeito a ouvir seu chamado interno e por
119
isso, formas masculinas de decisão devem ser repensadas para que possam emergir novas
maneiras, que integrem o Masculino ao Feminino, tanto no âmbito coletivo, quanto no
individual.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como mulher, fui mobilizada pelo tema, pois revela aspectos arquetípicos e,
portanto, também diz respeito a mim, pois estou em um momento de vida em que escolhas
profissionais e pessoais devem ser feitas.
É por isso que esta pesquisa é pertinente, pois contribui para a atualização do tema,
pois a mulher contemporânea está imersa em seu momento histórico e, assim, mais
pesquisas com diferentes articulações devem continuar sendo realizadas em uma época em
que as informações mudam com extrema rapidez pedindo constantes diálogos entre a
realidade cotidiana e as teorias. Além disso, a pesquisa também pode contribuir para a
clínica psicológica, ajudando na compreensão da inter-relação entre os aspectos da
subjetividade, os aspectos sociais e os arquetípicos na construção do Feminino e suas
vivências e escolhas, quando o Feminino se encontra em meio as antigas e novas formas se
ser e agir, o que ressoa em suas escolhas cotidianas. Além disso, não podemos esquecer da
importância da promoção de saúde, no que diz respeito à atuação no contexto social para
facilitar um desenvolvimento mais saudável das pessoas e suas relações.
Esta pesquisa foi um trabalho de dois anos que foi finalizada por uma imposição de
tempo ao final da graduação, mas não significa dizer que o assunto foi esgotado, que
respondo a todas as questões relativas ao processo de escolha da mulher contemporânea e
121
nem que meu interesse pelo tema acaba aqui. Mas como meu foco de interesse revela,
também tive que fazer escolhas e, portanto, meu tema foi delineado em busca das
possibilidades de escolha da mulher contemporânea e seus significados; porém, ao final
desta pesquisa, muitos desdobramentos surgiram, que acredito serem importantes para
continuação deste estudo; por exemplo, a retomada do mito para diferentes análises da
própria Ragnell, pois não podemos esquecer que o mito é universal e outras análises são
possíveis, ou ainda, como o homem lida com a possibilidade de escolha da mulher e
também como as transmissões geracionais de comportamentos socialmente aceitos geram
dificuldades ou facilidades no que diz respeito ao crescimento nas relações interpessoais
nas gerações que se seguem.
Posso dizer que mergulhei por dois anos a fundo no “mundo do Feminino” e me
instrumentalizei tanto para a minha vida pessoal, quanto para minha vida profissional.
Fazer esta pesquisa foi extremamente gratificante e espero, dentre em breve, publicar novos
trabalhos.
122
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVARENGA, Maria Zélia de. O Graal - Arthur e seus Cavaleiros: Parsival, Merlin:
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