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CAROLINA MOREIRA COIMBRA VIEIRA

A MULHER CONTEMPORÂNEA E A POSSIBILIDADE DE ESCOLHA

Um olhar para o Feminino sob a ótica da Psicologia Analítica

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

SÃO PAULO

2008
CAROLINA MOREIRA COIMBRA VIEIRA

A MULHER CONTEMPORÂNEA E A POSSIBILIDADE DE ESCOLHA

Um olhar para o Feminino sob a ótica da Psicologia Analítica

Trabalho de conclusão de curso como exigência


parcial para graduação no curso de Psicologia,
sob orientação da Profª Drª Flávia Arantes Hime.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

SÃO PAULO

2008

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Flávia Arantes Hime por ter me apresentado o estudo do


Feminino no 3º ano de faculdade, que por força do destino (e da minha vontade), foi minha
orientadora, por ler, reler, reler e reler esse trabalho pacientemente, pelo afeto e pela total
disponibilidade na orientação desta pesquisa. Sem você, eu jamais conseguiria!

Ao Sérgio Wajman, meu orientador de seminários, que acreditou no meu tema


imediatamente, o que possibilitou que eu mergulhasse nesta pesquisa desde o início de
2007.

À equipe de professores da PUC-SP e em especial aos professores de Psicologia


Analítica: Eloisa Penna, Noely Moraes, Marisa Penna, Denise Ramos, Durval Faria e
Heloisa Galan pelas aulas ministradas com tanto carinho para nossa preparação profissional
e, em especial, à Noely por ter aceitado dar o parecer deste trabalho e Eloisa Penna, minha
supervisora de estágio, pois sem você a minha paixão pela prática da psicoterapia não teria
sido tão grande.

Aos meus amigos de faculdade pela diversão e pelas conversas, tanto das matérias,
quanto das dúvidas a respeito do futuro. Agora todos nós ganhamos asas e vamos voar...

As minhas grandes amigas Elô, Eri, Ana Carol e Jana, por entenderem que os meus
sumiços esporádicos nesses 5 anos eram conseqüência da paixão que sinto pela psicologia.

À Araci Linchevicins por me pegar pela mão e me guiar pelo meu processo de
individuação.

Finalmente, agradeço à minha família por sempre apoiarem as escolhas que fiz em
minha vida. À minha mãe, Wanda, amiga e parceira de vida e ao meu irmão, Rodrigo. E em
especial ao meu pai Alberto que me ensinou que a vida é feita de luta e os sonhos podem
ser alcançados.

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Área de conhecimento: 7.07.05.01-1
Carolina Moreira Coimbra Vieira: A mulher contemporânea e a possibilidade de escolha -
Um olhar para o Feminino sob a ótica da Psicologia Analítica. 2008.
Orientadora: Profª Drª Flávia Arantes Hime.
Palavra-Chave: Psicologia Analítica, Feminino, Animus, Escolha.

RESUMO

O objetivo deste trabalho é pensar a mulher contemporânea e sua possibilidade de


escolha utilizando a Psicologia Analítica como instrumento de análise. Trata-se de um
trabalho teórico, em que fazemos um cruzamento entre pressupostos teóricos da Psicologia
Analítica e a concepções acerca da mulher, tendo como foco o mito celta “O casamento de
Sir Gawain e Dona Ragnell”. Para tanto, a análise foi realizada pelo uso da amplificação
simbólica como recurso metodológico na elaboração do mito. A análise demonstrou que a
mulher contemporânea se depara com as especificidades tanto do desenvolvimento
coletivo, quanto de seu desenvolvimento individual; pois enquanto que o desenvolvimento
coletivo demonstra uma necessidade de integração do princípio Feminino, o
desenvolvimento individual demonstra que as mulheres se afastaram de seu animus para se
encaixarem no papel feminino estipulado pelo patriarcal. Antes renegadas ao âmbito
privado, hoje a mulher adentrou no âmbito público e se viu insegura e com dificuldades no
processo de tomada de decisões, por isso a integração do animus é de extrema necessidade
para a formação de um ego seguro. Assim, conclui-se que a mulher contemporânea deve
ultrapassar as determinações históricas para conseguir sair do paraíso e se desenvolver, pois
o ato de escolher envolve ganhos, mas também perdas e, por isso um ego fortalecido é
imprescindível para que a mulher saiba usufruir da liberdade de que dispõe.

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SUMÁRIO 
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 7 
1.  PSICOLOGIA ANALÍTICA........................................................................................ 13 
Consciente e Ego .............................................................................................................. 13 
Complexos ........................................................................................................................ 14 
Arquétipos ........................................................................................................................ 15 
Inconsciente Pessoal e Coletivo ....................................................................................... 16 
Inconsciente Pessoal ..................................................................................................... 16 
Inconsciente Coletivo ................................................................................................... 17 
Anima e Animus............................................................................................................... 17 
Sombra.............................................................................................................................. 21 
Persona ............................................................................................................................. 22 
Individuação ..................................................................................................................... 23 
Self.................................................................................................................................... 24 
Símbolo............................................................................................................................. 24 
2.  HISTÓRIA DA MULHER ........................................................................................... 26 
Pré – História .................................................................................................................... 26 
Suméria............................................................................................................................. 28 
Egito ................................................................................................................................. 29 
Grécia ............................................................................................................................... 30 
Sociedades Feudais........................................................................................................... 31 
A camponesa ................................................................................................................ 34 
A nobre ......................................................................................................................... 35 
A religiosa .................................................................................................................... 37 
5
Idade Moderna.................................................................................................................. 38 
Séculos XIX e XX ............................................................................................................ 41 
Século XXI – A mulher contemporânea .......................................................................... 54 
3.  O DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA ........................................................ 64 
Fase Mágica...................................................................................................................... 65 
Fase Mitológica ................................................................................................................ 66 
Fase Mental ...................................................................................................................... 68 
Novos Modelos de Orientação ......................................................................................... 71 
4.  O FEMININO E A POSSIBILIDADE DE ESCOLHA ............................................... 75 
5.  A IMPORTÂNCIA DOS MITOS ................................................................................ 79 
Graal ................................................................................................................................. 80 
Gawain e Ragnell ......................................................................................................... 83 
6.  OS CELTAS ................................................................................................................. 85 
7.  MÉTODO ..................................................................................................................... 88 
8.  O CASAMENTO DE SIR GAWAIN E DONA RAGNELL ...................................... 91 
ANÁLISE E DISCUSSÃO .................................................................................................. 98 
CONCLUSÃO.................................................................................................................... 116 
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 121 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 123

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INTRODUÇÃO

Meu interesse pelo estudo do feminino ocorreu enquanto cursava a eletiva Gênero e
Feminilidade no 3º ano da graduação da Faculdade de Psicologia da PUCSP e, como gostei
muito das aulas, passei a ler mais sobre o assunto, tanto literatura acadêmica quanto leiga.

Sempre estive imersa no universo feminino, primeiro porque sou mulher, mas
também vivi o Feminino em minha experiência como estudante de psicologia nos estágios
oferecidos pelos núcleos do 4º ano (Núcleo de Saúde) e do 5º ano (Psicologia Hospitalar e
Psicologia Analítica) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É interessante
verificar como se manifesta o tema das escolhas das mulheres:

2 No Núcleo de Psicodiagnóstico realizado na Clínica Ana Maria Popovic, minha


paciente de 12 anos brincava com bonequinhas e no final das sessões, as bonecas
ficavam arrumando a casa enquanto os bonecos se preparam para suas atividades
diárias (trabalhos, saídas com amigos). Essa era a sua experiência familiar, vivência
muito comum nas famílias brasileiras, em que as mulheres, são as únicas
responsáveis pelas tarefas domésticas e seus maridos pelo sustento da casa.
2 No estágio do Núcleo de Saúde realizado no Ambulatório de Doenças Infecto-
Contagiosas da UNIFESP e no estágio do Núcleo de Psicologia Hospitalar no
Instituo de Infectologia Emílio Ribas, conheci mulheres contaminadas por seus
maridos pelo vírus do HIV. Muitas vezes a escolha entre separar-se ou perdoar era o
cerne do conflito destas mulheres.
2 No núcleo de Psicologia Analítica tive uma paciente de 20 anos que veio do Norte
do Brasil para cursar universidade e vivia diversos conflitos em suas escolhas como
carreira versus família; escolhas financeiras; escolhas dentro da sua própria
profissão, dentre outras.

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Concordo com Bauer (2001), quando ele afirma que “A situação da mulher é hoje
um tema bastante estudado, provavelmente porque a sua condição nova traz à luz
questionamentos também novos, que muitos buscam responder” (BAUER, 2001:07).
Dentre os vários temas de interesse, neste trabalho busco compreender a questão da
possibilidade de escolha da mulher contemporânea.

Já conquistamos acesso à esfera pública e também o que há de mais valioso na


sociedade atual – a possibilidade de escolha: podemos escolher nossos namorados/maridos
(além de optar pelo casamento ou não), escolhemos nossos amigos, nossas carreiras e que
rumo queremos dar para as nossas vidas. Fazer escolhas de forma consciente é uma enorme
conquista feita por mulheres e para nós mulheres para os séculos que se seguem. A
possibilidade de fazer escolhas é um ganho para nós, mas também significa perder, pois
escolha implica ao mesmo tempo em ganho e perda de opções, tanto de obter quanto de ser.

Para Dowling (2002) “As mulheres hoje se acham entre o fogo cruzado de velhas e
radicalmente novas idéias sociais (...)” (DOWLING, 2002: 22). Portanto, esse meio termo
entre a possibilidade de escolher o rumo de sua vida e o conservadorismos que leva a
manter o status quo fazem parte da construção do que é ser mulher no mundo
contemporâneo, pois, estamos entre as lutas dos séculos passados e as possibilidades dos
séculos que estão por vir.

Minha reflexão basear-se-á na Psicologia Analítica, pois esta abordagem oferece


uma visão integrada do ser humano e foca o estudo do Feminino tanto em seu aspecto
interno quanto conceitual, tanto do âmbito pessoal quanto no que tange às relações.
Considero que uma abordagem profunda do ser humano deva contemplar sua
complexidade. A Psicologia Analítica proporciona uma integração entre as várias
dimensões de nossa experiência: a pessoal, a social e, especificamente, a arquetípica. Em
especial, os conteúdos dos mitos chamaram a minha atenção pela possibilidade de trabalhar
esses conteúdos arquetípicos que já emergiram na consciência e, portanto podem ser
apreendidos.

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O fascínio e a vida dos mitos e contos de fadas baseiam-se, pois, no fato de
que eles representam as formas primárias da experiência humana, razão
por que os mesmos motivos são difundidos no mundo inteiro, não apenas
em conseqüência da migração, mas também porque a psique humana que
produz estas formas é, por toda parte, a mesma (JUNG & VON FRANZ,
1980:27).

O cerne da Psicologia Analítica é o processo de individuação (processo de


desenvolvimento psicológico) e conseqüentemente, a ampliação de consciência. Desta
forma, ao pensar a mulher contemporânea, percebi que a possibilidade de escolha que a
mulher detém hoje depende, não só do processo de individuação de cada mulher, mas
também do processo de desenvolvimento da psique coletiva. Estamos vivendo uma quebra
da hegemonia patriarcal e não sabemos para onde vai a nossa civilização, porém, podemos
dizer que alguns aspectos da consciência matriarcal estão prestes a sair da sombra
(Whitmont, 1991) e emergir novamente em nossa psique. Esta integração é um fator
importante para que o Feminino seja tão valorizado quanto o Masculino.

Acredito que estamos em um período de transição e para entender essas questões,


retomo o desenvolvimento da consciência na visão de Whitmont (1991): “Enquanto valores
antigos estão sendo rompidos, uma nova consciência também está nascendo”
(WHITMONT, 1991: 58).

Em relação ao mito escolhido: “O casamento de Sir Gawain e Dona Ragnell”, em


minhas pesquisas percebi que este mito celta, medieval, é sempre analisado pela ótica do
cavaleiro. Proponho aqui olharmos o ponto de vista da mulher, em suas relações com o
Masculino e o Feminino, especificamente em nossas reflexões no tema “escolha”.

Isso pode ser feito já que o mito é universal e, portanto não possui apenas um único
ponto de vista, o que abre possibilidades para novas análises e novas descobertas acerca de
seu conteúdo.

É, portanto, pertinente a utilização do mito escolhido para entendermos os aspectos


referentes a toda humanidade, pois “Os mitos e os ritos sempre revelam uma situação-limite

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do homem – não apenas uma situação histórica. Uma situação-limite é aquela que o homem
descobre ao tornar-se consciente do seu lugar do universo” (ELIADE apud WHITMONT,
2006: 69).

No primeiro capítulo, faço um resumo dos conceitos básicos da Psicologia Analítica


que considero importantes para o entendimento da teoria. Escolho colocá-lo como primeiro
capítulo desta pesquisa para que os conceitos da abordagem teórica sejam claramente
entendidos pelo leitor logo no começo da pesquisa.

No segundo capítulo, faço uma revisão histórica sobre o feminino desde a pré-
história até os dias atuais para buscar compreender os nossos comportamentos, pois somos
todos afetados pela nossa própria história, mas também pelos conteúdos históricos
remanescentes da psique coletiva, afinal, “A preocupação com assuntos históricos pode
parecer, à primeira vista, ser meramente um passatempo pessoal do médico, mas para o
psicoterapeuta é, em certo sentido, uma parte necessária de seu equipamento mental”
(HARDING, 1985: 16).

No que diz respeito aos aspectos da vida da mulher contemporânea. Vou buscar na
literatura um recorte do feminino para traçar um panorama social da atualidade a fim de
refletir sobre as escolhas que as mulheres estão fazendo, suas expectativas e desejos
relativos à sociedade e o que esta espera dele, já que há recursividade entre o âmbito
pessoal e o social (Giddens, 1993).

Dessa forma, esse levantamento histórico tem a finalidade de compreender como foi
visto e vivido o feminino em diversos momentos históricos e buscar refletir porque e para
que o estamos vivenciando da forma como vivemos atualmente.

No terceiro capítulo, faço uma síntese do desenvolvimento da consciência de


Whitmont (1991) para podermos refletir sobre o percurso histórico apresentado no capítulo
anterior pela ótica da Psicologia Analítica.

No quarto capítulo, busco compreender o feminino no que diz respeito à


possibilidade de escolha. Abordo temas como a liberdade, a queda da aceitação sem
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questionamento da ordem coletiva e a importância da integração do animus para que
escolhas possam ser feitas de forma mais libertária.

No quinto capítulo, escrevo sobre a importância da mitologia no estudo da


Psicologia Analítica. O mito é universal e por isso carrega a possibilidade de inúmeras
análises e descobertas acerca do potencial humano e, quando corretamente trabalhados,
fornecem material para compreendermos o desenvolvimento psíquico, pois ajudam o
indivíduo a se conscientizar do seu lugar do universo por carregarem conteúdos
arquetípicos.

No sexto capítulo, faço um breve retrato sobre os celtas, sua sociedade, cultura e
comportamento para contextualizar o mito utilizado.

O sétimo capítulo é a metodologia de pesquisa e no oitavo capítulo, apresento o


mito “O CASAMENTO DE SIR GAWAIN E DONA RAGNELL”.

No nono capítulo apresento a análise do mito, no décimo a conclusão e em seguida,


as considerações finais.

Essa pesquisa se faz necessária, pois, ao buscar na literatura um aprofundamento no


assunto, acabei não encontrando um volume significativo de obras sobre o tema da escolha.
Além disso, é importante mostrar que apesar das lutas para a emancipação feminina, ainda
temos um longo caminho a percorrer e, dessa forma, o trabalho busca desmistificar o senso
comum que permeia as relações heterossexuais, no que diz respeito às reais diferenças
relacionadas ao gênero: percebemos que as desigualdades permanecem, articulando-se com
outras, como as raciais, étnicas, geracionais, econômicas, culturais, etc, mas devido ao
curto período de pesquisa, todas estas questões não serão abordadas neste estudo. Nós,
enquanto pesquisadores e psicólogos podemos perpetuar as desigualdades ou dar-lhes
visibilidade, contribuindo para sua revisão e transformação.

Em suma, o objetivo deste trabalho é pensar a mulher contemporânea e sua


possibilidade de escolha utilizando a Psicologia Analítica como instrumento de análise.

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A relevância desta pesquisa abrange várias áreas da psicologia, como a psicoterapia
individual/de casal, psicologia da saúde, pesquisas, promoção de saúde, dentre outras. A
possibilidade de fazer escolhas conscientemente e arcar com as conseqüências pode levar a
uma maior apropriação de si e das relações, sendo inclusive, considerada por autores
relevantes como um indício importante de saúde mental (Erikson, 1976).

As pesquisas sobre Gênero em Psicologia ainda são escassas, o que não ocorre em
outras áreas de conhecimento, como as ciências sociais, por exemplo. Meu estudo pode
contribuir para gerar novas informações que validem e aprofundem a comunicação entre
dados e reflexões teóricas.

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1. PSICOLOGIA ANALÍTICA

No presente capítulo, faço um resumo da teoria que servirá como base para a análise
deste trabalho. É uma teoria complexa e, por isso, aqui serão apresentados os principais
conceitos formulados por Jung.

Consciente e Ego 
O ego é a experiência que a pessoa tem dela mesma, é o sujeito de todos os atos
conscientes de uma pessoa. Assim, para qualquer sentimento, percepção, fantasia ou
pensamento se tornarem conscientes, eles devem se ligar ao ego. Um ego adulto saudável
deve ser focado na ação (ter objetivo) e dispor de condições para fazer escolhas e bancá-las
(agüentar a perda), pois se o ego for suficientemente forte, dará passagem aos conteúdos do
inconsciente, se fortalecendo.

Consciente, de uma maneira geral, é o que conhecemos do nosso ambiente externo e


interno, pois são os conteúdos que passaram pelo ego. Assim, a consciência depende dos 5
sentidos (visão/olfato/tato/audição/paladar), que é o meio em que entramos em contato com
o mundo.

Stein (2005) afirma que é o ego que determina quais são os conteúdos que ficarão
na consciência e quais passarão para o inconsciente, assim, ele tem o poder de reprimir ou
resgatar material psíquico, portanto, é possível perceber que o ego tem poder de ação e não
apenas reage, já que todos os conteúdos estão, de alguma forma, ligados ao ego
funcionando como uma agência central, já que ele é a energia que move os conteúdos da
consciência. Dessa forma, o ego seria o lugar onde ocorre a tomada de decisão e o livre-

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arbítrio, sendo a instância que individualiza os seres humanos entre si. Ele influencia, mas
também pode ser influenciado por estímulos internos e externos.

O autoconhecimento é a ampliação de consciência que humaniza o indivíduo e é


gerado pelo fortalecimento do ego. Como afirma Jung (2004):

Entretanto, quando mais conscientes nos tornamos de nós mesmos através


do autoconhecimento, atuando conseqüentemente, tanto mais se reduzirá a
camada do inconsciente pessoal que recobre o inconsciente coletivo. Desta
forma, vai emergindo uma consciência livre do mundo mesquinho,
susceptível e pessoal do eu, aberta para a livre participação de um mundo
mais amplo de interesses objetivos. Essa consciência ampliada não é mais
aquele novelo egoísta de desejos, temores, esperanças e ambições de
caráter pessoal, que sempre deve ser compensado ou corrigido por
contratendências inconscientes; tornar-se-á uma função de relação com o
mundo de objetos, colocando o indivíduo numa comunhão incondicional,
obrigatória e indissolúvel com o mundo (JUNG, 2004a:54).

Complexos  
O Ego se fortalece ao interagir com o mundo, mas também existem conteúdos que
perturbam a consciência que nada tem a ver com o mundo externo, mas sim com fatores
internos. Os conteúdos que geram essas perturbações são chamados de Complexos. A
estrutura do complexo é

(...) composta de imagens associadas e memórias congeladas de momentos


traumáticos que estão enterradas no inconsciente e não são facilmente
acessíveis para a recuperação do ego. São as lembranças reprimidas. O
que une os vários elementos associados do complexo e os mantém no lugar
é a emoção (STEIN, 2005: 55).

Essa reação emocional pode ser uma leve ansiedade até a loucura; dessa forma, uma
pessoa constelada por um complexo pode perder o controle de suas emoções e de seu
comportamento.

Essa energia penetra na concha da consciência do ego e inunda-a,


influenciando-a assim para rodopiar na mesma direção e descarregar parte
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da energia emocional que foi liberada por essa colisão. Quando isso
acontece, o ego perde por completo o controle da consciência ou, quanto a
isso, o do próprio corpo. A pessoa fica sujeita a descargas de energia que
não estão sob o controle do ego (STEIN, 2005: 48).

É necessário fortalecer o ego para não ficar à mercê dos complexos, para que ele
possa abafar em si mesmo uma parte dessa energia e, conseqüentemente, diminuir os
impulsos emocionais e físicos, porém, essa energia nunca será completamente eliminada.
Stein (2005) afirma que “em certa medida, nenhum de nós é inteiramente responsável pelo
que dizemos ou fazemos quando sob o domínio de um complexo” (STEIN, 2005: 48).

Arquétipos 
Arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens. Demonstra a
existência de uma base psíquica comum a todos os seres humanos (contos de fadas,
dogmas, mitos, ritos religiosos, artes...). Quando essas energias psíquicas tomam forma,
geram as imagens arquetípicas, também chamadas de imagens primordiais.

Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis


repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob
a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente
apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um
determinado tipo de percepção e ação (JUNG, 2003: 58).

Falamos de arquétipos quando nos referimos aos conteúdos que não foram
elaborados pelo consciente, pois se encontram nas camadas mais profundas do
inconsciente.

(...) os arquétipos quase sempre se apresentam em forma de projeções, e


quando estas são inconscientes, manifestam-se nas pessoas com quem se
convive, subestimando ou sobre-estimando-as, provocando
desentendimentos, discórdias, fanatismos e loucuras de todo tipo. (...) Os
arquétipos são, portanto, coisas extremamente importantes, de efeito
considerável, e que merecem toda a nossa atenção (JUNG, 2004b: 86).
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Assim, o arquétipo representa um conteúdo inconsciente que evidencia “(...) a
existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo
lugar.” (JUNG, 2003: 53).

Inconsciente Pessoal e Coletivo 
O inconsciente não é “inimigo” do ego, não o ataca, mas trabalha a seu favor. Tudo
dependerá da posição do próprio ego em relação ao material que desconhece. Dessa forma,
o inconsciente não é visto como apenas reativo ao consciente, mas também tem autonomia
em relação ao processo psíquico, formando assim, um mundo próprio que pouco sabemos:

O grande problema propõe-se aqui: em que constituem os processos


inconscientes? Como se formam? Naturalmente, na medida em que são
inconscientes, nada se pode dizer a respeito. Entretanto, às vezes,
manifestam-se parcialmente através de sintomas, ações, opiniões, afetos,
fantasias e sonhos. Com o auxílio desses materiais de observação, podemos
tirar conclusões indiretas acerca da constituição e do estado momentâneos
do processo inconsciente e de seu desenvolvimento. Não devemos,
entretanto, iludir-nos, pensando ter descoberto a verdadeira natureza do
processo inconsciente. Jamais conseguiremos ultrapassar o hipotético
“como se” (JUNG, 2004a: 52).

Podemos entender, portanto que o inconsciente nunca está em repouso, ele “(...) está
sempre empenhado em agrupar e reagrupar seus conteúdos. Só em casos patológicos tal
atividade pode tornar-se completamente autônoma; de um modo normal ela é coordenada
com a consciência, numa reação compensadora” (JUNG, 2004a: 04).

Na Psicologia Analítica, o inconsciente contém não só componentes individuais,


mas também coletivos, como explicados a seguir:

Inconsciente Pessoal  
Camada mais superficial da psique que contém os complexos. É constituído por
conteúdos individuais que foram esquecidos ou reprimidos.

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O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas
(propositadamente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por
assim dizer, não ultrapassam o limiar da consciência (subliminais), isto é,
percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a
consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência.
Corresponde à figura da sombra, que freqüentemente aparece nos sonhos
(JUNG, 2004b: 58).

Assim, o inconsciente pessoal se forma ao longo da vida do indivíduo e tem ligação


com a sombra que será explicada mais a frente.

Inconsciente Coletivo 
É a camada mais profunda da psique, que possui conteúdos arquetípicos e, portanto,
inatos e não individuais que nunca emergiram à consciência. Como afirma Jung (2004), “O
inconsciente coletivo é uma figuração do mundo, representando um só tempo a
sedimentação multimilenar da experiência” (JUNG, 2004b: 86). Assim, o inconsciente
coletivo diz respeito “à comunidade humana em geral” (JUNG, 2004a: 54).

Anima e Animus   
Anima(us) é um arquétipo da psique e tem uma enorme influência sobre os
indivíduos e a sociedade. Ele se situa fora da influência da consciência (família,
sociedade, cultura e tradição) e, por isso, podemos percebê-lo apenas observando suas
manifestações. De acordo com Stein (2005),

(...) o território de anima e animus parece, por vezes, uma selva profunda e
indevassável. Talvez isso deva ser assim mesmo, pois estamos penetrando aí
nas camadas mais profundas do inconsciente, o inconsciente coletivo, o
território das imagens arquetípicas, onde as fronteiras são imprecisas
(STEIN, 2005:117).

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O modo como as pessoas percebem seu profundo interior caracterizam sua
atitude de anima e animus, assim, a anima(us) diz respeito à relação do ego com o
sujeito e, por isso, seu interesse é se adaptar ao mundo interior, que deve funcionar
como uma ponte para as imagens do inconsciente coletivo.

Como estrutura psíquica, a anima/us é o instrumento pelo qual homens e


mulheres penetram nas partes mais profundas de suas naturezas
psicológicas e se adaptam a elas. (...) anima/us está voltada para o mundo
interior da psique e ajuda uma pessoa a adaptar-se às exigências e
necessidades dos pensamentos intuitivos, sentimentos, imagens e emoções
com que o ego se defronta (STEIN, 2005:120).

Ao designar nomes diferentes para essas estruturas, Jung queria mostrar as


diferenças arquetípicas entre os sexos, porém, para ele homens e mulheres são
masculinos e femininos ao mesmo tempo e as diferenças são uma questão de grau e
distribuição. É importante destacar que essas diferenças são arquetípicas e não culturais
nem sociais.

De acordo com Whitmont (2006), o princípio Masculino pode ser representado


pelo Yang que seria o

“(...) arquétipo que encerra o elemento criativo ou gerador, ou a energia


iniciadora; ele simboliza a experiência da energia em seus aspectos
impulsivos de força, impulsividade e rebelião. Apresenta as características
de calor, estímulo, luz (sol, raio); é divisor fálico como a espada, a lança ou
o poder de penetração, e até mesmo despedaçador; ele se move do centro
para fora; é representado como paraíso ou espírito; manifesta-se em
disciplina e separação, e, portanto, em individualização. Desperta, luta,
cria e destrói, é positivo e entusiasmado, mas também restritivo e ascético
(outra tendência separadora) (WHITMONT, 2006: 153).

Já o princípio Feminino pode ser representado pelo Yin que

(...) é representado como receptivo, dócil, retraído, frio, úmido, escuro,


concreto, envolvente, continente (caverna e cavidade), doador de forma e
gerador, centrípeto, iniciador; não é espírito mas natureza, o mundo da
formação, o ventre escuro da natureza que dá à luz os impulsos, os anseios
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e instintos e a sexualidade; ele é visto no simbolismo da Terra e da Lua, da
escuridão e do espaço; é negativo, indiferenciado e coletivo (WHITMONT,
2006: 154).

Para Jung, o homem é masculino no exterior e feminino no interior e a mulher é


feminina no exterior e masculina no interior. Será interno tudo o que foi deixado de fora
da persona. Atualmente, os neo-junguianos trabalham com a hipótese de que os dois
sexos possuem internamente tanto a anima, quanto o animus.

O estilo mais andrógino de décadas recentes afastou-se claramente de


clássica polarização sexual entre homens machos e mulheres passivas. As
mulheres vestem-se e comportam-se de maneiras mais masculinas do que
faziam em gerações passadas, e muitos homens são analogamente mais
femininos em suas personas do que eram seus antepassados. De que modo
isso afeta as características da anima e do animus? Assim como as imagens
coletivas predominantes para o vestuário e o comportamento masculino e
feminino corretos mudam, também as imagens internas de anima e animus
se alteram de acordo. Em conformidade com a regra, tudo o que é deixado
de fora da adaptação consciente da cultura reinante da pessoa individual é
relegado para o inconsciente e reunir-se-á em torno da estrutura a que
Jung deu o nome de anima/us (STEIN, 2005: 125).

Em relação a esse arquétipo, pode ocorrer o que se convencionou se chamar de


possessões, que acontece quando o mundo inconsciente não é conscientizado,
atrapalhando as relações e a vida como um todo. A possessão abre os portões do
inconsciente e se torna mínimo o controle dos impulsos, não existindo nenhum domínio
sobre pensamentos e afetos.

Assim como o homem dominado pela anima é melancólico, inseguro e


retraído, a mulher conduzida pelo animus é governada por preconceitos,
noções e expectativas preconcebidas e é dogmática, argumentadora e
hipergeneralizadora. Uma mulher possuída pelo animus não discute para
descobrir a verdade, mas para mostrar que está “certa”, vencer e ter a
última palavra (WHITMONT, 2006:179).

19
Ao ser percebida pela consciência do ego, a imagem da anima(us) estimula desejo
de união, gerando atração e vontade de participação, dessa forma, a anima(us) é um
arquétipo transformador. Mas para desenvolvimento psicológico e, conseqüentemente,
aumento de consciência, o ego e a anima(us) devem estar ligadas em um processo dialético
e não em obediência cega. Nesse processo, nos deparamos com nossas projeções e
questionamos nossas românticas e guardadas ilusões. Já que “A anima/us é a grande
criadora de ilusão que fornece estímulos exaustos e dilacera o coração dos ingênuos”
(STEIN, 2005: 129).

Tornar-se consciente não pode ser um processo individual. Só se pode conhecer a


realidade do anima(us) pela relação com o sexo oposto e, por isso, é importante para o
desenvolvimento da consciência as relações emocionais, porém, é comum que as pessoas
fujam da experiência da anima(us).

As defesas inatas do ego mantêm essa tentação a distância. Os rapazinhos


fogem das meninas que são poderosas e atraentes demais, sabendo
intuitivamente que não são capazes de enfrentar o desafio. Já homens feitos
mostram-se por vezes suficientemente sábios para fazer o mesmo, pois a
anima é uma destruidora de casamentos e carreiras convencionais. As
mulheres também resistirão ao apelo do animus dionisíaco que tenta atraí-
las para o êxtase e as promessas de plena realização se se abandonarem ao
amor, pois também aí residem os perigos de desmembramento e loucura
(STEIN, 2005:133).

A anima(us) representa o lado subdesenvolvido de um indivíduo, isto é, onde ele é


inconscientemente desamparado e ele é atraído por isso. As pessoas buscam uma parte
perdidas delas próprias e o anima(us) se apresenta como um masculino/feminino em
projeção, e é por isso que somos atraídos por certas pessoas em detrimento de outras.

Assim, o arquétipo anima(us) é de vital importância para entendermos as relações


de gênero e as relações interpessoais como um todo. Não podemos escapar desta força
arquetípica já que “(...), a anima/us é destino. Somos guiados para nossos destinos pelas
imagens de poderes arquetípicos situados muito além de nossa vontade consciente ou
conhecimentos” (STEIN, 2005: 131).
20
Sombra  
A sombra contém conteúdos que foram reprimidos pelo ego devido à
impossibilidade de lidar com esse material; assim, esses conteúdos inconscientes ficam
alheios ao controle do ego que, por isso, não enxerga esses conteúdos como parte de sua
personalidade, mas consegue vê-lo em outras pessoas, o que chamamos de projeção da
sombra, que constela o arquétipo do bode expiatório. Assim, “à medida que tenho que ser
correto e bom, ele, ela ou eles se tornam os portadores de todo o mal que não consigo
reconhecer em mim mesmo” (WHITMONT, 2006: 140).

De uma maneira geral, o ego se desenvolve abrigando algumas características em


detrimento de outras, devido a isso, ele se desenvolve assimilando na persona aspectos
considerados aceitáveis e joga para a sombra o que não aceita em si. Mas isso não significa
que os conteúdos da sombra serão anulados, mas que continuarão funcionando sem o freio
do ego, permanecendo como complexos. É importante ressaltar que a sombra não contém
apenas aspectos negativos, mas engloba conteúdos que o ego não consegue lidar e, por isso,
são separados dos conteúdos da persona.

Quando a consciência se forma, naturalmente a sombra se constitui. Isso acontece


devido ao processo de formação do ego, que ocorre pela colisão entre o individual e o
coletivo. Assim, à medida que ocorre a ampliação de consciência, o ego se fortalece e os
conteúdos da sombra podem ser reintroduzidos.

A sombra também pode agir coletivamente, pois será através dela que
discriminações raciais, religiosas, sexuais, etc podem ocorrer. Assim como no enfoque
individual, a sombra coletiva também deve ser reintegrada, afinal “(...) a sombra é o
arquétipo do inimigo” (WHITMONT, 2006: 151).

21
Persona  
Persona é a máscara da psique coletiva com a finalidade de se adaptar ao exterior.
Representa uma aparência referente ao desempenho de papéis na sociedade e, apesar da
persona fazer parte da psique coletiva, também existe uma escolha pessoal de seus
conteúdos, afinal é através da persona que o indivíduo se mostrará.

Uma consciência apenas pessoal acentua com certa ansiedade seus direitos
de autor e de propriedade no que concerne aos seus conteúdos, procurando
deste modo criar um todo. Mas todos os conteúdos que não se ajustam a
esse todo são negligenciados, esquecidos, ou então reprimidos e negados.
Isto constitui uma forma de auto-educação que não deixa de ser, porém,
demasiado arbitrária e violenta. Em benefício de uma imagem ideal, à qual
o indivíduo aspira moldar-se, sacrifica-se muito de sua humanidade
(JUNG, 2004a:32).

Quando vivemos um determinado papel, significa dizer que a consciência do ego


está se identificando com a persona, o que não visto como um funcionamento adequado. O
adequado seria o ego se diferenciar dos conteúdos da persona, isso significa dizer que
devemos ter consciência de nós mesmos enquanto seres separados das exigências da
coletividade. Como afirma Whitmont (2006):

Temos que descobrir que usamos nossas vestimentas representacionais


para proteção e aparência, mas que também podemos nos trocar e vestir
algo mais confortável quando é apropriado, e que podemos ficar nus em
outros momentos. Se as nossas vestes grudam em nós ou parecem substituir
a nossa pele é bem provável que nos tornemos doentes (WHITMONT,
2006: 140).

Em suma, a persona é necessária para a estruturação do ego, porém precisamos nos


conscientizar desse processo já que a identificação com a persona significa se afastar do
Self, assim, para um desenvolvimento adequado devemos que aprender a balancear as
necessidades do coletivo e sermos nós mesmos.

22
Individuação 
Individuação é um processo, uma busca, uma meta, por assim dizer. Esse processo
depende do ego que se fortalece ao longo da vida devido a interação com o seu interno e o
meio externo.

A individuação, portanto, só pode significar um processo de


desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades
individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um
homem se torna o ser único que de fato é (JUNG, 2004a:50).

A dificuldade no entendimento da Individuação é aparente já que é comum a


confusão com individualismo, mas o conceito entendido corretamente não se coloca contra
a coletividade, muito pelo contrário, já que o indivíduo na Psicologia Analítica também é
composto de fatores universais e, por isso, também é coletivo.

A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e


mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração
adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator
determinante de um melhor rendimento social (JUNG, 2004a:49).

O objetivo do processo de individuação é chegar ao self (centro da personalidade).


Para tanto, deverá ocorrer uma desidentificação com a rigidez da persona e trabalhar com o
material da sombra, buscando o recolhimento da projeção e compreendendo que esses
conteúdos também fazem parte da personalidade total. Além disso, deve ocorrer a
confrontação com anima/us no qual deve ser compreendido que projeções destes conteúdos
afetam as reais relações e que estas idealizações devem ser integradas.

Enfim, todos os conceitos da teoria junguiana devem ser compreendidos e por fim
integrados na psique, o que não é um trabalho fácil, e sim um trabalho de uma (ou muitas)
vidas.

23
Self 
O Self seria a totalidade da psique no qual os opostos se equilibram, consciente e
inconsciente se somam e, portanto, a personalidade total não tem como centro o ego, mas o
self.

(...) consciente e inconsciente não se acham necessariamente em oposição,


mas se complementam mutuamente, para formar uma totalidade: o si-
mesmo (Selbst). De acordo com essa definição, o si-mesmo é uma instância
que engloba o eu consciente. Abarca não só a psique consciente, como a
inconsciente, sendo portanto, por assim dizer, uma personalidade que
também somos (JUNG, 2004a:53).

É impossível ampliar a consciência a ponto de se aproximar do si-mesmo, pois “(...)


por mais que ampliemos nosso campo de consciência, sempre haverá uma quantidade
indeterminada e indeterminável de material inconsciente, que pertence à totalidade do si-
mesmo” (JUNG, 2004a:53). Por isso, o si-mesmo é considerado uma grandeza maior do
que nós.

Símbolo 
Símbolo não é um conceito fácil de compreender. “O símbolo é uma forma
extremamente complexa. Nela se reúnem opostos numa síntese que vai além das
capacidades de compreensão disponíveis no presente e que ainda não pode ser formulada
dentro de conceitos” (SILVEIRA, 2003: 71).

Em todo símbolo está presente uma imagem arquetípica como fator essencial. O
consciente e inconsciente se aproximam (uma parte é acessível à consciência, mas a outra
parte fica inconsciente).

(...) pode-se dizer que a emergência de um símbolo conta com a anuência


da consciência no sentido de que o ego “deseja e precisa” da mensagem
contida no símbolo, embora isto não seja garantia de que o ego tenha

24
disponibilidade para compreender a mensagem e, por isso, muitas vezes,
precise de ajuda para elaborá-lo (PENNA, 2003: 178).

O símbolo é a ponte entre o conhecido e o desconhecido e pode ser compreendido e


elaborado quando emerge a consciência. O conteúdo inconsciente que não emerge a
consciência, isto é, que não se formula como símbolo, não pode ser conhecido. Assim,
Penna (2003) afirma, que o símbolo traz a consciência os conteúdos do inconsciente
pessoal coletivo e inconsciente coletivo, isto é, complexos e arquétipos respectivamente.

Expressões humanas, como rituais, arte e, no caso desta pesquisa, os mitos são
entendidos como símbolos e conseqüentemente, estudados já que nos fornece pistas de
materiais inconscientes. Isso acontece pelo fato do símbolo ser a expressão de algo
significativo; é uma linguagem universal que se exprime pelas imagens que transcendem a
problemática dos indivíduos.

25
2. HISTÓRIA DA MULHER

A seguir será feita uma contextualização histórica abordando o percurso da mulher


ao longo dos séculos. Esse capítulo se faz importante para conseguirmos perceber como
ela foi sendo vista e assim percebermos os significados históricos e sociais atribuídos à
mulher contemporânea.

Estudar assim, numa perspectiva histórica, as dificuldades e a trajetória


das mulheres na sociedade ocidental, pode ser uma excelente oportunidade
de compreender melhor a difícil situação que elas enfrentaram e, em certa
medida, continuam enfrentando, além de possibilitar um
redimensionamento dos múltiplos significados das lutas que implementaram
na busca da superação das agruras vividas e da conquista da igualdade dos
direitos (BAUER, 2001: 13).

Utilizo como base para fazer essa análise histórica as obras de J M Roberts (2002) e
Carlos Bauer (2001) e complemento com as obras de Esteca (2004), Showater (2004),
Stearns (2007) dentre outros e, na contextualização da mulher contemporânea (século XXI)
também faço uso da mídia impressa (jornais e revistas) por acreditar que é um instrumento
que mostra o que está sendo discutido atualmente sobre o tema.

Pré – História  
Entre os historiadores e arqueólogos, ainda existe dificuldade em dizer de forma
definitiva quando, ao longo da evolução, deixamos de ser macacos para nos tornarmos
humanos. Mas sabemos que os primeiros hominídeos surgiram há 25 milhões de anos e o
descobrimento do fogo ocorreu por volta de 600.000 a.C. O fogo foi primordial para vida
em grupo, como afirma Roberts (2002):

26
(...) O fogo de cozinhar como fonte de luz e calor teria reunido as pessoas à
sua volta, depois do anoitecer, e ajudou a formar um grupo mais consciente
da sua própria comunidade. De algum modo, os indivíduos conversavam: o
desenvolvimento da linguagem (...) deve ter sido acelerado neste cenário
(ROBERTS, 2002: 33).

Devido ao aperfeiçoamento da caça e com o uso do fogo, o Homo erectus passa a


formar bases de moradia que passaram a constituir famílias.

O corpo dos hominídeos se modificava e, na transição do Homo erectus para o


Homo sapiens (que possuía cérebro maior), a pélvis feminina aumentou para que fosse
possível o nascimento dos filhos. Nessa época, os recém nascidos, diferentemente dos
outros mamíferos, passaram a precisar de um tempo de cuidado depois do nascimento para
que conseguissem maturar e sobreviver sozinhos; essa prática passou a demandar tempo
das mães.

(...) Como as crianças – futuro da tribo – exigiam cuidados mais


prolongados, a divisão do trabalho entre os sexos, os homens saindo para
caçar e coletar alimentos enquanto as mulheres ficavam em casa,
provavelmente estava bem estabelecida antes que as comunidades se
tornassem mais assentadas (...) (ROBERTS, 2002: 68).

As mulheres hominídeas, na Era Paleolítica, deixam de estar no cio (que ocorre de


tempos em tempos), começam a atrair o homem de forma contínua e, dessa forma, a
escolha individual dos parceiros passa a ter importância.

Esteca (2004) afirma que apesar da sociedade pré-histórica ser estruturada no


patriarcado, nessa época, ainda não havia nenhum conhecimento da participação do homem
na procriação, o que denotava também uma sociedade matricêntrica, isto é, a mulher era a
única responsabilizada pela linhagem dos filhos.

Stearns (2007), afirma que a transição de caça e coleta para a agricultura, colocou
fim à igualdade de gênero que existia. Isso por que durante a caça e a coleta cada um
contribuía de forma significativa com a produção geral do grupo. A taxa de natalidade era

27
baixa, pois o período de aleitamento materno era longo, o que impulsionava o trabalho das
mulheres que não precisavam passar mais tempo com as crianças.

Quando a agricultura pesada se instaura, o domínio masculino aumenta. Stearns


(2007) explica esse fato pelo aumento da taxa de natalidade, pois a alimentação se torna
mais segura e as crianças podem ser aproveitadas nos trabalhos. Como a maternidade
demanda mais tempo, os homens passam a ser responsáveis pela produção. “Dessa forma,
as vidas das mulheres passaram a ser definidas mais em termos de gravidez e cuidados de
crianças. Era o cenário para um novo e penetrante patriarcalismo.” (STEARNS, 2007: 32).

(...) alguns historiadores argumentaram que uma justificativa-chave para a


existência do patriarcado era garantir, com o máximo de certeza possível,
que os filhos de uma mulher fossem do marido. Dada a importância da
propriedade em sociedades agrícolas (em contraste com as de caça e
coleta), os homens sentiam necessidade de controlar a herança de gerações
futuras, e isso começou regulando a sexualidade das esposas (STEARNS,
2007: 32).

Suméria  
Surge a Suméria, por volta de 3500 a.C, em decorrência da invenção da roda e dos
instrumentos de metais e bronze (Stearns, 2007). A Suméria, para Roberts (2002), é
considerada a primeira civilização formada e se localizava no atual Iraque. Nesse período,
os sumérios formavam uma sociedade mais estruturada, constituída por grupos maiores
para proteção, dominavam a natureza ao redor e já era possível plantar mais que o
necessário para a sobrevivência.

A sociedade suméria era patriarcal: o marido se casava de acordo com um contrato


feito com a família da noiva; ele passava a ser visto como chefe de família e de seus
escravos. A obrigatoriedade da virgindade aparece mais tarde e o adultério feminino era
punido devido à sua relação com a herança; porém, a mulher não era vista como um objeto:
ela tinha o direito a pedir divórcio e não seria mal vista depois da separação.

28
As mulheres sumérias parecem menos tiranizadas do que suas irmãs em
muitas outras sociedades posteriores do Oriente Próximo. As tradições
semitas e não-semitas podem divergir a este respeito. As narrativas
sumérias sobre os deuses sugerem uma sociedade muito consciente do
poder da sexualidade feminina; os sumérios foram o primeiro povo a
escrever a respeito da paixão (ROBERTS, 2002: 88).

Egito  
Para Roberts (2002), as primeiras civilizações depois da Suméria foram encontradas
no Egito em torno de 3.200 até 1.075 a.C.

As mulheres egípcias, de acordo com o autor, podiam alcançar o poder político e,


muitas vezes, o poder chegava pelas mulheres e, por isso, existia uma grande preocupação
com o casamento das princesas: afinal, casar com uma herdeira dava ao marido o direito ao
trono.

O trono é a razão pela qual havia casamentos consangüíneos, isto é, para que o
poder continuasse dentro das famílias e, por isso, casamentos entre irmãos e entre pai e
filha eram permitidos.

Apesar de algumas mulheres aprenderem a ler e a escrever, seu lugar seria dentro do
lar, pois não existia muito espaço para a mulher como profissional, a não ser se tornando
sacerdotisa ou prostituta. As mulheres egípcias tinham direitos sobre seus bens, assim como
as mulheres sumérias.

De acordo com Stearns (2007), as altas classes sociais da civilização egípcia


viveram “a experiência de várias rainhas poderosas” (STEARNS, 2007: 35) citando
Nefertiti e Cleópatra como exemplos e, além disso, a presença feminina também é
fortemente notada na religião, principalmente no culto a Ísis 1 (Roberts, 2002).

1
Ìsis foi venerada até aproximadamente VI d.C. Era considerada a mãe do Universo, mas também era vista
como uma das filhas do deus da terra com a deusa do céu. Várias características suas foram assimiladas na
Virgem Maria. (Husain, 2001).
29
Grécia  
As meninas não tinham acesso à educação e os meninos eram retirados dos cuidados
maternos desde cedo. A educação grega consistia na memorização, música, escrita,
literatura e ginástica.

Aristóteles afirma que a criação da alma é responsabilidade do homem enquanto


que a mulher é apenas o receptáculo. Além disso, nessa época a sexualidade feminina
deveria ser disciplinada e caso a mulher não reproduzisse, o útero geraria diversas doenças,
“que iam da melancolia e da loucura até a ninfomania.” (ESTECA, 2004: 08).

As mulheres não tinham cidadania e ficavam reclusas a maior parte do tempo.


Roberts (2002) afirma que “(...) também se sabe que respeitáveis mulheres casadas
provavelmente usavam véus para sair de casa, de onde não saíam sozinhas, e não deviam
falar com ninguém que encontrassem (...)” (ROBERTS, 2002: 195).

Assim, os homens nunca se encontravam com as esposas dos seus amigos, nem em
ambientes festivos. Caso um encontro entre homens e mulheres acontecesse, significaria
que esta mulher era uma cortesã profissional (chamada de hetaira). Já Muraro (1992),
discorda e afirma que a minoria das hetairas eram prostitutas. Eram, na verdade, mulheres
estudadas e de alta sofisticação que poderiam conversar com os homens no mesmo nível.

A mulher rica não poderia trabalhar, mas a pobre sim; contudo, não eram permitidas
as profissões de enfermeira, atriz e escriba, dentre outras. Em compensação, em casa havia
muito o que fazer pois elas teciam, confeccionavam suas roupas e tinham como tarefa lavar
as roupas da família.

É interessante notar que Roberts (2002) relata em sua obra uma certa dominação
masculina na sociedade egípcia: a “sociedade era patriarcal, as mulheres não podiam
possuir propriedades, administrar negócios, e eram sempre tuteladas pelos maridos ou
parentes masculinos mais próximos.” (ROBERTS, 2002: 196). Porém, apesar da reclusão
feminina, ele afirma que não há indícios de falta de respeito em relação às mulheres gregas,

30
pois iam ao teatro e, portanto, tiveram acesso às grandes tragédias gregas, além de
existirem dados que mostram que elas não eram submissas aos homens.

É importante diferenciar as mulheres espartanas. Muraro (1992) afirma que elas


recebiam educação em atividades guerreiras junto com os meninos e como Esparta era uma
cidade militar, os homens viviam longe e por isso as mulheres tinham mais autonomia. Mas
isso não significava igualdade de direitos.

Sociedades Feudais 
O Feudalismo, de acordo com Bauer (2001), surge entre os séculos IX e XIII
seguindo até o século XX (em algumas cidades européias).

Nessa época, existiam duas formas de deter o poder político-econômico da região: a


primeira forma era ser proprietário dos feudos – possibilidade dada apenas aos nobres do
sexo masculino. A segunda forma era ser parte do clero.

Conseqüentemente, para as mulheres restava o casamento ou a vida religiosa.


Quando essas duas opções não lhes interessavam, as solteiras e até mesmo viúvas
acabavam por optar pela renegação da vida religiosa e sexual para aderir aos movimentos
hereges. Nesses movimentos a mulher tinha um maior espaço e também pregava algo que
lhe interessava: a abolição da sexualidade. Bauer (2001) afirma que na época existia uma
repressão da sexualidade pela igreja e a permissão vinha por meio do casamento, mas essa
permissão não interessava às hereges, elas simplesmente não queriam vivenciar sua
sexualidade. Essas mulheres se tornaram conhecidas como as beguinas (BAUER, 2001:
20). Em 1259, foram obrigadas a se unir aos franciscanos ou dominicanos e, caso
continuassem com os antigos hábitos, seriam excomungadas, pois, de acordo com Esteca
(2004) essas mulheres ameaçavam a autoridade dos padres.

O médico adquire saber inquestionável e se torna um vigilante social e moral. A


maternidade se torna a solução para todos os males femininos e acreditava-se que o homem

31
tinha um papel essencial na criação. A mulher começa a ser descrita como “um ser sem
vontade, fraco e sem inteligência” (ESTECA, 2004: 09).

Depois de 1453, o cristianismo se tornou mais forte do que nunca. Robert (2002)
afirma que a vida dos cidadãos passou ser marcada por rituais da igreja, como nascimento,
batismo, casamento e morte e, por isso, muitas pessoas de ambos os sexos se tornavam
religiosos.

Com a reforma gregoriana, os padres passaram a ser celibatários e as mulheres se


tornaram “símbolos do pecado e da tentação – eram as ‘descendentes de Eva’ ” (ESTECA,
2004: 10).

A figura do Diabo ganha força por volta do século XIII e logo o demônio é
associado às feiticeiras que serão exterminadas em um dos maiores genocídios da história
da humanidade: a Caça às Bruxas, que ocorre entre os séculos XIV ao XVIII (ESTECA,
2004: 13). A bruxa passa a ser vista como adoradora do demônio e, conseqüentemente, leva
a culpa por todos os danos que ocorriam na época.

A difusão desses novos valores morais trouxe uma mudança radical na


concepção da feitiçaria. Na consciência das autoridades floresceu a idéia
de que havia pessoas sujeitas a uma ‘desnaturalização’ voluntária, prontas
a deixar o serviço de Deus para adorar o diabo. A idéia de ligação das
atividades mágicas, característica da feiticeira, com o culto demoníaco e a
depravação sexual alterou sua imagem anterior, transformando-a
progressivamente na bruxa como sinônimo de pessoa malvada. O fenômeno
da bruxaria, ao contrário da feitiçaria, é grupal. Temia-se não apenas a
bruxa, mas a reunião delas: o sabá (BAUER, 2001: 21).

Durante o período da Inquisição as mulheres, além de reprimidas sexualmente,


foram queimadas na fogueira por levarem a fama de hereges, bruxas e loucas. O primeiro
manual de caça às bruxas foi escrito em 1486. A obra afirma a relação das mulheres com o

32
diabo e a existência dos íncubos e súcubos 2 que invadiam o sono das pessoas e as
incitavam sexualmente.

Para Muraro, no total de execuções, 85% foram mulheres, principalmente pobres,


viúvas e solteiras (MURARO, apud ESTECA, 2004: 13).

Após o período de caça às bruxas em vários países, as mulheres foram


impedidas de receber educação e não tinham direito à herança. As viúvas
passaram a ficar sob a guarda de outro homem da família e ficaram
impossibilitadas de gerir suas propriedades. O medo despertado pelo
movimento de caça as bruxas fez com que as mulheres acabassem por
‘aceitar’ e reproduzir os novos estereótipos, que seriam a base para a nossa
sociedade moderna (ESTECA, 2004: 13).

A autora afirma que é nesse período que se fixam os papéis sociais vigentes
atualmente, pois o sistema econômico evoluiu para o mercantilismo e depois para o
capitalismo, mas a cultura patriarcal se manteve.

O casamento religioso foi estabelecido pela Igreja para fins econômicos, isto é, para
evitar que o patrimônio das famílias se dispersasse. Por isso o casamento sacramentado por
Deus deveria ser para sempre, como afirma Bauer (2001), “Quanto ao casamento, escreve o
historiador José Rivair Macedo, a maior vitória da Igreja foi inculcar a idéia de que esse é
indissolúvel” (BAUER, 2001: 22) o que faz com que o poder da igreja aumente e o poder
econômico continue nas famílias nobres. Além disso, as famílias nucleares eram à base da
sociedade e, portanto, era imprescindível que o casamento fosse “para sempre” para que
não houvesse transformações na vida individual, e como conseqüência, abalasse a estrutura
social vigente.

No século XII, o casamento se torna um ritual e entre os séculos XIII e XIV ele
toma a forma que vemos até hoje. Durante o matrimônio, o homem mandava e a mulher se

2
Os íncubos e os súcubos são, de acordo com a mitologia suméria, seres gerados por Lilith que, depois de
abandonar Adão no paraíso, passa a viver nas margens do Rio Vermelho transformando-se na demônia dos
cabelos longos (Sicuteri, 1998). Valores patriarcais da época impediram que Lilith fosse incorporada na
crença cristã. O estudo deste mito é importante para entender a sexualidade feminina, no que diz respeito à
dicotomia da procriação - sexualidade.
33
submetia, ela deveria reverenciá-lo. A mulher, por sua vez, era vista como um fardo a ser
suportado e só poderia ser abandonada caso cometesse adultério. O contato sexual só era
permitido pela Igreja para a procriação e o homem não poderia amar muito a esposa, pois a
estaria tratando como uma prostituta, além de afastar-se do amor a Deus.

Nessa época, debatia-se a importância da participação feminina na fecundação, mas


paradoxalmente, a mulher na sociedade não teria nenhum valor a não ser que fosse mãe,
principalmente se o filho fosse do sexo masculino. Caso a mulher ficasse viúva e não
tivesse filhos, seu lugar depois da morte do marido deveria ser o convento.

Os bailes e festas eram um grande acontecimento para as mulheres de todos os


níveis sociais, já que algumas sabiam tocar instrumentos e adquiriam importância nesses
eventos.

No geral, de acordo com Bauer (2001), existiam nas sociedades feudais, três tipos
de modos de viver para a mulher: a camponesa, a nobre e a que seguia a vida religiosa.

A camponesa 
Existiam dois tipos de camponesas: as camponesas escravas e as camponesas livres.
As escravas se submetiam aos senhores feudais que inclusive escolhiam seu marido, e as
camponesas livres se submetiam ao pai ou cônjuge. Os homens não gostavam que as
camponesas livres tivessem o direito de trabalhar, pois sua mão de obra era barata (isto é,
ganhavam menos) o que prejudicava os homens pela concorrência, mas mesmo assim, elas
constituíam a maior parte da população e, por isso, tinham muitas atividades profissionais,
como: operárias na indústria têxtil, açougueiras, desempenhavam tarefas agrárias,
empregadas dos nobres, pastoras de ovelhas, dentre outras, além das tarefas domésticas.

Essas camponesas eram mulheres pobres que precisavam garantir seu sustento e de
sua família e, nessa época, tinham uma importante participação na vida rural ao lado do
homem; apesar de trabalharem em quase todos os ofícios da época, era difícil que fossem
reconhecidas como mestres de ofício, mesmo que atuassem como tal.

34
Já Duby (1992) nos mostra outro recorte da vida das camponesas medievais:

As mulheres não semeavam, não lavravam a terra, não ceifavam, em


contrapartida cabia a elas montar o trigo na primavera, remexer o feno
para secar, mas, sobretudo, fiar, cuidar da horta, alimentar os pequenos
animais domésticos, trabalhar no interior do lar. Além disso, o valor
principal da mulher submissa, aos olhos do seu senhor, residia na sua
faculdade de procriar. Com os inúmeros costumes, ela transmitia a seus
filhos sua condição: serva, os filhos que ela pusesse no mundo seriam
marcados pela servidão, e serviriam ao mesmo dono que ela, ainda que o
pai fosse livre ou pertencesse a outro senhorio (DUBY, 1992: 178).

De uma maneira geral, o próprio Duby (1992) afirma que é escasso o material sobre
as camponesas, pois o foco era a nobre e seus estilo de vida, como veremos a seguir.

A nobre 
Duby (1992) nos mostra que na época medieval a “superioridade dos nobres
repousa num cabedal de poderio e glória.” (DUBY, 1992: 179). Existia uma transmissão de
valores de pai para filho de armas e coragem; o importante era que esses valores não se
desgastem ao longo das gerações, com isso, a “linhagem já constitui o arcabouço da
aristocracia.” (DUBY, 1992: 179). Dessa forma, para que essa linhagem não se
empobrecesse, os casamentos das filhas eram feitos da seguinte forma: as filhas eram
casadas com um dote de bens móveis e assim deixavam para trás toda a fortuna de sua
família, que voltava para os irmãos. Porém, não era feita partilha igual entre os irmãos, pois
também os empobreceria. Dessa forma, apenas o irmão mais velho se casava e recebia o
direito de gerenciar a fortuna da família.

A mulher que fazia parte da nobreza se casava por interesse econômico das famílias.
Elas eram prometidas desde crianças e seus casamentos geralmente aconteciam antes de
completarem quatorze anos e, por isso, não era incomum ver enormes diferenças de idade
entre os cônjuges.

35
Duby (1992) relata que a endogamia era uma prática comum, já que a união de
primos impede que a fortuna se dissipe, mas essa prática batia de frente com os interesses
da igreja, que proibia o incesto.

Como o casamento era sinônimo de arranjo econômico, era comum que as pessoas
vivessem o chamado ‘amor cortês’, isto é, se apaixonassem platonicamente. Dante
Alighieri é um bom exemplo desta época ao demonstrar esse amor por Beatriz:
Vocês, na rua do Amor indo a passeio,
esperem, sem receio,
e sintam toda a dor do meu lamento.
Ouçam-me apenas, nada mais anseio.
Por isto, dói-me o seio:
Por fazer de um segredo o meu tormento (ALIGUIERI, 2006: 23).

O sofrimento faz parte da vida desses homens, pois passam a idealizar a amada, que
é vista como um ser divino e inatingível, já que elas eram prometidas a outro ou até mesmo
casadas.

Já Muraro cita que valores patriarcais eram veiculados sob forma de romances de
amor, que pareciam querer humanizar uma sociedade baseada em guerras e violência e com
isso exaltar o feminino, mas que, na verdade, mostrava as mulheres como seres estáticos e
passivos. Eram retratadas como “princesas adormecidas ou cinderelas à espera do príncipe
encantado” (MURARO, apud ESTECA, 2004: 13).

De qualquer forma, podemos perceber que a visão da mulher associada ao diabo foi
substituída pela idealização da Dama. Bauer (2001) afirma que o aumento da crença na
Virgem Maria contribuiu favoravelmente para a elevação da mulher na sociedade feudal.
Surge, então, a separação entre a mulher ideal e a mulher comum (Esteca, 2004).

As nobres tinham acesso à educação para que pudessem ter uma boa atuação na
sociedade – como a personagem de Emma Bovary. Essa educação era dada nos conventos e
constituía tanto o ensino religioso, como também ler e escrever, bons costumes, costura e
outras práticas domésticas. Tudo isso, simplesmente para agradar a corte:

36
Fica-nos evidente que todas estas qualidades que as damas adquiriam
através desta educação formal estavam inexoravelmente vinculadas a
servirem de forma mais qualificada e agradável à corte a qual
entusiasmavam com sua argúcia no jogo de xadrez, contando ou lendo
histórias, cantando ou tocando diferentes instrumentos musicais,
respondendo com agilidade e destreza as perguntas mais agudas e
complexas e, principalmente, demonstrando serem esposas dignas e
devotadas (BAUER, 2001: 35).

Elas tinham como obrigação representar seu marido quando este se ausentava, o que
mostra que, apesar de submetida às ordens do marido, a mulher da nobreza atuava em seu
ambiente e era respeitada como tal. Quem se responsabilizava pela educação das crianças
eram as amas de leite. As mulheres da nobreza não tinham qualquer participação nessa
atividade sendo bastante distantes de seus filhos. Depois dos cuidados das amas, eles eram
enviados para os conventos para serem educados.

Duby (1992) resume muito bem a vida da nobre:

O feudalismo, de fato, é um sistema de exploração dos trabalhadores por


um grupo restrito de especialistas da guerra, que nada produzem e são
alimentados por outros. Somente isso limita, nesse grupo social, as funções
econômicas das mulheres. A ociosidade lhes convém. A missão da esposa
do chefe da casa é dirigir as servas, vigiar, chaves à cintura, as reservas
das provisões. Ela também só é ativa no interior da habitação. Seu lugar é
ali. Ela só sai com a cabeça protegida por um véu, tomando o cuidado de
esconder a cabeleira. Se seu papel se estende fora desses limites, é por
acidente, quando deve ocultar a ausência de um marido ou de um filho.
Nesse caso, ela tem de se ocupar de tarefas militares (DUBY, 1992:178).

A religiosa 
Geralmente, o convento era o destino das meninas da nobreza que possuíam muitas
irmãs, pois, além do casamento, a vida religiosa era um meio de ter reconhecimento social.
Era também o lugar das viúvas sem filhos depois da morte do marido e de mulheres que
acreditavam ser sua verdadeira vocação.

37
Tamanha era a riqueza e a importância da vida dos religiosos que estima-se que só
na Inglaterra, existiam cerca de 130 conventos na Europa medieval (Bauer, 2001). Esses
conventos eram ricos e grandes proprietários de terras e por isso eram equiparados com o
poder dos senhores feudais.

As atividades nos conventos eram oração, estudo e trabalho, além dos trabalhos
assistenciais que faziam com os idosos e doentes. A ocupação dependia do tipo de convento
em que se estava. Se o convento fosse rico, havia servos para o trabalho pesado, mas se o
convento não tivesse dinheiro, as internas eram responsáveis pelos afazeres domésticos,
como alimentação, vestimentas e o trabalho agrícola.

É inegável que o convento teve uma importante participação na história da mulher,


pois foi um espaço para a educação feminina, tanto intelectual quanto cultural em uma
época em que ela era relegada ao segundo plano, mesmo que, na prática, tivesse uma
enorme participação na organização da sociedade medieval.

Idade Moderna  
Para Bauer (2001), é na chamada Idade Moderna – datada entre os séculos XVI ao
XVIII – que surge a classe média formada pela burguesia. A expansão do comércio gera
riqueza em forma de dinheiro. Ela deixa de ser estática na forma de propriedades e começa
a ser uma riqueza mais ativa. A Igreja também perde terreno com o protestantismo e com o
pensamento Humanista que coloca o homem como centro de tudo – antropocentrismo.

O descobrimento das Américas também impulsiona a Europa a conhecer o novo, o


que se reflete em mudanças na sociedade da época.

O poder deixa de ser descentralizado nas mãos dos senhores feudais e passa a ser
centralizado nas mãos do rei: surgem as Monarquias Absolutistas, o que fez com que,
lentamente, as mulheres perdessem o poder que tinham na sociedade feudal e, como

38
conseqüência, seu trabalho passa a ficar cada vez mais marginalizado em detrimento do
trabalho masculino.

É importante citar que as mulheres mais pobres nunca deixaram de trabalhar,


mesmo que tivessem que enganar as leis sociais. Bauer (2001) afirma que as mulheres
passaram a desenvolver novos tipos de trabalhos que poderiam ser feitos dentro de casa,
como o encaixe (um tipo de ponto-cruz) e o bordado. O encaixe teve uma enorme
importância na sociedade do século XVII a ponto de ser proibido em 1640 por reclamação
dos burgueses que não encontravam operárias já que todas as mulheres queriam ser
encaixeiras. O que demonstra a importância do artesanato feminino é a invenção da
máquina de bordar no século XVIII.

Além disso, existiam profissões que eram consideradas exclusivamente femininas,


como a de ama de leite e a de parteira, porém, as parteiras passaram a ser perseguidas já
que criavam concorrência para os cirurgiões, que cada vez mais diminuíam o trabalho
destas mulheres.

A violência contra a mulher diminuiu e, conseqüentemente, aumentou o número de


mulheres na sociedade o que fez com que se substituísse o pagamento de noivas por dotes à
família do noivo.

A vida familiar era diferente do que vemos hoje em dia. Dentro da casa, moravam
todos os familiares, como pai, mãe, filhos, cunhados, sobrinhos, etc., não existiam casa com
separações entre os cômodos e, muitas vezes, os animais viviam juntos com as pessoas. Os
homens deveriam trabalhar fora de casa (esfera pública) e as mulheres tinham como
responsabilidade o trabalho doméstico (esfera privada).

Não existia o conceito do amor materno e a mortalidade infantil era muito alta o que
obrigava a mulher a engravidar muitas vezes para que “vingassem” alguns. A criação ficava
a cargo da ama de leite que, de acordo com Bauer (2001):

(...) era muito custosa; por isto em épocas de crise econômica aumentava
consideravelmente o número de crianças abandonadas nas grandes cidades

39
européias. No final do século XVIII, por exemplo, as autoridades de Paris
recolheram, em apenas um ano, aproximadamente sete mil crianças
abandonadas, o que significava 1/3 de todos os nascimentos registrados na
cidade! (BAUER, 2001: 59).

Assim, podemos verificar que a maternidade nessa época ainda não estava
vinculada à maternagem. Mas com o surgimento da burguesia, a família passa por
modificações que persistem até os dias de hoje afetando a vida da mulher contemporânea:
dentro de casa, passam a morar apenas pais e filhos gerando o que conhecemos por família
nuclear; além disso, passam a existir o conceito de amor materno e conseqüentemente, o
conceito de infância:

(...) Ao final do século XVIII, as tarefas femininas e masculinas estavam


bem definidas. A mulher burguesa abandonou o trabalho externo e passou a
se dedicar prioritariamente ao desempenho das tarefas domésticas, da
educação e dos cuidados dos filhos (BAUER, 2001: 60).

Dessa forma, a dicotomia público - privado se configura, o trabalho fora de casa fica
a cargo do homem e o trabalho doméstico deixa de ser considerado “trabalho”, passando a
ter a simbologia de amor e felicidade familiar. Nessa época os homens ganharam o acesso
exclusivo à educação e as mulheres começaram a viver à margem da política e cultura.

Nasce então, de acordo com o autor, a noção de “rainha do lar” que acaba sendo
disseminada por toda a Europa, mesmo que tenha encontrado oposição de algumas
mulheres. Elas passam a fazer parte dos movimentos revolucionários da época contra a falta
de alimentos e o aumento dos impostos, além de se organizarem para que a voz feminina
tivesse mais força.

No século XVIII, o Iluminismo se desenvolve e a mulher intelectual da época se


junta aos homens para rejeitar o que seus antecessores haviam aceito. Eles passam a lutar
pela expansão do conhecimento para a população e se apóiam na alfabetização e em
impressões baratas de livros.

40
Começam, então, a surgir movimentos de luta por igualdade de gênero. A
Revolução Francesa deu um pontapé inicial na busca pelos direitos da mulher; no entanto,
os homens que lutavam pela libertação dos revolucionários acreditavam que o lugar das
francesas era dentro de casa; o movimento na França acabou por naufragar e uma das
líderes morreu na guilhotina.

Séculos XIX e XX 
A Revolução Industrial é caracterizada pelo desenvolvimento de uma nova forma de
produção, na qual as máquinas tomam o lugar das ferramentas e do trabalho braçal. As
pessoas passam a ser responsáveis apenas por uma parte do processo com o propósito de
aumentar a produção e diminuir os preços (Bauer, 2001). Vale destacar que o trabalho
industrial era algo novo e, por isso, não existia nenhuma proteção aos trabalhadores, o que
gerava jornadas de trabalho abusivas e clandestinas, além de baixos salários e péssimas
condições de trabalho.

É importante acentuar que existem diferenças entre os trabalhos oferecidos às


mulheres nos diferentes países europeus, mas esse nível de detalhamento não será abordado
aqui.

Bauer afirma que o trabalho feminino não teve um boom imediato. A entrada da
mulher nas fábricas foi lenta e atingiu a modificação social feminina de que ouvimos falar
na segunda metade do século XIX e mais propriamente na Primeira Guerra Mundial, para
que substituíssem os homens que estavam na guerra. Mas quando a guerra termina, uma
campanha é feita para que elas abandonassem seus postos e voltassem às tarefas naturais.
Muitas mulheres se sentiram aliviadas, outras foram obrigadas a deixar o que estavam
fazendo para realizar as tarefas que os homens não queriam realizar. Porém, alguns
empresários perceberam que a mão de obra feminina era algo a ser valorizado:

(...) As características do trabalho feminino, mais ligeiro e ágil, unido aos


baixos salários que se pagavam às mulheres (comparados com os dos
41
homens) fizeram com que a mão-de-obra feminina fosse insistentemente
procurada pelos empresários dos mais variados ramos industriais
(BAUER, 2001: 88).

As mulheres trabalhadoras, no geral, ocupavam diversos ofícios e tiveram


importante participação no setor de confecção; cito, como exemplo, a moda de Paris, que
aproveitava sua fama, mas a mão de obra era constituída de operárias exploradas. Com a
invenção da máquina de costura em 1830, as mulheres se tornaram capazes de produzir em
série; vale destacar que em muitos casos, era a própria mulher que comprava sua máquina e
trabalhava freneticamente para conseguir pagá-la.

O trabalho nas minerações era considerado difícil para as mulheres e crianças, por
isso foi proibido em 1843, mas continuou sendo utilizado na clandestinidade. O trabalho
rural também foi atingido pela tecnologia; esse fato gerou a diminuição do número de
funcionários e, dessa forma, as mulheres foram perdendo espaço para que os homens
ficassem com os empregos restantes.

O serviço doméstico também ganha força com babás, criadas, cozinheiras, etc., mas
as condições de trabalho eram tão ruins quanto nas fábricas. No final do século XIX, a ama
de leite deixa de ter a importância dos últimos séculos; isso acontece pelo aumento do uso
das mamadeiras e a valorização do leite materno – concretiza-se a exaltação à maternidade
ligada a maternagem.

Com a industrialização, a posse de terra deixa de ter a importância de antes e, dessa


forma, as pessoas passam a se casar por atração individual. Esteca (2004) afirma que novas
características femininas surgem na era industrial, o que gera a construção da feminilidade
ligada à maternidade. Nessa época, é necessário um aumento da mão-de-obra e as famílias
são incentivadas a terem filhos para aumentar a população, conseqüentemente surge a
figura da esposa e mãe dedicada, figura esta que só as mulheres burguesas poderiam
alcançar. Dessa forma, a mulher passa a ser a responsável perante os outros pelo sucesso ou
fracasso familiar.

42
Nessa época, as máquinas passaram a ajudar o dia-a-dia das donas de casa, como a
máquina de costura e a calandra a manivela e, nas casas mais ricas, além das já citadas,
existiam aspirador de pó, elevadores elétricos e máquina de lavar roupa. Mas as invenções
também ajudavam a colocar a mulher no mercado de trabalho, como foi o caso da invenção
da máquina de escrever. Com o tempo, as mulheres assumiram novos postos: datilógrafas,
secretárias, telefonistas, operárias das fábricas, dentre outras e, dessa forma, essas mulheres
passaram a viver uma independência financeira.

Dentro de casa, as mulheres também vivenciavam uma enorme mudança


tecnológica, como afirma Roberts (2002):

A tecnologia também ofereceu às mulheres outras liberdades. Um enorme


número de invenções e inovações isoladas, em todos os aspectos da vida,
(...) como a chegada da água encanada às casas, (...) ou a chegada do gás
para a iluminação e depois para a cozinha (...). Fora de casa, melhores
lojas, com estoques maiores de mercadorias produzidas em massa,
aumentaram a escolha das donas de casa e portanto a facilidade com que
podiam atender às necessidades da família. Comidas importadas (que se
tornaram disponíveis por navio ou ferrovia, enlatadas e processadas)
lentamente tornaram a alimentação familiar diferente e mais fácil do que a
antes baseada em duas visitas diárias ao mercado (...). Sabão e detergente
mais baratos foram produtos da indústria química do século XIX (...)
(ROBERTS, 2002: 670).

As européias que não podiam viver suas potencialidades de forma mais integral
desenvolvem sintomas da doença que acomete o século XIX, a histeria. Showalter (2004)
cita a obra de Dianne Hunter ao afirmar que “(...) a histeria é uma forma de auto-repúdio ao
discurso feminista em que o corpo expressa aquilo que as condições sociais tornam
impossível afirmar em termos lingüísticos.” (SHOWALTER, 2004: 85). Isto é, as pessoas
falavam por meio de inúmeros sintomas corporais o que não poderiam expressar em
palavras devido às pressões dos papéis sociais. Dessa forma, é possível entender o porquê
da enorme maioria das pessoas diagnosticadas histéricas serem mulheres e por isso, a
palavra origina-se do grego hystera que significa útero.

43
Showalter (2004) também ressalta a frieza com que Charcot examinava as histéricas
ao afirmar que os sentimentos das pacientes não eram levados em conta, assim como critica
as palestras públicas que ele apresentava com seus casos clínicos.

De qualquer forma, os estudos de histeria de Charcot e Freud são, até hoje, motivos
de controvérsia resultando em diferentes visões sobre o assunto. A autora prossegue sua
obra afirmando que “as feministas tem visto a histeria como o resultado de conflitos do
século XIX em torno de papéis sexuais e sexualidade feminina” (SHOWALTER, 2004:
81). Assim, aponta um importante momento histórico que impulsionou a teorização da
psicologia do inconsciente feita por Sigmund Freud.

Surgem as sufragistas, que lutam pelo direito ao voto (Esteca, 2004). Elas
acreditavam que esse seria o primeiro passo para outras conquistas, como por melhores
condições de trabalho, mas não foi o que aconteceu. As sufragistas eram mais agressivas, o
que não agradou aos homens e nem às mulheres que não participavam do movimento. Nos
Estados Unidos, elas se uniram às operárias nas greves e na Inglaterra, entravam em
confronto com a polícia e foram as primeiras inglesas a irem para a cadeia por lutarem por
causas femininas.

Segue abaixo a tabela com o ano em que a mulher conquistou o direito de votar em
diversos países:

Tabela 1: BAUER, Carlos, 2001. p102.

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É importante salientar que o Dia Internacional da Mulher é comemorado anualmente
devido às lutas femininas que aconteceram neste período industrial, entretanto há muitas
controvérsias sobre o ocorrido; seguem abaixo duas versões encontradas:

2 Esteca (2004) cita que “No dia 08 de março de 1908, cento e cinqüenta mulheres
foram queimadas, trancadas dentro de uma fábrica por reivindicarem melhores
salários e menor jornada de trabalho” (ESTECA, 2004: 20).

2 Porém, no Guia Larousse da Mulher: “No dia 08 de março de 1857, 129 tecelãs e
costureiras morreram carbonizadas no incêndio de uma fábrica de roupas em Nova
York, motivado por instalações precárias, portas emperradas e grande quantidade de
material inflamável acumulado – condições de perigo inúmeras vezes denunciadas
mas jamais atendidas” (LAROUSSE DA MULHER, 2006: 292).

De qualquer forma, a precariedade das condições de trabalho é evidente e Esteca (2004)


prossegue ao afirmar que, em 1911, quase oito milhões de mulheres trabalham, mas
ganhando cerca de um terço do salário dos homens pelo mesmo serviço.

A busca por igualdade na educação também ganha força, já que “Entre 1800 e 1914, a
difusão da idéia de que as mulheres deviam ser adequadamente educadas, da mesma
maneira que os homens, transformara a vida das meninas de muitas famílias” (ROBERTS,
2002: 667).

Porém, Bauer (2001) demonstra que a necessidade da educação feminina surge de uma
forma paradoxal: ao mesmo tempo em que existia uma enorme oposição para que a mulher
tivesse acesso à educação, também surgiu a necessidade de educá-las já que ela passou a ser
responsável pela educação dos filhos. Conseqüentemente, surgem as lutas por uma
educação de qualidade.

O sistema patriarcal considera tradicionalmente a instrução feminina como


qualquer coisa de ocasional e a ser concedida em doses míninas; assim,
mesmo quando o acesso às escolas superiores foi liberalizado, o programa
45
de estudos continuava a ser inspirado em princípios discriminatórios,
tendentes a perpetuar a escravidão da mulher e a reforçar o domínio
ideológico sobre as consciências femininas (BAUER, 2001: 78).

Tanto as professoras quanto as alunas tiveram as roupas regulamentadas, como por


exemplo, o comprimento da saia e a proibição de maquiagem. Essas regras mostram como
elas deveriam ser vigiadas, mas também como a sociedade via a primeira profissão
totalmente liberada para as mulheres. E, ao alcançar o direito de freqüentar o ensino
superior, as mulheres passam para a próxima fase da luta, isto é, passam a buscar o direito
de trabalhar na área estudada.

É importante salientar que no meio de tantas reivindicações as mulheres ainda


tinham a obrigação de cuidar do lar e, por isso, muitas delas não participavam dessas lutas.

De acordo com Roberts (2002), o ano de 1914 foi muito importante para consolidar
os direitos femininos. Em primeiro lugar, na Europa, em função do avanço da medicina,
diminuiu a probabilidade da mulher morrer no parto e conseqüentemente, começou a
preocupação com o crescimento da população gerando métodos anticoncepcionais e, em
segundo lugar, as americanas já podiam freqüentar as universidades (apesar de serem para a
minoria) fazendo com que já existissem médicas formadas, advogadas, etc.

Nos Estados Unidos, ocorre a chamada Depressão de 1929 com a quebra da bolsa
de Nova York; o desemprego toma conta do país e abafa a luta pela emancipação feminina.
A crise econômica gera um aumento no número de prostitutas e bordéis autônomos:

Num cenário de crise sem precedentes, muitas famílias, bastante


numerosas, montam um bordel autônomo: “o pai organizava a casa e a
mãe fazia de patroa, os filhos de cadet e as filhas forneciam o primeiro
núcleo de raparigas” (...) O cadet, o sedutor por profissão, movia-se no
núcleo das caixas e vendedoras de lojas e das empregadas de escritórios:
convidava-as para jantar, seduzia-as e depois tentava convencê-las a se
prostituírem (BAUER, 2001: 93).

46
Depois, com a invenção dos automóveis, as prostitutas passam a não ter local fixo
de trabalho, o que futuramente irá gerar as chamadas call girls.

Na Segunda Guerra Mundial (1939), as mulheres assumem os postos dos homens


que estão lutando; assim passam a atuar no domínio público e a desenvolver qualificações
que desconheciam. Porém, terminada a guerra os homens voltam e elas devem ceder-lhes o
lugar.

De qualquer modo, durante a guerra as mulheres voltam ao trabalho em massa, mas


nos Estados Unidos pós-guerra, ocorreram algumas transformações: o trabalho feminino
começa a ser visto como dignificante e podem entrar no mercado de trabalho as mulheres
mais velhas e as casadas. É importante ressaltar que só valia para as mulheres de classe
média que podiam ser qualificadas e, portanto, eram mais bem remuneradas. Já na Europa,
as mulheres no geral estavam mais interessadas em voltar a cuidar de casa e da família e o
trabalho era encarado como um auxílio para as necessidades pontuais da família.

De uma maneira geral, as mulheres são ativas em suas funções, mas essas
colocações consideradas “femininas” eram desqualificadas em comparação com as dos
homens. Esteca (2004) afirma que até a segunda metade do século XX, a dicotomia homem
provedor e a mulher cuidadora se fez presente, mantendo-se como a base da família
nuclear: mesmo que as mulheres trabalhassem, a dupla jornada passava despercebida.

É importante ressaltar que, de acordo com Muraro (1992), depois da Segunda


Guerra os Estados Unidos se transformam em uma potência mundial, a produção passa a ter
excedentes que não podem ser escoados, a não ser que o consumo aumente. As
propagandas começam a estimular o consumo e, portanto, a sociedade se transforma em
uma sociedade de consumo.

Nos anos 50, ainda existia o controle da sexualidade feminina, já que as moças que
não eram mais virgens deveriam esconder sua condição para manter o respeito social.

47
O início da comercialização da pílula anticoncepcional significou uma cisão entre
sexualidade e a procriação. A liberdade sexual feminina ocorria, mas na prática, essa
liberdade foi conquistada aos poucos.

De acordo com Esteca (2004) a Guerra do Vietnã e os questionamentos da chamada


“contracultura” propiciaram mudanças de comportamento,

(...) muitos jovens americanos desertam e formam uma sociedade


alternativa: os hippies, que ao final dos anos sessenta e por toda a década
de setenta rejeitam a competição e o dinheiro, recusa-se ao trabalho para a
produção de excedentes econômicos. Nessa época surgem os movimentos
ecológicos e antinucleares, oitenta por cento deles compostos por militantes
mulheres (ESTECA, 2004: 31).

Já no Brasil, em 1830, Nísia Floresta Brasileira Augusta, uma diretora de escolas


para moças no Rio de Janeiro, usa o pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto para publicar
suas denúncias sobre a dependência aos homens por parte das mulheres que, para ela, eram
alimentadas pelas barreiras encontradas para alfabetizar as meninas e também a diferente
educação que se dava às garotas.

Em 1836, começa a “literatura do amor romântico” (ESTECA, 2004: 16) que gerava
o ideal de relacionamento em suas leitoras, mas como a realidade é diferente dos livros as
mulheres se frustravam por terem que viver o tédio conjugal e os casamentos por interesse.

A educação feminina era baseada na crença de que seu papel era de educadora do
lar e em 1827 é publicada a primeira lei de instrução pública do Brasil:

As mulheres carecem tanto mais de instrução, porquanto são elas que dão a
primeira educação aos seus filhos. São elas que fazem os homens bons e
maus; são as origens das grandes desordens, como dos grandes bens; os
homens moldam sua conduta aos sentimentos delas (LOURO, 2001: 447).

Berta Lutz, filha de Adolfo Lutz, é um importante nome na luta por condições
igualitárias para as mulheres. Estudou na Europa e teve contato com as sufragistas e em
1919, cria no Brasil, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher; além disso, foi
48
deputada federal em 1936 e buscou igualdade salarial, licença-maternidade de dois meses e
redução da jornada de trabalho, que na época era de 13 horas (Bauer, 2001).

O voto feminino foi conquistado apenas em 1932, porém, “era preciso que o marido
consentisse que a mulher votasse. As mulheres solteiras e viúvas só poderiam votar se
comprovassem renda própria” (LAROUSSE DA MULHER, 2006: 292). O voto para todas
as mulheres só foi garantido a todas as mulheres com a consolidação da lei na Constituição
de 1934.

Também em 1934, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio libera um


boletim afirmando que o lugar da mulher é o lar: “A mulher ativa não se satisfaz com a
profissão. Ela sente a necessidade do lar. A fim de evitar o conflito entre a mulher que
trabalha e a sociedade, deve-se reconduzi-la a família, que abandonou por condições
econômicas” (PENA, apud ESTECA, 2004: 22).

As historiadoras Maluf e Romero (2002) ressaltam o peso que a visão médica passa
a ter no que seriam os corretos dotes femininos ao afirmar que a “representação da mulher
como mãe começou a ser elaborada como um paradigma político cultural no Brasil a partir
das primeiras décadas do século XIX, justamente na primeira fase do desenvolvimento da
medicina” (MALUF e ROMERO, 2002: 225).

As mulheres passam a ser vistas como não-detentoras de conhecimento em como


lidar com sua família e por isso, deve seguir as normas médicas. Com isso, além de ser
responsável pelo funcionamento de seus lares, também passa a ser a total responsável pela
saúde dos filhos: “Se no primeiro período a mulher passou a ser valorizada como mãe,
agora pesa sobre ela a responsabilidade de dar à luz filhos fisicamente saudáveis e
moralmente adequados, isto é, indivíduos racialmente melhores” (MALUF e ROMERO,
2002: 225). O papel da mulher seria o de no espaço privado, preparar seus filhos para o
espaço público – os “soldadinhos do progresso de amanhã” (MALUF e ROMERO, 2002:
228).

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De acordo com Bassanezi (1997), na família-modelo dos chamados Anos Dourados,
o homem era responsável pelo sustento da casa e detinha autoridade sobre sua família e a
mulher era a responsável pelos trabalhos domésticos e cuidados com a família, além de
possuir certas características como “instinto materno, pureza, resignação e doçura”
(BASSANEZI, 1997: 608). Isso significa dizer que a dedicação ao lar que as mulheres
deveriam possuir era entendida como uma característica inata da essência feminina:

A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam


marcas de feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação do mercado
de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. A
mulher que não seguisse seus caminhos, estaria indo contra a natureza, não
poderia ser realmente feliz ou fazer com que outras pessoas fossem felizes
(BASSANEZI, 1997: 609).

As revistas femininas foram de grande importância para ditar comportamentos e


modos de pensar da época. Elas diziam que existiam as “moças de família” ou as “moças
levianas” (BASSANEZI, 1997: 610). As moças de família seriam as mulheres que “se dão
ao respeito”, isto é, as garotas que não davam intimidade ao sexo oposto antes do
casamento e que eram educadas para serem verdadeiras donas de casa. Já as levianas são as
garotas que expressavam sua sexualidade, que usavam roupas consideradas ousadas ou
quebravam outros padrões da época, em suma, não eram “moças para casar”.

O código da moralidade era de domínio geral e praticamente todos se


sentiam aptos a julgar os comportamentos de uma jovem: os pais, os
vizinhos, os amigos e amigas, os educadores, os jornalistas... A moralidade
defendia a boa família, ou melhor, o modelo dominante de família
(BASSANEZI, 1997: 613).

A virgindade feminina era vista como “um selo de garantia de honra e pureza
feminina” (BASSANEZI, 1997: 614). O Código Civil atestava a possibilidade de anular o
casamento se o marido se sentisse enganado.

O casamento era o foco das meninas que viam o namoro e noivado como etapas
para chegar ao matrimônio, dessa forma, elas não poderiam perder tempo em
50
relacionamentos que não a levariam ao objetivo de suas vidas. Nessa época, o casamento
arranjado já não era comum, mas a influência familiar tinha um enorme peso na escolha do
pretendente.

Caso a moça não se casasse, significaria fracasso social. Bassanezi (1997) afirma
que esse era o maior medo das meninas já que elas não poderiam ter aventuras amorosas
ocasionais e teriam que garantir seu próprio sustento:

Uma mulher com mais de 20 anos de idade sem a perspectiva de um


casamento corria o risco de ser vista como encalhada, candidata a ficar pra
titia. Aos 25 anos, considerada uma solteirona, já era fonte de
constrangimentos. Um homem de 30 anos, solteiro, com estabilidade
financeira, ainda era visto como bom partido para mulheres bem mais
jovens (BASSANEZI, 1997: 619).

Na classe média-alta, a esposa dos anos 50 era a total responsável pela harmonia do
casal, ela não deveria aborrecê-lo com as “atitudes típicas das mulheres” (BASSANEZI,
1997: 630). Além disso, a esposa ideal era considerada um complemento do marido e um
bom desempenho sexual não fazia parte as expectativas.

Nos anos 50, as mulheres começam a entrar no mercado de trabalho, porém essas
mulheres eram vistas com muito preconceito já que, ao trabalhar, elas deixariam suas
tarefas domésticas em segundo plano afetando a estabilidade do casamento além de perder
sua feminilidade e seus privilégios, como “respeito, proteção e sustento garantido pelos
homens” (BASSANEZI, 1997: 624).

Maluf e Romero (2002) relatam que com a expansão da produção cafeeira no


Centro-Oeste e o aumento industrial abre espaço para que as mulheres adentrem o mercado
de trabalho da época.

Muitas greves aconteceram entre 1890 e 1930: as brasileiras enfrentavam grandes


dificuldades dentro das fábricas, desde baixos salários e longas horas de trabalho, além de
assédio sexual. E mesmo com as greves reivindicando seus direitos, ainda eram vistas como
“mocinhas delicadas e frágeis” (ESTECA, 2004: 20). Do mesmo modo que na Europa, as
51
brasileiras eram desqualificadas tanto nas habilidades físicas quanto nas habilidades
intelectuais, além disso, as mulheres trabalharam nas primeiras fábricas, mas com a
melhoria da tecnologia, elas são substituídas pelo trabalho dos homens.

Em 1922 é fundada a Federação pelo Progresso Feminino que lutou pelo voto
feminino, mas também buscava a igualdade de direitos e exaltaram o papel da maternidade.

Enfatizando as virtudes da mãe e da dona de casa, pretendiam levar para a


vida pública aquilo que faziam e que havia sido valorizado no âmbito da
esfera privada. “Porque sois Mãe...”, esse era o bordão que as motivava a
atuar na construção de uma nova sociedade e no “renascimento do povo”
(MALUF e ROMERO, 2002: 236).

Atualmente, a maioria do eleitorado brasileiro é feminino, com uma fatia de 55% do


total de votantes no país, entretanto 7% do Congresso Nacional é ocupado por mulheres. Se
analisarmos esse número veremos que, em 2002, houve um aumento de 25,5% de mulheres
eleitas se comparado com 1998 (LAROUSSE DA MULHER, 2006:294). Assim,
percebemos que as mulheres que seguem a vida política vêm aumentando a cada eleição.

Pedro (2002) relata que nos anos 60 e 70, houve uma grande discussão internacional
sobre uma ameaça de superpopulação mundial, e que a comercialização da pílula
anticoncepcional foi uma manobra política internacional para que os países pobres
(incluindo o Brasil) sofressem uma contenção populacional. E é por isso que, em 1962, a
primeira pílula anticoncepcional passa a ser comercializada no Brasil com o nome de
Enovid (PEDRO, 2002: 247), largamente consumida pela classe média:

Em 1970, por exemplo, foram vendidas no Brasil 6,8 milhões de cartelas de


pílulas anticoncepcionais e, em 1980, esse número subiu para 40,9 milhões.
Boa parte do consumo foi feito pelas mulheres das camadas médias, já que
as das camadas populares, a partir de 1965, poderiam obter diferentes
produtos contraceptivos de forma gratuita, por meio de organismos como a
Bemfam – Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil (PEDRO, 2002:
248).

52
Dessa forma, a autora afirma que o uso de métodos contraceptivos não foi uma
conquista pelas reivindicações de grupos coletivos e as brasileiras daquela época não viram
esse momento como significativo para sua autonomia.

Já Esteca (2004) faz uma contraposição ao colocar a contracepção como um


momento significativo, pois foi uma legitimação da sexualidade feminina, já que “(...) o
sexo passa a ter outras funções e significados” (ESTECA, 2004: 31). Ocorre uma cisão
entre procriação e sexualidade e o sexo pré-nupcial passa gradualmente a ser aceito desde
que o método contraceptivo esteja sendo utilizado.

Em 1975, a ditadura militar impedia manifestações e reuniões mas a ONU promove


o Ano Internacional da Mulher; o movimento precisou da ajuda da Igreja Católica para
conseguir existir e por isso teve que ser cauteloso em suas ações.

De acordo com Ventura (2006), em 1980, as feministas brasileiras criam o conceito


de “direitos reprodutivos” para

(...) reivindicar garantias de igualdade, liberdade, justiça social e


dignidade no exercício da sexualidade e da função reprodutiva. (...) estando
diretamente relacionada aos direitos ao aborto seguro e legal, à igualdade
entre os gêneros no que diz respeito às responsabilidades contraceptivas e
reprodutivas, ao acesso à informação e aos meios para o controle da
própria fecundidade, e à liberdade sexual e reprodutiva sem discriminação,
coerção ou violência (VENTURA, 2006: 213).

Em 1977, o divórcio foi regulamentado em lei. Assim, o divórcio mudou a realidade


dos casais já que o casamento, que era “até que a morte nos separe”, se tornou “que seja
bom enquanto dure”. Segue abaixo uma tabela com os divórcios de 1980 e 2000.

53
Tabela 2: Folha de São Paulo-Caderno Mais, 2007.

Com a lei do divórcio, “(...) ampliaram-se as liberdades individuais na sociedade


contemporânea e disseminaram-se as relações amorosas mais sólidas e sinceras,
evidenciando uma conquista do que, na década de 1970, parecia ser a desordem social”
(TAMARI, 2007: 05). Nessa época, a Igreja Católica se opôs e famílias conservadoras
também não olharam com bons olhos essas transformações, que desestabilizaram o status
quo.

Século XXI – A mulher contemporânea 
Apesar de não abarcarmos toda a experiência feminina, escolho recortes acerca dos
aspectos da vida da mulher contemporânea. É importante ressaltar que serão dadas
pinceladas sobre as tantas possibilidades do feminino, pois não é possível no presente
trabalho fazer uma pesquisa minuciosa sobre todos esses aspectos.
54
Depois de enfrentar lutas feministas, a sociedade atual se encontra no que Salla
(2005) classifica de fase pós-feminista. Essa “nova mulher”, para se encaixar na sociedade,
deve continuar exercendo as funções tradicionais de cuidar do lar e da família, isto é,
funções que a colocam na esfera privada, mas também se preocupa com a carreira
profissional localizada na esfera pública.

Dessa forma, a mulher conseguiu em parte o que almejou, pois passou a vivenciar o
que se convencionou chamar de dupla jornada de trabalho, e essa dupla jornada certamente
tem conseqüências nos relacionamentos e na saúde das mulheres.

Questões paradoxais ainda estão presentes no estudo do gênero e, mesmo que


existam mudanças, é confuso até mesmo para as mulheres nascidas nas últimas gerações.
De acordo com Sayão (2007):

A situação da mulher está cheia de contradições. Por um lado, não há


dúvida de que sua vida melhorou visivelmente em alguns aspectos. Ela pode
se dedicar ao trabalho e ao seu desenvolvimento profissional, tem acesso ao
estudo, pode escolher se quer se casar e constituir família ou não, consegue
alcançar independência financeira, tem condições de viver sozinha, pode
participar ativamente da vida política do país e as tarefas domésticas não
são consideradas sua responsabilidade exclusiva.
Por outro lado, algumas circunstâncias denunciam que ela ainda não tem
total autonomia para administrar sua vida e tomar os cuidados necessários
para garantir sua integridade física, emocional e psíquica, principalmente
quando consideramos a vida privada. O aumento da incidência da infecção
pelo vírus HIV nas mulheres, índice que quase se equiparou ao dos homens,
e o crescimento da violência, principalmente da doméstica, são apenas dois
sinais que indicam que a vida privada das mulheres não anda um mar de
rosas (SAYÃO, 2007: 12).

A mulher, de acordo com Sayão (2007), tem uma grande dificuldade em estruturar
sua vida privada: isso acontece devido à educação patriarcal que recebe e ao fato de ser
ainda a mulher a responsável pela educação das crianças brasileiras, seja pela proximidade
da figura materna ou da professora escolar, o que confirma a propagação dos preconceitos
de gênero pelas próprias mulheres.

55
A maternidade também é um fator importante no desenvolvimento feminino. De
acordo com a pesquisa de Saffioti (2004) que buscou traçar o perfil da mulher brasileira,
constatou-se o seguinte resultado: “Apenas 55% das entrevistadas valorizavam a
maternidade. Entretanto, 48% destas valorizavam a maternidade mesma, isto é, o fato
biológico, pois só 20% mencionaram o prazer enorme propiciado pela maternagem”
(SAFFIOTI, 2004: 47). Assim, somente 20% das mulheres acham a maternagem prazerosa.

Ventura (2006) cita uma pesquisa que relata que no SUS foram registradas 293
laqueaduras em 1998 contra 15.370 laqueaduras em 2001. Em contrapartida, a autora
também ressalta um importante dado:

É fundamental considerar que, ao mesmo tempo que cresce a demanda pela


contracepção, aumenta a procura por assistência à concepção para casos
de infertilidade, por acesso à reprodução assistida e por orientação às
soropositivas para o HIV que desejam ser mãe e às mulheres soronegativas
unidas com parceiros soropositivos (VENTURA, 2006: 222).

A evolução histórica também revela mudanças nos relacionamentos amorosos, tanto


no que diz respeito às narrativas sociais quanto à vivência do sentimento amoroso. As
mulheres que, ao transformarem sua história, acabaram por transformar a chamada ‘vida a
dois’. Santos (1995) afirma que o

(...) grau de transformação do papel desempenhado pelas mulheres foi


muito maior e mais visível, contudo, os homens foram compelidos a rever
certos conceitos e se modificar no relacionamento para se adequarem ao
novo padrão feminino (SANTOS, 1995: 05).

Em relação aos aspectos da saúde, os múltiplos papéis que a mulher assume hoje em
dia não têm reflexo nos serviços de saúde, pois a maioria dos serviços para as mulheres
ocorrem nos períodos gestacionais, o que não a contempla como um todo, apenas o lado
mãe-cuidadora. Em adição, o médico encarna um papel de saber acima de tudo e as
mulheres acreditam que ele saberá o que é melhor para elas sem maiores questionamentos.

56
Mesmo assim, Costa e Silvestre (2004) afirmam que as mulheres são as principais
usuárias dos serviços de saúde, no qual 40,5% das mulheres buscam atendimentos de rotina
e prevenção, contra 32,2% dos homens que só buscam atendimento em casos de doença.

Essa busca por serviços de saúde carrega aspectos positivos, como uma maior
percepção de si, que ocasiona um maior auto-cuidado, mas também tem aspectos negativos
como, por exemplo, o uso indiscriminado de ansiolíticos, o que pode acarretar dependência,
além de não permitir que a própria mulher seja agente transformadora de sua vida através
de reflexões sobre sua realidade.

Para momentos de forte tensão, o medicamento assume, na vida dessas


mulheres, uma importância singular, na medida em que é o responsável por
controlar a agonia vivenciada. Elas imaginam que, tomando o
medicamento, conseguirão dar conta dos acontecimentos violentos
presentes no seu dia-a-dia, ou ainda manterão um comportamento normal.
O medicamento tem, portanto, o objetivo de agir sobre as suas angústias,
seus fantasmas, para que possam se manter ‘equilibradas’, mesmo em se
tratando de uma mordaça química, que as impossibilita de descobrir outras
formas de lidar com essas perturbações ‘nervosas’ e seus determinantes
individuais e coletivos (CARVALHO E DIMENSTEIN, 2004: 125).

Outro fator relacionado à saúde, é a própria sexualidade feminina já que engloba


diferentes expressões como as sensações, o corpo e a mente. Como afirma o Guia Larousse
da Mulher (2004) “Ao se falar em sexualidade, faz-se referência também ao erotismo,
como cada pessoa vive seu corpo e experimenta o prazer. Conhecer a linguagem do corpo
erótico é essencial para a mulher conhecer melhor a si mesma” (LAROUSSE DA
MULHER, 2004: 57).

Pinho e Westin (2008) publicaram na Folha de São Paulo uma matéria que afirmam
que as mulheres estão iniciando sua vida sexual cada dia mais cedo: 32,6% das
entrevistadas afirmaram ter tido a primeira relação sexual aos 15 anos, em 1996, o índice
foi de 11,5%. Há falha no uso de métodos contraceptivos já que os bebês nascidos entre
2001 e 2006, 18% não foram desejados e 28% estavam nos planos futuros. O grau de
estudo das mulheres influencia os dados já que as mulheres “(...) com até três anos de

57
estudo têm o primeiro filho, em média, aos 19 anos. Para as que estudaram 12 anos ou
mais, a média sobe para 26 anos” (PINHO e WESTIN, 2008: C1). A matéria continua
afirmando que as meninas não pedem o uso de preservativos já que têm medo de
desagradar o parceiro.

Nos dias de hoje, é impossível falar sobre sexualidade e saúde sem citar as doenças
sexualmente transmissíveis. Atualmente as DSTs (principalmente o vírus da AIDS) têm
entrado nas grandes discussões sobre saúde pública e o número de mulheres contaminadas
vem aumentado consideravelmente. Isso acontece porque existe um grande gap entre saber
como se preservar e adotar métodos preventivos de fato. Além disso, as pessoas adotam o
preservativo como um contraceptivo e não necessariamente para a proteção de DSTs.

O preservativo é bem aceito em relacionamentos casuais e extraconjugais, mas não


em relações estáveis; assim, quanto maior o vínculo afetivo entre os parceiros, menor é o
uso de preservativo.

Algumas pessoas perceberam o preservativo como um elemento importante


para os relacionamentos extraconjugais, ou seja, quando não se conhece a
pessoa com quem se relaciona, uma categorização que elabora a idéia de
um “outro”, que se faz mais perigoso que as pessoas conhecidas. Este
“outro” acaba muitas vezes tomando um caráter de uma prevenção
simbólica, pois enquanto se preocupam com as “outras pessoas” fazem um
isolamento “imaginário” do risco de contrair HIV (OLTRAMARI &
OTTO, 2006: 58).

Para as pesquisadoras, isso acontece porque é muito difícil para as pessoas se


perceberem vulneráveis às DSTs dentro de um relacionamento estável. A infidelidade ainda
é um tabu, porém, o número de infectados vêm aumentando consideravelmente,
principalmente entre as mulheres: “(...) a diferença entre homens e mulheres infectados foi
decrescendo até alcançar a marca, em 2004, de dois homens para cada mulher infectada
(OLTRAMARI & OTTO, 2006: 55).

Dimenstein (2007) publica uma crônica em que relata que as adolescentes estão
utilizando como método contraceptivo a pílula do dia seguinte, mais uma evidência de que
58
o preservativo não está sendo utilizado pelas jovens brasileiras. O autor afirma que o lado
positivo do uso dessa pílula seria uma possível diminuição do número de gravidez
indesejada e do aborto, mas o lado negativo evidencia as doenças sexualmente
transmissíveis.

Assim, podemos supor que a não preservação das mulheres pode suscitar diversas
hipóteses: desde a crença de fidelidade do parceiro estável, a preocupação com a gestação e
não com DSTs/AIDS e até uma questão de baixa auto-estima, em que a mulher não se
coloca na relação como sujeito, mas como objeto se sujeitando ao desejo do outro sem levar
em conta seus desejos e necessidades.

A preocupação com a auto-estima feminina também é um fator que deve ser


colocado por ter adquirido uma grande dimensão, principalmente se discutirmos a
importância da estética para a mulher contemporânea.

Sayão (2007) afirma que a mulher tenta se encaixar nos valores idealizados desta
sociedade patriarcal em que vivemos e, o que impera atualmente, é a importância com a
aparência e, ilustra com as propagandas de cerveja.

Cirurgias plásticas estão cada vez sendo mais procuradas, o que confirma a
necessidade da brasileira em se corrigir, a fim de atingir a imagem considerada como ideal
de mulher.

Historicamente, as culturas tendem a estigmatizar traços ou


comportamentos que sejam considerados negativos ou desviantes. Sob esta
perspectiva, a percepção do tamanho corporal vem sendo associada a
fortes valores culturais. Os corpos grandes e arredondados em dados
períodos foram considerados sinais de opulência e poder, tendo, assim, uma
valorização positiva, em contraste com a desvalorização e cobrança que
marcaram as últimas décadas, tendentes a valorizar corpos esbeltos e
esguios (ALMEIDA, SANTOS, PASIAN & LOUREIRO, 2005:28).

Além desses aspectos, as mulheres cada vez mais buscam seu espaço no mercado de
trabalho. Esse fato é importante por ser o que mais assinala a entrada da mulher na vida
59
pública, afinal, é uma realidade que as mulheres adentraram no mercado de trabalho e não
há como voltar no tempo.

Rolli (2008) publica na Folha de São Paulo uma pesquisa realizada pelo Ibmec para
avaliar as desigualdades entre os sexos no que diz respeito ao trabalho dentro e fora de
casa. Foram utilizados homens e mulheres que trabalham 40 horas semanais ou mais. A
pesquisa conclui que as mulheres trabalham nas tarefas domésticas em média três vezes
mais do que o homem; assim, quando comparadas a quantidade de horas trabalhadas nos
afazeres domésticos, descobriu-se que eles trabalham por volta de cinco horas e as
mulheres por volta de dezoito horas por semana. Foi encontrado outro dado interessante:
quando maior a participação das mulheres na renda familiar, menor será a quantidade de
horas gasta nos serviços domésticos.

Lage (2005) complementa ao analisar a Síntese dos Indicadores Sociais e conclui


que as mulheres têm mais anos de estudo em comparação com os homens, porém ganham
menos. De acordo com a autora, os homens têm menos tempo de estudo devido à
necessidade de trabalhar mais cedo, em contrapartida, ao começar a trabalhar, as mulheres
buscaram uma educação qualificada.

As mulheres atualmente têm sido bastante valorizadas nas empresas. De acordo com
um artigo do jornal do Administrador Profissional (2007), as mulheres agregam diferentes
características aos negócios e as empresas estão cada vez mais atentas para motivá-las a
conquistarem postos de maior liderança, pois as corporações acreditam que as mulheres são
tão preparadas quanto os homens. Porém, ainda existem obstáculos sócio-culturais e
biológicos como, por exemplo, a maternidade e sua dupla jornada de trabalho. O artigo cita
uma pesquisa realizada no Brasil com 322 executivas:

(...) a maioria com mais de 36 anos, casadas e com filhos, revelou que
72,3% estavam insatisfeitas com o tempo que dedicavam à família. Elas se
cobram, por exemplo, por não ter tempo para levar os filhos ao médico e de
não poder freqüentar as reuniões dos pais nas escolas
(ADMINISTRADOR PROFISSIONAL, 2007: 14).

60
O artigo, que fala sobre as mulheres do mundo corporativo, relata que, quando a
mulher decide engravidar, ela desacelera a carreira e as empresas têm um grande desafio
nas mãos para segurá-la no quadro de funcionários: O chamado kids day, em que mães e
pais podem levar seus filhos nas empresas, avanços tecnológicos que permitem formas
mais flexíveis de trabalho e leis trabalhistas são algumas das medidas tomadas – o que
denota a valorização do modo feminino de trabalho.

Em contrapartida, Saffioti (2004) mostra o outro lado em que

A maioria das mulheres (57%), presumindo-se que quase a totalidade, vive


sob o jugo do cônjuge, embora tais criaturas possam nem tomar
consciência desse fato, exatamente por se tratar de um fenômeno muito
familiar. Quanto mais familiar, mais desconhecido é o fato, deixando
sequer de ser percebido (SAFFIOTI, 2004: 44).

Apesar da autora claramente se posicionar contra essa situação (já que as chama de
criaturas), aqui ela aponta uma questão importante, o fato de que é familiar, isto é, comum
nas famílias brasileiras, a mulher ser sustentada pelo marido o que implica em sua
subordinação que pode chegar, muitas vezes, à vitimização.

Dessa forma, nos resta tentar compreender o que faz com que algumas mulheres
busquem sucesso profissional e o que faz com que outras mulheres não invistam na carreira
– seja aquela que não atue profissionalmente ou aquela que, apesar de trabalhar, não encara
a profissão como prioridade. Parece-nos que, apesar das desigualdades de gênero estarem
sendo revistas, tanto no âmbito público quanto no privado, elas ainda persistem nas
relações pessoais e nos valores assumidos e transmitidos pelas instituições (legais, famílias,
escolas, etc).

Zakabi (2006) publica uma matéria em que afirma que uma das conseqüências desta
entrada da mulher no mercado de trabalho é o aumento significativo de mulheres que
viajam sozinhas, fato este que no passado era impensável. “A Federação Brasileira de
Albergues da Juventude estima que 55% dos viajantes solitários que se hospedam em seus
albergues são mulheres. No fim da década de 80, esse porcentual não passava de 20%”
61
(ZAKABI, 2006: 60). Hoje em dia, as mulheres se casam mais tarde e têm dinheiro para
viajar, mas ainda têm que lidar com assédio dos homens que ainda as enxergam como um
alvo fácil para assédios, portanto, de abuso.

Em suma, a mulher nos séculos passados apenas se preocupava com o casamento e


a procriação, mas hoje se depara com inúmeras possibilidades de ser. Essas escolhas
englobam seu trabalho, seus relacionamentos, seu papel familiar e aspectos de sua saúde,
dentre outros. Resta questionar se essas escolhas estão sendo feitas de forma consciente
para que as mulheres se tornem ativas em seu processo de individuação.

Para finalizar esse levantamento histórico, acho interessante citar a ampliação de


interesses da mulher, pois as revistas femininas que, antigamente escreviam sobre
casamento e regras de como as moças deveriam se portar, hoje publicam reportagens sobre
múltiplos assuntos em que as mulheres podem estar interessadas, portanto, a mídia é uma
importante fonte de informação sobre o contexto das relações dos indivíduos. A revista
Veja, por exemplo, publica todo ano uma edição especial chamado VEJA MULHER que
aborta temas como: tendências da moda, sexo, carreira, saúde, dieta, consumo, poder, meio
ambiente, fitness, viagem, arte, arquitetura, beleza/spa, ciência, filhos, ecologia, dentre
outros assuntos dependendo da edição.

A revista elege uma mulher símbolo para colocar na capa e, no ano de 2007, a
escolhida foi Angelina Jolie: “A independência, o poder e a autenticidade de Angelina
justificam nossa escolha. Sobretudo ela se justifica pelo fato de nossa heroína ter olhos
voltados para o mundo real, que ela tenta melhorar com compaixão e bravura. Nada mais
feminino” (VEJA ESPECIAL MULHER, 2007: 18).

Já em 2008, Carla Bruni foi escolhida em que na capa tem a seguinte descrição: “A
primeira-dama da França, símbolo da mulher com poder – no caso dela, nuclear” (VEJA
ESPECIAL MULHER, 2008: capa).

Nos dois casos citados acima, as mulheres são exaltadas por diferentes motivos:
enquanto Angelina Jolie é citada por ser “heroína” pelo seu trabalho com os refugiados,

62
Carla Bruni é citada por ter se casado com o presidente da França, Nicolas Sarkozy. O que
demonstra que o feminino nos dias atuais pode ser vivenciado de diversas maneiras e a
liberdade de escolha está estampada até nas bancas de revistas.

Em suma, esse capítulo evidencia a busca de aquisição e manutenção dos direitos


das mulheres, como a participação política, no mundo do trabalho e na apropriação do
exercício da livre sexualidade na dissociação com a maternidade. São aspectos relevantes
ao desenvolvimento da autonomia e da busca pelo respeito às próprias escolhas e
conseqüências.

A história da mulher revela como foi enfatizado o seu papel associado ao aspecto
relacional, baseado no cuidado, na proteção e acolhimento ao outro, tantas vezes justificado
pela naturalização dessas qualidades como fazendo parte da essência feminina, diferenciada
e oposta à masculina. Dessa forma, mulheres e homens foram mutilados, desenvolvendo-se
como sexos opostos: a ela, a frágil, era atribuída a delicadeza e a capacidade de cuidar
(negação dos aspectos do animus). A ele, o forte, era atribuído a objetividade, a
racionalidade e a independência (negação dos aspectos da anima). A ambos faltava uma
vivência mais harmônica e integral de múltiplas possibilidades humanas.

63
3. O DESENVOLVIMENTO DA
CONSCIÊNCIA

Para contextualizar nosso estudo, acredito ser importante conhecermos o


desenvolvimento da consciência, que nos dá subsídios para compreendermos o feminino
contemporâneo. Para tanto, utilizo as idéias de Edward Whitmont (1991) por acreditar que
o autor as descreve de maneira clara e com o conteúdo pertinente ao trabalho. Para o autor,
o desenvolvimento da consciência possui três fases:

2 Fase Mágica: ginecolátrica e matriarcal


2 Fase Mitológica: fase de transição
2 Fase Mental: androlátrica e patriarcal

Para Whitmont (1991), o desenvolvimento psicológico da consciência do indivíduo


repete, não de forma exata, a história evolutiva da humanidade:

O mais importante, porém, é que por baixo de nossa mente racional


moderna estão adormecidos os meios primitivos: a percepção e a formação
de conceitos de nível matriarcal, mágico e mitológico; os afetos límbicos e
reptilianos; a agressão, a defesa e as adaptações para a sobrevivência. (...)
esses estratos anteriores parecem inconscientes. Mas na realidade
demonstram uma espécie de consciência e mesmo intencionalidade
próprias. Mostram-se sempre capazes de se opor à postura racional
(WHITMONT, 1991: 58).

Todo período de transição desencadeia conflitos e agressões, pois o status quo é


abalado. Novas formas de estar no mundo são experimentadas e o paradoxo ocorre pelo
fato de que essas novas formas pedem um resgate de conteúdos reprimidos. E por isso, o
entendimento destas fases é de vital importância.

64
Fase Mágica  
A primeira fase chama-se Fase Mágica. Esta tem um funcionamento ginecolátrico e
matriarcal e, portanto, os aspectos femininos são destacados. Caracteriza-se por uma
identidade pré-verbal, simbiótica e unitária.

O período ginecolátrico provavelmente se estende desde o remotíssimo


passado da Idade da Pedra até a Idade do Bronze. (...) É governado pelo
poder da Grande Deusa. Ela é ao mesmo tempo mãe e filha, donzela,
virgem, meretriz e bruxa. É a senhora das estrelas e dos céus, a beleza da
natureza, o útero gerador, o poder nutriente da terra, da fertilidade, a
provedora de todas as necessidades, e também o poder da morte e o horror
de decadência e da aniquilação. Dela tudo procede e tudo retorna
(WHITMONT, 1991: 60).

O feminino não tem interesse no pensar e nem no poder, simplesmente existe no aqui
agora e no fluxo infinito. Valoriza a continuidade e a conservação das ordens naturais, é
global e funcional. A Grande Deusa é adorada e acreditava-se que ela se manifestava em
todas as coisas como nos corpos humanos, nos animais, na natureza, na terra e no céu. É o
auge do animismo e da religião panteísta – centrada na natureza.

A consciência mágica expressava, no plano histórico, a dinâmica das


energias instintivas e afetivas no contexto de um campo de realidade
unitária.
No nível mágico ou instintivo só existe o aqui e agora. Ele tudo contém. O
passado e futuro não estão diferenciados. Não há dentro-fora; corpo, mente
ou psique; o eu e o outro (WHITMONT, 1991: 62).

Nesse momento são importantes os elos familiares, a pureza do sangue, as tradições e


os rituais. Essas questões também são importantes para nós da vida moderna já que ele
continua agindo em nossa psique inconsciente e não é seguro ignorá-lo.

Os eventos não são causados nem planejados racionalmente, eles acontecem como
uma força além da vontade do homem. Só é possível então, aceitar e adaptar-se ao próprio
destino.

65
Em relação ao desenvolvimento individual, o estágio mágico corresponde à criança
de até três ou quatro anos, que vive em um estágio simbiótico com a mãe e família que a
cerca. Nesse momento, a perda da identificação grupal equivale a perda da identidade e até
da própria vida.

Apesar de não conseguirmos identificar facilmente a dinâmica mágica no nosso


cotidiano, ela não desapareceu, ela apenas está inconsciente e continua nos influenciando.
Ela não deve ser reprimida, mas integrada.

Fase Mitológica 
A Fase Mitológica da consciência é uma ponte que liga o nível mágico ao mental;
portanto, é uma transição do mundo ginecolátrico para o androlátrico. Whitmont (1991) faz
referência os deuses gregos Dionísio e Apolo como uma dualidade que, ao final da Fase
Mitológica, se estabelece como opostos e se excluem de forma recíproca – começa então a
era androlátrica.

Dionísio e tudo que ele representa é reprimido e Apolo governa sob formas
patriarcais de organização social. Para Whitmont (1991) “Esse passo da história da
consciência provavelmente ocorreu pela primeira vez no período Neolítico. Atingiu certa
expansão na Idade do Bronze e terminou na Idade do Ferro, heróica e crivada de lutas”
(WHITMONT 1991:68). As fases correspondentes do Neolítico, da Idade do Bronze e da
Idade do Ferro no desenvolvimento infantil ocorrem respectivamente dos 3 aos 7 anos, dos
7 aos 12 anos e na puberdade.

Na Fase Mitológica tudo é visto como uma manifestação do sagrado. O espaço e o


tempo são limitados ao aqui e agora e o tempo é ontem e hoje sem a noção de uma
construção para o futuro. Além disso, apenas o que pode ser olhado diretamente tem
realidade.

66
O senso inicial do eu, e conseqüentemente do tu, favorece a formações de grupos
sociais que impõem ordem e ethos que são expressos em rituais e celebrações comuns a
todos os pertencentes ao grupo. A moralidade é coletiva sendo que o que é considerado
bom é aprovado pelo coletivo e mal é o que causa prejuízo e pede uma retaliação de uma
força superior. A vergonha é uma reação mitológica ao medo do isolamento e implica a
perda da dignidade e menosprezo por parte dos iguais.

No início da fase mitológica, ainda existem imagens e ritos à Grande Deusa: “(...)
nada passa a existir sem que algo equivalente tenha deixado de existir” (WHITMONT,
1991:74), revelando os rituais de morte e renovação; mas no final desta fase, o patriarcado
domina e um novo senso de ética emerge, transformando em tabu a lei proclamada pelo
Deus monoteísta.

Os rituais e sacrifício originalmente possuíam o objetivo evitar o mal (que era


vivido de uma forma concreta como a perda da colheita, doença ou derrota em batalhas),
esse conhecimento era transmitido por mitos, cerimônias de sacrifícios, etc.; no decorrer da
evolução patriarcal, o sacrifício passa a servir para se purificar do mal visto como abstrato.

Na visão mágico-mitológica, para que a vida se renovasse ela deveria ser destruída,
dessa forma, vida e morte são vistos de maneira interdependente. Antes, o sacrificado
aceitava seu chamado, ele era um voluntário em prol da renovação, mas isso deixa de
acontecer e, por isso, o sacrificado passa a ser usado à força nos rituais em que o sangue
sacrificial se faz necessário.

O sacrifício não foi abandonado pela vida moderna. Whitmont nos mostra que, por
exemplo, “sacrificamos combustível para obter calor, ou dinheiro para obter um objeto
desejado, também sacrificamos, no plano psicológico uma atividade para obter energia para
outra” (WHITMONT, 1991: 74) Escolher significa crescimento e diferenciação da
consciência. A escolha é feita (de forma consciente ou não) na busca de um objeto desejado
e exercer uma escolha conscientemente envolve conflito e dor, mas também é uma
oportunidade de sermos ativos em relação à liberdade que dispomos.

67
A ênfase não recai mais sobre a renovação, a recuperação da luz depois de
atravessar a escuridão, mas sobre a preservação da vida e da luz pela
eliminação da escuridão, do que é ofensivo aos deuses e guardiães da
moralidade. E nome da clareza, da pureza, da ordem e da harmonia, Apolo
tem que prevalecer sobre Dionísio (WHITMONT, 1991: 76).

Na medida em que o estágio androlátrico vai emergindo, existe uma quebra entre
vida-morte, eu-mundo e a noção de continuidade é perdida. A conscientização passa a
ocorrer por intermédio de cisões, a realidade unitária se fragmenta em opostos que se
excluem: bom/mau; homem/mulher; bem/mal; certo/errado; razão/sentimento.

A exclusão dos opostos e cisões inerentes ao patriarcado passam a ser o regimento da


consciência social e, para nós, essa passou a ser a única alternativa possível. Esquecemos-
nos que tanto o bem quanto o mal fazem parte da realidade cíclica e quanto mais
inconsciente um lado estiver, mais perigoso ela ficará. Na visão patriarcal, aspectos
dionisíacos e da Grande Deusa são jogados à escuridão e no “mundo androlátrico onde
reina a ordem e a ilusão, as mulheres precisam ser boas, delicadas, provedoras e receptivas”
(WHITMONT, 1991: 79). O relacionamento entre os sexos possuía a força dionisíaca de
Eros que representava o desejo de união, o amor romântico ainda não era conhecido.

No final da fase mitológica, a fase androlátrica ganha espaço e, com isso, ocorre um
importante desenvolvimento psicológico em direção à individualidade e autocontrole, no
qual percebe-se um crescimento de uma sensação de responsabilidade pessoal sobre os
próprios atos, o que consolida ego. As emoções e desejos são reprimidos o que significa
reprimir o feminino em prol do autocontrole masculino.

Fase Mental 
Na terceira fase do desenvolvimento da consciência – chamada Fase Mental – as
manifestações espontâneas são criticadas e reprimidas (a violência e a sexualidade não são
aceitos) e a mente racional é o árbitro supremo.

68
A fase mental é caracterizada como uma fase patriarcal, androlátrica, no qual
controla-se o ego que é dominado pela persona e o controle da natureza, tanto interna
quanto externa, se faz presente. Para Whitmont (1991) existem três elementos básicos do
patriarcado:

1. a rejeição das divindades femininas e, conseqüentemente, dos valores femininos


2. a rejeição dos impulsos naturais
3. a rejeição das emoções e desejos espontâneos

Para um ego consciente, é necessário o controle, a repressão dos impulsos e a repressão


das necessidades subjetivas que o autor chama de autonegação. O impulso pelo poder é a
base do desenvolvimento do ego patriarcal, porém esse impulso também é o origem da
alienação.

Dessa forma, o autor nos traz a idéia de que na fase mental, o feminino é reprimido em
todas as esferas e que a racionalização de faz presente.

A transição do estágio mitológico para o mental, na evolução da


consciência, implica uma transição do animismo e da alma para a
tridimensionalidade do mundo espacial externo, das coisas percebidas
através dos cinco sentidos. O termo “realidade” deriva do latim res, coisa,
e significa “coisidade”. Aquilo que é perceptível num espaço tridimensional
tem existência. O que for imaterial e não puder ser espacialmente percebido
ou demonstrado não tem realidade. Não pode existir (WHITMONT,
1991:88).

Assim, a noção de realidade se limita ao que é visível, o que não é observável torna-
se inimaginável e, conseqüentemente, as percepções da psique diminuem e a noção de alma
perde seu sentido. O pensamento só tem efeito caso seja seguido de uma ação física direta,
isso ocorre pelo fato do pensamento passar a ser visto apenas como uma produção mental.
O ego toma consciência de si mesmo como corpo espacial e sua capacidade é medida pelo
uso da vontade individual:

A orientação egóica, a orientação da consciência em termos de coisas e


espaço, volta-se para a competitividade agressiva, para uso do poder
69
manipulador e das regras voluntariosas. A força do ego é medida pela
capacidade de fazer prevalecer a própria vontade contra a da natureza,
forçando-a a servir aos propósitos egóicos de permanência, do conforto e
da evitação da dor, e pela capacidade de controlar os próprios impulsos,
necessidades e desejos. A existência é limitada ao mundo do espaço. Nessa
medida, é irrevogavelmente encerrada com a morte e a decadência do
corpo visível no espaço (WHITMONT, 1991: 89).

Deus passa a ser abstrato, torna-se pensamento e idéia e o divino passa a ser usado
como um modo de diminuir ansiedades ou exercer controle político. As crenças são
deturpadas de acordo com os nossos interesses.

O trabalho ganha destaque já que será pelo trabalho que se conceberá a ordem. A
identidade do “fazer” assume a identidade do “ser”.

Nesta fase, a avaliação dos fatos e dos detalhes ganha o terreno antes ocupado pela
ordenação emocional da experiência. “Pensar, agora, está separado de sentir; a percepção
sensorial, da intuição e da imaginação” (WHITMONT, 1991: 91). Essas capacidades são
desvalorizadas a ponto de serem reprimidas e o ego parece ser a única fonte de vontade,
porém, as antigas dinâmicas não deixaram de funcionar, estão reprimidas longe desta nova
modalidade de consciência:

Independentemente de nossa consciência racional, o organismo psíquico


cindido e reprimido continua funcionando sob a forma daquilo que agora
chamamos de dimensões mágicas e mitológicas do inconsciente. Nossas
fantasias inconscientes, imaginações, emoções, impulsos, percepções
instintivas, capacidades paranormais e “participação mística” fazem parte
desse organismo. Desconhecidas para nós, essas camadas inconscientes
modificam e complementam – e distorcem – nosso pensar (WHITMONT,
1991: 92).

Para o autor, as fantasias míticas do nosso tempo, assinalam qual será o nosso
próximo desenvolvimento da consciência. E assim, os padrões e crenças hoje sedimentadas
refletem o resultado da mitologização passada. E por isso conclui-se que a moralidade e a
sabedoria atual sofrerão alterações no futuro.

70
Para Whitmont (1991) o novo nível de consciência está se voltando para o íntimo e,
cada vez mais, se distanciado da consciência vigente da fase mental. “Precisamos dar o
próximo passo na metamorfose da consciência, queiramos ou não” (WHITMONT, 1991:
93). O autor prossegue ao afirmar que não sabemos qual será o próximo passo da
humanidade e prever seria um erro projetivo de elementos passados e presentes.

Novos Modelos de Orientação 
Whitmont (1991) segue refletindo sobre Novos Modelos de Orientação em que na
cultura patriarcal, imprevisibilidade, desejo, instintos e emoções eram considerados
naturezas selvagens que deveriam ser combatidas. Ao feminino cabia uma passividade
obediente, domesticidade e a maternidade. As mulheres foram ensinadas a desconfiar de
suas emoções. Aspectos da Grande Deusa eram reprimidos e os aspectos da Virgem Maria
eram considerados aceitáveis.

Homens e mulheres não só foram privados de uma parte de sua natureza


íntima, como comportamentos “femininos” como sensorialidade,
ludicidade, e a manifestação de sentimentos, passaram a ser julgados atos
repreensíveis. A conexão instintiva com a natureza externa também se
perdeu. O aspecto destrutivo da existência é, ao mesmo tempo, sua
dimensão transformadora e renovadora da vida. Expulsar, mudar,
regenerar e renascer são todas fases de um mesmo processo de vida. A
experiência de entrega extática, orgiástica e sexual fica muito próxima da
experiência da morte. A negação e o medo da sexualidade acabaram
levando à negação e ao medo, à perda da percepção unitária que engloba
morte e renascimento. O homem se viu preso na armadilha da
materialidade física que ele próprio havia privado de divindade. Ficou
reduzido à cobiça material, ao hedonismo, ao consumismo em conseqüência
de ter negado a dimensão criativa – aliás, divina – do prazer, da alegria, do
brincar, que são manifestações do espírito (WHITMONT, 1991: 204).

Nesse momento, as mulheres se encontravam em desvantagem: as energias eram


então transformadas em ódio de si mesmas, ressentimento contra o mundo dos homens ou

71
em uma imitação competitiva dos valores masculinos. Atualmente, em ambos os sexos,
uma profunda dimensão clama por uma expressão ativa da feminilidade.

Essa nova forma de atividade feminina precisa formar-se, crescer e


amadurecer num plano interno antes de vir a se manifestar como atividade
externa. É provável que venha a ser uma expressão afirmativa do
crescimento e da transformação, das realidades psíquicas internas e dos
sentimentos (WHITMONT, 1991: 205).

O nascimento do novo requer a destruição do velho. Whitmont (1991) afirma que


essa força ainda não integrada na psique coletiva gera uma violência derivada de
insatisfações e frustrações generalizadas que são despejadas em bodes expiatórios. O que
nos mostra que o Feminino quer e precisa emergir na consciência, mas a consciência ainda
não integrou esta força.

Quando a integração acontecer, a vida não será mais vista com discriminações:
belo/feio, dentro/fora, bom/mau não serão separados, mas serão vistos como equilíbrios em
movimentos de criação e destruição. “É o desafio de ter coragem de olhar e ouvir a própria
profundidade, mesmo que aquilo que se venha a descobrir não esteja de acordo com o que
se acostumou a considerar certo” (WHITMONT, 1991: 207). É a experiência de perceber
aspectos que consideramos repreensíveis faz parte do outro, mas também de nós mesmos, e
que não pode ser expulso sem causar destruição a nós mesmos.

A meta do novo ego será viver plena e conscientemente as experiências de


medo, destrutividade e destruição, tanto quanto as experiências de amor,
alegria, prazer e sucesso. Não devemos lutar contra tais dinamismos nem
expressá-los compulsivamente, mas vivenciá-los meditativamente, nos
planos psíquico e somático, ao mesmo tempo que lhes conferimos tanto
espaço e tanta consideração quanto o permitirem nossas necessidades e
nossos deveres (WHITMONT, 1991: 207).

O novo ego é afirmativo, no sentido de aceitar o que antes fora rejeitado. Os aspectos
da sombra devem ser reconhecidos como elementos de transformação. A ação ainda deverá
ser controlada de forma responsável, mas o desejo e as ânsias serão afirmados. Discriminar

72
o que sentimos como bom/mau, belo/feio, agradável/desagradável é um passo indispensável
para a tomada de consciência. Isso ocorre devido ao recolhimento da projeção do bode
expiatório que deve ser redimido em nós, o que significa que nos responsabilizamos por
encontrar um lugar para esses aspectos, o que gera uma harmonização da totalidade de
nossa personalidade. Já passou a época da unilateralidade psicológica em que apenas as
virtudes eram identificadas com o ideal coletivo. Como afirma o autor, “A individualidade
única de cada um é seu destino” (WHITMONT, 1991: 209).

Assim, uma nova atitude é alcançada, na qual a busca incessante pela perfeição não
faz mais sentido e o indivíduo entra em contato com a vida e com os seus semelhantes.

A integração do que antes se mantinha reprimido tem probabilidade de


alterar radicalmente os modos pelos quais a masculinidade e a feminilidade
se expressam. Acionará e gerará também novos e diferentes padrões éticos,
além de uma atitude existencial: o amor fati, ou “amor pelo próprio
destino”, o dizer sim à própria vida e à própria individualidade,
reconhecendo que elas são uma configuração dada e não uma mixórdia
acidental que poderia ou deveria ser diferente do que é (WHITMONT,
1991: 209).

Cabe à nova feminilidade se descobrir e não mais se limitar aos padrões vigentes.
Não podemos dar o que não temos e, por isso, é necessário a auto-afirmação para que seja
possível perceber a singularidade do outro, pois o tratamos como tratamos a nós mesmos.
Esta auto-afirmação pressupõe buscar uma manifestação essencialmente feminina e só
assim as mulheres terão algo com que contribuir; caso contrário, será apenas imitação e
competição com os valores masculinos.

A nova feminilidade deve estabelecer o valor da interiorização e da


afirmação (mas também o esclarecimento e a diferenciação conscientes) de
tudo o que é. O novo feminino está aberto a (e é capaz de integrar) as
dores, as feridas e a feiúra, assim como a alegria e a beleza. O sensorial
deve ser tão valorizado quanto o espiritual; o intangível tanto o concreto.
Por fim, as conquistas patriarcais do passado não devem ser abandonadas,
mas integradas a esta nova perspectiva (WHITMONT, 1991: 217).

73
Assim sendo, o novo Feminino requer coragem de submergir ao seu interior, o que
significaria “perder-se a fim de encontrar-se mais tarde” (WHITMONT, 1991: 211). Os
novos valores do ego precisam modificar os valores masculinos vividos pelos dois sexos, o
que acarretaria na tolerância dos opostos simultâneos, surgindo, assim, um novo sistema de
valores que iniciará uma nova ordem de característica integrativa, móvel e equilibrada.

74
4. O FEMININO E A
POSSIBILIDADE DE ESCOLHA

Para fazer uma pesquisa sobre escolhas, é necessário pensar sobre a liberdade, pois
acredito que o ato de escolher e o conceito de liberdade estão intimamente relacionados,
pois não há escolha sem a liberdade para fazê-la.

Whitmont (1991) afirma que “(...) a liberdade é desvencilhar-se de todas as


restrições que inibem a expressão do ser autêntico” (WHITMONT, 1991: 170), mas a
noção de libertação já pressupõe que algo está aprisionado. O autor afirma que esse
aprisionamento não seria apenas uma sensação externa, mas interna, já que personalidade
consciente não é psicologicamente livre, pois somos inconscientes de nossa verdadeira
individualidade.

Padrões culturais moldam a consciência individual, mas também demonstram a


evolução da consciência coletiva: na época vitoriana, por exemplo, tanto lágrimas quanto
expressões explícitas de sentimentos não eram compatíveis com o conceito de masculino e
as mulheres, por sua vez, não tinham a liberdade de iniciativa, independência e nem de
executarem atividades intelectuais ou desejos eróticos.

Como vimos no capítulo anterior, apesar de ainda existir comportamentos


vitorianos, mudanças estão ocorrendo e transformando aos poucos a rigidez patriarcal.
Valores, crenças e hábitos considerados patriarcais estão se dissolvendo e por isso se fala
em uma crise da sociedade moderna, porém, também é um momento de buscar novas
maneiras de vivenciar essa transformação. No entanto, essas transformações não são tão
fáceis de se alcançar, pois em momentos de crise não existem referências sólidas para se
apoiar.

75
Jacoby (2007) nos ajuda a refletir sobre essa questão ao dissertar sobre a
emancipação, que seria um valor considerado importante na sociedade moderna.

Uma emancipação não é possível sem a dissolução dos valores existentes.


Um sistema patriarcal de ordem leva seus membros a uma adoção sem
questionamento nem hesitação dos seus valores hierárquicos. O verbo
latino emancipare, contudo, significava em sua origem “libertar um filho
crescido ou um escravo dos cuidados patriarcais, concedendo-os a sua
independência”. Em um sentido ampliado, a emancipação também veio a
significar a libertação dos grilhões internos que foram impostos por
atitudes, preconceitos e tradições amplamente aceitos (JACOBY, 2007:
123).

Dessa forma, entendo que a queda dos valores de ordem impostos sem
questionamentos permite a emancipação, pois ela teria como base a tomada de consciência
e, conseqüentemente, o ato de escolher pode ser feito de forma mais libertária. Podemos
pensar esse conteúdo através do arquétipo do animus já que ele representa o logos e a força
para a ação. Caso ego feminino não esteja em contato com o animus,

Quando menos os impulsos do ego são individualizados na experiência real,


mais compulsivos e poderosos eles se tornam no animus; quanto mais a
mulher sente que tem que ser habitual e estereotipadamente passiva e
submissa, mais provável é que seu animus seja compulsivamente hostil
(WHITMONT, 2006:188).

Se houver equilíbrio no funcionamento interno, o externo também estará


equilibrado, o que significa dizer que o ego feminino deve sempre estar em contato com o
animus para manter a capacidade e o potencial do ego.

Aqui não haverá espaço para as possessões já que quando é “(...) conscientemente
confrontado, o animus se torna um guia para o autoconhecimento, para uma capacidade de
pensamento claro, factual, com relações causais e uma habilidade para chegar a escolhas
conscientes e refletidas” (WHITMONT, 2006:189).

76
Jacoby (2007) alerta que a libertação destes valores também tem o outro lado –
como toda polaridade junguiana –, que gera insegurança e desorientação e as pessoas
acabam por se apoiar em verdades científicas (como a médica, psicológicas ou
pedagógicas) para guiar o seu cotidiano. Por isso, me atrevo a dizer que a emancipação ou
escolha consciente pode não estar sendo feita.

Whitmont (2006) afirma que a mulher tem como problema de individuação, a


integração do animus e a integração deste arquétipo precisará de “confronto consciente e
aceitação ativa” (WHITMONT, 2006:189). O autor prossegue afirmando que a mulher
deve aceitar as tensões como um aviso e fazer a pergunta: POR QUÊ? E não apenas se
identificar com as reações emocionais. “O animus então começará a relacionar uma mulher
com o potencial de compreensão dela, com sua capacidade de tomar uma posição e de auto-
afirmar-se – mas como mulher, isso significa de modo feminino, não como homem”
(WHITMONT, 2006:189).

Whitmont (2006) afirma que quando a mulher entra em contado com seu animus,
ela aprende a dizer não de forma consciente e racional. Para o autor, quanto mais ela se
relacionar com seu masculino interno, mais aberta ela estará para um homem verdadeiro.

Para Jacoby (2007), o animus de algumas mulheres já começou a criticar de forma


criativa as condições já estabelecidas e assim, houve uma ruptura na identificação com os
valores patriarcais, pois um “sistema patriarcal de ordem que confina a mulher nos papéis
de babá, cozinheira e dona de casa viola terrivelmente os princípios da consciência coletiva
atual, que é muito menos rígida na sua visão do lugar da mulher no esquema geral das
coisas” (JACOBY, 2007: 124).

Entretanto, para Johnson (1987), as “mulheres foram educadas para considerar que
apenas as atividades masculinas, raciocínio, poder e sucesso, têm valor real.” (JOHNSON,
1987: 10). Salla (2005) concorda e ressalta que algumas filhas, criadas nas famílias
contemporâneas, acabam por desvalorizar o feminino tanto quanto a sociedade. São as
chamadas “filhas dóceis do patriarcado” (SALLA, 2005: 17), que continuarão a gerar uma
sociedade insensível à condição humana, acarretando a sensação de despersonificação e
77
frustração. Isso acontece pela tentativa de ambos os sexos em suprimir a anima na
sociedade atual em detrimento ao princípio do animus.

Esses estudos apontam para uma gama de possibilidades de Feminino existente


atualmente o que comprova que o papel da mulher ainda não está determinado com clareza;
entretanto, acredito que possibilidade de escolha predispõe enfrentar um aspecto
importante: o corte de idealizações infantis. “Sair do Paraíso” 3 é perceber que perda e
frustração fazem parte do crescimento e é imprescindível para que a mulher saiba fazer suas
escolhas de forma consciente.

Jacoby (2007) alerta que “Se for bem compreendida, no entanto, a idéia de
emancipação da mulher como uma luta por auto-realização é vital do ponto de vista
psicológico” (JACOBY, 2007: 129). Não poderia mais haver a repressão da auto-
realização, pois o logos animus da mulher ergue resistências contra o total papel da
maternidade e é por isso, que o autor afirma que o conflito entre a maternidade e busca por
auto-realização é um dos mais fortes atualmente.

3
Utilizo aqui a metáfora utilizada por Jacoby (2007) em que a saída de Adão e Eva do Paraíso seria uma
metáfora para o desenvolvimento humano.
78
5. A IMPORTÂNCIA DOS MITOS

Os mitos podem ser considerados como sonhos coletivos, podem parecer tão irreais
quanto os sonhos, mas, se corretamente trabalhados, podem nos dar subsídios para entender
o desenvolvimento psíquico, pois ajudam o indivíduo a se tornar consciente do seu lugar do
universo.

Nossas opiniões, pensamentos e convicções são produtos de uma camada


psíquica na qual se produzem os mitos. (...) Esse estrato criador de mitos
funciona como nossos sonhos. (...) quando conseguimos entrar em sintonia
com sua linguagem imaginária e simbólica, esse estrato pode nos
proporcionar insights de rara profundidade a respeito de fatos e dinâmicas
que transcendem nossa percepção consciente e nossos recursos de
informação (WHITMONT, 1991: 47).

Assim, o estudo dos mitos se faz uma excelente fonte de estudo, pois carregam
características arquetípicas. “O material do mito é o material da nossa vida, do nosso corpo,
do nosso ambiente” (CAMPBELL, 1992: 07).

Os padrões arquetípicos mostram uma variedade infindável de


possibilidades, cada uma aplicável a uma situação particular. Isso pode ser
visto mais claramente na imensa diversidade de contos de fadas, que, como
o mito, poderiam ser considerados o repositório de padrões arquetípicos da
humanidade (WHITMONT, 2006: 90).

Durante muito tempo o mito foi visto como inverdade, mas Whitmont (2006) se
questiona se ele não pode ser visto de outra forma, e afirma que o mito diz respeito à
verdade psíquica e, portanto se refere a uma visão simbólica. Devido à nossa educação
positivista, o autor acredita que a perda desse conhecimento mitológico resulta em um
sentimento de existência sem sentido.

Entrar em harmonia e sintonia com o universo, e permanecer nesse estado,


é a principal função da mitologia. Quando as sociedades evoluem,
79
distanciando-se de sua condição primeira inicial, o problema consiste em
manter o indivíduo nessa participacion mystique com a sociedade. Neste
momento, olhando à sua volta, você percebe quão poucas são as nossas
oportunidades, sobretudo quando se vive numa grande cidade
(CAMPBELL, 1992: 07).

O CASAMENTO DE SIR GAWAIN E DONA RAGNELL, encontrado na obra de


Heinrich R. Zimmer (1988), foi o mito escolhido para o presente trabalho já que nos dá
subsídios para entendermos o desenvolvimento do feminino na sociedade atual. É
importante ressaltar que o mito celta foi encontrado com muitos nomes, como: “Lady
Ragnell”, “Dona Ragnell”, “O Casamento de Sir Gawain e Dona Ragnell” e até mesmo “O
Casamento de Sir Gawain e a monstra Ragnell”. Como precisei escolher um nome para
denominar o mito optei pelo nome “O Casamento de Sir Gawain e Dona Ragnell”, mas
deixo claro que não é o nome “oficial”.

Em minhas pesquisas percebi que esse mito celta é sempre analisado pela ótica do
cavaleiro (Sir Gawain) e proponho aqui olharmos do ponto de vista da mulher (Dona
Ragnell). Isso pode ser feito já que o mito é universal e, portanto não possui apenas um
único ponto de vista, o que abre possibilidades para novas análises e novas descobertas
acerca de seu conteúdo. Desta forma, podemos olhar o mito como uma representação da
vida.

Além disso, é importante destacar a importância da corporalidade nos mitos.


Campbell (1992) afirma que o corpo, tanto feminino quanto masculino, adquire no mito um
caráter simbólico. Acredito que seja esse caráter simbólico que possibilite as múltiplas
formas que o corpo pode adquirir nos mitos, como características animais, tamanhos
variados dentre outras.

Graal  
O mito do Graal é um mito que permeia todas as histórias Arthurianas e, portanto,
engloba o mito escolhido para esta pesquisa. De acordo com Whitmont (1991), o mito do

80
Graal tem uma enorme importância para entendermos o desenvolvimento coletivo, pois diz
respeito à necessidade de integração do Feminino.

O mito do Graal substituiu a forma original do messianismo cristão em


termos de eficácia psicológica. Do final da Idade Média em diante até
nossos dias de era pós-cristã, esse mito vem exercendo um efeito
extremamente poderoso. Além disso, é um mito integrativo. Unifica os
elementos pré-cristão, cristão e pós-cristão moderno. O caldeirão ancestral
da Grande Deusa está agora repleto do sangue de Cristo e aguarda a
redenção do salvador por intermédio da busca humana do esforço
consciente de um buscador que ouse formular a questão socialmente
proibida: “A quem ou a que isso serve?” “Qual o sentido disto?”
(WHITMONT 1991: 173).

Como existem muitas versões, o autor não achou fácil resumir os elementos centrais
do mito, além da dificuldade por não existir uma imagem definitiva do Graal e nem
evidências de que tenha realmente existido. Seleciono na obra de Whitmont (1991) as
facetas do Graal que considero importantes para a presente pesquisa.

O Graal é um cálice utilizado nas celebrações da missa. Um templo foi construído


para abrigá-lo e a ordem dos Cavaleiros do Graal foi formada com a missão de protegê-lo.
Merlin, o mago da Corte do Rei Arthur, cria a Távola Redonda, e é ao redor dela que o Rei
se reunia com seus cavaleiros (dentre os cavaleiros cito Gawain, um dos personagens do
mito). O Graal aparece para todos na festa de Pentecostes, em um raio de sol e os cavaleiros
juraram encontrá-lo; cada um toma um caminho diferente e submetem-se as provas de
iniciação, percorrem florestas e conhecem, que os ajudam a compreender às provas a que
eram submetidos.

De acordo com a tradição Medieval, vaso – Graal – útero – pedra são imagens
sinônimas de Virgem Maria, mãe de Deus.

Uma outra figura associada ao Graal é a de uma mulher com dentes de


javali, cabelos que parecem pêlos de porco, nariz de cachorro, orelhas de
urso, rosto cabeludo e unhas que lembram as garras de um leão. (...) Em
muitas histórias celtas, é por intermédio dessa Medusa aterrorizante que o
Graal, ou o reino, ou o manancial, é encontrado; finalmente e somente
81
quem puder aceitá-la e beijá-la alcançará o reinado em seu domínio
atemporal (WHITMONT, 1991: 175).

Ao herói, cabe fazer uma pergunta mágica, pois ele é o único que pode desfazer o
encantamento proposto no mito.

Whitmont (1991), afirma que a lenda do Graal está ligada à imagem de Aquário e
ao mito do Paraíso e Jardim do Éden.

O mito do Graal/Aquárius implica no reverso da tendência patriarcal que


representou a perda absoluta da integração mágica com o paraíso. Isso
deve ocorrer por meio da recuperação do manancial e de suas virgens, quer
dizer, do mundo da deusa, fazendo-se a pergunta ou beijando a donzela feia
(WHITMONT, 1991: 177).

Assim, o mito representa integração de aspectos matriarcais. Antes, o “(...)


conhecimento era vivencial semelhante à união sexual, uma fusão” (WHITMONT, 1991:
177), mas esses aspectos acabam se discriminando e o fruto torna-se proibido surgindo a
obediência e a noção de pecado relacionado à união sexual.

Junto com o ego patriarcal do hemisfério cerebral esquerdo e seu senso de


separação e responsabilidade, nasceram também a competitividade, as
lutas fratricidas pelo poder, a culpa e a atitude de bode expiatório. É o
deserto contemporâneo do homem contra o homem. Pouco espanta portanto
que o anseio pela realidade unitária perdida, pelos dias de ouro da
pertinência sob o reino da Deusa, tenha crescido como uma nostálgica
melodia de fundo, durante todo o patriarcado (WHITMONT, 1991: 178).

Em suma, o Graal simboliza o Feminino reprimido. A busca dos cavaleiros em meio


aos desafios da floresta e seres não-humanos encontrados pelo caminho denotam a entrada
pelo interior da psique por vias não-racionais. Perguntas são formuladas e mulheres devem
ser beijadas, mas independente das versões do mito do Graal, apenas uma coisa deve ser
compreendida: a importância da integração dos aspectos do Feminino tanto no âmbito
pessoal, como no coletivo.

82
Gawain e Ragnell 
Whitmont (1991) faz uma análise do mito de Gawain e Ragnell trazendo
explicações relevantes para a presente pesquisa. Apesar de sua analise do mito ter como
ponto central o personagem masculino, seleciono os aspectos significativos para a análise
deste trabalho.

Gawain, o personagem “(...) chamado de Fonte de Maio, o do cabelo brilhante,


aquele que recebeu a juventude eterna” (WHITMONT, 1991: 187), participa ativamente
dos mitos que tem o Graal como tema central, ele é um dos cavaleiros da Távola Redonda
e, portanto, é um leal amigo do Rei Arthur.

A iniciação de Gawaine e seu ato de liberdade ocorrem no espaço do


castelo da deusa, representada nas versões medievais como Kundrie,
Morgan Le Fay, Lady Ragnell ou as virgens do Graal. A deusa do Graal é
a heroína de uma história sazonal de seqüestro; senhora da lua e da
vegetação, que abandona as formas animais mais hediondas e se
transforma em figura de beleza radiante e é um guia para o outro mundo
(WHITMONT, 1991: 187).

Outro personagem importante se chama Sir Gromer Somer Jour. O nome significa
“dia soturno e sinistro” (WHITMONT, 1991: 191). Ele é guardião e irmão da Morgan Le
Fay, também chamada de Governadora, Gorgo ou Medusa. Ela “representa o terror abismal
das dimensões profundas da Deusa, o escuro e misterioso útero do não-nascido”
(WHITMONT, 1991: 191). Esta mulher foi rejeitada pelo patriarcal e busca a recuperação
da sua soberania.

Gawain tem provas a ultrapassar, mas essas provas não têm como foco conquistas e
coragem, pois esses predicados já são pré-requisitos para o herói, portanto, o que interessa é
a aceitação que acontecerá como conseqüência de uma posição de lealdade e força. Assim,
a prova exige força para enfrentar a consciência e o sofrimento no conflito, e a capacidade
de se entregar e ele.

83
Outra importante característica das histórias do Graal são as perguntas formuladas:
“É significativo que, embora a importância da pergunta seja várias vezes enfatizada,
quando ela é finalmente enunciada não vem resposta alguma e, aliás, a coisa toda é deixada
sumariamente de lado” (WHITMONT, 1991: 193). Assim, o que importa é perguntar e não
a resposta em si (se é que existe uma resposta).

O autor também contribui para entendermos a “monstra” Ragnell:

(...) somos também levados a pensar em Lady Ragnell e na questão que ela
encarna, a saber, a aceitação da soberania da mulher, aceitação do feio
com o belo, escuro com a luz. (...) A Rainha Deusa Sacerdotisa representa a
própria vida; a vida aceita como é, em sua escuridão e em sua luz, em seus
altos e baixos, em sua marés do destino. Não se deve apenas aceitá-la é
preciso também responder-lhe (WHITMONT, 1991: 193).

Gawain responde mantendo a própria integridade, na presença de Ragnell ele não


atua de forma neurótica, mas age sobre sua escolha. Ele aceita Ragnell e adentra ao mundo
da Deusa em todos os seus aspectos, sejam eles bons/ruins, alegres/aterrorizantes.

Resumindo, na análise de Whitmont (1991), Gawain aceita Ragnell e se abre para a


força da anima. Essa integração é imprescindível para o processo de individuação do
Masculino que durante tantos anos reprimiu os aspectos do Feminino, mas que em um dado
momento deve aceitar o chamado para o seu desenvolvimento psicológico.

84
6. OS CELTAS

Como vou utilizar um mito neste trabalho teórico, acho importante contextualizar a
cultura celta para entendermos como seus mitos chegaram até nós.

Existem muitos mitos e lendas ligadas à cultura celta que foram registrados
principalmente nas regiões da Irlanda, Escócia e País de Gales. Porém, a grande maioria do
conhecimento de que dispomos sobre os celtas chegou até nós por vias não-celtas, que
seriam os povos que conquistaram as regiões por meio de guerras. De acordo com
Alvarenga (1997), o povo celta foi conquistado pelo Império Romano que o cristianizou e,
conseqüentemente, ocorreu um processo de sincretismo religioso 4 . A cristianização foi
conveniente para os sacerdotes celtas chamados Druidas que, ao se declararem cristãos,
poderiam continuar com seus estudos esotéricos e registrá-los em latim, o que não era
possível antes já que, de acordo com Cheers (2006), a cultura celta era fundamentada em
uma tradição oral que se baseava em narração de lendas. O que existe são inscrições,
moedas e nomes de locais que nos fornecem uma limitada visão de sua cultura e a
explicação pode estar no fato da cultura celta ter sido dominada pelo Império Romano.

(...) Júlio César deixou muitos registros, muitos dos quais podem ser úteis
para traçarmos uma imagem pormenorizada desse povo que viveu num
passado longínquo. Júlio César refere que os celtas eram valentes no
campo de batalha, que alguns combatiam nus, enquanto o grego Diodoro
Siculus (ca. 90-21 AC) nos dá a seguinte descrição: “os celtas eram altos,
com músculos salientes e peles brancas e cabelos louros.” As mulheres
“não têm uma estatura tão grande como os homens mas acompanhavam-
nos em coragem” (CHEERS, 2006:213).

A sociedade celta era uma sociedade tribal e cada tribo era liderada por um chefe ou
rei. As mulheres (aristocratas) tinham um papel ativo na sociedade e, apesar das tribos
lutarem entre si, elas possuíam certas características comuns, como o “amor pelas lendas,

4
Por exemplo, a deusa celta Brigitt foi incorporada no cristianismo como a Santa Brígida
85
pela sua recitação e pela música. Nessas áreas, os talentosos bardos eram excelentes,
criando um universo de grandes guerreiros, deuses poderosos, mulheres de espírito forte,
transformadores de formas, choros de fadas fúnebres e doentes” (CHEERS, 2006:213)

O Rei sempre governava ao lado de um Druida já que a regência carregava um


caráter sagrado, ambos possuíam poderes e nessa união o Rei sempre estava em
consonância com seu conselheiro; como exemplo, posso citar o Rei Arthur e o mago
Merlin. O Rei Arthur apesar de não ter tido sucesso duradouro nas batalhas, adquiriu um
caráter quase mítico, como mostram os contos do Rei Arthur e a Távola Redonda.

Para Alvarega (1997), o culto celta tinha como figura central a Grande Deusa e era
“ladeada por deuses masculinos menores que se apresentavam como seus filhos-heróis”
(ALVARENGA, 1997:29). As figuras masculinas podiam ser representadas por figuras de
animais que sofrem transformações físicas simbolizando o processo de morte e
renascimento e a figura da Grande Deusa possuía o controle sobre o tempo em que se
rejuvenesce ou se envelhece simbolicamente.

Na cultura celta, não existia o conceito de pecado ou traição sexual como existe na
nossa sociedade. Ao se casar, o Rei celebrava suas núpcias com a Deusa Terra e liberava
sua esposa para ter amantes se ela desejasse.

As mulheres tinham autonomia e eram tratadas como cidadãs na sociedade celta:

As mulheres eram consideradas como se fossem seres divinos havendo


profunda igualdade entre os sexos e, portanto, sempre ocupavam lugar de
destaque dentro da realidade sócio-cultural. A mulher participa ativamente
da vida política, religiosa e social podendo ser eleita como regente, possuir
terras, escolher seu marido e, no caso do divórcio, seus bens de herança
continuavam a lhe pertencer (ALVARENGA, 1997:33).

Se a mulher lançasse um encanto sobre o homem amado, ele deveria sucumbir e


assumir esse amor como destino; caso o homem não aceitasse, sua honra de guerreiro
estava destruída. Alvarenga (1997) levanta a hipótese de que essa pode ser uma das origens
do amor cortês que poderia simbolizar o resgate do feminino e a busca do Graal, tão
86
comum nas lendas Arthurianas, significando a integração dos aspectos da Grande Deusa.
Assim, podemos perceber a influência que a mulher exercia nos costumes e na cultura no
período medieval:

A predominância e uma tendência à irracionalidade caracterizam tanto a


mentalidade feminina como a céltica, o que é testemunhado não apenas
pelos contos de fadas, as lendas e os mitos, mas também pelas idéias,
tradições e costumes que permanecem parcialmente vivos até o presente”
(JUNG & VON FRANZ, 1980:17).

Em relação às crenças espirituais, Jung e Von Franz (1980) nos mostram que os
celtas acreditavam em um “país do além” habitado pelos imortais no qual não há doenças
ou morte e os homens vivem junto a seres similares aos deuses saboreando comidas e
bebidas e ouvindo músicas. Mas a humanidade perdeu esse país e somente um limitado
número de escolhidos pode encontrar o caminho até ele.

O guerreiro celta estava à serviço da Grande Deusa, o que o faz a serviço do


feminino. Nas lendas do Rei Arthur, os cavaleiros tinham bons sentimentos e sua meta era
cumprir o dever que possuía um cunho heróico, dessa forma, os cavaleiros são regidos pelo
arquétipo do herói. Os contos nos mostram o modo de ser e de viver dos cavalheiros e sua
conduta deveria ser impecável e representava um ideal inatingível também para a época.
Gawain, utilizado no mito deste trabalho era um dos cavaleiros de Rei Arthur que, como
veremos no próximo capítulo, aceita se sacrificar em nome da vida do Rei.

Apenas seletos cavaleiros poderiam participar da Távola Redonda. Dentre os


predicados necessários, não bastava deter o domínio das armas, do cavalo e da caça, mas
deveriam possuir “(...) em alto grau as virtudes cavalheirescas: otimismo, coragem,
intrepidez, espírito combativo e aventureiro e, acima de tudo, fidelidade e lealdade” (JUNG
& VON FRANZ, 1997: 41).

87
7. MÉTODO

Este estudo tem como objetivo refletir a mulher contemporânea e sua possibilidade
de escolha utilizando a Psicologia Analítica como instrumento de análise.

Trata-se de um trabalho teórico, em que fazemos um cruzamento entre pressupostos


teóricos da Psicologia Analítica e a concepções acerca da mulher, tendo como foco o mito
celta “O casamento de Sir Gawain e Dona Ragnell”.

A metodologia desta pesquisa tem como referência a dissertação de mestrado de


Eloisa Marques Damasco Penna, “Um Estudo sobre o Método de Investigação da Psique na
Obra de C.G. Jung” de 2003.

O objeto de investigação da psicologia analítica se define como a psique


humana em suas relações com a vida. Para Jung o fato de a psique ser,
tanto sujeito como objeto do conhecimento, distingue a psicologia das
outras ciências, exatas ou naturais, e implica, necessariamente, um método
que considere esta particularidade (PENNA, 2003:120).

O inconsciente só pode ser acessado por meios indiretos e por isso, o material
inconsciente é apreendido através da realidade manifesta. Dessa forma, a apreensão das
manifestações inconscientes é feita pelo SÍMBOLO já que ele é a ponte entre os materiais
conscientes e inconscientes (pessoal e arquetípico), conforme descrito anteriormente no
capítulo 01.

Por essa razão, o modo de acumular conhecimento, na psicologia de C.G.


Jung, se dá através do reconhecimento e compreensão das manifestações
simbólicas. O objeto de investigação do método junguiano é, então, o
símbolo, pois este permite a apreensão e compreensão da realidade
psíquica, congregando consciente e inconsciente (PENNA, 2003: 170).

A observação é o meio pelo qual se torna possível a apreensão do fenômeno


psíquico. A autora descreve observação como “(...) meio através do qual é possível captar o
88
material inconsciente que se apresenta à consciência para ser integrado a ela” (PENNA,
2003: 171). O processo de observação em si implica em um tipo de relação EU (ego) –
OUTRO (inconsciente e/ou mundo existencial) e a neutralidade e objetividade não é uma
ambição do observador já que a consciência tem tendências unilaterais naturais e por isso, a
observação do inconsciente se torna uma questão altamente complexa.

Para captar o fenômeno de forma abrangente, todas as funções da consciência –


pensamento, sensação, sentimento e intuição – deveriam ser utilizadas, mas essa é uma
visão ideal já que existem limites advindos do próprio observador. A dialética é
caracterizada pela relação de troca dinâmica e transformadora estabelecida pelo observador
e o fenômeno observado.

O aspecto desconhecido do símbolo representa um enigma a ser decifrado, o que


ocasiona um fascínio no ego que atrai e ameaça a estabilidade da consciência (aspecto
numinoso do símbolo). É uma experiência mobilizadora e, portanto significativo para um
indivíduo (símbolos pessoais) ou para uma comunidade (símbolos coletivos).

A compreensão do material simbólico à luz da psicologia analítica se


encaminha para que estes façam sentido para a consciência que os
experimenta e possam cumprir sua finalidade de ampliação da consciência
e o conseqüente encaminhamento do processo de individuação (PENNA,
2003: 181).

Em suma, é necessário uma reinterpretação psicológica dos símbolos, isto é, deve-se


elaborar o símbolo e traduzi-lo para a consciência e conseqüentemente promover a
ampliação de consciência. No caso da presente pesquisa, em que trabalhamos com a
mitologia celta, o mito será estudado como um símbolo de caráter coletivo e visto como
expressão da consciência coletiva e, portanto, o seu contexto é a cultura.

A compreensão do fenômeno psíquico diz respeito à interpretação e


elaboração dos símbolos observados (captados) e tem por objetivo traduzir
os fatos em termos psicológicos e compreendê-los de tal forma que o
material desconhecido (inconsciente) possa ser integrado à consciência,
promovendo ampliação desta. Esse é o processo de produção e acumulação
89
de conhecimento na psicologia analítica, pois “chamamos tudo o que não
conhecemos de inconsciente” (vol.18;248) (PENNA, 2003: 183).

Na presente pesquisa, utilizo o conceito de amplificação simbólica que possibilita a


busca do significado arquetípico do símbolo.

O processo de amplificação simbólica proposto por Jung consiste em


ampliar e enriquecer os elementos do símbolo através de associações e
analogias que fluem numa cadeia contínua de similaridades, visando a
traduzir e interpretar o material desconhecido do símbolo (PENNA, 2003:
195).

A autora prossegue afirmando que ampliar e enriquecer o símbolo favorece a


compreensão de seu significado arquetípico, pois dá ao ego possibilidades de captar seu
aspecto desconhecido e assim, encontrar o significado que faça mais sentido para a
consciência. Dessa forma, o símbolo é enriquecido por imagens equivalentes de mitos,
contos ou outro material cultural.

Assim, o símbolo deve ser compreendido através da causa, finalidade e da


sincronicidade e será interpretado junto aos aspectos arquetípicos e históricos para abarcar
o símbolo estudado na sua totalidade.

Em suma, a amplificação tem como meta apreender o tema arquetípico do símbolo e


assim, contribuir com o desenvolvimento individual e coletivo, pois a “(...) amplificação
como recurso metodológico na elaboração dos símbolos, nos sonhos ou nos mitos, está em
perfeita sintonia com a noção de amplificação da consciência como meta do processo de
individuação” (PENNA, 2003: 198), pois ao amplificarmos os núcleos arquetípicos, esses
conteúdos serão trabalhados e integrados à consciência.

90
8. O CASAMENTO DE SIR
GAWAIN E DONA RAGNELL

Em companhia de alguns de seus jovens cavaleiros, entre eles sir Gawain, o rei estava um dia
caçando na floresta. Todos conheciam bem a região e não esperavam nenhum acontecimento miraculoso.
No que o rei esporeou seu cavalo e adiantou-se, distanciando-se deles um pouco, foi quando lhe apareceu
à frente, de súbito, um grande cervo. O rei seguiu-o e, mal havia cavalgado meia milha, abateu-o.
Desmontou, atou o cavalo a uma árvore, sacou a faca de caça e começou a preparar a presa. Enquanto
estava debruçado sobre ela, num pequeno trecho coberto de musgo, percebeu que estava sendo observado;
ao erguer os olhos, viu diante de si um cavaleiro bem armado, de aspecto ameaçador, “cheio de força e
grande em poder”.

“Sede bem-vindo, rei Arthur!”, disse o homenzarrão. “Afrontais-me há muitos anos, e por isso hei
de vingar-me. Vossos dias de vida estão contados!”.

Assim ameaçado de morte imediata, o rei prontamente replicou, censurando, que pouca honra
teria o cavaleiro com tal façanha. “Estais armado, e eu apenas vestido de verde, sem espada e sem lança”.
E indagou o nome de seu desafiante.

“Meu nome”, disse o homem, “é Gromer Somer Joure”. O nome nada significava para o rei.

O argumento do soberano, no entanto, tocara num delicado ponto de honra cavalheiresca e o


homenzarrão, protegido por sua armadura, viu-se forçado a ceder um pouco – não totalmente, mas um
pouco.

Sir Gromer Somer Joure exigiu que sua indefesa vítima jurasse voltar àquele mesmo local no
mesmo dia do ano seguinte, desarmado como agora, vestindo apenas seu traje verde de caçador, porém,
trazendo para resgatar a vida, a resposta a este enigma: “O que é que uma mulher mais deseja no
mundo?”.

91
O rei deu sua palavra e retornou, muito abatido, à companhia dos cavaleiros. Seu sobrinho, sir
Gawain, notou-lhe a melancolia do rosto e, chamando-o a parte, indagou-lhe o que acontecera. O rei
contou-lhe o segredo. Cavalgando ligeiramente afastados dos demais, ambos deliberaram, e finalmente
Gawain deu uma excelente sugestão:

“Deixai que preparem vosso cavalo para uma viagem por terras estranhas e a quem quer que
encontreis, seja homem ou mulher, perguntai o que pensam do enigma. Cavalgarei em outra direção,
inquirindo todos os homens e mulheres, a ver o que consigo; anotarei todas as respostas num livro”.

Por um caminho o rei, Gawain por outro,


Perguntando a mulheres, a homens e a todos:
As mulheres, que é que elas mais querem?
Uns disseram: estar bem enfeitadas;
Outros: juras galantes – gostam delas;
Outros: que homem vigoroso
As tome nos braços, beijando-as sem demora.
Alguns disseram isso, alguns aquilo.
Foram muitas as respostas a Gawain.
E tantas delas sir Gawain ouviu
Que, em extensão engenho, deram livro;
À corte, no regresso,
De seu, trazia o rei, livro também,
Um do outro olhou todo o escrito;
“Isso não falhará”, Gawain falou.
“Por Deus”, lhe disse o rei, “temo ser pouco,
Um pouco mais quero buscar ainda”.

Agora só faltava um mês. O rei, inquieto, apesar da quantidade de respostas recolhidas, esporiou
o cavalo e aventurou-se na floresta de Inglewood, encontrando ali a bruxa mais feia já vista por olhos

92
humanos: rosto vermelho, nariz distilando muco, grande boca, dentes amarelos tendendo-lhe sobre o lábio,
pescoço comprido e grosso e pesados seios dependurados. Levava às costas um alaúde e cavalgava um
palafrém ricamente encilhado. Era uma visão inacreditável, a de tão horrenda criatura a cavalgar
radiosa.

Vindo diretamente ter com o rei, saldou-o e avisou, sem rodeios, que nenhuma das respostas que
ele e Gawain haviam obtido serviriam para nada. “Não vos ajude eu, e estareis morto”, disse ela.
“concedei-me apenas uma coisa, senhor rei, e garantirei vossa vida; caso contrário, perdereis a cabeça”.
“Que quereis dizer, senhora?” – perguntou o monarca. “A que vos referis, dizendo que minha vida está em
vossas mãos? Falai, e prometo-vos os que desejardes”. “Pois bem”, replicou a horrenda anciã, “assegurai-
me que dar-me-eis em casamento um de vossos cavalheiros. Seu nome é sir Gawain. Proponho-vos um
acordo: se vossa vida não for salva por minha resposta, meu desejo será vão; porém, se ela vos salvar,
havereis de conceder-me ser a esposa de Gawain. Decidi agora, e depressa, porque assim tem que ser, ou
estareis morto”. “Santa Maria!”, exclamou o rei. “Não concederei autorização a sir Gawain para
desposar-vos. Tal coisa diz respeito somente a ele”.“Bem”, replicou ela, “retornais agora ao castelo e tentai
persuadir sir Gawain. Apesar de feia, sou alegre”. “Oh, Deus!”, exclamou ele, “que desgraça se abate sobre
mim!”.

O rei Arthur retornou ao castelo e seu sobrinho Gawain respondeu-lhe cortesmente: “Possa eu
morrer em vosso lugar! Casar-me-ei com ela, uma e outra vez ainda que seja o diabo tão feio como belzebu
– ou não serei vosso amigo”. “Graças Gawain”, disse Arthur, o rei; “de todos os cavaleiros que jamais
encontrei, levais a palma”.

Dona Ragnell era o nome da bruxa. Quando rei Arthur, voltando, fez-lhe a promessa, em seu
nome e do sobrinho, ela respondeu: “Senhor, sabereis agora o que as mulheres desejam acima de tudo.
Uma coisa habita-nos todas as fantasias, e a conhecereis: acima de qualquer coisa, desejamos ter
soberania sobre o homem”. Disse ainda ao rei que o gigantesco cavalheiro seria tomado pela ira ao ouvi-lo.
“Maldirá aquela que vos ensinou, porque terá perdido seu trabalho”.

O rei Arthur galopou através de lama, pântano e charco para o encontro com sir Gromer Somer
Joure; no momento em que chegou ao lugar combinado, deparou-se com o outro.

“Adiantai-vos senhor rei”, disse-lhe o desafiante armado, “vejamos qual será vossa resposta”.
93
O rei Arthur estendeu-lhe os dois livros, na esperança de que alguma das respostas primeiramente
obtidas fosse suficiente, libertando-o e ao seu sobrinho do indesejável compromisso.

Sir Gromer percorreu as respostas uma a uma. “Não, não, senhor rei”, disse ele, “sois um homem
morto”.

“Esperai, sir Gromer. Ainda tenho uma resposta”. O outro deteve-se para escutar. “acima de tudo
mais”, disse o rei, “as mulheres desejam a soberania – é o que lhes apraz, e o seu maior desejo.”

E a ela, que tal vos contou, sir Arthur, suplico a Deus que possa vê-la arder em uma fogueira. É
minha irmã, dona Ragnell, aquela velha bruxa; cubra-a Deus de vergonha, pois se não fosse por ela, ter-
vos-ia subjugado...Que tenhais um bom dia!”. O peculiar cavaleiro a muito abrigava rancor contra o rei
Arthur, que outrora o despojara de suas terras concedendo-as, “com grande injustiça”, a sir Gawain.
Perdera-se agora sua oportunidade de vingança e foi-se, enfurecido, pois jamais teria novamente a sorte
de encontrar seu inimigo desarmado.

O rei Arthur voltou a cavalo para planície, logo encontrando dona Ragnell. “Senhor rei”, disse
ela, “sinto-me feliz porque tudo correu bem, como vos disse que ocorreria. Agora, desde que vos salvei a
vida, Gawain deve desposar-me. É um completo e gentil cavaleiro; casar-me-ei publicamente antes de
permitir-vos separá-lo de mim. Cavalgai à frente; seguir-vos-ei até a corte, rei Arthur”.

Muita vergonha causava ela ao rei; mas ao chegarem à corte, e todos se indagarem atônitos de onde teria
vindo tamanha monstruosidade, o cavaleiro sir Gawain adiantou-se sem qualquer sinal de relutância e
virilmente honrou a promessa de desposá-la.

“Deus seja louvado”, dona Ragnell disse,


“Por vós quisera ser mulher formosa,
Por ser vossa vontade assim tão boa”.
Todas as damas e cavaleiros da corte apiedavam-se de sir Gawain, aquelas chorando em suas
câmaras, porque ele teria de casar-se com criatura tão pavorosa e horrível. Tinha dois dentes como presas
de javali, um de cada lado, de um palmo de comprimento, um apontando para cima e outro para baixo; a
boca era enorme, cercada de horríveis cerdas. Tão pouco se contentara com um casamento discreto e
tranqüilo (tal fora o desejo da rainha), mas insistira em uma missa solene e num banquete no grande
94
salão, a que todos comparecessem. Durante a festa, mastigou três capões, outras tantas aves e vários
pratos de assados, estraçalhando-os com as longas presas e as unhas até só restarem os ossos. Sir Kai,
companheiro de Gawain, rapaz impetuoso e descortês, sacudiu a cabeça e disse: “quem quer que beije essa
dama, terá medo dos próprios beijos”. E a noiva continuou a mastigar até acabar-se a carne.

Nessa noite, no leito, a princípio, sir Gawain não conseguia obrigar-se a voltar o rosto e encarar
o focinho pouco apetitoso da noiva. Após algum tempo, no entanto ela rogou: “Ah, sir Gawain, já que
nos casamos, demonstrai-me vossa cortesia na cama. Por direito, isso não me pode ser negado. Se eu fosse
bela, não vos comportaríeis assim; não fazeis a mínima conta dos laços matrimoniais. Em consideração a
Arthur, beijai-me ao menos; peço que atendais ao meu pedido. Vamos, vejamos quão ardente podei ser!”.

O cavaleiro e o leal sobrinho do rei reuniu cada pedacinho de coragem e gentileza. “Farei mais”,
disse, muito amável, “farei mais do que apenas beijar, por Deus!”. E, ao voltar-se deparou com a mais
formosa criatura que já vira.

“Oh. Jesus!”, exclamou ele, “quem sois?”.

“Senhor, sou vossa esposa, certamente; porque sois tão indelicado?”.

“Oh, senhora mereço que me censureis; eu não sabia. Sois bela a meus olhos – apenas de terdes
sido a mais feia criatura que meus olhos já viram. Ter-vos assim, senhora, muito me agrada!”. Tomou-a
nos braços, beijou-a, e sentiram-se muito felizes.

“Senhor”, avisou ela, “minha beleza não durará. Ter-me-eis assim, mas apenas durante metade do
tempo. Esse é o problema: deveis escolher se me preferes bela à noite e horrenda durante o dia, diante dos
olhos de todos ou bela de dia e horrível à noite”.

“Oh, Deus, a escolha é difícil”, replicou Gawain. “Ter-vos bela apenas à noite entre entristeceria
meu coração, mas se decidir ter-vos bela durante o dia, dormirei em leito de espinhos. Quisera escolher o
melhor, mais não faço idéia do que dizer. Querida senhora, que seja como desejais; deixo a escolha em
vossas mãos. Meu corpo, meus bens, meu coração e tudo mais são vossos para que deles façais o que
quiserdes; juro-o diante de Deus!”.

95
“Ah, dou graça, cortês cavaleiro!”, exclamou a dama. “Abençoado sejais entre todos os cavaleiros
do mundo! Agora estou livre de meu encantamento, e ter-me-eis bela e atraente tanto de dia quanto à
noite”.

Então ela contou a seu deleitado esposo como sua madrasta (que Deus tenha piedade de sua
alma!) a encantara com suas artes de magia negra, condenando-a a permanecer sob aquela forma
asquerosa até que o melhor cavaleiro da Inglaterra a desposasse e lhe concedesse a soberania sobre seu
corpo e seus bens. “Assim fui deformada”, disse ela. “E vós, cortês sir Gawain concedestes-me, sem
condições, a soberania. Beijai-me agora, senhor cavaleiro, eu vos suplico; alegrai-vos e regozijai-vos”. E
desfrutaram deleitosamente um do outro.

Já passara o meio dia.


Disse o rei: “Senhores todos, vejamos
Se sir Gawain ainda vive.
Por sir Gawain ora temo,
Não vá tê-lo morto a bruxa!,
Quisera sabê-lo já.
Vamos”, disse Arthoure, o rei.
“Vejamos seu despertar
E como se ouve de noite.”
À câmara andaram juntos.
“Sir Gawain, de longo sono
Acordai!” – chamou o rei.
E Gawain: “Santa Maria! Permitido,
Sim, por certo, dormiria muito mais,
Pois bem feliz eu me sinto.
Aguardai, já abro a porta.
Para que em meu bem creiais,
Já quero, sim, levantar-me”.
96
Sir Gawain cumpriu o dito; tomou
A dama que, bela, levou à porta:
Em camisa, frente ao fogo,
De ouro, os longos cabelos.
“Vede! Eis meu prêmio, minha esposa”,
Disse a Arthoure sir Gawain.
“Dona Ragnell, sir, é esta,
Que vossa vida salvou”.

97
ANÁLISE E DISCUSSÃO

Conforme dito no capítulo 05, este mito é normalmente analisado para compreender
o desenvolvimento masculino, mas como esta pesquisa se propõe a estudar a mulher
contemporânea, a análise central será realizada a partir da figura feminina (Ragnell) e tudo
o que se relaciona com ela. Assim, me proponho a analisar o mito para compreender como
a mulher se apropria de si para fazer escolhas conscientes.

O relato do mito situa-se na Idade Média, referindo-se inicialmente ao rei Arthur e


seus cavaleiros. O rei será visto como

“(...) projeção do eu superior, um ideal a realizar, (...) torna-se um valor


ético e psicológico. Sua imagem concentra em si os desejos de autonomia,
de governo de si mesmo, de conhecimento integral, de consciência. Neste
sentido, o rei é, com o herói, o santo, o pai, o sábio, o arquétipo da
perfeição humana, e ele mobilizava todas as energias espirituais para se
realizar (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 776).

Assim, o rei simboliza um ideal de Masculinidade que, apesar das transformações,


permanece até hoje, de maneira velada ou aberta, dependendo da sociedade que o veicula.
O Feminino no patriarcado é complementar ao Masculino: se este se refere à força,
competência no mundo externo, produtividade, objetividade, às custas da expressão dos
sentimentos e do cuidado; o Feminino refere-se, de forma não só complementar, como
oposta, à suavidade, delicadeza, ao cuidado das relações e à expressividade emocional,
entre outras características. Essa divisão por gênero estava e ainda está presente nas
relações sociais, afetivas, no mundo do trabalho e no doméstico, alocando homens e
mulheres em espaços separados (o âmbito privado versus o público) e atribuindo-lhes
características e traços psicológicos diferenciados e opostos. Na contemporaneidade estas
desigualdades, que, portanto, veiculam relações de poder, estão sendo revistas, apesar das

98
contradições, da sobreposição de valores arcaicos e modernos e da inércia de subjetividade
(Figueira, 1987).

É importante dizer que não são apenas as mulheres que sofrem com a pressão social,
afinal, homens, idosos e crianças também buscam desempenhar papeis socialmente aceitos,
o que mostra que a influência do meio externo é inevitável: somos seres que se
desenvolvem nas relações, sejam relações próximas, como família e amigos, ou em outros
tipos de relações como nas instituições, normas e valores sociais, etc.

Se observarmos a história da mulher 5 , vemos que a sociedade teve (e ainda tem) um


papel fundamental no seu comportamento: observamos que, por exemplo, a partir do século
XIII elas foram associadas à imagem do diabo e, por isso, eram vistas como “símbolo do
pecado e da tentação” (ESTECA, 2004: 10); na Idade Moderna, com o surgimento da
burguesia, a mulher passa a ser vista como rainha do lar por existir a dicotomia
público/privado; no século XIX as mulheres passam a trabalhar nas fábricas como mão de
obra barata, pois ganham um terço do salário dos homens que fazem o mesmo serviço e nos
anos dourados, as mulheres deveriam ter “instinto materno, pureza, resignação e doçura”
(BASSANEZI, 1997: 608). Pode-se perceber que vamos nos adequando ao que nos é
prescrito, procurando nos tornar o que é veiculado e valorizado socialmente.

Voltando ao nosso mito, o rei, portanto, simboliza a pressão social que sempre
existiu por um comportamento dito “feminino”, por isso, relembro Whitmont 6 (1991) que
afirma que no “mundo androlátrico onde reina a ordem e a ilusão, as mulheres precisam ser
boas, delicadas, provedoras e receptivas” (WHITMONT, 1991: 79). Podemos imaginar,
neste contexto, a dificuldade para a mulher fazer escolhas autônomas e se comprometer
com elas, quando a autonomia e a independência eram símbolos do desenvolvimento e da
identidade masculina.

Já a cavalaria era onde a masculinidade era testada e exercida:

5
Conforme descrito no Capítulo 02.
6
Conforme descrito no capítulo 03.
99
O ideal de cavalaria se resume em um acordo de lealdade absoluta para
com as crenças e compromissos aos quais toda a vida está submetida.
O sonho do cavaleiro revela o desejo de participar de um grande
empreendimento, que se distingue por um caráter moralmente muito
elevado e de certo modo sagrado (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008:
201).

Na idade média, os homens faziam história e a característica heróica do cavaleiro


tornava-o superior, o engrandecia aproximando-o do Divino. Além disso, a cavalaria
simboliza valores como lealdade e fidelidade e, dentre os cavaleiros, está Gawain que é
“(...) chamado de Fonte de Maio, o do cabelo brilhante, aquele que recebeu a juventude
eterna” (WHITMONT, 1991: 187) 7 . O jovem Gawain tem grande participação na mitologia
celta, pois é um dos cavaleiros do rei Arthur e, portanto, pertence à Távola Redonda. Neste
sentido, carrega valores masculinos, como a batalha, a coragem, a inteligência, a obediência
hierárquica – características referentes ao princípio Masculino e, por isso, entendo Gawain
como símbolo de aspectos do animus.

No começo do mito, o rei Arthur e os cavaleiros (entre eles Gawain) estão caçando
na floresta. Floresta aqui pode ser vista de duas formas complementares: como símbolo do
Feminino e símbolo do inconsciente (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 439).
Assim, a floresta será compreendida como um símbolo do dinamismo matriarcal, pois
possui a ligação com a natureza, já que este dinamismo corresponde à fase mágica do
desenvolvimento da consciência que tem como principal característica os aspectos da
Grande Deusa 8 que se manifestava em todas as coisas, como: natureza, animais, corpos
humanos, céu, terra, dentre outros. Além disso, nesta fase os eventos não dependem da ação
do homem, mas simplesmente acontecem, e ao homem cabia apenas se adaptar ao destino.
Mas no mito e na sociedade contemporânea isso deixa de acontecer, pois a dinâmica
patriarcal se apropria desta natureza, dominando-a. Como afirma Johnson (1987), as
“mulheres foram educadas para considerar que apenas as atividades masculinas, raciocínio,

7
Conforme descrito no capítulo 05.
8
Conforme descrito no capítulo 03.
100
poder e sucesso, têm valor real” (JOHNSON, 1987: 10) 9 . Assim, ou a mulher se sente
desvalorizada e, portanto, inferior ao homem, ou ela tenta ser igual ao homem e a possessão
pelo animus pode ocorrer, tornando-a agressiva e autoritária, dogmática, dentre outras
características (Whitmont, 2006) 10 .

No mito, os homens estão caçando nesta floresta e “Todos conheciam bem a região
e não esperavam nenhum acontecimento miraculoso”. Pode-se supor que este
conhecimento da região proporcione um certo controle sobre a natureza, costumando-se
associar conhecimento e poder. Portanto, neste momento, o funcionamento patriarcal
parece ter o controle e, por isso, pode se impor sobre a floresta. Assim, entendo que neste
momento, o patriarcal é o funcionamento dominante.

Surge o cervo simbolizando a renovação cíclica, fecundidade e os ritmos de


crescimento e renascimento (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 223), que significam
a volta das forças do Feminino. Dessa forma, a aparição do cervo pode ser um alerta de que
a transformação é iminente.

Entretanto, a figura do rei não dá ouvidos a esse chamado, pois ele é o símbolo da
busca pela perfeição patriarcal e não percebe que precisa se transformar, enxergando o
cervo como algo a ser dominado, pois ameaça o status quo patriarcal, por isso, o rei mata e
prepara a presa utilizando armas fálicas como a faca de caça, que também simboliza a
discriminação egóica extremamente necessária para o desenvolvimento humano, surgida
com o advento do patriarcado.

Neste momento atestamos a presença de uma estrutura egóica, em que existe a


discriminação do eu-outro (no caso: rei-cervo), pois é a presença de um ego que permite a
discriminação do cervo e seu abate. Além disso, quando o rei abate o cervo e prepara a
caça, nos mostra que existe a noção de dominação e submissão, aqui sendo vista como a
dominação da natureza pelo ser humano e, portanto, a noção de simbiose e continuidade

9
Conforme descrito no capítulo 04.
10
Conforme descrito no capítulo 01.

101
entre seres humanos e a natureza, características da fase de consciência matriarcal, não
existem mais (de forma consciente).

As funções (conhecimento, discriminação, controle), são características do


dinamismo patriarcal 11 , caracterizado por polaridades e não por uma unidade simbiótica.
Os opostos são estabelecidos como eu/mundo, feio/belo, inconsciente/consciente,
vida/morte, dentre outros. Além disso, não podemos esquecer que já na fase mental, em que
valores da sociedade patriarcal são exaltados, o ego é dominado pela persona, os papéis
sociais são estabelecidos e, as diferenças de gênero passam a ser cada vez mais polarizadas.

Nesse momento, o rei Arthur sente uma presença entre os musgos, é um “cavaleiro
bem armado, de aspecto ameaçador, cheio de força e grande em poder.” É uma figura mais
forte que o rei, que busca vingança e o ameaça matá-lo, mas o rei se defende com
argumentos patriarcais ao dizer que não haveria honra em matá-lo, pois ele está apenas
vestido de verde e não está devidamente armado, e por isso, não pode se defender, estando
vulnerável. Em momentos de crise, a nossa psique quer soluções rápidas e, por isso,
buscará caminhos previamente conhecidos – no caso do mito, são utilizados argumentos
patriarcais.

O verde das roupas de Arthur simboliza a natureza e, portanto o Feminino: “O verde


é a cor do reino vegetal se reafirmando (...) é o despertar das águas primordiais, o verde é o
despertar da vida” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 939). Dessa forma, a cor
verde anuncia que o rei está em contato com aspectos do Feminino (pois não desapareceu,
apenas está inconsciente) e por isso se sente vulnerável, pois não se sente capaz de
enfrentar Gromer usando apenas a roupa verde. Dessa forma, a força do Feminino é
sentida, mas o ego tenta resolver a situação utilizando a honra (valor patriarcal) como
argumento, deixando mais uma vez os aspectos do dinamismo matriarcal inconscientes.

O nome do homem ameaçador é Gromer Somer Joure que significa “dia soturno e
sinistro” (WHITMONT, 1991:191) 12 . Para o autor, ele seria o guardião da figura feminina

11
Conforme descrito no capítulo 03.
12
Conforme descrito no capítulo 05.
102
que fora rejeitada durante o patriarcal e agora quer recuperar a sua soberania. Whitmont
(1991) afirma que ela “representa o terror abismal das dimensões profundas da Deusa, o
escuro e misterioso útero do não-nascido” (WHITMONT, 1991:191) 13 . O útero do não-
nascido remete a não saber o que está por vir e a vivência de processos não visíveis,
portanto, não controláveis racionalmente, como os conteúdos inconscientes. Assim, Arthur
deve viver essa busca, não tendo clareza dos resultados. Aqui percebemos que a perfeição
rígida patriarcal que Arthur representa deve ser revista, mostrando que não existe a
perfeição humana e, por isso, quanto maior a instrumentalização e flexibilidade para viver a
vida, melhor será.

O rei argumenta e Gromer Somer Joure negocia para que Arthur volte àquele local
no ano seguinte, vestido de verde e desarmado trazendo a resposta para o enigma: O que é
que uma mulher mais deseja no mundo?

Gromer impõe uma condição, pois é a única maneira de obter a atenção do rei para a
força do Feminino. Ele quer que Arthur volte apenas vestido de verde e, como vimos
anteriormente, significaria abdicar da agressividade masculina e estar vulnerável frente aos
aspectos do Feminino. Ele também deve estar desarmado, pois não poderá contar com suas
facas e espadas discriminativas do mundo governado pelo ego patriarcal. Além disso, o
tempo quando deve retornar é de um ano, que simboliza “a medida de um processo cíclico
completo. (...) É um modelo reduzido de um ciclo cósmico” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2008: 62). Desta forma, ao final do ciclo, o guardião do Feminino
rejeitado quer que a figura masculina já tenha entrado em contato com estas forças, pois só
assim, saberá a resposta do enigma.

O enigma deve ser conscientizado e integrado para que possa ser respondido. Mas
como todo enigma, não será fácil encontrar a resposta. Os enigmas são comuns nos mitos
do Graal e Whitmont (1991) 14 afirma que a resposta para o enigma não é o mais

13
Conforme descrito no capítulo 05.
14
Conforme descrito no capítulo 05.
103
importante. Entendo isso pelo fato de que o enigma pode ser importante para mobilizar a
busca pela resposta.

O rei não encontra outra opção, concorda e dá a sua palavra. Joure e o rei resolvem
a situação por vias patriarcais como: negociação, honra e dar a palavra – valores recorrentes
na mitologia celta –, ele terá que trazer a resposta de um enigma que simboliza algo
misterioso que o ego patriarcal não pode compreender, mas Arthur aceita o desafio para
continuar vivo. É interessante perceber que o ego (que está em conformidade com os
aspectos patriarcais) precisará aceitar e integrar o Feminino para continuar a viver, mas por
enquanto Arthur está abatido, pois quer manter seu status quo; porém percebe que não há
saída e está assustado pela força misteriosa, respeitando-a. Esta apatia do rei mostra como é
difícil mudar os comportamentos, reações e modos de vida que consideramos “corretos”,
pois no dia-a-dia somos rígidos em nossas condutas em relação ao mundo e em relação a
nós mesmos.

Jour é uma figura masculina, mas faz parte dos aspectos do Feminino, assim como
Dionísio é ligado à Deusa reprimida (WHITMONT, 1991: 77) 15 . É uma grande força a
serviço da anima e acredito que seja por isso que sua figura seja vista como maior do que a
de Arthur, afinal, tudo o que não é compreendido pelo ego é percebido como maior do que
realmente é e, como o ego tem dificuldade de absorver essas questões, uma crise se instala
e o ego terá que lidar com o que não compreende.

O rei está abatido e por isso, podemos supor que sua rígida noção de perfeição está
sendo abalada. Podemos fazer um paralelo com mulheres que internalizaram os estereótipos
sociais femininos e com isso, acabam por acreditar nesses estereótipos como única
possibilidade de ser. Como exemplo, posso citar a questão da obrigação da maternidade ou
ainda me remeter à dona de casa exemplar dos anos dourados. Esses valores enrijecidos são
internalizados e, por isso, não são fáceis de se transformar já que muitos dos nossos
comportamentos estão cristalizados, se tornando um empecilho para o desenvolvimento da
personalidade. O ego cresce na interação com o mundo externo e com o mundo interno,

15
Conforme descrito no capítulo 03.
104
assim as pessoas passam por frustrações, atrações e ameaças externas e o ego deve lidar
com estes aspectos para se fortalecer, mas também deve ouvir o seu mundo interno. Me
atrevo a dizer que um ego rígido é um ego “doente” e a busca por uma perfeição
simbolizada no rei deve ser revista para que a energia consiga fluir normalmente.

Gawain dá uma sugestão: “Deixai que preparem vosso cavalo para uma viagem por
terras estranhas e a quem quer que encontreis, seja homem ou mulher, perguntai o que
pensam do enigma. Cavalgarei em outra direção, inquirindo todos os homens e mulheres,
a ver o que consigo; anotarei todas as respostas num livro”.

Ao cavalgarem em direções opostas, acreditamos que simbolizaria a tentativa de


buscar respostas nas duas polaridades e, portanto, acreditavam que iriam apreender a
totalidade, mas estas respostas são buscadas no coletivo (externo) e não dentro de si
(interno). Como eles estão lidando com aspectos com que não estão acostumados, vão
recorrer ao funcionamento a que estão acostumados: o Logos. Acreditam que terão a
resposta ao perguntar, coletar respostas e anotar em um livro – aspectos patriarcais:
intelecto e racionalidade e, por isso, as respostas encontradas eram superficiais, pois diziam
respeito ao estereótipo da mulher: são descrições relacionadas à vaidade e à conquista
associada ao amor cortês.

O funcionamento dominante é o referente à fase mental, pois o livro escrito mostra


que não existe espaço para as manifestações espontâneas e “A mente racional se torna o
árbitro supremo” (WHITMONT, 1991:87). Portanto, eles vão buscar em outras pessoas a
resposta, pois eles querem algo palpável para mostrar ao homenzarrão, assim mostram que
acreditam que a noção de realidade se limita ao que é visível, não existindo espaço para as
manifestações da alma e a racionalização se faz presente em todos os âmbitos da vida.

Até essa parte do mito, o ego está assustado com forças que lhe parecem
desorganizadoras, pois ele só sabe atuar conforme regras patriarcais.

“A força do ego é medida pela capacidade de fazer prevalecer a própria


vontade contra a da natureza, forçando-a a servir aos propósitos egóicos de
permanência, do conforto e da evitação da dor, e pela capacidade de
105
controlar os próprios impulsos, necessidades e desejos” (WHITMONT,
1991: 89).

Assim, vivemos em uma sociedade em que a busca pelo conforto e a evitação da dor
é quase que obrigatória. Para isso, muitas mulheres fazem uso indiscriminado de calmantes
(ansiolíticos) 16 , essa busca por tranqüilidade acaba por impossibilitar a mulher de fazer
reflexões para ser agente transformadora da própria vida. Além disso, a questão se mostra
mais profunda, pois atualmente muitas das pessoas que tomam estas medicações querem
soluções a curto prazo, mas como os ansiolíticos podem causar dependência, podem
agravar a saúde da mulher a longo prazo, questão está que se torna um grande paradoxo.

Os aspectos do Feminino ainda não puderam ser aceitos e muito menos houve um
trabalho integrativo. Mas ao dizer: “temo ser pouco, Um pouco mais quero buscar ainda” o
rei Arthur pressente que as respostas não são o suficiente e ao confiar nessa intuição, abre
espaço para o Feminino emergir. Pois percebe que perguntar aos outros não resolverá. E ele
começa a entrar em contato com seus sentimentos, intuições e imaginação, isto é, suas
reações cristalizadas de uma perfeição inatingível começam a ser reconsideradas. Ele
adentra a floresta – símbolo do feminino – e se percebe em contato com essas novas
sensações e sentimentos.

Surge uma horrorosa bruxa,

(...) o termo bruxa veio a ser compreendido como um pejorativo, mas


antigamente ele era uma designação dada às benzedeiras tanto jovens
quanto velhas, sendo que a palavra witch (bruxa, em inglês) deriva do
termo wit, que significa sábio. (...) De qualquer maneira, porém, a ogra, a
bruxa, a natureza selvagem e quaisquer outras criaturas e aspectos que a
cultura considera apavorantes nas psiques das mulheres são exatamente as
bênçãos que eles mais precisam resgatar e trazer à superfície (ESTÉS,
1994: 122).

16
Conforme descrito no capítulo 02.
106
A bruxa será entendida como o símbolo da mulher contemporânea que carrega
reminiscências de sua trajetória histórica 17 , isso quer dizer que “As mulheres hoje se acham
entre o fogo cruzado de velhas e radicalmente novas idéias sociais” (DOWLING, 2002:
22). Dessa forma, a mulher vive em uma sociedade patriarcal e para atingir o estereótipo
referente aos valores femininos, ela se afasta do animus para assumir o papel feminino
estipulado pelo patriarcal: “(...) quanto mais a mulher sente que tem que ser habitual e
estereotipadamente passiva e submissa, mais provável é que seu animus seja
compulsivamente hostil (WHITMONT, 2006:188), o que pode justificar que Ragnell
apareça como uma monstra horrorosa (“Era uma visão inacreditável, a de tão horrenda
criatura a cavalgar radiosa”).

O ego feminino deve sempre estar em contato com o animus para manter a
capacidade e o potencial do ego, assim quando houver equilíbrio no funcionamento interno,
o externo também estará equilibrado. Whitmont (2006), afirma que a mulher que não
integra o animus não conseguirá se enxergar capaz de realizar alguma coisa por si só. Isso
acontece porque o julgamento do animus será projetado e ela se sentirá criticada por todos,
sem considerar se a crítica é ou não realista.

Neste momento, percebemos uma questão paradoxal. No âmbito coletivo, a


sociedade patriarcal está em busca do princípio matriarcal para integrá-lo. Porém no âmbito
individual, a mulher precisa entrar em contato com os aspectos do animus para poder ser
mais assertiva em suas escolhas.

A bruxa, portanto, simboliza a sapiência adormecida da mulher, sua conexão com


seus sentimentos/sensações e forças arquetípicas, que quando integradas, geram
assertividade diante da vida. Além disso, a figura da bruxa é sempre acompanhada pela
imagem da velha que também simboliza sabedoria, como “um longo acúmulo de
experiência e de reflexão” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 934).

A velha bruxa revela que as respostas até então coletadas não lhe salvariam a vida,
pois a resposta do enigma não está contida em um livro e Arthur percebe que só ela pode
17
Conforme descrito no capítulo 02.
107
salvá-lo: “Falai, e prometo-vos os que desejardes”, e a bruxa se propõe a ajudá-lo em troca
de se casar com Gawain. A escolha de Gawain (símbolo do animus) e não de outro
cavaleiro explicita a auto-regulação psíquica: Ragnell procura exatamente conteúdos em
que sua psique é inconscientemente desamparada e é atraída por isso, através da busca por
integração de conteúdos que são, a princípio, projetados. De acordo com Stein (2005), as
pessoas buscam nos outros uma parte perdidas delas próprias e, por isso, tornar-se
consciente não pode ser um processo individual, afinal, só podemos entrar em contato com
os conteúdos da anima(us) pela relação com o sexo oposto.

É por isso que o casamento tem uma simbólica importante na Psicologia Analítica,
pois “(...) simboliza, no curso do processo de individuação ou de integração da
personalidade, a conciliação do inconsciente, princípio feminino, com o espírito, princípio
masculino” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 197). Assim, o casamento simboliza
a integração do Feminino (na figura de Ragnell) com aspectos do animus (na figura de
Gawain).

Arthur reluta e diz que “Não concederei autorização a sir Gawain para desposar-
vos. Tal coisa diz respeito somente a ele”. O rei (que simboliza a pressão social) a princípio
não aceita que a mulher integre o arquétipo do animus, afinal, as mudanças podem ser
difíceis de serem aceitas e o rei faz mais uma tentativa de manter seu status quo; porém
também podemos fazer a leitura de que ao negar o consentimento do casamento sem
consultar Gawain, o rei provou que existe uma consciência de responsabilidade pessoal
sobre os próprios atos e escolhas. De acordo com Whitmont (1991), essa consciência
consolida ego 18 . Arthur desejava a resposta para se salvar, mas precisou de autocontrole
(energia do Masculino) em detrimento de seguir seus desejos (energia do Feminino) de
salvação. Apesar da psique precisar da integração das energias do Feminino e do
Masculino, o autocontrole é um indício de desenvolvimento da consciência importante,
pois é indispensável para o fortalecimento do ego: lidar com as frustrações faz parte do
crescimento e é imprescindível para que se saiba fazer as escolhas de forma consciente.

18
Conforme descrito no capítulo 03.
108
Gawain aceita se casar apenas por lealdade ao rei, devido aos valores da cavalaria,
em que a amizade entre homens era considerado algo nobre e a amizade com mulheres não
era aceitável, pois eram considerados seres inferiores, sendo incapazes de sentimentos
elevados. É interessante perceber que Gawain responde: “Possa eu morrer em vosso lugar!
Casar-me-ei com ela, uma e outra vez ainda que seja o diabo tão feio como belzebu – ou
não serei vosso amigo”. É interessante perceber que o casamento com Ragnell é visto
como morte no sentido de finitude, mas também considera o casamento uma oportunidade
de devolver a vida ao rei Arthur. Neste momento, o casamento é vivenciado como similar à
sensação de morte, isto é, como algo negativo, pois carrega um sentido de finitude de uma
boa vida. Se lembrarmos que a simbologia do casamento é a integração do princípio
Masculino com o princípio Feminino, perceberemos que a morte significa o fim de um
rígido funcionamento psicológico patriarcal, pois a morte “(...) tem um valor psicológico:
ela liberta das forças negativas e regressivas, ela desmaterializa e libera as forças de
ascensão do espírito” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 621). Dessa forma, essa
questão pode ser vista como parte do ciclo morte e renascimento, já que tanto o animus (na
figura de Gawain), quanto o Feminino (na figura de Ragnell) deverão ser devidamente
trabalhados e integrados na psique para que a alteridade seja possível. Como conseqüência
desta integração, ocorrerá uma vivência de morte do princípio Masculino onipotente e
patriarcal para Gawain poder se sentir mais vivo, isto é, mais integrado; entretanto, ele
considera esse ato um sacrifício, não um ganho para si, pois é válido por garantir a vida do
rei.

Ao ficar sabendo que seu pedido foi aceito, Ragnell finalmente dá a resposta do
enigma : “Uma coisa habita-nos todas as fantasias, e a conhecereis: acima de qualquer
coisa, desejamos ter soberania sobre o homem”. Neste momento, Ragnell ainda não tem
consciência que precisa integrar-se ao Masculino, mas que deseja ser o funcionamento
principal e, com isso, o princípio Masculino perderá sua soberania, sendo renegado às
profundezas do inconsciente. Porém, como conseqüência disto, não haveria
desenvolvimento, pois o Masculino e o Feminino ainda estarão baseados em uma relação
de poder e submissão numa reprodução do dinamismo patriarcal.

109
Arthur sai à procura do feminino reprimido e busca Gromer Somer Joure por
lugares úmidos – o que me remete ao inconsciente. Por isso, me atrevo a dizer que Gromer
poderia ser a personificação de aspectos da sombra coletiva, já que a sombra contém os
conteúdos reprimidos pela sociedade patriarcal. Esses conteúdos são projetados, o que
explicaria o fato de Gromer e Arthur serem personagens diferentes: Arthur simbolizando a
perfeição patriarcal e Gromer simbolizando aspectos do Feminino reprimido.

Arthur e Gromer se encontram e, primeiramente, o rei fornece os livros na tentativa


de salvar seu amigo, mas a resposta correta não está nos livros, mas na busca interna do
próprio rei; então ele se vê obrigado a dar a resposta fornecida por Ragnell.

Jour revela que o rei havia retirado suas terras que foram para as mãos de Gawain e
por isso queria vingar-se. Assim, Gromer Somer Joure se desvela como símbolo dos
aspectos do Feminino que fora reprimido, assim como Dionísio que foi reprimido para que
Apolo pudesse emergir no desenvolvimento da consciência mitológica 19 . Gromer foi
destituído de suas terras o que significa dizer que ele fora reprimido e desapropriado de seu
poder em prol do patriarcado, já que na nossa cultura patriarcal, algumas características do
Feminino não são aceitáveis, como afirma Whitmont (2006) 20 “não é espírito mas natureza,
o mundo da formação, o ventre escuro da natureza que dá à luz os impulsos, os anseios e
instintos e a sexualidade; ele é visto no simbolismo da Terra e da Lua, da escuridão e do
espaço; é negativo, indiferenciado e coletivo” (WHITMONT, 2006: 154) e, por isso, esses
conteúdos são reprimidos e se tornam conteúdos separados da persona (que representa uma
aparência referente ao desempenho de papéis na sociedade).

Jour fica bravo pois o rei trouxe a resposta e afirma: “É minha irmã, dona Ragnell,
aquela velha bruxa; cubra-a Deus de vergonha, pois se não fosse por ela, ter-vos-ia
subjugado...” Jour e Ragnell são irmãos já que é o princípio Feminino que permeia os dois
personagens. Ragnell sabe que não pode deixar Jour (símbolo do Matriarcal) se sobrepor ao
Rei (símbolo do patriarcal), mas que deve haver uma integração destas forças, porque caso

19
Conforme descrito no capítulo 03.
20
Conforme descrito no capítulo 01.
110
uma se sobreponha a outra, significará que não houve desenvolvimento, e o funcionamento
na alteridade estará cada vez mais longe.

Na alteridade perceberemos que aspectos que não aceitamos, faz parte do outro e
também faz parte de nós e por isso, esses conteúdos não podem ser expulsos sem causar
destruição a nós mesmos. Assim, estamos seguindo para um momento em que a
unilateralidade psicológica está por acabar e deixamos de acreditar que apenas as virtudes
são identificadas com o ideal coletivo, pois “A individualidade única de cada um é seu
destino” (WHITMONT, 1991: 209).

Assim que o rei encontra Ragnell ela diz que quer se casar. A integração dos
princípios Masculino-Feminino deve acontecer, caso contrário, o processo de individuação
não poderá seguir seu caminho. Mas Ragnell pede um casamento público já que durante
anos ficou renegada ao privado, assim como tantas mulheres nos séculos passados e no
atual. Ragnell quer reconhecimento da possibilidade de escolher por sua própria vida, por
isso, Ragnell quer um casamento em que todos compareçam com missa e jantar,
compartilhando com os outros esta união: o princípio Feminino quer (e precisa) integrar o
animus.

Gawain não reluta em casar-se com ela, apesar de todos no castelo ficarem
horrorizados com sua feiúra. É importante ressaltar que os rituais facilitam os processos de
transformação em que algo deve morrer para que uma nova dinâmica possa nascer. No
ritual, os indivíduos em foco são acompanhados pelas pessoas significativas, que os acolhe,
validando esse novo passo rumo à mudança, como ocorre no processo de luto, no batizado,
casamento, etc. Porém, neste casamento, Gawain, encarnando o arquétipo do animus, busca
apenas honrar sua palavra não entrando em contato com seus desejos. Podemos pontuar que
é muito difícil aceitar as transformações – sejam elas impostas ou transformações
conscientemente escolhidas – pois elas sempre carregam uma sensação de perda, que é
inerente às vivências da vida.

O casamento acontece!! Finalmente os princípios Feminino e Masculino têm os


caminhos abertos para buscar a integração, mas os aspectos do Feminino continuam
111
agressivos na figura de Ragnell com seus dentes de animais selvagens comendo vorazmente
pedaços de carne, o que mostra que ainda não foi integrado e, por isso, sua agressividade
ainda causa repulsa aos que estão acostumados com valores patriarcais, perante os quais a
figura feminina normalmente é banhada de passividade e delicadeza. Todos sentem pena de
Gawain, mas Ragnell continua a comer sem se importar, afinal, o Feminino sabe que
precisa buscar esta integração.

A noite chega e, portanto, Gawain adentra ao inconsciente, mas não consegue se


aproximar da horrorosa esposa; mas a integração deve ser feita e por isso, Ragnell quer
buscar o que lhe é de direito, isto é, quer ter sua noite de núpcias com o cavaleiro. Porém,
percebe a dificuldade de Gawain em aceitá-la e, por isso, ela evoca aos valores patriarcais
que o cavaleiro conhece bem (consideração ao rei Arthur) e pede apenas um beijo, pois é
um símbolo de união (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2008: 127). Gawain responde a
esse pedido, pois o animus precisa ser integrado e logo que aceitou esta nova realidade
psíquica, se deparou com uma bela donzela, já que não há mais repressão, e sim integração.

Além disso, beleza/feiúra e jovialidade/velhice são polaridades que devem ser


integradas e vivenciadas. Whitmont (1991) 21 relata que o poder da Deusa engloba a
totalidade.

Ela é ao mesmo tempo mãe e filha, donzela, virgem, meretriz e bruxa. É a


senhora das estrelas e dos céus, a beleza da natureza, o útero gerador, o
poder nutriente da terra, da fertilidade, a provedora de todas as
necessidades, e também o poder da morte e o horror de decadência e da
aniquilação (WHITMONT, 1991: 60).

Assim, a discriminação entre essas polaridades com a exaltação do jovem e belo é


derivada da consciência patriarcal (que não só cinde como também valora), e para que estes
conteúdos sejam integrados à consciência devem ser vivenciados em sua totalidade, não
mais apenas em uma das polaridades.

21
Conforme descrito no capítulo 03.
112
Ragnell havia se afastado da força do animus para se adequar aos estereótipos
femininos, mas ela busca a integração, deixando de ser monstra para se tornar uma donzela.

Quando menos os impulsos do ego são individualizados na experiência real,


mais compulsivos e poderosos eles se tornam no animus; quanto mais a
mulher sente que tem que ser habitual e estereotipadamente passiva e
submissa, mais provável é que seu animus seja compulsivamente hostil
(WHITMONT, 2006:188).

Ao ocorrer a integração do animus, ele não será mais visto como uma força a
reprimir, o que o deixava inconscientemente hostil e portanto incontrolável, pois não
entrava em contato com o ego (Ragnell feia). Porém, o animus foi integrado de forma
apropriada e assim, a mulher percebe que pode ser ela mesma (Ragnell bela), mesmo
vivendo em uma sociedade em que a mulher muitas vezes é vista a partir de estereótipos.

Porém, Ragnell explica que sua beleza não é permanente. Assim, Gawain deverá
escolher se a quer bela durante o dia ou durante a noite. Podemos entender este momento
de duas formas: o dia seria símbolo de público (quando Ragnell estiver inserida no âmbito
social) e noite seria símbolo de privado (âmbito doméstico). Ao pensarmos na mulher
contemporânea, Gawain deve escolher se sua esposa terá chance de ter uma vida pública,
como ter uma vida profissional, por exemplo, ou se ficará em casa apenas atuando na vida
privada, isto é nos afazeres domésticos.

Porém, uma segunda compreensão é possível, pois a noite simboliza o inconsciente.


“Como todo símbolo, a noite representa um duplo aspecto, o das trevas onde fermenta o vir
a ser, e o da preparação do dia, de onde brotará a luz da vida” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2008: 640). E o dia simbolizaria a consciência, representando “uma
sucessão regular: nascimento, crescimento, plenitude e declínio da vida” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2008: 336).

Assim, o ego patriarcal deve escolher se a repressão continuará ou se a integração


será possível. De qualquer forma, a escolha simbólica é colocada nas mãos de Gawain que
opta por repassar a decisão para a própria Ragnell: “Querida senhora, que seja como
113
desejais; deixo a escolha em vossas mãos. Meu corpo, meus bens, meu coração e tudo mais
são vossos para que deles façais o que quiserdes; juro-o diante de Deus!”

Com a integração foi possível a emancipação 22 que significa ter um ego fortalecido
que se comprometa com suas próprias escolhas, já que escolher significa ao mesmo tempo
ganho e perda. Por isso, o ato de escolher significa crescimento, pois exercer uma escolha
conscientemente envolve conflito e dor, mas também é uma oportunidade de sermos ativos
em relação à liberdade de que dispomos.

Nesse momento, o ego patriarcal percebe que não dá conta de todas as questões e
por isso, consegue aceitar a integração de forças que antes ele reprimia. Essa integração
quebra o encantamento, pois Ragnell não é mais vista como monstra: os conteúdos já foram
integrados. Gawain e Ragnell têm sua noite de núpcias, sendo que a relação sexual carrega
uma forte simbologia de integração, pois

(...) traz em si ao mesmo tempo o masculino e o feminino, como o Sol e a


Lua, o Yang e o Yin, o espírito e a alma, o fogo e a água, o princípio ativo e
o princípio passivo, o consciente e o inconsciente. (...) simboliza a busca da
unidade, a diminuição da tensão, e a realidade plena do ser (CHEVALIER
& GHEERBRANT, 2008: 127).

Ragnell conta ao companheiro que fora enfeitiçada por sua madrasta. Em um


primeiro momento, pode parecer que a madrasta é uma figura má e sem amor pela filha.
Porém, ao olharmos mais de perto, percebemos que foi esta mãe que permitiu que Ragnell
crescesse e se desenvolvesse: assim, aos olhos de Ragnell sua madrasta é uma mãe má, mas
sabemos que os filhos muitas vezes não compreendem que devem sair do paraíso para
poderem crescer e tomar seu caminho, o que traz implícito poder bancar suas próprias
decisões. Esse desenvolvimento pressupõe e emancipação citada por Jacoby (2007), pois
diz respeito à libertação “dos grilhões internos que foram impostos por atitudes,
preconceitos e tradições amplamente aceitos” (JACOBY, 2007: 123) 23 .

22
Conforme descrito no capítulo 04
23
Conforme descrito no capítulo 04.
114
Ragnell é trabalhada como uma mulher que ainda não havia entrado em contato com
aspectos do logos e por isso não possuía o poder de decisão sobre própria vida e, dessa
forma, sua emancipação ficava prejudicada. Devido à pressão de uma sociedade patriarcal,
muitas mulheres reprimem sua agressividade, não confiando em seus instintos e
possibilidades, o que as tornam afastadas de sua essência. O equilíbrio será alcançado
quando a mulher passar a confiar em si e integrar o animus como (...) um guia para o
autoconhecimento, para uma capacidade de pensamento claro, factual, com relações causais
e uma habilidade para chegar a escolhas conscientes e refletidas” (WHITMONT,
2006:189) 24 .

De qualquer forma, o princípio Feminino precisou ser “enfeitiçado” para crescer e


se desenvolver: apareceu primitivamente em seu aspecto assustador, para surgir em toda a
sua beleza. A donzela jamais apareceria antes da bruxa, afinal, são momentos diferentes do
mesmo princípio. O desenvolvimento da consciência, tanto coletiva quanto individual,
segue caminhos que devem ser respeitados. Não há espaço para vítimas ou culpados (senão
estaríamos trabalhando com o bode expiatório), mas sim para ter a consciência de que esse
desenvolvimento faz parte do processo de individuação.

Gawain e Ragnell se relacionam durante a noite e por isso entendo que a donzela
adentrou ao inconsciente para entrar em contato com o animus que precisava ser integrado.
O animus é um arquétipo transformador 25 , mas precisa estar ligado ao ego em um processo
dialético e não em obediência cega, pois só assim o auto-conhecimento é alcançado e as
escolhas podem ser feitas de forma mais assertiva.

Durante o dia (tomada de consciência), Gawain desperta e mostra a todos esta linda
mulher que simboliza, junto com ele, a integração de aspectos do Feminino e do Masculino,
pois na Psicologia Analítica nada é excluído, mas os conteúdos se transformam em direção
ao desenvolvimento da personalidade.

24
Conforme descrito no capítulo 04.
25
Conforme descrito no capítulo 01.
115
CONCLUSÃO

A Psicologia Analítica nomeou como processo de individuação o desenvolvimento


psicológico que é inerente à vida para nos tornarmos aquilo que realmente somos; por isso,
a Psicologia Analítica muito tem feito para compreender as Relações de Gênero e o
impacto que a sociedade contemporânea produz nos seres humanos e nas relações que os
permeiam, afinal não existe desenvolvimento sozinho, mas necessitamos da interação com
o outro para nos desenvolvermos.

Neste trabalho entramos em contato com um paradoxo: No âmbito coletivo,


percebemos que aspectos do feminino foram reprimidos para o inconsciente. Assim, ao
compreendermos o desenvolvimento da consciência, percebemos que alguns aspectos
emergiram à consciência em detrimento de outros. No caso deste trabalho, percebemos que
características patriarcais como: discriminação, força, raciocínio, impulsividade, calor, luz,
luta, destruição, poder de penetração, disciplina, separação e individualização foram aceitas
em detrimento de características femininas como receptividade, retração, frio, umidade,
escuridão, envolvimento, anseios, instintos, sexualidade, indiferenciação e coletividade
(Whitmont, 2006).

Por outro lado, se olharmos no âmbito individual, perceberemos que as mulheres


precisam integrar os aspectos do animus para fazer escolhas de forma consciente, pois elas
têm conquistado cada vez mais espaço na sociedade, mas percebemos, por sua trajetória
histórica, que nem sempre foi assim; porém, cada vez mais, isso vem mudando, o que
significa dizer que presenciamos em nosso cotidiano a quebra de barreiras entre o espaço
público e privado. Inicialmente a mulher não era vista como cidadã, mas um ser inferior e
que apenas cuidava dos afazeres domésticos, sendo reconhecida unicamente por suas ações
no espaço privado, enquanto que o homem dominava os espaços públicos. Lugar de mulher
não era na rua, mas dentro de casa e, por isso, ela se transformou na “rainha do lar”. Porém,
116
o tempo passou, muitas coisas mudaram e esta polarização foi suavizada (mas ainda não
extinta). Os homens, que antes eram reconhecidos apenas por sua masculinidade (expressa
como força, objetividade, determinação e até insensibilidade), já podem descobrir novas
formas de ser. Já as mulheres não precisam mais ser escondidas dentro de casa e podem
apresentar ao mundo suas características arquetípicas que têm muito a oferecer em uma
sociedade individualista e que apenas reconhece o sucesso e o acúmulo de bens materiais.

Assim, ao pensar a mulher contemporânea, devemos ter em mente a complexidade


do tema, pois ela está inserida neste paradoxo. A possibilidade de escolha que ela detém
hoje depende não só do processo de individuação de cada mulher, mas também do processo
de desenvolvimento da psique coletiva. Estamos vivendo uma quebra da hegemonia
patriarcal e apesar de não sabemos para onde vai a nossa civilização, podemos perceber que
está havendo um resgate de valores matriarcais que estão aos poucos sendo trazidos do
inconsciente para emergir novamente em nossa consciência, para enfim, atingirmos a
alteridade.

Esta integração é de extrema importância para as mulheres, para que se sintam


preparadas para demonstrarem seu potencial antes não valorizado; para os homens para que
possam expressar sua masculinidade de várias maneiras e para a humanidade como um
todo, que poderá viver novas formas de relação, com respeito também à natureza.

Ao conquistarmos o acesso à esfera pública, também conseguimos conquistar a


possibilidade de escolher: antes, a mulher não podia escolher seu parceiro, pois o
casamento era visto como um negócio e assim a mulher era colocada em uma posição de
troca de bens e acordos entre famílias. Também não possuía trabalho, pois as tarefas
domésticas nunca foram consideradas trabalho de fato. E muitas vezes, a mulher era
desvalorizada por ser considerada inferior ao homem, e por isso, muitas vezes ela passava
também a se desvalorizar por introjetar essa inferioridade.

Atualmente, a mulher que antes ficava em casa, pôde adentrar no mercado de


trabalho, inicialmente ocupando postos que remetessem aos dotes maternais. Hoje a mulher
escolhe seus namorados e maridos (e também se quer ou não se casar), além disso, tem
117
portas abertas em todas as profissões e universidades, além de ter conquistado o direito ao
voto e a ser considerada cidadã, assim como o homem. Entretanto, as desigualdades de
gênero persistem, articulando-se a outras, como as de raça, idade, nível sócio-econômico,
etc.

Fazer escolhas pressupõe que a mulher saiba seu lugar no mundo e aonde quer
chegar e foi exatamente isso que a vivência patriarcal proporcionou, pois deu a todos nós,
homens e mulheres, um ego discriminador. Atualmente, fazer escolhas faz parte da vida de
qualquer mulher, afinal, mesmo não escolher nada já é uma escolha por si só. Porém, a
escolha deve ser feita de forma consciente, caso contrário, gerará sofrimento e angústia,
pois ego deve bancar esta decisão com segurança; assim, um ego fortalecido é
imprescindível para amparar o ato de escolher e é por isso, que o animus deve ser
conscientizado e integrado, a sombra deve ser recolhida, as condutas cristalizadas pela
rigidez do ego devem ser revistas, pois conforme vimos no mito, o ego patriarcal ao
perceber que não dá conta de todas as questões, abre espaço para outras possibilidades
emergirem. Assim, qualquer escolha será vivida com sofrimento gerando inseguranças ou
frustrações, afinal o ego inseguro fica no meio dos fenômenos externos (referentes ao papel
social da mulher) e internos (referentes aos desejos e os chamados internos para a vida).

Ao utilizar o mito O CASAMENTO DE SIR GAWAIN E DONA RAGNELL


busquei compreender o desenvolvimento psíquico da mulher para que ela consiga fazer
suas escolhas, pois não basta poder escolher, mas a opção deve ser feita de forma
consciente, o que significa possuir um certo auto-conhecimento e conhecimento do mundo
que a cerca; dessa forma, utilizei o mito para compreender que, para se tornar consciente do
seu lugar do universo, a mulher precisa entrar em contato com as potencialidades que antes
reprimia e encontrar novas vias de expressão.

Porém, ao mesmo tempo em que a mulher deve confiar em seus instintos


primordiais para se desenvolver, ela vive em uma sociedade que, muitas vezes, não enxerga
valor nessas características, e por isso, o conflito se instala. Quando a mulher renuncia a si
mesma, ela impede seu desenvolvimento, pois o auto-conhecimento pressupõe conhecer a

118
própria sombra e recolher todo o conteúdo que seu ego patriarcal tenta esconder em prol de
uma persona aceitável. Mas isso está mudando: percebe-se que a mulher está cada vez mais
buscando respostas para seus enigmas mais profundos, mas muitas vezes elas têm buscado
no externo, como por exemplo, nos livros auto-ajuda, os conteúdos que elas deveriam
procurar em si mesmas; dessa forma, percebemos que muitas vezes, as mulheres ainda não
sabem onde encontrar as respostas que tanto procuram.

Como o mito carrega conteúdos arquetípicos, posso concluir que a mulher luta com
as armas que possui para sobreviver; no caso do mito, Ragnell fez o que pode para se casar
com Gawain e conseguir fazer emergir este aspecto para viver de forma mais integrada Esta
integração Feminino-Masculino estimula o desejo de união, pois não podemos nos
desenvolver sozinhos, mas nos desenvolvemos com o sexo oposto, o que revela que não há
possibilidade do Feminino se desenvolver sem lidar com o princípio Masculino e vice-
versa; por isso o arquétipo anima(us) é um arquétipo transformador, mas tanto o ego quanto
a anima(us) devem estar em um movimento dialético, pois se houver obediência cega de
uma das partes, não há desenvolvimento, mas subordinação de aspectos importantes que
devem ser integrados à consciência.

Simbolicamente, Ragnell se casa com Gawain, o que significa que a mulher deve
estar em contato com o animus para que a consiga fazer escolhas para que sua autonomia
seja possível. Se a mulher não entrar com contato com o animus, haverá perda do potencial
do ego, o que significa dizer que a mulher terá um ego inseguro e que será dominado pelo
animus, afinal, apenas quando “(...) ela se torna consciente do seu próprio animus pode
começar a lutar por um relacionamento do tipo “eu-tu” ” (WHITMONT, 2006:182).

A bruxa precisou aparecer antes da donzela, e por isso, pudemos perceber que são
momentos diferentes do mesmo aspecto e, deste modo, o desenvolvimento da consciência,
tanto coletiva quanto individual, segue caminhos que precisam ser respeitados, pois esta
trajetória diz respeito ao processo de individuação de cada um de nós.

Para a mulher contemporânea, o ato de escolher é algo inerente à vida, mas a mulher
deve se perceber diferente do homem no que diz respeito a ouvir seu chamado interno e por
119
isso, formas masculinas de decisão devem ser repensadas para que possam emergir novas
maneiras, que integrem o Masculino ao Feminino, tanto no âmbito coletivo, quanto no
individual.

Em suma, precisamos crescer para podermos escolher, pois a escolha envolve


conflito e dor, porém é uma oportunidade de vivenciarmos a liberdade que possuímos.
Precisamos ultrapassar barreiras sociais, mas também barreiras internas para conseguirmos
nos transformar. Com a análise desta pesquisa, percebemos como é difícil mudar os nossos
comportamentos cotidianos que estão tão cristalizados, mas as reflexões deste trabalho nos
mostram que a transformação não só é possível, mas extremamente necessária e bem-vinda.

120
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como mulher, fui mobilizada pelo tema, pois revela aspectos arquetípicos e,
portanto, também diz respeito a mim, pois estou em um momento de vida em que escolhas
profissionais e pessoais devem ser feitas.

Assim como eu, atualmente, as mulheres se deparam com aspectos sociais


específicos relativos à modernidade, como: a rapidez das transformações, o individualismo,
o narcisismo, o imediatismo, a valorização do prazer imediato e a desconsideração do
sacrifício. Em meio a todas estas questões, a mulher deve lidar com seus conteúdos
arquetípicos que estão presentes em todas as culturas e em qualquer tempo, mesmo que não
valorizadas, esta energia está presente e a mulher precisará lidar com isso.

É por isso que esta pesquisa é pertinente, pois contribui para a atualização do tema,
pois a mulher contemporânea está imersa em seu momento histórico e, assim, mais
pesquisas com diferentes articulações devem continuar sendo realizadas em uma época em
que as informações mudam com extrema rapidez pedindo constantes diálogos entre a
realidade cotidiana e as teorias. Além disso, a pesquisa também pode contribuir para a
clínica psicológica, ajudando na compreensão da inter-relação entre os aspectos da
subjetividade, os aspectos sociais e os arquetípicos na construção do Feminino e suas
vivências e escolhas, quando o Feminino se encontra em meio as antigas e novas formas se
ser e agir, o que ressoa em suas escolhas cotidianas. Além disso, não podemos esquecer da
importância da promoção de saúde, no que diz respeito à atuação no contexto social para
facilitar um desenvolvimento mais saudável das pessoas e suas relações.

Esta pesquisa foi um trabalho de dois anos que foi finalizada por uma imposição de
tempo ao final da graduação, mas não significa dizer que o assunto foi esgotado, que
respondo a todas as questões relativas ao processo de escolha da mulher contemporânea e

121
nem que meu interesse pelo tema acaba aqui. Mas como meu foco de interesse revela,
também tive que fazer escolhas e, portanto, meu tema foi delineado em busca das
possibilidades de escolha da mulher contemporânea e seus significados; porém, ao final
desta pesquisa, muitos desdobramentos surgiram, que acredito serem importantes para
continuação deste estudo; por exemplo, a retomada do mito para diferentes análises da
própria Ragnell, pois não podemos esquecer que o mito é universal e outras análises são
possíveis, ou ainda, como o homem lida com a possibilidade de escolha da mulher e
também como as transmissões geracionais de comportamentos socialmente aceitos geram
dificuldades ou facilidades no que diz respeito ao crescimento nas relações interpessoais
nas gerações que se seguem.

Posso dizer que mergulhei por dois anos a fundo no “mundo do Feminino” e me
instrumentalizei tanto para a minha vida pessoal, quanto para minha vida profissional.
Fazer esta pesquisa foi extremamente gratificante e espero, dentre em breve, publicar novos
trabalhos.

122
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