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Sonu Shamdasani
(1990)
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Confirmação extremamente valiosa... alcançou-me em 1918 através de
um colega americano que tratava Miss Miller de distúrbio
esquizofrênico iniciado após uma curta temporada na Europa. Ele me
escreveu dizendo que até mesmo seu conhecimento pessoal da paciente
não lhe havia ensinado “nem um tiquinho a mais” sobre sua
mentalidade. Esta confirmação levou-me a concluir que minhas
reconstruções sobre os processos semi-conscientes e inconscientes da
fantasia tinham evidentemente sido acertadas em todos os seus aspectos
essenciais.
É espantoso que Frank Miller, como que enterrada sob a avalanche da erupção
violenta do(s) texto(s), não tenha sido significativa em nenhum estudo até hoje -
apesar de ela ter provocado o mais longo estudo de caso e o “Portrait of a Lady”
das obras completas de Jung. Será que estamos visualizando a figura de Frank
Miller como um mero acessório adornando o corpo do texto - um lenço, uma meia-
fina, uma capa ou um perfume duradouro - que não merece considerações mais
sérias? Teríamos perdido a Ariadne de Jung, que o guiou através do labirinto?
Aqueles de nós envolvidos na aventura junguiana tivemos as figuras de nossas
vidas moldadas e modeladas segundo a “Imago Miller” de Jung, visto que usamos
ou temos usado o mito da heróica batalha da libertação da Mãe que Jung elaborou
a partir das criações de Frank Miller. Nossas vidas têm sido uma “Imitatio” da
forma como ele elaborou o caso dela, uma elaboração imitativa da luta dela contra
o domínio das Mães, da sua Jornada Noturna pelo Mar e tentativa de Renascimento
- uma atuação (‘acting-out’) do(s) texto(s). Assim, uma imagem machucada ou
mal-vestida de Frank Miller pode ter tido um efeito terrível na psique junguiana,
como muitas vezes Jung afirmou acontecer com figuras pobremente imaginadas.
Para abordar este tópico, devemos nos voltar para o Seminário de 1925 de Jung,
onde candidamente ele falou do papel central dela em sua imaginação.
Jung disse que, no meio de seus estudos mitológicos, deparou-se com as
fantasias de Miller, que atuaram como um catalisador de todo o material que ele
havia coletado, e que em Frank Miller ele viu alguém que tinha fantasias
mitológicas como ele próprio. Ele conta como se passaram vários anos até que
pudesse enxergar através da fantasia de objetividade com a qual ele havia escrito o
livro, e concluir que o livro descrevia seus processos inconscientes, sobre os quais
deu o seguinte depoimento:
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uma função da qual eu estava muito pouco consciente. Em minha
consciência eu era um pensador ativo, acostumado a submeter meus
pensamentos à mais rigorosa forma de direção; portanto, a fantasia era
para mim um processo mental verdadeiramente repulsivo. Como uma
forma de pensamento, eu a considerava totalmente impura, um tipo de
relação incestuosa totalmente imoral sob o ponto de vista intelectual...
Chocava-me pensar na possibilidade de uma vida fantasiosa em minha
própria mente... e minha resistência a isso era tão grande que apenas
admitia este fato em mim mesmo através da projeção de meu material
sobre o de Miss Miller. Ou, em termos mais fortes, o pensamento
passivo me parecia de tal forma uma coisa fraca e pervertida, que só
conseguia lidar com ele através de uma mulher doente. De fato,
posteriormente Miss Miller tornou-se completamente insana... Tive que
me dar conta então que em Miss Miller eu analisava minha própria
função fantasiosa que, por ter sido tão reprimida, era semi-mórbida
como a dela.
Posteriormente Jung acrescenta: “Um dos fatores mais importantes foi eu ter
elaborado a morbidez de Miss Miller em mitos de uma forma satisfatória para
mim; assim eu assimilei o meu lado Miller, o que me fez muito bem”.
Nesta passagem crucial, Jung afirma que, naquele tempo, Frank Miller era sua
anima, e que foi através dessa projeção que suas conclusões a respeito da
autonomia da fantasia puderam surgir. Surpreendentemente, a declaração de Jung
de que Frank Miller era sua anima naquele momento crucial não foi levada em
conta em nenhum estudo de seu trabalho. Repetindo, Jung não diz que a figura de
anima através da qual ele percebeu a autonomia da fantasia foi Toni Wolff, Sabina
Spielrein, Emma Jung ou Maria Moltzer, mas sim Frank Miller, e que era ela a
diretora de cena de sua fantasia.
É estranho que a descrição de Jung sobre o seu afastamento do preconceito
contra a fantasia, que tinha como origem uma visão instrumental da razão, tenha
vindo relacionada a um preconceito equivalente contra as mulheres. Jung, que
tanto tinha feito para contrariar a visão da esquizofrenia como processo doentio,
descreve Frank Miller como uma mulher “mórbida”, “doentia” e “perturbada”.
Estaríamos visualizando Frank Miller como um manequim de uma costureira
qualquer, no qual Jung bordou seus elaborados desenhos mitológicos? Até que
ponto tais denominações pertencem corretamente a ela e até que ponto pertencem à
louca anima de Jung? Teve Jung alguma dúvida ética quanto a escrever seu estudo
sobre uma pessoa viva que ele nunca havia encontrado e ao revelar depois o seu
colapso?
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Para começar, a última questão parece de fato ter sido o caso. Em uma nota
de rodapé em Transformations and Symbols of the Libido, que foi omitida da
versão revisada, Jung escreve:
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Libido’ (‘The Way of the Libido’), relatei-lhe muitos anos atrás que a autora desta
narrativa, Miss Miller, era naquele tempo minha paciente no Danvers State
Hospital. Meu diagnóstico, a partir do exame vivo desta pessoa, confirmou
totalmente a análise intuitiva da autora baseada unicamente em seu livreto.
Naquele tempo eu lhe chamei a atenção para este fato”.
Jung pensou que os arquétipos estavam funcionando; ele deu a Fordham carta
branca para contactar Katzenellenbogen e descobrir o que pudesse e chegou até a
querer citar este episódio como prova adicional de sua teoria da sincronicidade.
No curso das investigações conduzidas pelos editores das Obras Reunidas,
seus boletins hospitalares foram recuperados. Katzenellenbogen foi incumbido de
escrever um estudo comparando Frank Miller e o livro de Jung, o que infelizmente
nunca foi feito.
O mais próximo que alcançamos foram lembranças da profunda impressão
que ela causou nele com sua cultura e inteligência, espalhadas nas cartas dele que
consegui recuperar. Além do mais, o material que os editores recuperaram de
Danvers estava incompleto, faltando laudos de internação, correspondências
importantes e um crucial documento ilustrado anunciando as conferências dela.
Uma leitura de seus registros psiquiátricos parece ser interrompida por uma
série de três questões: Qual era seu verdadeiro nome? Estava Jung tão
surpreendentemente correto em sua análise dela? O que mais eles nos revelam
sobre Frank Miller, o grande Ur-case da psicologia junguiana?
As leituras junguianas tomaram o nome Frank Miller como um pseudônimo.
Entretanto, em nenhum lugar do livro original de Jung ou no dela existe alguma
indicação de que seu nome era um logro, exceto talvez pela improbabilidade de
‘uma mulher se chamar Frank’. Significativamente, Jung só afirma que era um
pseudônimo no prefácio à edição de 1924, quando revela o seu colapso.
Nos seus boletins hospitalares, resenhas de suas conferências e em poemas e
ensaios dela que encontrei, seu nome é dado como Frank Miller. Poderia talvez ser
o primeiro nome um apelido para Frances? Localizei sua certidão de nascimento,
que atesta que no dia 11 de julho de 1878 uma criança do sexo feminino nasceu,
filha de Frank e Bessie Miller, na cidade de Mobile, Alabama.
Infelizmente isso não trouxe nenhuma pista sobre seu verdadeiro nome. No
entanto, localizei o censo de 1880 do estado do Alabama que dá seu nome como
— Frank Miller.
Apesar de aparentemente não existir um pseudônimo, sabemos que ela cuidou
de feminilizar seu nome. Quando registrou-se nas Universidades de Berlim,
Genebra e Lausanne para cursos de literatura e filosofia, utilizou o nome de
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Franceska, o que confere uma irredutível duplicidade à sua assinatura. Talvez
devêssemos escrever a partir de agora, Frank/Franceska Miller.
A questão sobre seu verdadeiro nome já começou a agitar o âmbito da
narrativa junguiana tradicional. Agora chegamos na questão de seu colapso, como
relatado a Jung por Katzenellenbogen, que, depois do tratamento cruel que o livro
de Jung sofreu nas mãos dos freudianos, deve ter sido visto de certa forma como
uma defesa.
No diagnóstico lê-se “personalidade psicopática com traços hipomaníacos”. O
histórico da família dela é dado como “ruim”. Ela é descrita como sendo de
“temperamento instável”, “erótica”, “vaidosa” e “inclinada a ser falante”. O
prognóstico dado para a hipomania é “bom” e o dado para a personalidade
psicopática “muito ruim”.
O diagnóstico parece de alguma forma divergir daquilo que fomos levados a
suspeitar. Talvez devêssemos agora olhar para o discurso dela - que perturbações,
alucinações e deformações ele revela? O que a própria Frank Miller tem a dizer
sobre sua situação? Ela afirmou que:
O psiquiatra que a atendeu era nada menos que Charles Ricksher, um antigo
colega de Jung no Burghölzi.
Frank Miller parece estar longe de ser uma maníaca delirante - lúcida, clara e
defendendo seus direitos como mulher, fica indignada, como deveria ficar, por ter
sido colocada contra sua vontade e sem seu conhecimento em um asilo estadual
para doentes mentais. E mais, ela foi liberada depois de apenas uma semana e
levada por uma tia que prometeu enviá-la para um sanatório particular.
Não existem sinais imediatos de que ela tenha passado o resto de sua vida
como uma pessoa abandonada, regredindo em um asilo de loucos.
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O diagnóstico de psicopatia daquele tempo na área de Boston foi estudado por
Elizabeth Lunbeck, em um artigo intitulado “A New Generation of Women:
progressive psychiatrists and the hypersexual female”.
Ela aponta o fato de diagnósticos de psicopatia serem largamente aplicados a
jovens mulheres pioneiras em viver sozinhas nas cidades e em alcançar uma certa
liberdade para gastar e para associar-se com quem quisessem. A expressão
emergente da sexualidade e a independência destas mulheres transgrediam as
normas sociais e foram suficientes para que elas fossem estigmatizadas como
imorais, e portanto internadas. Suas aspirações geralmente eram ridicularizadas
pelos psiquiatras. Os eventos imediatos que conduziram à hospitalização de Frank
Miller fazem parte desse quadro.
A terceira questão — o que mais o material nos diz sobre Frank Miller —
promete modificar radicalmente o modo como a víamos até então. No entanto, ao
invés de apenas olharmos para vida dela como algo que empiricamente
desconfirma a análise de Jung, devemos estar atentos em primeiro lugar à sedução
da questão que enquadra o texto de Jung desta forma. Pois apresentar a questão
empírica coloca a leitura do texto dentro de um par binário de confirmação e
desconfirmação e dramaticamente convida a um desenrolar de seu oposto. Ao
invés de simplesmente colocar a vida dela dentro desses dois papéis, seria muito
mais produtivo deixá-la subverter a dicotomia e explorar as dobras, vincos e pregas
mais sutis entre ela e os textos dele, apresentando novos modelos de relação entre
ambos. Se simplesmente a olharmos como alguém que realça ou ofusca a grandeza
de Jung, nós não estaremos deixando que ela apareça em suas próprias
vestimentas. Tirar de Jung esse fardo permite que estes aspectos remodelem nossa
leitura do seu trabalho.
O limite do meu artigo impede uma consideração mais ampla sobre a vida e a
época em que Frank Miller viveu. Tal consideração requereria atenção para
questões como as circunstâncias relativas às mulheres criadas no Alabama e na
Geórgia depois da derrota do Sul e as de uma americana viajar pela Europa e
Rússia antes da Primeira Grande Guerra e da Revolução Russa. Meu propósito é o
de drapear o resto deste artigo em torno de sua atividade criativa, mostrando-a
primeiro em suas conferências sobre trajes, para em seguida concluir com uma
releitura de seu artigo e da obra de Jung.
Somos privilegiados não somente por ter a figura de Frank Miller pronta e sob
medida para os designs de Flournoy, Jung, Katzenellenbogen e os meus, mas
também como ela própria se apresentou, e isso ‘à la mode’ com que podia ser vista
no seu apogeu.
O folheto de sua conferência inicia-se assim:
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Depois de anos de viagens e estudos no exterior, depois de cuidadosas
pesquisas em bibliotecas famosas e da ajuda de vários homens ilustres,
depois do preparo em seis universidades e faculdades e da experiência
de contribuir com vários periódicos em ambos os lados do Atlântico,
Miss Frank Miller apresenta uma série de três conferências ilustradas
sobre trajes da Rússia, Grécia e Escandinávia, fato que já é notícia em
jornais de cinco diferentes idiomas e que já despertou interesse em
muitos estados do norte dos EUA e do Canadá. A estréia de Miss Miller
foi nada mais nada menos que em uma instituição como a Universidade
de Colúmbia, local onde as apresentações iniciais foram feitas.
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O traje de dama Boyar (ou membro da alta sociedade proprietária de
terras) era em tons cinza claro... vários pingentes de aço cortado
davam-lhe um toque brilhante e um chapéu e uma capa de arminho
belíssima completavam o traje.
Por sugestão de Mr. S.P. Avery e com seu patrocínio, Miss Frank
Miller proferiu a segunda de suas deliciosas “leituras sobre trajes” em
21 de novembro... Foi um excelente apanhado das condições artísticas,
sociais, literárias e políticas da Grécia moderna. A personalidade
artística da conferencista e a qualidade peculiarmente simpática de seus
modos e estilo tornaram a palestra extraordinariamente agradável...
Dentre os presentes estavam Mr. Avery, o cônsul grego, e muitos
membros de projeção da colônia grega de Nova York.
Botassi, o cônsul grego, teve isso a dizer sobre sua presença marcante:
“Minha querida Miss Miller, sua conferência na noite passada sobre a Grécia foi
deliciosa, digo isso sem hesitação; um sucesso. Você manteve seu público
enfeitiçado e não houve um momento sequer em que você não tenha sido muito
interessante... E você estava muito charmosa no seu traje camponês grego. Quanto
a seu traje antigo, só posso dizer que imaginei uma das cariátides da Acrópole
emergindo do Erectheum para nos encantar os olhos...”
Como um aplique em torno do artigo dela, algumas palavras são necessárias
sobre Theodore Flournoy, com quem ela estudou na Universidade de Genebra. A
influência de Flournoy sobre Jung, possivelmente maior que a de Freud, ainda está
para ser adequadamente explorada
. Jung chegou a dizer que foi através de Flournoy e James que ele “aprendeu a
compreender a natureza das perturbações psíquicas, dentro do setting da psique
humana como um todo”.
A edição alemã de Memórias, Sonhos, Reflexões de Jung contém um
entusiasmado tributo a Flournoy: Jung escreve que foi dele que tirou a idéia da
Imaginação Criativa.
A concepção de Flournoy sobre os automatismos teleológicos — impulsos
úteis e gratuitos que preparam para o futuro — antecipou idéias que formam o
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corpo do pensamento junguiano: a autonomia e a teleologia da psique; a natureza
criativa e compensatória do inconsciente; e a sincronicidade.
A obra-prima de Flournoy, From India to the Planet Mars, causou grande
celeuma quando surgiu e incendiou a imaginação viajante dos surrealistas.
Nela, ele apresentou as existências ancestrais e extraterrestres de sua médium,
a quem apelidou de Hélène Smith, como sendo um trabalho da imaginação criativa
subconsciente alimentada por criptomnésias.
Depois do sucesso do livro, Flournoy desistiu de sua médium, que se sentiu
traída com isso; ela exigiu royalties e modificou seu nome para aquele que
Flournoy lhe havia dado.
Os espiritualistas vieram em sua defesa. Em meio a esse cenário explosivo,
surge uma jovem estudante americana: Frank Miller. Ela deu a ele um artigo seu,
baseado em auto-observações, que defendia o trabalho dele contra os
espiritualistas.
A introdução de Flournoy ao trabalho dela é elogiosa e contrasta claramente
com a leitura que Jung fez sobre o “caso” dela. O que Flournoy particularmente
valorizou nela foi a forma pela qual ela lindamente combinou uma sensibilidade
que outros poderiam considerar mediúnica com a inteligência crítica e a habilidade
para introspecção psicológica que tão tristemente faltam aos médiuns. Entretanto,
ele não poderia evitar sonhar com ela na seguinte túnica sacrificial:
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Neste texto, Jung citou pela primeira vez o “Homem do Falo Solar” que, sem
saber, estava representando um ritual mitraico. O Homem do Falo Solar, junto com
outras figuras, carregava em seus ombros o peso e o fardo da prova do
Inconsciente Coletivo. Neste exemplo, descartando o papel da criptomnésia, Jung
argumentou que os traços, ecos, alusões e texturas míticos que se tecem através de
nossas vidas, eram traços ou citações que não surgiam de nenhuma suposta origem
dentro do período de vida de uma pessoa. Para acomodar a presença deles, Jung
recorreu à noção de uma memória coletiva, ou memoria. Portanto, a escolha que
ele faz do artigo dela teve um significado mais que suplementar para seu estudo .
Ele continha não somente as alusões míticas que ele desejava restabelecer,
como também o paradigma explanatório que ele desejava substituir.
Proponho as leituras dos artigos de Jung e Miller conjuntamente, ao invés de
separá-los. Peço perdão aos meus leitores se ofendo os códigos convencionais da
moda, invertendo as roupas de baixo com as de cima, e se minhas leituras parecem,
francamente, trop décolleté (muito decotadas). Desejo chamar a atenção para
certos franzidos e pregas no revestimento que fez a leitura dele do texto dela, os
quais foram engomados e passados a ferro até hoje. Entretanto, ao reler o artigo
dela para uma revisão da obra de Jung, deve-se estar atento para colocá-lo
novamente à serviço da Psicologia Junguiana; tal movimento duplicaria o uso/
usura de Jung do trabalho dela, mesmo no ato de desconstruí-lo.
Primeiramente discutirei seu papel como modelo para ele e os efeitos disso
na audiência dele. No âmago de seu(s) texto(s) está uma reversão da ordem da
mimese. Esta é uma característica que diferencia retoricamente os casos de Freud e
Jung da literatura psiquiátrica anterior. Nesta última, os relatos de caso
anatomizados distanciam os leitores de seus sujeitos. Nos casos paradigmáticos de
Freud e Jung, entretanto, as alegações universais, junto com explicações que
desafiam demarcações claras entre ‘normal’ e ‘patológico’, alteram
consideravelmente os efeitos em seus leitores.
No início de seu(s) texto(s), Jung audaciosamente afirma que “desejava
demonstrar o segredo individual dela como sendo universalmente válido”. Este é o
.
primeiro lugar em que ele faz alegações universais em sua análise de um indivíduo.
Ele pretende claramente mostrar que os complexos que ele revela na análise dela
estão universalmente relacionados. Para muitos leitores, a questão da
referencialidade do(s) texto(s) se transfere da hipótese de ser um retrato impecável
de Frank Miller para a hipótese de ser um reflexo impressionante de nossas
próprias vidas. E mais, através da grandiosa narrativa que oferece para equipar e
vestir a vida de uma pessoa, o(s) texto(s) gera(m) as experiências que delineia(m).
A história do movimento junguiano é em parte a história de como a imaginação de
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Jung sobre a vida de Frank Miller acabou sendo transformada para os outros na
certeza pessoal da experiência revelatória e da iniciação.
No(s) texto(s) de Jung existe uma tensão entre a universalidade e a
singularidade de sua análise. Isto é exemplificado pela mudança no subtítulo. O
subtítulo de Jung de 1912 chama o texto de “A Contribution to the History of the
Evolution of the Thought” (“Uma Contribuição à História da Evolução do
Pensamento”). Seu subtítulo para a versão de 1952 chama-o de “A Study of the
Prodromal Stages of a Case of Schizophrenia” (“Um Estudo dos Estágios
Prodrômicos de um Caso de Esquizofrenia”). De modo significativo, o subtítulo
revisado anuncia antecipadamente a etapa final do livro, a “esquizofrenia” de
Frank Miller. Ele organiza a leitura do livro teleologicamente, o que duplica a
leitura teleológica que Jung faz das suas fantasias como prevendo seu colapso.
Em seu trabalho posterior, Jung articula uma sutil e importante compreensão
da exemplaridade, que é encontrada em The Psychology of the Transference [A
Psicologia da Transferência] (CW 16). Neste texto, Jung novamente utiliza o
motivo do fio de Ariadne para descrever seus exemplos que, neste caso, são as
pranchas do Rosarium Philosophorum. No epílogo, ele afirma:
Isto sugere que se Jung tivesse escolhido outra pessoa que não Frank Miller
como seu modelo, seu retrato sobre o segredo do indivíduo teria tido uma silhueta
diferente. Além disso, Jung aqui crucialmente começa a mover a Psicologia para
além dos limites fechados da paradigmicidade e arquetipologia para abri-la à
infinidade do Outro.
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O que havia em Frank Miller que a tornou o exemplo adequado a projetos
teóricos tão distintos como os de Jung, Flournoy e o meu? É possível evitar definir
exatamente o Outro em termos do padrão de alguém? Como pode-se escapar da
violência ética dos sistemas psicológicos inaugurados a partir de fazer de um Outro
um exemplo e da subsequente manufaturação disso na fabricação de casos? E
como sair da clausura logocêntrica dos escritos históricos governados por um arché
e um telos para comemorar a vida singular de Frank Miller?
Antes de podermos começar a descosturar a leitura de Jung do artigo de Frank
Miller, o editorial da versão de 1952 precisa ser remodelado. O artigo dela foi
publicado nos Archives de Psychologie de 1905, e não de 1906 como é dito. O
prefácio editorial ao apêndice que contém seu artigo diz que, na introdução de
Flournoy, ele “se refere ao material de Miller como uma ‘tradução’; fica evidente
portanto que Miss Miller escreveu suas memórias em inglês, e estas foram
traduzidas (por Flournoy?) para o francês”.
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Quando outros expressam seu desgosto por caviar, que ela gosta muito, ela
experimenta o desgosto ela mesma. Ela não gosta de certos tipo de perfume, mas
quando uma dama usa eau de cologne e fala de seu poder e requinte, ela
experimenta este prazer. Quando ela acompanha uma estória com interesse, ela tem
a experiência de participar dela. Isso acontece especialmente nas peças de Sarah
Bernhardt, Duse e Irving. Esta experiência é ressaltada em momentos onde “o
papel da imaginação é acentuado”. Quando mostraram a ela uma fotografia de um
navio, “a ilusão era de tocante beleza e poder - eu podia sentir a pulsação das
máquinas, o rufar das ondas e o movimento do navio”.
O exemplo seguinte, escreve ela, “coloca a fantasia criativa totalmente em
relevo”. Um dia, no banho, ela amarrou um pano em torno de seu cabelo, que
tomou uma forma cônica. Por um momento parecia a ela “que eu estava num
pedestal, uma verdadeira estátua egípcia,... membros rígidos, um pé na frente do
outro, uma insígnia na mão. Isto foi realmente maravilhoso, e foi com muita pena
que senti esta impressão se desfazendo como se desfaz um arco-íris”.
Esta parte se conclui com o seguinte episódio: um renomado artista desejava
ilustrar suas publicações. Ela escreve que “consegui com sucesso fazer com que ele
retratasse paisagens, como aquelas do Lago Leman, onde ele nunca tinha estado...
e fiz com que ele desenhasse coisas que nunca vira... dei a ele o sentimento de um
ambiente que nunca havia sentido”.
Jung começa sua leitura afirmando que: “Sabemos, a partir de muita
experiência psicanalítica, que sempre que uma pessoa relata suas fantasias ou
sonhos, ela lida não somente com o mais importante e íntimo de seus problemas,
mas com o que é o mais doloroso naquele momento”. Os exemplos que ela cita, ele
considera em bloco como retratando a libido espontaneamente tomando posse de
certas impressões, o que se tornara possível pela falta de adaptação dela à
realidade. Ele lê a epifania egípcia como a revelação de que ela queria ser tão
rígida e tão feita de madeira como uma estátua egípcia. Jung vê o episódio com o
artista como a expressão do efeito quase mágico dela sobre os outros. Ele afirma
que a necessidade de enfatizar isso vem do fato de ela ser alguém que raramente
teve sucesso em causar uma impressão emocional sobre os outros.
Jung parece não sentir nenhuma necessidade de justificar a estranha
afirmativa com a qual ele começa, e isto dá o tom de como ele lerá o artigo dela -
como um paciente em análise. Por meio desse uso figurativo, ele transforma as
fantasias dela em problemas, e ignora completamente os tópicos de seu artigo e o
sussurro de sua retórica. Parte do ganho deste movimento inicial era que ele lhe
permitia se referir à sua própria problemática teórica e clínica como se procedesse
na análise de um ‘paciente’. A durabilidade da análise de Frank Miller feita ‘sob
medida’ por Jung pode ser vista nas análises de alguma forma pret-a-porter que
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esta continua a permear e a embasar. Os déficits dessa estratégia, juntamente com
seu desgaste pelo uso ainda precisam de reflexão.
Os exemplos que ela cita estão todos relacionados com ‘aesthesis’ e servem
para demonstrar a alteridade da imaginação. Dadas as dificuldades sempre citadas
de Jung em relação à arte, sua leitura negativa desta seção não chega a ser uma
surpresa. Enquanto os primeiros exemplos descrevem a receptividade dela ao
advento de tais experiências, eles terminam com a descrição dela dando um
treinamento em tal receptividade a outra pessoa. Em vista de suas conferências
sobre trajes, pode se ver que tal receptividade era o segredo de sua arte, que
permitia a outros serem transportados a lugares que jamais haviam visto, a épocas
em que não haviam vivido, através da sua incorporação e transformação,
totalmente convincentes, nos personagens que retratava.
A epifania da estátua egípcia também pode ser vista em termos de uma
apreciação cultural da beleza das esculturas. O jornal New York World, para o qual
ela contribuía, publicou uma reportagem de uma performance de Charlotte Sully,
que havia recebido um prêmio por suas personificações de estátuas gregas.
As reportagens sobre as conferências de Frank Miller desmentem os
comentários de Jung a respeito da dificuldade dela causar impressões emocionais
em outras pessoas.
Dando uma olhada no estilo de leitura de Jung, percebemos que a posição do
artista que se propôs a ilustrar as publicações dela é justamente o papel para o qual
Jung foi atraído ao realizar sua ilustração analítica de seu artigo. Além disso, sua
habilidade de viver impressões de outros como sendo suas, que ela transmite ao
artista, é precisamente o que acontece a Jung, na medida em que ele é levado a se
colocar no lugar dela e experimentar as experiências dela como sendo suas - o que,
como ele conta no seminário de 1925, levou muitos anos para que ele se desse
conta de que tinha acontecido.
A segunda parte do artigo dela começa com uma descrição de um cruzeiro
marítimo que ela fez, de seu prazer em deixar para trás as cidades de Nova York,
Estocolmo, Odessa e São Pitisburgo para se dirigir rumo ao sul e ser transportada
pela glória do Bósforo e sentir sua alma vibrando no esplendor do passado
ateniense. Ela escreve: “Permaneci por muitas horas sonhando sobre a ponte... a
história, lendas e mitos dos diferentes países vistos à distância vieram a mim
confusamente fundidos numa espécie de névoa luminosa, através da qual coisas
concretas pareciam não mais existir, enquanto sonhos e idéias pareciam a única e
verdadeira realidade”. Ela conta como escreveu uma canção de marinheiro para se
encaixar na melodia de um oficial italiano por quem tinha muita simpatia.
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Ela então descreve um sonho que teve, onde “uma idéia confusa envolvia a
criação e corais poderosos que re-ecoavam através de todo o universo... misturados
com coros de oratórios conduzidos pelas melhores sociedades musicais de Nova
York, com vaga memória do Paraíso Perdido de Milton”. Depois, palavras
surgiram do caos e formaram o seguinte poema:
O que a tocou neste poema foi que, ao contrário da narrativa bíblica, na qual
ela acreditava, ele coloca a criação da luz em segundo lugar, e não em primeiro.
Ela lembra que Anaxágoras também faz o cosmo surgir a partir do caos através do
vento revolto acompanhado de som; mas ela acrescenta que naquele tempo ela não
conhecia nada sobre Anaxágoras ou sobre a doutrina de Leibniz do “dum Deus
calculat fit mundus”. O sonho a faz lembrar do Livro de Jó, da Creation de Haydn,
de um artigo sobre a Idéia criando o objeto, e dos sermões de seu pastor.
Jung vê este episódio como retratando uma introversão, o que na época para
ele tinha uma conotação patológica. Ele tinha seus olhos especialmente voltados
para o cantor. Jung afirma que ela desvaloriza e reprime a impressão erótica, que se
transforma então em um hino religioso. Ele considera seu poema como uma
afetação eticamente sem valor. Ele considera vazias suas tentativas de explicação.
Ele vê o significado deste episódio como análogo aos seus casos de neurose, onde,
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no início, um sonho ocorria antecipando eventos posteriores. Ele afirma que isto
marca para ela o início de um objetivo sublimado de vida.
Na sua passagem inicial, através do movimento em direção ao sul, à Grécia e
Itália e do deleite estético ocasionado por isso, no meio do silêncio, do céu azul e
das ondas, ela teve a epifania daquilo que Jung mais tarde articularia como esse in
anima. Seria essa talvez uma das influências na ontologia madura de Jung?
A maioria das semelhanças que cita com relação a seu poema, ela sugere
como sendo criptomnésias. Entretanto, crucialmente, quando chega a Leibniz e
Anaxágoras, ela afirma não ter tido nenhum contato anterior com as idéias deles.
Estes são exemplos que pré-modelam o corte das figuras exemplares de Jung,
como o Home do Falo Solar. Além disso, a aparição espontânea de idéias
arquetípicas contrárias às noções bíblicas comuns que ela descreve aqui, era um
tema chave da psicologia da religião e da prática em psicoterapia de Jung.
A terceira parte de seu artigo apresenta um poema chamado “The Moth to the
Sun” (“A Mariposa em direção ao Sol”), que surge a ela num estado de semi-
sonho. O poema é este:
O poema causou grande impacto sobre ela, que traçou semelhanças com um
artigo que havia lido comparando a busca do homem por Deus com aquela da
Mariposa pela estrela, uma peça que havia assistido de nome “The Moth and the
Flame” (“A Mariposa e a Chama”), e o ritmo e sentimento das duas últimas linhas
com um poema de Byron.
Comparando este poema crepuscular com seus poemas diurnos e com o
poema anterior, noturno, ela conclui que eles formavam uma série natural, o que
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remove as suspeitas de qualquer “intervenção oculta”, que outros teriam associado
ao poema noturno.
Jung inicia sua leitura desta parte registrando que ela não diz nada a respeito
do intervalo de tempo entre os eventos que relata. Ele conclui a partir disso que
nada de importante teria acontecido neste meio tempo e que o poema está
relacionado com o mesmo complexo anterior. Ele leu o poema dela desta forma:
“Devemos esperar que uma mariposa realmente se dirija ao sol? Conhecemos o
provérbio sobre uma mariposa que voou para a luz e chamuscou suas asas, mas não
a lenda da mariposa que esforçou-se para alcançar o sol. Aqui duas coisas que não
se ajustam conjuntamente estão conectadas no pensamento dela”
. Ele então compara o desejo da mariposa ao desejo de Fausto. Ele vê a mariposa
como a própria Frank Miller. Colocando em forma de narrativa os casos separados,
ele vê o poema retratando um ato de auto-assassinato, seguido da renúncia do
desejo erótico pelo marinheiro italiano.
A obra de Jung nessa época avançou significativamente a concepção de
temporalidade da psicanálise. Todavia, ao manter a noção de um complexo central,
ele continua a encobrir os intervalos temporais do artigo dela. As camadas, alusões
e ênfases são características dos designs retóricos dela, que dificilmente revelam a
nudez de sua vida. Ao ler o tecido dos textos dela como sendo completo e
transparente, Jung reprime sua escrita. Esta anulação forma o impensável do texto
dele e aparece de forma mais aguda nos pontos da narrativa dela que ameaçam a
estrutura do argumento dele. Ele subordina aquilo que está velado àquilo que não
está, de forma que o que está presente é considerado o total sem saldos. Isso
permite a ele levar a sério a noção de que a análise pessoal foi incapaz de ensinar a
Katzenellenbogen “nenhum tiquinho a mais” a respeito de Frank Miller. Na versão
de 1952, o destino posterior dela é simplesmente atrelado à costura final da análise
dele, e lido como pertencendo ao mesmo complexo uniforme. Isto ignora qualquer
evento significativo que possa ter acontecido posteriormente, de modo que o
destino dela é totalmente explicado com antecedência.
Enquanto que uma das intenções dela ao citar este poema é a de expor a
falácia espiritualista dos médiuns, Jung, na leitura do poema, cai em uma falácia
naturalística. James Hillman descreve isto como o “hábito psicológico de comparar
eventos da fantasia com eventos similares da natureza”. Aqui, felizmente, temos
outra leitura do poema dela, por ninguém menos que Gaston Bachelard, em seu
livro The Flame of a Candle (A Chama de uma Vela).
A leitura de Bachelard do poema dela aparece no capítulo chamado “The
Solitude of Candle Dreaming”. Ele escreve que “para um sonhador que sonha alto,
quanto mais simples o incidente, mais extensos são os comentários. C. G. Jung
!18
escreveu um capítulo inteiro para demonstrar esse drama...”. Comentando o poema
dela, ele escreve que “aqui outra vez, a poesia dá a uma ocorrência insignificante o
significado de um destino. O poema aumenta tudo, é em direção ao sol, a chama
das chamas, que o ser minúsculo, por longo tempo enrolado em sua crisálida,
busca o sacrifício supremo, o glorioso sacrifício”. Comentando a comparação que
Jung fez do poema dela com o poema de Goethe, Bachelard escreve que “não
hesitamos em seguir Jung nesta reaproximação que ele faz entre o poema de sua
esquizofrênica e o poema de Goethe, porque auxiliamos esse crescimento da
imagem que é um dos dinamismos mais constantes do devaneio literário. Para nós
ele é um testemunho da dignidade psicológica do devaneio escrito”. Bachelard
completa seu comentário comparando o poema dela ao Divan de Goethe.
Nestas passagens, Bachelard foi o primeiro a reabilitar Frank Miller como
poetiza. Além disso, se seguirmos a leitura feita por ele das amplificações de Jung
(que a essa altura seriam mais corretamente chamadas de associações livres
mitológicas), podemos reavaliar a grandeza da análise de Frank Miller feita por
Jung. Podemos vê-la menos nas especificidades de sua interpretação, do que na
dignidade, peso e seriedade que Jung atribuiu à Psique.
É importante notar que o seu modo de amplificação tem seu ponto de partida
no próprio procedimento dela, que ele cita como justificativa. Muitos dos temas
míticos que ele analisou extensivamente, formam não mais que a bainha do texto
dela, e ele chega a reverenciar sua erudição algumas vezes. Entretanto, enquanto as
comparações míticas de Jung formam pregas volumosas, as de Frank Miller são
sempre estreitas.
A seção final, a pièce de résistance de sua coleção, começa retratando seu
humor receptivo e devoto uma tarde. Imagens começaram a surgir, tais como
espirais inflamadas, e uma esfinge num cenário egípcio. Daí um poderoso drama se
desenrola, próximo a uma cidade de sonhos, estrelado por uma figura asteca de
nome Chiwantopel.
Enquanto Chiwantopel surge de uma floresta, um índio com pele de cervo se
aproxima, preparando-se para lançar uma flecha contra ele. Mas Chiwantopel
expõe seu peito desafiadoramente e o índio se afasta.
Chiwantopel começa a falar, contando sobre suas andanças desde que deixou
o palácio de seu pai, indo atrás de um louco desejo de encontrar “ela que irá
compreender”. Ele revê as mulheres que já conhecia - Chi-ta, Ta-nam e Ka-ma - e
lamenta: “Ninguém que me entende, não há nenhuma parecida comigo, nenhuma
alma gêmea à minha”.
Ele imagina se haverá algum dia alguém que conhecerá sua alma e exclama:
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Sim! Mas dez mil luas nascerão e minguarão antes que nasça sua alma
pura. E de um outro mundo virão seus pais a este aqui. O sofrimento a
acompanhará: ela também procurará e não encontrará quem a
compreenda... Em seus sonhos eu virei a ela, e ela compreenderá.
Conservei meu corpo inviolado. Eu vim dez mil luas antes dela e ela
virá dez mil luas tarde demais. Mas ela compreenderá. É só uma vez a
cada dez mil luas que nasce uma alma como a dela!
Uma víbora aparece, ataca-o e a seu cavalo, que morre. Ele presta as últimas
homenagens ao cavalo e agradece à serpente por ter posto um fim à sua
peregrinação. Acontece um terremoto e Chiwantopel grita quando seu corpo é
tragado: “Eu tenho preservado meu corpo inviolado. Ah! Mas ela entenderá! Ja-ni-
wa-ma, Ja-ni-wa-ma, tu entenderás”.
Ela inicia seus comentários sugerindo que a fantasia poderia talvez ser
transformada em um melodrama de um ato. Ela encontra possíveis fontes para seu
romance na história dos incas e Pizarro no Peru, em roupas indígenas, em Julio
Caesar de Shakespeare, nas partidas de Buda e Rasselas, no desejo de Sigfried por
Brunhilde, em uma palestra sobre “The Inviolate Personality” e na paisagem do
Vesúvio - esboçando desta forma conjuntamente sua cidade dos sonhos, a cidade
do Imaginal e a vida efervescente de Nova York. Ela conclui com a esperança de
que suas observações possam ajudar outros que também estejam confusos sobre
casos similares e que possam contribuir para elucidar o fenômeno mediúnico.
Jung lê suas descrições iniciais como indicando uma tendência a desdenhar de
soluções reais e preferir substitutos fantásticos. Ele toma o cenário antigo como
indicador da natureza infantil da fantasia; ele vê Chiwantopel relacionado ao ânus,
lendo sua origem como um nascimento pela via anal. Ele vê Chiwantopel como
sendo a personalidade infantil dela, ainda incapaz de compreender que devemos
nos separar de mãe e pai. Ja-ni-wa-ma, a alma-irmã que Chiwantopel deseja
encontrar, ele vê como uma corrupção da “Mama”. Jung continua a leitura da
fantasia dela prospectivamente, aos moldes do automatismo teleológico de
Flournoy, como apontado por John Kerr. Jung vê a fantasia como uma mensagem a
Frank Miller, implorando para que ela desista de seu infantilismo. Ele afirma que
isso não chama a atenção dela. John Kerr nota que, ao retratar o “triunfo regressivo
dos desejos incestuosos dela” por sua mãe, Jung estava de fato prevendo o ataque
de insanidade. Isto posto, vemos como a notícia de Katzenellenbogen teria chegado
a Jung como uma defesa de seu livro.
!20
Jung também estava predisposto a escutá-la como um caso de Esquizofrenia,
já que as pesquisas que culminaram em Transformations and Symbols of the Libido
estavam lidando fundamentalmente com a relação entre esquizofrenia e mitologia.
No seu protótipo de 1912, a presença do material arcaico ou mitológico por si só
foi suficiente para indicar aquela condição. Na época em que ele veio a remodelar
o texto, sua visão tinha se alterado. A patologia dependia agora da atitude da
consciência em relação a tais fenômenos. Esta alteração acarretou retoricamente
uma leitura diferente do suposto colapso dela. Muitas passagens curiosamente
depreciativas foram costuradas à edição de 1952, onde Jung verdadeiramente dá a
ela uma severa reprimenda. Ela é vista como não tendo “nenhuma idéia do que
estava acontecendo”. A participação dela no drama de Chiwantopel é vista como
“sem nenhum significado ético”. Ela é descrita como emocionalmente ingênua e
possuidora de um “estreito horizonte moral”. A passagem seguinte é significativa.
Jung escreve: “Dificilmente deve-se supor que Miss Miller, que evidentemente não
possuía a menor idéia do significado real de suas visões - que até Theodore
Flournoy, apesar de sua sensibilidade acurada para valores, não pode fazer nada
para explicar - seria capaz de encarar a próxima fase do processo, isto é, a
assimilação do herói por sua personalidade consciente, com a atitude correta”.
Estando impossibilitada de compreender suas visões, ela evidentemente estava em
ilustre companhia. (Flournoy tentou, no entanto, explicar suas visões na introdução
que fez a seu artigo.)
A análise de Frank Miller feita por Jung foi a primeira mostra do seu conceito
de teleologia, particularmente em sua aplicação a um caso individual. O método
construtivo, ele argumentava na época, proporciona uma saída para as limitações
das interpretações redutivas e causais. Este foi um de seus grandes avanços.
Entretanto, ao literalizar o telos num prognóstico clínico, como ele faz em sua
leitura do drama de Chiwantopel, e ao especificar as relações entre eventos futuros
e fantasias de modo tão inequívoco quanto os modelos dos quais pretende escapar,
a alteridade do futuro como imprevisível e desconhecido é excluída. O súbito e o
espontâneo são incluídos na costura do conhecido.
Toda a segunda parte do(s) texto(s) de Jung, que às vezes ele dizia ter sido
responsável pela quebra final de sua relação com Freud, era dedicada à explicação
do drama de Chiwantopel. Talvez não seja arbitrário que esta tenha sido a primeira
explicação de Jung de uma imaginação ativa. Nas pesquisas de Frank Miller sobre
o imaginal, via imaginação ativa, teria ela atuado no papel de anima inspiratrice
para Jung, naquilo que ele chamava ser seu confronto com o inconsciente?
As descrições de Jung sobre a imaginação ativa são geralmente seguidas por
alertas a respeito dos perigos da psicose, particularmente em casos de
esquizofrenia latente. Isto reflete sua leitura da imaginação ativa dela e sua
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descrição de seu suposto colapso esquizofrênico. Na versão de 1912, o início da
fantasia dela é visto como demarcando uma perigosa introversão. Na versão de
1952, a cobra verde que aparece é vista retrospectivamente como significando sua
psicose latente. Olhando para esse conjunto, ele sugere que a oscilação e
compreensão das leituras dele sobre as fantasias dela pertencem a seu método
retórico de instrução, ao invés de terem um referencial importante no destino dela.
A esquizofrenia, na versão de 1952, é uma figura de linguagem retórica, servindo
para mostrar o destino e a fatalidade da relação de alguém com o imaginal.
A introdução de Jung ao(s) texto(s) começa pela descrição da profunda
impressão causada sobre qualquer um que possa ler apropriadamente a passagem
de The Interpretation of Dreams (A Interpretação dos Sonhos) onde Freud mostra
que a fantasia do incesto está na raiz da lenda de Édipo. Para Jung, este insight
abre não somente a possibilidade de um entendimento da antigüidade; ele também
oferece um ponto de referência para entender nossa própria cultura. A visão de
Jung da mútua iluminação da antigüidade e da modernidade faz paralelo com o
drama de Chiwantopel e Janiwama, sonhando um com o outro através dos séculos
e finalmente encontrando a compreensão um no outro. O livro todo de Jung
elabora mimeticamente esta fantasia. Além disso, a visão de Jung da rediviva do
mundo antigo também espelha algumas reações contemporâneas às conferências
dela. Como citado anteriormente, Botassi pensava estar vendo uma das cariátides
da Acrópole surgir. Naquele tempo, para Jung, a esquizofrenia consistia no
afrouxamento das camadas históricas do inconsciente; este afrouxamento é uma
das maneiras de ver o que Frank Miller fazia em suas performances, embora de um
modo bastante diferente de uma regressão esquizofrênica. Pode-se imaginar que
brilho teriam acrescentado aos trabalhos de Jung se ele pudesse tê-las assistido.
Finalmente, ao escrever seus estudos em torno de um conjunto de sonhos,
fantasias e imaginações ativas, em vez de em torno de anamneses da infância, ela
forneceu a Jung uma antevisão daquilo que se tornou seu estilo predominante de
material de caso, até na sua autobiografia. Assim, embora eu tenha mostrado que o
artigo dela foi negligenciado no texto dele, ele não deixou de ter efeitos
significativos na forma como Jung elaborou sua obra.
No final de seu artigo, Frank Miller afirma que por algum tempo andou a
procura de uma idéia original. Não sei se ela a encontrou, ou onde suas pesquisas
imaginais a levaram. Talvez ela tenha lido a análise que Jung fez a seu respeito, o
que, em vista do meio em que ela circulava, é muito provável. Espero pelo menos
ter tirado o espartilho da imaginação, de modo que ela possa especular a respeito
desses e de outros temas.
Nesse momento, ela deixa de lado o manto de meu comentário — e deixa-nos
também sem conhecer o farfalhar do traje de seu moira-moire.
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Mas somos deixados
com o balançar sedoso
de sua memoire.
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