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Nada mais comum, depois das derrapadas de um ato falho ou mesmo diante de uma
descompostura alucinada, que ouvir alguém abrir parênteses para dizer: “Freud explica”. Mas
como qualquer outra marca registrada de nossa época, esse anúncio luminoso pode tanto
ofuscar quanto esclarecer. Há muito mais entre o falo e o vaso do que imagina nossa vã
psicologia.
Em 1906, com 31 anos, Carl Gustav Jung experimentava a vertigem da ciência. Advertido por
dois professores alemães contra sua persistência em ficar ao lado de Freud, defendendo-o,
atitude que colocaria seu “futuro universitário” em perigo, Jung respondeu: “Se o que Freud diz
é verdadeiro, ficarei com ele. Pouco me importa uma carreira que silenciasse a verdade e
mutilasse a pesquisa”. Apoio incondicional à ciência e à pesquisa, mas defesa de Freud apenas
no caso de sua teoria ser verdadeira. Jung não chegou, afinal, a negar a verdade da teoria
freudiana das “neuroses causadas por recalques ou traumas sexuais”. Entretanto, movido por
outro ânimo, Jung lutou contra a conversão daquela verdade num dogma. Que as teorias
psicológicas virem dogmas não é novidade. Basta contar o número de “igrejinhas”, cada uma
cultivando a sua “verdade” (freudianos, kleinianos, lacanianos, junguianos etc.).
Marie-Louise von Franz é discípula de Jung, mas abomina a “escola junguiana”, o Instituto, o
carreirismo. Prefere reunir-se, sem verbas sem cargos com um grupo de estudiosos dispostos a
verdade. Aos 72 anos, é a única sobrevivente do círculo íntimo de trabalho que existiu em torno
de Jung. Vive numa pequena casa em Kusnacht, cidade próxima a Zurique, na Suíça – onde,
aliás, está instalado o Instituto Jung, à beira do lago. A casa de von Franz fica afastada desse
instituto que ela já não freqüenta. É uma casa simples de jardim abandonado. Na biblioteca,
entre livros de psicologia, história, antropologia, destaca-se uma enorme estátua esverdeada
do Buda indiano.
Marie-Louise von Franz conheceu Jung em 1934. Ela, aos 19 anos (ele com 59), já tinha uma
cultura filológica e filosófica suficiente para colaborar com o mestre na tradução de textos do
grego, latim e sânscrito, necessários para a pesquisa sobre a alquimia que Jung então
desenvolvia. Mas apenas em 1951, quando se publica “Aion”, o nome de Von Franz aparece
como autora de uma interpretação das visões da mártir Santa Perpétua. Entre 1955 e 1957 a
colaboração chega ao cimo, com a publicação de “Mysterium Coniunctionis”, estudo sobre “a
separação e a reunião dos opostos na alquimia”. O terceiro e último volume, de autoria de Von
Franz, contém o texto, a tradução e o comentário psicológico de um tratado de alquimia
atribuído a São Tomás de Aquino (Aurora Consurgens). Eis a cifra renovada da vertigem:
buscar mundos fundadores do racionalismo moderno as pistas do inconsciente. Um dos
aspectos do pensamento de Jung especialmente prolongados pela obra de Von Franz é o estudo
do simbolismo dos números. Em “Número e Tempo” (1970) esse simbolismo traduz um elo
entre a psicologia do inconsciente e a física moderna. Esse elo envolve o conceito de
“sincronicidade”. É como se todos os acontecimentos do tempo histórico fossem reunidos numa
identidade objetiva e transcendental que, entretanto, se revelaria em alguns momentos
casualmente significativos. É o acaso significativo, aquelas coincidências, sonhos, premunições
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que nos colocam em contato com uma realidade dita “oculta”. Esse acaso que explica e orienta
como no jogo do “I-Ching”, só pode ser apreendido quando ultrapassamos a fronteira segura da
explicação causal. Von Franz tem desbravado esse território multidimensional, com a
colaboração de físicos, biólogos e historiadores. O conceito de “sincronicidade” como outros
ligados a obra de Jung, parece impregnado de irracionalidade. Certamente não se reduz aos
modelos explicativos tradicionalmente usados na ciência moderna, porque exige ao mesmo
tempo vontade de conhecimento e consciência dos limites da racionalidade. Essa trilha
ambivalente, que procura combinar opostos irredutíveis, (racional-irracional, macho-fêmea,
quantidade-qualidade, matéria-espírito) define um tema atualíssimo. Vide as controvérsias
vazias que, inclusive no Brasil, dominam a cena cultural. Merquior acusa o machismo de
irracionalismo, Rouanet perde a paciência com os pós-modernos, Chauí exorciza as
competências. Ao vencedor as batatas. Mas essa luta não tem vencedores ou vencidos, ela é o
espelho, a projeção da participação e do controle limitados de cada um dos interlocutores no
processo de democratização brasileira. O debate sobre racionalidade x irracionalidade, não
surge por acaso agora. Ou talvez, seja um desses acasos significativos. Intelectuais de
diferentes inspirações ideológicas disputam a definição da linguagem da transição, dos termos
da construção do futuro desta sociedade. E nada mais antigo, nas sociedades humanas, que é
essa procura de elo racional entre o presente e o futuro. A obra de Jung e a reflexão de Von
Franz sobre o nosso (tempo) podem ajudar novos caminhos ou, no mínimo, a entender porque
as encruzilhadas do labirinto ficam repentinamente bloqueadas.
ENTREVISTA
Marie-Louise Usando a sua linguagem de economista, pense nas pessoas que especulam nos
mercados financeiros. Ela tem um comportamento mágico, usam amuletos, acreditam em dias
bons em oposição a dias negros. A especulação está permeada de pensamento mágico. Em
outras palavras, a realidade empírica da economia mostra que na especulação está em jogo um
fator irracional que tem um aspecto psicológico.
Folha O conceito de “sincronicidade” poderia ser aplicado a outras disciplinas das ditas ciências
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humanas?
Marie-Louise A diferença de Jung é que ele entra com o conceito de inconsciente. Outros
chamam-no “irracional” e então o racionalismo com referencia ao dialogo, ao sentimento e etc.
Jung dizia que há fatores muito mais profundos, ligados a força criativa do inconsciente. Isso é
novo e provoca muitas reações, pois as pessoas têm medo. Quando você fala em diálogo, a
manipulação ainda é possível. Mais ainda surge a esperança de aperfeiçoar essa manipulação:
“e se sentarmos juntos para fazer psicodrama poderemos superar as dificuldades”. Mas para
Jung é preciso render-se, a “dificuldade” nunca será superada. A “sincronicidade” não pode ser
manipulada. Assim, Jung promove uma derrota completa da racionalidade. Mesmo assim há
uma possibilidade de manipulação no conceito junguiano. Se você tem uma atitude positiva
frente ao inconsciente, ele se torna muito mais benevolente. Senão pudéssemos manipulá-lo
em absoluto não haveria psicoterapia. A partir de uma atitude consciente, frente ao
inconsciente, a “sincronicidade” pode trabalhar positivamente para o paciente, ele é curado. Eu
diria que não se pode manipular, mas, tornar o contato com o inconsciente mais amigável.
Marie-Louise Para Jung, alcançar esse meio termo da reflexão razoável é sinal de cultura,
mover-se na direção oposta é primitivismo e barbárie. Ainda não sabemos se a superação da
barbárie será possível.
Marie-Louise Eu não sei, minha mente está aberta para essas duas possibilidades. Por
temperamento, estou inclinada a acreditar numa evolução cultural muito lenta que transcorre
ao longo de milhares de anos, com ciclos de criação e destruição num meio tempo. Mas se
considerarmos 10 ou 20 mil anos felizmente tornou-se um pouco mais cultivada.
Marie-Louise Essa é uma parte daquela conversão ao irracional. As mulheres têm uma relação
com o irracional melhor que os homens, ao não ser que se masculinizem. Uma mulher feminina
tem uma inclinação natural ao irracional, a seguir, seus sentimentos ou intuições. Para uma
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mulher, dizer “não pode te explicar, mas sinto que desejo fazer isso” não é loucura. Para um
homem isso é meio louco, ele diz: “querida procure refletir”.
Folha Como o feminismo se enquadra nessa visão, agora que as mulheres ocupam postos de
poder?
Marie-Louise Assumir papéis masculinos não é necessariamente uma coisa boa. Sou contra o
feminismo porque sou contra a masculinização das mulheres. Sou um outro tipo de feminista,
que procura dar mais valor ao “feminismo”. As mulheres precisam resistir ao complexo de
inferioridade que levam muitas a imitar os homens. Ao contrário, temo pelos homens do futuro.
Pobre homens…
Marie-Louise Religião pode significar duas coisas opostas. Poder ser o ato de ir a igreja,
pertencer a uma seita e acreditar em certas coisas e comportamentos. Isso nós não precisamos
necessariamente. Pelo menos as religiões existentes são muito deficientes. Mas pode-se
entender religião de outra forma, como uma experiência numinosa de um aspecto do
inconsciente. Disso nós precisamos muito, prestar atenção as forças irracionais da natureza
dentro de nós e no mundo exterior. Dessa religião nós realmente precisamos, na verdade é
tudo o que precisamos. Tomar consciência do que se passa nos bastidores. É o que fazemos na
psicoterapia junguiana: observar os sonhos e ensinar o paciente a observar seus sonhos e
adaptar-se aquilo que seus bastidores irracionais desejam dele.
Marie-Louise Freud via o inconsciente como algo a ser removido e manipulado. Jung via o
inconsciente como algo poderoso e criativo que não pode ser manipulado. Jung considera o
irracional enquanto irracional, ao invés de racionalizá-lo rapidamente, chamando-o de
“sexualidade”.
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Obs.: O encontro com Marie-Louise von Franz foi facilitado pelo intermédio de Matheus
Ajzeuberg, Mosoko Oki e Leniza Castelo Branco. A viagem à Suíça foi cortesia da Swissair.