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O feminino

e o Mistério.
A contribuição das
mulheres para
a Mística

Marco Vannini
“A experiência do espírito vai muito além das distinções E mais:
espaço-temporais e de gênero”
>> Francisco de Oliveira:
China e Índia: estrelas ascendentes
Chris Schenk do capitalismo mundial
Maria de Magdala, a grande “Apóstola dos Apóstolos”
>> Amir Khair:
385
Ano XI
Carlos Frederico Barboza de Souza
Aposta no consumo e na liquidez
interna como resposta à
Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus: a busca crise internacional
19.12.2011
ISSN 1981-8769
do Amado
O feminino e o Mistério.
Mística, segundo o professor do programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade
Federal de Juiz de Fora – UFJF, Faustino Teixeira, “é uma experiência que integra, em reciprocidade
fundamental, as dimensões de anima (feminilidade) e animus (masculinidade) que habitam cada pessoa
humana”. “Há uma ‘lógica do coração’ que transborda a ‘lógica da razão’”.
A contribuição de mulheres como Hildegard de Bingen, Marguerite Porete, Teresa de Ávila, Maria
Madalena, Rabi’a al-’Adawiyya, entre outras, para uma compreensão mais profunda do que é a Mística
é o tema de capa desta edição da IHU On-Line.
Contribuem nesta edição pesquisadores e pesquisadoras de diversas áreas do conhecimento.
Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa, acredita que, para se entender
a mística, é preciso partir da antropologia clássica e cristã: “Não bipartida em corpo e alma, mas tripartida:
corpo, alma, espírito”. Só assim podemos entendê-la como “experiência, experiência do espírito”. Já Juan
Martín Velasco, professor emérito de Fenomenologia da Religião, da Universidade Pontifícia de Salamanca, em
Madri, diz que há uma atualidade da mística numa época de eclipse cultural e social de Deus e de profunda
e massiva crise das religiões estabelecidas. Ainda colabora com esta edição a religiosa da congregação das
Irmãs de São José e diretora-executiva da FutureChurch, organização estadunidense de renovação da Igreja,
Chris Schenk, que defende que Maria Madalena, principal testemunha da Ressurreição, foi “uma líder feminina
que entendeu a missão de Jesus melhor do que os discípulos homens”. Maria Madalena está ligada ao que se
chama de o rosto feminino de Deus. Para Salma Ferraz, professora titular da Universidade Federal de Santa
Catarina, “passaram-se quase dois milênios para que a Igreja Católica começasse a repensar o papel desta
mulher”. Carlos Frederico Barboza de Souza, doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz
de Fora – UFJF, frisa que mulher ou homem não importa para se “viver a experiência radical de encontro com
o Mistério Profundo”. Victoria Cirlot, professora da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, Espanha, busca
resumir um “caso único” da história da mística e da espiritualidade universais. Felisa Elizondo, professora da
Universidade Pontifícia de Salamanca e da de San Dámaso, de Madri, por sua vez, avalia que não é possível
separar em Hildegard von Bingen suas duas características fundamentais: mística e visionária. O amor é um
elemento epistêmico, não mais importante do que a deidade; é a linguagem própria de Deus mesmo, explica
Maria José Caldeira do Amaral, psicóloga clínica. A nobreza, para Marguerite Porete, é a condição que nos
vem do aniquilamento. Mais vale à alma, ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma
aniquilada é nobre porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus nela”, afirma Ceci Baptista Mariani,
professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas. Sílvia Schwartz, mestre, doutora
e pós-doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, pontua que a “teolo-
gia” do feminino divino de Porete provém da utilização do “topos da fraqueza feminina: Deus escolhe as coisas
fracas – as mulheres – para confundir os fortes – os homens”. Luce López-Baralt, professora emérita de lite-
ratura espanhola e comparada da Universidade de Porto Rico, avalia que Santa Teresa escreve para homens e
mulheres de todas as épocas e também de todas as religiões. Marco Lucchesi, membro da Academia Brasileira
de Letras – ABL, escreve o breve texto “Feminino e mística: ‘Moradas que se abismam’’ que abre a edição.
Este número da IHU On-Line foi construído em estreita parceria com o Prof. Dr. Faustino Teixeira,
professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal
de Juiz de Fora – UFJF. A ele, os nossos mais sinceros e profundos agradecimentos.
Ainda nesta edição, Francisco de Oliveira e Amir Khair analisam a crise financeira do euro e nos EUA,
e descrevem expectativas para 2012.
A mídia globalizada como base cultural da plutonomia é o tema do artigo de Bruno Lima Rocha, professor
da Unisinos e membro do Grupo de pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade - Cepos.
Por fim, o coordenador do Instituto Anchietano de Pesquisas – IAP, e um dos fundadores da Unisinos,
Pedro Ignácio Schmitz, conta um pouco de seus 82 anos de história.
A revista IHU On-Line, que é semanal, voltará a circular no mês de março. Assim, agradecendo a com-
panhia na caminhada durante o ano que termina, desejamos a todas e todos felizes férias!
A todas e todos uma boa leitura juntamente com os votos de Feliz Natal e felicidade, saúde e paz em 2012!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-
8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (gra-
zielaw@unisinos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br), Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br) e
Thamiris Magalhães MTB 0669451 (thamirism@unisinos.br). Revisão: Isaque Correa (icorrea@unisinos.br). Colaboração: César Sanson,
André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de
Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Natália Scholz, Rafaela Kley e Stefanie Telles. IHU On-Line
pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na
Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling.
Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br). Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-
mail: ihuonline@unisinos.br. Fone: 51 3591.1122 – ramal 4128. E-mail do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 1173.
Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 06 |Marco Vanini: “A experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero”
PÁGINA 12 | Faustino Teixeira: Mística: experiência que integra anima (feminilidade) e animus (masculinidade)
PÁGINA 18 | Juan Martín Velasco: A mística e o mistério hoje
PÁGINA 25 | Chris Schenk: Maria de Magdala, a grande “Apóstola dos Apóstolos”
PÁGINA 33 | Salma Ferraz: Maria Madalena, a mulher que amou Jesus
PÁGINA 36 | Carlos Frederico Barboza de Souza: Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus: a busca do Amado de forma
intensa e gratuita
PÁGINA 43 |Victoria Cirlot: Hildegard de Bingen, uma “artista” mística e profética
PÁGINA 46 | Felisa Elizondo: Hildegard e Hadewijch: mística da luz viva, mística do amor
PÁGINA 50 | Maria José Caldeira do Amaral: Mechthild de Magdeburgo, mestra e mãe da mística renana
PÁGINA 57 | Ceci Baptista Mariani: Marguerite Porete: a alma entre aniquilamento e nobreza
PÁGINA 63 | Sílvia Schwartz: Marguerite Porete e a “teologia” do feminino divino
PÁGINA 69 | Luce López-Baralt: Teresa de Jesus: “mestra consumada da vida espiritual” em diálogo cristão-islâmico

B. Destaques da semana
» Entrevista da Semana
PÁGINA 73 |Francisco de Oliveira: China e Índia: estrelas ascendentes do capitalismo mundial
PÁGINA 75 | Amir Kahir: Aposta no consumo e na liquidez interna como resposta à crise internacional

» Coluna do Cepos
PÁGINA 78 | Bruno Lima Rocha: A mídia globalizada como base cultural da plutonomia

» Destaques On-Line
PÁGINA 80 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
» IHU Repórter
PÁGINA 84 | Pedro Ignácio Schmitz
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 
 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
Feminino e mística: “Moradas que se abismam”
Por Marco Lucchesi

O tema da revista não podia ser mais oportuno. As


chaves do Castelo estão dadas, o feminino e a mís-
tica. Moradas que se abismam. Uma jovem perdida
e descalça. A corola dos seios sob o véu do silêncio.
Talvez Rabi’a, banhada pelos raios do plenilúnio. So-
ror mea sponsa. Acorrem os pastores dos sentidos. A
noite escura. Os lírios de Galaad. E as jovens palavras
que se perdem quando bailam ao som de Orfeu. Noite
dos sentidos. As Ínsulas estranhas. E a cornucópia da
madrugada. O pássaro real e a simetria do espelho.
Não mais que as formas circulares da espessura. Não
mais que os olhos verdes da analogia. Somos levados
ao delta feminino da linguagem. Porto que se estende
além das praias dos sentidos. Sem chaves ou sinais. A
beleza de Diotima. Delícia das Musas celestes. E ape-
nas o silêncio. Alado. Espesso. E descontínuo.

Leia Mais...
Marco Lucchesi já participou da IHU On-Line com outras colaborações. Confira:

* Editoria Invenção. Edição 258 da Revista IHU On-Line, de 19-05-2008, disponível em


http://bit.ly/eD8LpF
* “Rûmî se utiliza do poder soberbo das metáforas”. Edição 222 da Revista IHU On-Line, de
04-06-2007, disponível em http://bit.ly/uMfJ4k
* Rûmi: um dos místicos mais abertos à cortesia e hospitalidade inter-religiosos. Edição 242
da Revista IHU On-Line, de 05-11-2007, disponível em http://bit.ly/vPdzaH
* O livro de Deus na obra de Dante. Edição 65 dos Cadernos Teologia Pública

 Marco Lucchesi é professor associado da Faculdade de Letras da Universidade


Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, professor convidado da FioCruz, membro da
Academia Brasileira de Letras e do Conselho Curador da Fundação Miguel de
Cervantes. Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF,
é mestre e doutor em Letras pela UFRJ e pós-doutor pela Universidade de Colô-
nia, Alemanha. É colunista do jornal O Globo e redator-chefe da revista Tempo
Brasileiro. Recebeu diversos prêmios, dentre os quais o Jabuti; Marin Sorescu,
da Romênia; Cavaliere, da República Italiana, e Alceu Amoroso Lima, pela obra
poética.

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 


“A experiência do espírito vai muito além das distinções
espaço-temporais e de gênero”
“No que concerne ao espírito, este não tem sexo, como também não há distinções de caráter
cultural, social, ambiental: ele é universal. Mas, durante séculos, a instituição eclesiástica
suspeitou das mulheres que assumiam um papel magisterial”, comenta Marco Vannini

Por Moisés Sbardelotto

P
ara se entender a mística, é preciso partir da antropologia clássica e cristã: “Não bipartida em
corpo e alma, mas tripartida: corpo, alma, espírito”. Só assim podemos entendê-la como “expe-
riência, experiência do espírito”, como “uma contínua e constante realidade de vida espiritual,
que não consiste em ‘eventos’ particulares”.
Por isso, defende Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa,
embora haja “modos de se relacionar com o divino psicologicamente diferentes por parte de uma mulher
com relação aos de um homem”, no que concerne ao espírito, não há diferença de sexo, “como também não
há distinções de caráter cultural, social, ambiental: ele é universal”. E brinca: “Falar de mística feminina
tem tanto sentido como falar de matemática feminina”.
Contudo, explica, “devemos às mulheres uma contribuição essencial à história da espiritualidade, da
mística, muito mais significativo para aqueles séculos passados em que as mulheres, normalmente, não
tinham acesso à instrução”. Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Vannini comenta as ex-
periências místicas de Angela de Foligno e de Marguerite Porete, cujas palavras, afirma, “falam não como
palavras de mulheres, mas como palavras magistrais de espiritualidade”.
Marco Vannini (1948) é um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa. Editou as obras de
grandes místicos: Eckhart, Angelus Silesius, Sebastian Frank, Valentin Weigel, Marguerite Porete, Jean Ger-
son, François de Fénelon etc. Publicou inúmeros estudos, tais como: La morte dell’anima. Dalla mística alla
psicologia (Ed. Le Lettere, 2004); Storia della mistica occidentale (Ed. Mondadori, 2005); Mistica e filosofia
(Ed. Le Lettere, 2007); La mística delle grande religioni (Ed. Le Lettere, 2010); Prego Dio che mi liberi da
Dio (Ed. Bompiani, 2010), dentre outras. Em português, foi traduzida a sua Introdução à mística (Edições
Loyola, 2005). Confira a entrevista.

bertas), e ali também há beatitude.


mente chamado de Saulo. Entretanto, é mais
IHU On-Line – “Êxtase, evento, ex- conhecido como São Paulo, o Apóstolo. É con- Sob esse perfil, portanto, também
periência”: o que é mística para o siderado por muitos cristãos como o mais im- se pode falar de “êxtase” na e para
senhor? portante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, a mística, onde êxtase não significa,
a figura mais importante no desenvolvimento
Marco Vannini – Sobretudo experiên- do Cristianismo nascente. Paulo de Tarso é de fato, presença de visões extraordi-
cia, experiência do espírito. Não se um apóstolo diferente dos demais. Primeiro nárias ou de fenômenos excepcionais,
entende o que é a mística se não se porque ao contrário dos outros, Paulo não co- mas sim, etimologicamente, a “saída”
nheceu Jesus pessoalmente. Era um homem
tem bem clara a antropologia clássi- culto, frequentou uma escola em Jerusalém, da condição do psiquismo, ou seja, do
ca e cristã – não bipartida em corpo fez carreira no Templo (era fariseu), onde foi particular do pequeno eu, com todos
e alma, mas tripartida: corpo, alma, sacerdote. Educado em duas culturas (grega e os seus laços, e o abrir-se à dimensão
judaica), Paulo fez muito pela difusão do Cris-
espírito. Enquanto o elemento psíqui- tianismo entre os gentios e é considerado uma do universal, onde não há mais oposi-
co está todo submetido ao determi- das principais fontes da doutrina da Igreja. As
nismo espaço-temporal e não conhece suas Epístolas formam uma seção fundamen- ção 32 dos Cadenros IHU Em Formação, Paulo
tal do Novo Testamento. Afirma-se que ele foi de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo
liberdade nem beatitude, onde está o quem verdadeiramente transformou o cristia- sentido de realidade, disponível em http://
espírito, ali há liberdade, como diz o nismo numa nova religião, e não mais numa bit.ly/tnxDBC; edição 55 dos Cadernos Teo-
Apóstolo (ubi spiritus domini, ibi li- seita do Judaísmo. Sobre Paulo de Tarso a IHU logia Pública, São Paulo contra as mulheres?
On-Line 175, de 10-04-2006, dedicou o tema -- Afirmação e declínio da mulher cristã no
 Paulo de Tarso (3 – 66 d. C.): nascido em de capa Paulo de Tarso e a contemporaneida- século I, disponível em http://bit.ly/tlt5R9.
Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, era originaria- de, disponível em http://migre.me/FC0K; edi- (Nota da IHU On-Line)

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ção entre eu e o mundo, e nem entre sos dias, de Eckhart a Sankara etc. – é mulheres que acreditavam estar grávi-
eu e Deus. quase idêntica e, por isso, as obras das das de Jesus, sonhavam em aleitar Je-
O fato é que hoje, com frequência, grandes mulheres místicas não têm ca- sus menino etc., onde o místico recai
não se sabe mais o que significa con- racterísticas “femininas”. Precisamente no patológico e pode aparecer – como
creta e realmente espírito, enquanto o caso do Espelho das almas simples, de talvez o seja, de fato, nesses casos
profunda unidade de inteligência ple- Marguerite Porete, é emblemático: an- – como o substituto de uma vida ple-
namente desenvolvida e de amor igual tes que Romana Guarnieri descobrisse a namente vivida. Não por acaso aque-
e plenamente estendido, sem objeto, autora, pensou-se durante séculos que les homens – mas, sobretudo, aqueles
“sem porquê” – os dois olhos da alma fosse obra de um homem, e como tal foi mulheres, porque quase sempre é de-
que, juntos, fazem o olhar “simples”, publicada em inglês e foi lida, por exem- las que se trata – que tiveram expe-
para seguir precisamente a linguagem plo, por Simone Weil. riência de matrimônio (por exemplo,
de Marguerite Porete. Quando se vai ao específico “femi- santa Catarina de Gênova ou Madame
A palavra “evento” me convence nino”, o espiritual recai no psicoló- Guyon, mas também Angela de Folig-
menos, porque faz pensar em algo gico, e então temos os exemplos das no), quase nunca utilizam o simbolis-
raro, casual e não comum, enquanto mo e os termos “esponsais” da mística
aprendidas de Amônio numa escola de filosofia
me parece que, ao invés, mística deva com seleto gupo de alunos. Pretendia fundar chamada “nupcial”, para não misturar
significar uma contínua e constante uma cidade chamada Platonópolis, baseada corpo e alma com espírito, que, como
realidade de vida espiritual, que não nos ensinamentos da República de Platão. Plo- ensina ainda o Apóstolo, é o seu opos-
tino dividia o universo em três hipóstases: o
consiste em “eventos” particulares. Uno, o Nous (ou mente) e a alma. (Nota da to.
IHU On-Line)
IHU On-Line – Podemos falar de uma  Mestre Eckhart (1260-1327): nasceu em Ho- IHU On-Line – Em sua opinião, que fi-
chheim, na Turíngia. Ingressando no convento
“mística feminina”? Quais seriam dos dominicanos de Erfurt, estudou em Estras- guras históricas mais se destacam na
as suas contribuições à experiência burgo e em Colônia. Tornou-se mestre em Te- abordagem mística feminina a Deus e
mística em geral? ologia e ensinou em Paris. Em sua obra, está ao Mistério? Por quê?
muito presente a unidade entre Deus e o ho-
Marco Vannini – A meu ver, pode-se fa- mem, entre o que consideramos sobrenatural Marco Vannini – Lembrando que, como
lar de mística feminina somente em um e o que achamos ser natural. É um pensamen- recém disse, não compartilho muito a
sentido redutivo, não essencial. Explico: to holístico, pois. Para Eckhart Devemos reco- ideia de que haja uma “abordagem
nhecer Deus em nós, mas este caminho não é
enquanto corpo e psique da mulher são fácil. O homem deve se “exercitar nas obras, mística feminina” essencialmente di-
diversos – pelo menos em parte – dos do que são seus frutos”, mas, ao mesmo tempo, ferente da masculina, devo dizer com
homem, é evidente que há modos de se “deve aprender a ser livre mesmo em meio às a mesma franqueza que devemos às
nossas obras”. Eckhart morreu em 1327. Em
relacionar com o divino psicologicamen- 27 de março de 1329, foi dado ao público a mulheres uma contribuição essencial à
te diferentes por parte de uma mulher bula In agro dominico, através da qual o Papa história da espiritualidade, da mística,
com relação aos de um homem. Mas, no João XXII condenou vinte e oito proposições do muito mais significativo para aqueles
Mestre Eckhart. Das vinte e oito, dezessete fo-
que concerne ao espírito, ele não tem ram consideradas heréticas e onze, escabrosas séculos passados em que as mulheres,
sexo – em Cristo, não há homem nem e temerárias. Entre estas, estava a de que nos normalmente, não tinham acesso à
mulher, escreve o Apóstolo em Gálatas transformamos em Deus. Mas esta condenação instrução. E isso é extremamente indi-
papal justifica-se, na medida que as idéias de
3, 28 –, como também não há distinções Eckhart tinham uma dimensão revolucionária. cativo pelo fato de que a experiência
de caráter cultural, social, ambiental: Elas foram acolhidas pelas camadas popula-
isso é universal. Falar de mística femini- res e burguesas, que interpretavam o apelo  Santa Catarina de Gênova (1447-1510): san-
eckhartiano à interioridade da fé e à união ta e mística italiana. Embora desejasse uma
na é, portanto, um fruto do nosso tem- divina como uma rebelião implícita à exterio- vida religiosa foi obrigada a se casar com Ju-
po, no qual a emancipação feminina, o ridade “farisáica” de uma hierarquia e de um liano Adorno quando seu pai morreu. O estilo
feminismo, a historiografia de “gêne- clero moralmente decadente (parece que a de vida de Juliano resultou em grande des-
coisa nunca mudou muito mesmo). Sua heran- gosto, e no final ficaram reduzidos à miséria.
ro”, de um campo no qual é legítima, ça influenciou, entre outros, significativamen- Ela conseguiu convertê-lo e ele se tornou um
transbordou para fora dos limites. Falar te, a Martinho Lutero. Sobre o tema Místicas, irmão da Ordem Terceira de São Francisco e
de mística feminina tem tanto sentido conferir tema de capa da IHU On-Line, edição concordou em viver com ela como irmãos e em
133. (Nota da IHU On-Line) estrita continência. Ela logo ficou famosa pe-
como falar de matemática feminina. Por  Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã los seus trabalhos em hospitais e nos setores
isso a mística de todos os tempos e de francesa. Centrou seus pensamentos sobre um pobres da cidade. Em 1479 o casal foi traba-
todas as culturas – de Plotino aos nos- aspecto que preocupa a sociedade até os dias lhar no hospital de Pammetone, e Catarina se
de hoje: o tormento da injustiça. Vítima da tornou diretora da instituição em 1490. Escre-
 Marguerite Porete: mística francesa, quei- tuberculose, recusou-se a se alimentar, para veu o famoso Diálogo entre Alma e Corpo e
mada pela Inquisição em Paris, em 1310, após compartilhar o sofrimento de seus irmãos o Tratado sobre o Purgatório, ambos reveren-
se recursar a retirar de circulação seu livro franceses que haviam permanecido na França ciados como notáveis livros sobre mística. Foi
Espelho das almas simples. (Nota da IHU On- e viviam os dissabores da Segunda Guerra Mun- canonizada em 1737 pelo Papa Clemente XII
Line) dial. Sobre Weil, confira as edições 84, de 17- (Nota da IHU On-Line)
 Plotino (205-270): filósofo egípcio, discípu- 11-2003, Simone Weil Palavra Viva, disponível Jeanne-Marie Bouvier de la Motte Guyon
lo de Amônio Sacas e mestre de Porfírio, que em http://bit.ly/tZSCDr; 168, de 12-12-2005, (1648-1717): mística francesa. �������������
Até 1676, so-
nos legou seus ensinamentos em seis livros de Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. freu a perda de filhos, do marido, do pai e
nove capítulos cada, chamados de As Enéadas. Três mulheres que marcaram o século XX, dis- de uma grande amiga. Seus escritos místicos
Acompanhou uma expedição à Pérsia, onde to- ponível em http://bit.ly/v0aMxT; 313, de 03- influenciaram muitos líderes, tais como o Ar-
mou contato com a filosofia persa e indiana. 11-2009, Filosofia, mística e espiritualidade. cebispo Fenelon, os Quacres, John Wesley,
Regressou à Alexandria e, aos 40 anos, estabe- Simone Weil, cem anos, disponível em http:// Zinzendorf, Jessie Penn-Lewis, Andrew Murray
leceu-se em Roma. Desenvolveu as doutrinas bit.ly/w374lt. (Nota da IHU On-Line) e Watchman Nee (Nota da IHU On-Line).

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 


espiritual, na sua universalidade, não te), mas só particular, excepcional. tituição eclesiástica sempre suspeitou
depende das culturas. Sem querer dei- Esse é o significado que a palavra mís- da mística enquanto tal, na medida
xar de lado muitas outras figuras im- tica assumiu na época contemporânea em que o místico tende a superar a
portantíssimas, penso que Marguerite e que, por isso, de fato, a coloca em mediação, coloca-se “só para o só”,
Porete, na Idade Média, santa Catarina oposição com a ciência, com a lógica, como diz Plotino, indo além de sacer-
de Gênova, na época moderna, e Si- com a razão. Infelizmente, ainda não dotes, sacramentos, Escrituras etc. O
mone Weil, no presente, são expoen- saímos desse modo de pensar a místi- Mestre Eckhart era um homem, um
tes da experiência mística. Dei como ca, pelo menos em nível comum. dominicano, no topo da sua Ordem e
subtítulo Da Ilíada a Simone Weil à mi- Tenha-se presente que a própria da universidade, mas mesmo assim foi
nha Storia della mistica occidentale, palavra “mística” como substantivo processado e condenado. Também não
precisamente para sublinhar o relevo entrou no uso comum somente mui- devemos nos esquecer de que sem-
que atribuo a uma mulher na história to tarde, pelo século XVI: antes, era pre houve homens da Igreja que se
da mística. somente adjetivo, em geral de “teo- puseram à escuta de mulheres e que
logia” ou de “interpretação”, relati- aprenderam com elas: o bispo Fénelon
IHU On-Line – Como a mística – e so- vamente à Sagrada Escritura: assim, com Madame Guyon, por exemplo. O
bretudo a cristã – foi entendida, dis- por exemplo, o maior místico do Oci- próprio Eckhart, que esteve presente
cutida e estudada ao longo do tem- dente, Mestre Eckhart, não sabia, de em Paris no processo contra Margue-
po? Quais seriam os grandes pontos fato, que era um “místico”! A Antigui- rite Porete, utiliza amplamente a sua
de referência históricos do conceito dade e a Idade Média cristã falavam obra, embora não pudesse citar a sua
de mística? antes de “contemplação” – uma pala- autora, queimada como herege.
Marco Vannini – O discurso seria lon- vra que mantinha intacto todo o sen-
go. Indicarei apenas um momento re- tido originário do filosofar como bios IHU On-Line – Em linhas gerais, quem
almente fundamental: o fim do século teoretikós, vida contemplativa, vida foi Angela de Foligno? O que mais ca-
XVII, quando a condenação de Miguel de conhecimento voltada ao Uno, no racteriza a sua mística e espirituali-
de Molinos, dos chamados “quietis- afastamento dos laços e das paixões dade?
tas”, e depois também da obra de Fé- – a única capaz de dar beatitude. Por Marco Vannini – Angela de Foligno foi
nelon, Explications des maximes des isso paradoxalmente se poderia dizer uma mulher que viveu intensamente a
saintes sur la vie intérieure [Explica- que, no próprio uso da palavra e do experiência da separação, do despoja-
ção das máximas dos santos sobre a conceito de “mística”, já está implí- mento interior – do qual esse exterior,
vida interior] (1689), marcou realmen- cita essa separação daquilo que é co- a nudez, é manifestação sensível – e da
te aquela que os historiadores da es- mum, universal e, portanto, próprio perda do eu, até a identificação com o
piritualidade franceses chamam de la de cada homem e de cada mulher, o Tu divino, na específica forma do Cris-
déroute de la mystique, a derrota da que condena a mística à marginaliza- to: “Tu és eu, e eu sou tu”, escreve
mística. De fato, junto com Fénelon e ção e à incompreensão. ela, de fato, no Memorial. O central
os outros condenados, eram também da sua mística me parece ser a cons-
condenadas as teses mais relevantes IHU On-Line – Como o senhor vê a ciência alcançada de que “tudo está
da mística cristã: a doutrina do “puro tensão entre mística feminina e ins- bem”, até à paradoxal afirmação de
amor”, a presença de Deus no “fundo tituição eclesiástica no decorrer da que Deus está presente “em toda cria-
da alma”, a “indiferença”, ou seja, o história? Quais foram os fatos históri- tura, em qualquer coisa que exista,
completo distanciamento. cos mais marcantes, em sua opinião? seja diabo, seja anjo bom, seja no in-
A partir de então foi reservado à Marco Vannini – Não resta dúvida de ferno ou no paraíso, seja no adultério
mística somente um espaço marginal, que por séculos a instituição eclesiás- e no homicídio, seja nas obras virtuo-
reservado àqueles poucos favorecidos tica suspeitou das mulheres que, de sas, em qualquer coisa provida de ser,
pelas graças (no plural: não pela graça) algum modo, traziam uma voz nova mesmo que seja bela ou se é torpe”.
divinas e que, por isso, se exprimia em ou assumiam um papel magisterial. A
visões sobrenaturais, experiências es- história da mística está cheia de epi- IHU On-Line – Que imagem de Deus
táticas particulares etc. Portanto, não sódios de mulheres incriminadas ou ou do Mistério Angela de Foligno nos
algo que seja universal, pertencente a talvez condenadas por esse motivo: deixou em seu Liber?
todo homem (ou mulher, evidentemen- o caso de Marguerite Porete, queima- Marco Vannini – Deixou-nos a ima-
 Miguel de Molinos (1628-1696): místico da como herege pelo seu livro Espe- gem de Deus como Nada – ou seja, um
espanhol, criador de uma corrente religiosa lho das almas simples, que depois foi Todo que não é possível compreender
denominada de Quietismo. (Nota da IHU On-
Line) publicado, nos nossos dias, no Corpus senão negativamente, como Nada jus-
 François Fénelon (1651-1715): pseudônimo Christianorum. Continuatio medieva- tamente. Isso explica por que Angela,
de François de Salignac de La Mothe-Fénelon, lis. Ou seja, entre os grandes clássicos exatamente como Marguerite Porete,
teólogo católico apostólico romano, poeta e
escritor francês, cujas ideias liberais sobre po- da espiritualidade cristã, é verdadei- fala do não amor como o próprio cum-
lítica e educação, esbarravam contra o “status ramente exemplar. primento do amor. De fato, o amor
quo” da Igreja e do Estado dessa época. Per- Mas não sublinharei muito esse fato sempre se dirige a algo determinado,
tenceu à Academia Francesa de Letras. (Nota
da IHU On-Line) como “feminino”: na realidade, a ins- finito, e depende dos laços do próprio
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eu, enquanto o amor mais puro não “Mística é uma contínua esse escrito, com a qual tive a hon-
tem objeto, é “sem porquê” (uma ra de colaborar na edição italiana do
expressão que já encontramos na po- e constante realidade de Espelho. O Mestre Eckhart se inspirou
esia do seu contemporâneo úmbrio, o nele em alguns pontos do seu pen-
franciscano Jacopone de Todi) e deve vida espiritual, que não samento e, em particular, naqueles
cessar precisamente enquanto amor, mais profundos e ousados, como, por
desejo, vínculo, em perfeita corres- consiste em ‘eventos’ exemplo, no célebre sermão Beati
pondência com o extinguir-se do pró- pauperes spiritu [Bem-aventurados os
prio eu. particulares” pobres de espírito], no qual ele fala da
necessidade de que o homem “pobre”
IHU On-Line – Que relação há entre precisão quem foi Marguerite Porete, não tenha na alma sequer um “lugar
Angela e Francisco de Assis? Em que já que as únicas notícias certas que próprio”, de modo que o próprio Deus
sentido a mística de Angela – que temos sobre ela são aquelas deduzidas seja o “lugar próprio da sua obra,
nasceu pouco mais de 20 anos após das atas do processo que a condenou dado que Deus opera em si mesmo”.
a morte do santo de Assis – foi uma à morte como herege, na Paris de Fe- Aqui é clara a leitura do Espelho, no
mística “franciscana”? lipe, o Belo. No entanto, ela devia ser qual a alma aniquilada “não tem fun-
Marco Vannini – Diria que ela foi fran- uma mulher de cultura, provavelmen- do e, portanto, não tem lugar próprio
ciscana sobretudo pelo lugar e pela te de origem aristocrática, como fica e, consequentemente, não tem amor
época, aquela Úmbria mística da Ida- evidente no livro, no qual cortesia e próprio”. De fato, para Marguerite,
de Média que sequer se pode conceber nobreza desempenham um papel es- assim como para Angela de Foligno,
sem a presença do espírito francisca- sencial. a alma que se fez verdadeiramente
no. Também sublinhamos que, naquela Como já disse, creio que os pon- nada “colocou todo o amor debaixo
época, houve um florescer extraordi- tos centrais da verdadeira mística são dos pés”.
nário de experiências místicas femini- sempre os mesmos, ou muito de perto O livro de Marguerite, embora con-
nas. Margherita de Cortona, Vanna de correspondentes. Em Marguerite, no denado, continuou a ser lido, mais ou
Orvieto, Chiara de Montefalco, todas entanto, a via do distanciamento, a menos ocultamente. Seguramente foi
coetâneas de Angela e operantes a via do nada é percorrida verdadeira- conhecido por santa Catarina de Gê-
poucos quilômetros de distância. Para mente até o extremo limite, com uma nova, assim também pela milanesa
todas elas, o espírito franciscano se coerência, uma determinação e uma Isabella Berinzaga, cujo Breve com-
manifesta, em primeiro lugar, na pie- radicalidade impressionantes, que se pendio sulla perfezione cristiana,
tas voltada à Paixão de Cristo, ao Cristo lança ao distanciamento até de Deus. traduzido ao francês no fim do sécu-
crucificado, literalmente “co-sofrido” Limito-me a citar esta extraordinária lo XVI, está na base do extraordinário
[com-patito], ou seja, compartilhado passagem, do capítulo 135 do Espe- florescimento místico do século XVII
na sua Paixão. lho: na França. Simone Weil (sempre se
Específica de Angela, mas ainda de “Para a alma tudo é uma só coi- trata de mulheres!) também o leu e o
cunho franciscano, é a prática ascética, sa, sem porquê, e ela é nada em tal amou, mesmo que no fim de sua breve
verdadeiramente intensa; a escolha vo- Uno. Então não sabe mais o que fazer vida, e hoje me parece que ele é una-
luntária da pobreza, fora de conventos com Deus, nem Deus com ela. Por quê? nimemente reconhecido em toda a sua
ou instituições; a caridade operante, Porque ele é, e ela não é. Ela não re- extraordinária profundidade.
voltada aos pobres e aos doentes. Mui- tém mais nada para si, no seu próprio
to significativo nesse sentido também nada, já que lhe basta isso, ou seja, IHU On-Line – O que foi o movimen-
é o relativo distanciamento que Angela que ele é, e ela não é. Então, é nada to beguinal, do qual Marguerite fez
mostra com relação à função interme- de todas as coisas, já que é sem ser, e parte? E qual foi a novidade trazida
diária do clero, da cultura teológica lá onde era antes de ser. Por isso ela pelas beguinas à mística?
e religiosa, em benefício de um saber tem de Deus aquilo que tem; e é aqui- Marco Vannini – O movimento das be-
totalmente interior, dado pelo livre lo que Deus mesmo é, por transforma- guinas foi um movimento extraordiná-
colóquio da alma com Deus. “Aqueles ção de amor”. rio, sem origem, sem fundadora, sem
que leem a Escritura entendem pouco; regra. De fato, as beguinas eram mu-
aqueles que sentem algo de mim en- IHU On-Line – Para Romana Guarnie- lheres, não casadas e não Irmãs, que,
tendem bem mais”, escreve por isso ri, O espelho das almas simples, de por cerca de oito séculos, mas, sobre-
Angela. Marguerite, é uma “autêntica obra- tudo, em plena Idade Média e no vale
IHU On-Line – E o que mais é possível prima da literatura mística de todos do Reno, viveram em pequenos grupos
falar sobre Marguerite Porete? Que os tempos”. Em sua opinião, qual é a do seu próprio trabalho ou na mendi-
outros aspectos é possível ressaltar importância dessa obra? cância, em uma extraordinária síntese
sobre a experiência mística dessa Marco Vannini – Acima de tudo, devo de comunhão e de liberdade, de apro-
mulher francesa? dizer que compartilho plenamente o fundamento espiritual e de empenho
Marco Vannini – Não sabemos com juízo que Romana Guarnieri dá sobre caritativo – basta pensar que foram,

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de fato, as primeiras enfermeiras da Marco Vannini – Há um caso emble- dente que não tem nada a ver com
história europeia. Pelo seu caráter de mático que eu gostaria de citar para a mística, que, aliás, realmente não
independência da autoridade mascu- responder essa a pergunta. O fran- entende. Por isso não é de se admirar
lina, o movimento beguinal poderia ciscano São Pedro de Alcântara11 es- que a palavra filosofia, hoje, também
ser considerado o primeiro movimento creveu a santa Teresa de Jesus12, em é adotada no sentido, por exemplo,
feminista, mas seria verdadeiramente Ávila, que se maravilhava muito que de estratégia empresarial (a filosofia
desviante inscrevê-lo nas categorias ela tivesse pedido conselho a teólo- da Fiat...).
redutivas do feminismo – sem contar, gos sobre problemas espirituais, novas O saudoso professor Hadot13 defen-
depois, o fato de que ele também teve fundações de conventos etc., porque, dia com razão que a verdadeira con-
um correspondente masculino, o dos em matéria de perfeição, é preciso di- tinuação da filosofia, que é a grega
beguinos, ou begardos. rigir-se só a quem a pratica, e disso clássica, foi a mística: enquanto a te-
Não há dúvida de que entre as be- os teólogos não sabem nada. Eles são ologia sempre foi dependente da ins-
guinas houve personalidades eminen- especialistas em questões doutrinais, tituição eclesiástica, da dogmática,
tes na história da mística – Beatrijs de escolásticas, ou talvez jurídicas, mas do respeito pela Sagrada Escritura,
Nazareth, Hadewijch de Antuérpia, a certamente não em questões espiri- pelos Concílios etc. – e desse modo
própria Marguerite Porete, se é que tuais. perdeu aquela liberdade da inteligên-
foi beguina – mas sobre o movimento A teologia nascera como teo-logia, cia que, sozinha, a filosofia pode dar
beguino pesou frequentemente a sus- ou seja, discurso racional sobre Deus, –, só a mística continuou a via mestra
peita de heresia, voltada por diversas em contraposição aos mitos (lembro do filosofar, que é o distanciamento,
vezes a essas mulheres por parte das que a palavra foi cunhada assim por o platônico exercitar-se a morrer.
autoridades eclesiásticas, talvez te- Platão), com a consciência de que, A filosofia em sentido forte não
merosas, acima de tudo, de perder na realidade, não sabemos nada de é continuada nem nas universidades
o controle da sociedade. Nesse caso, Deus, mas que devemos pensar só medievais, submetidas à Igreja, nem
mais uma vez, a “liberdade do espíri- que ele é bom, e que dele vêm todos nas modernas, sempre submetidas ao
to”, do qual a mística é composta, foi os bens. Trata-se, por isso, não de fa- poder e coligadas com ele: o profes-
advertida como perigosa para o dog- zer discursos impossíveis sobre Deus, sor é sempre um funcionário, enquan-
ma, para a doutrina, para a instituição mas sim de nos tornarmos semelhan- to o místico realmente não o é.
religiosa constituída. Não resta dúvi- tes a ele (omòiosis tò theo). Hoje, ao Não penso, por isso, que haja a ne-
da, entretanto, que a mística begui- contrário, há “teologia” de tudo: a cessidade de uma nova gramática teo-
nal – Minnenmystik, “mística do amor palavra teologia deixou de ter o seu lógico-filosófica: já a possuímos desde
cortês” por excelência – alimentou significado originário e se tornou uma a antiguidade clássica. Ao contrário,
com a sua riqueza alguns dos maiores espécie de “tudologia”. há a necessidade de experiência.
místicos medievais, como Ruusbroec10 Isso vale hoje, com maior razão,
e Eckhart. também para a filosofia. No momen- IHU On-Line – Como as grandes reli-
to em que ela perdeu a consciência giões do mundo abordam a mística?
IHU On-Line – Em que sentido a mís- de ser “ciência da verdade”, como Que diferenças existem em termos
tica de Angela e de Marguerite nos é Aristóteles a chama, e de ter em co- de compreensão da mística e da sua
contemporânea? mum com a religião o objeto, que é o experiência?
Marco Vanini – Ela nos é contempo- Absoluto em si e por si, Marco Vannini – Sobre esse tema,
rânea no sentido de que, como dizia como dizia Hegel, é evi- eu escrevi um livro: La mistica del-
no início, a experiência do espírito é 11 São Pedro de Alcântara (1499-1562): frade le grandi religioni, onde sustento,
franciscano espanhol que fez grandes reformas
quase idêntica em todos as épocas e religiosas no reino de Portugal para a sua or-
acima de tudo, que, no coração das
em todos os lugares, e vai muito além dem. (Nota da IHU On-Line) grandes religiões, que, no entanto,
das distinções espaço-temporais, além 12 Teresa de Ávila (1515 - 1582): freira car- são diversas entre si em tantas coi-
melita espanhola nascida em Ávila, Castela,
daquelas, como eu dizia, de gênero. famosa reformadora da ordem das Carmelitas.
sas, e até mesmo opostas – e como
Para mim, homem, as palavras de An- Canonizada por Gregório XV (1622), é feste- tais muitas vezes se combateram e
gela ou de Marguerite falam não como jada na Espanha em 27 de agosto, e no resto
do mundo em 15 de outubro. Foi a primeira 13 Pierre Hadot: filósofo francês, é um dos
palavras de mulheres, mas como pala- mulher a receber o título de doutora da igreja, co-autores do livro Dicionário de ética e Filo-
vras magistrais de espiritualidade. por decreto de Paulo VI (1970). Entre seus li- sofia Moral. São Leopoldo: Unisinos, 2003. Suas
vros citam-se Libro de su vida (1601), Libro de pesquisas concentraram-se primeiramente nas
las fundaciones (1610), Camino de la perfec- relações entre helenismo e cristianismo,em
IHU On-Line – Como percebe a rela- ción (1583) e Castillo interior ou Libro de las seguida, na mística neoplatônica e na filosofia
ção entre teologia/filosofia e mística? siete moradas (1588). Escreveu também poe- da época helenística. Elas se orientam atual-
Há hoje a necessidade de uma nova mas, dos quais restam 31 deles, e enorme cor- mente para uma descrição geral do fenômeno
respondência, com 458 cartas autenticadas. espiritual que a filosofia representa. Em por-
gramática teológico-filosófica para Sobre Teresa, confira Teresa - A Santa Apaixo- tuguês pode ser lido o livro de sua autoria O
captar a novidade dos místicos? nada, (Rio de Janeiro: Objetiva, 2005), de au- que é a filosofia antiga? (São Paulo: Loyola,
10 Jan van Ruusbroec (1293/1294-1381): teó- toria de Rosa Amanda Strausz; Obras comple- 1999). Para uma resenha da obra confira a re-
logo místico flamengo. Foi um dos pensadores tas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Teresa de vista Síntese 75 (1996), p. 547-551. A resenha
mais originais da teologia da Trindade. (Nota Jesus – “Livro da vida” (4ª ed., São Paulo: Ed. do original francês é de Henrique C. de Lima
da IHU On-Line) Paulus, 1983). (Nota da IHU On-Line) Vaz. (Nota da IHU On-Line)

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ainda se combatem –, há uma mística cia de Deus, para as quais é blasfe- de Henri le Saux18, o beneditino fran-
quase idêntica. Embora as religiões ma a ideia da união homem-Deus, ou cês que foi à Índia e ali assumiu ves-
sejam diferentes, dizia Simone Weil, também da divinização do homem. A tes, linguagem e nome, reconhecendo
as místicas se assemelham até quase expressão “mística judaica” é recen- a profundidade do vedanta, mas nem
a identidade. tíssima: foi cunhada no século XX por por isso abandonou o cristianismo:
Dito isso, já é implícito o fato de Buber14 e Scholem15, mas até então ao contrário, considerou que a expe-
que a relação entre mística e religião soava como absurda, precisamente riência espiritual da Índia o ajudava
é uma relação não fácil, ou melhor, como dizer “um ferro de madeira”, e a compreender verdadeiramente a
difícil, muitas vezes conflituosa. De é bem difícil assimilar um fenômeno própria mensagem cristã. Essa é uma
fato, a mística – que, como dizia aci- como a cabala a Plotino ou ao Mestre consideração que compartilho plena-
ma, é a legítima herdeira da filosofia Eckhart! No islamismo, sem dúvida mente: com le Saux, considero que o
antiga – é por sua natureza inclinada houve grandes místicos – penso sobre- futuro do cristianismo deve, por assim
a superar toda forma de mediação, tudo em Al-Hallaj16 e em Ibn-Arabi17 –, dizer, “atravessar” a espiritualidade
voltada a uma relação direta entre a mas não é por acaso que eles foram da Índia. De outra parte, aquilo que
alma e Deus, que se encontram até considerados heterodoxos. O cristia- encontramos na Índia não é, de fato,
se reconhecerem como uma coisa só. nismo, ao invés, precisamente en- dessemelhantes daquilo que podemos
Por isso ela alimenta, ao mesmo tem- quanto cristianismo, ou seja, religião encontrar também no Ocidente: o li-
po, a religião, ou seja, a religiosidade fundada sobre Cristo, considerado vro de Rudolf Otto19, West-Östliche
mais profunda e remove toda religião verdadeiro Deus e verdadeiro homem Mystik, que eu traduzi ao italiano há
quando ela pretende se constituir – ou seja, religião da divino-humani- tantos anos, pondo em debate Mestre
como dogmática, prescrição mora- dade – é intrínseca e substancialmen- Eckhart e Sankara, mostra isso ade-
lista ou sacerdotal. Exemplar nesse te místico. quadamente. A relação de estreitís-
sentido é a o fato de a mística se pôr Em menor medida, também se sima semelhança entre Eckhart e le
diante das Sagradas Escrituras (quan- pode dizer isso sobre a grande tradi- Saux também é objeto de meu livro
do se possui uma religião): nasce ção religiosa da Índia, em particular Oltre Il cristianesimo [Além do cris-
aqui, de fato, a oposição espírito-le- do não dualismo (advaita), porque tianismo], no prelo.
tra, por força da qual o místico, mes- aqui também é claríssimo o sentido
mo quando respeita profundamente da unidade entre espírito de Deus e IHU On-Line – Deseja acrescentar al-
a Escritura, considerando-a “palavra espírito do homem. Nos nossos dias, é guma coisa?
de Deus”, pensa, no entanto, que a interessantíssimo e importante o caso Marco Vannini – Acredito que o reno-
palavra mais verdadeira e profunda é vado interesse pela mística, feminina
aquela que o espírito dirige ao espíri- 14 Martin Buber (1878-1965): filósofo vienen- ou não, depois de tantos séculos de
se de origem judaica, foi o primeiro professor
to, para além e acima de toda palavra de uma cátedra de Judaísmo na Universidade remoção, é um dos sinais mais positi-
escrita. Deus é espírito, disse Jesus à de Frankfurt. Com a ascensão do nazismo, vos em âmbito religioso, e cristão em
samaritana (João 4, 24) e não é hon- abandonou a cátedra e mudou-se para Jerusa- particular. É preciso, no entanto, que
lém, onde passou a lecionar como professor da
rado nem nos templos nem sobre os Universidade Hebraica. A obra de Buber cen- se sublinhe o seu valor de conheci-
montes, mas somente em espírito e tra-se na afirmação das relações interpessoais mento, psicológico e espiritual, e não
verdade. Ou melhor, o distanciamen- e comunitárias da condição humana. (Nota da o confessional, como, ao contrário,
IHU On-Line)
to, que é o coração de toda mística, 15 Gershom Scholem (1897 - 1982): pesqui- tem sido feito até agora.
se lança até ser distanciamento das sador da mística judaica e se estabeleceu no
Escrituras, e, como vimos em Margue- estudo da Cabala em Jerusalém. �����������
É autor de
Die jüdische Mystik in ihren Hauptströmun-
rite Porete, até de Deus mesmo, en- gen (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000) e
quanto imagem determinada, finita. Zur Kabbala und ihrer Symbolik (Frankfurt am
Não é por acaso que as palavras diri- Main: Suhrkamp 1998) (Nota da IHU On-Line)
16 Al-Hallaj: místico islâmico, um de seus
gidas por Jesus aos discípulos despe- grandes. Foi martirizado em Bagdá no século
dindo-se deles em João 16, 7 – “É ne- X por ter dito, em estado de êxtase: “Eu sou a 18 Swami Abhishiktananda (1910-1973): nome
cessário para vós que eu vá, pois, se (Nota da IHU On-Line)
Verdade”. ��������� indiano de Dom Henri Le Saux, monge bene-
17 Ibn Arabi: chamado o “Doutor Máximo” e ditino. Em
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1950, foi co-fundador, junto com
eu não for, o Espírito não virá a vós” “vivificador da Religião”, nasceu em Múrcia, Father Jules Monchanin, do Satchidananda
– são singularmente caras aos místicos na Espanha, em 1165 e faleceu na Síria, Da- Ashram, uma instituição monástica dedicada à
mais profundos. E é evidente que isso masco, em 1240. O Mestre de Múrcia escreveu integração dos valores da tradição beneditina
centenas de livros, dos quais 150 ainda são com os valores da tradição monástica hindu.
não é a coisa mais apta para que as conservados. Entre os escritos de Ibn Arabi se (Nota da IHU On-Line)
religiões sustentem em sua estrutura destacam a Epístola da Santidade, Pérolas e 19 Rudolf Otto (1869-1937): eminente teólo-
positiva, litúrgica, dogmática etc. Sabedoria e As Revelações de Meca, que possui go protestante alemão e erudito em religiões
mais de 4 mil páginas no original em árabe. comparadas. Autor de The Idea of the Holy,
Também é preciso notar que, en- Confira a entrevista Amor e aniquilação na publicado pela primeira vez em 1917 como Das
tre as grandes religiões do mundo, as mística de Marguerite Porete e Ibn’Arabi, con- Heilige (considerado um dos mais importantes
mais hostis à mística são seguramente cedida por Ernesto Cardenal à edição 133 da tratados teológicos em língua alemã do século
IHU On-Line, de 21-03-2005, disponível para XX) e criador do termo numinous, o qual expri-
a judaica e a muçulmana, enquanto download no link http://bit.ly/sJiHh9. (Nota me um importante conceito religioso e filosófi-
religiões da absoluta transcendên- da IHU On-Line) co da atualidade. (Nota da IHU On-Line)

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Mística: experiência que integra anima (feminilidade) e
animus (masculinidade)
A mística “é uma experiência que integra, em reciprocidade fundamental, as dimensões de
anima (feminilidade) e animus (masculinidade) que habitam cada pessoa humana”, afirma
Faustino Teixeira. “Há uma ‘lógica do coração’ que transborda a ‘lógica da razão’”

Por Moisés Sbardelotto

P
or mística, podemos entender uma “experiência singular de estar mergulhado na ‘ternura’ de
Deus, com a consciência viva de que tudo é dado por Ele”. “Não é um deleite qualquer, mas um
‘deleite insuportável’, pois a alma é pequena para o alvoroço que ele provoca”. Uma experiên-
cia facultada a todos, não apenas aos que se definem como religiosos, explica Faustino Teixeira,
professor do programa de pós-graduação em ciência da religião da Universidade Federal de Juiz
de Fora – UFJF.
Por isso a mística “é uma experiência que integra, em reciprocidade fundamental, as dimensões de
anima (feminilidade) e animus (masculinidade) que habitam cada pessoa humana”. E as grandes mulheres
místicas da história, nesse contexto, foram “mulheres ousadas, que traduzem uma rica e original aborda-
gem do divino”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Teixeira analisa o legado de místicas como Teresa
de Ávila e Marguerite Porete, um legado “do desafio do despojamento, da humildade, da liberdade e da
abertura”. Ambas as mulheres nos ensinaram “a entrega aos cuidados de Deus. Nosso tempo é marcado
pela busca de resultados, pela eficácia e produtividade. Os místicos, na contramão dessa lógica, insistem
na virtude da paciência. Há que saber esperar”, afirma.
Por outro lado, analisando a linguagem dos místicos, Teixeira afirma que há algo que escapa às interpre-
tações tradicionais. “Necessita-se de algo mais para penetrar em seus mistérios. Há uma ‘lógica do coração’
que transborda a ‘lógica da razão’”. Não há, por isso, “uma gramática teológica plausível para interpretar
a novidade linguística que acompanha uma experiência que é viva e profunda. Esse é um desafio – conclui
– que fica para nós, estudiosos da mística”.
Faustino Teixeira é professor do programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de
Juiz de Fora – UFJF, pesquisador do CNPq e consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia
Universidade Gregoriana. Entre suas últimas publicações, encontram-se Catolicismo plural: dinâmicas contempo-
râneas (Vozes, 2009); Ecumenismo e diálogo inter-religioso (Santuário, 2008); Nas teias da delicadeza: Itinerários
místicos (Paulinas, 2006); e No limiar do mistério. Mística e religião (Paulinas, 2004). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos com- Mistério e cala todas as tentativas de amor. Ele fala também de uma pre-
preender a experiência mística? E explicação. Numa tal situação, “a alma sença que envolve o sujeito e o dei-
em que sentido é possível falar de fica suspensa” e o “intelecto não discor-
uma “mística feminina”? re”. Mas permanece acesa a vontade tantes poetas vivos da América Latina. Foi
ministro da cultura da Nicarágua no governo
Faustino Teixeira – Para responder a essa que ama. É uma experiência singular de da Frente Sandinista de Libertação Nacional
questão faço recurso à narrativa de uma estar mergulhado na “ternura” de Deus, (FSLN), mas hoje é dissidente do movimento.
grande mística, Teresa de Ávila. Em seu com a consciência viva de que tudo é Entre suas publicações, citamos Evangelio de
Solentiname (Salamanca: Sígueme, 1975); La
Livro da Vida, no capítulo 10, ela des- dado por Ele. Revolución Perdida (Madri: Editorial Trotta,
creve sua experiência como um evento Muito rica também é a narrativa do 2003); Antología poética (Rosario: HomoSa-
interior, marcado por grande “sentimen- místico e poeta nicaraguense, Ernesto piens Ediciones, 2004); Catulo y Marcial (San-
tiago do Chile: Ediciones Tácitas Ltda, 2004).
to da presença de Deus”. Trata-se de um Cardenal, em sua linda obra Vida no Cardenal nos enviou um texto sobre sua dire-
sentimento que não dá lugar à dúvida,  Ernesto Cardenal (1925-): monge trapista ção espiritual com Thomas Merton, publicada
que envolve toda a pessoa no regaço do nicaraguense, escritor e discípulo de Thomas na edição 133ª de IHU On-Line, de 21-03-2005
Merton, é considerado um dos mais impor- (Nota do IHU On-Line).

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xa com “tremor e espanto”. E não há Faustino Teixeira – Nessa abordagem Simone Weil e Etty Hillesum.
como escapar dessa presença que in- feminina de Deus e do mistério des-
flama a alma: “Quer esconder-se e de- tacam-se inúmeras figuras históricas. IHU On-Line – Para falar do Misté-
saparecer dessa presença e não pode, Encontramos na época medieval a rio ou da Realidade Última, místi-
porque está como entre a espada e a esplêndida experiência das beguinas, cos/as sempre fizeram referência
parede, esta entre Ele e Ele, e não que beberam na fonte da teologia do ao “amor”. Em sua opinião, quais as
tem onde escapar, porque essa presen- amor dos cistercienses Bernardo de principais facetas do amor a partir
ça invade céus e terra e a invade tam- Claraval e Guilherme de S.Thierry, da experiência das grandes mulheres
bém a ela totalmente, e ela está em que foram pioneiros na retomada da místicas da história?
seus braços”. Não é um deleite qual- interpretação mística do Cântico dos Faustino Teixeira – Vou me concen-
quer, mas um “deleite insuportável”, Cânticos. Destacam-se, entre as místi- trar aqui no relato das beguinas, que é
pois a alma é pequena para o alvoroço cas beguinas, Hadewijch de Antuérpia, exemplar a esse respeito. Retomando
que ele provoca. É um deleite agrido- Mechthild de Magdeburgo e Margueri- a experiência mística dessas mulheres
ce enquanto “infinitamente amargo e te Porete, todas do século XIII. São medievais, cuja linguagem vem tecida
infinitamente doce”, mas traz consigo mulheres ousadas que traduzem uma pelo parler-femme, o tema do Amor é
uma alegria genuína e única, maior do rica e original abordagem do divino. central. A ideia de Minne para expressar
que toda a felicidade que a vida até São místicas que se inserem na dinâ- a divindade é muito rica e plástica. É um
então proporcionou. E não é uma ex- mica da mística nupcial (brautmys- predicado de Deus, mas que envolve a
periência facultada unicamente aos tik), distinta da mística especulativa realidade fundamental que a tudo ani-
que se definem como religiosos, mas a (wesenmystik). O tema central é o do ma. Como assinala Hadewijch, é como
todos, indistintamente, na medida em amor, que se insere no coração mesmo o ar que se respira, que atua sem cessar
que estão propensos a viver situações da divindade, entendida como Minne. no interior de cada um. Não há como es-
precisas de um sentimento de envol- Trata-se da força divina que invade e capar desse fluir do amor, desse “jogo”
vimento que ilumina a vida e acende escorre por todo o universo, que flui do amor onde todos estão envolvidos. A
o olhar. gratuitamente para todo canto. Ou divindade não se encontra distanciada
Não sem razão, Raimon Panikkar então, como em Marguerite Porete, a do tempo e da vida cotidiana, mas está
definiu a mística como uma “experiên- Dame-amour, que confere uma nova ao alcance do desejo humano. Em alguns
cia integral da vida”. É verdade que ela configuração de gênero à deidade. casos, como na narrativa de Mechthild,
envolve uma “experiência” e o senti- Essa tradição mística nupcial ganha estamos diante de um “encontro erótico
mento de uma “presença” que escapam vitalidade e também inusitada rique- com Deus”. Em passagem do livro sétimo
do controle e transcendem as práticas za simbólica na experiência de outra de sua obra A luz fluente da divindade,
religiosas usuais, mas é algo que ocorre grande mística do século XVI, Teresa em resposta a uma pessoa que suplicava
em nossa vida cotidiana e terrenal. To- de Ávila. Pode-se ainda lembrar as pre- e rezava, Nosso Senhor responde: “Eu te
dos podemos ser eventos dessa “visita” senças mais modernas de Edith Stein, desejei antes da criação do mundo. Eu
inesperada de uma “misericórdia” que te desejei e tu me desejas. Lá onde se
escorre do inefável e que encanta a vida  Bernardo de Claraval (1090-1153): conhecido encontram dois desejos ardentes, ali o
com o toque de sua beleza, que é “pre- também como São Bernardo, era oriundo de amor é perfeito” (VII,16).
sença que fala”. Não há como enquadrar uma família nobre de Fontaine-les-Dijon, per- Em outra impressionante passa-
to de Dijon, na Borgonha, França. Aos 22 anos
a experiência mística como feminina ou foi estudar teologia no mosteiro de Cister. Em gem do mesmo livro Mechtihild relata
masculina; ela transcende e ao mesmo 1115 fundou a abadia de Claraval, sendo o seu o encontro da alma com a divindade.
tempo envolve essas categorizações. Di- primeiro abade. Naquela época enfrentou inú-  Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã
meras oposições, apesar disto, acabou reunin- francesa, centrou seus pensamentos sobre um
ria que é uma experiência que integra, do mais de 700 monges. Fundou 163 mosteiros aspecto que preocupa a sociedade até os dias
em reciprocidade fundamental, as di- em vários países da Europa. Durante sua vida de hoje: o tormento da injustiça. Vítima da
mensões de anima (feminilidade) e ani- monástica demonstrava grande fé em Deus tuberculose, Weil recusou-se a se alimentar
serviu à igreja católica apoiando as autorida- para compartilhar o sofrimento de seus irmãos
mus (masculinidade) que habitam cada des eclesiásticas acima das pretensões dos mo- franceses que haviam permanecido na Fran-
pessoa humana. narcas. Em função disto favoreceu a criação ça e viviam os dissabores da Segunda Guerra
de ordens militares e religiosas. Uma das mais Mundial. Sobre Weil, confira as edições 84 da
famosas foi a ordem dos cavaleiros templários. revista IHU On-Line, de 17-11- 2003, e 168, de
IHU On-Line – Em sua opinião, que (Nota da IHU On-Line) 12-12-2005, sob o título Hannah Arendt, Simo-
figuras históricas mais se destacam  Edith Theresa Hedwing Stein (1891-1942): ne Weil e Edith Stein. Três mulheres que mar-
na abordagem feminina de Deus e do religiosa alemã, a última de onze irmãos de caram o século XX. Confira, também, a edição
uma família judia que professava o judaísmo. 17 dos Cadernos IHU Em Formação, intitulada
Mistério? Por quê? Faleceu, aos 51 anos, asfixiada, numa câmara Hannah Arendt e Simone Weil. Duas mulheres
 Raimon Panikkar (1918-2010): padre e teólo- de gás, no campo de concentração de Aus- que marcaram a filosofia e a política do sécu-
go espanhol. Durante a sua carreira acadêmi- chwitz, na Polônia. Foi professora de filosofia, lo XX, disponível em http://migre.me/753Ab
ca teve a oportunidade de abordar diferentes discípula de Edmund Husserl. Para conhecer (Nota da IHU On-Line).
tradições culturais. Publicou mais de 40 livros mais sobre seu pensamento, consulte a edição  Etty Hillesum (1914-1943): nascida Esther,
e 300 artigos de filosofia, ciência, metafísica, 168 da revista IHU On-Line, de 12-12-2005, foi uma jovem judia holandesa, cujos diários e
religião e hinduísmo. Foi membro do Instituto sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edi- cartas descrevem a vida em Amsterdã durante
Internacional de Filologia (Paris) e presidente th Stein. Três mulheres que marcaram o sécu- a ocupação alemã. Em setembro de 1943, foi
do Vivarium (Centro de Estudos Interculturais lo XX, disponível em http://migre.me/753Ab deportada para Auschwitz, morrendo em no-
da Catalunha) (Nota da IHU On-Line). (Nota da IHU On-Line). vembro desse ano (Nota da IHU On-Line).

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 13


Assim que a alma entra na câmara da
divindade, no seu leito de amor, vem
“No caso de Marguerite e seu livro sobre a mística, Therèse mon
amour (2008), é um relato que “desa-
por ela interrompida e se assinala que,
para adentrar-se nessa, câmara há que
Teresa, o grande legado fia o pudor”. Sua experiência da pro-
ximidade com Deus é única e de inten-
estar desnuda, sem nenhum obstáculo
entre as duas. Para se dar entrada no
que fica é o do desafio do sidade inaudita. É algo que escapa à
compreensão de todo aquele que não
leito nupcial dos amantes – sublinha
Deus – há que romper o temor e a ver-
despojamento, da partilha algo semelhante. Ela mesma
sublinha que “tudo será bem obscu-
gonha (I,44).
Assim também em Porete, na obra
humildade, da liberdade ro para quem não tiver experiência”.
Na base dessa experiência está um
O espelho das almas simples, a figura
divina vem representada no feminino,
e da abertura” encontro que transformou sua vida.
Aprendeu, sobretudo, por experiência
Dame Amour, a LoinPrés, que se vela e (LV 10,9), e de uma maneira que “es-
dado a tal expressão nesse período era
desvela simultaneamente. Rompendo panta” (LV 12,6). Teresa dizia que para
mesmo “fazer amor”. É nas escarpas
com os estereótipos do tempo, a ora- descrever sua sublime experiência só
mais íngremes e nas “subidas cavernas
dora divina é feminina, firmando uma fazendo recurso aos “desatinos san-
pedregosas” que os amantes se entre-
compreensão singular da Trindade po- tos”, dada a fragilidade da linguagem
gam e se adentram na espessura. Nada
retiana: Dame Amour, LoinPrés e Alma humana. Tudo se desarticula diante de
de estranho para quem bebe no mais
aniquilada. Em passagem dessa obra, tão divina beleza: “É uma luz tão di-
clássico e erótico epitalâmico palesti-
diz o Amor: “Eu sou Deus, pois o Amor ferente das do mundo que o clarão do
no que é o Cântico dos Cânticos.
é Deus, e Deus é Amor, e essa Alma é sol que vemos parece sem brilho em
Teresa de Ávila vem também mo-
Deus por condição de Amor” (capítu- comparação com a claridade e a luz
vida por semelhante perspectiva. As-
lo 21). E mais adiante, acrescenta a que se apresentam à vista” (LV 28,5).
sim como João da Cruz, Teresa é uma
Alma: “Lá onde está o mais de meu
“mística das carícias”, da proximidade
amor, é onde está o mais de meu te- IHU On-Line – Houve algum tipo de
amorosa e do envolvimento corporal.
souro” (capítulo 32). tensão entre a mística vivida por Tere-
É a mística que diz no Livro da Vida
sa de Ávila e a instituição eclesial da
que “não somos anjos, pois temos um
IHU On-Line – Teresa de Ávila, ao falar sua época?
corpo” (LV 22,10). Sua mística é envol-
de Deus, fala de “experiência”, “gozo Faustino Teixeira – O contexto históri-
vida pelo “êxtase”, tão bem retratado
da alma”, que é diferente de “só pen- co em que Teresa viveu foi pontuado
por Gian Lorenzo Bernini, em imagem
sar e crer nele”, como ela afirma. pela presença sombria da inquisição.
da transverberação, que se encontra
Como Teresa interpretava a experiên- Vale lembrar que suas primeiras vi-
na Igreja de Santa Maria da Vitória em
cia mística de Deus? sões de Jesus, entre os anos de 1559
Roma. Nada mais ousado para uma mu-
Faustino Teixeira – Ao tratar do tema e 1560, foram anos difíceis na Espa-
lher europeia do período do que sua
do “gozo” na mística espanhola, a es- nha. Em 1559, a inquisição espanhola
descrição do dardo que perfura o cora-
tudiosa Luce López-Baralt assinala que publica um index de livros religiosos,
ção e atinge as entranhas: “A dor era
o sentido que esse termo adquire no entre os quais muitos apreciados e uti-
tão grande que eu soltava gemidos, e
século de ouro dessa mística esponsal lizados por Teresa. A atuação desse or-
era tão excessiva a suavidade produ-
não pode ser espiritualizado. Com base ganismo chega a seu auge na Espanha
zida por essa dor imensa que a alma
na reflexão da canção XXXVI do Cânti- em 1621.
não desejava que tivesse fim nem se
co Espiritual de João da Cruz, “Goze- Alguns temas centrais da místi-
contentava senão com a presença de
mo-nos Amado”, a autora sublinha que ca de Teresa, como a oração mental,
Deus” (LV 29,13).
João da Cruz lança a “petição mais ou- a contemplação, a quietude eram
Como mostrou Julia Kristeva em
sada” de toda a sua poesia. E o sentido olhados com grande desconfiança por
 Gian Lorenzo Bernini (1598-1680): foi um
 João de Yepes ou São João da Cruz (1542- eminente artista do barroco italiano, traba-
segmentos da instituição católico-ro-
1591): ingressou na Ordem dos Carmelitas aos lhando principalmente na cidade de Roma. mana. Preocupados, seus confessores
21 anos de idade, em 1563, quando recebe o Distinguiu-se como escultor e arquiteto, ainda orientavam-na num sentido distinto de
nome de Frei João de São Matias, em Medina que tivesse sido pintor, desenhista, cenógrafo
del Campo. Em setembro de 1567 encontra-se e criador de espetáculos de pirotecnia. Escul-
sua experiência, e isso a entristecia.
com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala sobre piu numerosas obras de arte presentes até os Sua coragem e ousadia eram, porém,
o projeto de estender a Reforma da Ordem dias atuais em Roma e no Vaticano (Nota da maiores. Dizia: “Sempre que o Senhor
Carmelita também aos padres. Aceitou o desa- IHU On-Line).
fio e trocou o nome para João da Cruz. No dia  Julia Kristeva (1941-): psicanalista búlgara,
me ordenava uma coisa na oração e
28 de novembro de 1568, juntamente com Frei professora de Linguística na Universidade de o confessor me dizia outra, o próprio
Antônio de Jesús Heredia, inicia a Reforma. Paris e autora de mais de trinta livros consa- Senhor repetia que lhe obedecesse;
No dia 25 de janeiro de 1675 foi beatificado grados. Aluna de Roland Barthes, é uma das
por Clemente X. Foi canonizado em 27 de de- mais respeitadas intelectuais da atualidade.
depois Sua Majestade mudava a sua
zembro de 1726 e declarado Doutor da Igreja Seus pensamentos envolvem teoria literária, opinião, para que me ordenasse outra
em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi proclamado semiologia, filosofia e psicologia. Escreveu vez de acordo com a vontade divina”
“Patrono dos Poetas Espanhóis”. Sua festa é também quatro romances. Entre suas obras es-
comemorada no dia 14 de dezembro (Nota da tão: As Novas Doenças da Alma (Rio de Janei- de Janeiro: Rocco); O Velho e os Lobos (Rio de
IHU On-Line). ro: Rocco); Estrangeiros para nós mesmos (Rio Janeiro: Rocco) (Nota da IHU On-Line).

14 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


(LV 26,5). Teresa comenta e lamenta a da alma em seu processo de ruptura Daí o auxílio fundamental exercido
proibição desses livros, mas logo seu com todos os vínculos que impedem o pela “Santa Igreja, a Grande”, que vem
ânimo se levanta: “O Senhor me dis- exercício da verdadeira humildade e o constituída pelas almas animadas e pre-
se: Não sofras, que te darei livro vivo” encontro com Deus. Diversos estudos enchidas pelo Amor: as almas aniquila-
(LV 26,5). Queixa-se da carência de sobre essa obra de Porete sinalizam das. Na visão de Porete, é essa Grande
guias que pudessem contar com uma sua proximidade cronológica e espiri- Igreja que sustenta a fé da “Santa Igreja,
semelhante experiência no caminho tual com a reflexão mística de Mestre a Pequena”. Essa posição da autora sus-
espiritual. Contava, sobretudo, com o Eckhart. citou muita tensão e conflito, sobretudo
favorecimento do Senhor, sem o qual em razão de suas possíveis ressonâncias
soçobraria. E argumentava: “Não fal- IHU On-Line – Na vida de Margueri- gnósticas e joaquimistas. Mas como mos-
tavam coisas para me tirar o juízo, e te, como se deu a relação entre te- trou com clareza a especialista italiana,
algumas vezes eu me via em situações ologia, mística, instituição eclesial e Romana Guarniere, em nenhum momen-
em que só me restava elevar os olhos heresia? to Porete manifesta a intenção de rom-
ao Senhor” (LV 28,18). Faustino Teixeira – Apesar das inúme- per com a instituição, mas permanece
ras críticas sofridas por seu livro ao lon- animada com o desejo de permanecer
IHU On-Line – Marguerite Porete nos go de sua vida, Porete sempre resistiu, ligada a ela, ainda que consciente de
deixou como legado o seu Espelho animada pela força do Espírito. O traço suas limitações históricas.
das almas simples. Como essa metá- singular de sua reflexão é o acento na
fora nos ajuda a compreender a sua liberdade. Através da personagem Amor, IHU On-Line – Recentemente, o Va-
mística? diz Porete: “Essa Alma, diz Amor, é livre, ticano anunciou que Bento XVI pre-
Faustino Teixeira – O Espelho das al- mais que livre, libérrima, abundante- tende declarar Hildegard de Bingen10
mas simples (Mirouer) é fundamental- mente livre, em sua raiz, em seu tronco, doutora da Igreja, título detido por
mente um “tratado místico”, um livro em todos os seus ramos e em todos os apenas outras três mulheres em toda
de instrução religiosa. Foi escrito por frutos de seus ramos. A herança dessa a história: Teresa de Jesus, Catarina
volta de 1290, quando sua autora esta- Alma é a perfeita liberdade, cada uma de Sena11 e Teresa de Lisieux12. Qual
va no auge de sua potencialidade físi- de suas partes tem o seu brasão de no- a importância de Hildegard para a
ca e intelectual. O titulo da obra vem breza” (capítulo 85, 5). mística?
tomado da própria obra, no capítulo Essa Alma livre não tem por que te- Faustino Teixeira – Hildegard de Bingen,
13,15, na voz da palavra do Amor. É mer, pois é habitada pelo Amor. Não
10 Hildegarda de Bingen (1098-1179): místi-
uma obra que nasce, sem dúvida, da é mais como rio que tem um nome, ca, filósofa, compositora e escritora alemã,
experiência mística pessoal de Mar- enquanto ruma para o mar, mas já se abadessa de Rupertsberg em Bingen. Hilde-
guerite, e essa experiência vem à tona fundiu e se dissolveu em suas grandio- garda foi autora de várias obras musicais de
temática religiosa incluindo Ordo Virtutis, uma
em determinados momentos de sua sas águas. Perdeu assim o seu nome, espécie de ópera que relata um diálogo de um
redação, ainda que de forma velada transformando-se no nome daquele grupo de freiras com o Diabo. Escreveu ain-
ou alusiva, como acontece em geral com o qual se fundiu. A Alma foi “quei- da dois dos únicos livros de medicina escritos
na Europa no século XII, onde demonstrou um
na literatura mística. A exposição da mada pelo ardor do fogo da caridade, conhecimento notável de plantas medicinais.
autora deixa transparecer acenos ve- e suas cinzas jogadas em alto-mar pelo Hildegarda alegava ter visões inspiradas por
lados de uma mensagem revestida de nada da vontade” (capítulo 85,15). Deus, que o próprio a incentivou a escrever em
livros. Após quatro tentativas de canonização,
alegorias peculiares, que rompem com Assim também Porete, animada com Hildegarda permanece apenas beatificada.
as rotas conhecidas do conhecimento a força do Amor. Foi permanente sua (Nota da IHU On-Line)
tradicional. resistência aos desmandos da inquisi- 11 Catarina de Siena (1347-1380): leiga da Or-
dem Terceira de São Domingos, venerada como
Já no prólogo da obra, Marguerite ção, até ser queimada em praça pú- Santa Catarina na Igreja Católica. Catarina de
sinaliza que sua adequada compreen- blica, em 1310, acusada de “herética Siena foi ainda uma personagem influente no
são só poderá ocorrer mediante o “en- recidiva, relapsa e impenitente”. Seu Grande Cisma do Ocidente (Nota da IHU On-
Line)
tendimento interior sutil”, que ocorre olhar sobre a instituição é marca- 12 Santa Teresa de Lisieux: Santa Teresa do
em geral com aqueles que estão movi- do por crítica incisiva. Entende que Menino Jesus e da Sagrada Face ou apenas
dos pelo Amor Cortês. O livro tem uma a “Santa Igreja, a Pequena” encon- Santa Teresinha, nasceu em 1873 em Alençon,
na França. Filha de um relojoeiro e de uma
estrutura dialógica, com personagens tra-se ainda sob o domínio da Razão, artesã dedicou-se a vida religiosa assim como
que são centrais e outros que são se- que permanece movida por pequeno suas cinco irmãs. Aos 15 anos entrou para o
cundários. Os interlocutores principais entendimento: muitas vezes toma a convento das carmelitas, na cidade de Lisieux.
Passou nove anos no convento vivendo intensa-
são a Dama Amor, a Alma e a Razão, palha e deixa o grão. Trata-se de uma mente a fé eclesiástica. Aos 23 anos descobriu
todas figuras femininas. Como indica- instituição definida e delimitada, não que estava com tuberculose. Desejava ir como
do no próprio título, o tema central da alcançando o mistério que habita nas missionária para a Indochina, mas sua saúde
debilitada estava não lhe permitiu. A santa
obra gira em torno do caminho gradual almas despojadas e aniquiladas. É uma dissera que uma chuva de rosas (bençãos) cai-
de libertação da alma e de sua união instituição que não capta igualmente ria sobre a Terra após a sua morte. Em 1906 a
mística com Deus. O grande protago- a medula que habita o fundo da alma, cura de um seminarista de Lisieux foi atribuído
a ela e vários milagres seguiram-se. Foi beati-
nista da obra é o Amor, e o horizon- pois ali não pode entrar nada de de- ficada em 1923 e canonizada em 1925. (Nota
te visado é o despojamento radical terminado. da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 15


nascida nas margens do Reno, em 1098, tivas místicas: veja os exemplos de
foi uma singular mística dos “sentidos
“Nosso tempo é marcado Rûmî13, em seu Mathnawi e também
espirituais”. Ela se definia como “uma Farid ud-Din Attar14, em sua obra Lin-
folha na respiração de Deus”. De acordo
pela busca de resultados, guagem dos pássaros. Na conclusão de
com R. Termolen, ela nos proporcionou seu livro, Attar fala das dificuldades
uma rica visão do Mistério, “na qual o
pela eficácia e que impedem o acesso ao segredo de
mundo das imagens, dos sons, do can- seu livro. Faz uma distinção entre os
to e dos sentimentos, vem interiorizado
produtividade. Os “filhos das ilusões” e os “filhos da Rea-
elevando-se à experiência de Deus”. Seu lidade”. Os primeiros apenas arranham
grande trabalho foi o Livro das Obras Di-
místicos, na contramão a casca, não conseguindo penetrar nos
vinas, traduzido e apresentado por Ber- enigmas e mistérios de sua poesia. Diz
nardo Gorceix na bela edição francesa
dessa lógica, insistem na Attar: “Os filhos das ilusões são náufra-
da Albin Michel (1982). É uma mística gos na música de meus versos, mas os
muito original que reúne reflexões sobre
virtude da paciência” filhos da Realidade conseguem pene-
medicina, música e teologia cósmica. Foi trar nos meus segredos mais íntimos”.
pioneira no campo dos trabalhos sobre fraterno, por um lado, realiza o amor a Há algo de sigiloso e velado na lin-
medicina no século XII. Com viva sensi- Deus. E o amor a Deus, por outro, faculta guagem dos místicos que escapa às in-
bilidade, para o que chamaríamos hoje o aperfeiçoamento do amor ao próximo, terpretações tradicionais. Necessita-se
de atenção ecológica, trata do valor pois “o amor ao próximo nunca desa- de algo mais para penetrar em seus
curativo e benéfico das plantas, frutas e brochará perfeitamente em nós se não mistérios. Há uma “lógica do coração”
animais. Movida por extraordinário senso brotar da raiz do amor a Deus” (Quintas que transborda a “lógica da razão”.
musical, traduziu sua arte em mais de 70 Moradas, 3,9). Teresa adverte às irmãs Attar convida os leitores de seu livro
composições, marcadas por singular to- “encapotadas” em suas orações sobre para abraçar o que chama de “ciência
que meditativo. O que, porém, mais im- a importância das obras: “Não, irmãs, de Medina”, que é porta de acesso à
pressiona em sua reflexão são as “visões não é assim! O Senhor quer obras. Se vês linguagem esotérica dos pássaros. É
do universo”, que passou a divulgar aos uma enferma a quem podes dar algum necessário sublinhar a peculiaridade
43 anos de idade, com as suntuosas ima- alívio, não tenhas receio de perder a tua da teoria do conhecimento dos místi-
gens que acompanham o seu Livro das devoção e compadece-te dela” (Quintas cos, que é distinta da forma de teoria
Obras Divinas. Fala ali a energia supre- Moradas, 3,11). que conhecemos, que se dá mediante
ma e ígnea que inflama cada “centelha Destacaria também um tópico muito o aprendizado convencional. O místi-
de vida”, a claridade de Deus, sem fim rico, presente nas duas grandes místicas: co, ao contrário, faz também recurso à
ou começo, que em sua perfeita justiça a entrega aos cuidados de Deus. Nosso “aprendizagem direta”, por via do dom
eleva o ser humano aos céus “nas asas tempo é marcado pela busca de resul- divino.
abertas de todas as suas obras boas”. O tados, pela eficácia e produtividade. Os Dizia um grande místico sufi egíp-
ser humano está ali, no centro do univer- místicos, na contramão dessa lógica, in- cio: “Conheci o meu Senhor por meio
so criado, como um “fecho das maravi- sistem na virtude da paciência. Há que do meu Senhor, sem o meu Senhor, ja-
lhas de Deus”. saber esperar. Numa rica passagem de mais poderia conhecer o meu Senhor”.
seu livro, Porete fala de um sábio tra- Trata-se do conhecimento íntimo de
IHU On-Line – Em momentos de crise balhador que cultiva sua terra para dela Deus, bebido em sua câmara secreta,
epocal como o nosso, que abrangem tirar seu sustento. Ele cultiva e ara a e que os místicos sufis nomeiam como
vários âmbitos da vida social, em que terra, num duro esforço laborativo. Mas ma’rifa. Para firmar o seu conheci-
aspectos as místicas de Teresa e de depois que coloca o trigo na terra, cessa mento, os místicos rastreiam também
Marguerite nos é contemporânea? o seu poder. O que vale agora é a paci- os “atalhos da inspiração”, para além
Em que elas nos iluminam? ência para aguardar os frutos: “Todo o 13 Rûmî (Jelaluddin Balkhi): considerado o
seu poder não pode mais ajudar. É pre- maior poeta místico de toda a tradição mu-
Faustino Teixeira – No caso específico çulmana, Rûmî nasceu em 1207, no Afega-
de Marguerite e Teresa, o grande legado ciso que ele deixe o resto ao cuidado de nistão, e morreu em 1273. O seu pai era um
que fica é o do desafio do despojamento, Deus, se quer ter um bom resultado em teólogo e um místico e ele tornou-se um sheik
seu trabalho. Por si ele não pode fazer na comunidade dervixe. Mais tarde tornou-se
da humildade, da liberdade e da aber- também um místico e a sua poesia reflete essa
tura. As duas místicas estão marcadas mais nada” (capítulo 124, 35-50). sensibilidade e essa forma de sabedoria. Em
pela fina atenção aos sinais dos tempos. 04-06-2007, a revista IHU On-Line dedicou sua
IHU On-Line – Como percebe a rela- edição de nº. 222 a Rûmî. O poeta e místico
A mística beguina chama a atenção para da dança do Amor e da Unidade, disponível em
auscultar a presença de Deus não só nos ção entre teologia/filosofia e místi- http://migre.me/753YN (Nota do IHU On-
templos e mosteiros, mas também em ca? Existiria hoje a necessidade de Line).
uma gramática teológica/filosófica 14 Farid ud-Din Attar (1145/46-1221): poeta
toda a parte e em todos os lugares (ca- persa do século XII, um dos maiores sufis de
pítulo 69, 42-50). Teresa, por sua vez, adequada para se poder captar a no- todos os tempos. Durante quase 40 anos viajou
convoca ao essencial desafio do amor vidade dos místicos? por muitos países, estudando em mosteiros e
Faustino Teixeira – Essa tensão entre colecionando os escritos de sufis devotos, jun-
fraterno, que está dialeticamente uni- tamente com lendas e histórias (Nota da IHU
do ao amor a Deus. A prática do amor mística e filosofia percorre as narra- On-Line).

16 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


da rota conhecida, traçada no tradi- brasileira do livro de Mestre Eckhart so- Faustino Teixeira – Trabalhei esse tema
cional mapa do conhecimento. bre A mística de ser e de não ter (Pe- em vários artigos. Sublinho aqui o que
Em clássico texto de Ibn’Arabi15 sobre trópolis: Vozes, 1983), ele fala das difi- entendo como essencial. A experiência
a tensão entre os eruditos exotéricos e culdades da mística com as instituições mística carrega consigo uma fundamen-
os sufis, ele trata da diferença entre o religiosas. Segundo Boff, “a instituição tal exigência de humildade, esvaziamen-
conhecimento de ambos. A seu ver, os religiosa, assentada particularmente to de si e abertura ao mistério irredu-
primeiros recebem seu conhecimento sobre seguranças que exigem os meca- tível do outro. Ela faculta também um
dos mortos, e os outros do “eternamen- nismos de controle, dificilmente convi- trabalho interior, essencial para a cria-
te vivo”. Essa é a diferença para ele. No ve com a experiência dos místicos. Ela ção de espaços de hospitalidade. Há que
âmbito da filosofia ocidental, pensadores possui pouca flexibilidade para entender acolher e hospedar o outro dentro de si.
como Jean Baruzi16, Jacques Maritain17 e a linguagem ousada dos que experimen- Sem esse exercício fundamental, não há
Georges Morel18 debateram intensamen- taram o inefável do Mistério”. A lingua- disponibilidade dialogal. É interessante
te tal questão. Esse último autor, no pre- gem dos místicos é tecida por alusões, verificar como, à medida que avançamos
fácio de sua volumosa obra sobre João oxímoros e dislates. Não é uma lingua- em direção ao nosso mundo interior, no
da Cruz, abordou o tema da filosofia, te- gem usual e rotineira, mas marcada pelo âmbito da profundidade, cresce a consci-
ologia e mística. Assinala que o místico, traço excessivo. ência da particularidade e contingência
na verdade, toca o coração do filósofo, Ao final de seu complexo sermão de nossos vínculos identitários e desper-
despertando nele uma “nostalgia, talvez sobre a bem-aventurança dos pobres, tamos para uma tal liberdade espiritual,
rechaçada, a nostalgia do mistério das Eckhart assinala: “Quem não compre- capaz de desvelar para nós a irradiadora
coisas”. ende a fala, não aflija com isso o seu presença de Deus em toda parte.
IHU On-Line – Em sua opinião, como coração. Pois enquanto o homem não se
se manifesta a radicalidade da lin- iguala a essa verdade, não compreende- IHU On-Line – Em sua opinião, qual é
guagem mística em geral, uma lin- rá essa fala. Essa é, sim, uma verdade o papel dos místicos/as e da espiritu-
guagem muitas vezes ousada para os sem véu, vinda diretamente do coração alidade hoje?
padrões sociais e eclesiais? Em que de Deus” (Sermão Alemão 52). É uma Faustino Teixeira – O grande místico
ela se diferencia da linguagem teoló- fala de ousadia, “abusada”, como tam- cistercience Thomas Merton20 sinaliza
gica ou filosófica? bém vislumbramos em Ibn’Arabi, que em seu livro sobre As novas sementes
Faustino Teixeira – Na ampla introdução chegou uma vez a dizer: “Diversas são as da contemplação que “é precisamente
de Leonardo Boff19 feita para a tradução crenças professadas pelas pessoas sobre porque os santos estavam absortos em
15 Abū Bakr Muhammad Ibn ‘Alī Ibn al-’Arabi Deus. Mas eu as professo todas. Creio em Deus que possuíam a capacidade de ver
(1165-1240): foi um místico sufi, filósofo, poe- todas as crenças”. e apreciar as coisas criadas”. Essa é a
ta, viajante e sábio hispano-muçulmano do al- Ao refletir sobre a linguagem ex- delicadeza peculiar do místico: sua ca-
Andalus. Suas importantes e numerosas con-
tribuições em distintos campos das ciências cessiva dos místicos alemães, o filóso- pacidade de atenção aos pequenos sinais
islâmicas valeram-lhe os títulos de Vivificador fo Amador Vega – grande especialista do cotidiano e sua abertura ao canto das
da Religião (Nota da IHU On-Line). em Eckhart – assinala o traço de sua coisas. É alguém sempre desperto para o
16 Jean Baruzi (1881-1953): foi um historia-
dor religioso e filósofo francês. Especialista em novidade linguística. É essa novidade infinito Real que brilha dentro da reali-
Leibniz, Paulo de Tarso, Angelus Silesius e João que provoca resistências e oposições, dade. É alguém dotado de um inaugural
da Cruz, foi nomeado professor no Collège de pois desloca a perspectiva tradicional potencial de ver, e de ver para além dos
France em 1933-1934 (Nota da IHU On-Line).
17 Jacques Maritain (1882-1973): filósofo fran- que sustentava até então o conheci- nomes e formas que estão aí. Ele busca,
cês. O pensamento tomista de Maritain serviu- mento ou o dogma. Indica não haver em seu “desaforado amor pelo todo”, ir
lhe de parâmetro para a abordagem e julga- uma gramática teológica plausível sempre além e mais fundo. Sua meta é
mento de situações concretas como a política,
a educação, a arte e a religião vigentes. Mas para interpretar a novidade linguística “atravessar os umbrais da vida” e pene-
tratou também da base da gnosiologia, deci- que acompanha uma experiência que é trar na tessitura do tempo, e de forma
dindo-se pelo realismo imediato e intuição do viva e profunda. Esse é um desafio que radical.
ser, tal como no aristotelismo e na escolástica
originária. Diferenciou a filosofia e a ciência fica para nós, estudiosos da mística. 20 Thomas Merton (1915-1968): monge cató-
experimental, bem como as diversas ciências lico cisterciense trapista, pioneiro no ecume-
filosóficas. Advertiu para a diferença entre o IHU On-Line – Que contribuições a nismo no diálogo com o budismo e tradições
tema da lógica e o da gnosiologia. Foi um dos do Oriente. O livro Merton na intimidade:
principais expoentes do tomismo no século XX. mística pode dar ao fortalecimento sua vida em seus diários (Rio de Janeiro: Fi-
Uma de suas obras principais é Por um huma- do diálogo inter-religioso? sus, 2001) é uma seleção extraída dos vários
nismo cristão (São Paulo: Paulus, 1999). Sobre as razões que ainda lhe motivam a ser cristão, volumes do diário de Thomas Merton, autor
Maritain, confira o recém-lançado Maritain à publicado na edição especial de Natal da IHU de livros famosos como A montanha dos sete
contre-temps: Pour une démocratie vivante On-Line, número 209, de 18-12-2006, disponí- patamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas
(Paris: Desclée de Brouwer, 2007), do filósofo vel em http://bit.ly/iBjvZq, e concedeu uma sementes de contemplação (Rio de Janeiro:
jesuíta Paul Valadier (Nota da IHU On-Line). entrevista sobre a teologia da libertação na IHU Fisus, 1999). O livro foi editado por Patrick
18 Georges Morel (1921-1989): foi um jesuíta On-Line número 214, de 02-04-2007, disponí- Hart, também monge e colaborador de Mer-
francês, teólogo e filósofo especialista em He- vel em http://bit.ly/kaibZx. Na edição 238, ton. Na matéria de capa da edição 133 da IHU
gel (Nota da IHU On-Line). de 01-10-2007, intitulada Francisco. O santo, On-Line, de 21-03-2005, publicamos um artigo
19 Leonardo Boff (1938-): teólogo brasileiro, concedeu a entrevista A ecologia exterior e a de Ernesto Cardenal, discípulo de Merton, que
autor de mais de 60 livros nas áreas de teo- ecologia interior. Francisco, uma síntese feliz, fala sobre sua relação com o monge, disponí-
logia, espiritualidade, filosofia, antropologia e disponível em http://bit.ly/km44R2 (Nota da vel em http://migre.me/754y7 (Nota da IHU
mística. Boff escreveu um depoimento sobre IHU On-Line) On-Line).

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 17


A mística e o mistério hoje
Para Juan Martín Velasco, há uma atualidade da mística numa época de eclipse cultural e
social de Deus e de profunda e massiva crise das religiões estabelecidas. Uma atualidade
originada pela sede de experiência espiritual de que muitas pessoas padecem numa cultura
instalada na imanência

Por Moisés Sbardelotto | Tradução de Benno Dischinger

A
s experiências místicas remetem às experiências do sujeito. Mas também são “experiências sin-
gulares que se destacam porque superam o modo de relação sujeito/objeto vigente no resto das
experiências humanas”. E todos esses aspectos “remetem, como sua raiz, a algo mais fundamen-
tal que outorga a todas essas experiências seu verdadeiro significado. É a referência a um termo,
o dado na experiência, seu conteúdo, que os sujeitos designam com os mais variados nomes: o
Todo, o Absoluto, o Divino, o Tao, Brama, Deus, o Espírito”.
Para Juan Martín Velasco, professor emérito de Fenomenologia da Religião da Universidade Pontifícia
de Salamanca e da Faculdade de Teologia San Dámaso, na Espanha, para entender o fenômeno religioso é
preciso entender o “mistério”, aquela “realidade anterior e superior – um supra e um prius – presente em
todos os sistemas religiosos e que pode inclusive manifestar-se ao homem sob formas não religiosas”.
Esse mistério também foi “entendido” por Teresa de Jesus, que marcou a história do pensamento –
“adiantada à experiência moderna da subjetividade” –, a história da Igreja – “como promotora de uma re-
forma que serviu de modelo à renovação católica da vida religiosa” – e até a história em si – “pela influência
social que sua forma revolucionária de viver a condição feminina exerceu”, afirma, em entrevista concedida
por e-mail à IHU On-Line.
Inspirado em Teresa, Velasco questiona os cristãos de hoje: “Saberemos interpretar, como Igrejas, o
sinal dos tempos que supõe, por uma parte, o abandono de tantos de seus membros, e, por outra, a sede
de experiência, o desejo de transcendência, o interesse pela mística, a busca do espiritual que manifestam
grupos cada vez mais importantes e variados de pessoas?”. Mas oferece uma resposta confiante: “Místicos
hoje? Estou certo que sim. Místicos enquanto existam seres humanos, embora provavelmente sob formas
tão variadas como eles e os tempos em que lhes caiba viver”.
Juan Martín Velasco é professor emérito de Fenomenologia da Religião da Universidade Pontifícia de Sa-
lamanca, em Madri e da Faculdade de Teologia San Dámaso, especialista em temas relacionados à mística.
É doutor em filosofia pela Universidad Católica de Louvain, na Bélgica. Foi reitor do Seminário de Madri
(1977-1987) e diretor do Instituto Superior de Pastoral da Universidade Pontifícia de Salamanca durante 16
anos. Em português, publicou Doze místicos cristãos (Ed. Vozes, 2003) e A experiência cristã de Deus (Ed.
Paulinas, 1994). Dentre suas outras obras, destacamos El fenómeno místico (Ed. Trotta, 1999) e Introducci-
ón a la fenomenología de la religión (Ed. Trotta, 2006). Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é mística para o tam com frequência estados alterados cia a um termo, o dado na experiência,
senhor? Como a interpreta no contex- de consciência; vão acompanhadas de seu conteúdo, que os sujeitos designam
to contemporâneo? profundas comoções afetivas; e levam com os mais variados nomes: o Todo, o
Juan Martín Velasco – Os elementos vi- consigo um alto índice de referência à Absoluto, o Divino, o Tao, Brama, Deus,
síveis do fenômeno místico remetem, realidade, o qual produz no sujeito a o Espírito. Uma realidade que compor-
como elemento central do mesmo, às segurança de estar com o verdadeira- ta em todos os casos e sob essa enorme
experiências do sujeito. São experiên- mente real. variedade de nomes uma série de tra-
cias singulares que se destacam porque Mas todos estes aspectos remetem, ços originais que conferem sua peculia-
superam o modo de relação sujeito/ob- como sua raiz, a algo mais fundamental ridade última à experiência pela qual
jeto vigente no resto das experiências que outorga a todas essas experiências o sujeito entra em contato com ela.
humanas. Elas produzem ou compor- seu verdadeiro significado. É a referên- Qual é essa realidade?

18 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


Se nos perguntássemos por essa
realidade somente a partir dos teste-
“O peculiar da Qual a atualidade da mística?
Juan Martín Velasco – Alguns traços
munhos da tradição mística cristã te-
ríamos que identificá-la com Deus, sob
experiência mística da atual situação parecem tornar
nossa época refratária a qualquer
a forma de Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo, que se nos dá como Espírito
em relação com o forma de mística. Pensemos na gra-
ve crise das religiões estabelecidas,
vivificante. Mas a presença de expe-
riências de tal tipo em tradições re-
comum das o crescimento da descrença e a crise
de Deus, que poderia estar afetando
ligiosas que desconhecem essa forma
de identificação, que não dispõem de
experiências religiosas em boa medida não poucas pessoas
que creem. Sem embargo, não faltam
uma representação para ela em ter-
mos propriamente teístas, ou inclusive
é que se trata de uma indícios da aparição em sintomas às
vezes ambíguos, de profundas neces-
carecem de toda representação para
a realidade à qual remetem, força o
experiência imediata sidades humanas que deixam insa-
tisfeita a cultura contemporânea so-
estudo comparado das experiências
místicas a buscar uma categoria para
por contato mente científico-técnica e centrada
no econômico como valor supremo.
a identificação dessa realidade mais
ampla do que aquela que constitui a
amoroso com a Disso dá conta a proliferação de novos
movimentos religiosos e, sobretudo,
representação cristã de Deus. Em nos-
sa maneira de entender o fenômeno
realidade o aparecimento de numerosas formas
de busca espiritual com manifesta-
religioso essa categoria está resumida
no termo “mistério”. Com ela nos re-
experienciada” ções que contém não poucos traços,
pelo menos no nível psicológico das
ferimos à realidade anterior e superior experiências que suscitam, comuns
– um supra e um prius – presente em e da própria pessoa, que estabelece com os que têm tornado presentes
todos os sistemas religiosos e que pode com ela uma relação inteiramente ori- as tradições místicas. Em não poucos
inclusive manifestar-se ao homem sob ginal. casos, alguns de seus representan-
formas não religiosas, como sucede em Se tivesse que resumir num só tra- tes identificam como místicas suas
algumas formas de espiritualidade à ço o peculiar da experiência mística próprias experiências e não receiam
margem das religiosas nas sociedades em relação com o comum das experi- identificar-se a si mesmos como mís-
submetidas a uma forte secularização ências religiosas, diria que se trata de ticos, isso sim, sui generis.
e a uma aguda crise das religiões tra- uma experiência imediata por contato Isso faz com que, se em outras épo-
dicionais. amoroso com a realidade experiencia- cas o problema mais importante para
A leitura das referências religiosas da. “Imediata”, porque isso é justa- os estudiosos da mística era justificar
à realidade significada com essa cate- mente o que o místico anelou ao lon- a existência do objeto de seu estudo,
goria nos símbolos, nas orações e nas go de todo o processo: “Descobre tua o principal problema para eles ago-
representações conceituais das teolo- presença / e mate-me tua vista e for- ra é pôr ordem na exuberante flora-
gias nos tem levado a descobrir alguns mosura...”. Daí que São João da Cruz, ção de fenômenos que recebem esse
poucos traços comuns a todas essas re- por exemplo, fale de sua experiência nome e em discernir entre as formas
presentações, configurações e concep- como “toques substanciais de divina religiosas e não religiosas de mística
ções do “além” absoluto ao qual reme- união entre a alma e Deus”; “toque e, em nosso caso, sublinhar o que tem
tem os diferentes elementos de todos somente da divindade na alma, sem de peculiar a mística cristã.
os sistemas religiosos. Tais traços são: forma nem figura alguma intelectual Mas, a situação atual abre outro
a absoluta transcendência, expressa nem imaginária”. Porém com uma campo importante à atenção dos es-
simbolicamente em sua condição de imediatez que, dada a absoluta trans- tudiosos da mística. Os místicos têm
invisível, em sua total “outridade” em cendência da Presença com a qual o refletido ao longo da história as situ-
relação com todo o mundano, em sua sujeito entra em contato, não pode ações históricas em que viviam. Os
superioridade absoluta e, sobretudo, ser mais do que “imediatez imedia- de nossa época não são uma exceção.
no fato de que o homem só pode en- ta”, porém mediada na própria alma Assim, o “eclipse de Deus”, seu obs-
trar em contato com ela transcenden- convertida em meio da experiência curecimento social e cultural, parece
do as possibilidades de todas as suas da união. haver influído na agudização – para os
faculdades e passando pela noite ou grandes místicos de nosso tempo: Te-
negação e superação de todas elas. IHU On-Line – No contexto das so- resa de Lisieux, Dietrich Bonhoeffer,
Podemos concluir que a experiên- ciedades contemporâneas, espe-  Dietrich Bonhoeffer (1906-1945): teólogo,
pastor luterano, membro da resistência anti-
cia dos místicos, cume da experiência cialmente nas crises econômicas e nazista alemã e membro fundador da Igreja
religiosa, remete como ao seu conte- sociais dos últimos anos, ainda há Confessante, ala da igreja evangélica contrá-
údo, seu termo e sua raiz, à Presença espaço para a experiência mística? ria à política nazista. Bonhoeffer envolveu-se
na trama da “Abwehr” para assassinar Hitler.
originante da mais absoluta transcen-  2 Noche, 23, 11; Llama B, 2,8 (Nota do en- Em março de 1943 foi preso e acabou sendo
dência no mais íntimo da realidade trevistado). enforcado, pouco tempo antes do próprio Hi-

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 19


Teresa de Calcutá e outros – da pas- tabular com elas um diálogo “intrar- Não é somente o fato que a linguagem
sagem pela noite que toda verdadeira religioso” (R. Panikkar) no nível mais mística esteja esmaltada de símbolos;
mística comporta. profundo da vida espiritual. Por últi- é que toda ela é simbólica. Basta alu-
Por outra parte, a sucessão de ca- mo, talvez a situação atual de eviden- dir ao prólogo de São João da Cruz às
tástrofes humanitárias ao longo do te crise do sujeito, de perigo de desu- Declarações a seus poemas para se ter
século XX e sua continuação em nos- manização para os humanos, explique expressões de uma clareza meridiana
sos dias, na injustiça generalizada a aparição de estudos que começam a sobre o que impõe à linguagem mística
que condena massas de pessoas a for- destacar a relação entre mística e hu- sua condição simbólica.
mas desumanas de vida e a uma mor- manismo e a inestimável contribuição A referência a uma realidade de
te prematura, fizeram reaparecer os à causa do homem que poderia supor outra ordem do que as que significam
acentos proféticos em não poucos dos a vida mística encarnada em sujeitos em seu sentido literal os termos que
místicos atuais. Surgiu assim a mística atentos à atual situação e sensíveis às utiliza forçam o místico ao recurso
de olhos abertos à injustiça e ao so- oportunidades e aos perigos que com- constante ao paradoxo, à antítese, ao
frimento que comporta, à mística de portam para o humano. oxímoro. Essa mesma referência ex-
compaixão por suas vítimas, repre- plica a presença nessa linguagem de
sentada pela espiritualidade surgida IHU-On-Line – Em sua opinião, qual constantes alusões à inefabilidade do
no seio da teologia da libertação, a natureza específica da linguagem que pretende expressar e a presença
com Madre Teresa de Calcutá, Simo- mística? do silêncio como horizonte e clima
ne Weil, Etty Hillesum e tantos outros Juan Martín Velasco – A comparação – “tudo envolto em silêncio” (São João
menos conhecidos. das linguagens, comuns em muitos as- da Cruz) – no que o místico inscreve
Assim, a situação de pluralismo re- pectos, das tradições místicas tem co- palavras que sempre considera insu-
ligioso provocada pelo acesso à consci- locado em relevo uma série de traços ficientes. Em definitivo, é a condição
ência planetária e o fato da globaliza- que as caracterizam até o ponto de que “anagógica” da experiência que está
ção levou não poucos místicos cristãos: se possa falar de um modus loquendi, na origem da linguagem mística o que
Thomas Merton, W. Johnston, entre de uma linguagem mística, ou uma lin- origina a necessária analogia, o cará-
outros muitos, a prestarem atenção guagem dos místicos. Ela não se reduz ter simbólico e metafórico de todos os
às místicas presentes em outras tra- a nenhum gênero literário preciso. Os termos de que se serve.
dições, sobretudo orientais, e a en- místicos falam como tais sob formas
poéticas, em relatos autobiográficos, IHU On-Line – Em linhas gerais, quem
tler cometer suicídio. É autor de, entre outros,
Ética (6ª ed., São Leopoldo: Sinodal, 1985) e
em textos parenéticos e declarações foi Teresa de Ávila? Qual a atualidade
Resistência e Submissão: cartas e anotações com intenção pedagógica, e até sob a de sua vida e obra?
escritas na prisão (São Leopoldo: Sinodal, forma de reflexões de índole filosófica Juan Martín Velasco – Teresa de Ce-
(Nota da IHU On-Line)
2003). ���������
 Madre Teresa de Calcutá (1910-1997): Ag-
ou teológica. Naturalmente, em cada peda y Ahumada, Teresa de Ávila, Te-
nes Gonxha Bojaxhiu. Nasceu na República um de tais gêneros se manifestam de resa de Jesus, como quis chamar-se
da Macedônia e foi naturalizada indiana. Be- formas distintas os traços próprios da a si mesma, é uma figura de talhe ex-
atificada pela Igreja Católica, foi considerada
a missionária do século XX, por concretizar o
linguagem mística. Esses traços podem traordinário. Seus dotes pessoais, seus
projeto de apoiar e recuperar os desprotegidos reduzir-se no essencial ao seguinte: a escritos, sua ação reformadora lhe va-
na Índia. Começou a sua atividade reunindo al- linguagem mística se propõe em todos leram um lugar na história da literatura
gumas crianças, a quem começou a ensinar o
alfabeto e as regras de higiene. A sua tarefa
os casos como linguagem de uma ex- espanhola, devido “à pureza e facilida-
diária centrava-se na angariação de donativos periência e estreitamente ligada a ela. de de estilo”, “graça e boa compostura
e na difusão da palavra de alento e de con- Disso resulta que nela, sobretudo em das palavras”, “elegância desafetada
fiança em Deus. Partiu para a Índia em 1931,
para a cidade de Darjeeling, onde fez o novi-
suas formas mais originárias, predomi- que deleita em extremo” (Frei Luis
ciado no colégio das Irmãs de Loreto. No dia ne a função expressiva da linguagem de León); na história do pensamento,
24 de maio de 1931, fez a profissão religiosa, sobre todas as outras funções da lin- como adiantada à experiência moderna
e emitiu os votos temporários de pobreza, cas-
tidade e obediência tomando o nome de “Te-
guagem humana. “A linguagem mística da subjetividade; na história da Igreja,
resa”. A origem da escolha deste nome residiu é necessariamente diversa da filosófica como promotora de uma reforma que
no fato de ser em honra à francesa Teresa de – e também da teológica, poder-se-ia serviu de modelo à renovação católica
Lisieux, padroeira das missionárias, canoniza-
da em 1927 e conhecida como Santa Teresi-
acrescentar –, porque aqui se trata de da vida religiosa; e até na história em
nha. De Darjeeling passou para Calcutá, onde tornar sensível a mesma experiência si, pela influência social que exerceu
exerceu, durante os anos 30 e 40, a docência – e que experiência! –, a mais inefável sua forma revolucionária de viver a
em Geografia no colégio bengalês de Sta Mary,
também pertencente à congregação de Nos-
de todas”. condição feminina.
sa Senhora do Loreto. Impressionada com os Desta primeira propriedade da lin- Um texto da santa resume com ad-
problemas sociais da Índia, que se refletiam guagem mística seguem-se todas as mirável concisão as razões de seu pres-
nas condições de vida das crianças, mulheres
e velhos que viviam na rua e em absoluta mi-
outras e, em primeiro lugar, a condição tígio espiritual e de seu magistério.
séria, fez a profissão perpétua a 24 de maio de simbólica de todos os seus elementos. Essas razões não consistem em dotes
1937. Com a partida do colégio, tirou um curso ou méritos seus. Consistem numa trí-
rápido de enfermagem, que veio a tornar-se J. Maritain, distinguer pour unir ou les de-
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um pilar fundamental da sua tarefa no mundo. grés du savoir, DDB, Paris, 1932, p. 382 (Nota
plice mercê com que Deus a agraciou:
(Nota da IHU On-Line) do entrevistado). “Porque uma mercê é dar o Senhor a
20 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
mercê, outra é entender que mercê e “Como todos os místicos, deste capítulo importante da espiri-
que graça, e outra é saber dizê-la e dar tualidade teresiana, na qual ressoa o
a entender como é”. A mercê da qual santa Teresa fala de eco de toda a tradição cristã: “Pois
fala é a estreita união com Deus no quem não crer não terá experiência,
fundo da alma, uma presença dinâmi- experiências, fala por e quem não tiver experiência não
ca que é presente e dom permanente conhecerá” (Santo Agostinho).
que origina no ser da pessoa sua con- experiência” Por último, a experiência da qual
dição de imagem, sua elevação à rela- fala santa Teresa não consiste tão
ção de filho de Deus. A segunda mercê: verdadeiro. Isso tenho experimentado somente nos acontecimentos extra-
“Entender qual é a mercê e qual é a muito”. A experiência procura um saber ordinários, nos fatos internos extraor-
graça” caracteriza as pessoas que ace- mais claro e certo que qualquer outro dinários que balizan sua vida. Ao con-
deram ao nível da vida mística. Nelas a conhecimento: “Quem tem experiência trário, é sua vida inteira que oferece
presença originante e divinizante, re- o vê muito claramente”; “sei eu por ex- o conteúdo à relação de Deus com ela
conhecida e consentida pela fé, aflora periência que é verdade isso que digo”. e a suas respostas ao amor com que
ao nível da consciência e é vivenciada, A experiência é, ademais, o único Deus a presenteia. À luz da presença
sempre no interior da fé, difundindo- caminho para saber o que, por exceder reconhecida de Deus, sua vida inteira
se num novo conhecimento, numa nova suas capacidades, não depende do su- se converte em “matéria” para a ex-
forma de querer e de viver, que dão jeito e é a base que permite aos que periência de Deus. Daí resulta a impor-
transparência ao próprio sujeito e aos recebem seu testemunho conhecer o tância dos escritos autobiográficos no
que vivem com ele, o manancial do que lhes manifesta: “Faz Deus outra conjunto de sua obra e o componente
qual brota sua vida. mercê bem dificultosa de entender se autobiográfico de toda a sua doutrina
Essas duas primeiras mercês fazem não há grande experiência”; “a expe- espiritual.
de Teresa um eminente testemunho da riência dará isso a entender, que quem
vida mística cristã. A terceira mercê: não a tivesse, não me espanto lhe pare- IHU On-Line – Quais foram as grandes
“Saber dizê-la e entender como é”, nos ça muito obscura”; “é uma amizade... etapas da “busca mística” de Teresa
simples colóquios com suas irmãs e na que somente as que a experimentais a de Ávila?
continuação desse magistério em seus entendereis”. A experiência é também Juan Martín Velasco – A vida de Teresa
escritos, convertera Teresa na mestra o recurso mais eficaz, e algumas ocasi- passa por uma primeira etapa seme-
da vida espiritual reconhecida ininter- ões o único eficaz para discernir a ver- lhante em tudo à de numerosos cren-
ruptamente durante os quatro longos dade, a autenticidade e a origem divina tes. Nascida numa família de cristãos
séculos que passaram desde sua morte das vivências e estados de consciência de origem judaica, por linha paterna,
e, de forma oficial, na atribuição por pelos quais passa o sujeito: “Quem ti- e fervorosamente cristã, vive a infân-
Paulo VI do título de Doutora da Igre- ver experiência do bom espírito enten- cia num clima piedoso: aos doze anos
ja. derá se é de Deus ou do demônio”. A perde sua mãe e se recomenda, como
experiência, que garante o expressado à sua nova mãe, à Virgem Maria; é de-
IHU On-Line – Como se manifesta a por quem a vive, é, ademais, o funda- pois internada num colégio de religio-
mística de Teresa? Em que consiste mento da clareza e da coerência das sas agostinianas e sente o chamado à
sua experiência? expressões que suscita: “Algumas ve- vida religiosa, que a conduz, apesar da
Juan Martín Velasco – Como todos os zes consiste em experiência o sabê-lo oposição de seu pai, ao mosteiro car-
místicos, santa Teresa fala de experi- dizer”; “eu sei isso muito bem por ex- melita da Encarnação.
ências, fala por experiência. Mas não periência e assim o soube dizer”; “do Após superar uma grave enfermida-
é fácil encontrar um autor no qual o que não há experiência, mas se pode de que a teria levado às portas da mor-
tema da experiência adquira a multidão dar razão certa”. te e lhe deixara sequelas para o resto
de modulações que alcança na Santa. Uma última referência me parece de seus dias, volta ao convento onde
Assim, a experiência é o fundamento decisiva para mostrar a lucidez que realiza a profissão religiosa. Seguem
de seu saber e da credibilidade de seu comporta este recurso da santa à expe- alguns anos de crise e estancamento
magistério: “Não direi nada que eu não riência como meio para a vida cristã. A na vida interior da qual vai tirá-la,
tenha experimentado muito”; “o que experiência não se reduz a um estado aos 39 anos, uma dúplice experiência,
eu disser, ei-lo visto por experiência”; de ânimo com as conotações psicológi- suscitada pela contemplação de uma
“creiam-me isso, porque o tenho por ex- cas que comporta; ademais, não subs- imagem “de Cristo muito chagado” e
periência”. A experiência se refere sem- titui a de quem a vive. Ao contrário, as a leitura das Confissões de Santo Agos-
pre ao conhecimento que procura ter múltiplas experiências, por mais gos- tinho. Essa experiência vai supor sua
passado por aquilo de que se fala, tê-lo tosas e certas que sejam, procedem da conversão definitiva. O essencial des-
vivido pessoalmente: “Sei por experiên- fé, meio único para a união com Deus: sa passagem decisiva consiste numa
cia, que a alma que neste caminho de “Eu sei que quem nisso não crer não o inversão da orientação da busca de
oração mental começa a caminhar com verá por experiência”. Uma sentença, Deus que nunca abandonara e do es-
determinação... tem andado grande fundamental para entender o alcance forço por consegui-la. “Não me falta-
parte do caminho”; “mostra-se Senhor vam determinações”, porém “todas...
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 21
aproveitaram-me pouco”. “Buscava e vendo que falo com Deus, com mais
remédios, mas sem resultados”, até
“À luz da presença advertência que nas palavras”, é ao
que, quando suas forças começavam mesmo tempo oração vocal e mental.
a fraquejar, abandona o intento de
reconhecida de Deus, a Por outra parte, oração mental não
conseguir com seu próprio esforço consiste em “pensar muito”, “por que
que a Presença se produza, abando-
vida inteira de Teresa se o negócio não está todo no pensamen-
na a pretensão de autoafirmar-se, to”. O essencial da oração se reduz,
entrega-se a quem por diferentes
converte em ‘matéria’ para para a Santa, ao trato amoroso com o
caminhos está se anunciando em sua Deus que nos ama: “Não é outra coi-
vida e aprende por experiência que
a experiência de Deus” sa a oração mental... senão tratar de
“tudo aproveita pouco se, retirada amizade, estando muitas vezes tra-
a confiança em nós, não a pomos em e para todos aqueles que se sentem tando sozinha com quem sabemos que
Deus”. A partir deste momento, a vida atraídos por essa forma de vida cen- nos ama”.
de Teresa vai ser um processo conti- trada em “o único necessário”. “Trato” refere-se a toda forma de
nuado de chamadas, graças e dons de Santa Teresa aprendeu, graças à comunicação interpessoal, com espe-
Deus a Teresa e de sucessivas entregas sua conversão, que o princípio do ca- cial insistência na simplicidade, cer-
de Teresa nas mãos de Deus: “Para que minho para Deus está no próprio Deus, cania e familiaridade: contanto que
fosse toda vossa”, “dar-me de todo a que tudo depende de sua presença e a raiz e a substância seja a resposta
Deus”, “deixar a alma nas mãos de tem sua origem em seu chamado. Ao amorosa ao amor de Deus. Tem-se dito
Deus, e Ele faça o que queira dela”. homem toca tão só tomar consciência com razão, e temos recordado antes,
A partir daí a nova vida que não e concordar com ele para assim coin- que a oração é religionis actus, co-
fez mais do que iniciar-se desenvol- cidir com a força de atração que ele locação em ato da relação religiosa;
ver-se-á em três frentes principais. imprime no mais íntimo de sua alma. fidei actus, colocação em ato da fé.
Duas exteriores e uma interior e de- Essa consciência se concretizará na Santa Teresa parece coincidir no fun-
terminante. A primeira leva-a a iniciar conformidade da própria vontade com damental com tais definições, porém
e desenvolver a tarefa, cheia de difi- a vontade de Deus e em poder dizer insistindo nesta outra dimensão da ati-
culdades, da reforma do Carmelo e a com toda verdade e com toda a vida: tude teologal que é o amor, a carida-
converte em fundadora de numerosos “Faça-se tua vontade”. Aqui está a de. A oração em sua essência é assim,
conventos reformados; a segunda no- substância e o fim da vida cristã. para ela, a colocação em ato do amor
la mostra entabulando relação com os Para chegar a esse fim, é indispen- de Deus, o amor de Deus em exercício.
mestres espirituais e os teólogos mais sável dar muitos passos, utilizar mui- Antes que atos concretos, e sustentan-
importantes de seu tempo, para dis- tos recursos, servir-se de numerosos do sua inevitável variedade, a oração
cernir suas profundas experiências e, meios. O primeiro, o mais importante, é atitude de advertência e reconheci-
desenvolvendo uma infatigável tarefa o caminho real para chegar a “beber mento da Presença de Deus, escuta de
de escritora, amplia o magistério oral da água da vida”, é a oração. Por isso seu chamado e intercâmbio amoroso
que vinha exercendo com suas Irmãs. a descrição do caminho da perfeição com quem “sabemos que nos ama”.
Mas o acontecimento fundamental de cristã vai centrar-se, para a Santa, na O desenvolvimento desta atitude
sua vida estava tendo lugar em seu descrição da oração. Porque fala para fundamental e seu exercício concreto
interior. É o desenvolvimento de uma suas monjas que a oração é “o ofício dependem da condição humana, cor-
continuada experiência mística que dos religiosos”. Embora ela nunca per- poral e histórica do orante, por uma
havia começado como “um sentimento ca de vista que a oração é porta, meio parte, e do Mistério divino, origem e
da presença de Deus, que de nenhum e caminho, e que a meta e o fim é a termo da relação que se estabelece,
modo podia duvidar que estava dentro união com Deus pela conformidade da por outra. Assim, o exercício da ora-
de mim ou eu toda engolfada nele”; própria vontade e de toda a vida com ção mobiliza a condição corporal sus-
continuaria na experiência cada vez a vontade de Deus. citando palavras, lágrimas, êxtases e
mais intensa do mistério de Cristo e outros fenômenos corporais do sujei-
de sua presença em sua vida, e cul- IHU On-Line – Na experiência mística to. Passa por fases, cresce, amadurece
minaria numa profunda experiência de Teresa de Ávila, qual é o valor e o e se desenvolve ao longo de sua vida:
do Deus trinitário que, após havê-la lugar da oração? A quem se dirige em impregna o exercício de sua inteligên-
convidado a buscá-lo em seu interior seus momentos espirituais? cia, faz vibrar sua dimensão afetiva e
– “busca-me em ti” –, manifestava-se Juan Martín Velasco – Geralmente, a suscita opções e decisões de sua von-
que era ela que precisava encontrar- Santa centra seu magistério na oração tade. No final, como veremos, termina
se Nele – “busca-te em mim”. mental, da qual correntes muito po- impregnando a vida em seu conjunto
Baseada nesta experiência pessoal, derosas de seu tempo queriam excluir e a converte em ato permanente de
Teresa propõe em suas obras um iti- leigos e mulheres. No entanto, para adoração e em hino de louvor.
nerário preciso, um caminho de per- que haja oração mental, não é preciso
feição para suas filhas, as monjas que que a boca esteja fechada. Recitar o IHU On-Line – Como analisa o itine-
encheram seus conventos reformados, Pai Nosso “inteiramente, entendendo rário espiritual de Teresa de Ávila?
22 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
Que simbologia e semântica são por que a requer, sem dúvida, mas que
ela utilizadas para descrever suas não se esgota nela, está insistente-
experiências místicas? mente sublinhada na obra dessa santa
Juan Martín Velasco – Uma relação com diferentes argumentos. As obras,
que tem em Deus sua origem e seu ter- as virtudes e, especialmente, o amor
mo está chamada a progredir sem fim. de Deus manifestado no amor mútuo
Teresa viveu em sua oração um pro- ou no amor do próximo são propostas
cesso de desenvolvimento permanente uma e outra vez como o fruto que to-
que a levou a progredir na profundeza dos os outros meios estão chamados a
da própria interioridade, a abismar-se produzir e como o critério único que
cada vez mais profundamente no Mis- garante a autenticidade da oração,
tério divino sobre o qual descansa, a com os estados interiores, os gostos e
uma consciência cada vez mais trans- até os fenômenos extraordinários que
lúcida dessa presença em seu interior, em determinadas circunstâncias traz
e a uma progressão constante na con- consigo: “Não, irmãs, não; o Senhor
formidade à sua vontade. Com uma quer obras, e se tu vês uma doente a
arte dificilmente superável soube, quem podes dar algum alívio, não per-
ademais, analisar e descrever seu iti- cas por nada essa devoção”.
nerário espiritual e oferecer distintas A razão última dessa subordinação
versões das etapas mais importantes da oração está em que a perfeição
do mesmo. Assim, no tratado sobre a consiste na união com Deus e esta se
oração incluída na Vida, expõe, sob a realiza “na união verdadeira com a
alegoria da água com que o hortelão vontade de Deus. Esta é a união que
rega o horto, quatro graus de oração, em toda minha vida tenho desejado,
representados pela meditação: a água esta é a que peço sempre a nosso Se-
tirada com grande esforço e de um nhor...”. Porque “somente estas duas
resultado pequeno; a oração de quie- (coisas) nos pede o Senhor: amor de
tude representada pela água tirada sua Majestade e do próximo”. em uma sociedade tecnocientífica?
“por um torno e aquedutos”, quando Por isso, numa das ocasiões em que Como a mística pode contribuir com
a ajuda de Deus reduz a necessida- a Teresa se propõe aclarar “em que uma fé mais madura e atualizada?
de de esforços e concentra a relação está a substância da perfeita oração”, Juan Martín Velasco – Há uma atuali-
com Deus num simples movimento da orienta a resposta para o amor: “O dade da mística numa época de eclipse
vontade atraída pela Presença que a aproveitamento da alma não está em cultural e social de Deus e de profunda
embarga; a oração extática na qual a pensar muito, mas em amar muito”. e massiva crise das religiões estabele-
Presença inunda as faculdades do ho- Por outro caminho, a Santa mostra cidas. Uma atualidade originada pela
mem e as “embriaga” ou “adormece”, o necessário ordenamento da oração e sede de experiência espiritual de que
representada por uma água que pro- a contemplação à vida diária e às ta- muitas pessoas padecem numa cultura
cede de uma “corrente de rio ou de refas de serviço e amor que compor- instalada na imanência e que esquece
fonte”, na qual Deus “é quase o hor- ta. Como haviam feito outros grandes e até reprime o cultivo das dimensões
telão e quem faz tudo”; e, por último, teóricos e práticos da contemplação, mais profundas do ser humano.
a oração de união, representada pelo santa Teresa lê o texto evangélico de Mas isso supõe não só uma reação
“chover muito”, quando Deus rega o Marta equiparando a tarefa das duas ir- ao positivismo empobrecedor de uma
horto “sem trabalho nenhum nosso”. É mãs, declarando ambas indispensáveis cultura somente científico-técnica
sabido que o livro das Moradas desen- e até concedendo às vezes a primazia que ameaça asfixiar as pessoas. Cons-
volve as quatro formas de oração do a Marta: “Marta e Maria hão de andar titui, ademais, um protesto silencioso
livro da Vida, expressando com as ima- juntas para hospedar o Senhor: como contra a pobreza espiritual das Igrejas
gens das moradas, a larva de seda que lhe daria hospedagem Maria, sentada e das religiões estabelecidas. Delas é
se transforma em mariposa, a água e, sempre a seus pés, se sua irmã não lhe possível que se possa decidir, como os
sobretudo, a imagem dos esponsais e ajudasse?”. “ Marta e Maria nunca dei- profetas de todos os tempos têm dito
o matrimônio, a progressiva união da xam de atuar juntas”. E, dirigindo-se dos aparatos religiosos de seu tempo,
alma com Deus e as formas de oração a suas monjas, isto é, a contemplati- que o povo padece da fome de Deus,
em que se expressa, se exerce e se pa- vas: “Santa era santa Marta, embora da experiência de sua presença, e os
dece. não digam que era contemplativa. Pois responsáveis religiosos lhe oferecemos
A insistência na oração não faz Te- pensai que esta congregação é a casa doutrinas, normas, ritos e submissão
resa perder de vista que esta não é o de santa Marta”. a uma instituição que às vezes ocupa
fim da vida cristã, senão um meio, em- o lugar de Deus em vez de remeter a
bora indispensável. Essa orientação, IHU On-Line – Que desafios a místi- Ele. Talvez isso explique o afastamento
subordinação da oração à vida cristã ca apresenta à Igreja institucional silencioso de muitos que abandonam
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 23
as igrejas. Seguramente isso explica to bem poderia suceder que a atual si- chegado a escrever: “fora do suicídio
também a atonia espiritual de muitos tuação constitua uma confirmação da não há salvação”, e que assegurava
dos que nelas permanecem – perma- velha verdade de que sem Deus não é que não aguentaria nem um só dia no
necemos? – por tradição, costume ou possível uma verdadeira humanização paraíso, que se perguntava: “Como
inércia. do homem. Considero que o teólogo explicar, então, a nostalgia que tenho
Há já mais de um século, Newman  em questão está mais acertado na ma- dele? Não a explico: vive em mim des-
advertia que uma religião reduzida à tização do que na afirmação primei- de sempre, estava em mim antes que
prática herdada estava condenada ra. Porque o homem, feito para Deus eu”. Essa nostalgia era para ele, não
a terminar, nas pessoas cultas, na (“Fizeste-nos, Senhor, para Ti...”), a me cabe dúvida, sinal da presença, de
indiferença, e nas simples, na su- ser “com um Mistério no coração que algum modo reconhecida, de um Deus,
perstição. A crise de nossas igrejas é maior que ele mesmo” (H. Urs von talvez desconhecido, nele.
está confirmando sua previsão. Sa- Balthasar) não pode realizar-se ple- Místicos hoje? Estou certo que sim.
beremos interpretar, como Igrejas, o namente mais do que reconhecendo Místicos enquanto existam seres hu-
sinal dos tempos que supõe, por uma esse Mistério e assentindo a ele. manos, embora provavelmente sob
parte, o abandono de tantos de seus Os místicos, verdadeiros explora- formas tão variadas como eles e os
membros, e, por outra, a sede de dores do infinito no homem, disseram tempos em que lhes caiba viver.
experiência, o desejo de transcen- isso de muitas maneiras. Pois debaixo
dência, o interesse pela mística, a de seus muitos desejos o homem é
busca do espiritual que manifestam “desejo abissal”, desfundado no fun-
grupos cada vez mais importantes e do sem fundo de Deus. Dito de forma
variados de pessoas? Interpretá-lo mais simples: “Estando a vontade /
adequadamente exigiria de nós res- de Divindade tocada / não pode ficar BAÚ DA IHU On-Line
postas muito radicais: a conversão apagada / senão com Divindade” (São
pessoal ao essencial do Evangelho e João da Cruz). Confira outras edições da Revista IHU On-Line cujo
tema de capa aborda temáticas ligadas à mística:
a reconversão das envelhecidas es- Naturalmente, isso não significa
truturas dos aparatos institucionais que somente os indivíduos religiosos
* Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três
de nossas Igrejas. se realizam verdadeiramente como mulheres que marcaram o século XXI. Edição 168,
humanos. Pessoas não religiosas e que de 12-12-2005, disponível em http://migre.me/
IHU On-Line – É possível ser místico até rechaçam formalmente a Deus dão 7aOvR.
* O mundo moderno é o mundo sem política. Han-
hoje? mostras de haver tomado consciência nah Arendt 1906-1975. Edição 206, de 27-11-2006,
Juan Martín Velasco – “Que homem da Transcendência que habita no ho- disponível em http://migre.me/7aOMR.
razoável quer hoje a divinização?”, mem, e de havê-la reconhecido por * Rûmî. O poeta e místico da dança do Amor e da
Unidade. Edição 222, de 04-06-2007, disponível em
perguntava-se um conhecido teólogo outros caminhos que não os religiosos, http://migre.me/7aOGM.
crítico. O tema do intercâmbio en- tais como uma vida moral digna ou o * Gerard Manley Hopkins: poeta e místico. Do coti-
tre Deus e o homem, tão presente reconhecimento do valor incondicional diano imediato ao plano cósmico. Edição 282, de 17-
11-2008, disponível em http://migre.me/7aOYc.
nos antigos escritores cristãos, e que que representa a pessoa do outro. Por * As religiões da profecia: Judaísmo, cristianismo e
tão candente resultava em seu tem- outra parte, temos indícios para sus- islamismo. Edição 302, de 03-08-2009, disponível
po, careceria, segundo esse teólogo, peitar de um reconhecimento efetivo em http://migre.me/7aORF.
* Sabedoria, mística e tradição: religiões chinesas,
de todo interesse numa época como de Deus em pessoas às quais determi- indianas e africanas. Edição 309, de 28-09-2009, dis-
a nossa, de ausência e de eclipse de nadas circunstâncias têm podido con- ponível em http://migre.me/7aOUY.
Deus. “O problema atual – sentenciava duzir a posturas aparentemente ateias * Filosofia, mística e espiritualidade. Simone Weil,
cem anos. Edição 313, de 03-11-2009, disponível em
– não é tanto a limitação do homem, e até niilistas. É Cioran, que havia http://migre.me/7aOEY.
como sua humanização”. Como não  Hans Urs Von Balthasar (1905-1988): teólo- * Mística. Força motora para a gratuidade, com-
podia ser de outra forma num teólo- go católico suíço. Estudou Filosofia em Viena, paixão, cortesia e hospitalidade. Cadernos IHU em
Berlim e Zurique, onde doutorou-se em 1929, Formação, nº. 31, disponível em http://migre.
go, ele matizava depois que, dada a e em Teologia em Munique e Lyon. Destacou-se me/7aOz9.
desumanização do homem que seguiu como investigador dos santos padres e da Fi-
ao processo moderno de desdiviniza- losofia e Literatura modernas, especialmente
a franco-germana. Criou sua própria Teologia, fluências germânicas, seus primeiros estudos
ção, e que as “divindades” que subs- síntese original do pensamento patrístico e centralizaram-se em Emmanuel Kant, Arthur
tituíram o Deus cristão: Estado, raça, contemporâneo. Entre suas obras destacam-se Schopenhauer, e principalmente Friedrich
ciência, dinheiro etc. têm resultado O cristianismo e a angústia (1951), O misté- Nietzsche. Tornou-se um agnóstico, tomando
rio das origens (1957), O problema de Deus por axioma “a inconveniência da existência”.
terrivelmente desumanizadoras, mui- no homem atual (1958) e Teologia da história Durante seus estudos na Universidade, Cioran
 John Henry Newman (1801-1890): bispo an- (1959). A edição 193 da IHU On-Line, de 28-08- também foi influenciado pelas obras de Georg
glicano inglês, convertido ao catolicismo, foi 2006, Jorge Luis Borges. A virtude da ironia Simmel, Max Stiner, Ludwig Klages e Martin
posteriormente nomeado cardeal pelo Papa na sala de espera do mistério publicou uma Heidegger, e também pelo filósofo russo Lev
Leão XIII, em 1879. Estudou no Trinity College entrevista com Ignácio J. Navarro, intitulada Shestov, que aliou a crença na arbitrariedade
de Oxford e no Oriel College. Depois de sua Borges e Von Balthasar. Uma leitura teológica, da vida à base de seu pensamento. Cioran gra-
conversão ao catolicismo, abriu e dirigiu em disponível em http://migre.me/4Hkbv. (Nota duou-se com uma tese sobre Henri Bergson;
Birmingham um oratório de São Felipe Néri e da IHU On-Line) mais tarde, porém, renegaria Bergson, alegan-
foi reitor da Universidade Católica da Irlanda  Emil Cioran (1911-1995): escritor e filósofo do que este não compreendera a tragédia da
em 1854 (Nota da IHU On-Line). romeno radicado na França. Absorvendo in- vida. (Nota da IHU On-Line)

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Maria de Magdala, a grande “Apóstola dos Apóstolos”
Nem prostituta, nem esposa de Jesus: Maria Madalena foi a principal testemunha da Ressur-
reição e “uma líder feminina que entendeu a missão de Jesus melhor do que os discípulos
homens”. Como a Igreja Oriental, devemos honrá-la como “a Apóstola dos Apóstolos”, defen-
de Chris Schenk

Por Moisés Sbardelotto

“N
ão é possível contar a história da Ressurreição sem falar também de ‘Maria, a de Mag-
dala’”. Foi essa mulher que, depois de ir ao túmulo onde Jesus havia sido depositado
depois da crucificação, “viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo e saiu corren-
do”, como relata o Evangelho, para se encontrar os discípulos e lhes contar a grande
notícia.
Segundo Chris Schenk, CSJ, diretora-executiva da FutureChurch (futurechurch.org), organização norte-
americana de renovação da Igreja, essa é a grande importância e o legado de Maria Madalena, uma das
primeiras místicas do cristianismo que viveu “a experiência da Ressurreição”.
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Chris busca desmontar por inteiro qualquer referência negativa
a Maria Madalena: “Não há nada nas Escrituras que sustente a ideia de que ela era uma prostituta” e, “se
Maria de Magdala fosse a esposa de Jesus e a mãe de seu filho, é altamente improvável que esses textos
teriam omitido esses fatos importantes”.
Ao contrário, para a religiosa da congregação das Irmãs de São José, Madalena foi a principal testemunha
da Ressurreição e “uma líder feminina que entendeu a missão de Jesus melhor do que os discípulos ho-
mens”. “Curiosamente – afirma –, a Igreja Oriental nunca a identificou como uma prostituta, mas honrou-a
ao longo da história como ‘a Apóstola dos Apóstolos’”.
Chris Schenk, CSJ, é religiosa da congregação das Irmãs de São José e diretora-executiva da FutureChurch
(futurechurch.org), organização norte-americana de renovação da Igreja, que atua pela plena participação
de todos católicos e católicas em todos os aspectos da vida e do ministério da Igreja. É mestre em Obstetrí-
cia e Teologia e, com a assistência da equipe da FutureChurch, desenvolve e administra programas nacionais
de base, incluindo questões como a mulher na liderança da Igreja e no mundo, o futuro do ministério sacer-
dotal e a situação das paróquias dos EUA. Durante os últimos 15 anos, a FutureChurch tem trabalhado para
restaurar a consciência sobre Santa Maria de Magdala como a primeira testemunha da Ressurreição e uma
respeitada líder da Igreja primitiva. Em 2011, mais de 340 celebrações de Santa Maria de Magdala foram
realizadas, incluindo 36 celebrações internacionais, inclusive no Brasil. Em 2007 e 2008, Schenk coordenou
uma ação internacional para “pôr novamente as mulheres no quadro bíblico” no Sínodo sobre a Palavra. Isso
resultou no maior número mulheres da história a participar de um sínodo do Vaticano, em um total de seis,
que atuaram como consultoras teológicas para os padres sinodais. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que sabemos sobre bastante limitado, estando confinado reição. Todos os quatro descrevem-na
a vida de Maria Madalena? Quem foi aos textos dos Evangelhos canônicos exatamente com a mesma frase: “Ma-
essa mulher que seguiu Jesus, alcu- e ao que pode ser deduzido de como ria, a de Magdala”. Os estudiosos cha-
nhada com expressões tão díspares ela é retratada em uma série de tex- mam isso de atestado múltiplo, o que
quanto “prostituta e esposa de Je- tos canônicos extras. No entanto, é significa que há evidências históricas
sus” e “discípula amada e apóstola impressionante o quanto os estudiosos confiáveis de que ela existiu e que não
dos apóstolos”? bíblicos podem nos dizer sobre ela, é possível contar a história da Ressur-
Chris Schenk – Mesmo que Maria de mesmo a partir desses dados esparsos. reição sem falar também de “Maria, a
Magdala seja a segunda mulher mais Por exemplo, todos os quatro Evange- de Magdala”.
frequentemente nomeada no Novo lhos retratam-na como líder do grupo Em Lucas 8, 1-3 ficamos sabendo
Testamento depois de Maria, a mãe de mulheres que testemunhou por pri- que, com Joana, esposa de um alto
de Jesus, o que sabemos sobre ela é meiro os eventos que cercam a Ressur- funcionário de Herodes, Cuza, e Su-
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 25
sana, Maria de Magdala “e muitas ou-
tras mulheres” acompanhavam Jesus
“Não é possível contar a tério de Maria de Magdala, nos quais
ela é retratada como alguém que
e os discípulos homens pela Galileia
e “os ajudavam com seus bens”. Esse
história da Ressurreição compreende a mensagem de Jesus
melhor do que Pedro e os discípulos
pequeno texto nos diz muito mais do
que pode parecer, a princípio, para os
sem falar também de homens. Os estudiosos nos dizem que
esses escritos não são sobre as pes-
nossos ouvidos do século XXI, que não
entendem os costumes sociais que cer-
‘Maria, a de Magdala’” soas históricas de Maria e de Pedro,
mas refletem, sim, tensões sobre os
cavam as mulheres no judaísmo pales- papeis de liderança das mulheres na
tino do primeiro século. de Jesus em seu discipulado itinerante Igreja primitiva. Líderes proeminen-
Para começar, as mulheres muito pela Galileia não é nada menos do que tes como Maria e Pedro foram evo-
raramente eram nomeadas em textos notável. No judaísmo palestino, os ju- cados para justificar pontos de vista
antigos. Se elas são nomeadas é por- deus observantes homens não falavam opostos.
que tinham alguma proeminência so- publicamente com as mulheres de fora O que não é contestado é a repre-
cial e, mesmo assim, na maioria das do seu círculo de parentesco, e muito sentação de Maria de Magdala como
situações, elas são nomeadas em re- menos lhes era permitido viajar com uma importante mulher líder e teste-
lação aos homens presentes em suas eles em público em uma comitiva de munha das primeiras igrejas cristãs.
vidas, tais como seus maridos, pais ou gênero misto. Embora a observância
irmãos. As mulheres eram considera- dos costumes judaicos fosse prova- IHU On-Line – Em seu artigo Mary of
das como parte da família patriarcal, velmente menos estrita na Galileia do Magdala, Apostle to the Apostles,
e era raro para elas ter uma identi- que em Jerusalém, eu acredito que a você diz, entre outras coisas, que
dade separada da de um parente do paixão de Jesus por proclamar o reino Maria Madalena “não era uma prosti-
sexo masculino. Assim, vemos Joana, de Deus de justiça e de relações jus- tuta”. Em sua opinião, o que levou a
a esposa do alto funcionário de Hero- tas era tal que transcendia costumes, essa confusão em torno da figura de
des, Cuza. Herodes é o rei. Joana faz e ele sabia que a sua missão dada por Maria Madalena?
parte de uma família rica pertencente Deus estava voltada para as mulheres Chris Schenk – Uma explicação é uma
a Cuza. assim como para os homens. leitura errônea comum do Evangelho de
Mas quando Maria de Magdala é As discípulas de Jesus muitas vezes Lucas, que nos diz “sete demônios saí-
identificada, ela é nomeada pelo po- ultrapassaram seus irmãos discípulos ram dela” (Lucas 8, 1-3). Para os ouvidos
voado de onde ela veio, não em rela- em termos de fidelidade à sua pessoa, do primeiro século, isso significava ape-
ção a um parente do sexo masculino. particularmente em eventos em torno nas que Maria tinha sido curada de uma
Os estudiosos bíblicos acreditam que da paixão e morte dele. Enquanto os doença grave, e não que ela era peca-
isso significa que Maria de Magdala era Evangelhos nos dizem que os discípu- dora. Segundo biblistas como a Ir. Mary
uma mulher rica de recursos indepen- los homens fugiram para a Galileia, as Thompson, a doença era comumente
dentes. E, com Joana e Susana (sobre mulheres ficaram do lado de Jesus ao atribuída ao trabalho dos espíritos maus,
quem, infelizmente, sabemos muito longo da crucificação, morte, sepulta- e não associada com a pecaminosidade
pouco), essas mulheres eram apoiado- mento e Ressurreição. É por isso que pessoal. O número sete simboliza que a
ras financeiras proeminentes da mis- todos os quatro Evangelhos mostram sua doença era crônica ou muito grave.
são de Jesus na Galileia. as mulheres como as primeiras teste- Além disso, como o conhecimento
Assim começou uma longa história munhas. Elas sabiam onde Jesus havia das muitas discípulas de Jesus desapa-
de patrocínio das mulheres que ajudou sido sepultado. E as mulheres foram, receu da memória histórica, suas his-
o cristianismo a se espalhar de forma então, incumbidas a “ir e a contar aos tórias se misturaram e se borraram. A
relativamente rápida por todo o mundo seus irmãos” a boa notícia da vitória terna unção de Maria de Betânia antes
mediterrâneo. Por exemplo, sabemos de Jesus sobre a morte. da paixão de Jesus estava ligada à mu-
que Paulo tinha muitas benfeitoras ri- O fato de a mensagem da Ressur- lher “conhecida por ser uma pecado-
cas, como Lídia e Febe, que apoiavam reição ter sido confiada por primeiro ra”, cujas lágrimas lavaram e ungiram
financeiramente o seu ministério e o às mulheres é considerado pelos estu- os pés de Jesus na casa de Simão. Os
apresentaram a uma ampla gama de diosos das Escrituras como uma forte textos de unção combinaram todas es-
relações sociais no mundo dos gentios prova da historicidade dos relatos da sas mulheres em uma só pecadora pú-
que, de outras formas, ele não teria Ressurreição. Se os relatos da Ressur- blico-genérica: “Magdalena”. A identi-
tido acesso. reição de Jesus tivessem sido fabri- ficação equivocada de Maria como uma
cados, as mulheres nunca teriam sido pecadora pública reformada alcançou
Inclusão de mulheres escolhidas como testemunhas, já que um status oficial com uma poderosa
a lei judaica não reconhecia o teste- homilia sobre o perdão do Papa Gregó-
A inclusão de mulheres por parte munho de mulheres. rio Magno (540-604).
Escritos cristãos extracanônicos Doravante, Maria de Magdala se
 Para as traduções das citações bíblicas, utili- antigos mostram comunidades de fé
zamos a versão Bíblia Pastoral, da CNBB (Nota  Disponível em http://futurechurch.org/ma-
da IHU On-Line). inteiras crescendo em torno do minis- rym/.

26 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


tornou conhecida no Ocidente não
como a forte mulher líder que acom-
“A inclusão de mulheres Chris Schenk – Nossa... Esse é um
assunto que merece uma discussão
panhou Jesus através de uma morte
tortuosa, que testemunhou por pri-
por parte de Jesus em seu muito mais longa e estudada do que
a breve resposta que eu sou capaz de
meiro a sua Ressurreição e proclamou
o Salvador Ressuscitado à Igreja primi-
discipulado itinerante pela dar aqui. Basta dizer que – assim como
o testemunho das primeiras líderes bí-
tiva, mas como uma mulher devassa
com necessidade de arrependimento e
Galileia não é nada menos blicas independentes como Maria de
Magdala, Febe, Lídia, Ninfa, Prisca e
de uma vida de penitência escondida
(e de preferência em silêncio). Curio-
do que notável” até mesmo a Maria de Nazaré histó-
rica foi ou suprimido ou apagado da
samente, a Igreja Oriental nunca a memória histórica –, elas foram subs-
identificou como uma prostituta, mas pão. Assim, qualquer que tenha sido a tituídas por homens líderes da Igreja
honrou-a ao longo da história como “a experiência da Ressurreição, ela não que levantaram uma reflexão teológi-
apóstola dos apóstolos”. foi um reconhecimento direto, mas ca sobre Maria como Virgem Mãe por
envolveu algum sentido liminar e mís- honra e reconhecimento.
IHU On-Line – Por que podemos fa- tico para além das nossas capacidades Em Mary, the feminine face of the
lar de Maria Madalena como uma perceptivas usuais. É dessa forma que Church, Rosemary Ruether compara a
“mística”, com tão poucos elemen- eu acredito que Maria de Magdala pode Maria bíblica com Maria de Magdala e
tos bíblicos (pelo menos nos Evange- ser considerada uma mística. as outras discípulas que, como vimos,
lhos canônicos) sobre essa mulher de desempenham um papel central e às
Magdala? Qual seria a “mística” de IHU On-Line – Nesse sentido, qual é vezes não convencional nos Evange-
Maria Madalena? o significado mais profundo desse re- lhos. Embora haja muitas evidências
Chris Schenk – Embora não saibamos lato do momento mais memorável da no Novo Testamento sobre o papel de
exatamente como foi a experiência da experiência mística de Maria Madale- Maria de Magdala e das outras discí-
Ressurreição para Maria de Magdala, na, ou seja, o fato de ela ter sido a pulas, a tradição da Igreja glorificou
sabemos que ela teve uma experiên- primeira pessoa – e mulher – a teste- Maria, a mãe de Jesus, como a mulher
cia tão poderosa do Cristo ressuscita- munhar a Ressurreição? fiel que permaneceu lealmente ao
do que a levou a correr para contar Chris Schenk – Assim como muitas mu- seu lado. Muitos estudiosos acreditam
aos seus discípulos irmãos: “Eu vi o lheres antes de mim, eu experimentei que o papel de Maria de Magdala foi
Senhor”. Talvez bastante compreensi- uma “noite escura do patriarcado” suprimido porque ela apresentava um
velmente, eles não acreditaram nela depois de perceber o quão íntima e modelo de liderança feminina inde-
à primeira vista. Mas, qualquer que profundamente toda a história ociden- pendente que os posteriores homens
tenha sido a experiência de Maria, eu tal (a única história com a qual estou líderes da Igreja queriam evitar. Eles
gosto de pensar que ela era uma mu- familiarizada) tornou as contribuições queriam evitar esse modelo por causa
lher profundamente mudada, e que a das mulheres tudo, menos invisíveis. da tensão na Igreja primitiva em torno
mudança observável provavelmente O fato de Deus ter confiado por pri- do fato de mulheres cristãs exercerem
preparou o caminho para que os outros meiro a proclamação da Ressurreição a a liderança pública em uma cultura
discípulos se abrissem para receber as uma mulher me diz que, embora os seres greco-romana que acreditava que a
suas próprias experiências do Cristo humanos discriminem, Deus não discrimi- liderança feminina só era apropriada
ressuscitado. na. Eu considero a inclusão das mulheres em ambientes privados.
Parece claro para mim que, embora no discipulado de Jesus na Galileia e o
os discípulos tenham experimentado delicado equilíbrio de gêneros por parte O culto à Virgem Maria
uma “corporalidade” de Cristo nessas de Deus no evento da Ressurreição, que
experiências da Ressurreição, não era modificou o cosmos, profundamente con- O culto à Virgem Maria ganhou
a mesma de uma ressuscitação de uma soladores, especialmente agora, quando proeminência no século IV, quando o
pessoa morta. Jesus estava vivo de vemos um aparente ressurgimento do cristianismo estava se tornando a re-
fato e se deu a conhecer a eles, mas medo do feminino entre muitos líderes ligião obrigatória do Império Roma-
ele também estava mudado o suficien- homens da Igreja institucional. no, cujo povo adorava Deus há muito
te, tanto que eles não o reconheceram tempo tanto na metáfora masculina
à primeira vista. O Evangelho de João IHU On-Line – Na história da Igreja, como feminina. Muitos estudiosos en-
nos diz que Maria primeiramente o outra Maria, a mãe de Jesus, ocupa contraram semelhanças entre o culto
confundiu com o jardineiro e, só de- um lugar central há séculos – espe- à Maria e o culto à Grande Deusa Mãe
pois de ouvir Jesus chamar o seu nome cialmente na América Latina. Que
 Rosemary Radford Ruether (1936-): estu-
e literalmente “virar-se” [para trás], é semelhanças e diferenças você vê diosa e teóloga feminista norte-americana.
que ela o reconheceu. Os discípulos de entre estas duas grandes figuras fe- Reconhece-se como “ecofeminista” e defen-
Emaús (Lucas 24, 13-35) não reconhe- mininas do cristianismo, Maria, a sora da ordenação sacerdotal feminina, sendo
professora visitante de teologia feminista da
ceram Jesus ao longo de toda aquela mãe de Jesus, e Maria Madalena? Claremont School of Theology e da Claremont
longa jornada, somente no partir do Graduate University. (Nota da IHU On-Line).

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(Ísis, Ártemis), proeminente no mundo “A Igreja Oriental nunca ensino oficial da Igreja nunca afirmou
mediterrâneo no qual o cristianismo que Maria é divina, mas as reflexões
rapidamente se espalhou. A glorifica- a identificou como uma de muitos teólogos e as experiências
ção e a veneração a Maria foram ao de oração dos fiéis muitas vezes suge-
encontro de profundas necessidades prostituta, mas rem que outra coisa está em ação.
espirituais e psicológicas para um povo De fato, Johnson encontra na tra-
cujos corações estavam acostumados a honrou-a ao longo da dição mariana um “filão de ouro que
adorar a Deus com um rosto feminino. pode ser ‘explorado’, a fim de recu-
Estudiosos identificam muitas formas história como ‘a perar o imaginário e a linguagem fe-
concretas pelas quais essa adaptação mininas sobre o santo mistério de
aconteceu. Lagos e nascentes onde as apóstola dos Deus”. Na tradição mariana, sugere
divindades femininas eram honradas ela, “onde quer que a ultimidade do
passaram a ser associadas a Maria, a apóstolos’” divino seja evocada nas Escrituras, na
Virgem Mãe. Santuários e templos à doutrina ou na liturgia ou onde quer
Deusa foram rededicados a Maria, Mãe que a ultimidade da confiança do fiel
de Deus. Finalmente, como a teóloga defesa a ti, a todos vós, a todos os mo- seja convocada, podemos supor que a
Elizabeth Johnson observa, “não foi radores desta terra e aos demais que realidade de Deus está sendo nomeada
por acidente que a doutrina do sécu- me amam, que me invocam e em mim em metáforas femininas”.
lo V da Theotokos [Mãe de Deus] foi confiam. Ouvirei ali os seus lamentos
proclamada em Éfeso, cidade famosa e remediarei todas as suas misérias, IHU On-Line – Como Maria Madalena
pela sua adoração entusiástica da deu- penas e dores”. nos ajuda a pensar a liderança das
sa grega Diana”. Elizabeth Johnson, CSJ, fala de mulheres na Igreja e na sociedade de
Esse fenômeno foi visto mais recen- forma muito bela ao observar que uma hoje? É possível chegar à igualdade
temente, quando consideramos como a das razões pelas quais Maria tem sido de gênero na Igreja Católica?
veneração de Nossa Senhora de Guada- tão importante na história da Igreja Chris Schenk – Talvez o aspecto mais
lupe se espalhou rapidamente por todo é que: “Maria tem sido um ícone de importante da recuperação da memó-
o México, cujos povos nativos haviam Deus. Para inúmeros fiéis, ela tem fun- ria histórica da liderança de Santa Ma-
sido devastados muito recentemente cionado no sentido de revelar o amor ria de Magdala é que as fiéis contem-
pela conquista e doenças vindas pelas divino como misericordioso, próximo, porâneas podem, pela primeira vez,
mãos dos invasores espanhóis do sé- interessado, sempre pronto a ouvir e se ver nas histórias do Evangelho e na
culo XVII. A compreensão indígena do a responder às necessidades humanas, história da Igreja primitiva.
sagrado não tinha nenhuma categoria confiável e profundamente atrativo, e Quando eu era criança, eu tinha a im-
para qualquer ser divino que não in- tem feito isso em um grau impossível pressão, assim como quase todo mundo
cluísse também o feminino. Tepeyec, quando se pensa em Deus simplesmen- que eu conhecia, que era Jesus e os 12
o local da revelação guadalupana, era te como um homem ou homens de po- homens que viajavam ao redor da Ga-
o antigo lugar da grande deusa da ter- der. Consequentemente, em devoção lileia fazendo o bem. Eu nunca via nin-
ra Tonanzin. Tonanzin significa “mãe” a ela como uma mãe compassiva que guém que se parecesse comigo nos Evan-
na história nativa Nahuatl. Finalmen- não vai deixar que um de seus filhos gelhos. As mulheres pareciam ser todas
te, os povos nativos encontraram um se perca, o que realmente está sendo as prostitutas, pecadoras, habitadas por
ser divino com o qual eles poderiam se mediado é uma experiência mais atra- demônios ou uma Mãe virgem. Nenhum
relacionar. O Pe. Virgilio Elizondo fez ente de Deus?”. desses modelos a serem seguidos era
esta tradução da mensagem de Nossa Então, embora seja uma tragédia muito atraente. Fiquei escandalizada
Senhora de Guadalupe por meio de da história que, pelo menos até recen- quando eu descobri, por meio dos meus
Juan Diego para o povo recentemen- temente, as discípulas de Jesus e de estudos bíblicos, que Maria de Magdala
te derrotado: “Saibas e entendas tu, São Paulo ou foram apagadas da me- foi a primeira testemunha da Ressurrei-
o menor dos meus filhos, que eu sou mória histórica ou degradadas a pros- ção e que não há nada nas Escrituras que
sempre Virgem Maria, Mãe do verda- titutas em favor do modelo totalmente sustente a ideia de que ela era uma pros-
deiro Deus por quem se vive. Desejo puro e, no fim das contas, inacessível tituta. Parecia uma grande injustiça o
vivamente que me seja erguido aqui de Maria, a virgem-mãe, o outro lado fato de ser assim que uma grande mulher
uma casita, para nele mostrar e dar da moeda é que, de alguma maneira, de fé como ela era lembrada na história
todo o meu amor, compaixão, auxílio e Deus encontrou uma forma de preser- da Igreja, pelo menos na Igreja latina. E
 Mary and the female face of God, Theolo-
var o acesso humano ao divino femini- eu resolvi fazer algo a respeito.
gical Studies, setembro de 1989 (Nota da en- no na experiência cristã. É claro que o Então, se nós, como Igreja, pode-
trevistada).  Elizondo, Virgilio, La Morenita: Evange- mos começar a ver que Jesus (e mais
 São Juan Diego Cuauhtlatoatzin (1474- lizer of the Americas. San Antonio, TX,
1548): índio mexicano da tribo nahua, a quem Mexican American Cultural Center, 1980, tarde São Paulo) incluiu mulheres que
a Virgem Maria apareceu, sendo consagrada p. 75-76 (Nota da entrevistada). eram líderes no seu discipulado mais
como Nossa Senhora de Guadalupe em Te-  Mary and the female face of God, Theolo- próximo, isso leva à pergunta: “Bem,
peyac, noroeste da Cidade do México, em 9 de gical Studies, setembro de 1989 (Nota da en-
Dezembro de 1531. (Nota da IHU On-Line) trevistada).  Idem, ibidem.
28 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
por que a Igreja não pode incluir mu- Ávila. Ambos têm encontros místicos
lheres como líderes hoje?”. Atualmen-
“O papel de Maria de com o divino que expressam em uma
te, a Igreja ensina que as mulheres linguagem única, influenciada pela
são iguais. No entanto, nenhuma es-
Magdala foi suprimido totalidade da sua humanidade, o que
trutura da Igreja lhes permite exercer inclui o seu gênero.
essa igualdade de forma alguma. Só
porque ela apresentava Nos Evangelhos, vemos muitos exem-
homens podem eleger o Papa, liderar plos de encontros de Jesus com o Divino.
dioceses, pastorear paróquias e pre-
um modelo de liderança O Evangelho de Lucas (Lucas 4, 18-19)
gar na Missa. Isso é uma grande per- revela que Jesus modelou a sua missão
da para a comunidade de fiéis, já que
feminina independente a partir dos escritos dos profetas. Pri-
necessariamente sempre ouvimos o meiro, ele anuncia a sua missão de Deus
Evangelho através da lente da experi-
que os posteriores na sinagoga da sua cidade natal de Na-
ência masculina. Estamos perdendo a zaré, citando Isaías 61, 1,2: “O Espírito
oportunidade de ouvir as grandes ver-
homens líderes da Igreja do Senhor está sobre mim, pois ele me
dades da nossa fé através das lentes consagrou com a unção, para anunciar
da experiência feminina.
queriam evitar” a Boa Nova aos pobres: enviou-me para
Todas as decisões na governança proclamar a libertação aos presos (…)
da Igreja exigem a ordenação, e a de João mostra Marta fazendo uma para dar liberdade aos oprimidos”. Isso
Igreja ensina que as mulheres não po- profissão de fé semelhante à de Pedro nos diz que Jesus foi profundamente
dem ser ordenadas. Portanto, temos quando Jesus a ordena a acreditar que influenciado pelos ensinamentos reli-
ensinamentos conflitantes aqui. Eles seu irmão vai ressuscitar: “Sim, Se- giosos da sua própria tradição e encon-
não podem estar ambos certos. É por nhor, eu creio firmemente que tu és trou a sua verdadeira identidade por
isso que eu acredito que, no fim, te- o Cristo, o Filho de Deus, aquele que meio do que poderia ser chamado de um
remos a igualdade feminina na Igreja. deve vir ao mundo” (João 11, 27). encontro místico com a Justiça Divina,
Mas será uma longa luta e ela só virá O autor joanino também mostra mediada pelos escritos de Isaías. Jesus
através da graça de Deus em ação, que Jesus se alimentou com a conver- passou o resto de sua vida pública sendo
convertendo os homens tomadores de sa teológica e a subsequente conver- fiel ao seu chamado a proclamar o rei-
decisão (lembre-se, até São Paulo se são da mulher samaritana: “Eu tenho no de Deus onde a justiça e a relação
converteu) e sustentando as dezenas um alimento para comer, que vós não justa prevalecem, por fim, entre pobres
de milhares de mulheres e homens que conheceis” (João 4, 32). e ricos, homens e mulheres, soberano e
trabalham para essa igualdade de mui- A mulher da unção – seja ela Maria sujeito, forte e fraco.
tas e variadas formas nos nossos dias. de Betânia, no Evangelho de João, ou
a discípula anônima vista em Mateus e IHU On-Line – Outra figura de des-
IHU On-Line – Como vimos, é impos- Marcos – certamente entendeu a mis- taque na história do cristianismo é
sível entender Maria Madalena sem são messiânica de Jesus melhor do que Paulo de Tarso. Em sua opinião, quais
levar em conta sua relação com Je- os discípulos homens que a criticaram. as semelhanças ou diferenças entre
sus. O que sabemos sobre a relação A fé da mulher de que Jesus estava de esse grande apóstolo da Igreja pri-
de Jesus com as mulheres em geral? fato entrando em seu reino se mostrou mitiva e a “apóstola dos apóstolos”,
Que sementes de “mística feminina” pelo fato de ela ungir a cabeça de Je- Maria Madalena?
já estão presentes na vida de Jesus sus, um ato semelhante à unção reali- Chris Schenk – Tanto Maria de Magda-
ou na vida das mulheres que o se- zada pelo profeta Samuel, significando la quanto Paulo tiveram experiências
guiram? a realeza de Davi. O gesto profético do Cristo Ressuscitado que mudaram as
Chris Schenk – Isso é algo interessan- e amoroso dessa mulher deve ter sido suas vidas. Essa é a grande semelhança.
te para se refletir. A partir dos Evan- muito reconfortante para Jesus en- A diferença é que as viagens e as
gelhos, vemos que Jesus tinha muitas quanto ele enfrentava a sua paixão e cartas missionárias de Paulo às pri-
amizades com mulheres, e não apenas morte. meiras comunidades em todo o mun-
com Maria de Magdala. Certamente, Não me sinto confortável com a do mediterrâneo foram preservadas
Maria e Marta de Betânia eram amigas frase “mística feminina” neste con- e fornecem um excelente retrato dos
queridas, semelhante a uma família texto, já que a mística é mística e, em desafios reais enfrentados pelos pri-
para ele. Maria de Betânia assumiu o si mesma, não tem gênero. Dito isso, meiros cristãos. Eles são os primeiros
papel de estudante rabínico (tradicio- o encontro humano com o divino pro- escritos cristãos que temos.
nalmente reservado aos homens), sen- vavelmente pode ser influenciado pelo Infelizmente, não temos nenhum
tando-se aos pés de Jesus para ouvir gênero do ser humano que só pode ex- registro direto semelhante do que
e aprender. Ele se recusou a mandá- pressar tal encontro por meio do veí- aconteceu na vida e no testemunho
la embora, não obstante Marta tenha culo da sua humanidade masculina ou subsequentes de Santa Maria de Mag-
protestado. “Maria escolheu a melhor feminina. Por exemplo, a mística de dala. Só podemos deduzir de fontes
parte e esta não lhe será tirada”, diz São João da Cruz é expressa de forma extracanônicas que ela era lembrada
Jesus (Lucas 10, 38-42). O Evangelho diferente do que a de Santa Teresa de em algumas comunidades primitivas
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 29
como uma proeminente líder mulher “Estamos perdendo a essencial do masculino e feminino, ele
e discípula que compreendeu a mis- é, em última análise, subversivo à lide-
são de Jesus melhor do que os seus oportunidade de ouvir as rança plena e igualitária das mulheres
irmãos. na Igreja, porque se centra na ficção
As cartas de Paulo também for- grandes verdades da nossa do estado marital de Maria, em vez de
necem informações valiosas sobre a se centrar no fato da sua liderança em
liderança coigual nas comunidades fé através das lentes da proclamar a Ressurreição de Jesus.
cristãs primitivas. Romanos 16 nos Não há dados históricos ou bíblicos
fala sobre os “colaboradores em Cris- experiência feminina” para sustentar a especulação de que
to” de Paulo, o casal Prisca e Áquila. Maria de Magdala era casada com Je-
O fato de Prisca ser nomeada primei- sus. A controvérsia de que os escritores
ra em quatro das seis vezes em que o mulher jamais é lembrada, já que, nas antigos não mencionam o seu casamen-
casal é citado no Novo Testamento nos leituras do Domingo de Ramos, onde to e sua prole por medo da persegui-
diz que ela provavelmente era a mais esse texto se encontra, ele é ou omiti- ção judaica realmente não se sustenta,
proeminente da dupla. Prisca e Áquila do ou tornado opcional. porque o Evangelho de João e grande
fundaram comunidades em Corinto, Lucas retrata a mulher como uma parte da literatura apócrifa foram es-
Éfeso e Roma que serviram como base pecadora pública, cuja unção dos pés critos depois da queda de Jerusalém,
de evangelização em cada uma dessas de Jesus significa a sua grande fé e quando não haveria nada a temer das
grandes cidades. Com Paulo, eles po- perdão. João mostra Maria ungindo autoridades judaicas. Se Maria de Mag-
dem ser legitimamente chamados de os pés de Jesus no ambiente íntimo dala fosse a esposa de Jesus e a mãe
“apóstolos aos gentios”, porque, como de Betânia. Como o lava-pés era um de seu filho, é altamente improvável
o próprio Paulo diz: “Eu lhes sou agra- ritual devocional central na comuni- que esses textos teriam omitido esses
decido, e não somente eu, mas tam- dade joanina, não é de se estranhar fatos importantes, especialmente por-
bém todas as Igrejas fundadas entre os que João combina a história de Lucas que ela é retratada proeminentemente
gentios” (Romanos 16, 04). Paulo lou- da unção dos pés de Jesus com antigas tanto como a principal testemunha da
va outro casal de missionários, Júnias tradições de unção da sua cabeça. Em Ressurreição quanto uma líder femini-
e seu marido Andrônico, como “após- Mateus, Marcos e João, a unção acon- na que, de muitas formas, entendeu a
tolos notáveis” (Romanos 16, 7). Júnia tece pouco antes da prisão e paixão missão de Jesus melhor do que os discí-
é a única mulher no Novo Testamento de Jesus. pulos homens.
a quem é dado o título de “apóstola”. Mas o que a unção significa? A tra- Se Jesus foi casado, não foi com Ma-
dição mais antiga, que evoca a unção ria de Magdala, porque então ela teria
IHU On-Line – Maria Madalena e Je- profética de Samuel, é a pista. Essa sido conhecida como “Maria, a esposa
sus coexistem no imaginário coleti- discípula fiel entendeu a passagem de Jesus”, e não Maria de Magdala.
vo como um exemplo de um “amor de Jesus pela paixão e morte como Como vimos, convenções literárias e
proibido”, especialmente devido ao a sua entrada real ao reino messiâni- sociais na Antiguidade ditavam que,
“beijo na boca” narrado nos Evan- co onde a liderança servidora reinará quando as mulheres eram menciona-
gelhos apócrifos ou à dúvida sobre para sempre. O ato dela deve ter sido dos (uma ocorrência muito rara), elas
quem é a mulher que derrama “um profundamente consolador para Jesus, eram quase sempre nomeadas pela
perfume de nardo puro” nos pés de enquanto ele enfrentava a efusão final sua relação com a família patriarcal,
Jesus. Como você analisa, inspirada para a vida do mundo. por exemplo: “Joana, mulher de Cuza,
em Madalena, a conexão entre ero- Nas palavras de Isaías: “Eis o meu alto funcionário de Herodes” (Lucas 8,
tismo, sensualidade e mística? servo, dou-lhe o meu apoio. É o meu 1-3). De forma atípica, Maria de Mag-
Chris Schenk – Como disse anteriormen- escolhido, alegria do meu coração. dala foi nomeada de acordo com a ci-
te, a minha interpretação dos textos so- Pus nele o meu espírito, ele vai levar o dade da qual ela provinha (não pela
bre a unção não se baseia em um erotis- direito às nações”. Para os seguidores sua relação com um homem).
mo místico, mas no significado profético de Jesus, a lavagem e a unção dos pés
da unção sobre a cabeça, como Samuel é uma estrada real que leva à vitória Mística, erotismo e sensualidade
fez quando ungiu o rei Davi. da Justiça.
Todos os quatro Evangelhos falam A publicação em 2002 de O Código Minha opinião sobre a conexão entre
sobre uma mulher que unge Jesus com Da Vinci inflamou uma ampla polêmi- erotismo e mística não se inspira naquilo
um caro unguento perfumado. Em Ma- ca em torno do verdadeiro papel de que se pode saber da relação de Maria
teus e Marcos, a mulher unge a cabeça Maria de Magdala. Infelizmente, o li- de Magdala com Jesus, já que os dados
de Jesus, evocando o profeta Samuel. vro de Dan Brown, embora sendo uma históricos sobre um relacionamento ro-
Quando ela é criticada, Jesus a defen- narrativa ficcional envolvente, fez um mântico é, no máximo, tênue.
de: “Onde for anunciado o Evangelho, desserviço à Maria de Magdala histórica Dito isso, eu acredito que há, de
no mundo inteiro, será mencionado e a outras líderes mulheres da Igreja fato, uma conexão entre erotismo e
também, em sua memória, o que ela primitiva. Apesar de O Código Da Vin- mística, e essa conexão pode ser fa-
fez” [Marcos 14, 9]. Infelizmente, essa ci transmitir um belo ideal da unidade cilmente vista em muitos dos escritos
30 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
e das experiências dos grandes místi- “A Igreja Católica jamais dam a pensar a mística feminina na
cos, como João da Cruz e Teresa de contemporaneidade?
Ávila. será curada do sexismo Chris Schenk – Esse é um assunto mui-
A experiência do mistério do amor to extenso para abordar em profun-
de Deus é uma experiência profunda- e da misoginia enquanto didade aqui. Mas basta dizer que, ao
mente humana. Somos Espíritos en- longo da história, as mulheres muitas
carnados. Outra forma de dizer isso, tanto as mulheres como os vezes exerceram a liderança espiritual
como um fisioterapeuta amigo meu que lhes era negada na Igreja institu-
disse uma vez, é perceber que “nos- homens experimentem o cional escrevendo sobre seus encon-
sos corpos são a parte mais densa do tros místicos com um Deus amoroso
nosso Espírito”. Disso segue-se que, ministério a partir de que conforta, consola e traz justiça.
em qualquer encontro com o divino, Vemos isso nos escritos do século XII
nossos corpos vão refletir isso de algu- mulheres e de homens” de Hildegard de Bingen, que era uma
ma forma. visionária, vidente e curadora. Ela fica-
Para aqueles abençoados com ex- da cerimônia de oração também pro- va assombrada com a corrupção do seu
periências consoladoras do amor de porcionam um lugar em que mulheres próprio tempo: “Este tempo é um tem-
Deus, pode não ser incomum encontrar competentes podem pregar e presidir po afeminado, porque a revelação da
nossos sentidos corporais tão cheios e em funções litúrgicas visíveis. justiça de Deus é fraca. Mas a força da
consumados quanto depois de uma ex- O significado e propósito mais pro- justiça de Deus está se manifestando,
pressão amorosa do amor sexual ínti- fundos dessas celebrações é que tan- uma guerreira lutando contra a injus-
mo. Isso não quer dizer que a experi- to homens como mulheres aprendam tiça, para que esta possa cair derrota-
ência mística é o mesmo que o orgasmo sobre a liderança das mulheres nos da” (Carta 23). Hildegard entendeu-se
sexual, mas sim que há uma satisfação Evangelhos e experimentem o fato de como essa guerreira feminina, a perso-
na totalidade do nosso eu que se parece mulheres servirem em papéis de lide- nificação da justiça de Deus.
com o grande mistério e prazer da sa- rança sagrada, alguns pela primeira Teresa de Ávila foi uma proeminente
tisfação sexual humana. Alguns acham vez. Quando começamos essas celebra- mística espanhola do século XVI que foi
que essa satisfação divina é ainda mais ções em Cleveland, Ohio, uma amiga ameaçada pela Inquisição por três vezes.
profundamente satisfatória. trouxe o seu grupo de mulheres das Quando as pessoas citavam a prescrição
As escrituras geralmente usam me- Alcoólicas Anônimas. Algumas dessas paulina de que as mulheres devem ficar
táforas esponsais para descrever o amor mulheres estavam em lágrimas duran- em silêncio e nunca ter a pretensão de
de Deus pelo seu povo. Certamente, te toda a celebração, porque era a ensinar na Igreja (1 Tim 2, 11-14), ela
esse amor mais poderoso dos amores primeira vez que se experimentavam contestava com palavras que ela havia
humanos é uma metáfora apropriada como igualmente santas e amadas por recebido de Jesus em oração: “Diga-
para descrever o amor insuperável de Deus em comparação com seus irmãos. lhes que não sigam apenas uma parte
Deus por cada pessoa e pelo mundo. Foi assim que eu soube que estáva- da Escritura sozinha (…) e pergunte-lhes
mos tocando algo muito profundo na se poderão, por ventura, atar minhas
IHU On-Line – Você é diretora-execu- psique feminina e, por extensão, na mãos” (Testemunhos Espirituais, 15).
tiva da FutureChurch, com sede em psique masculina. Como nós, mulhe- No final do século XIV, em um tempo
Cleveland, que iniciou em 1997 uma res, raramente nos vemos nas Escri- em que a guerra e a peste assolavam
celebração especial da festa de Maria turas e quase nunca vemos mulheres toda a Europa, Julian de Norwich trou-
de Magdala, no dia 22 de julho. Por servindo em papéis sagrados no altar, xe uma mensagem reconfortante para
que essa data? Como é essa celebra- nós muitas vezes inconscientemente as pessoas aterrorizadas pela morte
ção e quais são seu significado e seu interiorizamos que temos menos valor súbita: Deus não odeia os pecadores,
propósito mais profundos? e somos menos amadas por Deus do mas só tem amor e compaixão por
Chris Schenk – Nós escolhemos o dia que os nossos irmãos. eles. Julian foi uma mística que expe-
22 de julho porque é o dia da festa Eu acho que a Igreja Católica jamais rimentou uma cura milagrosa e teve
de Santa Maria de Magdala, celebrada será curada do sexismo e da misoginia visões que lhe deram intuições sobre
pela Igreja universal. As celebrações enquanto tanto as mulheres como os o amor de Jesus. Ela escreveu sobre
surgiram por causa da minha paixão homens experimentem o ministério a isso em um livro chamado Showings.
por esclarecer de uma vez por todas partir de mulheres e de homens. Todos Era um risco escrever sobre o amor de
que Maria de Magdala não foi uma nós precisamos do ministério de am- Deus em vez dos pecados das pessoas,
prostituta, mas sim a primeira teste- bos os gêneros. porque, naqueles dias, a Igreja consi-
munha da Ressurreição. derava a minimização do pecado uma
As celebrações são organizadas IHU On-Line – Que outras mulheres heresia punível com a morte. Grande
para apresentar aos católicos comuns místicas você destacaria a partir das estudiosa e teóloga, Julian também
o estudo bíblico contemporâneo sobre Escrituras ou da história do cristia- foi uma mulher corajosa e criativa que
Santa Maria de Magdala e de outras nismo? Como essas mulheres nos aju- confiava completamente em um Deus
mulheres nas Escrituras. As definições amoroso.
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 31
As mulheres de hoje têm acesso à
mesma formação teológica e bíblica
que os homens. Isso permite que os fi-
éis dos nossos dias apreendam o Deus-

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mistério através das lentes da experi-
ência feminina em uma linguagem que
possa ser entendida tanto por homens
como por mulheres. Esse é um gran-
de dom para a Igreja e está, de fato,
abrindo novas formas de compreensão
e de apreciação do Mistério divino que,
afinal de contas, sempre será um mis-
tério. Essa é para mim uma das coisas
favoritas sobre Deus... Sempre haverá
mais para aprender, explorar e amar.

IHU On-Line – Em sua opinião, con-


siderando a atual situação social,
socioeconômica e política, qual é o
papel da mística e da espiritualidade,
especialmente feminina?
Chris Schenk – Eu acredito que, como
as mulheres muitas vezes têm experi-
ência pessoal do que significa ser su-
primidas, oprimidas e deprimidas (para
citar uma amiga minha), elas entendem
muito bem a importância de testemu-
nhar o Deus de justiça e Jesus, que
veio para exaltar os humildes e libertar
os oprimidos.
Se alguma vez for dada às mulheres a
oportunidade de pregar regularmente,
eu suspeito que poderemos ouvir muito
mais sobre a paixão de Jesus pelo reino
justo de Deus do que nós atualmente
ouvimos a partir da maioria dos púlpi-
tos, em que os homilistas muitas vezes
pregam chavões piedosos, em vez de
proclamar boas novas aos pobres.
A mística feminina, como qualquer
mística (e a mística é a experiência da
maioria dos cristãos mais comprome-
tidos, embora eles nunca a nomeiem
dessa forma), é chamada a ajudar a
trazer o reino justo de Deus aqui na
terra, como no céu. Se você não acre-
dita em mim, apenas reveja a própria
oração de Jesus, o Pai Nosso, que diz
isso de forma mais eloquente do que eu
jamais poderia dizer.
A mística, então, também é chama-
da a ser profeta. E o profeta não pode
sobreviver sem uma comunicação mís-
tica regular com Aquele que nos ama
para além de toda a nossa compreen-
são e que nos fortalece para além de
todas as nossas fraquezas.

32 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


Maria Madalena, a mulher que amou Jesus
Maria Madalena está ligada ao que se chama de o rosto feminino de Deus. Para Salma Ferraz,
“passaram-se quase dois milênios para que a Igreja Católica começasse a repensar o papel
desta mulher”

Por Moisés Sbardelotto

M
aria Madalena, a “mulher que amou Jesus” está ligada ao que se chama de o rosto feminino
de Deus. Para Salma Ferraz, pós-doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais,
Madalena vai além das “mulheres complexas e de uma biografia sensacional” do Primeiro Tes-
tamento, já que estas “não contaram na História do Cristianismo” tanto quanto essa mulher de
Mágdala. Entretanto, “passaram-se quase dois milênios para que a Igreja Católica começasse
a repensar o papel desta mulher”, lamenta.
Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Salma analisa a relação entre a mística de Mada-
lena e os relatos literários sobre essa mulher que “deixou seduzir-se pelo olhar de um Galileu que mudou
a história do Ocidente”. Mas esclarece: “não há aqui nenhuma inferência sexual”. Em síntese, a mística
media o “abismo entre fé e razão”. E a literatura reproduz “a experiência dessa mediação”.
Salma também questiona por que “nunca interessou à Igreja nascente uma figura de mulher importante
dentro de sua hierarquia”. “Veja o absurdo”, afirma: “O homem já chegou à lua, e a Igreja Católica e muitas
igrejas protestantes ainda negam o sacerdócio às mulheres”.
Salma Ferraz graduou-se em Letras pelas Faculdades Integradas Hebraico Brasileira Renascença de São
Paulo, e especializou-se em Literatura Brasileira e Literatura Infantil, pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. É mestre e doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e pós-
doutora pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é professora titular da Universidade Federal
de Santa Catarina e atua no Programa de Pós-Graduação de Literatura com a linha de Pesquisa Teopoética,
estudos comparados entre Teologia e Literatura. Com Waldecy Tenório e Teresa Arrigoni, é coautora do livro
Maria Madalena: Das páginas da Bíblia para a ficção (EDUEM, 2011). Dentre suas obras, também destacamos
Pólen do Divino (FURB, 2011); No princípio era Deus e ele se fez Poesia (UFAC, 2008); e As faces de Deus na
obra de um ateu (UFJF, 2004). Confira a entrevista.

IHU On-Line – “Prostituta”, “discípu- tivar a pecadora de Lucas 7 como pros- gelho de Maria Madalena, texto tardio
la amada”, “apóstola dos apóstolos”, tituta, confundiu-a com Madalena, cuja em forma de fragmentos do século III.
“esposa de Jesus”, “esposa de João, libertação e conversão estão narradas Os narradores dos evangelhos sinóticos
o discípulo amado”: afinal, quem foi, na sequência, no capítulo 8 de Lucas. Na relatam episódios da vida de Madale-
em sua opinião, a Maria Madalena realidade, o Papa Gregório anunciou que na, atestam sua existência, mesmo com
histórica? Maria Madalena, a mulher pecadora, e certa má vontade, pois sempre frisaram
Salma Ferraz – Poderíamos falar que Ma- Maria de Betânia eram uma só. Nasceu o fato de terem sido expulsos demô-
dalena foi tudo isso e muito mais. Alcu- desse erro a ideia de que Madalena fosse nios dela. Pelas marcas deixadas nesses
nhada de prostituta por conta de erro uma prostituta. textos, podemos afirmar que Madalena
célebre em um sermão que misturou os Discípula amada ela realmente foi, existiu.
rostos das mulheres bíblicas numa só: o afinal seguia Jesus com seus bens e
erro de exegese ocorreu no sermão pro- com seu coração e estava na cruz no IHU On-Line – Por que podemos falar
ferido na Páscoa do ano 591 pelo Papa momento final. Apóstola dos apósto- de Maria Madalena como uma “mís-
Gregório, O Grande, que, além de adje- los cabe perfeitamente à Madalena, tica”, tendo tão poucos elementos
já que foi a primeira a proclamar que bíblicos (ao menos nos evangelhos
 São Gregório I, OSB (540-604): Papa de 03- Jesus havia ressuscitado. canônicos) sobre essa mulher de
09-590 até a data da sua morte. Era monge
beneditino, e um dos Doutores da Igreja. Foi Com relação à Madalena histórica po- Magdala? Em que consistiria a “místi-
chamado pelo povo de Magno, ou Gregório, o demos nos basear numa plataforma mí- ca” de Maria Madalena?
Grande sendo celebrado como santo pela Igre- nima: os Evangelhos canônicos e o Evan- Salma Ferraz – Talvez esta mística es-
ja Católica (Nota da IHU On-Line).

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 33


teja ligada ao que se chama de o ros- eira dos perfumistas, dos cabeleireiros, tro, ao contrário da Igreja Católica e do
to feminino de Deus. As mulheres que o dos fabricadores de luvas e leques e das protestantismo em geral, que acentuam
Cristianismo retirou da Bíblia são meio meretrizes arrependidas. Ou seja, Mada- uma carga extra sobre esse pecado.
problemáticas. Lógico que no Velho Tes- lena apresenta-se como um personagem
tamento temos mulheres complexas e de monumental para a pintura, a ficção e IHU On-Line – Ao falar sobre a vida
uma biografia sensacional, mas estas não a música. Marguerite Yourcenar, com de Maria Madalena, a senhora fala de
contaram na história do cristianismo. O seu livro Maria Madalena ou a Salvação, uma “antiodisseia da discípula ama-
que contou e que entrou para a história publicado em Paris, em 1936, e no livro da”. Em que sentido?
cristã foram figuras como Eva, a pecado- intitulado Fogos, e Saramago no seu Salma Ferraz – No sentido de que se
ra, e Maria, mãe de Jesus, que concebeu Evangelho Segundo Jesus Cristo soube- passaram quase dois milênios para que
sem ter amado. É do Evangelho de Maria ram explorar de forma especial todas as a Igreja Católica começasse a repensar
Madalena, encontrado em 1896 e só pu- possibilidades dessa personagem. o papel desta mulher. A marca da pros-
blicado em 1955, que aparece a noção tituta foi amalgamada nesses 20 séculos
de uma discípula que teria recebido en- IHU On-Line – Na obra de José Sara- de tradição cristã. Somente no Concílio
sinamentos secretos de Jesus, só a ela mago, autor de seu interesse de pes- Vaticano II (1969) a Igreja Romana re-
caberia revelar aquilo que os discípulos quisa, como é narrada a figura de Ma- afirmou não existir relação entre Mada-
não entendiam. Juntam-se a isso lendas ria Madalena? Em que a literatura de lena e a mulher quase apedrejada por
que dão conta de que, após a morte de Saramago aprofunda ou se desvia dos adultério. Talvez, tudo isso tenha acon-
Jesus, Madalena teria se retirado e vivi- Evangelhos, ao falar de Madalena? tecido porque nunca interessou à Igreja
do em contemplação. Salma Ferraz – Em Saramago, Madalena nascente uma figura de mulher impor-
é a verdadeira discípula de Jesus, in- tante dentro de sua hierarquia. Veja o
IHU On-Line – Em linhas gerais, como tervém no Sagrado ao não permitir que absurdo: o homem já chegou à lua, e a
Maria Madalena foi retratada na li- Jesus ressuscite Lázaro, afinal “ninguém Igreja Católica e muitas igrejas protes-
teratura mundial? Como se deu esse na vida teve tantos pecados que mereça tantes ainda negam o sacerdócio às mu-
trânsito da Bíblia para a literatura? morrer duas vezes”. Jesus, diante deste lheres. Nesse sentido é que falo de uma
Salma Ferraz – As funções de discípula laivo de sabedoria, não realiza o mila- antiodisseia, uma má vontade em real-
e apóstola, funções primordiais de Ma- gre e sai para chorar. E Madalena, mes- mente resgatar seu papel fundamental,
dalena, foram ofuscadas pela fusão e mo amando Jesus, não o deixa desistir como atestam os Evangelhos.
confusão em torno de sua tríplice face, da cruz. Afirma para Jesus que “terias
criando-se uma espécie de contínuo poé- de ser mulher para saberes o que signi- IHU On-Line – Um dos momentos mais
tico: a suposta pecadora que ungiu os pés fica viver com o desprezo de Deus...”, marcantes da experiência mística de
de Jesus foi identificada com a mulher ou seja, reivindica um papel para a mu- Maria Madalena foi ter sido a primei-
quase apedrejada por adultério, com a lher e reconhece que o Deus do Velho ra pessoa – e mulher – a ver Jesus
mesma que esteve aos pés da cruz e que Testamento é misógino. Saramago junta ressuscitado? Qual o significado des-
preparou unguentos para a unção do cor- detalhes dos sinóticos com detalhes do se relato, segundo a seu ver?
po de Jesus no sepulcro. Tudo isso pas- Evangelho de Madalena e recria com sua Salma Ferraz – Isso não é pouca coisa.
sou a fazer parte do que denominamos imaginação fértil outra Madalena. Retra-  Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-
tradição madalênica, confirmada pela ta a discípula amada, contrariamente 1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram quatro
pintura e pelos filmes da vida de Cristo. aos Evangelhos, realmente como mere- sessões, uma em cada ano. Seu encerramento
deu-se a 8-12-1965, pelo Papa Paulo VI. A revi-
Bernardino de Sena, em um sermão la- triz, para mostrar como ela se redime são proposta por esse Concílio estava centrada
tino escrito e pregado na Idade Média, justamente pelo sexo, pois quando pas- na visão da Igreja como uma congregação de
aponta os topos madalênicos da desig- sa a se relacionar com Jesus, seu corpo fé, substituindo a concepção hierárquica do
Concílio anterior, que declarara a infalibili-
nada Magna peccatrix: busca de prazer, se fecha para outros. Para Saramago, o dade papal. As transformações que introduziu
beijos/luxúria, penteado/vaidade, olhar sexo é um pecado como qualquer ou- foram no sentido da democratização dos ritos,
lascivo, caminhar suspeito, tentação, como a missa rezada em vernáculo, aproxi-
 Marguerite Yourcenar (1903-1987): pseudô- mando a Igreja dos fiéis dos diferentes países.
beleza do corpo, abundância de bens/ri- nimo de Marguerite Cleenewerck de Crayen- Esse Concílio encontrou resistência dos setores
queza e muita liberdade. As pinturas da cour (anagrama de Yourcenar). Foi uma es- conservadores da Igreja, defensores da hierar-
Idade Média e do Renascimento mantêm critora belga de língua francesa e a primeira quia e do dogma estrito, e seus frutos foram,
mulher eleita à Academia Francesa de Letras aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja à
a tradição madalênica ao retratá-la com em 1980 (Nota da IHU On-Line). estrutura rígida preconizada pelo Concílio Va-
longos cabelos, na maioria das vezes,  José Saramago (1922-2010), escritor portu- ticano. O IHU promoveu, de 11 de agosto a 11-
loiros ou ruivos, vaso de perfume e man- guês, Nobel de Literatura em 1998. Conheci- 11-2005, o Ciclo de Estudos Concílio Vaticano
do por utilizar-se de frases e períodos longos, II – marcos, trajetórias e perspectivas. Confira,
to vermelho. Na Idade Média, Madalena escreveu, entre outros, Os poemas possíveis também, a edição 157 da IHU On-Line, de 26-
torna-se, a partir desses topos, padro- (1966); Provavelmente Alegria (1970); Des- 09-2005, intitulada Há lugar para a Igreja na
te mundo e do outro (1971); Teatro: A noite sociedade contemporânea? Gaudium et Spes:
 São Bernardino de Sena (1380-1444): Nas- (1979); que farei com este livro? (1980); Con- 40 anos, disponível para download na página
ceu em Massa Marítima, na Toscana, Itália. tos: Objecto quase (1978); Romance: Levan- eletrônica do IHU, http://migre.me/KtJn.
Entrou para a família franciscana na Ordem tando do chão (1980), A jangada de pedra Ainda sobre o tema, a IHU On-Line produziu a
dos Frades Menores, tornando-se sacerdote, (1986); A caverna (2001); O homem duplicado edição 297, Karl Rahner e a ruptura do Vatica-
reconhecido como grande pregador (Nota da (2002); Ensaio sobre a lucidez (2004) (Nota da no II, de 15-6-2009, disponível no link http://
IHU On-Line). IHU On-Line). migre.me/KtJE (Nota da IHU On-Line).

34 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


Madalena e as outras mulheres estavam diar esse abismo entre fé e razão. E a da atribuição do adjetivo prostituta a
junto à cruz enquanto os discípulos ame- literatura, para reproduzir a experiên- Madalena, a manutenção e estigmati-
drontados estavam escondidos. Elas fo- cia dessa mediação. Cito aqui o grande zação dessa brilhante mulher como tal.
ram ungir o corpo de Jesus, e foi para poeta amazonense Max Carphentier: Efetivamente, ela nunca foi meretriz;
Madalena que ele apareceu. Jesus con- “Pois bem, Senhores, só uma diferença aliás, parece ter sido uma mulher de
solou Madalena: “Mulher, por que cho- existe entre o profeta e o poeta. O pro- muitas posses.
ras?”. Madalena reconhece, sem titube- feta faz descer a Beleza dos céus para Na biografia de Jesus, há duas mu-
ar, a voz de Jesus e o chama de Raboni, a terra, e o poeta faz a Beleza subir da lheres com biografias, digamos, um
“mestre” em hebraico. Diante de tal terra para os céus. E não se sabe qual é pouco heterodoxas: Raabe e Tamar.
manifestação de carinho e reverência, a maior glória: se descer com uma es- A prostituta Raabe, por esconder os
é estranho o silêncio dos evangelistas trela para a terra, ou se subir com uma espias, foi salva por Josué durante a
ao narrarem o episódio da cruz, em que rosa para o céu. Sei, porém, que o sério conquista de Jericó. Habitou entre os
Jesus nada fala a Madalena. Ou talvez o verso arrancado do sofrimento é a for- israelitas e casou-se com Salmon. Ela
silêncio ali falasse mais do que todas as ma exponencial de oração, e a página gerou a Boaz, que foi bisavó de Davi,
palavras. branca que recebe o verso é da mesma entrando assim na linhagem de Jesus.
substância da pedra dos altares, e o es- Por sua vez, Tamar, a viúva negra
IHU On-Line – Entre as definições tado de graça dos poetas tanto glorifica do Velho Testamento, teve dois mari-
utilizadas pela senhora para abordar Deus como o êxtase dos santos. Desde dos, e nenhum deles (Er e Onã) lhe deu
Maria Madalena estão “a mulher que os primeiros tempos, tendes visto, a Fé filhos. Seu sogro, Judá, de enganador
tentou seduzir Deus” e “a mulher se socorreu da Poesia para instituir os – vendeu seu irmão José e enganou seu
que amou o amor”. Qual o significa- pássaros que acordam as nossas dores pai Jacó –, passa agora a ser enganado.
do dessas imagens? brancas, as nossas dores cinzas, dentro Ele não quer dar o terceiro filho para
Salma Ferraz – A primeira citação diz do silêncio tão difícil e tão necessário Tamar, com medo de que ele também
respeito ao conto de Marguerite Yource- do Senhor dos Mundos. Assim, muitos morra. Novamente quer enganar sua
nar – Maria Madalena ou a Salvação –, espíritos sentiram que a Poesia é um nora, que se mostra muito mais astuta.
na qual Madalena tenta seduzir Jesus, ato litúrgico perfeito, o eficaz rosário, Ela se disfarça de prostituta e coabita
para que não morra, para que não corra o instantâneo caminho de Damasco dos com seu sogro Judá, pedindo como ga-
em direção ao túmulo. Portanto, é a mi- místicos mais belos, e daqueles que, rantia seu cajado e seu anel. Ao saber
nha fala em cima do conto da escritora não sendo místicos, combatem pelo que sua nora estava grávida, que ha-
belga-francesa. A segunda expressão re- amor”. via adulterado, Judá ordena que ela
fere-se ao conto do magnífico escritor e seja apedrejada e depois queimada.
monge beneditino Júlio de Queiroz, in- IHU On-Line – Segundo a senhora, Tamar dá um xeque-mate no Patriarca
titulado Amor ao Amor. Nesse conto, Ma- qual a natureza específica da lin- ao mostrar os pertences do pai de seu
dalena ama, no sentido de deixar tudo e guagem mística em geral, muitas filho. Judá afirma: “Ela é mais justa
seguir o mestre apenas com o chamado vezes marcada por afirmações (ou do que eu”. Tamar torna-se mãe dos
do olhar. Para mim e para Júlio de Quei- narrações) ousadas, radicais? Quais gêmeos Perez e Zerá, e a linhagem de
roz, Maria Madalena foi aquela que amou modalidades discursivas, literárias, Perez vai até o rei Davi. E é da linha-
Jesus, amou o olhar do Mestre, deixou semânticas marcam a simbologia gem de Davi que virá Jesus.
seduzir-se pelo olhar de um Galileu que mística? O que quero dizer é que, na linhagem
mudou a história do ocidente. Não há Salma Ferraz – Tenho que citar o au- de Jesus, entrou uma efetiva prostituta,
aqui nenhuma inferência sexual. tor Max Carphentier novamente: “Sa- Raabe, e outra que se fez passar por tal,
beis que no início foi o Verbo, e o Verbo Tamar. E elas nunca sofreram a discrimi-
IHU On-Line – Em sua opinião, como continha todos os princípios e todas as nação que Madalena, que não era mere-
a literatura colabora para aguçar a imagens. Daí que a realidade e o misté- triz, sofreu. Mistérios.
percepção sobre Deus ou o Mistério? rio, a essência e a aparência, o tangível
Que vínculos percebe entre literatu- e o intangível, o que foi e o que será,
ra e mística? o possível e o impossível estão contidos
Salma Ferraz – Paulo já define a fé como no Verbo, na palavra, matéria prima de
“o firme fundamento das coisas que se tudo e alma da Poesia. (...) O que o ver- Leia Mais...
esperam, e a prova das coisas que não so movimentado pela fé e pela dor pode
Salma Ferraz já concedeu outras entrevistas à IHU
se veem”. A fé é um verdadeiro e ma- ser, até agora, a maneira mais intensa e On-Line:
ravilhoso escândalo para a razão, é um mais fiel de colocar a natureza humana * O Jesus de Pagola. Edição 336 da Revista IHU On-
Line, de 06-07-2010, disponível em http://migre.
salto no abismo. É o mistério dos misté- face a face com a Divindade”.
me/754Ty;
rios. E então entra a mística para me- * Teologia da libertação: a contribuição mais origi-
IHU On-Line – Deseja acrescentar nal da América Latina para o mundo. Edição 214 da
 Júlio Dias de Queiroz (1926-): filósofo, tra- algo? Revista IHU On-Line, de 06-07-2010, disponível em
dutor e escritor brasileiro. É titular da cadeira http://migre.me/754Ty.
10 da Academia Catarinense de Letras desde Salma Ferraz – Sim. Não entendo o erro
1981 (Nota da IHU On-Line).

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Rabi’a al-’Adawiyya e Teresa de Jesus: a busca do Amado
de forma intensa e gratuita
Rabi’a al-’Adawiyya introduziu no universo sufi a concepção de amor gratuito pelo Amado.
Já Teresa abriu-se para o Mistério por meio de uma vida de oração, entendida como “vida de
amizade com o Amado”, explica Carlos Frederico Barboza de Souza

Por Moisés Sbardelotto

M
ulher ou homem: isso não importa para se “viver a experiência radical de encontro com o Mis-
tério Profundo”. Para Carlos Frederico Barboza de Souza, professor da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais – PUC Minas, “o que é primordial na vida mística é a capacidade de
abertura, de receptividade e acolhimento ao Totalmente Outro, ao Mistério Absoluto que a
tudo constitui. E para isso não importam questões de gênero”.
Porém, é necessário “o desenvolvimento de novos paradigmas capazes de recuperar a singularidade – e
de certa forma, sua irredutibilidade – da experiência dessas mulheres”, um verdadeiro “resgate da mística
na perspectiva feminina”, defende, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Essa via feminina se expressa em mulheres que experimentam o “Mistério profundo do Real como acolhi-
da, ternura, receptividade, entrega, fragilidade (não no sentido pejorativo, mas como fruto do reconheci-
mento profundo e radical da condição humana), sombra, silêncio, criatividade, misericórdia”: como Rabi’a
al-’Adawiyya e Teresa de Jesus, dois marcos da mística no islamismo e no cristianismo, respectivamente,
analisadas nesta entrevista.
Rabi’a al-’Adawiyya foi uma das figuras mais significativas da primeira fase do sufismo e “sua singula-
ridade no universo sufi é ter introduzido a concepção do amor gratuito, desinteressado, pelo Amado”. Já
Teresa, a partir de um “cansaço interior”, irá se abrir para “a busca de um novo estilo de vida mais coe-
rente consigo mesma e seus questionamentos”, por meio de uma vida de oração, entendida como “vida de
amizade com o Amado”. E ambas “acabaram encontrando-se com o Amado, a quem dedicam um amor total
e exclusivo, chegando à opção celibatária”. Em ambas, também, pode-se encontrar “a busca do Amado de
forma intensa e gratuita”.
Carlos Frederico Barboza de Souza é doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de
Fora – UFJF, professor de Cultura Religiosa e Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso da Pontifícia Universida-
de Católica de Minas Gerais – PUC Minas e coordenador do Anima PUC Minas, Sistema Avançado de Forma-
ção. Também é autor do livro A mística do coração (Edições Paulinas, 2010) e da coleção de Ensino Religioso
Construindo a vida (Editora Fumarc). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua opinião, qual a são diferentes na ‘unidade da existên- E para isso não importam questões de
importância, hoje, de se retomar o cia’ (wahdat al-wujud). Na ‘unicidade gênero. Entretanto, essa concepção
estudo e a reflexão da mística a par- de Deus’ (tawhid) que coisa resta da desqualifica os estudos e reflexão da
tir da experiência feminina? existência do Eu e do Tu? Como po- mística a partir da experiência femi-
Carlos Frederico Barboza de Sou- deria haver, então, diferença entre nina? Creio que não, pois, se por um
za – Penso que muitas considerações homem e mulher?”. Assim, o que é lado pode-se pensar que, para esta ex-
podem ser feitas sobre esse assunto. primordial na vida mística é a capaci- periência, o que vale são as atitudes
A primeira é que, para muitos místi- dade de abertura, de receptividade e humanas frente ao Sagrado, por outro
cos, viver a experiência radical de acolhimento ao Totalmente Outro, ao lado, penso ser importante comple-
encontro com o Mistério Profundo in- Mistério Absoluto que a tudo constitui. xificar esta relação entre masculino,
depende de se ser homem ou mulher:  ‘Attar. A memória dos santos. ������
Apud. feminino e a mística, pois as questões
“No estado místico não há diferença Caterina Greppi. Rabi’a, la mistica, Ed. referentes aos homens e mulheres, fe-
Jaka Book, 2003, p. 18 (Nota do entre-
entre eles [homens e mulheres], não vistado). minino e masculino, de alguma manei-

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ra permeiam as vivências envolvendo “Viver a experiência homens na descoberta de dimensões
as experiências místicas e suas possi- femininas de suas vivências místicas,
bilidades na vida humana. radical de encontro elemento muito comum em muitos
Assim, numa sociedade machista, místicos, sendo João da Cruz um exem-
caracterizada pela leitura masculini- com o Mistério Profundo plo claro: chama a atenção que em
zada da vida e que se constituiu de for- seu Cântico espiritual e no poema da
ma patriarcal, impedindo muitas vezes independe de se ser Noite escura, a personagem que busca
as vozes das mulheres de expressarem o Amado é uma mulher. Dessa forma,
seus dizeres mais íntimos, singulares homem ou mulher” pode-se pensar na existência de uma
e originais, nessa sociedade há a ten- via feminina que pede reconhecimen-
dência de se reprimir, também no nível to, aberta a homens e mulheres que
da espiritualidade e da mística, as vo- Perspectiva feminina experimentam o Mistério profundo do
zes femininas. Como afirma Constance Real como acolhida, ternura, recepti-
FitzGerald, em 1699, a marginalização Dessa maneira, torna-se de grande vidade, entrega, fragilidade (não no
da linguagem dos místicos “possui uma importância o resgate por parte das sentido pejorativo, mas como fruto do
afinidade simbólica com a margina- tradições místico-religiosas, das mu- reconhecimento profundo e radical da
lização das mulheres e a negligência lheres que, de alguma forma, viveram condição humana), sombra, silêncio,
do Espírito. Não tenha dúvida de que o profundamente esse tipo de experi- criatividade, misericórdia (é interes-
silenciamento da contemplação esta- ência. E isso não se faz sem o estudo sante observar como misericórdia, em
va/está diretamente relacionado com e a redescoberta dessas mulheres. E árabe, possui a mesma raiz linguística
o lugar das mulheres na sociedade, o estudos como esses serão ricos se não que útero, lugar que protege a gesta-
papel da consciência na religião e na forem simplesmente leituras pautadas ção de uma vida nova), etc. Por fim,
política, o medo da inspiração direta por uma lógica masculina de ler as com Ibn ‘Arabi, tendo a pensar e reco-
do Espírito e o transformativo e re- tradições místicas, formas construídas nhecer que, se a receptividade perfei-
belde caráter da contemplação”. Isso em meio a séculos de patriarcalismo. ta é um dos atributos da mística femi-
porque o processo de marginalização Exige-se, sobretudo, o desenvolvimen- nina, “a atividade de Deus se observa
das mulheres e o fato de se conside- to de novos paradigmas capazes de mais claramente nas mulheres”.
rá-las como seres de segunda catego- recuperar a singularidade – e, de cer-
ria em muitas sociedades impediram ta forma, sua irredutibilidade – da ex- IHU On-Line – Uma das figuras mais
a muitas mulheres de desenvolverem periência dessas mulheres. Se formos importantes do misticismo islâmico
autoconfiança a ponto de lhes permitir capazes disso, penso que o resgate da foi uma mulher, Rabi’a al-’Adawiyya?
um profundo amadurecimento espiri- mística na perspectiva feminina propi- Quem foi ela e como se deu a sua
tual e na vida mística e, sobretudo, de ciará – e já tem propiciado – maneiras abertura à experiência mística?
desenvolver uma voz singular e única a criativas e inusitadas desse tipo de vi- Carlos Frederico Barboza de Souza
partir da qual sua experiência pode se vência se revelar, possibilitando novas – Rabi’a al-’Adawiyya foi uma das figu-
concretizar, ser ouvida, compreendida linguagens e novas traduções da ex- ras mais significativas da primeira fase
e comunicada. periência do Real, fornecendo um re- do sufismo, sendo que muitos sufis a
A repressão da mulher e, conse- pertório rico com que esse – de forma citaram com frequência. Sua singulari-
quentemente, das expressões da fe- infinita, inesgotável e inabarcável em dade no universo sufi é ter introduzido
minilidade presentes em homens e sua totalidade – possa ser reconheci- a concepção do amor gratuito, desin-
mulheres se traduzem, de alguma do em suas infinitas manifestações na teressado, pelo Amado. Entretanto, de
maneira, numa repressão no nível da história humana. Assim, o resgate da sua vida, cercada por lendas, pouco se
experiência mística ou de aspectos mística na perspectiva feminina possi- sabe. A principal fonte sobre ela foi
dela, exigindo de quem se dispõe a ca- bilitará novos e inusitados acessos ao sua auxiliar, ‘Abda, que registrou mui-
minhar por esta trilha que tenha, além Mistério Profundo que a tudo habita. tos de seus ditos e atos.
do grande esforço a ser feito em se Além do mais, as vivências místicas Rabia al-Qaysiyya al-’Adawiyya al-
superar e superar suas forças egoicas realizadas por muitas mulheres resga- Basriyya – seu nome completo – nasceu
que lhe impedem a abertura radical tam dimensões fundamentais e profun- na cidade de Basra, hoje situada ao
ao Totalmente Outro, que se deparar das de todos os seres humanos, sendo sul do país que denominamos Iraque.
com a dificuldade de não ter em seu mais uma das possíveis e ricas mani- Nasceu entre 713 e 718 do calendário
repertório, desenvolvido e amadure- festações com que a humanidade pode cristão (entre 95 e 98 do calendário
cido, todo o potencial que a feminili- se expressar. Nesse sentido, retomar o islâmico), em uma família paupérri-
dade pode lhe propiciar em termos da estudo e a reflexão da mística a partir
realização de uma vida mística.  Sachiko Murata. La luz de la mujer:
das experiências femininas pode possi- el princípio feminino en el sufismo. In:
 Constance FitzGerald. Transformation bilitar a integração com as expressões Pablo Beneito, Lorenzo Piera, Juan José
in wisdom, p. 285, apud. Beverly J. Lan- masculinas dessas vivências. Isso, por Barcenilla. Mujeres de luz. La mística
zetta. Radical wisdom. A feminist mysti- feminina, lo feminino en la mística, Ed.
cal theology, Fortress Press, 2005, p. 11 si só, pode colaborar com os próprios Trotta, 2001, p. 274 (Nota do entrevista-
(Nota do entrevistado). do).
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 37
ma, sendo sua quarta filha. Daí seu
nome Rabi’a, que em árabe significa
“As questões referentes mo, terno e amoroso, que, sem perder
sua transcendência, torna-se presente
“a quarta”.
Na adolescência, torna-se órfã de
aos homens e mulheres, na sua vida e a acompanha continua-
mente.
pai e mãe e acaba sendo vendida para
uma pessoa que provavelmente a leva
feminino e masculino, Rabi’a morre em Basra, com quase
90 anos, depois de um processo de en-
para Damasco, onde servirá em regime
de escravidão, submetendo-se a servi-
permeiam as vivências velhecimento e adoecimento. Mesmo
assim, não perde sua lucidez e afirma:
ços pesados. Nesse ambiente, um ho-
mem desconhecido por ela se encanta
envolvendo as “Todo o bem que hás decretado para
mim neste mundo, dê-o aos seus ini-
e tenta molestá-la. Diante disso, ela
foge e faz uma oração: “Senhor, eu
experiências místicas e migos; e tudo que hás decretado para
mim no Paraíso, concede-o aos teus
sou uma estrangeira, uma órfã, prisio-
neira e até me tornei escrava, mas o
suas possibilidades na amigos. Eu aspiro somente a Ti”10.

que me preocupa é saber se tu te com-


prazes ou não se comprazes em mim”.
vida humana” IHU On-Line – Por outro lado, que
fatos históricos – pessoais ou sociais
E nesse instante ela ouviu uma voz que – acompanhada, muitas vezes, com – fizeram aflorar ou despertar a ex-
lhe disse: “Não te entristeças, porque exercícios de introspecção baseados periência mística no caso de Teresa
no paraíso os que te forem próximos te na postura corporal, respiração, reci- de Jesus?
olharão e te invejarão devido ao lugar tações, etc. – no intuito de recordar Carlos Frederico Barboza de Souza
por ti ocupado”. A partir dessa experi- contínua e cordialmente de sua pre- – As experiências místicas, embora
ência, Rabi’a descobre sua vocação da sença: “Recorda continuamente o Seu possam muitas vezes estar relaciona-
entrega amorosa total e incondicional nome”. Com isso ela visava uma vida das a situações históricas vividas pelo/
a Deus, retorna à casa de seu patrão de intimidade com Deus, pois “tudo a místico/a, têm em sua subjetivida-
e passa a levar uma vida dedicada à tem um fruto. E o fruto do reconheci- de as causas do seu despertar. E isso é
oração e jejum, buscando a união com mento é aproximar-se de Deus”. claro em Teresa de Jesus.
Deus (wasl). Aqui nos deparamos com o ele- Teresa de Ahumada nasce em 1515,
Mais tarde, após adquirir sua liber- mento que mais chama a atenção em na cidade de Ávila, Espanha. De uma
dade novamente, Rabi’a retorna a Bas- sua mística: a busca do puro e gratui- família de comerciantes e, tendo fi-
ra, onde vai morar numa casa simples to amor: “Amo-te com dois amores: cado órfã de mãe aos 14 anos, aos 20
fora da cidade, para dedicar-se inte- um é fruto da minha paixão e o outro anos entra para o mosteiro das Carme-
gralmente à sua busca espiritual. Mora porque Tu és digno de ser amado. No litas da Encarnação. Quatro anos de-
na companhia de ‘Abda, que é uma primeiro, penso em Ti, excluindo qual- pois tem uma doença grave que a leva
discípula que se colocou a seu serviço. quer outro. No segundo, Tu mesmo te à Becedas, onde tem contato com um
Distanciando-se da visão majoritária desvelas a mim, para que eu te veja”. tio que lhe introduz em algumas práti-
presente no Islã, opta por uma vida Na linha da gratuidade amorosa, uma cas da vida de oração. Em seguida, em
celibatária: “O matrimônio é necessá- história ficou famosa e retrata bem sua 1543, aos 28 anos, perde seu pai.
rio para quem tem escolha. Quanto a experiência: “Um dia, nas ruas de Bas- Após a morte de seu pai, ela pas-
mim, não tenho escolha; sou do meu ra, ela foi perguntada por que estaria sa a se dedicar com mais intensidade
Senhor e vivo à sombra dos seus man- carregando uma tocha em uma mão e à oração, porém, a duras penas, de
damentos”. Não demorará muito para um jarro na outra, e ela respondeu: modo que se pode dizer que, nos 10
sua casa se tornar lugar de “peregri- ‘Eu quero jogar fogo no Paraíso e des- anos seguintes, ela oscilou entre a bus-
nação”, onde muitos – inclusive sábios pejar água no Inferno, pois assim esses ca intensa da oração e a acomodação
– irão lhe consultar e ouvir seu falar dois véus desaparecerão e se tornarão e dispersão, associados aos momentos
de Deus. Daí que sua vida será muito claros os que adoram a Deus por amor, em que passava no locutório com pes-
marcada por tempos dedicados à ora- não por medo do Inferno ou pela es- soas da sociedade abulense, entretida
ção e tempos dedicados à orientação perança do Paraíso”. Dessa maneira, e distraída com conversas fúteis. Foi
espiritual. nos ditos de Rabi’a depreende-se uma um período de grande luta entre a me-
concepção de um Deus próximo e ínti- diocridade que caracterizava algumas
Puro e gratuito amor  Ibid., p. 41 (Nota do entrevistado). de suas posturas e costumes e a coe-
 Ibid., p. 76. Para aprofundar esse dito, cf. rência de vida e profundidade por ela
Sachiko Murata. La luz de la mujer: el princí-
Sua concepção acerca da oração si- pio feminino en el sufismo. In: Pablo Beneito, almejada.
tua-se dentro da tradição sufi, que in- Lorenzo Piera, Juan José Barcenilla. Mujeres Além disso, o ambiente do mosteiro
siste na oração contínua e na educação de luz. La mística feminina, lo feminino en la da Encarnação em nada lhe favorecia
mística, Ed. Trotta, 2001, 267ss (Nota do en-
para esta prática por meio do dhikr, trevistado). a vivenciar um ambiente de maior in-
que é a repetição dos nomes divinos  Ibid., p.33 (Nota do entrevistado). teriorização, visto que nele moravam
 Caterina Valdrè. I detti di Rabi’a, Ed. Adel- Annemarie Schimmel. Mystical dimensions of
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phi, 1979, p. 50 (Nota do entrevistado). Islam, The University of North Carolina Press, Caterina Valdré. I detti di Rabi’a, p. 68
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 Ibid., p. 58 (Nota do entrevistado). 1978, p. 38-39 (Nota do entrevistado). (Nota do entrevistado).

38 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


muitas irmãs (quase 200); não havia do a ler as Confissões, tive a impres-
um clima orante, mas necessidades são de me ver ali” (Vida 9,8). Houve
financeiras que favoreciam a saída uma empatia tão grande com ele que
de irmãs por alguns períodos para se chegou a afirmar que, quando se depa-
instalarem em casas de pessoas ricas rou com a “sua conversão e li que ele
– pelo menos nestas casas teriam sus- ouvira uma voz no jardim, senti ser o
tento e não onerariam os parcos recur- Senhor quem me falava, tamanha foi
sos do mosteiro – e, por fim, mantinha- a dor do meu coração. Passei muito
se neste mosteiro a divisão de classes tempo chorando, com grande aflição e
sociais muito presente na sociedade sofrimento” (Vida 9,8).
espanhola daquele tempo, havendo A partir dessas experiências, a vida
monjas que possuíam empregadas de Teresa sofre uma guinada e muda
domésticas particulares e mantinham completamente. Fazendo uma breve
seus títulos de nobreza, situação que interpretação da estrutura do Livro
em muito prejudicava o centramento da Vida, pode-se pensar assim: nos
na vida espiritual e a prática da fra- capítulos iniciais (até o capítulo 7),
ternidade no contexto da comunida- ela narra sua vida em família, sua for-
de. Essa época na vida de Teresa é ca- mação e seus altos e baixos na busca
racterizada como um período de crise da oração; no capítulo 8 ela define o
acerca de sua vocação fundamental que é oração: “Para mim, a oração
na vida, marcado pela experiência de mental não é senão tratar de amiza-
uma grande e solitária luta em busca de – estando muitas vezes tratando a
de seu caminho. sós – com quem sabemos que nos ama”
A grande mudança nesta situação (Vida 8,5). Aqui ela já dá o seu tom
vai ocorrer em 1554. Nesse ano, em sobre a oração: vida de amizade com o
seu relato autobiográfico – Livro da Amado. Em seguida vem o capítulo 9,
Vida – ela narra o seguinte: “A minha “Rabi’a e Teresa indicando verdadeiro divisor de águas
alma já estava cansada e, embora qui- em sua vida, onde ela vai narrar sua
sesse, seus maus costumes não a dei- vivenciaram algum tipo experiência que passa para a história
xavam descansar” (Vida 9,1). Como se como uma experiência de conversão;
depreende desse relato, em sua sub- de experiência fundante após esse, o capítulo décimo indica
jetividade Teresa experimentava um sua mudança e a seguir ela interrompe
cansaço interior, o que lhe abrirá para que as modificou e lhes a narrativa da sua vida, introduzindo
a busca de um novo estilo de vida mais um pequeno tratado sobre a oração
coerente consigo mesma e com seus abriu para uma (capítulos 11 a 21).
questionamentos. Nesse tratado, ela apresenta uma
intimidade profunda metáfora, comparando a vida de ora-
Cristo e Agostinho ção a um jardim e as formas de irri-
com o Real” gá-lo, articulando a ação humana e a
Além disso, dois eventos – ambos divina no irrigar. Na verdade, trata-se
narrados no Livro da Vida – são impor- me fortalecesse de uma vez para que da explicação de quatro graus de ora-
tantes. No primeiro deles, ela se depa- eu não O ofendesse mais” (Vida 9,1). ção, indo do grau em que mais esforço
ra, ao entrar num oratório do Mosteiro Essa experiência lhe foi tão marcante pessoal se tem – que é o tirar a água
da Encarnação, com uma imagem de que ela afirmou que não se levantaria de um poço puxando-a por meio de um
Cristo chagado e ela o narra assim: dali enquanto sua “súplica não fosse balde (1) e passando pela utilização de
“Aconteceu-me de, entrando certo atendida” (Vida 9,3). roldanas (2) e a captação da água de
dia no oratório, ver uma imagem guar- O segundo evento importante, nes- um rio (3) – até o grau em que não se
dada ali para certa festa a ser cele- se mesmo ano de 1554, foi a publica- precisa fazer esforço, pois a própria
brada no mosteiro. Era um Cristo com ção em Salamanca das Confissões, de chuva irriga o jardim (4). Esse é o
grandes chagas que inspirava tama- Santo Agostinho11. Teresa leu-as com tipo de oração mais mística, em que
nha devoção que eu, de vê-lo, fiquei intensidade e paixão, identificando-se a pessoa se coloca em atitude de total
perturbada, visto que ela representa- com a busca de Agostinho: “Começan- receptividade e recolhimento das suas
va bem o que Ele passou por nós. Foi 11 Aurélio Agostinho (354-430): conhecido potências e paixões diante do Misté-
tão grande o meu sentimento por ter também como Santo Agostinho, nasceu em rio divino, que a inunda totalmente. A
Tagaste. Bispo, escritor, teólogo, filósofo foi
sido tão mal-agradecida àquelas cha- uma das figuras mais importantes no desenvol- partir da explicação dos quatro graus
gas que o meu coração quase se par- vimento do cristianismo no Ocidente. Ele foi da oração, Teresa se detém em narra-
tiu; lancei-me a seus pés, derramando influenciado pelo neoplatonismo de Plotino e tivas acerca das graças místicas rece-
criou o conceito de pecado original e guerra
muitas lágrimas e suplicando-lhe que justa (Nota da IHU On-Line). bidas (capítulos 22 a 31) para, logo em
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 39
seguida, narrar a fundação do Carmelo falar a leitores e “buscadores” de ou-
de São José de Ávila, início da Reforma
“A busca de união de tras épocas, religiões e contextos so-
(verdadeira e singular Fundação) Te- cioculturais distantes dos delas, além
resiana que dará origem à Ordem dos
Rabi’a e Teresa com o de comunicarem certo “calor”, na lin-
Carmelitas Descalços. Ou seja, há uma guagem de João da Cruz, aos que os
Teresa antes da oração (até o capítulo
Amado se baseia na leem.
8) e outra depois da oração (do capítu-
lo 10 em diante), cujo fruto maior será
condição amorosa do IHU On-Line – Rabi’a e Teresa estão
sua obra de fundadora. separadas por quase um século. A
Teresa continua sua vida de profun-
Amado que sai de si em partir dessa diferença, qual foi a re-
da experiência do Mistério e se dedica lação dessas místicas com a cultura, a
a fundar mosteiros, em sua maioria
busca da Amada, objeto teologia e a sociedade do seu tempo?
femininos;também participa e colabo- Carlos Frederico Barboza de Souza
ra com fundações de frades. Vive uma
de seu amor” – Rabi’a vive em um período de mu-
vida de intensa atividade e contatos. presente em muitos místicos –, que as danças muito intensas na história das
Morre em Alba de Tormes aos 15 de ou- modificou e lhes abriu para uma inti- sociedades islâmicas: ela se encontra
tubro de 1582, deixando três grandes midade profunda com o Real. Dessa entre a grande transição da dinastia
obras: Livro da Vida; Caminho de Per- forma, acabaram encontrando-se com dos omíadas para a dos abássidas. Perí-
feição; e Castelo Interior ou Moradas. o Amado, a quem dedicam um amor odos como esses, de grande transição,
total e exclusivo, chegando à opção são marcados por convulsões e verda-
IHU On-Line – É possível estabelecer celibatária – o que no caso de Rabi’a deiras revoluções no pensamento, nas
uma relação entre Rabi’a al-’Ada- extrapola a tradição islâmica, que artes e na teologia.
wiyya e Teresa de Jesus a partir de valoriza o casamento de forma mui- Em termos históricos, os abássidas,
suas experiências místicas? to significativa. Assim, em ambas se que governarão o Império Islâmico
Carlos Frederico Barboza de Souza pode encontrar a busca do Amado de de 750 a 1258 do calendário cristão,
– Sim, é possível estabelecer paralelos forma intensa e gratuita; e também se mudarão a capital do império de Da-
entre ambas, resguardando a singula- percebe uma semelhança nas diferen- masco para Bagdá. Com isso, a região
ridade de cada uma e a irredutibilida- tes etapas espirituais percorridas por da Mesopotâmia se converterá em
de de suas experiências, assim como elas rumo à união mística. E esse amor um grande centro da cultura árabe,
de suas pertenças religiosas, pois uma gerou comportamentos e atitudes de abrindo-se às mais diversas manifesta-
era muçulmana e a outra era cristã. amantes, registrados na busca inten- ções culturais, filosóficas e artísticas.
Ou seja, é importante não se perder sa que ambas vivenciaram por meio Basra, cidade em que nasce Rabi’a,
de vista o que David Tracy12 chamará de buscas de orientação e vivências também conhecerá um grande flores-
de a existência de “similaridades na comunitárias, forte ascese, vigílias, cimento cultural, sendo referência
diferença”. momentos intensos de oração, graças inclusive nas ciências religiosas: a sua
Ambas foram órfãs e já na infância místicas, cultivo da solidão, etc. De- grande mesquita se converterá numa
experimentaram uma busca por Deus. senvolvem uma linguagem esponsal e pequena universidade com duas espe-
E passando por diversos dissabores vi- apaixonada pelo Amado e sua busca de cializações: as ciências literárias e as
venciaram algum tipo de experiência união com ele se baseia na condição ciências jurídicas.
fundante – o que não é exclusividade amorosa do Amado que sai de si em Rabi’a bebe deste ambiente e, em-
delas, mas trata-se de um elemento busca da Amada, objeto de seu amor. bora não seja propriamente uma inte-
Por isso em ambas é comum a lingua- lectual, vai se encontrar com muitos
12 David Tracy (1939-): licenciado e doutor
em Teologia pela Universidade Gregoriana de gem amorosa dos esposos, que trocam mestres de sua época, de quem mui-
Roma, e professor de Teologia Contemporâ- carícias e anseiam pela presença e en- to aprende e, mais tarde, orientará.
nea e Filosofia da Religião, na University of Pautada em seu ambiente histórico e
Chicago Divinity School, nos Estados Unidos. trega mútuas.
Em 1963, foi ordenado padre pela diocese de Por fim, um último elemento co- cultural, ela desenvolverá uma rela-
Bridgeport, Connecticut, nos EUA. Entre seus mum entre elas que seria importante ção profunda e singular com o Islã e
livros publicados, citamos A teologia cristã e a sua teologia, sendo capaz de deixar
cultura do pluralismo (Ed. Unisinos, 2006) e o ressaltar é que, devido a esta trajetó-
artigo O Deus oculto: o resgate da apocalíptica ria intensa de busca, de experiências sua marca em ambos, sendo a primei-
de David Tracy em: NEUTZLING, Inácio (org.), e de interlocuções com pessoas de seu ra mística a introduzir o elemento do
A teologia na universidade contemporânea amor puro e desinteressado por Deus
(Ed. Unisinos. 2005, p. 85-98). Tracy esteve na entorno, elas vêm a se tornar gran-
Unisinos, convidado pelo IHU, para realizar a des orientadoras espirituais e muito no meio do austero e ascético ambien-
conferência intitulada Entre o apocalíptico e o requisitadas inclusive por lideranças te vivido pelos sufis de sua época. Essa
apofático. O fazer teológico na universidade, sua concepção influenciará muitos
hoje, a partir da pós-modernidade no Simpósio religiosas de suas épocas. E seus es-
Internacional IHU: O Lugar da Teologia na Uni- critos, apesar de datados e serem ela- mestres sufis posteriores, como Jafar
versidade do século XXI, em maio de 2004. Ele borados dentro de contextos históricos
concedeu entrevista ao IHU On-Line, n. 103
de 31 de maio de 2004, disponível em http:// específicos, adquirem uma dimensão
migre.me/77jKF (Nota da IHU On-Line). de universalidade, sendo capazes de
40 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
“A busca de união de Rabi’a e Teresa
com o Amado se baseia na
condição amorosa do Amado que sai de
si em busca da Amada, objeto de seu
amor”

al-Sadiq13, Dhu’n Nun14, ‘Attar15 – que de sua época. Ape-


possui um relato sobre sua vida – e sar de apontar para
Rûmî, que também reconta histórias alguma valorização
por ela contadas. Junto a esse ele- da mulher, em seus
mento amoroso, também acabará por escritos aparece
direcionar o sufismo na direção de uma uma concepção de
busca da união mística com o Real. certa inferioridade
Teresa também possuiu um fecun- da mulher em re-
do diálogo com sua cultura (cf. a obra lação aos homens.
de Tomás Álvarez, 100 fichas sobre Te- Também manifes-
resa de Jesus, que em seus capítulos ta uma concepção
iniciais faz essa contextualização da cristã que lida com
obra e vida de Teresa com a Espanha dificuldade com a
do século XVI). É capaz de criticar os reforma protestan-
valores de sua sociedade, como o cul- te, sobretudo com
to da honra e as leis relativas à pureza o luteranismo, ao
de sangue, a busca desenfreada pelo mesmo tempo em
dinheiro, a busca incessante dos delei- que tem grandes
tes, assim como a forte divisão de clas- preocupações com a inspiração pela análise; inventar um
ses sociais: “Nunca, jamais a priora ou os índios que poderão morrer nas Amé- método em vez de contentar-se com
qualquer uma das irmãs poderá cha- ricas sem o batismo. fiar-se no instinto; conciliar experiên-
mar-se de dona” (Constituições 9,13). Porém, apesar disso tudo que apon- cia pessoal e vida coletiva”17.
Da mesma forma, dá voz e decisão às ta para sua pertença a uma determi-
mulheres em seus mosteiros e insiste nada época e história, Teresa, com IHU On-Line – No atual contexto con-
para que estudem, coisa não muito sua rica personalidade e inteligên- temporâneo, em sua opinião, qual o
valorizada em sua época, de modo cia, acabou oferecendo uma síntese papel da mística e da espiritualida-
que não concebe a estrutura de seus importante para a espiritualidade de de? É possível que o ser humano do
Carmelos sem uma boa biblioteca para seu tempo, juntamente com outros século XXI se abra novamente para o
“alimento espiritual” das monjas. Ao místicos do Século de Ouro espanhol, lado místico da existência?
mesmo tempo, sua preocupação em sobretudo, João da Cruz e Inácio de Carlos Frederico Barboza de Souza
fundar seus mosteiros é de prestar um Loyola16: “Na obra dos grandes místi- – Sobre o papel da mística e da espi-
serviço à sua igreja e sociedade por cos espanhóis vemos, pois, realizar-se ritualidade na sociedade contemporâ-
meio da oração. É claro que também um equilíbrio entre tendências opos- nea: inicialmente penso que há uma
absorveu pensamentos característicos tas, que não somente interessam à tendência a banalizar essa dimensão
13 Ja’far ibn Muhammad al-Sādiq (702-765): experiência religiosa, mas que valem tão fundamental nas vivências das tra-
era descendente de Maomé e um proeminente para a vida cultural em geral: subme-
jurista muçulmano. É reverenciado como imã
dições religiosas. Hoje muita coisa vira
pelos adeptos do islamismo xiita e como um ter a sensibilidade a uma disciplina consumo e meio de satisfação intimis-
renomado estudioso islâmico por muçulmanos para não deixar-se levar a uma ade- ta, evidenciando o risco de a mística se
sunitas (Nota da IHU On-Line). são ao que é simplesmente confuso e
14 Dhul-Nun al-Misri (796-859): foi um santo
perder nessa busca de autossatisfação
sufi egípcio. Era considerado o padroeiro dos vago; construir uma técnica intelectu- egocêntrica em que o centro é o pró-
médicos no início da era islâmica do Egito. al que permita ir mais adiante dos es- prio ser humano e não o Mistério Real.
Aprofundou o conceito de gnose no Islã (Nota tados distintos sem perder-se nas re-
da IHU On-Line).
Junto a tal concepção, percebe-se tam-
15 Abū Hamīd bin Abū Bakr Ibrāhīm giões turvas da vida afetiva; controlar bém uma forma de compreender a mís-
(1145/1146-1221): “o perfumista”, foi um 16 Inácio de Loyola (1491-1556): fundador da tica como algo da ordem da produção
poeta persa muçulmano, teórico do sufismo Companhia de Jesus, conhecida pelo nome
e hagiógrafo de Nishapur, que teve uma gran- “jesuíta”, cuja missão é o serviço da fé, a pro- 17 Joseph Pérez, Cultura y sociedad en tiem-
de influência sobre a poesia persa e o sufismo moção da justiça, o diálogo inter-religioso e pos de Santa Teresa, In: Actas del Congreso
(Nota da IHU On-Line). cultural (Nota da IHU On-Line). Internacional Teresiano, Ávila, 2010, p. 39.

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 41


humana, fruto de um ambiente prepa- ton, Charles de Foucauld22, Suzuki23, Do-
rado para gerar sentimentos de êxtase “A mística pode nos gen24, ‘Attar, etc.
provocados por rituais e elementos ex- Por fim, é necessária prática insis-
teriores ao sujeito humano e ao Real. humanizar ao ajudar a tente e perseverança... mesmo em
Penso que isso tudo descaracteriza a meio às noites e tempestades, saber
mística, que se fundamenta, sobretu- relativizar o que não é que tudo pode ser vivido como encon-
do, numa busca profunda e intensa de tro com o Real. Não que ele queira e
abertura ao Mistério Sagrado, gerando essencial” seja responsável por todas as dores do
um autoesquecimento, desapego e ati- mundo, mas, nestas dores, ser capaz
tudes reais de compromisso com o Real ajuda a ir além das falsas impressões, de encontrar uma palavra que enxer-
e com as pessoas. da necessidade de ver tudo, obrigan- gue além, por trás das aparências, e
Quanto ao papel da mística, penso do-nos a desenvolver o encantamento que ajude a recobrar o sentido e a be-
que ela pode nos humanizar ao ajudar a que nasce da descoberta da dimensão leza do existir e da condição humana.
relativizar o que não é essencial. Nesse simbólica da vida. Por isso muitos mís-
sentido, nos ajuda a ser mais críticos ticos foram artistas e souberam poeti-
em relação a todo comportamento su- zar suas experiências com a natureza,
a vida e Deus, transformando tudo em Leia Mais...
perficial que nos cerca, comportamen-
tos que não nos abrem ao amor, ao com- poesia. Como escreveu Rainer Maria Ri- >> Carlos Frederico Barboza de Souza já con-
promisso e à solidariedade, seja com lke20: “Se a própria existência cotidiana cedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:

Deus, seja com outros seres humanos e lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse
* Sufismo: uma mística que busca o equilíbrio. En-
a natureza. De igual forma, a experiên- a si mesmo, diga consigo que não é bas- trevista publicada na IHU On-Line número 302, de
cia mística ajuda a superar a dispersão tante poeta para extrair suas riquezas” 03-08-2009, disponível em http://bit.ly/dXDqVG;

e a falta de concentração e integração (Cartas a um jovem poeta, p. 23).


* A mística de Rûmî e o ser humano autônomo con-
que muitos de nós sofremos nesta so- Quanto ao que é necessário para temporâneo. Entrevista publicada na IHU On-Line
ciedade fragmentada e dispersa. Nesse que as pessoas deem atenção ao lado número 222, de 04-06-2007, disponível em http://
místico da vida: penso que um primei- bit.ly/uEC61n.
sentido, penso que a mística é muito
útil em termos de autoconhecimento, ro ponto é não ter ilusão do que é a
pois o que entra no Mistério e nele se mística. Há uma tendência a enfatizar
apenas Santa Teresinha, nasceu em Alençon,
aprofunda conhece profundamente a apenas os momentos alegres que a ex- na França. Filha de um relojoeiro e de uma
miséria de que é feito e a fragilidade periência do Mistério proporciona, mas artesã dedicou-se a vida religiosa assim como
o que se vê nos relatos dos místicos é suas cinco irmãs. Aos 15 anos entrou para o
de sua própria condição humana, ao convento das carmelitas, na cidade de Lisieux.
mesmo tempo em que reconhece sua que todos se submetem a um longo e Passou nove anos no convento vivendo intensa-
riqueza e percebe-se de forma positi- doloroso processo de autoconhecimen- mente a fé eclesiástica. Aos 23 anos descobriu
to e desprendimento, para deixar-se que estava com tuberculose. Desejava ir como
va como amado e acolhido por Alguém missionária para a Indochina, mas sua saúde
ou Algo para além de toda obscuridade transformar pelo Real e, com isso, se debilitada não lhe permitiu. A santa dissera
que possa estar vivendo. submeterem à morte sempre dolorosa que uma chuva de rosas (bençãos) cairia sobre
de seu “Eu”. A satisfação é presente a Terra após a sua morte. Em 1906 a cura de
Dessa maneira, penso que a místi- um seminarista de Lisieux foi atribuída a ela
ca pode gerar experiências de poten- também, porém, como fruto de um re- e vários milagres seguiram-se. Foi beatificada
cialização das capacidades humanas e nascer, de um ressignificar a vida, de em 1923 e canonizada em 1925 (Nota da IHU
um permitir-se ser transformado. On-Line).
de sutilização das próprias percepções, 22 Charles Eugéne de Foucauld (1858-1916):
gerando um olhar para além do cos- E para se entrar nesse caminho, é ordenado sacerdote em 1901. �����������������
Tinha a intenção
tumeiro, do corriqueiro, como afirma preciso se cercar de bons orientadores de criar uma nova ordem religiosa, o que su-
espirituais, pessoas vividas nesse tipo de cedeu apenas depois da sua morte: os Irmãozi-
Comte-Sponville18 no livro O espírito do nhos de Jesus. Foi assassinado por assaltantes
ateísmo19: devemos descobrir o misté- experiência e que podem nos oferecer de passagem em 1916. Foi beatificado pelo
rio “por trás da fingida transparência indicações dos perigos de engano que se Papa Bento XVI em novembro de 2005 (Nota
encontram pelo percurso. Dentre esses da IHU On-Line).
das explicações. Na maioria das vezes 23 Daisetsu Teitaro Suzuki (1870-1966): foi
passamos ao largo: somos prisioneiros orientadores, também são úteis se re- um famoso autor japonês de livros sobre bu-
das falsas evidências da consciência correr a livros com relatos de místicos. dismo, zen e jodo shinshu, responsável em
É o caso de ler as obras de Teresa e João grande parte pela introdução dessas filosofias
comum, do cotidiano, da repetição, no ocidente. Suzuki também foi um prolífico
do já conhecido, do já pensado, da da Cruz, assim como de tantos outros tradutor de literatura chinesa, japonesa e
familiaridade suposta ou comprovada que oferecem pistas interessantes para sânscrita. Suzuki passou vários períodos longos
quem quer perseverar nesta via profun- ensinando ou dando palestras em universida-
de tudo, em suma, da ideologia ou do des do ocidente e devotou vários anos a seu
hábito”. Assim, creio que a mística nos da, como Rûmî, Rabi’a, Mestre Eckart, professorado numa universidade budista japo-
18 André Comte-Sponville (1952): filósofo Teresa do Menino Jesus21, Thomas Mer- (Nota da IHU On-Line).
nesa, Otani ���������
materialista francês. Ex-aluno da École norma- 20 Rainer Maria Rilke (1875-1926): foi um dos 24 Dogen Kigen (1200-1253): foi um monge bu-
le supérieure da rue d’Ulm, foi amigo de Louis mais importantes poetas de língua alemã do dista japonês, fundador da linhagem japonesa
Althusser. (Nota da IHU On-Line). século XX. Escreveu também poemas em fran- Soto Zen e fundador do mosteiro de Eihei-ji,
19 O espírito do ateísmo. Introdução a uma cês. (Nota da IHU On-Line). no Japão. Originalmente recebeu ordenação
espiritualidade sem Deus (São Paulo: Martins 21 Santa Teresa de Lisieux (1873-1897): Santa como monge Tendai em Heiei-san aos 13 anos
Fontes, 2009). (Nota da IHU On-Line). Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face ou (Nota da IHU On-Line).

42 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


Hildegard de Bingen, uma “artista” mística e profética
Visionária, profeta e mística do século XII: é assim que a professora da Universidade Pompeu
Fabra, de Barcelona, resume a vida de Hildegard de Bingen, um “caso único” da história da
mística e da espiritualidade universais

Por Moisés Sbardelotto

“H
ildegard de Bingen foi uma visionária, profeta e mística do século XII. Escreveu uma
obra profética, isto é, revelada, na qual transcreve a voz de Deus, mas também na
qual introduz passagens autobiográficas em que fala de uma experiência de união com
Deus”. Mas não só: “Ela escreveu uma obra ‘científica’, nascida da observação direta
da natureza. Foi poeta e compôs música”.
Nestas poucas linhas, Victoria Cirlot, professora de Filologia Românica na Faculdade de Humanidades da
Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, busca resumir um “caso único” da história da mística e da es-
piritualidade universais. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Victoria afirma que “o fato de
uma mulher escrever e falar em público perante os prelados da Igreja é algo extraordinário para a condição
da mulher na Idade Média”.
Hildegard pôde fazer isso “graças ao carisma que lhe foi proporcionada pela sua faculdade visionária em
uma época (século XII) em que a Igreja ainda estava aberta a esse tipo de experiências”, além de contar
com o apoio de Bernardo de Claraval , o que sem dúvida foi decisivo.
Portanto, uma mística que revela “o aspecto feminino de Deus”, afirma Victoria. “Eu situo Hildegard nas
origens da mística feminina”, explica. “Se eu tivesse que definir Hildegard para o nosso mundo, eu diria
que ela era uma artista. Dito de outro modo, se Hildegard tivesse vivido no século XX ou XXI, teria sido uma
artista de primeira ordem, pela sua elevadíssima capacidade criadora”, sintetiza.
Victoria Cirlot (Barcelona, 1955) é professora de Filologia Românica na Faculdade de Humanidades da Uni-
versidade Pompeu Fabra, de Barcelona, Espanha. Ocupou-se da mística medieval, dentre outros temas, e pu-
blicou vários livros, entre os quais destacamos: La mirada interior. Escritoras mística y visionarias de la Edad
Media (Madri: Siruela, 2008) e Vida y visiones de Hildegard von Bingen (Madri: Siruela, 2009, 3ª ed.). Tem-se
dedicado a estudar o fenômeno visionário a partir de uma perspectiva comparativa com a arte do século XX,
por exemplo em seus livros Hildegard von Bingen y la tradición visionaria de Occidente (Barcelona: Herder,
2005) e La visión abierta. Del mito del Grial al surrealismo (Madri: Siruela, 2010). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Você afirma que Hilde- sabemos que, desde a sua infância, ela Como você analisa esse importante
gard de Bingen foi “uma das figuras teve visões. Além dessa obra visioná- papel de uma mulher na sociedade e
mais significativas da espiritualidade ria, ela escreveu uma obra “científi- na Igreja da Idade Média?
do Ocidente europeu”. Como você ca”, nascida da observação direta da Victoria Cirlot – É um caso único. O
apresentaria Hildegard de Bingen ao natureza. Foi poeta e compôs música. fato de uma mulher escrever e falar em
público brasileiro? Quais são os as- público perante os prelados da Igreja é
pectos mais importantes da vida e da IHU On-Line – Os escritos de Hilde- algo extraordinário para a condição da
personalidade dessa mística? gard de Bingen foram aprovados pelo mulher na Idade Média. Ela pôde fa-
Victoria Cirlot – Hildegard de Bingen Papa Eugênio III e integrados sole- zer isso graças ao carisma que lhe foi
foi uma visionária, profeta e mística nemente à doutrina oficial da Igreja. proporcionada pela sua faculdade vi-
do século XII. Escreveu uma obra pro-  Beato Eugênio: Papa de 15 de Fevereiro de sionária em uma época (século XII) em
fética, isto é, revelada, na qual trans- 1145 até 8 de Julho de 1153. Em 1135, ingres- que a Igreja ainda estava aberta a esse
sou na Ordem Cisterciense. Foi designado pelo
creve a voz de Deus, mas também na seu superior para abrir outro mosteiro da Or- tipo de experiências. Ela contou com o
qual introduz passagens autobiográfi- dem na cidade de Farfa, diocese de Viterbo, apoio de Bernardo de Claraval (o papa
cas em que fala de uma experiência de onde foi nomeado abade pelo Papa Inocêncio tinha sido um dos seus discípulos), o
II. Em 1145, Bernardo Pignatelli foi eleito Papa
união com Deus. Por essas passagens, e adotou o nome de Eugênio III. (Nota da IHU que sem dúvida foi decisivo.
On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 43


IHU On-Line – Quais foram as “visões” experiência interior no tema de seus es-
de Hildegard? Como a perspectiva vi- critos. Mas o fato de que sua obra con-
sionária de Hildegard influenciou o tenha passagens autobiográficas que se
pensamento medieval ou posterior? referem à sua própria experiência fazem
Victoria Cirlot – A obra profética de Hil- dela, a meu modo de ver, em um claro
degard se constrói a partir de suas vi- precedente. Por outro lado, a Vita que
sões: primeiro, são descritas e, depois, Theoderich von Echternach escreveu
interpretadas. Trata-se de visões cos- pouco depois de sua morte e na qual se
mológicas, nas quais se assiste à Cria- recolhiam testemunhos autobiográficos
ção e ao fim dos tempos. A ambivalên- de Hildegard seria um modelo para a re-
cia própria do símbolo e a polivalência dação de Vitae posteriores. Hadewijch
significativa se estreitam na interpreta- cita Hildegard em sua célebre Lista de
ção, sempre conforme à teologia cristã, perfeitos.
mas, nas descrições, sua intensidade
e riqueza ficam patentes. As visões de IHU On-Line – Muitas foram as expres-
Hildegard, além disso, foram ilustradas sões artísticas dessa mulher medie-
em três manuscritos. São miniaturas re- val: poetisa, música, pintora. Como
almente extraordinárias. Sabemos que você vê a arte de Hildegard? Como
algumas de suas visões foram copiadas a expressão artística e estética dela
e transferidas para os muros dos con- está associada com a sua experiência
ventos, como, por exemplo, o de Santa “O fato de uma mulher mística?
Gertrudes de Colônia (Alemanha). No Victoria Cirlot – O que nós chamamos
início do século XIV, Tauler fez um ser- escrever e falar em agora de arte, na sua época, era re-
mão nesse convento, no qual comentou ligião. Se eu tivesse que definir Hil-
as imagens de Hildegard. público perante os degard para o nosso mundo, eu diria
que ela era uma artista. Dito de outro
IHU On-Line – Qual a sua análise das prelados da Igreja é algo modo, se Hildegard tivesse vivido no
obras de Hildegard, especialmente século XX ou XXI, teria sido uma artis-
de sua trilogia Liber? Qual a atuali- extraordinário para a ta de primeira ordem, pela sua eleva-
dade dos seus escritos na sociedade díssima capacidade criadora.
contemporânea? condição da mulher
Victoria Cirlot – Fundamentalmente, as IHU On-Line – Especificamente, como
imagens de suas visões ficaram plasma- na Idade Média” você analisa a obra musical de Hilde-
das em suas miniaturas, nas do manus- gard? Como podemos compreender o
crito de Rupertsberg realizado durante a ção da imagem se devia à sua dimen- seu universo melódico?
vida de Hildegard (perdido na Segunda são simbólica. A imagem-símbolo era Victoria Cirlot – Infelizmente, eu não sei
Guerra Mundial, mas do qual se conserva concebida como uma ponte, uma me- música, mas, pelos estudos que li acerca
um fac-símile realizado pelas freiras de diação para o conhecimento do além. de suas composições, seu universo me-
Eibingen nos anos 1920), e as do manus- lódico se destacava também por uma
crito de Lucca, que se encontra na Bi- IHU On-Line – O que separa ou dis- grande originalidade, já que não era gre-
blioteca estatal da cidade de Lucca, na tancia Hildegard de outras místicas? goriano o que ela compunha, e que era o
Itália, do início do século XIII. São ima- Quais foram as particularidades da que se fazia em sua época.
gens que foram reproduzidas inúmeras sua experiência mística em compara-
vezes e que constituem pontos de apoio ção com outras místicas da história? IHU On-Line – De que fontes teoló-
para a meditação, por exemplo. Victoria Cirlot – Estudos feministas de- gicas Hildegard bebe? Quem são os
monstraram como Hildegard mostra, em seus “interlocutores” em sua refle-
IHU On-Line – Em sua opinião, em sua obra, o aspecto feminino de Deus. xão sobre Deus?
que aspectos Hildegard pode ser Eu situo Hildegard nas origens da mística Victoria Cirlot – É muito difícil determi-
considerada um “fruto” da cultura e feminina, porque, embora sua obra seja nar as fontes de Hildegard, porque, na
da simbologia medievais? sobretudo profética – e isso significa que Idade Média, se citam pouco os autores
Victoria Cirlot – Com efeito, é preciso ela não fala de si mesma nem da sua ex- aos quais se lê. Mas as últimas edições
situar Hildegar em sua época, meados periência, mas sim que Deus fala atra- de sua obra dão conta da cultura de
do século XII, na qual a concepção do vés dela –, também se ouve a primeira Hildegard. Longe de ser uma indouta e
mundo imperante era essencialmente pessoa em seus textos. Naturalmente, iletrada, como ela se chama, sobretudo
neoplatônica (a escola filosófica de de um modo muito mais oculto do que para enfatizar o caráter revelado de sua
Chartres, a escola vitorina), que ou- na mística flamenga ou alemã (refiro-me obra profética, ela poderia ter chegado
torgava um valor à imagem superior ao a uma Hadewijch, ou a uma Mechthild a ler Escoto Erígena.
da palavra. Essa extraordinária valora- de Magdeburgo), que converteram sua  João Escoto Erígena (810-877): também co-

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IHU On-Line – Em sua opinião, a par-
tir da obra de Hildegard, que mo-
dalidades discursivas, literárias ou
semânticas marcam a simbologia e a
linguagem místicas renanas?
Confira outras edições
da IHU On-Line
Victoria Cirlot – Hildegard escreveu em
latim. As primeiras obras místicas em
língua vulgar, em alemão antigo (que
também incluía o neerlandês), são as de
Beatrijs van Nazareth e Hadewijch, na
primeira metade do século XIII. O ale-
mão (mittelhochdeutsch) alcança seu
ponto culminante na obra de Mechthild
de Magdeburgo e do Mestre Eckhart:
trata-se de uma linguagem aberta, sen-
sual, metafórica, paradoxal.

nhecido como Escoto de Erígena, foi filósofo,


teólogo e tradutor irlandês da corte de Carlos,
o Calvo, nascido na Scotia (hoje Irlanda). Tra-
duziu do grego as obras de Dionísio, o Areopa-
gita, além de textos de São Gregório de Nissa
e de São Máximo, o Confessor. Durante essas
traduções iniciou a composição de sua obra
maior, Periphyseon (Da Divisão da Natureza),
considerada uma síntese de teologia, filosofia,
cosmologia e antropologia, fundindo cristia-
nismo e platonismo, constituindo assim uma
alternativa filosófica ao escolasticismo aristo-
télico da época (Nota da IHU On-Line).
 Beatrijs van Nazareth (1200-1268): foi uma
freira cisterciense flamenga. Foi a primeira
prosadora a usar o idioma holandês, além de
mística e autora de um notável texto em prosa
holandês conhecido como os Sete caminhos do
amor divino. Também foi a primeira priora da
Abadia de Nossa Senhora de Nazaré, em Naza-
ré, perto de Lier in Brabant, na Bélgica (Nota
da IHU On-Line).
 Mestre Eckhart (1260-1327): nasceu em
Hochheim, na Turíngia. Ingressando no con-
vento dos dominicanos de Erfurt, estudou em
Estrasburgo e em Colônia. Tornou-se mestre
em Teologia e ensinou em Paris. Em sua obra,
está muito presente a unidade entre Deus e o
homem, entre o que consideramos sobrenatu-
ral e o que achamos ser natural. É um pensa-
mento holístico. Para Eckhart devemos reco-
nhecer Deus em nós, mas este caminho não é
fácil. O homem deve se “exercitar nas obras,
que são seus frutos”, mas, ao mesmo tempo,
“deve aprender a ser livre mesmo em meio às
nossas obras”. Eckhart morreu em 1327. Em
27 de março de 1329, foi dado ao público a
bula In agro dominico, através da qual o Papa
João XXII condenou 28 proposições do Mestre
Eckhart. Das 28, dezessete foram consideradas
heréticas e onze, escabrosas e temerárias. En-
tre estas, estava a de que nos transformamos
em Deus. Mas esta condenação papal justifica-
se, na medida que as ideias de Eckhart tinham
uma dimensão revolucionária. Elas foram aco-
lhidas pelas camadas populares e burguesas,
que interpretavam o apelo eckhartiano à in-
terioridade da fé e à união divina como uma
Elas estão disponíveis na página eletrônica
www.ihu.unisinos.br
rebelião implícita à exterioridade “farisáica”
de uma hierarquia e de um clero moralmente
decadente (parece que a coisa nunca mudou
muito mesmo). Sua herança influenciou signi-
ficativamente a Martinho Lutero, entre outros
(Nota da IHU On-Line).

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Hildegard e Hadewijch: mística da luz viva,
mística do amor
Em Hildegard de Bingen, o símbolo por excelência é a luz. “Minha alma não carece em ne-
nhum momento da luz que eu chamo sombra de luz viva”, afirmava. Já Hadewijch de Antu-
érpia expressa o que há de mais terno, ousado e sublime no amor de Deus e humano, explica
Felisa Elizondo

Por Moisés Sbardelotto

N
ão é possível separar em Hildegard de Bingen suas duas características fundamentais: mística e
visionária. “A ‘visão’ – afirma Felisa Elizondo, professora do Instituto Superior de Pastoral – ISP
da Universidade Pontifícia de Salamanca, de Madri – é um gênero que tem componentes tais
como relatos bíblicos, imagens e certa vontade de ensinar aos outros, juntamente com uma
dimensão profética que o diferenciam de outras formas de experiência interior”.
Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Felisa analisa a “luz, em sua intensidade variável, e o uso das
cores”, dois usos simbólicos nos escritos de Hildegard que “‘dizem’ o que é dificilmente exprimível”. Nela, “o
símbolo por excelência é a luz”, afirma.
Outra mística analisada por Felisa é Hadewijch de Antuérpia. “A ‘mística do Amor’ tem em Hadewijch um
expoente de relevo singular e supõe a reação a uma teologia que, por influência de diversos filósofos, falava
da incognoscibilidade de Deus e levava à separação entre as disputas teológicas e a espiritualidade”, afirma.
“‘Dominada por um Amor apaixonado’, como ela mesma reconhece, Hadewijch cantou como poucos o desejo,
a calma e a tempestade, o gozo e o tormento do amor”, explica Felisa.
Felisa Elizondo é licenciada em Filosofia e Letras (Estudos Clássicos) e doutora em Teologia pela Pontifícia
Universidade Santo Tomás de Aquino, em Roma. É professora encarregada da cátedra do Instituto Superior de
Pastoral – ISP da Universidade Pontifícia de Salamanca e da de San Dámaso, de Madri. Publicou Conocer por
experiencia: un estudio sobre el tema en la Suma Teológica (Madri: Ediciones de la Revista Española de Teolo-
gía, 1992); Las mujeres en la Iglesia: una cuestión abierta (Madri: SM, 1997); Jesús y la dignidad de la mujer
(Madri: SM, 2003) e diversos artigos sobre temas de sua especialidade. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua opinião, qual é Não tenho certeza – embora a afir- gen (1098-1179), abadessa, visionária
a relação entre o feminino e a mís- mação venha de longa data – de que e mística, chamada de “a Sibila do
tica? haja uma maior afinidade entre as Reno”, representa uma admirável ex-
Felisa Elizondo – Há uma constatação mulheres e a religiosidade, e inclusi- ceção com relação ao habitual clichê
de que as mulheres estiveram séculos ve entre o ser mulher e a experiência das mulheres da Idade Média: pelo seu
à margem da teologia acadêmica, mas mística, embora seja possível que cir- caráter, seus dotes, sua biografia, sua
viveram a fé e cultivaram a relação com cunstâncias concretas, como as que cultura, sua autoridade e pela preser-
Deus que costumamos qualificar de mís- caracterizaram a existência de muitas vação de seus escritos.
tica. Nomes como os das duas Matildes formas de vida religiosa feminina, te- As visões reunidas em Scivias – o li-
e o de Teresa de Ávila, entre outros, nham propiciado a interiorização e a vro mais conhecido –, ou o Livro das
bastariam para demonstrar isso, embora vivência de uma oração afetiva. obras de Deus, têm o tom do autên-
não se devessem esquecer os das outras tico, pois ela mesma reconhece que
mais, que, sem alcançar essa notorieda- IHU On-Line – Em linhas gerais, quem elas lhe sobrevêm desde a infância;
de, fizeram o mesmo. foi Hildegard de Bingen? Quais são os ela aceita a orientação de uma mes-
pontos centrais de suas visões místi- tra; submete sua experiência ao juízo
 A entrevistada se refere à versão aportugue-
sada dos nomes de Mechthild de Magdeburgo
cas e de sua espiritualidade? de especialistas como São Bernardo. O
(1207-1282/1294) e Mechthild de Hackeborn Felisa Elizondo – Hildegard de Bin- Papa Eugênio aprova sua doutrina e re-
(1241-1299) (Nota da IHU On-Line).

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conhece sua missão profética, depois não lhe derem crédito ou adulterarem a Deus e proibir-lhe de celebrar e re-
que, no sínodo de Trier, o abade de sua mensagem. ceber os sacramentos. Velai para que
Claraval interveio em seu favor. As visões de Hildegard, nas quais Satanás, que arranca o homem da har-
Deve-se levar em conta que a “vi- são chamativos tanto a luminosidade monia celeste e das delícias do paraí-
são” é um gênero que tem componen- como o colorido, referem-se à Divin- so, não vos equivoque em seus juízos
tes tais como relatos bíblicos, imagens dade, à Criação e à Salvação, ao Fi- (...). Refleti: assim como o corpo de
e certa vontade de ensinar aos outros, lho do Homem, à Igreja e à situação Cristo assumiu a carne da virgindade
juntamente com uma dimensão profé- e ao destino da humanidade. Também intacta de Maria pelo Espírito Santo,
tica que o diferenciam de outras for- estão presentes descrições do Antigo assim também o cântico de louvores,
mas de experiência interior. Hildegard Testamento, como as que se referem eco da harmonia celeste, está enrai-
se mostra, sobretudo, como visionária ao Templo. E os códices que contêm zado na Igreja pelo Espírito Santo. O
sem que por isso seja possível lhe ne- suas obras abundam de belíssimas mi- corpo é o vestido da alma que dá vida
gar o caráter de mística. niaturas que poderiam muito bem ter à voz. Por isso convém que o corpo,
A respeito de Hildegard e da carta sido inspiradas por ela mesma. A luz, unido à alma, cante de viva voz os lou-
que citaremos, uma estudiosa escre- em sua intensidade variável, e o uso vores de Deus”.
ve: “Suas visões, inclusive no estado das cores são simbólicos e “dizem” o Nessa carta pode-se perceber cla-
de vigília, não são alucinações, fazem- que é dificilmente exprimível. ramente o tom profético com que
na penetrar ‘com os olhos e ouvidos Hildegard admoesta, o mesmo que se
do homem interior’, no domínio dos IHU On-Line – Ao discernir suas vi- encontra nos livros que reúnem suas
‘sentidos espirituais’, onde o que se sões, Hildegard de Bingen recebeu visões e nas Cartas. De fato, ainda em
vê e o que se escuta é percebido em a aprovação do abade Bernardo de vida, foi-lhe reconhecida grande au-
uma luz sobrenatural, ‘sombra de luz Claraval e do Papa Eugênio III. Como toridade, o que lhe permitiu uma li-
viva’, e às vezes, excepcionalmente, se deu a relação entre ela e a Igreja berdade de movimentos e de palavra
nessa mesma luz. Isso é o que expressa do seu tempo? que outras mulheres de seu tempo não
– continua essa especialista – no fim do Felisa Elizondo – Não eram tempos tiveram, nem sequer as dos séculos
Liber vitae meritorum: ‘O homem que fáceis na cristandade. Seu nascimento subsequentes. Em seu epistolário en-
vê essas coisas e as transcreve, vê e coincide com a Primeira Cruzada, e a contram-se várias cartas dirigidas a
não vê, sente as coisas terrenas e, ao situação que lhe coube viver era a de papas, a conhecidos teólogos e mes-
mesmo tempo, não as sente. Não é por uma Igreja com imperadores que in- tres espirituais e ao próprio imperador
si mesmo que apresenta as maravilhas tervinham em assuntos eclesiásticos, e Frederico I, o Barba Ruiva.
de Deus, mas sim agarrado como uma bispos e abades convertidos em senho- Por tudo isso, sua figura tem muito
corda pela mão do músico para produ- res feudais. Em algumas das visões, de excepcional, e só Catarina de Sena
zir um som que não vem dele, mas do ela deixa entrever que o quadro dos pode ser comparada a ela em alguns
toque de outro’. Em suma, para reco- homens da Igreja não é precisamente aspectos.
lher uma expressão que foi aplicada a edificante.
outros poetas, Hildegard é ‘atravessa- É conhecida a tensão entre Hilde- IHU On-Line – Hildegard também é
da pelo Eterno’”. gard e os eclesiásticos de Mainz por reconhecida como uma grande poeti-
E acrescenta: “Toda situação con- uma decisão atrevida da abadessa de sa, compositora e dramaturga. Como
creta se traduz imediatamente nela sepultar um perseguido. E sua recusa você analisa seu veio artístico?
em imagens e símbolos, percebidos, a obedecer quando, como castigo, é Felisa Elizondo – Desde meados do
por outra parte, à luz de Cristo em proibido o canto em sua abadia; canto século passado, os estudos sobre essa
relação com sua missão redentora. que, como ela argumenta, é, de al- mulher excepcional vêm se sucedendo
Quanto às grandes obras, oferecem gum modo, voz do Espírito. Sua carta com um bom ritmo, de modo que, ago-
panoramas inspirados, recriados pela aos prelados que haviam castigado as ra mesmo, contamos com uma biblio-
visionária em uma grande síntese da freiras ao silêncio por causa da deso- grafia ampla em que não faltam tra-
história do mundo e da salvação”. bediência da abadessa é uma defesa balhos sobre seus saberes de ciências
As visões balizam a vida de Hilde- da música e do canto que reflete uma naturais e medicina, sua arte culiná-
gard desde a sua infância e estão no concepção que aparece mais vezes em ria, e sobre as iluminuras dos códices
início do seu profetismo. Elas têm se- seus escritos: a harmonia do universo e, certamente, sobre suas criações po-
melhanças com as dos profetas do An- e a harmonia original da criatura e do éticas e musicais.
tigo Testamento e até começam com o Criador, uma harmonia à qual a voz e  Epist 47, PL 197, 218-221, citamos a versão
estilo profético do qual fala São Gre- a música evocam e estão chamadas a que aparece em G. Epiney – Burgard - y E. Zum
gório Magno em suas Homilias sobre restaurar: “Na voz de Adão, antes da Brunn, o. c., 58-62 (Nota da entrevistada).
 Frederico I da Germânia (1122-1190): tam-
Ezequiel. De fato, ela apela, de vez queda, estava toda a doçura e toda bém conhecido por Frederico Barba Ruiva, foi
em quando, ao que viu e ouviu para a harmonia da arte musical (…). Por imperador do Sacro Império Romano-Germâ-
reivindicar credibilidade ao que escre- isso vós e todos os prelados deveis ter nico (1152-1190), rei da Itália (1155-1190), e,
com nome de Frederico III, duque da Suábia
ve. E chega a ameaçar até que serão cuidado antes de fechar com um juízo (1147-1152, 1167-1168) (Nota da IHU On-
apagados do Livro da vida aqueles que a boca de uma assembleia que canta Line).

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Reconhece-se que harmonia e voz IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre a mudança das nuvens e das outras
foram altamente valorizadas por essa a pensadora e a escritora Hildegard, criaturas. Não ouço essas coisas nem
abadessa beneditina, que deixou um que escreveu sobre suas visões, teo- com os ouvidos corporais, nem com
bom número de composições musicais logia, física e medicina? Quais foram os pensamentos de meu coração,
“sem ter estudado nem neumas nem as suas contribuições à teologia e à nem percebo nada pelo encontro de
canto”, segundo se afirma na Vida, ciência desse tempo? meus cinco sentidos, mas sim em mi-
livro que recolhe em vários lugares o Felisa Elizondo – As três obras maiores nha alma, com os olhos exteriores
próprio testemunho de Hildegard. O respondem à sua experiência visioná- abertos, de tal forma que nunca so-
fato de que, além da Symphonia e de rio-profética. A primeira, Scivias (Co- fri a ausência do êxtase. Vejo essas
outras composições musicais, ela es- nhece os caminhos), mostra no título coisas desperta, tanto de dia quanto
creveu livros como Physica, Causa el que obedece à mesma voz que lhe de noite (…).
curae, Subtilitates diversarum cratu- ordena escrever. O livro reúne 26 vi- “A luz que vejo não pertence a um
rarum e muitas páginas, intercaladas sões distribuídas em três partes. As da lugar. É muito mais resplandecente do
em outras obras, em que aparece uma primeira referem-se a Deus, à criação, que a nuvem que leva ao sol, e não
compreensão do cosmos que deriva da ao mundo e ao ser humano; as seis da sou capaz de considerar nela nem sua
antiguidade e se mantém nos autores segunda, à obra da salvação e à mis- altura nem sua longitude. Se me dizes
medievais, dá alguma ideia da cultura são e ao tempo da Igreja; as reunidas que essa luz é a sombra de luz viva
de Hildegard. na última parte, à atuação de Deus e e, tal como o sol, a lua e as estrelas
As imagens tomadas da natureza ou do homem. Algumas dessas visões, nas aparecem na água, assim resplande-
das descrições bíblicas são abundan- quais abunda a luz, foram ilustradas, cem para mim as escrituras, sermões,
tes, e é marcante a simbologia – tam- senão pela própria, ao menos em um virtudes e algumas obras dos homens
bém de influência bíblica – que preen- ambiente próximo a ela, com esplên- formados nesta luz (…). E as palavras
che seus textos. Mas, nela, o símbolo didas miniaturas, como mostram os que vejo e ouço na visão não são como
por excelência é a luz. códices e fac-símiles que foram con- as palavras que soam da boca do ho-
servados. mem, mas sim como chama cintilan-
IHU On-Line – Uma das grandes con- A segunda obra é Liber vitae meri- te e como nuvem que se move em ar
tribuições de Hildegard foi como re- torum, com visões do homem, de Deus puro. De modo algum sou capaz de co-
formadora monástica. O que isso re- e de Cristo, e a terceira, o Liber divi- nhecer a forma dessa luz, como tam-
vela acerca de sua mística e de sua norum operum, que contém o relato pouco posso olhar perfeitamente para
relação com o período social e histó- de dez visões que aparecem ilustradas a esfera solar (…).
rico em que ela vivia? em um códice conservado na Bibliote- “Tudo o que vejo e ouço nessa visão
Felisa Elizondo – Hildegard percebe ca pública de Lucca. Assim, boa parte minha alma o apura como de uma fon-
as debilidades da Igreja. Nas visões, e das muitas páginas devidas a Hildegard te, embora esta permaneça sempre
consequentemente em seu profetismo, são o relato e explicações de “visões”, cheia e inesgotável. Minha alma não
reflete-se uma forma de entender a um tipo de experiência em que se con- carece em nenhum momento da luz
história como história de salvação que jugam a visão e a audição. Uma expe- que eu chamo sombra de luz viva, e
continua de um a outro Testamento, riência em que o dominante é a luz, vejo-a como se contemplasse o firma-
até alcançar o presente. Uma leitura feita sombra, centelha, fulgor, chama: mento sem estrelas, em uma nuvem
tipológica e alegórica da Bíblia, que “luz viva”. luminosa, e nela vejo coisas das quais
descobre sentidos profundos “por trás Assim, na carta que escreveu em falo com frequência, e também vejo o
do véu da letra”, segundo uma expres- 1178 para Gilberto de Gembloux, que respondo às perguntas, e procede
são que data daquele tempo, propor- ela confessa: “Desde minha infân- do fulgor da luz viva”.
ciona-lhe todo um mundo de símbolos cia, quando ainda não tinha nem Hildegard morreu em 17 de setem-
que aparecem em suas descrições. os ossos, nem os nervos, nem as bro de 1179, segundo se lê em Vida,
Segundo essa convicção, os textos bí- veias robustecidas, até agora, que que fala de um crepúsculo de domingo
blicos, interpretados simbolicamente, já tenho mais de 70 anos, sempre iluminado por dois arcos brilhantíssi-
são aplicados à vida da Igreja e à vida desfrutei o dom da visão em minha mos e de signos que vinham mostrar
das pessoas. Daí o recurso da autora às alma. Na visão, meu espírito ascen- a claridade com que, definitivamente,
páginas bíblicas para aplicar seu senti- de, tal como Deus quer, até a altu- ela tinha sido iluminada. Assim resumi-
do ao que acontece em seu mundo e à ra do firmamento e até a mudança ram seus biógrafos, à maneira de uma
conduta de seus contemporâneos, aos dos diversos ares, e se espalha entre época, de uma vida e de uma obra em
quais não poupa críticas severas. povos diversos, em regiões longín- que claramente domina a luz.
quas e em lugares que são para mim
 Sinal usado primeiramente na notação mu- remotos. E, como vejo essas coisas IHU On-Line – Por outro lado, qual a
sical do séc. VII para dar ao cantor uma indi- desse modo, as contemplo segundo sua opinião sobre Hadewijch de An-
cação geral da melodia, e que se desenvolveu  Como o fac-símile realizado em Eibigen do tuérpia e o seu olhar sobre o Misté-
através dos séculos até chegar à moderna pau- manuscrito W: Witesbaden, desaparecido em
ta de cinco linhas e ao conceito de clave (Nota 1495, e o manuscrito ilustrado de Heidelberg rio?
da IHU On-Line). (Nota da entrevistada). Felisa Elizondo – O esquecimento dos
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escritos de Hadewijch de Antuérpia as disputas teológicas e a espiritua- crescer no amor e nas virtudes “que
(1220-?) é um dos mais marcantes lidade. Mas são tempos cruciais em prestam honra a Deus”. Aceitando
entre os que sofreram os textos escri- que tanto São Bernardo como Gui- toda a pena “com orgulho valente”,
tos por mulheres. Depois de ter sido lherme de Saint Thierry escrevem até alcançar o bem que é “a grande
elogiada por João de Louvain como sobre o insubstituível do amor no totalidade de Deus” (Carta VI), ela
“mestra” e de ter influenciado em conhecimento, uma questão a que traça os marcos de um itinerário,
Ruisbroec, como hoje asseguram os o próprio Tomás de Aquino dedica- como ocorre com a alegoria do pe-
estudiosos, ela teve de esperar ser rá atenção em várias de suas obras regrino e das “doze horas inominá-
redescoberta por um poeta que havia para valorizar altamente esse saber veis” das Cartas XV e XX.
publicado a tradução das obras das Bo- que é o devedor do amor. “Dominada por um Amor apaixona-
das de Ouro daquele místico e mere- do”, como ela mesma reconhece, Ha-
cer em 1920 uma edição crítica. Sua IHU On-Line – Quais são as ideias ou dewijch cantou como poucos o desejo,
mística é, muito marcadamente, uma conceitos mais centrais da mística de a calma e a tempestade, o gozo e o
mística do Amor. Hadewijch de Antuérpia? Que Deus tormento do amor. Em um de seus po-
ou Transcendência a sua experiência emas de rima mista, ela retoma nomes
IHU On-Line – Como se deu a relação mística nos revela? que a Bíblia lhe indica e vai glosando
entre Hadewijch de Antuérpia e o Felisa Elizondo – Toda a obra escri- como o amor é laço, luz, carvão, fogo,
movimento beguinal? Que contribui- ta que nos chegou com a assinatura orvalho e fonte viva, até chegar a di-
ções esse movimento trouxe à místi- de Hadewijch de Antuérpia trata do zer, em uma expressão extremamente
ca de Hadewijch? amor como fonte e caminho para o chamativa:
Felisa Elizondo – As escassas notícias Amor: 45 poemas estróficos, 16 po- “O sétimo nome é Inferno (…)
biográficas sobre essa autora tiveram emas de rima mista, 31 cartas e 14 E como o Inferno tudo arruína,
de ser deduzidas de seus escritos, nos visões. O amor, que procede de Deus Não se alcança no amor outra coisa
quais ela menciona outras pessoas e e torna possível a relação do homem Que tortura sem piedade (…),
se refere a algumas tensões vividas no com Ele, e o Amor como encarna- Aquele que conheceu o Amor e suas
contexto cada vez mais bem analisado ção de Deus (Minne, um feminino na idas e vindas,
das “mulheres religiosas” ou beguinas. língua da autora) são o argumento. experimentou e pode entender
Hadewijch inscreve-se nesse movimen- Um argumento único cujas variações por que é verdadeiramente apro-
to que, em diversas regiões europeias, percorrem esses textos, considera- priado
ensaiou, fora dos claustros, uma vida dos hoje com os primeiros escritos que o Inferno seja o mais alto nome
pobre e dedicada à ação caritativa, ao no holandês nascente. do amor” (Canção XVI)
mesmo tempo em que cultivava uma Nos poemas, ela mostra um domí- Diz-se que, se a Idade Média che-
profunda interioridade. De fato, em nio da lírica trovadoresca e um conhe- ga a um auge no tratamento do amor,
suas cartas ela se refere à frugalidade cimento nada desprezível sobre teólo- “arte de todas as artes”, nas palavras
e à misericórdia com que se conduziu gos e autores espirituais. Mas poemas, de Guilherme de Saint Thierry, Ha-
e alude às tensões surgidas no grupo, cartas e visões refletem um itinerário dewijch expressou o que há de mais
assim como à incompreensão por par- pessoal e se dirigem a um círculo pró- terno, ousado e sublime no amor de
te daqueles a quem chama de “estra- ximo para mostrar o caminho do amor: Deus e no amor humano.
nhos”. Uma incompreensão que deri- “O que eu considero primordial nas
vou rapidamente em suspeita sobre Escrituras é o mandato do amor que IHU On-Line – Qual a atualidade do
“mulheres que pretendiam conhecer o Deus deu a Moisés” (Carta XI, 2). A pensamento de Hadewijch e que
que não lhes incumbe”, como senten- experiência a que a autora se remete contribuições ele pode dar ao debate
ciou Henrique de Gante. seguidamente é a de ter sido “domi- teológico contemporâneo?
A “mística do Amor” tem em Ha- nada pelo Amor”, “ferida pelo desejo Felisa Elizondo – A obra dessa begui-
dewijch um expoente de relevo sin- insaciável do ‘Todo-Amor’”. E falam na – como aconteceu mais tarde com o
gular e supõe reação a uma teologia da “natureza do Amor”, centro de sua próprio movimento beguinal – ficou em
que, por influência de diversos filó- experiência e ensino. silêncio, embora tenha circulado pelas
sofos, falava da incognoscibilidade mãos de alguns autores que sustenta-
de Deus e levava à separação entre IHU On-Line – Que simbologia se ram a incidência do amor no conhe-
 Sobre Hildegard e Hadewijch, publiquei um destaca nas obras de Hadewijch de cer. E deve ter corrido de mão em mão
trabalho intitulado La mística en femenino, in:
VELASCO, J. Martin (ed.). La experiencia mís- Antuérpia? Como sua mística influen- entre mulheres leigas e devotas, das
tica. Estudio interdisciplinar. Madri: Trotta, ciou outros pensadores ou místicos quais apenas restaram alguns nomes
2004 (Nota da entrevistada). cristãos? próprios. Sua redescoberta coincidiu
 Sobre o movimento protagonizado por essas
mulheres, a bibliografia cresce. Podem-se ver Felisa Elizondo – Sobre a pauta li- com momentos em que a mística é
CIRLOT, V.; GARI, B. La mirada interior, o.c. vremente seguida de temas da te- considerada como a vivência profunda
Prólogo, 14s; e DE GANCK, L. R. El contexto ologia tradicional como a imagem da fé, que não se deixa esgotar por ne-
religioso de las ‘mulieres religiosae’. Cister-
ciu LII (2002) 705-723, com interessantes ano- de Deus no homem e a deificação, nhuma especulação e transcende toda
tações bibliográficas (Nota da entrevistada). Hadewijch convida seguidamente a a ciência.
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Mechthild de Magdeburgo, mestra e mãe da mística renana
O nervo vital da obra de Mechthild está constelado na metanoia de sua linguagem mística
amorosa. O amor é um elemento epistêmico, não mais importante do que a deidade; é a
linguagem própria de Deus mesmo, explica Maria José Caldeira do Amaral

Por Moisés Sbardelotto

A
s mulheres místicas “romperam o silêncio no qual estavam reduzidas e abrigaram Deus, em si
mesmas, em seus corpos e em suas almas à espera do nada. E, nessa espera, tornaram-se ven-
cidas e aniquiladas para encontrar o verdadeiro silêncio emitido pelo abismo e compreender
a experiência humana completa, carnal e espiritual e, consequentemente, a denominaram de
incompreensível”.
É nesse contexto, explica a psicóloga clínica Maria José Caldeira do Amaral, mestre e doutora em Ciências
da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, que podemos situar a mística renana
do século XI Mechthild de Magdeburgo.
“O nervo vital da obra de Mechthild está constelado na metanoia de sua linguagem mística amorosa. O
amor é um elemento epistêmico, não mais importante do que a deidade; é a linguagem própria de Deus mes-
mo”, explica Maria José. Por isso a mística de Mechthild é considerada “mística do afeto”. “Ela é afetada por
Deus. No seu discurso, sentimos a intercessão entre sua própria alma e Deus”, afirma.
Para Mechthild de Magdeburgo, “o amor e a misericórdia divina são, no mínimo, proporcionais à vida mi-
serável do homem”. Essa “mestra e mãe da mística renana” defendia que “todo o nosso conhecimento, sem
o fogo do amor, é arrogância e hipocrisia”, afirma Maria José.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, a psicóloga também aproxima o pensamento de
Mechthild à de Carl Gustav Jung, pois “a psicologia e a mística situam-se em oposição e na fronteira de si
mesmas com conceitos desenvolvidos pela pesquisa em ambas”. “Na união mística não há pensar, nem agir,
nem fazer, nem querer, nem mesmo ser”, resume.
Maria José Caldeira do Amaral é psicóloga clínica, mestre e doutora em Ciências da Religião pelo Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP,
pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Mística e Santidade – Nemes (PUC-SP) e autora do livro Imagens de
plenitude na simbologia do Cântico dos Cânticos (Educ/PUC/Fapesp, 2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Historicamente, quais aquelas que romperam o silêncio ao de acordo com Bernard McGinn em
foram as contribuições do olhar fe- qual estavam reduzidas e abrigaram The loving knowledge of God.
minino à compreensão da mística e Deus, em si mesmas, em seus corpos A dimensão amorosa, o amor como
sua experiência? Que laços existem e em suas almas à espera do nada. E, conhecimento subsidiado pelo relato
entre o feminino e a mística? nessa espera, tornaram-se vencidas e da experiência nos escritos místicos,
Maria José Caldeira do Amaral – Gos- aniquiladas para encontrar o verda- atualiza, na Idade Média, a doutrina
to muito da fala de duas estudiosas deiro silêncio emitido pelo abismo e de São Jerônimo: amor ipse inttelec-
da mística feminina, Victoria Cirlot e compreender a experiência humana tus est – o amor é uma forma de co-
Blanca Gari, autoras do livro La mira- completa, carnal e espiritual e, con- ����������������������������������������
McGINN, Bernard.The flowering of mysti-
da interior: escritoras místicas y visio- sequentemente, a denominaram de cism: men and women in the New Mysticism
(1200-1350). ����������������������������������
The presence of God: A history of
narias em la Edad Media (Barcelona: incompreensível. No debate intelectu- Western Christian Mysticism. ����������������
New York: Cross-
Ediciones Martínez Roca, 1999) que al da época, estava posta a discussão road, 2003. v. III (Nota da entrevistada).
relevam a contribuição das mulheres interminável entre fé e razão, Intel-  São Jerônimo (340–420 d. C.): conhecido
sobretudo como tradutor da Bíblia do grego e
místicas, nesse contexto tecido pela lectus fidei & Experientia caritatis, e hebraico para o latim. A edição de São Jerôni-
história na dimensão teológica, como a emergência dos escritos místicos, ao mo, a Vulgata, é ainda o texto bíblico oficial
lado da presença do conteúdo scholar, da Igreja Católica Apostólica Romana, que o
 Confira a entrevista nesta edição com Victo- reconhece como Padre da Igreja (um dos fun-
ria Cirlot, Hildegard de Bingen, uma “artista”
faz-se presente no esforço para o co- dadores do dogma católico) e ainda Doutor da
mística e profética. (Nota da IHU On-Line) nhecimento de Deus a partir do amor, Igreja. (Nota da IHU On-Line).

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nhecimento e o conhecimento é uma surpreende em toda Europa medieval, obra.
forma de amor. E essa atualização leva nos séculos XII, XIII e XIV. Essa forma Mechthild conta um pouco sobre
para dentro desse debate teológico o de vida religiosa, extraclaustro e se- sua vida no longo primeiro capítulo do
desenvolvimento de livros, registros e mirreligiosa, teve sua origem nos pa- livro IV: fala sobre os pecados que co-
relatos de homens e mulheres, como o íses de língua germânica, no vale do meteu em sua infância, dos quais ela
livro de Mechthild de Magdeburgo – Das Reno, como é o caso de Hadewijch de se arrependeu e se confessou e, se as-
flieBende Licht der Gottheit – assim Antuérpia, Beatriz de Nazareth e Me- sim não fosse, ela ficaria no purgató-
como daqueles dos místicos e místicas chthild de Magdeburgo, no século XI e rio por dez anos. Dirigindo-se a Deus,
contemporâneos a ela que tratam do XII; Angela de Foligno, no final do sé- ela diz que, mesmo se não tivesse sido
amor. A via amorosa está colada, nos culo XIII, e Catarina de Sena, no séc. perdoada ela gostaria de ser atormen-
escritos místicos, ao problema do co- XIV, na Itália; na França, Margarida de tada, se assim fosse necessário, pois
nhecimento no contexto substanciado Oingt (Lyon) e Marguerite Porete (Va- agora (no momento em que escreve),
pelo conhecimento de Deus, que se li- lência); na Inglaterra (séc. XV), Julia- já sabe que foi tocada pelo amor de
berta de todas as amarras intelectuais na de Norwich; Guilherma de Boêmia Deus. Nesse capítulo (IV, I) ela enfati-
para descobrir os mistérios divinos, e que viveu em Milão em 1260, como za alguns acontecimentos de sua vida
dá forma ao relato de uma experiência beguina. quando inicia a vida religiosa e “deixa
única, íntima e suspensa na mais alta o mundo”. Nesse momento ela exa-
profundidade amorosa. IHU On-Line – Quem foi Mechthild de mina seu corpo e sua alma e delata
É fato histórico, portanto, que no Magdeburgo? Que aspectos biográfi- o conflito entre a experiência corpo/
século XIII um número considerável de cos ou históricos a levaram a se abrir alma de uma religiosa como ela: seu
mulheres, provavelmente bem educa- ao Mistério? corpo, diz ela, estava bem armado
das e com grande acesso à literatura Maria José Caldeira do Amaral – Me- contra sua pobre alma e preenchido
e educação para mulheres, aumenta e chthild de Magdeburgo nasce em 1207 de completa natureza. Ela sabia que
contribui para o aparecimento de mu- nas proximidades de Magdeburgo. Em seu corpo teria que ser transformado
lheres que escrevem e mulheres que 1230, ela deixa a casa dos pais, com porque havia vislumbrado a possibili-
escrevem sobre mulheres. 23 anos, para viver em Magdeburgo, dade de não escapar da morte eterna,
As ordens religiosas femininas se como beguina. Em 1250, começa es- caso essa transformação não aconte-
organizam e são tradicionalmente crever o Das FlieBende Licht der Got- cesse. Quando Mechthild olha para sua
constituídas de acordo com as normas theit (A luz fluente da deidade), sua alma, diz: “ela era a gloriosa paixão
aprovadas pelas autoridades eclesiais. única obra. Escreve do livro I ao livro de nosso Senhor Jesus Cristo” e diz
No seio da vida religiosa cristã surgem V até 1259. Em 1260, fica doente e, que, nesse estado de alma, ela po-
as Mulieres religiosae – termo usado possivelmente, passa uns tempos em dia se tranquilizar e se defender. Mas
na época para resguardar as formas sua casa. Em 1270-1271, o livro VI es- ainda assim, durante sua juventude o
menos estruturadas de vida pessoal, tava pronto. Em 1270 Mechthild entra conflito, era muito grande e suspirar,
religiosa e devocional de mulheres que para o convento de Helfa. Entre 1270 chorar, confessar, jejuar, fazer vigílias,
não possuíam o status social conven- e 1282, ela escreve o livro VII. Em 1282 flagelar e permanecer em constante
cional: não casavam, não entravam ela morre. Nada se sabe sobre sua ori- adoração eram os recursos que possuía
na vida religiosa da Igreja, abando- gem e seus familiares; ela se refere a para amenizar esse conflito. Durante
navam o lar de origem e viviam uma seus pais apenas uma vez, em toda sua 20 anos nunca houve um momento em
vida de castidade, devoção, carida-  Catarina de Sena (1347-1380): foi uma leiga
que ela não estivesse deprimida, do-
de e oração. Para Bernard McGinn, o italiana da Ordem Terceira de São Domingos, ente ou cansada e fraca em função de
inesperado fato de um grande número venerada como Santa Catarina na Igreja Cató- seu constante arrependimento e sofri-
lica. Foi ainda uma personagem influente no
de mulheres seguirem o modelo do pa- Grande Cisma do Ocidente (Nota da IHU On-
mento.
thos de Maria Madalena na história da Line). Aos 12 anos de idade, Mechthild é
redenção e salvação de Cristo, como  Margarida de Oingt (1240-1310): nascida tocada pelo Espírito Santo. Esse to-
numa poderosa família da antiga nobreza de
modos de vida mística e devocional, Lyon, foi monja católica e a quarta priora da
que, essa saudação ou graça, grüs em
 Mechthild de Magdeburgo começa a se tor- Cartuxa de Poleteins, na França (Nota da IHU alemão medieval, possui a conotação
nar conhecida no Brasil e, por isso, ela in- On-Line). de a alma ter recebido a atenção amo-
dica duas das traduções existentes de sua  Juliana de Norwich (1342-1423): ermitã
obra: Mechthild of Magdeburg. The ������������
Flowing beneditina inglesa que vivia em uma parte
rosa que Deus dispôs a ela. O senti-
light of the Godhead. Tradução e introdução isolada por muros da Igreja de Santa Juliana, do, na linguagem, se dá como uma
de Frank Tobin. Prefácio de Margot Schmidt, em Norwich, Inglaterra. Foi uma das místicas expressão da alma recebendo esse
publicado nos Classics of Western Spirituality. cristãs mais notáveis da Idade Média. Aos 30
Nova Iorque, Mahwah: Paulist Press, 1998; e anos foi tomada por uma doença desconhecida
amor como dívida de Deus. Na litera-
Das flieBende Licht der Gottheit. Nach
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der na primavera de 1373. Nesse período, ela teve tura teológica vernacular do Das Flie-
Einsiedler Handschrift in Kritischem Vergleich 15 visões. Juliana teve uma cura milagrosa e Bende Licht der Gottheit, Deus se dá
mit der gesamten Überlieferung. Ed. Hans sua doença desapareceu. Logo escreveu uma
Neumann. München; Zürich: Artemis-Verlag versão resumida de suas visões e depois passou
como um servo da alma. A dádiva de
(Münchener Texte und Untersuchungen zur os 20 anos seguintes em oração e meditação Deus é experimentada como dívida da
deutschen Literatur des Mittelaterss; Bd 100) antes de escrever a versão “longa” e final, in- alma e na alma e, portanto, essa ex-
Text/besorgt de Gisela Vollmann-Profe, 1990 titulada Revelations of divine love (Revelações
(Nota da entrevistada). do Amor Divino) (Nota da IHU On-Line).
periência também é concessão divina,

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já que o amor (minne), a alma e Deus “O amor é uma forma e o desdobramento desse amor se dá
se diferenciam somente na linguagem. para além da suposta virtude humana,
Quando Mechthild conta essa primeira de conhecimento e o que se esgota e não consegue ser cons-
experiência, já está posto em sua vida tituída nem se manter acesa, viva ou
e obra o sofrimento da alma e da sua conhecimento é uma útil, diante do ato humano de Deus. O
própria alma equalizado ao caminho ágape divino travestido em eros se dá
de dor na experiência da imitação da forma de amor” em humanidade.
paixão de Cristo. A obra de Mechthild propõe a seus
leitores o mesmo desafio apresenta-
IHU On-Line – Em sua opinião, quais mento e sofrimento de Cristo em pai- do ao ocidente pela configuração tri-
são os principais pontos, ideias ou xão, morte e ressurreição. nitária cristã. A alma feita de amor é
conceitos na mística de Mechthild? designada por Deus a conhecer a dor,
Que Mistério ela nos revela? IHU On-Line – Qual o significado da o sofrimento, a renúncia, sendo ela
Maria José Caldeira do Amaral – Na alteridade na mística de Mechthild? mesma portadora da própria síntese
tradição teológica cristã, o fim abso- Maria José Caldeira do Amaral – No trinitária em sentido estrito: um lugar
luto do amor de Deus é o desapego, texto de Mechthild, quando a grande- onde esta mesma dor é acessível pela
o desinteresse. A linguagem mística é za de Deus onipotente é igual à capa- luz que flui da divindade em desejo
um recurso extremo ao tomar-se pos- cidade imensa da alma para o peca- e falta – penhor da humanidade frag-
suída por essa natureza da alma e sua do, está posto o sentido da paixão de mentada.
similaridade com Deus. O nervo vital Cristo. A dor da alma, aquela que se
da obra de Mechthild está constelado refere à nossa falta no conhecimento IHU On-Line – Em que aspectos mais
na metanoia de sua linguagem místi- e na vontade, torna-se uma sensibili- aflora a sua feminilidade nos escritos
ca amorosa. O amor é um elemento zação do sofrimento humano pela dei- místicos de Mechthild?
epistêmico, não mais importante do dade. A segunda pessoa da Trindade, Maria José Caldeira do Amaral – Na
que a deidade; é a linguagem própria quando se insere na esfera da alma, organicidade de sua obra, Mechthild
de Deus mesmo. O texto de Mechthild o faz no sofrimento que é igual ao da vai dizer que Deus é o mais justo dos
parece conduzir o leitor a uma compo- alma miserável e pecadora. A alma amantes. A linguagem sensual e eró-
sição no campo da experiência direta humana não suporta o sofrimento da tica é absolutamente precisa para fa-
de Deus, e não a uma objetividade de deidade, porque o experimenta em si lar dessa união, por isso desenvolvi a
pensamento ou conhecimento nos mol- mesma quando, essa mesma deidade, ideia da equalização de eros e ágape
des atribuídos a conceitos e categorias disponibiliza esse sofrer a ela, à custa na tradução hipotética da minne em
– filosóficas, teológicas ou psicológicas do amor: Não seria esse mesmo amor minha tese de doutorado.
–, ainda que essas se referissem a uma abissal aquele que aponta para um lu- Orígenes é o primeiro cristão que
negatividade de si próprias. Não há um gar de bem-aventurança que está além sustentou a ideia de que dentre todas
teor especulativo na obra de Mechthild da possibilidade humana, o qual não é as maneiras positivas ou catafáticas
enquanto construção textual, mas sim possível descrever ou supor? de falar de Deus, a linguagem erótica
um teor descritivo em língua vernacu- O nada da alma profunda é o abismo é a mais apropriada por ser ela capaz
lar, uma fala de alguém que descreve no qual Deus se encontra, pela ação da de ultrapassar ela mesma. Eros não é
a possibilidade de um amor na alma trindade, em sua própria humanidade. uma instância passível de disfarce ou
que ama e deseja – Deus inserindo-se Cristo encarna-se na linguagem e aí idealização. Para Orígenes, eros opera
na alma, por pura vontade. nasce o ágape divino travestido em uma transformação do desejo ao re-
A mística de Mechthild é conside- eros: a grandeza desse conhecimento conduzi-lo à sua forma original. Eros
rada mística do afeto. Ela é afetada está aquém das possibilidades huma- é, na realidade, uma força de Deus. A
por Deus. No seu discurso, sentimos a nas, pois o desapego do Filho eterno e potência do amor não é senão aquela
intercessão entre sua própria alma e de toda a Trindade também está aquém que conduz a alma às alturas sublimes
Deus. Há uma vitalidade em sua obra, da possibilidade humana. Abismada, a do céu. Essa é a inovação audaciosa
e o conhecimento se dá ao leitor por alma não consegue suportar a angústia de Orígenes, a partir do eros platônico
meio dessa vitalidade. Mechthild pede que experimenta no próprio inserir tri- como o desejo direcionado ao perfei-
para que leiamos seu texto nove vezes nitário em sua alma. Sua experiência to e ao belo, que está em sua máxima
e, à medida que isso acontece, pare- é da angústia divina. A luz que flui da sobre o amor de Deus no prólogo do
ce haver um crescer no conteúdo que divindade ilumina a grandeza do ato Comentário sobre o Cântico dos Cân-
se desfaz, e o que apreendemos – ou divino de submeter-se ao sofrimento ticos – Deus, Ele mesmo deve necessa-
pensamos apreender – perde o sentido humano, na linguagem vital de Me- riamente ser eros se eros implantado
e, imediatamente, tudo nos escapa. O chthild, por meio da intensificação da
 Orígenes (aproximadamente 185-254): mes-
conhecimento dado à alma que deseja miséria da alma como receptáculo de tre catequista na Alexandria e discípulo de São
e é desejada, que ama e é amada no toda a dor mortal e finita pela qual Clemente. Criador de um sistema filosófico-te-
passa o imortal e o infinito. A natureza ológico no qual o cristianismo se apresentava
esvair-se de si mesma, é o conheci- como a culminância da filosofia grega (Nota da
mento da própria dissolução, desola- desse processo é conduzida pelo amor, IHU On-Line).

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em nós é o que nos reconduz a Ele: mente você me ama mais bonita eu me
“Eu não acredito que nós seremos torno. Quanto mais longamente você IHU On-Line – Em sua obra Das flie-
castigados se dermos a Deus o nome me ama, mais sagrada eu me tornarei Bende Licht der Gottheit, Mechthild
de amor apaixonado (Eros – Amor), aqui na terra” (MM,I,23). escreve e narra suas visões e expe-
da mesma forma que João deu a Ele Como Deus responde à alma: riências místicas. Que linguagem e
o nome de caridade (agapé – caritas) “Amar você apaixonadamente vem da simbologia são por ela empregados
[...] Em consequência, tudo aquilo minha natureza, porque eu sou amor nessa narração?
que a Escritura diz sobre a caridade, em si. Amar você frequentemente Maria José Caldeira do Amaral – A
assim ela o faz, como se falasse do vem do meu desejo, pois eu desejo ser luz que flui da deidade (Das flieBende
amor apaixonado, sem se dar conta da amado apaixonadamente. Amar você Licht der Gottheit) é uma expressão
diferença das palavras, pois trata-se, longamente vem do meu ser eterno, escrita por uma mulher sentida como
nesses dois casos, de expressar o mes- pois eu sou sem fim e sem começo” fonte de luz – amor absoluto. Segundo
mo significado. O amor apaixonado de (MM,I,24). Hans von Balthasar10, nessa literatura
Deus pelo mundo (Jo 1, 3-16) se tra- Mechthild continua recebendo as vislumbram-se vários planos e signifi-
duz na paixão do Verbo que se esgota instruções de Deus por meio das quais cados: um primeiro plano, cosmoló-
dele mesmo para revestir, na carne, o ela deve manter as virtudes que com- gico e simbólico, com características
sofrimento de Deus: o amor de Deus põem a sua solidão, e, provavelmente, de um texto profético similar ao de
descrito como um amor espiritual e in- não se tratam das virtudes externas, sua antecessora Hildegard de Bingen,
tenso se ajusta à maneira de falar do mas sim daquelas que a fazem ser me- escritora e mística medieval, morta
amor físico e romântico em função de recedora da infusão da deidade eter- em 1179; um segundo plano, no qual
sua maneira soberana e irresistível por na. No vazio que restar do desprendi- o texto bíblico – Cântico dos Cânticos
meio da qual ele se apodera da alma mento do medo e da vergonha ficará – está presente em seus escritos, po-
humana. Esse mesmo amor também se somente o desejo da alma que Deus rém, não de forma interpretativa, mas
diz, doce e perfeito quando se refere infunde e preenche com o seu próprio sim dimensionado como um processo
a seu objeto – a própria Razão Divina, desejo: “E então você deve se des- interior, como uma experiência inter-
o logos que é o próprio amado e o pró- prender de você ambos, o medo e a na; e num terceiro plano, Mechthild
prio amor. vergonha, e todas as virtudes exter- alcança certo radicalismo místico
A partir dessa referência a Oríge- nas. Mais precisamente, aquelas sozi- como o de Mestre Eckhart, a partir do
nes e seus desdobramentos na mística nhas que você carrega dentro de você. qual o esvaziamento e a negatividade
cisterciense, vou transcrever aqui essa Você deve cultivar para sempre. Estes não estão a serviço da impossibilida-
fusão de eros e ágape na linguagem são seus anseios nobres E o seu desejo de da expressão, mas sim a serviço
dessa mulher laica do século XII, para sem limites. Esses eu devo preencher de um caminho para o conhecimento
que ela mesma responda a essa per- para sempre com minha generosidade da experiência de Deus. Para Mestre
gunta: “A alma: Oh Amor, esta carta sem limite” (MM. I,44). Eckhart, a descrição mística é sempre
eu escrevi da sua boca. Agora, dá-me, A alma nua coincide com o Deus negativa, isto é, de Deus só podemos
Senhora, o seu selo [a sua garantia]. glorioso e bem adornado, na eternida- dizer o que Ele não é, por meio do ani-
O amor: Seja lá quem for que foi bem de, na paz e na única possibilidade da quilamento de qualquer intencionali-
sucedido em amar Deus mais do que vida sem morte. “Senhor, agora eu sou dade no discurso.
a si, sabe bem onde encontrar a ga- uma alma nua e você em você mesmo Mechthild escreveu um livro de
rantia [selo]. Ele permanece entre nós é um Deus bem adornado. Nossa por- natureza paradoxal, no qual a diver-
dois (MM,I,3)”. ção compartilhada é a vida eterna sem sidade de formas e gêneros literários
E, seguindo o Das flieBende Licht morte. Então, ambos os desejos vem encontrados é o que ele considera a
der Gottheit, a síntese de Mechthild sobre eles – uma paz abençoada. Ele se própria unidade em seus escritos. O
a respeito da alma que se faz na Trin- entrega a ela, e ela se entrega a ele. esforço da autora está colocado na
dade se dá no diálogo instrutivo entre O que acontecerá, ela – alma – sabe, e fragmentação, nos deslocamentos e
a alma e Deus: “Você deve pedir para é o que basta [e isto é bom para mim na ambiguidade intrínseca da lingua-
Deus amar você [apaixonadamente] ou por isso estou consolada], mas isso gem. Essa unidade se traduz no termo
passionalmente, com frequência, e não pode ser para sempre. Quando continuamente utilizado, minne, em
por muito tempo [longamente]; então dois amantes se encontram secreta- torno do qual a expressão de amor se
você deve se tornar pura, bela e sa- mente, eles devem sempre se separar, inspira na literatura cortês alemã no
grada. Ah, Senhor, ame-me apaixona- inseparavelmente (MM. I,44)”.
10 Hans Urs von Balthasar (1905-1988): teólo-
damente [passionalmente], ame-me O conhecimento, ou seja, “o saber go suíço. Defendia uma “teologia ajoelhada”,
[frequentemente] sempre e ame-me que sabe”, reside na alma dissolvida ou seja, o pensamento teológico tem de es-
longamente. Pois, quanto mais apai- que, a despeito do júbilo e da paz tar ligado à oração e adoração, em vez de ser
mera análise sistemática. Foi ordenado padre
xonadamente você me ama, mais pura abençoada, que corresponde ao êxta- em 1936 e seguiu na ordem jesuíta até 1950.
eu me torno. Quanto mais frequente- se místico do matrimônio, torna-se o Entre suas obras, destacam-se os sete volumes
 ORÍGENES, Homílias e Comentários sobre o saber constituído no desdobramento de A glória do Senhor, os cinco de Teo-drama
Cântico dos Cânticos, Prólogo (Nota da entre- e os três volumes de Teo-lógica (Nota da IHU
vistada).
dessa união. On-Line).

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Das flieBende Licht der Gottheit.
Especificamente no Livro I, esse di-
“A mística de Mechthild realizada pelos Dominicanos de Halle
e assim denominada: Lux divinitatis
álogo se dá entre a alma, senhora e
rainha (frouwe kúnegin), e o amor, se-
é considerada mística do fluens in corda veritatis. O Das flie-
Bende Licht der Gottheit é composto
nhora amor (frouwe Minne). De acor-
do com a análise de alguns estudiosos,
afeto. Ela é afetada por por sete livros escritos em ordem cro-
nológica: os livros I a VI foram escritos
especialmente a de Elizabeth Alvilda
Petroff, minne (desejo e amor) é um
Deus. No seu discurso, entre 1250 e o livro VII foi composto
durante os anos que Mechthild viveu
termo feminino e significa o desejo e
o anseio por amor e, ao mesmo tem-
sentimos a intercessão no convento de Helfa. Mechthild de
Magdeburgo, Mechthild de Hackerborn
po, a natureza do amor e da alma. É
importante, para o leitor, o cuidado ao
entre sua própria alma e (1241-1298) e Gertrudes de Helfa, a
Grande (1256-1301), foram contempo-
sentir essa fusão de desejo e amor e a
forma como opera no discurso de Me-
Deus” râneas e viveram no Mosteiro de Helfa,
que floresceu rapidamente e contava
chthild: a alma – chamada de senhora com mais de cem participantes gra-
e rainha – e o amor – personificado na IHU On-Line – Como se deu a relação ças ao trabalho dedicado da abadessa
linguagem como “senhora amor” – de- entre Mechthild de Magdeburgo e as Gertrudes, a Grande, e que produziu
monstram um tipo de dependência no instituições eclesiais, sociais e políti- “o maior e único corpus de registros
que diz respeito à origem e à natureza cas de sua época? místicos femininos” da época.
da alma em amor e desejo (minne) e, Maria José Caldeira do Amaral – A Alguns pesquisadores acreditam
ao mesmo tempo, do amor que é de- questão da experiência mística sem- que o fato do livro de Mechthild estar
sejo (minne). pre tem problemas com autoridades agrupado, em sua versão para o latim,
No diálogo entre a alma (frouwe eclesiais e a instituição religiosa. Em aos livros de Mechthild de Hackerborn
kúnegin) e o amor (frouwe minne), o relação à Mechthild, não temos refe- e Gertrudes de Helfa coincide, possi-
amor aparece como superior àquele rências suficientes para afirmar confli- velmente, com uma circunstância his-
amor que está na própria alma, po- tos graves. Em algumas passagens ela tórica, mais do que uma afinidade. Os
rém, é também o mesmo amor – min- escreve que teme que seus escritos escritos de Mechthild são visivelmente
ne (o amor e o desejo) da alma. Essa sejam queimados, que ela não sabe o descomprometidos com a linha tradi-
dependência da alma em relação ao latim e que seu alemão também é frá- cional monástica, tanto teológica como
amor se dá no sofrimento causado pela gil, que ela escreve e diz tudo o que litúrgica, seguida pelas monjas de Hel-
senhora amor (frouwe minne) à senho- diz porque o amor de Deus a leva a fa que escrevem em latim, a língua sa-
ra e rainha (frouwe kúnegin) – alma, escrever. Na história de vida das místi- grada da Igreja. O livro de Mechthild
pois a senhora alma é tomada por ele. cas em geral, é comum encontrarmos está mais identificado com os escritos
O amor, então, aponta para o desejo o relato da presença de um confessor religiosos do norte da Europa do que
verdadeiro da alma de perder sua con- espiritual. contextualizado na literatura sagrada
dição terrena para adquirir a liberda- Mechthild vai para o convento de das mulheres religiosas da Alemanha.
de celestial: o conhecimento essencial Helfa, na Saxônia, em 1270. Sua saúde O teor, a semelhança e o sentido dado
que é desejo de Deus e desejo origi- estava debilitada, principalmente sua na construção da origem da alma na
nal da alma. A ação do amor coincide visão estava comprometida. Mechthild trindade, a via unitiva substanciada
com o reconhecimento da alma de seu agradece a Deus sua acolhida em Hel- pela ideia da alma incriada e a ênfase
desejo, de sua constituição necessa- fa, no capítulo intitulado Got dem na mística nupcial, fazem com que o
riamente disponível atrativa e dese- menschen dienet (Como Deus serve o Das FlieBende Licht der Gottheit este-
jante, entregue a Deus. Mas a alma, homem), no Livro VII, escrito em Hel- ja próximo ao conteúdo dos registros
debatendo-se nesta lamentação, só se fa. A história da obra de Mechthild é pertencentes à mística renana.
conforma com esse estado desejoso interessante para pensarmos um pouco
quando lhe é permitida, pelo amor, a nas relações de sua vida religiosa com IHU On-Line – Como você afirmou,
posse dele mesmo (então, me possui). as autoridades eclesiais: a primeira Mechthild de Magdeburgo também foi
Só assim ela é capaz de compreender tradução do Das flieBende acessível ao beguina. Como o movimento beguinal
tal sofrimento, sendo essa ação o pró- leitor moderno foi realizada a partir inspirou a sua vivência mística?
prio sofrimento. E esse diálogo não de sua primeira versão do manuscrito Maria José Caldeira do Amaral – No
é um capricho linguístico ou textual: traduzida para o alto alemão medieval âmbito das beguinas, essa perspectiva
é a expressão do sofrimento da alma realizada por Heinrich de Nördlingen, amorosa e erótica se sustenta com a
em consonância com o sofrimento da no século XIV. O Interesse pelos escri- influência da tradição monástica cis-
paixão de Cristo (você devorou minha tos de Mechthild por parte de leitores tercience, a partir da interpretação
carne e meu sangue). A alma é toma- medievais está também na versão dos literal e antropomórfica da linguagem
da por minne (amor e desejo) a partir seis primeiros livros de Mechthild, da- bíblica, principalmente do Cântico dos
dessa união mística que garante essa tada no final do século XIII, em latim, Cânticos, iniciada por Orígenes e con-
unidade, da qual falamos. tinuada na Idade Média por São Ber-
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nardo de Claraval. O fino amor, o amor “A psicologia e a mística analisou os comentários de Carl Gus-
cortês, o desejo, a distância, a falta, tav Jung sobre Mestre Eckhart e Me-
a loucura, o amor violento, o amor situam-se em oposição e chthild de Magdeburgo. Que relações
insano, o verdadeiro Amor, o aniquila- existem entre esses pensadores?
mento estão lavrados na linguagem da na fronteira de si mesmas Maria José Caldeira do Amaral – Como
experiência do amor de Deus na alma. psicóloga clínica, não posso ficar isen-
Uma linguagem muito distante da lin- com conceitos ta à possibilidade de conversar com a
guagem scholar da época, mas que a mística (a experiência de Deus). Co-
contem em si mesma. desenvolvidos pela nheci Mechthild de Magdeburgo no li-
Existe uma diferença importante vro Símbolos da transformação de C.
em relação a essas influências: tanto pesquisa em ambas” G. Jung. Nós, junguianos, acreditamos
os autores da escola monástica do sé- na capacidade e no empenho de Jung
culo XII sobre o Cântico dos Cânticos como pesquisador da alma humana.
como as mulheres místicas do século de atribuída às beguinas: foi ela quem A psicologia e a mística situam-se em
XIII estavam convencidos de que o ver- deu a maior contribuição à nascente oposição e na fronteira de si mesmas
dadeiro amor de Deus envolvia o sen- corrente espiritual nórdica, habitual- com conceitos desenvolvidos pela pes-
tido de violência e veemência, como mente chamada dos renano-flamengos quisa em ambas: destino, liberdade,
a violentia caritas de Ricardo de São (os países baixos – nederland – são de- origem, substância, condição humana,
Vítor11, por exemplo; mas a linguagem signados, na época, como a Holanda, sofrimento, morte, ordem, desordem,
das mulheres religiosas ultrapassava Bélgica e a região de Flandres ou pro- enfim.
a linguagem masculina na ênfase que víncia Flamenga). Hadewijch era de Minha intenção, no artigo, foi con-
era dada por elas no efeito devastador Antuérpia, falava e escrevia no dialeto versar com esses pensadores a partir
da loucura desse amor. O amor espon- da Província de Brabante, o chamado de alguns conceitos da psicologia ana-
sal entre Deus e a alma, para elas, não médio-neerlandês. Marguerite Por- lítica e minha constatação foi a de
era somente o amor de uma alma fini- rete, beguina francesa de Hainault, que a intuição de Jung rumo à coinci-
ta direcionada a algo infinito; o amor valenciana, morta pela Inquisição em dência de opostos – conceito extraído
mútuo (amor mutuus) presente na te- 01-06-1310, em Paris, escreve o Le de Nicolau de Cusa12 – à luz da função
ologia da mística monástica é o amor mirroir des âmes simples et anienties transcendente – conceito desenvolvido
esponsal entre Deus e o homem no qual et qui seulement demourent em vou- por ele após quarenta anos de estudo
está o mais pleno e mais elevado de loir et desir d’amour. Não há registros e prática clínica – trouxe contribuições
todos os afetos (affectus). Mechthild sobre sua história de vida. O diálogo importantes acerca da investigação
descreve essa mutualidade como con- entre o amor, a alma e a razão constrói original da experiência de Deus e a psi-
tínua e verdadeiramente única: uma o movimento central da linguagem do que. O conceito, discutido aí, foi o “si
união de profundidade abissal na qual Le mirroir. O amor (Dame Amour) e a mesmo” – conceito que, para Eckhart
a alma torna-se completamente equa- alma (L’âme) podem ser identificados e Mechthild, ultrapassa o sentido ar-
lizada ao Amado e ao Amante Infinito. como os autores do livro que são tam- quetípico de Jung. Mas Jung sabia de
Mechthild de Magdeburgo, Hadewi- bém Deus, e o amor (Dame Amour) é, suas limitações.
jch de Antuérpia e Marguerite Porete ainda, a força dentro da alma respon- Numa de suas passagens ele mesmo
integram um grupo de mulheres begui- sável pelo aniquilamento da alma e de se pergunta: “Pode o homem alcançar
nas cujos escritos suplantam algumas Deus. A razão aparece como a principal um aumento adicional de consciência?
características comuns, dentre elas: a opositora ao amor com a qual a alma Existe um real valor no fato do homem
presença da experiência carnal e espi- entra em duelo para que ela (a razão) progredir moral e intelectualmente?
ritual no caminho para a experiência seja vencida no processo de aniquila- Esta é uma questão. Eu não quero for-
de união com Deus. Não sabemos nada mento, ainda que Marguerite descreva çar ninguém em relação meu ponto
a respeito da biografia de Hadewijch, a paradoxal participação da razão na de vista. Confesso que me submeti ao
apenas algumas menções de sua vida descrição da ação transformadora no divino poder desse insuperável pro-
em seus manuscritos que aparecem Le mirroir. As almas simples e nadifi- blema e conscientemente e intencio-
em algumas bibliotecas religiosas no cadas são aquelas que ultrapassam as nalmente tornei minha vida miserável
século XV. No século XIX, alguns estu- próprias virtudes e a própria razão no porque eu queria que Deus ficasse vivo
diosos redescobrem suas cartas, poe- movimento de desprendimento e ani- e livre do sofrimento que o homem co-
mas e visões. Um dos manuscritos (o quilamento total, pois é no lugar desta locara sobre Ele ao amar mais a sua
de Louvaina) está nomeado como “a nadificação que se encontra o espelho razão do que as intenções secretas de
bem aventurada Hadewijch”, qualida- que reflete Deus. Deus. Existe um bobo místico em mim
11 Ricardo de São Vítor (?-1173): reconheci- 12 Nicolau de Cusa ou Nicolau Krebs ou
do como um dos mais influentes pensadores
IHU On-Line – No artigo apresentado Chrypffs (1401-1464): foi um cardeal da Igreja
religiosos de seu tempo, foi um proeminente em setembro de 2009 no V Congres- Católica Apostólica Romana e filósofo do Re-
teólogo místico e foi prior da famosa abadia so Sul-Americano de Psicologia Jun- nascimento. Também autor de inúmeras obras
agostiniana de São Victor, em Paris, de 1162 sendo a principal delas Da douta ignorância
até sua morte (Nota da IHU On-Line).
guiana, em Santiago do Chile, você publicada em 1440 (Nota da IHU On-Line).

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que prova ser mais forte do que toda terminação da psique humana e essa – pode inspirar ou tensionar a refle-
minha ciência”. conversa entre experiência humana xão sobre Deus ou o Mistério trans-
e experiência psíquica é séria e deve cendente?
IHU On-Line – Como a psicologia com- ser verdadeira: a natureza da psique Maria José Caldeira do Amaral – A
preende a experiência de Deus e a e a natureza divina são opostas para a pesquisa em torno dos textos e relatos
experiência mística? E o que estas psicologia analítica, por exemplo, e a místicos, em minha opinião, é o campo
últimas ajudam a revelar sobre a psi- dinâmica do numinoso se dá na coinci- de estudo que mais inspira, tensiona e
que humana? dência dessa oposição. instiga não somente a reflexão sobre
Maria José Caldeira do Amaral – A psi- Para além da psicologia, as relações o mistério (mística quer dizer misté-
cologia é filha do iluminismo e, por- da mística com a teologia e com a filoso- rio) de Deus, mas tensiona e instiga
tanto, sua investigação parte de uma fia são também controversas a despeito muito também a nossa reflexão sobre
ciência que é a investigação empírica das negociações que possamos fazer ao a realidade e a condição humana. Por
do processo, dinâmica e desenvolvi- abordar temas como aqueles referentes isso, nesse mundo secular, os relatos
mento psíquico. O modelo clínico deri- aos relatos da experiência mística. Ne- místicos são vistos ou como patologia
va da medicina. Freud13, Jung e outros gociações que, muitas vezes, nos leva- ou com muita descrença. A ideia de
estavam inseridos na suficiência da ram a correr o risco em denunciar nossas que a graça divina é soberana sobre
razão humana ao desenvolverem suas falsas aspirações e desejos, segundo as a pretensa razão humana é algo que
teorias. Mas tomando os dois como palavras da própria Mechthild de Maged- a humanidade não consegue suportar.
exemplo, a psicologia do inconscien- burg. Acredito no colapso presente fren- Novamente, nas palavras de Mechthild
te encontra controvérsias epistêmicas te a essas tentativas. de Magdeburgo, apreender que o amor
e os desdobramentos teóricos de am- Seguindo, ainda, a nossa autora e a misericórdia divina são, no míni-
bos esbarram no campo da experiência alemã teríamos que estruturar nossa mo, proporcionais à vida miserável do
religiosa, ainda que de maneiras dife- busca psíquica por meio de um estado homem é inconcebível para a maioria
rentes: enquanto Freud não parece anímico no qual Sunder das minste teil de nós modernos; e que, ainda nas pa-
estar preocupado com os desígnios de irs lebendes belibet mit dem lichamen lavras da beguina alemã do século XII,
Deus, sua teoria abre a discussão para als in eime sủssen schlaffe (MM. I, 2): também chamada de mestra e mãe da
a condição humana de desejo e de mal apenas um menor pedaço (possível) mística renana – “todo nosso conheci-
estar, Jung intui a mesma condição, da força de vida permanece no corpo mento, sem o fogo do amor, é arrogân-
porém amplia a possibilidade do dese- como num sono doce e profundo. Esse cia e hipocrisia” –, nos coloca diante
jo instintual para além do princípio do é o estado mais ou menos conscien- de um certo constrangimento que, cá
prazer. te com o qual ela descreve a infusão entre nós, sustenta um mundo no qual
O fato é que os conflitos entre psi- amorosa na alma. O estado anímico no Deus pouco pode fazer, como diriam,
cologia e experiência mística ou reli- qual permanece um pedaço – o menor de maneira geral, por exemplo, alguns
giosa abrem um debate importante possível – de força de vida no corpo pensadores da mística ortodoxa cristã,
sobre a condição humana. A meu ver, é um estado, considerado como uma tais como Gregório Palamas14, Nicolas
uma experiência última, individual e espécie de colapso psíquico, filosófi- Berdyaev15, Paul Evdokimov16, para pe-
única ascende o debate sobre a inde- co e teológico. A alma dissolvida não netrarmos em outro universo para além
é capaz nem de ser, nem de criticar, do tempo e espaço da mística feminina
13 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista e nem de construir qualquer conheci- medieval cristã.
fundador da psicanálise. Interessou-se inicial-
mente pela histeria e, tendo como método a mento acerca de Deus. Não é Deus,
hipnose, estudava pessoas que apresentavam não constrói nada em relação a Deus e
esse quadro. Mais tarde, interessado pelo in- não critica nada do que pode ser fala- 14 Gregório Palamas (1296-1359): foi um mon-
consciente e pelas pulsões, foi influenciado ge do Monte Athos, Grécia e, posteriormente,
por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose do em relação à experiência em Deus; arcebispo de Salônica, conhecido como o teó-
em favor da associação livre. Esses elementos apenas sabe que não há como saber a logo preeminente do Hesicasmo. É venerado
tornaram-se bases da psicanálise. Freud, além respeito de uma alma em renúncia que como Santo pela Igreja Ortodoxa, e alguns de
de ter sido um grande cientista e escritor, re- seus escritos são encontrados na Filocalía. O
alizou, assim como Darwin e Copérnico, uma toca e é tocada por algo que teoria al- segundo domingo da Quaresma é chamado
revolução no âmbito humano: a ideia de que guma jamais tocou. “Domingo de Gregório Palamas” na Igreja Or-
somos movidos pelo inconsciente. Freud, suas Na união mística não há pensar, todoxa em sua honra (Nota da IHU On-Line).
teorias e o tratamento com seus pacientes 15 Nikolai Alexandrovich Berdyaev (1874-
foram controversos na Viena do século XIX e nem agir, nem fazer, nem querer, tam- 1948): foi um religioso e filósofo político
continuam muito debatidos hoje. A edição 179 pouco ser. Além disso, o conhecimento russo. Devoto do cristianismo ortodoxo, fre-
da IHU On-Line, de 08-05-2006, dedicou-lhe o não pode ser normativo. Não há como quentemente criticava a instituição da Igreja.
tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mes- Vieram a Primeira Guerra Mundial e a Revolu-
tre da suspeita, disponível para consulta no normatizar uma experiência subje- ção Bolchevique, que impediram que o assun-
link http://migre.me/s8jc. A edição 207, de tiva, onde a própria subjetividade e to fosse posteriormente julgado. (Nota da IHU
04-12-2006, tem como tema de capa Freud e a identidade psicológicas se encontram On-Line).
religião, disponível para download em http:// 16 Paul Evdokimov (1901-1970): foi professor
migre.me/s8jF. A edição 16 dos Cadernos IHU dissolvidas. de teologia no Instituto Saint-Serge, de Paris,
em formação tem como título Quer entender e observador convidado do Concílio Vaticano
a modernidade? Freud explica, disponível para IHU On-Line – Como a mística em II. É considerado um dos teólogos ortodoxos
download em http://migre.me/s8jU (Nota da mais célebres e mais lidos em todo o mundo
IHU On-Line). geral – mas também a de Mechthild (Nota da IHU On-Line).

56 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


Marguerite Porete: a alma entre aniquilamento e nobreza
A nobreza, para Marguerite Porete, é a condição que nos vem do aniquilamento. Mais vale à
alma, ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma aniquilada é nobre
porque, pelo aniquilamento, acolhe a obra de Deus nela, afirma Ceci Baptista Mariani

Por Moisés Sbardelotto

H
á uma relação direta entre feminino e mística? Responder taxativamente pode ser arriscado.
“Talvez possamos afirmar que, ao menos no âmbito da tradição cristã, especialmente no mundo
medieval, tempo em que a teologia vai se autocompreendendo como ciência, tempo de valo-
rização da razão, de ênfase na dimensão inteligível, encontramos mulheres que ousam fazer
teologia e o fazem, sondando a própria experiência de Deus”.
Para Ceci Baptista Mariani, professora de teologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-
Campinas, Marguerite Porete, mística francesa do século XII, manifesta bem a “imediatez mediada” que
carcteriza a mística cristã. “A mulher no mundo medieval, não tendo voz entre os doutores, vai encontrar o
caminho da arte para expressão da experiência de Deus. Poesia, teatro, música serão maneiras encontradas
para narrar o caminho de encontro com o Amado”, afirma Ceci, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Em Marguerite, o aniquilamento é seu grande tema. É “fruto de um processo que implica várias mortes”:
para o pecado, para a natureza, para o espírito. “A alma aniquilada, amorosa de Deus. lançando-se ao nada,
recebe tudo, mais saber do que o contido nas Escrituras, mais compreensão do que a que está ao alcance da
razão, ganha a liberdade perfeita e torna-se capaz de experimentar a ‘paz de caridade’”, explica a teóloga.
E “a nobreza, para Marguerite Porete, é também a condição que nos vem do aniquilamento. Mais vale à alma,
ela diz, o nada querer em Deus que o bem querer por Deus. A alma aniquilada é nobre porque, pelo aniquila-
mento, acolhe a obra de Deus nela”.
Ceci Baptista Mariani é professora de teologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Cam-
pinas, do Instituto São Paulo de Estudos Superiores e do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Unisal. É
mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção e doutora em
Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua opinião, qual a centro é a explanação sobre como partir dessa obra de Dionísio, é o grau
relação entre o “feminino” e a mís- Deus, o completamente incognoscí- de teologia a que se atinge depois de
tica? vel, se manifesta na criação a fim de se passar por dois graus anteriores: o
Ceci Baptista Mariani – Para se esta- que todos possam alcançar união com símbólico e o inteligível.
belecer uma relação entre o feminino a não manifestada Fonte. Duas chaves Não sei se podemos estabelecer
e a mística, creio que é importante, de compreensão destacamos aqui: in- uma relação entre o feminino e a mís-
em primeiro lugar, compreender bem cognoscibilidade e união. Mística como tica. Talvez possamos afirmar que, ao
o sentido desta última. Talvez a me- caminho para o Mistério, é essa incrí- menos no âmbito da tradição cristã,
lhor maneira de falar de mística seja vel pretensão de aproximação Daquele especialmente no mundo medieval,
nos remetendo ao livro de Dionísio que, reconhecemos com grande humil- tempo em que a teologia vai se auto-
Areopagita, Teologia mística, cujo dade, por sua grandeza, não cabe nos compreendendo como ciência, tempo
 Pseudodionisio (Dionisio o areopagita): é o limites do nosso conhecimento. Nesse de valorização da razão, de ênfase
nome dado ao autor de uma série de escritos sentido, ensina Dionísio, o caminho na dimensão inteligível, encontramos
que exerceram grande influência sobre o pen-
samento medieval. Acreditou-se por muito tem-
místico é o do despojamento. Supõe mulheres que ousam fazer teologia e
po que o autor desses escritos foi discípulo de abrir mão de nossas mediações, ultra- o fazem, sondando a própria experiên-
São Paulo. Hoje se considera que as obras de passar todas as imagens, abandonar cia de Deus. Olhando essas narrativas
referência foram redigidas no final do século IV todas as seguranças. O místico conhe- (algumas escritas por elas mesmas,
ou começo do V sob a influência neoplatônica e
especialmente a base de fragmentos de Proclo.
ce então, por experiência, que Deus outras por homens que encontravam
Por tal motivo costuma-se chamar a seu autor é em tudo e além de tudo. Mistica, a valor nesse seu dizer), reconhecemos
o Pseudodionisio, e às vezes Dionísio, o místico (Nota da IHU On-Line).

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ali muito daquilo que a tradição cristã dade de Jesus, uma humanidade com- ra, De tríplice via, que representa um
chamou de mística e que Dionísio siste- pleta de Filho de Deus, opera também campo de teologia mística constituído
matizou tão bem: incognocibilidade e em nós, transformando-nos em filhos por um estudo sistemático, doutrinal,
união. Fora do domínio das mediações no Filho, chamados a herdar a Promes- da jornada contemplativa da alma em
que pelo processo de sacerdotização sa de Abraão, promessa ligada à fé de direção a Deus por meio dos diferen-
da Igreja coube apenas ao homem, vá- Abraão e que se realiza na economia tes estágios da vida espiritual. São
rias mulheres encontraram o parado- da fé, não na da lei. No Filho, apren- Boaventura descreve as três etapas
xal caminho da mística, atravessaram demos a dizer “Abbá, Pai!”, a chamar indispensáveis para a ascensão do hu-
degraus, quebraram barreiras, e de a Deus com a mesma familiaridade que mano à felicidade perfeita para a qual
“alma nua”, adentraram ao aposento Jesus chamou. No Filho o próprio Deus foi criado: a da progressiva purificação
do Amado. se comunica conosco, se torna ativo (via purgativa), a da iluminação (via
em nós para aí suscitar os atos da vida iluminativa) e a da união (via unitiva).
IHU On-Line – Como a senhora anali- filial, os de “Cristo em nós”. Outra forma de expressão se dá a par-
sa a mística cristã em geral, especial- Nesse sentido, o que caracteriza tir do ambiente monástico.
mente feminina, que se desenvolveu a mística cristã é uma imediatez me- Aqui podemos citar Bernardo de
na Idade Média? diada. Não é a substância de Deus que Claraval e sua interpretação mística
Ceci Baptista Mariani – A mística cris- toma o lugar da nossa substância, mas do Cântico dos Cânticos. A partir dele
tã vai afirmar a união com Deus em em Cristo, a nós é comunicado um o tema do “matrimônio espiritual” vai
Cristo; ele é o Amado. Enquanto “ser dinamismo, uma faculdade de ação, se tornar quase que obrigatório na li-
um só espírito com o Senhor”, está mas somos nós que agimos. Em Cris- teratura mística. Bernardo vai tratar
radicada no Evangelho que constitui to, participamos da vida de Deus. Essa da união entre Deus e o homem em
o seu núcleo. Em Paulo, a mística se participação, no entanto, supõe um termos de união de vontades.
concentra sobre a transformação do caminho, pois é um processo. A tra- Uma terceira forma de falar do
homem carnal e psíquico em homem dição mística vai descrever esse pro- caminho para Deus será encontrada
espiritual que tem os mesmos senti- cesso distinguindo nele primeiramente junto à poesia trovadoresca. O amor
mentos de Cristo. Para ele, segundo um momento da ruptura, no qual o cortês também oferece boas possibi-
Congar, o Espírito que fez da humani- místico, atendendo ao chamado para lidades para falar desse amor total,
 Paulo de Tarso (3-66 d. C.): nascido em transcendência, fascinado pela visão amor despojado, amor infinito. Segun-
Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, era originaria- do Absoluto, começa a despojar-se de do Rougemont, em A história do amor
mente chamado de Saulo. Entretanto, é mais tudo que o segura atado à imanência, no Ocidente, entre o Amor Cortês e a
conhecido como São Paulo, o Apóstolo. É con-
siderado por muitos cristãos como o mais im- de tudo o que nesse mundo parece transformação descrita pelos místicos,
portante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, oferecer segurança, de todos os seus existe mais do que uma analogia de
a figura mais importante no desenvolvimento amores e apegos, tudo se dissolve em palavras. Tanto uma realidade como
do cristianismo nascente. Paulo de Tarso é um
apóstolo diferente dos demais. Primeiro por- nada. No bojo desse processo, um se- outra vai se referir a uma fome, um
que, ao contrário dos outros, não conheceu gundo momento é o do encontro. Esse amor desejante que não pode ser sa-
Jesus pessoalmente. Era um homem culto, fre- é o momento em que se tem, teste- ciado porque se descobre tomado pelo
quentou uma escola em Jerusalém, fez carrei-
ra no Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. munham as narrativas, uma espécie amor infinito. Um amor forte como a
Educado em duas culturas (grega e judaica), de sentimento de toda a realidade, a morte. Nesse espaço menos eclesiásti-
Paulo fez muito pela difusão do cristianismo percepção de tudo em relação a esse co, encontramos escritos de mulheres
entre os gentios e é considerado uma das prin-
cipais fontes da doutrina da Igreja. As suas Absoluto amoroso de onde tudo vem por elas mesmas – o que é um grande
epístolas formam uma seção fundamental do e para onde tudo vai. Outro momento achado – ou por homens tocados pela
Novo Testamento. Afirma-se que ele foi quem é o da reconciliação universal, quan- importância e profundidade do que al-
verdadeiramente transformou o cristianismo
numa nova religião, e não mais numa seita do tudo o que se dissolveu em nada gumas mulheres relatavam a respeito
do judaísmo. Sobre Paulo de Tarso a IHU On- é devolvido e o místico, de posse da da própria experiência de Deus. Uma
Line 175, de 10-04-2006, dedicou o tema de liberdade perfeita adquirida nesse obra interessante de Georgette-Bur-
capa Paulo de Tarso e a contemporaneidade.
A versão encontra-se disponível para downlo- processo, pode amar o mundo com gard e Émile Zum Brunn vai trazer a
ad no sítio do IHU, http://migre.me/FC0K, de amor incondicionado, absolutamente
22-12-2008, é intitulada Paulo de Tarso: a sua gratuito, amar o mundo como ele foi  São Boaventura (1221-1274): nascido em
relevância atual, disponível em http://migre. Bagnoregio, na Itália, foi filósofo e teólogo
me/FC10 (Nota da IHU On-Line). amado pelo Verbo Encarnado. escolástico medieval, contemporâneo e amigo
 Yves Marie-Joseph Congar (1904:1995): No contexto medieval, esse cami- de Tomás de Aquino. Pertenceu à Ordem dos
teólogo dominicano francês, conhecido por nho para o encontro com o Mistério vai Frades Menores e foi cardeal de Albano. Em
sua participação no Concílio Vaticano II. Foi 1257 foi eleito ministro-geral dos franciscanos.
duramente perseguido pelo Vaticano, antes ser expresso de várias maneiras. No Foi canonizado em 1482 e declarado Doutor da
do Concílio, por seu trabalho teológico. A isso contexto escolástico podemos citar, Igreja em 1588 (Nota da IHU On-Line).
se refere o seu confrade Tillard quando fala por exemplo, a obra de São Boaventu-  Denis de Rougemont (1906-1985): foi um es-
dos “exílios”. Sobre Congar a IHU On-Line pu- critor e ecologista suíço. Sua obra L’amour et
blicou um artigo escrito por Rosino Gibellini, l’Occident traduzida para o português como A
originalmente no site da Editora Queriniana, camos a editoria Memória da 102ª edição da história do amor no Ocidente foi listada como
na editoria Memória da edição 150, de 8-08- IHU On-Line, de 24-05-2004, à comemoração um dos 100 Melhores Livros Não Fictícios do
2005, lembrando os dez anos de sua morte, do centenário de nascimento de Congar (Nota Século pela revista National Review (Nota da
completados em 22-06-1995. Também dedi- da IHU On-Line). IHU On-Line).

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nós a notícia de Mulheres trovadoras “Mística, enquanto fim, a alma aniquilada, amorosa de Deus
de Deus: Hildegard de Bingen, Me- lançando-se ao nada, recebe tudo, mais
chthild de Magdeburgo, Beatriz von caminho para o Mistério, saber do que o contido nas Escrituras,
Nazareth, Hadewijch de Antuérpia, mais compreensão do que a que está ao
Marguerite Porete. A mulher no mun- é essa incrível pretensão alcance da razão, ganha a liberdade per-
do medieval, não tendo voz entre os feita e torna-se capaz de experimentar a
doutores, vai encontrar o caminho da de aproximação Daquele “paz de caridade”.
arte para expressão da experiência Sendo transformada por Amor em
de Deus. Poesia, teatro, música serão que, por sua grandeza, Amor, a alma que acolheu a maior hu-
maneiras encontradas para narrar o milhação adquiriu alta nobreza. Ela
caminho de encontro com o Amado. não cabe nos limites do não procura mais a Deus porque se
encontra transformada em Deus. Esse
IHU On-Line – Em linhas gerais, quem nosso conhecimento” paradoxo da mística que o texto de
foi Marguerite Porete? Quais são os Marguerite exprime, aniquilamento e
pontos centrais de sua mística e es- Amor”. divinização, não é exatamente uma
piritualidade? O aniquilamento é seu grande tema. novidade, pois nos remete ao coração
Ceci Baptista Mariani – Marguerite Ele é, para ela, fruto de um processo da mística medieval. Talvez a ousa-
Porrete foi uma beguina, teria perten- que implica várias mortes. Marguerite dia de Marguerite foi ter cantado em
cido, segundo consta, ao Movimento vai distinguir, nesse caminho, sete es- língua vernácula, tornando acessível,
Beguinal, um movimento que se de- tados: ao longo dos quatro primeiros se portanto, aos leigos, as consequências
senvolveu como alternativa de vida dá a libertação da alma que encontra-se arriscadas desse processo: livre, total-
religiosa leiga na Renania e Países Bai- embaraçada pelo pecado, pela escra- mente livre, a alma transformada já
xos. As beguinagens começam a apare- vidão da natureza, pela escravidão da não deve submissão a nada, nem às
cer no final do século XII. São formadas razão e pela escravidão do desejo. O orientações da Igreja institucional. A
por pequenas casas agrupadas. Consti- quinto estado será para Marguerite um obra dessa autora será julgada e con-
tuem-se comunidades com promessa marco fundamental. Depois de morta denada pelo Tribunal da Inquisição.
(e não voto) de pobreza, obediência para o pecado e morta para a natureza, Em 1310, Marguerite Porete será quei-
e castidade, inseridas num contexto a alma que se dispôs a empreender esse mada viva em praça pública, no centro
social urbano. Nessas comunidades, as caminho experimenta a morte para o es- de Paris.
mulheres vivem do próprio trabalho: pírito, porta de entrada para a vida de
tecelagem, bordado, costura, ensina- glória que será plena somente quando IHU On-Line – A senhora afirma que
mento de crianças e serviço de damas da união definitiva com o amado “Loin- Marguerite Porete, para se fazer en-
idosas. O Movimento Beguinal está in- Près”. O quinto estado é o da “liberdade tender e expressar sua experiência
serido no movimento de renovação da da caridade”; a alma aí se encontra de- mística, foi filósofa, teóloga e poeta.
vida religiosa que, a partir do século sembaraçada de todas as coisas. O sexto Como essas suas “personalidades”
X, se espalha por todos os países da é o estágio em que a alma tem a visão dialogam em torno da mística?
Europa Ocidental. No entanto, é um (provinda do sétimo estágio) da glória Ceci Baptista Mariani – Marguerite nos
movimento que permanece marginal, que Deus quer para ela, é o estado em parece, a partir da sua obra, uma mu-
fora do controle institucional, pois não que a alma é pura e iluminada. Aí a alma lher tomada por uma missão: anunciar
obedecia a uma regra aprovada. não conhece nada, não ama nada, não o caminho de transformação operado
Essa beguina, descobre a pesqui- louva nada que não Deus, porque sabe por Deus na alma. Uma mulher que co-
sa histórica, é autora de um livro que que não existe nada que seja fora dele. nheceu um amor maior do que todos,
ultrapassou seu tempo. Um livro con- Nesse estado a alma iluminada não vê um amor infinito, e que, perdidamen-
siderado uma obra de grande sutileza nem Deus nem ela mesma, mas Deus se te apaixonada, se põe a falar sobre
intelectual, profundamente marcada vê por ele mesmo nela, por ela, sem ela. essa experiência indizível. Seu desejo
por uma atitude especulativa própria Vê tudo o que é por bondade de Deus é anunciar a liberdade perfeita adqui-
da mística renana e extremamente e sua bondade doada é Deus mesmo, a rida nessa relação total. Uma mulher,
original por seu estilo literário profa- bondade é o que Deus é. No sexto es- no entanto, que, sendo beguina, não
no, elaborado como canção inflamada tado, portanto, a Bondade na alma se fez o caminho comum das mulheres
e paradoxal ao estilo dos trovadores vê por sua bondade, se vê na transfor- dentro do casamento ou no interior de
que cantavam o fino amor. O livro Le mação de amor que opera na alma. O um convento. Estando no mundo, e vi-
mirouer des simples ames (O espelho sétimo estado é aquele que Amor reser- vendo do próprio trabalho, teria goza-
das almas simples) narra de maneira va para a glória eterna. O itinerário des- do de independência social e religio-
original o itinerário da alma que vai crito no Mirouer é o movimento que o sa. Consta que teria sido uma mulher
despojando-se de todas as seguran- amado “LoinPrès” – que não é outro que erudita. As crônicas da época se refe-
ças, ultrapassando todas as media- não a Trindade mesma – opera na alma rem a ela como beguina clériga. Seria
ções, rumo ao encontro com Deus que para a manifestação de sua glória. En- possuidora de uma cultura para além
ela curiosamente denomina “Senhora da educação comum oferecida às mu-
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lheres laicas. Como clériga, teria sido introduz uma crise na realização da ça eclesiástica. A primeira notícia de
cultivada na ruminacio das Escrituras vocação humana à transcendência reprovação a esse grupo encontra-se
e na lectio das obras teológicas. que, dentro dessa perspectiva, supõe num pequeno tratado Scandalis eccle-
Segundo Luisa Muraro, Marguerite um trabalhoso exercício do intelec- siae redigido pelo franciscano Gilbert
conhecia o texto sagrado por leitura to de superação pela negatividade. A de Tounai e destinado ao Concílio de
direta, o lia e o comentava publica- partir da teologia negativa chega-se à Lyon de 1274. Em uma seção intitu-
mente em francês. É possível também, Idade Média, afirmando a total impos- lada De Beghinis, a obra ataca as in-
através de uma análise comparativa, sibilidade para a inteligência humana terpretações da Escritura e o da lín-
perceber as múltiplas correspondên- de alcançar ou ser elevada ao conhe- gua vulgar para a leitura da Bíblia em
cias entre o Mirouer e os tratados teo- cimento de Deus. A essa crise corres- reuniões que deviam ser comuns entre
lógicos mais lidos da época. Constata- ponde a resposta escolástica de Tomás os membros desse grupo. Mais tarde,
se assim a familiaridade de Marguerite de Aquino, mas também a resposta eles foram condenados pelo Concílio
com a obra das escolas de pensamento poética de Marguerite Porete que vai de Colônia (1306) e pelo Concílio de
cisterciense, vitorina ou ainda cartu- ousar falar de Deus e a Deus em tro- Viena (1311-1312), que reprova a ins-
xa. Toda essa vivência, me parece, vas, elaborando uma teologia ousada tituição dos Begardos e Beguinas em
Marguerite teria colocado a serviço que se expressa em cantigas sobre e dois decretos.
do anúncio dessa experiência de Deus ao amor infinito, aquele que transcen- No primeiro, que diz respeito prin-
pela qual se sente tomada. Tudo pa- de a todo nome, mas que, tomada por cipalmente às beguinas, consta uma
rece estar ordenado à sua experiência tão grande amor, a alma não se con- reprovação relativa à questão do há-
mística; ela usa todos os recursos de tém em anunciar, mesmo sob o risco bito que elas usam, mesmo sem se-
que dispõe para realizar uma tarefa de mentir, isto é, de não ter recursos rem religiosas sob a obediência de
impossível: falar sobre uma realidade para falar. Com a canção da alma ani- uma regra aprovada. Consta também
que se encontra fora do domínio da quilada que constitui a parte final da a acusação de que se perdem em “es-
linguagem, sobre uma dor e uma ale- obra, Marguerite anuncia que Deus é peculações loucas” sobre a Trindade e
gria sem parâmetros dentro do domí- cortesia, amor de delicadeza que ama a essência divina, sobre outros dogmas
nio da imanência. com “fino-amor”, oferecendo-se sem ou pontos de doutrina e sobre os sa-
deixar-se dominar. Deus é esse amor cramentos. Num segundo decreto que
IHU On-Line – Segunda a senhora, impossível de ser possuído e que, ao se estende também aos begardos, o
Marguerite expressa uma “síntese mesmo tempo, se oferece ao desejo texto do Concílio enumera oito erros
entre teologia negativa e poesia tro- possibilitando que amante se transfor- que vão se referir à ousadia de pro-
vadoresca”. Como isso se dá? me no caminho para o Amado. fessar que o homem pode chegar à
Ceci Baptista Mariani – Em sua obra, perfeição de Cristo, ao estado de “im-
Marguerite responde ao desafio da Te- IHU On-Line – O que foi o Movimento pecabilidade”, estado em que não se
ologia Mística com um poema de amor. Beguinal, do qual Marguerite Pore- necessita de jejum ou oração, não se
A teologia negativa ou teologia místi- te teria feito parte? Em que pontos teme a fraqueza da sensualidade, não
ca, que tem como referência Dionísio, houve sintonias ou tensões entre se deve mais obediência à autoridade
o Areopagita, elabora-se buscando co- esse movimento e a instituição ecle- humana nem à Igreja. Enumera tam-
nectar imanência e transcendência, sial da época? bém como erro a crença numa beati-
como uma sabedoria sobre a indizível Ceci Baptista Mariani – O Movimento tude final acessível à natureza humana
transformação que o amor opera no Beguinal sendo parte da renovação da intelectual ainda nesse mundo, a ideia
mundo e em nós que se afirma como vida religiosa em andamento desde o de que para esses perfeitos não existe
negativa por se reconhecer incapaz século X, colaborou para que o “povo mais necessidade de lutar para adqui-
de falar adequadamente do Infinito do cristão” pudesse participar também rir às virtudes e que a Eucaristia não
Amor e do dom que sobrevem como do ideal de perfeição espiritual ao es- requer mais a reverência (essa reve-
“ideia de Deus”. A mensagem anun- tilo monástico, pudessem aspirar mais rência para eles, afirma o Concílio, faz
ciada em nome desse amor, propon- do que uma participação passiva da decair do estado de contemplação já
do um projeto de maior realização da vida da Igreja. Enquanto movimento alcançado).
criatura pela graça e pelos caminhos de leigos, o Movimento Beguinal, foi Os erros apontados pelo Concílio de
do amor, vai além do que ela recebeu, desde muito cedo, alvo da desconfian- Viena refletem uma situação que ajuda
mas vai também no sentido de sua as-  São Tomás de Aquino (1225-1274): padre a entender a condenação de Margue-
piração infinita. dominicano, teólogo, distinto expoente da rite. De fato, existe uma correspon-
escolástica, proclamado santo e cognomina-
A teologia negativa, no entanto, do Doctor Communis ou Doctor Angelicus pela dência entre eles e vários dos temas
Igreja Católica. Seu maior mérito foi a sínte- tratados no interior do Mirouer, temas
� Luisa Muraro (1940–): filósofa italiana, pro- se do cristianismo com a visão aristotélica do que são tratados por ela, entretanto,
fessora de filosofia da Università degli Studi di mundo, introduzindo o aristotelismo, sendo
Verona. Foi
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cofundadora da Libreria delle Don- redescoberto na Idade Média, na escolástica com muito mais sutileza e profundida-
ne di Milano, uma das históricas instituições do anterior. Em suas duas Summae, sistematizou de. Isso mostra que ela não estava só
feminismo italiano, existente até hoje, e da o conhecimento teológico e filosófico de sua elaborando uma vivência extravagan-
comunidade filosófica feminina italiana Dioti- época: são elas a Summa theologiae, a Summa
ma (Nota da IHU On-Line). contra gentiles (Nota da IHU On-Line). te, mas era uma mulher de Igreja que
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foi capaz de recolher uma inspiração “A mulher no mundo almente.
do tempo e trabalhá-la em profundi- Em vista disso, podemos dizer que
dade. No entanto, uma experiência medieval, não tendo voz o dogma só é Verdade de Fé na medida
espiritual profunda está sempre sujei- em que se deixa interpelar pela mís-
ta aos riscos da incompreensão e dos entre os doutores, vai tica. Ao longo da trajetória histórica
exageros da banalização. O texto do da Igreja, no entanto, em função do
Concílio de Viena nos informa sobre a encontrar o caminho da status que o cristianismo foi adquirin-
difícil situação dessa mulher entre a do na sociedade, de sua elevação à re-
popularização rasa de uma inspiração arte para expressão da ligião oficial do Império Romano, sur-
espiritual e o zelo pela ordem da insti- ge uma exigência de uniformidade da
tuição eclesiástica. experiência de Deus” fé que se resolve pela instituição de
uma autoridade dogmática vertical,
IHU On-Line – Qual a filiação do pen- um magistério hierárquico responsável
samento de Marguerite? Como se dá IHU On-Line – Na vida de Marguerite, por definir “os limites” de uma verda-
o seu diálogo com a teologia da épo- como se deu a relação entre teolo- de de validade universal. A ortodoxia
ca? gia, mística e heresia? se faz sentir como imperativo político
Ceci Baptista Mariani – A obra de Mar- Ceci Baptista Mariani – Em primeiro e a pluralidade dogmática como ame-
guerite Porete está apoiada na tradição lugar é preciso considerar a relação aça perigosa para a Igreja e para a so-
do neoplatonismo cristão cuja referên- entre mística e dogma na dinâmica da ciedade. No período medieval, sob o
cia é Agostinho. Para esse autor, na in- teologia. O dogma é uma etapa neces- regime de cristandade, aprofunda-se
terioridade do sujeito consciente está sária à constituição de uma tradição uma noção de dogma como verdade
a Verdade, o objeto da sua filosofia é religiosa, ele reflete o esforço da co- certa a ser defendida e guardada pelo
“a consciência, cujas profundidades e munidade para explicitar as razões de magistério. Ele será a base da institui-
mistérios compete à inteligência des- sua fé, explicar-se diante de si mesma ção eclesiástica e seu instrumento de
vendar...”. Marguerite se coloca nesse e diante dos outros. O dogma é a for- poder. Nesse contexto, muitos discur-
lugar, entre os que buscam o mistério mulação racional daquilo que é essen- sos místicos acabam sendo julgados
pelo caminho da interioridade, relata cial na recepção e vivência do mistério como heresia.
sua experiência mística pessoal e, a revelado. Esse foi o caso de Marguerite Porete
partir dela, traça o caminho místico No entanto, conforme essa mesma que compôs um dizer sobre a relação
que fundamenta sua teologia. A pa- tradição, Deus continua agindo na his- com Deus sob a influência da teologia
lavra teológica de Marguerite Porete, tória e na vida, para além do período negativa e em relação crítica com a
no entanto, atravessa Agostinho e se constitutivo, pela atuação do Espírito. orientação institucional que dominou
aprofunda no sentido de insistir na im- A tradição cristã verá a dinâmica reno- a Igreja nessa época. Além de anun-
possibilidade do conhecimento de si e vadora do dogma, como fruto da atua- ciar que Deus, de infinita delicadeza,
do conhecimento de Deus. Nesse sen- ção do Espírito. O dogma se renova e a transforma a nossa pequenez em gran-
tido, ela se insere dentro da tradição tradição permanece viva porque, entre de nobreza em língua vernácula, por-
da mística renana, onde a influência da os conceitos e fórmulas dogmáticas e a tanto, fora do domínio do clero, Mar-
teologia negativa de Dionísio, o Areo- verdade de Deus que se autocomunica guerite tira daí consequências muito
pagita, é inegável. Marguerite se soma em Jesus Cristo, está o Espírito Santo. ousadas. O livro, consta no processo,
a essa teologia que assume como ca- Em seu sentido teológico, o dogma é a teria sido condenado com base em 15
minho a negatividade e pede despoja- verdade definitiva sobre Deus e sobre artigos suspeitos. Os dois artigos men-
mento, renúncia dos sentidos, das ope- o homem, comunicada a nós por Je- cionados no processo-verbal que relata
rações intelectuais, de todo o sensível sus Cristo, no Espírito Santo, em vista a condenação do livro testemunham a
e o inteligível, enfim, que pede que se de uma verdadeira relação com Deus. ousadia dessa mulher. Desses artigos,
deixe de lado o entender, no esforço Permanece, no entanto, para a tradi- o primeiro é o seguinte: “Que a alma
de subir o mais possível até a união ção cristã, em se tratando de dogma, aniquilada dá licença às virtudes, não
com aquele que está além de todo ser a consciência de que essa verdade nos está na servidão delas, porque não as
e de todo saber. Além disso, podemos remete ao mistério do Incriado, “Luz tem quanto ao uso, mas as virtudes a
ver também na obra de Marguerite Po- que ultrapassa qualquer luz”, “Treva obedecem a um sinal”. Igualmente o
rete da teologia monástica que alguns superluminosa”, nas palavras de Dio- décimo quinto artigo é: “Que tal alma
autores traçam um paralelo entre sua nísio Areopagita, e a convicção de que não cuida das consolações de Deus
obra e alguns escritos de Guilherme de não se possui conceito adequado de nem de seus dons, porque ela é toda
Saint-Thierry. Deus e que os conceitos e as fórmulas voltada para Deus, e assim estaria im-
 Guilherme de Saint-Thierry (1085-1148): dogmáticas apenas tendem à Verdade pedida sua intenção para Deus”.
foi um teólogo, místico e abade do mosteiro impossível de se apreender conceitu- Em sua relação com Deus, despo-
de Saint-Thierry, na França. Frequentou esco- jada de tudo, defende Marguerite, a
las famosas da época, como as da sua cidade e alguns anos mais tarde tornou-se abade do
natal, Liège, e de Reims. Entrou no mosteiro mosteiro de Saint-Thierry, na diocese de Reims alma adquire tal liberdade que já não
beneditino de Saint-Nicaise de Reims em 1113, (Nota da IHU On-Line).

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 61


precisa das mediações propostas como “Marguerite Porete nos lebeeckx10. A mística põe o dogma em
caminho de salvação pela instituição movimento. Usando as palavras deste
Igreja. Como podemos ver nesses ar- parece (…) uma mulher último podemos dizer que, ao orarmos
tigos condenados, Marguerite aprofun- ao Deus vivo, como faz o místico, te-
da a relação entre mística e dogma, tomada por uma missão: mos as nossas mediações esfaceladas. A
tira dela consequências ousadas e, por experiência do encontro imediato com
isso, acaba sendo alvo do medo da ins- anunciar o caminho de Deus provoca a visão de uma possibili-
tituição eclesiástica, que vai declarar dade nova, radicalmente diferente do
seus escritos como heresia. transformação operado que foi e do que é. Caem por terra as
velhas imagens e as palavras em que
IHU On-Line – Afirma-se que Margueri- por Deus na alma” depositamos toda a nossa confiança,
te Porete influenciou Mestre Eckhart. as nossa escadas, as nossas pontes, as
Concorda? Em que pontos podem-se nossas construções. A mística explici-
o segredo do Filho que é dado a ela pelo
encontrar convergências entre esses ta a relatividade do nosso dizer sobre
amor do Espírito Santo, diz Marguerite. A
dois pensadores cristãos? Deus, faz ver o limite, lembra-nos da
alma aniquilada é, portanto, semelhan-
Ceci Baptista Mariani – Marguerite e necessidade da humildade. Ao mes-
te à divindade. A liberdade perfeita que
Mestre Eckhart habitaram o mesmo mo tempo, a mística promove em nós
define a nobreza vem pela graça de Deus
mundo. O Movimento Beguinal esteve inspiração, faz nascer a poesia, essa
que dá à alma o conhecimento do seu
sob a orientação espiritual das ordens palavra divina que, sem exigir mérito
nada, conhecimento que leva do mais
mendicantes: os franciscanos se dedi- algum, nos toma e nos faz dizer. Isso é
profundo abismo à mais elevada condi-
caram aos begardos, e os dominica- o que nos ensina toda a tradição mís-
ção. Em sua nobreza, a oração e a prece
nos, às beguinas. Marguerite participa tica e, nesse contexto, a mística Mar-
da alma já não pedem mais nada, repou-
da tradição renana. No tema da rela- guerite Porete, uma mulher que ousou
sam em paz.
ção entre aniquilamento e nobreza, teologia, tomada que foi pela poesia.
por exemplo, que é um tema nuclear A mística também, além de ajudar a
IHU On-Line – Como e em que aspec-
na obra de Marguerite, encontramos dar movimento ao dogma, com essa
tos a mística em geral – mas também
um claro paralelo em escritos de Mes- dinâmica que ajuda a reconhecer a
a de Marguerite – pode inspirar, ten-
tre Eckhart. Para ambos os autores, a relatividade de toda elaboração dog-
sionar ou instigar a teologia contem-
nobreza é condição que nos vem do mática em contraposição à afirmação
porânea?
aniquilamento. No sermão O homem do mistério de Deus, hoje tem ficado
Ceci Baptista Mariani – A mística tem
nobre, Mestre Eckhart vai descrever o cada vez mais claro, ajuda a teologia
provocado a teologia contemporânea
homem nobre como aquele que avan- a abrir-se ao diálogo, torna claro que
desde que a ela toma consciência da
ça no caminho do desprendimento, todas as tradições são, ao mesmo tem-
importância da experiência. Grandes
degrau a degrau até “despojar-se da po que capazes de captar a verdade de
teólogos contemporâneos foram pro-
imagem (humana) para revestir a ima- Deus, limitadas nessa tarefa.
fundamente tocados pela mística, en-
gem da eternidade divina, pelo esque-
tre eles Karl Rahner e Edward Schil-
cimento total e perfeito da vida tran-
 Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo
sitória e temporal, de tal modo que, católico do século XX. Ingressou na Companhia
feito filho de Deus, e atraído por Deus, de Jesus em 1922. Doutorou-se em Filosofia
o homem se transmude em imagem de e em Teologia. Foi perito do Concílio Vatica-
no II e professor na Universidade de Münster.
Deus”. A sua obra teológica compõe-se de mais de 4 http://migre.me/11DTM. Ainda sobre Rahner,
A nobreza, para Marguerite Porete, mil títulos. Suas obras principias são: Geist in publicamos uma entrevista com H. Vorgrimler
é também a condição que nos vem do Welt (O espírito no mundo), 1939, Hörer des no IHU On-Line n. 97, de 19-04-2004, sob o tí-
Wortes (Ouvinte da Palavra), 1941, Schrifften tulo Karl Rahner: teólogo do Concílio Vaticano
aniquilamento. Esta alma que não tem zur Theologie (Escritos de teologia). Em 2004, II nascido há 100 anos, disponível em http://
nada de vontade, afirma a autora, não celebramos seu centenário de nascimento. A bit.ly/mlSwUc. A edição número 102, da IHU
se importa de que Deus faça isso ou Unisinos dedicou à sua memória o Simpósio On-Line, de 24-05-2004, dedicou a matéria de
Internacional O Lugar da Teologia na Uni- capa à memória do centenário de nascimento
aquilo, contanto que faça nela a vonta- versidade do século XXI, realizado de 24 a 27 de Karl Rahner, disponível para download em
de Dele. Não lhe faz falta “nem inferno, de maio daquele ano. A IHU On-Line n. 90, de http://migre.me/11DTW. Os Cadernos Teo-
nem paraíso, nem alguma coisa criada”. 01-03-2004, publicou um artigo de Rosino Gi- logia Pública publicaram o artigo Conceito e
bellini sobre Rahner, disponível em http://mi- missão da teologia em Karl Rahner, de autoria
Mais vale à alma, ela diz, o nada querer gre.me/11DTa, e a edição 94, de 02-03-2004, do professor Dr. Érico João Hammes. Confira
em Deus que o bem querer por Deus. A publicou uma entrevista de J. Moltmann, ana- esse material em http://migre.me/11DUa.
alma aniquilada é nobre porque, pelo lisando o pensamento de Rahner, disponível A edição 297, de 15-06-2009, intitula-se Karl
para download em http://migre.me/11DTu. Rahner e a ruptura do Vaticano II, disponível
aniquilamento, acolhe a obra de Deus No dia 28-04-2004, no evento Abrindo o Li- para download em http://migre.me/11DUj
nela. Essa alma que leva a marca de vro, Érico Hammes, teólogo e professor da (Nota da IHU On-Line).
Deus como o lacre toma a forma do selo; PUCRS, apresentou o livro Curso Fundamental 10 Edward Schillebeeckx (1914): teólogo ho-
da Fé, uma das principais obras de Karl Rah- landês, frei dominicano, é considerado um dos
sabe que a obra de Deus na criação não ner. A entrevista com o professor Érico Ham- mais importantes peritos oficiais do Vaticano II
é condená-la, mas conformá-la a Ele. Eis mes pode ser conferida na IHU On-Line n. 98, e um dos mais importantes teólogos do século
de 26-04-2004, disponível para download em XX (Nota da IHU On-Line).

62 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


Marguerite Porete e a “teologia” do feminino divino
A “teologia” do feminino divino de Porete provém da utilização do “topos da fraqueza fe-
minina: Deus escolhe as coisas fracas – as mulheres – para confundir os fortes – os homens”,
explica Sílvia Schwartz

Por Moisés Sbardelotto

M
arguerite Porete foi primeiro caso de condenação por heresia na França, em meio à cultura e
à espiritualidade europeia cristã do final da Idade Média. Sua morte foi desencadeada pelo seu
livro, Le mirouer de âmes simples et anientis et que seulement demeurent em vouloir et desir
d’amour, uma das primeiras obras escritas em francês. “Em seu diálogo duplo com a literatura
sagrada e profana, Porete mistura a exegese dos textos sagrados com uma reapropriação ori-
ginal dos principais elementos da tradição cortês, utilizando o canto e o romance cortês para ilustrar sua
definição do Amor, cuja supremacia no Mirouer é incontestável”, afirma.
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Sílvia Schwartz, pós-doutora em Ciência da Religião
pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, analisa a vida, a obra e a espiritualidade de Marguerite Po-
rete, “que representa um chamado à liberdade”, ao criticar as “formas medievais de piedade monástica – a
vida de orações, jejuns, devoções, sacramentos, práticas ascéticas e martírios – que Porete chama de ‘vida
infeliz’”. “O verdadeiro progresso espiritual – continua – está centrado na total aniquilação ontológica, quan-
do a alma cai na certeza de nada saber e nada querer, de viver sem um porquê”.
Sílvia Schwartz é mestre, doutora e pós-doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz
de Fora – UFJF. É bacharel em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio,
psicanalista pelo Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e especialista em Psicologia Junguiana pelo Instituto
Brasileiro de Medicina de Reabilitação. Também é autora de O espelho das almas simples e aniquiladas e que
permanecem somente na vontade e no desejo do Amor (Ed. Vozes, 2008), fruto de seu trabalho de pós-dou-
torado. Nessa obra, Schwartz oferece, aos que se interessam pela leitura da obra de Marguerite Porete, uma
tradução feita a partir do manuscrito original. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em linhas gerais, quem mendicância e errância. Ela estava praça de Valenciennes pelo bispo de
foi Marguerite Porete? Quais são os imersa na cultura e espiritualidade Cambrai, que a advertiu para não dis-
pontos centrais de sua vida, experi- europeia cristã do final da Idade Mé- seminar mais suas ideias ou escritos,
ência mística e espiritualidade? dia, uma mulher – ou pseudomulier sob pena de ser entregue ao braço da
Sílvia Schwartz – Existem poucas in- – como queriam seus inquisidores – à autoridade secular.
formações disponíveis sobre a vida de margem da vida religiosa institucional A advertência que Porete recebeu
Marguerite Porete, exceto sobre seus e, por sua condição feminina, também e a condenação de seu livro não surti-
últimos anos de vida, já que constam excluída dos estudos formais, embora ram efeito. Porete continuou com seus
nos autos de sua condenação, o pri- suponha-se que tivesse alto nível de esforços para disseminá-lo e aprová-
meiro caso de condenação por here- educação, o que sugere que pertencia lo. Em 1308 foi novamente acusada
sia na França. Segundo relatado, ela às altas classes. de propagar seu livro. Conduzida a
era natural da região de Hainaut, no De qualquer modo, é sabido que, Paris, permaneceu presa, recusando-
norte da França, mas não se tem ideia em algum momento entre 1296 e ja- se a responder a qualquer questão e
de quando e onde nasceu. Referia-se neiro de 1306, Marguerite Porete es- mesmo a prestar os juramentos neces-
a si mesma como uma mendiant cre- creveu um livro, Le mirouer de âmes sários para sua inquirição. Depois de
ature, e era chamada de béguine por simples et anientis et que seule- uma ano e meio, Porete foi condenada
tantas fontes independentes que essa ment demeurent em vouloir et desir como herege relapsa, sentenciada à
designação pode ser considerada como d’amour – uma das primeiras obras morte na fogueira e executada no dia
certa. Tudo indica que Porete tenha escritas em francês – que foi conde- 1º de junho na praça de Grève, em Pa-
levado um estilo de vida béguine, de nado e queimado em sua presença na ris.

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IHU On-Line – Quem foram as beguinas, “Falando em nome das longo dos séculos, a santidade das bé-
das quais Marguerite Porete teria feito guines começou a ser questionada, e a
parte? Em que pontos houve sintonias almas ‘simples’ e semelhança de seu estilo de vida com
ou tensões entre esse movimento e a o de grupos heréticos, como os cáta-
instituição eclesial da época? desenvolvendo de seu ros e albingenses, as deixou expostas
Sílvia Schwartz – Na Europa desse perí- à acusação de heresia.
odo, muitas mulheres não possuíam as próprio modo as ideias O clima vigente ao final do século
condições necessárias e viram barradas XIII mostrava ações hostis ao movimen-
suas pretensões quanto a uma vida reli- que estavam no ar, to das “mulheres religiosas pobres”,
giosa em alguma ordem. Apesar do de- artigos contra certas béguines que, in-
creto conciliar de 1215, que baniu a cria- Porete cria seu mito vadindo um domínio reservado ao cle-
ção de novas formas de vita apostolica, ro, haviam traduzido a Bíblia para o
em 1216 Honório III permitiu que essas da santa Igreja” francês e que, além do mais, estavam
mulheres se agrupassem em comunida- lendo comentários nas línguas verná-
des pias, e a Igreja continuou a tolerar culas em praças públicas. A tudo isso
no início do século XIII muitas dessas
as comunidades religiosas de mulheres se somava um crescente zelo contra as
mulheres santas começaram a se or-
que nem eram reguladas pelos conven- heresias antinomianas.
ganizar em congregações centradas na
tos, nem pertenciam a uma ordem apro- Pouco tempo depois, no Concílio de
disciplina individual e em tarefas co-
vada. Em torno do ano de 1230, o nome Viena de 1311, o decreto Ad Nostrum
muns, os béguinages, geralmente liga-
dado a essas mulheres, aceito por toda a excomungava e bania todas as bégui-
dos às ordens mendicantes.
Europa, era béguines. nes e os beghards na Alemanha sob a
A dicotomia em relação ao termo
O movimento das béguines nunca acusação de estarem sob a influência
béguine, usado para dois fenômenos
representou uma forma de vida religio- da heresia do livre espírito. O docu-
distintos – mulheres semilaicas que le-
sa planejada. Foi principalmente um mento continha uma lista de oito erros
vavam uma vida apostólica, organiza-
fenômeno de uma sociedade urbana em “de uma abominável seita de homens
das em comunidades, e mulheres que
expansão, resultado do movimento re- malignos conhecidos como beghards
erravam em liberdade, pedindo esmo-
ligioso das mulheres à medida que elas e mulheres sem fé conhecidas como
las – se mostrou fatal na história das
não encontravam aceitação nas ordens béguines no reino da Alemanha”, er-
béguines. Combinada com a falta de
religiosas existentes. Esse movimento ros que, de forma geral, foram consi-
uma divisão organizacional fundamen-
constituiu uma forma transicional entre derados a essência da heresia do livre
tal entre os dois tipos, essa dicotomia
as ordens eclesiásticas da época, pois, espírito.
impôs às béguines “regulamentadas”
embora não pertencessem à comunida-
a mesma catástrofe das béguines iti-
de monástica dos religiosos, já que não IHU On-Line – Que semelhanças ou di-
nerantes e “não regulamentadas”,
eram uma ordem aprovada, também ferenças você percebe entre a mística
contra as quais a Igreja terminou por
não pertenciam ao mundo laico. Elas se de Marguerite Porete e a de outra con-
determinar sanções.
organizavam de forma semissecular e temporânea, Hadewijch de Antuérpia?
semirreligiosa e não seguiam nenhuma Sílvia Schwartz – Marguerite Porete
Santidade questionada
regra comum, embora seguissem uma era, juntamente com outras béguines,
Contudo, ao termo béguine sempre
vida apostólica. uma das representantes da mística re-
foi dada uma conotação ambivalen-
Num primeiro momento, o movi- nano-flamenga, que une a Minnenmys-
te, pois, desde o início, as béguines
mento se constituiu de mulheres que tik ou Mystique Courtoise – ramo da
e os beghards, como eram chamados
viviam vagando pelas cidades, levando mística que funde as convenções do
os homens que pertenciam também
uma vida estritamente religiosa, mas amor cortês com as aspirações es-
a esses movimentos religiosos, foram
permanecendo no mundo secular. Era pirituais – com a mística do Ser (We-
vistos com hostilidade. A própria pa-
um movimento espontâneo, sem fun- senmystik) ou mística especulativa ou
lavra béguine inicialmente era um
dador ou legislador, e essas mulheres ainda mística da Essência. O amor era
apelido para as hereges, originando-se
eram conhecidas simplesmente como a categoria central das obras dessas
de uma abreviação de “albigen-ses”,
mulheres santas (mulieres sanctae). mulheres místicas, mas a compreen-
e mais tarde passou a designar as se-
Como elas não seguiam nenhuma regra são dele variava de acordo com suas
mirreligiosas que buscavam uma vida
autorizada, os detalhes de suas vidas visões sobre a união com o divino. Mui-
apostólica. Se por um lado seu estilo
variavam consideravelmente de acor- tas delas se apropriaram tanto do dis-
de vida era louvado e admirado por
do com o lugar onde viviam, algumas curso da mística nupcial como do dis-
teólogos e figuras religiosas influentes,
com suas famílias, outras em grupos curso do amor cortês. Todas ao menos
elas sempre estiveram sob a suspeita
pequenos ou mais amplos. Somente indicavam a existência de alguma par-
de heresia por seus excessos místicos,
 Papa Honório III (1165-1216): nascido Cen- te incriada da alma que partilha uma
cio Savelli, foi pontífice da Igreja Católica e e o nome béguines era indiscrimina-
profunda e total união com o divino.
convocou um Concílio em Paris em 1226, que damente utilizado tanto para grupos
condenou a heresia dos Albigenses (Nota da Embora existam pontos comuns – a
ortodoxos como para heterodoxos. Ao
IHU On-Line).

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representação de Deus como o femi- “Um traço da relaciona ao seu eu.
nino Amor, o tema central do amor, o
uso e a desconstrução das tradições espiritualidade Duas igrejas
corteses – entre a obra de Marguerite Um dos aspectos ousados do Mi-
Porete e a de outras béguines, como poretiana – que rouer pode ser observado nos diálogos
Hadewijch, há também algumas im- entre a Razão e o Amor. Alma e Dame
portantes diferenças. A obra de Ha- representa um chamado Amour tentam fazer com que Raison
dewijch, que dirigiu um béguinage, é entenda as verdades mais elevadas,
lírica e poética, em boa parte baseada à liberdade – é a crítica mas, chocada com seu aspecto para-
em suas visões. Sua mística do amor é doxal, Raison termina morrendo no
marcadamente cristológica e trinitária às formas medievais de contexto teatral do texto. Dessa ma-
e em muitos momentos Hadewijch se neira, o entendimento humano dá lu-
vê como a verdadeira noiva do grande piedade monástica” gar a uma compreensão mais profun-
Noivo, com o qual consuma a união. da de Deus, o entendimento do amor.
Por outro lado, entre as béguines, marcado pela abnegação, pelo sacrifí- Em seu chamado central à liberdade
Marguerite foi a mais crítica em rela- cio, pelo arrebatamento e pelo infinito e à pobreza da alma, Marguerite Po-
ção à Brautmystik ou mística nupcial. desejo pelo amado inatingível, mas, rete dispensa a exigência de virtudes,
É possível notar em sua obra mística ao mesmo tempo, Porete realiza uma perfeição, obras ascéticas e místicas
uma tensão considerável entre os ele- apófase do desejo e sublinha o para- e de qualquer mediação entre a alma
mentos béguines e dionisianos, que doxo da vontade. e Deus.
resultam numa dialética específica. A “Ce livre”, como o Mirouer frequen- Falando em nome das almas “sim-
própria Marguerite Porete, num ver- temente se refere a si mesmo, mostra ples” e desenvolvendo de seu próprio
so quase ao final do livro, reconhece de início as ambiguidades da autoria. modo as ideias que estavam no ar, Po-
a dificuldade que suas companheiras Inicialmente é uma imagem divina ins- rete cria seu mito da santa Igreja, a
béguines também poderiam ter para crita na alma e, então, é escrito como pequena, regida pela razão, e da san-
compreender a liberdade da alma imagem-livro pela alma, mostrando ta Igreja, a grande, regida pelo Amor.
aniquilada em sua obra. Ainda assim, que tanto Deus como a alma são seus A Igreja maior de Porete, ou a Igreja
em seu diálogo duplo com a literatura autores. A alma é uma das interlocuto- do Espírito, é a reunião ideal das al-
sagrada e profana, Porete mistura a ras e, ao mesmo tempo, o palco onde mas livres que amam divinamente e
exegese dos textos sagrados com uma se desenrola a transformação de cons- realizaram a theosis, estando, portan-
reapropriação original dos principais ciência que é o assunto do livro. to, unidas a Deus. Essa Igreja maior
elementos da tradição cortês, utili- O Mirouer é uma obra inclassificá- não só nutre e ensina, mas sobrepuja
zando o canto e o romance cortês para vel, uma prosa tanto poética quanto e julga a Igreja menor, a assembleia
ilustrar sua definição do Amor, cuja su- didática, uma conversação envolta em cristã na terra. Para Marguerite Pore-
premacia no Mirouer é incontestável. lirismo, com diálogos complexos e vá- te, é como se as duas Igrejas coexistis-
rias transições de narrativa. Inspiran- sem, e a ideal devesse medir e corrigir
IHU On-Line – Você afirma que, para do-se na tradição do amor cortês, Mar- as afirmações da Igreja empírica, que
Marguerite, o progresso na vida mís- guerite Porete passa da prosa rítmica desconhece essas almas nobres e ani-
tica só começa quando a alma conse- para passagens rimadas e para formas quiladas, abrigadas na corte divina.
gue “eliminar a razão com o amor”. totalmente poéticas, como seu prólo-
Como ela entendia a noção de amor? go em forma de canzone e o rondeau, IHU On-Line – A partir de Marguerite
Sílvia Schwartz – O cerne da mística próximo ao final do livro, que é a mais e de Hadewijch, como você analisa
de Porete, tal como transparece em perfeita cristalização de seu pensa- a espiritualidade feminina cristã que
sua obra, é a transformação de consci- mento. A maior parte do texto toma a surge na Idade Média? O que carac-
ência que se dá na alma, um processo forma de um debate entre várias figu- teriza essa experiência feminina do
de criação de identidade mística, ain- ras alegóricas, todas femininas à ex- divino?
da que, paradoxalmente, tal processo ceção de LoinPrés, o amado próximo e Sílvia Schwartz – Um traço da espiri-
se dê por meio da dissolução do eu na distante, que não fala. Dame Amour e tualidade poretiana – que representa
aniquilação – isto é, a morte da vonta- Raison são as personagens principais, um chamado à liberdade – é a crítica
de própria e de tudo que se relaciona em companhia da Âme (Alma), da às formas medievais de piedade mo-
ao seu eu – por meio da qual essa alma qual elas traduzem o conflito interior. nástica – a vida de orações, jejuns,
transforma-se no espelho cristalino de A conversação gira em torno da união devoções, sacramentos, práticas ascé-
Deus. Para descrever esse processo mística da Âme com Deus e do próprio ticas e martírios – que Porete chama
Porete junta a linguagem do amor cor- Mirouer, que elas comentam. Como de “vida infeliz”, pois essa vida ain-
tês, uma linguagem de êxtase, com os indicado no título, o assunto do livro é da tem suas origens no desejo, mes-
paradoxos apofáticos da radical união a aniquilação da alma, isto é, a morte mo que seus objetos não sejam a vida
mística. O discurso amoroso cortês é da vontade própria e de tudo que se temporal. O verdadeiro progresso es-

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piritual está centrado na total aniqui- alma. Em contrapartida, exige a re-
lação ontológica, quando a alma cai na núncia de tudo que é criatural como
certeza de nada saber e nada querer, possibilidade para a unio indistinctio-
de viver sem um porquê. Nesse abis- nis nesse mundo para as almas escolhi-
mo de humildade, a alma verdadeira- das por Deus.
mente aniquilada, nobre e livre perde
sua natureza enquanto algo criado por IHU On-Line – Você afirma que, em
meio da dádiva do amor divino, retor- Marguerite Porete, o “ponto de vista
nando ao abismo do ser primordial, feminino” é “definido em relação a
onde não há mediação ou diferença si mesmo, e não ao masculino, como
entre ela e Deus. era padrão”. Em sua opinião, qual a
Sabemos que a espiritualidade fe- relação entre o “feminino” e a místi-
minina da Alta Idade Média era defini- ca de Porete?
da em termos de seu cristocentrismo, Sílvia Schwartz – Há que ressaltar
sua afetividade e emocionalidade, sua que, na obra de Marguerite Porete, o
qualidade visionário-mística, sua cor- gênero feminino de Dame Amour/Deus
poreidade, particularmente em rela- é acentuado por seu epíteto, “Mãe” e
ção ao ascetismo e fenômenos para- “Senhora do Conhecimento”. A alma é
místicos. As mulheres santas, com seus descrita em termos relacionais femini-
corpos sofredores, partilhavam o sofri- nos como a “Rainha das Virtudes, irmã
mento e a redenção de Cristo. Era en- da Sabedoria e noiva do Amor”. Dame
tendido que através de seu ascetismo Amour aparece numa variedade de
corporal extremo, jejuns, flagelações “O ‘feminino’ na obra de contextos, refletindo o jogo especular
e seus feitos paramísticos, elas não só característico do Mirouer. Ela surge
santificavam seus próprios corpos, mas Porete surge quase como como um duplo da própria Marguerite,
também curavam, santificavam e aju- seu “eu” transcendente, como um du-
davam os outros, particularmente os uma ‘teologia’ do plo para Cristo, o Amado e, também,
homens. A associação da mulher com como o Absoluto, no qual amante e
o aspecto corporal da natureza huma- feminino divino e como amado são um. Apesar do cuidado de
na, sujeito ao pecado e à corrupção Porete em repetir a formulação tra-
que denegria e inscrevia a mulher sob a voz de um sujeito dicional do credo da Trindade, outra
a hierarquia masculina, passou a ser Trindade surge dentro do Mirouer, em-
também um meio através do qual as feminino” bora nunca seja denominada como tal
mulheres alcançavam a santificação – a de Dame Amour, LoinPrés e a Alma
e era autorizadas a escrever, ou, na aniquilada. Uma nova configuração de
maior parte das vezes, a ditar suas vi- a ser hostil às visões. Além disso, em gênero é atribuída à Deidade que é
sões e revelações aos religiosos a elas nenhum momento Marguerite Porete retratada em termos tanto masculinos
ligados. se desculpa por ser mulher e dá à sua como femininos. A alma é também de-
Apesar das normas e padrões da es- obra a autoridade de uma nova forma signada como “filha da Deidade”. Jun-
piritualidade feminina determinadas de evangelho: ela explicitamente re- tas, Dame Amour e a Alma formam os
pelo poder eclesiástico masculino, al- siste ao masculino, ao latim e ao es- dois elementos femininos da Trindade
gumas mulheres místicas, Marguerite colástico, ao domínio das instituições poretiana. LoinPrés, o único persona-
Porete entre elas, desenvolveram cer- eclesiásticas e mesmo à faculdade da gem masculino, permanece silencio-
tas estratégias de resistência, de disso- razão. E fala em sua própria voz, com so.
nância e ousaram falar a partir de um a autoridade das almas aniquiladas, Nesse sentido, o “feminino” na obra
ponto de vista feminino, definido em pois não tinha amparo eclesiástico al- de Porete surge quase como uma “teo-
relação a si mesmo, sem autorização. gum para sua proteção. logia” do feminino divino e como a voz
Para Porete, não há necessidade de de um sujeito feminino, num período
Confundido os fortes tormentos e demonstrações públicas histórico e cultural em que a prática
A maioria das mulheres medievais, de humilhação, comuns na vida de san- literária hegemônica era determinada
incluindo Metchild de Magdeburgo tos e de outras béguines e próprios da pelas tradições masculinas de escrita.
e Hildegard de Bingen, utilizavam o “vida infeliz”. Em seu relato dos mo- Embora sua teologia mística não esteja
topos da fraqueza feminina: Deus es- vimentos místicos, ela repetidamente ancorada na materialidade e nas expe-
colhe as coisas fracas – as mulheres reduz o papel do corpo e das práticas riências do corpo, como a teologia de
– para confundir os fortes – os homens. corporais no movimento da aniquila- outras místicas medievais, nem seja
Isso não ocorre no Mirouer de Margue- ção, pois estabelece a neutralidade particularmente afetiva, extática, vi-
rite Porete, que não contém nenhum moral da corporeidade, rejeitando os sionária ou ascética, ela é profunda-
recital visionário, chegando mesmo caminhos do sofrimento do corpo e da mente enraizada no gênero feminino,
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ainda que, paradoxalmente, em fun- “A maioria das
ção de sua linguagem apofática, ela IHU On-Line – Em sua pesquisa, você
desdiga os essencialismos de gênero, mulheres medievais analisa o tema da “aniquilação mís-
tanto medievais como modernos, que tica” e da “linguagem apofática”
ligam o caráter do texto ao sexo bioló- místicas utilizavam o em Marguerite Porete. O que você
gico do autor. entende por esses conceitos e como
Nos últimos anos tem havido um re- topos da fraqueza eles dialogam?
novado interesse por parte de autoras Sílvia Schwartz – Marguerite nos diz
feministas, teólogas ou não, no estu- feminina: Deus escolhe que de Deus não se pode falar, utili-
do das místicas medievais. Apesar de zando-se da linguagem mística apo-
inseridas numa estrutura fortemente as coisas fracas – as fática comum a várias tradições. Tal
patriarcal (uma genealogia de pais e linguagem partilha algumas caracte-
filhos) e submetidas aos padrões de es- mulheres – para rísticas centrais. Ela começa com o
piritualidade “femininos” autorizados dilema da inefabilidade, com a aporia
pelas autoridades eclesiais e constru- confundir os fortes – os da transcendência. Ao dizermos que
ídos por homens, elas desenvolveram o inefável está “além dos nomes”,
estratégias de resistência que lhes homens” somos enredados numa aporia, num
permitiram a criação de textos extre- dilema irresolúvel, pois à medida que
mamente originais onde se pode ver de gênero na Trindade cristã. Sua de- está além dos nomes, está também
um “parler-femme” como define Luce finição da divindade como masculina além do nome “inefável” utilizado
Irigaray, “um falar (como) mulher”, e feminina lhe permite identificar-se para afirmar o seu ser para além dos
ou seja, um falar a partir de suas pró- com ela e revestir-se de autoridade. nomes. Porém, não podemos afirmar
prias subjetividades femininas. Frente à unicidade do sujeito mascu- a inefabilidade sem usar algum nome
É inegável que as estruturas pa- lino, Porete vê a subjetividade como e assim a afirmativa da inefabilidade
triarcais fizeram de Deus um espelho múltipla. Por todo o texto transparece volta-se sobre si mesma e se desfaz,
que reflete apenas o imaginário mas- uma multiplicidade do sujeito que se configurando uma espécie de retorno
culino, excluindo a mulher do divino. recusa a falar com a autoridade de um linguístico. Qualquer pronunciamento
A psicanalista e filósofa Luce Irigaray sujeito centralizado e unificado. que se faça, seja positivo ou negati-
sugere que assim como a mulher, para Na obra de Marguerite Porete, vo, necessita de contínua correção.
ela estranha ao discurso, Deus também Dame Amour é uma representação O pronunciamento corretivo, por sua
é aquilo que foi suprimido, apropriado, divina central. Contudo, o Mirouer vez, deve também ser corrigido, ad
negado ou simplesmente domesticado está impregnado da dialética que infinitum. O autêntico sujeito do dis-
por uma ordem simbólica patriarcal. A expressa a ausência e a presença do curso continuamente escorrega de
radical alteridade da mulher perma- Amado, a imanência e a transcen- volta para além de cada esforço para
nece aprisionada na economia ou no dência divinas. Marcando essa dia- nomeá-lo ou mesmo para negar sua
horizonte de um único sujeito. Em sua lética e seu senso da centralidade nomeabilidade. Esse esforço resulta
obra, estão em evidência a questão da fusão de opostos na consciência então num novo tipo de linguagem.
da exclusão da mulher e do feminino imediata de Deus dentro da alma, Em certo sentido, a tradição apo-
do discurso ocidental, a questão da Porete inventa um novo nome para fática busca por meio do discurso pas-
construção da subjetividade feminina o Deus trinitário em sua relação com sar ao silêncio. O apofático é aquilo
e a necessidade de um divino feminino a alma humana, o LoinPrés, que é que é alcançado, seja por meio do dis-
que sirva de horizonte para essa cons- Deus sob o disfarce do amor de lonh curso afirmativo ou negativo, quando
trução. dos trovadores. A aparente distância a linguagem se rompe. O apofático é
da alma em relação a Deus mascara o reconhecimento de como esse “si-
Um novo nome para Deus uma real proximidade, tornada ma- lêncio” jaz em torno do perímetro da
No Mirouer, Marguerite Porete afir- nifesta pelo LoinPrés, que resolve a linguagem. O místico apofático sabe
ma uma modalidade de ser que evade a dialética de presença e ausência, de perfeitamente bem que o indizível
genealogia de pais e filhos e estabele- imanência e transcendência, ilustra- não pode ser colocado ao alcance
ce uma nova ordem simbólica, na qual da nas fábulas iniciais do Mirouer. do discurso. Ainda assim ele utiliza
masculino e feminino são representa- O termo envolve a combinação de o discurso, necessariamente quebra-
dos. Ela não só sinaliza uma genealogia duas qualidades sem substantivo, do, contraditório, absurdo, parado-
de mães e filhas, na qual a alma ani- sugerindo que Deus não é uma “coi- xal, para evidenciar a inefabilidade
quilada é filha de Dame Amour – Deus, sa”, mas que deve ser visto como de Deus. Em última análise, o místi-
como também reconfigura a dinâmica um “relacionamento” dialético ou co usa uma linguagem que busca não
“presença”, infinitamente distante funcionar, que busca se desfazer para
 Luce Irigaray (1932-): filósofa e feminista falar – sem falar – o que não pode ser
belga. Destaca-se no estudo do feminismo e desconhecida e, por essa mesma
francês contemporâneo e em filosofia europeia razão, “próximo” em sua ausência. falado.
(Nota da IHU On-Line).

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Apófase do desejo
Há no Mirouer de Marguerite uma
“O verdadeiro cronológica e espiritual de Eckhart
com Marguerite Porete e que até
transposição paradoxal da dialética
da teologia apofática para a esfera da
progresso espiritual mesmo para o leitor superficial é
impossível deixar de notá-la. Ruh
prática ascética, uma transposição que
alguns autores chamam de uma “antro-
está centrado na total acrescenta que, em 1981, num con-
gresso sobre Ruysbroek, o tradutor
pologia apofática”. Com isso um novo
tema emerge: o do “eu”, em particu-
aniquilação de Eckhart, Edmund Colledge tentou
demonstrar que Eckhart devia ter co-
lar o da nadificação do “eu” ou, como
ela afirma, o da aniquilação da alma.
ontológica, quando a nhecido o livro de Porete, direta ou
indiretamente. Bernard McGinn tam-
Porete repetidamente menciona a ra-
dical pobreza da Alma, que abandona
alma cai na certeza de bém ressalta a proximidade entre a
mística de Porete e a de Eckhart,
obras e virtudes. Numa verdadeira
apófase do desejo, essa alma se es-
nada saber e nada que estava ensinando em Paris logo
após a execução da autora. McGinn
vazia de toda vontade e termina por
cair do amor no nada. É nessa que-
querer, de viver sem acrescenta que pesquisas recentes
assinalam que uma das mais profun-
da profunda que ela se torna “nada”
no abismo onde encontra o “nada”
um porquê” das afirmações da noção de Eckhart
relativa à unitas indistinctionis, en-
divino, e volta a “ser o que era” an- contrada no seu Sermão 52, em ale-
tes de sua criação. Agora, somente a dos que estabelecem as semelhan- mão, mostra um contato direto com
vontade divina age nela através da ças entre a obra de Marguerite Po- Le Mirouer. Entre os vários paralelos
união realizada por obra do Amor. A rete e a de Eckhart. Denys Turner, – o tema da pobreza espiritual, do
alma é agora menos que nada e nada em sua obra The darkness of God, completo distanciamento da vonta-
pode fazer senão a vontade de Deus assinala as probabilidades de que de própria, da rejeição do caminho
e assim ela é nada e tudo. Eckhart conhecesse o trabalho de das obras, da limitação do corpo e
Porete e de que, mesmo não o apro- da imaginação – próximos no pensa-
IHU On-Line – Afirma-se que Mar- vando integralmente, ainda assim mento e na expressão, encontrados
guerite Porete influenciou Mestre tivesse tomado de empréstimo dela na obra da béguine e de Eckhart,
Eckhart. Concorda? Em que pontos algumas ideias centrais e algumas McGinn enfatiza a aniquilação da
podem-se encontrar convergências modalidades de expressão caracte- vontade da alma, que a leva de vol-
entre esses dois pensadores cris- rísticas. Segundo Turner, Marguerite ta para um estado pré-estabelecido
tãos? Porete foi queimada em 1310, e seu de união com Deus, no qual não há
Sílvia Schwartz – É importante fri- inquisidor, o dominicano Guillaume distinção entre a vontade da alma e
sar que foi exatamente do meio das Humbert, estava vivendo na casa do- a vontade de Deus, já que a alma re-
“mulheres santas” que surgiu um minicana de St. Jacques, em Paris, torna ao estado em que estava antes
surpreendente número de obras mís- em 1311, quando Eckhart juntou-se de ser criada.
ticas, nas quais é possível encontrar à comunidade em sua segunda es- Sem dúvida alguma nos últimos
a origem de certas expressões e te- tada como professor de teologia na anos vemos com satisfação o resgate
mas dos trabalhos de Mestre Eckhart. universidade. Turner acha impossível e a valorização da obra dessas mu-
A obra de Eckhart tem sido tradicio- que Eckhart pudesse não ter tomado lheres da Idade Média que têm aber-
nalmente lida à luz de sua relação conhecimento da obra de Marguerite to novas avenidas no estudo da mís-
com a teologia escolástica, patrísti- Porete nessa época. tica ocidental – um tributo à história
ca e neoplatônica, que antecedem a meio esquecida dos esforços das mu-
mística do final da Idade Média, com Porete e Eckhart lheres místicas.
a teologia pastoral da ordem domini-
cana, que estava se desenvolvendo, Robert Lerner, em seu livro The
e com as tradições da mística ger- heresy of the free spirit in the La-
mânica. Porém, já em 1935, Herbert ter Middle Ages, afirma que um dos
Grundmann afirmava que as inova- colegas de Eckhart no convento do-
ções teológicas e místicas centrais minicano em Paris, onde residiu de
na obra de Eckhart surgiram primei- 1311 a 1313, foi Berengar de Lando- Leia Mais...
ro no movimento religioso feminino ra, um dos teólogos encarregados de
Sílvia Schwartz é autora de outra publica-
das mulheres do século XIII, em par- examinar o Mirouer e que participou ção pelo IHU:
ticular nos escritos das béguines. também do Concílio de Viena. Kurt * Amor e aniquilação na mística de Marguerite
Atualmente, são vários os estu- Ruh, em sua obra Eckhart: Teologo Porete e Ibn’ Arabî. Cadernos IHU em Formação,
edição 31, intitulado Mística. Força motora para a
 Herbert Grundmann (1902-1970): foi um his- – Predicatore – Mistico, afirma que gratuidade, compaixão, cortesia e hospitalidade,
toriador alemão, que estudou principalmente os estudos sobre o Mirouer têm re- disponível em http://migre.me/79ZWg.
a história da Idade Média e de seus movimen-
tos religiosos (Nota da IHU On-Line). petidamente assinalado a vizinhança
68 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
Teresa de Jesus: “mestra consumada da vida espiritual” em
diálogo cristão-islâmico
Teresa escreve para homens e mulheres de todas as épocas e também de todas as religiões,
comenta Luce López-Baralt. A santa de Ávila não tem receio em fundir ensinamentos cristãos
com imagens islâmicas como a dos sete castelos, reelaborando em detalhe essa metáfora
islâmica

Por Moisés Sbardelotto

U
m embate entre linguagem e razão: a experiência mística – como no caso de Teresa de Jesus
– “ultrapassa os limites da consciência e dos sentidos”. E Teresa “explicita sua impotência pe-
rante a linguagem, pois sabe muito bem que apenas pode dar uma ideia imprecisa do que, na
realidade, lhe aconteceu além do espaço-tempo”, afirma Luce López-Baralt, professora eméri-
ta de literatura espanhola e comparada da Universidade de Porto Rico.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Luce afirma que a simbologia de Teresa traz traços
marcantes da tradição islâmica e sufi. “A santa reelabora em detalhe a metáfora islâmica dos castelos, que
costuma ser muito simples. Trata-se, pois, de uma amplificatio da antiga metáfora islâmica”, defende. E mais:
“Como muitos autores místicos, Teresa não tem problemas para tentar expressar a sua relação com o mundo
transcendente em termos eróticos”.
Portanto, se a experiência mística “é um estado alterado de consciência em que o ser humano experimen-
ta, para além da linguagem e dos sentidos, uma união sem intermediários com Deus”, também há místicos
agnósticos, como Jorge Luis Borges, afirma.
Luce López-Baralt é porto-riquenha e professora emérita de literatura espanhola e comparada da Uni-
versidade de Porto Rico. É bacharel em Estudos Hispânicos pela mesma instituição. Obteve seu mestrado
em literaturas românicas pela New York University in Madrid e o doutorado em literaturas românicas pela
Universidade de Harvard. Fez estudos adicionais de pós-graduação na Universidade Complutense de Madri,
na Universidade Internacional Menéndez Pelayo, de Santander, e na Universidade Americana de Beirut, no
Líbano. É membro e vice-diretora da Academia Porto-Riquenha da Língua Espanhola. Filmou, junto com Car-
los Fuentes, José Saramago e Arturo Péres Reverte, um documentário especial sobre Cervantes (Las Rutas
de Quijote, Sevilha, 2007). Dentre seus mais de 200 artigos e 23 livros, destacamos San Juan de la Cruz y
el Islam (Colégio do México, 1985; Hiperión de Madri, 1990); El sol a medianoche. La experiencia mística:
Tradición y actualidad (em colaboração com Lorenzo Piera, Madri: Trotta, 1996); Vida en el amor/vida per-
dida en el amor: el cántico místico de Ernesto Cardenal (no prelo) e El Cántico Místico de Ernesto Cardenal
(também no prelo). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em linhas gerais, que rimentado. Mas os místicos autênticos talha distintos pontos da experiência
Mistério nos revelam as experiências sabem bem que nunca poderão articu- mística: o caminho hipotético da alma
místicas de Teresa de Jesus? Quais lar com a linguagem e a razão huma- ao longo de sete moradas espirituais
são os pontos centrais de sua mística na essa experiência, que ultrapassa os (representadas por castelos concêntri-
em sua opinião? limites da consciência e dos sentidos. cos): nas primeiras etapas ainda pu-
Luce López-Baralt – As experiências Teresa explicita sua impotência peran- rifica-se a alma (isto é, concentra-se
místicas de Santa Teresa – pensemos, te a linguagem, pois sabe muito bem em Deus) e nas últimas duas etapas
sobretudo, em suas Moradas – reve- que apenas pode dar uma ideia impre- já une-se com Deus. A autora também
lam-nos o Mistério eterno da união cisa do que, na realidade, lhe aconte- diferencia entre uma “visão imagina-
com Deus, que os místicos de todas as ceu além do espaço-tempo. tiva” e uma “visão intelectual”: com
persuasões religiosas dizem ter expe- Apesar de sua afasia, a santa de- esses nomes técnicos, a santa alude

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 69


aos estados alterados de consciência de maneira anônima e oral – a santa de oração e para elaborar suas teorias
em que a alma interior acede a ima- ignoraria onde ou quando ouvira falar místicas, na medida em que descreve
gens (visões de Cristo, os anjos etc.) pela primeira vez da metáfora. Mais o que ocorre em cada castelo. Trata-
e aos outros estados em que a união ainda, ignoraria a sua origem islâmica, se, pois, de uma amplificatio da anti-
é tão alta que não há possibilidade de para mim, já sem sombra de dúvida, à ga metáfora islâmica. Por outro lado,
registrar imagens ou palavras. luz dos inúmeros casos que pude docu- cada um dos castelos islâmicos costu-
mentar na espiritualidade sufi. ma ter uma cor diferente, enquanto
IHU On-Line – Em sua opinião, que Cabe pensar que essa transmissão os de Teresa são de fino diamante ou
novidades traz Teresa para a com- cultural, oral e espontânea, era algo claro cristal. Contudo, é preciso dizer
preensão do feminino em sua mística muito natural depois do diálogo que que Tirmidhi al-Hakim se antecipa por
e literatura? o cristianismo e o islã tiveram na Pe- séculos à santa com seus castelos ou
Luce López-Baralt – Teresa escreve, nínsula Ibérica ao longo de oito sécu- cidadelas de luz resplandecente.
sobretudo, para suas monjas e leva em los. Aí está a célebre “olé”, que vem É importante ter em mente que
consideração a sua situação particular etimologicamente de wa-Allah (Por falo dos castelos islâmicos que temos
na clausura, quando lhes explica a alta Deus!), que os árabes ainda exclamam documentados até agora – aproxima-
vida da alma. Usa imagens cotidianas, perante um artista ou quando se sen- damente sete ou oito –, mas é possível
com alusões à vida doméstica e cuida tem tomados por uma grande emoção. pensar que, se continuarmos investi-
da vida dura e encerrada que suas ir- É impossível determinar quando ou gando, surgirão novos casos, já que se
mãs de hábito levam: para elas, pas- como o primeiro cristão espanhol disse trata de um verdadeiro lugar-comum
sear pelos castelos da alma será uma a frase celebrativa árabe, mas ela ain- da mística islâmica.
libertação gozosa. A santa também da é empregada, constituindo um tes-
leva em consideração que suas leitoras temunho silencioso da importância dos IHU On-Line – Como analisa a simbo-
não são pessoas letradas nem cultas, rastros do islã na cultura espanhola. logia e a semântica utilizadas por Te-
e adapta seu estilo a essa condição. resa de Jesus em seus escritos místi-
Contudo, Teresa escreve para todos, IHU On-Line – Que outros elementos cos em geral? Como Teresa responde
homens e mulheres de todas as épocas e símbolos do sufismo e do cristianis- ao desafio de converter em palavras
e também de todas as religiões: o que mo dialogam no imaginário de Tere- a sua experiência mística?
dirime não é assunto nem masculino sa? Luce López-Baralt – Teresa, em pri-
nem feminino, nem antigo nem mo- Luce López-Baralt – Há muitos mais: a meiro lugar, aceita sua derrota fren-
derno, mas universal. metáfora do bicho-da-seda; a imagem te à linguagem mais de uma vez e se
da meditação vista em termos de um queixa do pouco que, na verdade, con-
IHU On-Line – Os estudos feitos pela jardim que deve ser regado com aque- segue comunicar sobre suas experiên-
senhora mostram que os símbolos dutos e canais; a estreiteza e a largura cias mais elevadas. Pois bem, quando
místicos mais importantes ou “origi- místicas; a árvore espiritual que cresce tenta explicá-las, faz-se eco da termi-
nais” utilizados por Teresa, como os no interior da alma nas águas da nos- nologia técnica mística que os gran-
“castelos interiores”, são de origem sa contemplação profunda; o conceito des mestres espirituais urdiram muito
islâmica ou uma adaptação do sufis- de morada ou etapa mística, que vem antes dela, desde São Paulo, a quem
mo. Como ocorreu essa mescla de da maqam ou morada islâmica; a noite ela cita indiretamente ao descrever o
linguagens religiosas? escura da alma, dentre outros. “rapto místico”, até São João da Cruz,
Luce López-Baralt – Miguel Asín Pala- cuja noite escura e termos técnicos
cios, o primeiro a propor uma filiação IHU On-Line – Reconhecendo essa ela repete de perto.
islâmica para os castelos teresianos, possível filiação de Teresa à tradição
ignorava a maneira em que ocorrera mística islâmica, como se dá a relei- IHU On-Line – A partir do ponto de
essa possível transmissão histórica, tura desses elementos por parte da vista da literatura histórica, quais fo-
já que Teresa, que não sabia latim, mística de Ávila? Qual é a “novida- ram as contribuições e o diferencial
também não sabia árabe. O mestre de” de Teresa? das obras de Teresa de Jesus?
suspeitava, no entanto, que uma ima- Luce López-Baralt – A santa reelabo- Luce López-Baralt – Santa Teresa é
gem mnemotécnica tão bonita e tão ra em detalhe a metáfora islâmica dos uma mestra consumada da vida es-
simples como a dos castelos podia ter- castelos, que costuma ser muito sim- piritual, declarada inclusive Doutora
se convertido em anônima e podia ter ples: o caminho da alma até si mesma da Igreja, apesar da cultura relativa-
sido transmitida por via oral. No meu é em forma de sete moradas/castelos mente modesta que possuía. Ela tem
próprio caso, pude encontrar muito concêntricos, e, em cada um deles, o mérito de reescrever os antigos en-
mais exemplos de castelos místicos is- avança a nossa vida mística até alcan- sinamentos espirituais de autores tão
lâmicos, dando razão a Asín. Concordo çar a união com Deus no sétimo caste- diversos como São Paulo, São Pedro de
com o mestre sobre o fato de que os lo. Teresa se detém muito mais do que Alcântara e São João da Cruz, e não
castelos devem ter começado a fazer os mulçumanos em cada um dos cas- tem receio em fundir esses ensina-
parte do folclore tradicional cristão telos e aproveita para nos dar lições mentos cristãos com imagens islâmicas

70 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


como a dos sete castelos, de grande vro espiritual que falava em chave ale- tórico-social, qual o papel e o valor
beleza plástica. Essa riquíssima fusão górica, inclusive em chave mística. da mística? Quem são os místicos de
cultural, unida à inovadora simplici- hoje?
dade com que a santa escreve, dota IHU On-Line – Em sua opinião, qual Luce López-Baralt – A mística, como eu
sua obra de uma originalidade e de um seria a marca característica da “mís- disse, é uma experiência sem frontei-
frescor muito grandes. tica feminina”, seja cristã ou islâ- ras e não está limitada a nenhuma reli-
mica? Que outras grandes mulheres gião nem credo. Ela é fundamental, por
IHU On-Line – Como a senhora analisa místicas a senhora destacaria? exemplo, para o diálogo inter-religioso,
a relação místico-erotismo em Tere- Luce López-Baralt – Há muitas escri- já que está na base de toda a espiritua-
sa? Como se dá em Teresa o vínculo toras místicas no Oriente e no Oci- lidade e não divide, como o dogma, mas
entre amor, sexo e o divino? dente: pensemos em Santa Hildegard, une. O teólogo católico Karl Rahner disse
Luce López-Baralt – Como muitos au- Santa Teresa de Jesus, Santa Rosa de que o crente do século XXI será místico
tores místicos, Teresa não tem proble- Lima, Santa Teresa de Lisieux, Santa ou não será crente: ele diz isso no sen-
mas para tentar expressar a sua rela- Gema Galgani, e em outras autoras tido de que a espiritualidade moderna
ção com o mundo transcendente em como Rabi’a al-‘Adawiyya, no sufis- dependerá cada vez menos dos dogmas
termos eróticos. Aí está a imagem do mo. O conteúdo essencial de seus en- separadores para atender mais as vivên-
anjo que lhe cravava o dardo no cora- sinamentos ou testemunhos místicos cias espirituais individuais. Daí o diálogo
ção, que é uma das mais conhecidas, é o mesmo, não importa sua religião. de Thomas Merton com os monges tibe-
e que Bernini celebrou na famosa es- Também trata-se essencialmente do tanos, que, com tanto respeito ele des-
cultura do Êxtase de Santa Teresa, que mesmo testemunho místico que deu creve em seu Asian Journal.
hoje pode ser vista na Igreja de Santa sua contrapartida masculina: a expe- Por outro lado, a psicanálise atual
Maria della Vitoria, em Roma. No en- riência mística é um estado alterado – pensemos em W. W. Meissner e Ana
tanto, quando a Reformadora fala de de consciência em que o ser humano María Rizzuto – está estudando sem
seus êxtases mais elevados, não os experimenta, para além da linguagem preconceitos a experiência mística,
erotiza, mas torna-se afásica. e dos sentidos, uma união sem inter- que já não considera como uma patolo-
Não devemos interpretar mal o uso mediários com Deus. gia, como outrora fizera Freud. A neu-
do imaginário nupcial por parte dos Dito isso, convém pontuar que es- rociência, de sua parte, também vai
místicos do Oriente e do Ocidente: sas místicas, com exceção de figuras descobrindo que “estamos conectados
o amor divino e o amor humano têm como Santa Hildegard, não tiveram para Deus”, já que o crente tende a
uma relação intrínseca porque aspi- acesso a uma educação formal, motivo ser mais saudável e mais feliz do que o
ram à união total e porque constituem pelo qual suas obras são mais simples não crente, constituindo-se assim em
a experiência mais intensa que um ser em terminologia e imagens, e em dis- um melhor candidato para a evolução
humano pode viver. O místico, ávi- quisições teológicas do que as dos mís- das espécies. Suspeito que estamos no
do por encontrar palavras adequadas ticos homens. Além disso, no caso das limiar de uma época que atenderá com
para expressar seu êxtase, não hesita, contemplativas cristãs, elas tendem a mais respeito e com mais entusiasmo o
pois, em se servir da apaixonada lin- falar mais de visões de Cristo do que estudo do fenômeno místico.
guagem do erotismo humano. Assim fi- de experiências místicas infinitas, im- Naturalmente, há muitos místicos
zeram São João da Cruz, Abu I-Hassan possíveis de articular com a linguagem. modernos que ainda precisam de es-
al-Nuri, de Bagdá, e Ernesto Carde- Esse é, por exemplo, o caso da mística tudo: Yogananda, Ernesto Cardenal,
nal, entre tantos outros. Além disso, feminina da Colônia (o Vice-Reino do Thomas Merton, Raimon Pannikar. Até
os místicos judeus e cristãos têm se Peru, do México, de La Plata etc.). mesmo agnósticos como Jorge Luis
servido do Cântico dos Cânticos como Borges admitem ter tido a experiên-
texto que ilustra uma experiência mís- IHU On-Line – Qual é a atualidade cia, que ele registra em poemas como
tica unitiva sob a imagem de um cân- de Teresa de Jesus na sociedade de Mateus XXV, 30 e em contos como
tico de bodas. Embora o apaixonado hoje? Em que pontos a mística tere- O Zahir. Muitas vezes, eu comentei
carmen bíblico não tivesse realmente siana nos questiona atualmente? pessoalmente com Borges essa expe-
uma intenção espiritual oculta quan- Luce López-Baralt – Creio verdadei- riência, que ele teve por duas vezes,
do começou a fazer parte do cânone ramente que Teresa é tão atual hoje quando jovem, e que tentou articular
escriturário hebraico, o certo é que, quanto no século XVI, porque a experi- artisticamente ao longo de sua obra.
graças a centenas de anos de exegese, ência mística não conhece épocas nem
 Paramhansa Yogananda (1893-1952): foi um
passou a ser interpretado como um li- pode se restringir a nenhuma religião iogue e guru indiano. É considerado um dos
específica. Pensemos, por exemplo, maiores emissários da antiga filosofia da Índia
 Gian Lorenzo Bernini (1598-1680): eminente quão instruído se sente o poeta místi- para o Ocidente. Através da Self-Realization
artista do barroco italiano, trabalhando prin- Fellowship (SRF), organização que fundou ao
cipalmente na cidade de Roma. Distinguiu-se co nicaraguense Ernesto Cardenal pelo chegar aos Estados Unidos, foi pioneiro ao pro-
como escultor e arquiteto, ainda que tivesse seu diálogo intertextual com Teresa. mover a prática da meditação por meio das
sido pintor, desenhista, cenógrafo e criador de lições que os estudantes recebiam em casa,
espetáculos de pirotecnia. Esculpiu numerosas pelo correio, para cumprir a sua missão mun-
obras de arte presentes até os dias atuais em IHU On-Line – Em nossa situação his- dial de difundir as técnicas de Kriya Yoga (Nota
Roma e no Vaticano. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line).

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 71


72 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
Entrevistas da Semana
China e Índia: estrelas ascendentes do capitalismo mundial
Para Francisco de Oliveira, a relação entre democracia e capitalismo é problemática, pois o
capitalismo não gosta muito de democracia

Por Graziela Wolfart

A
o fazer uma análise da crise na zona do euro e nos Estados Unidos, o sociólogo Francisco de Oliveira
afirma que “na Europa, os países menos importantes, mais fracos economicamente, como Portugal
e, na sequência, Espanha, vão pagar caro pela crise do euro, porque, por razões óbvias, eles têm
menos mecanismos de defesa”. Na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line ele
defende que “não haverá uma recuperação excepcional para os países mais afetados, sobretudo a
União Europeia, mas também não se caminha para um desenho de catástrofe”. Ou, em outras palavras, “não
haverá uma quebra geral, generalizada, como em 2008 e mais remotamente como nos anos 1930”. Para Chico
Oliveira, “pela primeira vez na história do capitalismo o centro da crise deslocou-se dos países mais desen-
volvidos para a periferia. Tanto o problema como as soluções residem, agora, no dinamismo do bloco Índia e
China. Os EUA estão numa situação muito difícil, não porque vá haver alguma catástrofe, mas é como o ditado
popular diz: ‘se correr o bicho pega e se ficar o bicho come’”.
Francisco de Oliveira formou-se em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife,
atual Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. É professor aposentado do Departamento de Sociologia da
Universidade de São Paulo – USP. Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir do cenário de seu impacto na Europa, principal- e suas políticas ficam dependendo de
crise instalado este ano, que relação mente Espanha e Portugal, em fun- acordos na cúpula europeia. Isso não
o senhor estabeleceria entre demo- ção da questão do desemprego? é bom para a democracia, nem nesses
cracia e capitalismo? Francisco de Oliveira – De fato, na países, tampouco na União Europeia.
Francisco de Oliveira – Essa é uma re- Europa os países menos importantes,
lação problemática. Embora tenha se mais fracos economicamente, como IHU On-Line – Em que sentido a crise
desenvolvido nas principais democra- Portugal e, na sequência, Espanha, vão na Europa e nos EUA mais impacta na
cias ocidentais, o capitalismo não gos- pagar caro pela crise do euro, porque, América Latina e no Brasil, especifi-
ta muito de democracia. Isso porque por razões óbvias, eles têm menos camente?
a democracia pressupõe exatamente a mecanismos de defesa. Submetidos às Francisco de Oliveira – O Brasil criou
liberdade de escolha para cada cida- regras do Tratado da União Europeia e novos clientes, fregueses, nas suas ex-
dão e isso não é bom para o capitalis- das regras estritas do Tratado de Maas- portações e, portanto, depende menos
mo. Nota-se uma crise em todo o mun- tricht, que determina proporções de agora do crescimento econômico na
do, não só no Brasil, da democracia gastos sobre o PIB e que serão reforça- União Europeia e nos EUA. Isso é o que
representativa, que está sendo engo- das com essa crise, países como Espa- faz com que o impacto da crise nesses
lida pela economia. Hoje as decisões nha e Portugal perdem mais autonomia países tenha uma repercussão mais
são tomadas não tendo em vista os in- atenuada no Brasil. Resta saber se os
teresses dos eleitores e dos cidadãos,  Tratado de Maastricht: também conhecido investimentos procedentes das duas re-
como Tratado da União Europeia – TUE, foi as-
mas tendo em vista, em primeiro lugar, sinado em 7 de fevereiro de 1992 na cidade giões continuarão vindo para o Brasil e
os interesses da economia. É uma crise holandesa de Maastricht. O Tratado de Maastri- não sendo desviados para países como
geral, e em países periféricos, como o cht foi um marco significativo no processo de a China e a Índia, que são as estrelas
unificação europeia, fixando que à integração
Brasil, ela é mais perigosa. econômica até então existente entre diversos ascendentes no firmamento mundial.
países europeus se somaria uma unificação
IHU On-Line – Como o senhor avalia, política. O seu resultado mais evidente foi a IHU On-Line – Que rumos o senhor
substituição da denominação Comunidade Eu-
de forma geral, a crise do euro e o ropeia pelo termo atual União Europeia. (Nota imagina que a crise vai tomar nos
da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 73


próximos meses, e como ficam, nes- pectivas econômicas para 2012? chegam mais a nós, são tão baratos. É
se cenário, a China e a Índia? Francisco de Oliveira – Não haverá uma aplicação simultânea de mão de
Francisco de Oliveira – Qualquer uma quebra geral, generalizada, como obra intensiva, com alta tecnologia.
economista ou sociólogo que servir em 2008 e mais remotamente como Isso mudou a geografia mundial do ca-
de profeta quebrará a cara. Mas, em nos anos 1930. Restam algumas peri- pitalismo.
geral, o que se pode dizer é que não ferias, como a América Latina e a Áfri-
haverá uma recuperação excepcional ca, que podem ser mais afetadas se o IHU On-Line – Que mudança na es-
para os países mais afetados, sobre- ritmo de crescimento dos grandes blo- trutura do poder econômico mundial
tudo a União Europeia, mas também cos arrefecer muito. Daí a crise baterá deve ser feita para que os EUA não
não se caminha para um desenho de com mais intensidade sobre nós e so- quebrem, levando vários países con-
catástrofe. China e Índia tentarão se- bre a África. O desenho que se obtém sigo?
guir com suas políticas. Aliás, a Índia vendo os dados e tendências não é de Francisco de Oliveira – A mudança já
já está bastante afetada. Há um de- uma catástrofe mundial. está acontecendo. Nem China nem Ín-
créscimo não do PIB, mas do ritmo de dia estão interessadas na quebra dos
crescimento do PIB. A China vai pôr IHU On-Line – O senhor pode descre- EUA, porque há uma relação simbió-
as barbas de molho para que não seja ver que tipo de “revolução” conside- tica entre o crescimento desses dois
obrigada também a diminuir o ritmo ra que a China e a Índia imprimiram grandes blocos. A China aplica seus
do seu crescimento. Em geral, serão ao capitalismo? excedentes monetários em bônus do
países pouco afetados, devido a suas Francisco de Oliveira – A revolução é o tesouro americano. Com essa apli-
políticas expansionistas interna e ex- seguinte: a Europa Ocidental e os EUA cação o tesouro americano faz seus
terna, e que estão lhe garantindo a levaram 300 anos para integrar cerca empréstimos à população americana.
condição de estrelas ascendentes do de 300 milhões de trabalhadores no Daí que a crise do chamado subprime,
capitalismo mundial. sistema produtivo. A China e a Índia, na verdade, é originada na Índia e na
sozinhas, fizeram isso em 50 anos, co- China. Por isso que as medidas que o
IHU On-Line – Como avalia a condu- locando no sistema produtivo cerca de governo americano toma para contra-
ção do Brasil de sua política econô- 800 milhões de pessoas. Isso é uma re- balançar a crise são, em geral, pouco
mica durante a crise internacional? volução que sequer o capitalismo ori- efetivas. Pela primeira vez na história
As decisões têm sido acertadas? ginal conseguiu fazer, de modo que os do capitalismo o centro da crise deslo-
Francisco de Oliveira – Em geral, sim. problemas atuais e também suas pro- cou-se dos países mais desenvolvidos
Não se cedeu à pressão para a redu- messas estão em vigorosa dependên- para a periferia. Tanto o problema
ção de gastos e para uma política mo- cia dessa mudança na economia políti- como as soluções residem, agora, no
netária mais ortodoxa e uma política ca mundial. Não é brincadeira colocar dinamismo do bloco Índia e China. Os
fiscal mais restritiva. Foram soluções populações que eram marginais, de EUA estão numa situação muito difícil;
bastante razoáveis que o governo bra- baixo consumo, que viviam basicamen- não porque vá haver alguma catástro-
sileiro tem tomado. te da agricultura, no mercado mundial fe, mas é como o ditado popular diz:
e, sobretudo, como força produtiva. É “se correr o bicho pega e se ficar o
IHU On-Line – Quais são suas pers- por isso que os produtos da China, que bicho come”.

Leia os Cadernos IHU ideias no site do IHU


www.ihu.unisinos.br

74 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


Aposta no consumo e na liquidez interna como resposta à
crise internacional
Para Amir Khair, a única forma possível de resolver a crise da Europa é ter uma redução substan-
cial na dívida, ou seja, os bancos não vão poder receber o que gostariam, porque é impossível
que os governos consigam gerar recursos suficientes

Por Graziela Wolfart

“O
s países ditos desenvolvidos não têm condições de consumir o que vinham consumindo.
Eles terão que ‘apertar os cintos’, não há alternativa. A única maneira que vejo como
possível recuperação - muito lenta - desses países será pela via da exportação, ou
seja, eles terão que ter uma sensível redução nos custos salariais, além de desvalorizar
ainda mais as suas moedas para ganhar poder competitivo internacional. Não espero
que esses países tenham um desenvolvimento no mercado interno, porque passarão por um emagrecimento de
vários anos”. A análise é do economista Amir Khair, em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line.
Na sua visão, “para a economia mundial, 2012 será um ano nada bom. Vejo como um ano de redução global
nas exportações, e de uma situação bastante conflituosa do ponto de vista social, especialmente nos países
desenvolvidos, que terão problemas bastante graves do ponto de vista de tentativa de arrocho em cima das
populações, como já vem fazendo a Europa, com resultados bastante negativos”.
Amir Khair é mestre em Finanças Públicas pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-SP. Foi secretário de Finanças
da Prefeitura de São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992). É consultor na área fiscal, orça-
mentária e tributária. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor ava- o que é difícil de ser pago porque e cujo consumo interno estivesse
lia, de forma geral, a crise do euro os juros já começam a perturbar as baixo, sem condições de compensar
e seu impacto na Europa? Quais são contas públicas. Isso ameaça os de- as perdas que irão ocorrer por con-
os países mais atingidos? tentores dos títulos desses países e ta das reduções das exportações no
Amir Khair – Essa crise começou com os bancos, que terão problemas sé- mundo todo. Os países que têm um
uma ponta na Grécia e agora ela se rios para receber. A única forma pos- comércio muito intenso com a zona
estende até a outra ponta, que é a sível de resolver a crise da Europa é do euro, como os EUA, o Japão e a
Itália, inclusive chegando até a Es- ter uma redução substancial na dívi- própria China, serão mais fortemen-
panha. A origem desta crise está na da, ou seja, os bancos não vão poder te atingidos pelo lado comercial. E
própria forma como a Europa vem receber o que gostariam, porque é os países que têm uma interconexão
sendo conduzida. Não existe disci- impossível que os governos consigam maior na questão bancária com os
plina fiscal, inclusive para os países gerar recursos suficientes. bancos europeus também serão mais
que propugnam a disciplina fiscal, fortemente afetados.
como França e Alemanha. Ao mesmo IHU On-Line - Quais as consequên-
tempo, esses países perderam poder cias de um possível esfacelamen- IHU On-Line - Qual sua opinião
de competição no mercado interna- to da zona do euro e de uma crise sobre a política de os países mais
cional. Eles têm custos mais elevados bancária global? ricos consumirem mais e exporta-
e dificilmente conseguem competir Amir Khair – As consequências se- rem menos, no intuito de retomar
com o leste asiático, por exemplo. riam dramáticas, pois atingiria todos o equilíbrio, como alternativa de
Além disso, eles têm uma dívida ex- os países, ninguém estaria imune a solução para a crise da zona do
tremamente elevada, normalmente isso. E pegaria mais intensamente euro?
superior a 100% da receita do PIB, os países cujos sistemas bancários Amir Khair – Os países ditos desen-

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 75


volvidos não têm condições de con- Vejo como um ano de redução global
sumir o que vinham consumindo. Eles
“No caso brasileiro, se nas exportações, e de uma situação
terão que “apertar os cintos”, não há bastante conflituosa do ponto de vis-
alternativa. A única maneira que vejo
desenvolver o mercado ta social, especialmente nos países
como possível recuperação - muito desenvolvidos, que terão problemas
lenta - desses países será pela via da
interno, teremos bastante graves do ponto de vista de
exportação, ou seja, eles terão que tentativa de arrocho em cima das
ter uma sensível redução nos custos
condições de ter um ano populações, como já vem fazendo a
salariais, além de desvalorizar ainda Europa, com resultados bastante ne-
mais as suas moedas para ganhar po-
de 2012 bastante gativos. Vejo bastantes conflitos so-
der competitivo internacional. Não ciais e intranqüilidade. Os governos,
espero que esses países tenham um
razoável, até mesmo do ponto de vista político, serão nor-
desenvolvimento no mercado inter- malmente derrotados. Já tem oito
no, porque passarão por um emagre-
superior a este ano” governos que caíram desde 2008, e
cimento de vários anos. esse processo vai continuar. Então,
uma política diferenciada na questão também teremos dificuldades sérias.
IHU On-Line - Em que sentido a cri- do depósito compulsório ajudando a Tudo vai depender das políticas que
se na Europa e nos EUA mais impac- facilitar a liquidez interna como res- forem adotadas. No caso brasileiro,
ta na América Latina e no Brasil, posta à crise internacional. se desenvolver o mercado interno,
especificamente? teremos condições de ter um ano de
Amir Khair – Na América Latina os IHU On-Line - Que paralelos o se- 2012 bastante razoável, até mesmo
países que têm exportações mais nhor pode traçar entre a crise atu- superior a este ano.
fortes para a área poderão sofrer um al e a crise de 2008?
pouco mais. De qualquer forma, se- Amir Khair – A crise de 2008 foi IHU On-Line - Quais os caminhos
rão atingidos na medida em que os originada nos EUA. Essa é uma cri- para as economias do planeta re-
preços dos seus produtos irão cair se originada na Europa e vem com agirem conjuntamente à crise, no
internacionalmente. Dependendo da uma intensidade maior, porque pega sentido de evitar o risco de espiral
forma como os governos desses paí- um espectro mais amplo. A econo- de instabilidade financeira mun-
ses irão atuar, poderão desenvolver mia americana vem se recuperando dial?
seus mercados internos, que ainda aos poucos, mas ela será muito du- Amir Khair – Vejo apenas a possibi-
não estão totalmente desenvolvi- ramente atingida, pois tem expor- lidade de rearranjo internacional no
dos. Então, eles têm essa válvula de tações expressivas para a zona do sentido de melhorar a participação
escape. O Brasil, particularmente, euro. Nesse sentido, ela, que ainda dos emergentes na riqueza mundial
tem uma posição mais confortável. está numa situação bastante frágil, ao lado de uma redução dos desen-
Ele tem uma exportação mais dilu- com uma taxa de desemprego ele- volvidos. Será um período de reajus-
ída entre os países do mundo e não vada e um crescimento econômico tamento a essa situação. Os salários
tem a economia tão dependente de baixo, será também atingida. O que nos países desenvolvidos tenderão a
exportação, constituindo uma posi- pode ajudar é a situação nos países refluir e os salários nos países emer-
ção bastante favorável nesse aspec- emergentes, que estão mais fortes gentes a subir. É uma forma natural
to. Temos um mercado interno muito do que estavam durante a crise de de um equilíbrio internacional não
grande, que tem formas internas de 2008. Eles se fortaleceram de lá para apenas mais justo, mas também mais
desenvolver, por exemplo, reduzin- cá e estão em condições de “aguen- natural, como resposta a essa crise.
do a taxa de juros bancária ao con- tar o tranco” dessa crise de uma
sumo, que é a mais alta do mundo maneira melhor do que tiveram em
desde 2000, uma aberração da eco- 2008. Lá, a crise foi fundamental-
nomia brasileira. O governo tem ins- mente do sistema financeiro. Agora,
trumentos para reduzir essas taxas a crise inicia na questão fiscal nos Leia Mais...
e, com isso, dar poder de consumo países da zona do euro e desemboca
>> Amir Khair já concedeu outras entre-
ao brasileiro. Fora isso, o Brasil de- no sistema financeiro. Ela tem um vistas à IHU On-Line. Confira:
tém uma colcha bastante confortá- duplo comando, fiscal e financeiro,
vel de recursos da ordem de mais de com repercussões bastante sérias • A crise do euro, a reestruturação geopolítica
400 bilhões de reais, que estão em em toda a economia mundial. e os países emergentes. Entrevista publicada no
sítio do IHU em 17-05-2010, disponível em http://
depósito compulsório no Banco Cen- bit.ly/tnKzea;
tral. A liberação desses recursos de IHU On-Line - Quais são as suas • Política econômica preventiva. “A redução da
forma que beneficie os bancos que as perspectivas econômicas para taxa Selic é positiva”. Entrevista publicada no sí-

estão numa situação de praticar uma 2012? tio do IHU em 03-09-2011, disponível em http://
bit.ly/v67PZF.
taxa de juros mais baixa pode ser Amir Khair – Para a economia mun-
uma boa alternativa. O governo teria dial, 2012 será um ano nada bom.

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SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 77


A mídia globalizada como base
cultural da plutonomia
Por Bruno Lima Rocha�*

Vez por outra o alto nível decisório de disseminação de novas mídias como
dos financistas globais se encarrega downloads de internet, TV a cabo e
de um momento sincero. O Citigoup satélite. Essas vias vêm aumentando
Research, uma subdivisão da Citigroup as audiências desproporcionalmen-
Global Markets (este por sua vez um te, e por consequência geram ade-
braço do Citigroup), gerou um concei- são para a cultura das celebridades,
to chamado de Plutonomy (plutono- com estrelas midiatizáveis tais como:
mia, um neologismo para plutocracia, jogadores de pense golfe e futebol,
mando e governo dos ricos). Tais do- pilotos de corrida, protagonistas da
cumentos ganharam difusão mundial indústria do entretenimento, super-
através do filme de Michael Moore modelos, desenhistas, os chefes de
(Capitalismo, uma história de amor, cozinha das celebridades, etc.
2009) e para nossa pesquisa serve Tais ícones do capitalismo têm pro-
como fonte original. A definição dos vedores contentes com esta ascensão,
consultores da gigante financeira é de como os controladores das vias de
um mundo que tende a naturalizar a distribuição de informações e dados
concentração de renda e aumentar a binários em escala mundial (como o
capilaridade das marcas e hábitos do Sistema Swift de compensação inter-
consumo de luxo. Ao contrário do que bancária e as transnacionais das re-
se difunde no senso comum, isso não des físicas da internet), os advogados
seria um “desequilíbrio societário ou de transnacionais e banqueiros que
ecológico”, mas sua própria nature- intermedeiam globalização e produ-
za. tividade, os CEOs em que conduzem
Segundo os analistas Ajay Kapur, o processo de convergência globaliza-
Niall Macleod e Narendra Singh (ver da com tecnologia, gerando assim um
este documento em http://thepara- aumento da produtividade. Dessa for-
graph.com/files/docs/CitigroupPlu- ma, aumenta a economia com a re-
tonomyRept2_200603.pdf), a globa- muneração da força de trabalho, logo
lização transnacional também opera transformando em ganhos diretos (via
reforçando sua adesão, fertiliza cora- empresas), ou indiretos, via repas-
ções e mentes através das tecnologias ses de recursos coletivos, através do

Bruno Lima Rocha é doutor e mestre em ciência política pela UFRGS, jornalista graduado pela
UFRJ e professor de comunicação social da Unisinos. Membro pleno do Grupo Cepos, onde coor-
dena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Globalização Transnacional e da Cultura do Capita-
lismo (NIEG); é editor do portal Estratégia & Análise. E-mail: <blimarocha@gmail.com>.

78 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


Estado. Assim, a mídia como entrete- “Esta forma de de um grupo de investimento de risco,
nimento e desinformação estrutural, no caso o Opportunity, por dentro das
contribui para a materialização da empreendimento e elites dirigentes e das frações de clas-
plutonomia como forma contemporâ- se dominante.
nea de dominação capitalista. negócio do O mesmo se dá em escala planetá-
Fica difícil entender um golpe ria, quando os estadunidenses cunham
quando só o que se sente é o impacto, capitalismo é (…) dois termos conceitualmente perfei-
e não é perceptível a autoria do ata- tos. Too big to fail and too big to jail!
que. Essas empresas pouco ou nada se aparentemente – ou seja, “Grande demais para falir
constrangem diante de instituições da e grande demais para ir preso!”. Os
modernidade republicana. Para além fictícia, tem natureza operadores de bancos de investimen-
da acumulação de tipo selvagem, obe- tos, empresas de seguros, consultorias
decendo a uma lógica rentista que, por especulativa e é incapaz financeiras, megacorretoras e bancos
vezes, prescinde do emprego direto hipotecários Merril Lynch, Lehman
para existir, o capital em sua forma fi- de gerar valor real em Brothers, Fannie Mae, Freddie Mac,
nanceira opera por dentro do aparelho AIG, todos sem exceção foram alvos
de Estado (como nos Bancos Centrais escala societária” de investigações federais nos EUA, ti-
e a defesa de sua “independência” e veram falências declaradas sendo de-
“tecnicidade”), faz trafegar seus bens pois salvos ou incorporados, sempre
simbólicos (dígitos binários represen- cultura tanto como norma (ser e dever com aos recursos oriundos do Tesou-
tando algum valor ou a expectativa ser) e representação (narrativas, esté- ro dos EUA. Até o presente momento
deste) e difunde sentido em escala de ticas, comunicação no sentido amplo), ninguém foi punido, estes dirigentes
massas através de mídia generalista e é retroalimentada pela superexposição empresariais e financeiros seguem em-
especializada. Essa forma de empre- a marcas e valores típicos do modus pregados em universidades de ponta,
endimento e negócio do capitalismo é, vivendi do topo da pirâmide social e no governo do Império ou em outras
por definição, aparentemente fictícia, de seus novos heróis, a classe mundial megacorporações (sempre com bônus
tem natureza especulativa e é incapaz gerencialista. de “produtividade”). O resultado foi
de gerar valor real em escala societá- Esses são a nova classe dominante um empobrecimento, o alastramento
ria. no mundo das sociedades anônimas da bolha imobiliária fraudulenta (gol-
O fato é que os cidadãos do pla- (S.A.), onde a propriedade acionária pe da pirâmide) levando a insolvência
neta se veem diante de um paradoxo se pulveriza, e as economias se atra- para os bancos europeus (que também
dominante. De um lado, os mecanis- vessam por fundos de investimento entraram na jogatina) e aumentando
mos fundamentais para explicar ra- (boa parte deles oriundos da poupança o endividamento público dos Estados
cionalmente o modelo capitalista de da força de trabalho, como os fundos Unidos. Já esta dívida opera como
civilização não são localizados em de pensão) e a relação com o Esta- lastro das reservas dos países do pla-
instituições formativas, como nas or- do em alto nível decisório é visceral. neta, com China, Japão, Reino Unido,
ganizações empresariais de mídia ou Haja vista, no Brasil, o pânico no an- os países da OPEP e o Brasil entre os
mesmo nas instituições de ensino. De dar de cima gerado pela Operação Sa- cinco maiores detentores de títulos
outro, a dimensão cultural que essa tiagraha, quando a Polícia Federal por do tesouro do Império (dados de 2011,
dominância toma, compreendendo pouco não expôs ao país a penetração Serasa Experian).

SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 79


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis Entrevista com Maureen Santos, formada em Relações
nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) Internacionais, pela Faculdade Estácio de Sá, e mestre
de 13-12-2011 a 16-12-2011. em Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ
“Belo Monte é o símbolo do fim das instituições ambien- Confira nas Notícias do Dia de 15-12-2011
tais no Brasil” Acesse no link http://migre.me/7aMTv
Entrevista especial com Biviany Rojas Garzon, advogada O compromisso político firmado entre os países que partici-
e cientista política param da 17ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro
Confira nas Notícias do Dia de 13-12-2011 das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (ou COP-17),
Acesse no link http://migre.me/7aMqm em Durban, demonstra que “ainda existe uma esperança
Apesar de o artigo 6 da Convenção 169 da Organização em relação a esse espaço multilateral de discussão”, avalia
Internacional do Trabalho – OIT garantir o direito à con- Maureen Santos.
sulta prévia aos povos indígenas sempre que alguma me-
dida legislativa ou administrativa afetá-los, o acordo não A UPP não convence a juventude da periferia
está sendo cumprido pelo governo federal brasileiro. Entrevista especial com Julio Ludemir, jornalista e autor
de Sorria, você está na Rocinha (São Paulo: Record)
Código Florestal: “a implementação da lei será compl- Confira nas Notícias do Dia de 16-12-2011
exa” Acesse no link http://migre.me/7aN4F
Entrevista especial com Raul do Valle, advogado espe- Depois de dez anos sem frequentar a Rocinha, o escritor
cialista em meio ambiente Julio Ludemir voltou a um dos cenários de suas histórias
Confira nas Notícias do Dia de 14-12-2011 e pode observar um contexto diferente ao caminhar com
Acesse no link http://migre.me/7aMEA tranquilidade e segurança pelas ruas da favela. O poder
Na avaliação de Raul do Valle, o novo texto do Código paralelo deixou de operar, mas os traficantes continuam
Florestal, aprovado na semana passada pelo Senado, irá sendo atores políticos minoritários. Apesar da pacificação,
gerar insegurança jurídica em vários aspectos. ressalta, as pessoas ainda têm medo e “este fantasma de
que o tráfico pode voltar depois de 2016 permanece na
COP-17: um compromisso político cabeça de todo mundo”.

Leia as Notícias do Dia e a


Entrevista do Dia no site do IHU em

www.ihu.unisinos.br

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Confira as publicações do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica


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SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 83
IHU Repórter

Pedro Ignácio Schmitz


Por Thamiris Magalhães | Fotos Thamiris Magalhães

U
m dos fundadores da Unisinos, o padre jesuíta Pedro Ignácio Schmitz
abriu a porta de sua sala no Instituto Anchietano de Pesquisas - IAP, em
São Leopoldo, RS, para contar à IHU On-Line as inúmeras histórias nos
seus 82 anos de vida. Pesquisador sênior e bolsista de produtividade do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
desde 1969, Ignácio atualmente coordena o Instituto Anchietano de Pesquisas, lo-
calizado na antiga sede da Unisinos. Tendo implantado o curso de antropologia
no sul do Brasil, hoje Schmitz se dedica às pesquisas que realiza no Instituto e na
elaboração de artigos e pesquisas acadêmicas. Neste ano celebrou 50 anos de sa-
cerdócio. “Sempre me perguntam: ‘qual é a sua paróquia? ’. O pessoal de fora olha
para mim e questiona: ‘qual é a sua paróquia mesmo?’ E eu respondo: ‘a minha
paróquia é a universidade. Essa é a minha missão. Onde eu sou sacerdote, pesqui-
sador, professor, companheiro’.” Conheça um pouco mais de suas vivências.

Origem – Nasci em Bom Princípio, Magistério – Fui para o magistério Balduino Rambo. Ele era professor de
no Rio Grande do Sul, no dia 30 de no Colégio Anchieta, em Porto Alegre. Antropologia no curso de História. E,
agosto de 1929. Meus pais eram peque- O colégio recebia só homens, perten- quando eu terminei os três anos, que
nos agricultores. Sou o quinto de 11 fi- cente à classe alta da capital. Então, era o bacharelado, ele me perguntou
lhos. Desses, três morreram pequenos. tive que aprender a dar aula, a lidar se eu queria trabalhar com ele na Uni-
Outro, o mais velho, faleceu recente- com jovens. Fiz quatro anos de magis- versidade. Respondi que sim. Fiquei
mente com 89 anos. Ainda somos sete tério e, ao mesmo tempo, estava estu- um pouco triste porque o outro padre
e muito solidários uns com os outros. dando Geografia e História na Univer- que me tinha levado para ser suces-
Reunimo-nos com muita frequência. sidade Federal do Rio Grande do Sul sor dele ficou sem sucessor. Entrei
Nasci numa família católica. Meu pai – UFRGS para me tornar historiador, na Universidade com 27 anos. Estava
era descendente de alemães, e minha substituir um padre idoso que queria fazendo meu curso de História e Geo-
mãe de origem suíça. Todos daquela um continuador, Pe. Luiz Gonzaga Ja- grafia e comecei, em 1958, a lecionar
pequena região de Bom Princípio. eger. na UFRGS, estudando em uma sala e
dando aula na outra. Tinha terminado
Seminário – Com doze anos de ida- Ingresso na academia – Na UFRGS,  Balduíno Rambo: sacerdote jesuíta, profes-
de, fui para o seminário estudar, tor- encontrei outro sacerdote, famoso, sor, jornalista, escritor, botânico e geógrafo
brasileiro. Sobre ele, consultar o livro de Luiz
nar-me padre. Estudei cinco anos no uma pessoa muito boa, que é o Pe. Osvaldo Leite Jesuítas cientistas no sul do Bra-
seminário em Salvador do Sul-RS. De-  Luiz Gonzaga Jaeger (1889-1963): sacer- sil (São Leopoldo: Unisinos, 2005). Rambo pu-
pois, fiz dois anos de noviciado em Pa- dote jesuíta. Trabalhou em Porto Alegre e em blicou um livro de contos em dialeto alemão,
fins de 1924 começou a trabalhar no Colégio em dois volumes, intitulado O rebento do car-
reci Novo-RS. Fiz mais dois de estudos Anchieta. Fez excursões para a região das mis- valho (São Leopoldo: Unisinos, 2002). Em 1942
humanísticos ainda em Pareci Novo. sões para estudar o histórico das colônias jesu- publicou sua primeira grande obra, A fisiono-
Posteriormente fiz três anos de Filoso- íticas. Foi o primeiro padre a escrever extensa mia do Rio Grande do Sul, uma descrição deta-
bibliografia sobre o assunto no Brasil. O padre lhada da geografia do estado, incluindo mapas
fia no Colégio Cristo Rei, aqui em São Jaeger também foi sócio fundador do Instituto e 30 ilustrações paisagísticas, feitas a partir
Leopoldo. Após isso, comecei minha Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, de fotos áereas tiradas por ele em viagens por
carreira nesse pequeno mundo. professor do Colégio Anchieta em Porto Alegre, todo o território, realizadas com um avião do
e fundador do Instituto Anchietano de Pesqui- terceiro Regimento de Aviadores de Canoas.
sas. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

84 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385


o bacharelado que, naquele tempo, no Rambo. Então, tive que assumir as Brasil. Nessa época, eu já era doutor
era independente. No quarto ano fiz duas cátedras que ele tinha na UFRGS, livre docente. Depois, participei de
a licenciatura. Ao mesmo tempo, con- enquanto estava estudando Teologia. muitas bancas de livre docência. Com
tinuava lecionando. Então, em 1959, Ou assumia ou perdia. E não poderia meu título, consegui reconhecer o meu
vim estudar Teologia novamente no perder. Na constituição seguinte que conhecimento que tinha acumulado
Colégio Cristo Rei. Concomitantemen- se fez, fui efetivado no posto em que em vários tipos de cursos que fui fa-
te, continuava lecionando em Porto estava, que era o catedrático. Naque- zendo pela América. Fui reunindo co-
Alegre. le tempo, era possível ser catedráti- nhecimentos porque na universidade
Lecionei sempre para o curso de co apenas com a licenciatura. Como não havia nada disso. Nós que introdu-
Antropologia na UFRGS. Na Unisinos, catedrático, em uma universidade zimos alguns cursos. Fiz trabalhos com
na área de Antropologia e Arqueologia. federal, começaram a aparecer ver- uma professora francesa que vinha es-
Na UFRGS, pertencia ao departamento bas e oportunidades, porque esse era cavar no Paraná; passei dois meses na
de Ciências Sociais e a Arqueologia era o posto mais alto da instituição. Não Universidade de Córdoba, na Argenti-
do departamento de História. Aqui na perguntavam que título você tinha, só na. Posteriormente, fiquei um ano na
Unisinos, como sou fundador, comecei se era catedrático. Se fosse, não tinha Universidade de la Plata. Fiz estágio
a lecionar antropologia e, à medida discussão. no Museu de Viena e fui acumulando
que fomos criando a arqueologia bra- conhecimentos para poder dizer que
sileira, íamos introduzindo a antropo- Viagens – Meu quinto ano de Teolo- realmente eu era um doutor autodita-
logia e a arqueologia nas universida- gia fiz na Áustria. Foi quando conheci da, tendo conhecido muitas coisas.
des. Uma coisa curiosa é que quando a Europa, trabalhei em laboratórios,
iniciamos não havia nem arqueologia visitei muitas coisas por lá e fiz o meu Arqueologia – Quando o professor
nem antropologia nas universidades. curso. Com isso eu estava pronto como Balduino Rambo me convidou para le-
A antropologia que estudei na UFRGS jesuíta, com 33 anos. Foi quando vim cionar na UFRGS, ele era antropólogo,
era europeia, uma coisa completa- para o prédio do Instituto Anchietano a cátedra era de antropologia, então
mente distante de nós, pois ainda não de Pesquisas, que naquele tempo abri- ele me disse que não valia a pena dois
existia no Brasil. Lembro que em 1965 gava a Faculdade de Filosofia, Ciências professores jesuítas trabalharem o
eu já era professor há sete anos na e Letras, a Faculdade de Economia e mesmo tema. Foi quando ele me pro-
Universidade. E, neste ano, comecei a a de Direito que, em 1969, deram ori- pôs que eu estudasse os índios mortos
receber a primeira verba do Ministério gem à Unisinos. De 1967 a 1969, fui e ele, os vivos. E disse: “não tem nin-
da Cultura, fundador do Instituto do o último diretor da Faculdade de Fi- guém fazendo arqueologia no Brasil.
Patrimônio Histórico e Artístico Nacio- losofia. Depois, fui fazer estágio de Você pode fazer carreira nesse campo
nal (IPHAN), e eu era catedrático. Fiz um ano na Argentina, no Museu de la da arqueologia”. Foi quando comecei
a convocação dos arqueólogos amado- Plata, para reunir um pouco de maté- a trabalhar aqui no Rio Grande do Sul,
res do Rio Grande do Sul. Aparecerem ria para a minha disciplina, a arqueo- em Santa Catarina, Paraná, Goiás, To-
pouco mais de 40 amadores de arque- logia, porque eu nunca tive aula dessa cantins, Mato Grosso do Sul, Bahia,
ologia. Nenhum profissional. Eram to- disciplina. Naquele tempo, não havia Pernambuco. Na maior parte desses
dos licenciados apenas. Isso em 1967. pós-graduação no Brasil. estados eu era o primeiro arqueólo-
Até porque a pós-graduação surge um go que pisava no lugar. E essa era a
pouco mais tarde. Em 1968, selecionei Livre docência – Só entre 1972 e grande vantagem que nós tínhamos.
aqueles que estavam trabalhando nas 1976 que o Ministério da Educação Criamos todos os modelos que depois
universidades. Foi quando começamos permitiu que pessoas formadas há dez os outros ou copiaram ou criticaram.
a introduzir a arqueologia e antropolo- anos ou que tivessem cinco anos de en- Antes de nós inexistiam outros pesqui-
gia nas universidades aqui do sul. sino em nível superior pudessem fazer sadores. E isso me deu uma repercus-
Atualmente leciono na Unisinos, o concurso de livre docência. Fiz esse são importante dentro do país.
no Programa de Pós-Graduação em concurso e, com isso, ganhei o título
Arqueologia e coordeno as pesquisas de doutor e todos os títulos abaixo Pesquisa – Desde 1969, sou bolsista
no Instituto Anchietano de Pesquisas, dele. Hoje, sou doutor livre docente, de produtividade do CNPq. Atualmen-
que tem uma equipe de arqueologia. que é o conhecimento mais alto den- te sou pesquisador sênior do mesmo
Avalio também a parte de botânica e tro da universidade hoje. A partir da órgão. Como o Pe. Balduino Rambo
as outras coisas que nós temos aqui no década de 1960, começaram a surgir disse: “você pode fazer carreira”. E
Instituto. E faço publicações, pesqui- os primeiros cursos de pós-graduação eu fiz. Executei uma tarefa importan-
sa. Ainda vou para o campo, de vez no Brasil, tendo sido implantados pe- te. E quando chegamos à faixa dos 80
em quando. Além disso, sou bolsista los próprios doutores autoditadas. anos, todo mundo pendura mais uma
do CNPq até 2017, quando minha bolsa medalha.
poderá ser renovada. Méritos – Implantei a pós-gradu-
ação em Antropologia na UFRGS, em Sacerdócio – Em 1961, com 32
Cátedra – Em 1961, faleceu, aos 1975, uma vez que eu era o titular, e anos, ordenei-me padre. No último dia
56 anos, meu catedrático, Pe. Baldui- hoje é um dos melhores programas do 7 de dezembro celebrei meus 50 anos
SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385 85
uma missa e reuniram brutal. Mas isso faz com que o Brasil
a comunidade para caminhe de uma forma fantástica para
fazer uma festa. São frente. Sou um dos fundadores da pós-
1.300 mulheres foco- graduação no Brasil. Estive no comitê
larinas no mundo in- do CNPq durante cinco mandatos e
teiro e 1.200 homens. isso são 13 anos. Estive no Conselho
Trata-se de uma enti- Consultivo do IPHAN durante quatro
dade feminina. A pre- anos. Então, tenho uma visão de como
sidente sempre é uma as coisas evoluem. Lembro que quan-
mulher eleita de qua- do comecei como bolsista no IPHAN,
tro em quatro anos. em 1969, ele tinha apenas duas salas.
Atender às focolarinas E era muito fácil falar com o diretor.
é o meu sacerdócio Depois disso, alternadamente, du-
mais pleno, onde eu rante cinco mandatos, representei os
tenho a oportunidade arqueólogos no CNPq. E, hoje em dia,
de receber todo aque- para você falar com o presidente ou
le povo. Chegam a se mesmo com o diretor, é outra história.
reunir ali, no centro Atualmente o CNPq tem 15 mil pesqui-
de reunião que atende sadores com bolsa. Trabalho de Lula.
as pessoas de todo o Hoje, o Brasil tem 1.200 programas de
sul do Brasil, 450 pes- pós-graduação. Formamos anualmente
soas. uma base de 35.000 mestres e 1.200
doutores. Nenhum outro país latino-
Lazer – Trabalho. americano chega perto disto. Até pou-
De fato, ultimamente co tempo atrás nós escrevíamos nossos
encontro-me melhor artigos e qualquer revista servia. Nos
fazendo isso. Assisto dias atuais, se você não escreve em
Jornal Nacional, Jor- uma revista internacional com catego-
nal da Band e só. Fora ria A o seu trabalho vale zero para a
isso, eu não jogo, não Capes. Em arqueologia, nós não temos
passeio. Mas leio, as- nenhuma revista Qualis A no Brasil.
sino revistas científi- Então, escrevemos para quem? Claro
cas de minha área de que, ainda, as políticas universitárias
como sacerdote. Celebro missas todos conhecimento, e a mi- e científicas não se comparam com os
os dias da semana, de segunda a sexta, nha vida está concentrada na ativida- Estados Unidos. No entanto, nós esta-
às 18 horas, na nossa capela, em casa. de profissional que realizo – científica mos entre os primeiros em produção
Além disso, tenho uma comunidade – e religiosa, onde eu me divirto e me científica, em formação pós-graduada.
religiosa muito bonita que eu atendo. ocupo. Não vou à academia, não tenho Já estamos bem à frente. Não tem ne-
Trata-se das focolarinas e focolarinos, nenhum jogo em especial, não assisto nhuma comparação com outros países
que é uma instituição leiga, que tem a filmes há muito tempo. Não leio mais latino-americanos.
o seu centro de reunião do sul do Bra- romance etc. Ademais, com o Lula aumentaram
sil encostado na Unisinos, no Portão as bolsas de formação, pesquisa e as
F. Sou capelão deles faz muitos anos. Política universitária no Brasil universidades federais. Além disso,
Nos fins de semana, estou à disposição – Neste momento, o Brasil é um país atualmente existe um programa nes-
deles. Trata-se de uma instituição que onde vale a pena viver. Já estive em sas instituições, chamada Reuni, que
reúne pessoas consagradas, casais fo- outros países. Vivi na América Latina, as provoca no sentido de tomarem ini-
colarinos e uma boa quantidade de in- conheço bastante por lá e digo que não ciativas; a verba que recebem depen-
divíduos que vivem uma vida religiosa há nenhum desses países onde se pos- de das ações que elas tomam.
diferente. Todos trabalham. Mas eles sa viver tão bem como o Brasil. Ape-
têm uma forma de encarar o mundo sar de toda a bagunça, que é uma de Sonho – Ainda poder viver mais
muito interessante, onde predominam nossas características, comparo e digo alguns anos, brincando no jardim de
o amor e a unidade. São pessoas ex- que não há lugar melhor de se viver. Deus. Essa é a minha visão do mun-
tremamente dedicadas, amorosas e Por exemplo: comparo a universidade do. Eu brinco no jardim de Deus. Faço
queridas. Um exemplo: em um domin- brasileira com a argentina ou mesmo um brinquedo sério, mas eu brinco.
go agora do mês de dezembro, quando com a mexicana e peruana e digo que Isso nasceu de um encontro aqui no
eles souberam que eu estava celebran- elas são bem inferiores que as nos- Instituto Anchietano de Pesquisas,
do 50 anos de sacerdócio, convocaram sas. A academia brasileira nos cobra no pátio, com a filha da Ivone, nos-
brutalmente. A Capes hoje em dia é sa secretária. A menina era pequena,
86 SÃO LEOPOLDO, 19 DE DEZEMBRO DE 2011 | EDIÇÃO 385
estávamos parados lá embaixo, e no de Pesquisas tem como fundado- o meu provincial que estava dis-
ela puxava a calça da mãe e dizia: res os padres Balduino Rambo, Luiz posto a ir para esse estado, para
“Mãe, me cuida. Eu vou brincar Gonzaga Jaeger e mais uma dúzia o meio dos índios. Ele olhou para
no jardim”. Agora, fazendo uma e meia de pesquisadores jesuítas mim e disse: “quem sabe a sua
analogia, eu digo assim: “Pai, me de Física, Química, Matemática, missão não vai ser lá. Quem sabe
cuida. Eu vou brincar no teu jar- Botânica, Zoologia, Antropologia não vai ser aqui”. Depois, abriu a
dim”. Esse é o meu sonho e essa e outras coisas. Com a morte dos missão para o Japão e disse no-
é a minha realidade. Eu continuo fundadores, assumi a direção por 40 vamente para ele que estava dis-
brincando no jardim de Deus. A ci- anos. Então, além da universidade, ponível a ir. E ele me olhou nova-
ência faço com muita seriedade, passo o meu dia aqui. E o Instituto mente e disse: “Quem sabe a sua
a religião também. Então, estou é a minha casa. Pe. Aloísio Bohnen missão vai ser por aqui”. E assim
nesse jardim de Deus brincando. atualmente é o diretor do Instituto. a minha missão foi sendo definida
Hoje em dia coordeno as pesquisas nesses chamados. Quando termi-
Unisinos – É o meu chão. Sou realizadas aqui. O Instituto está en- nei a Filosofia, alguém me disse:
anterior a Unisinos e um de seus costado na Unisinos. Todos os jesuí- “Você vai ser historiador”. Entrei
fundadores. Sempre trabalhei na tas que estão na universidade fazem na academia para estudar, alguém
instituição, por isso nunca aceitei parte dele. No entanto, é uma enti- me pergunta: “Você quer trabalhar
tempo integral na UFRGS. Atual- dade própria, que tem seu estatuto comigo na universidade?” E assim
mente leciono apenas na Unisi- e sua direção. E eu represento a sua a minha missão foi sendo mode-
nos. continuidade. As minhas aulas, por lada. Assumi como catedrático na
exemplo, não dou na Unisinos, e sim universidade e Pe. Balduino Ram-
Instituto Anchietano de Pesqui- no Instituto. Ademais, a minha pes- bo me disse: “Não tem ninguém
sas – Tem outra coisa que também quisa está amarrada diretamente ao fazendo arqueologia no Brasil.
me caiu do céu: o Instituto Anchie- Instituto Anchietano de Pesquisas. Você pode fazer carreira”. Assim
tano de Pesquisas. Quando eu era Ele, em termo de instituições pú- a minha missão foi se construindo
jovem, com 26 anos, estava lecio- blicas, era mais reconhecido como sem eu tomar nenhuma decisão, só
nando no colégio Anchieta. Um dia, pesquisa do que a universidade, dizendo: “Obrigado, Senhor, pode
Pe. Balduino Rambo e uma porção porque fazia a pesquisa da univer- mandar mais”.
de outros pesquisadores jesuítas sidade.
disseram: “Nós vamos fundar uma 50 anos de sacerdócio – Este
instituição para ajudar os jesuítas Frase – Continuo a brincar no ano, no dia 7 de dezembro, ce-
pesquisadores dispersos por toda jardim de Deus. lebrei os meus 50 anos como sa-
essa região do sul”. Então, resolve- cerdote. E, sempre me pergun-
ram criar o Instituto Anchietano de Autodefinição – Jesuíta, na tam: “Qual é a sua paróquia?”. O
Pesquisas. E precisavam de alguém verdade, tentando ser um jesuíta. pessoal de fora olha para mim e
para escrever a ata da fundação. Lembro-me, quando era noviço, questiona: “Qual é a sua paróquia
Eu estava no pátio, quando me cha- que nós tínhamos missão entre os mesmo?” E eu respondo: “a minha
maram perguntando se eu poderia índios do Mato Grosso. E disse para paróquia é a universidade. Essa é
escrever a ata. Aceitei. Com isso eu a minha missão. Onde eu sou sa-
sou um dos fundadores do Instituto.  Aloísio Bohnen: sacerdote jesuíta, ex- cerdote, pesquisador, professor,
reitor da Unisinos e atual diretor do Ins-
Isso em 1956. O Instituto Anchieta- tituto Anchietano de Pesquisas. (Nota da companheiro”.
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Destaques
XIII Simpósio Internacional IHU: Igreja Cultura e Sociedade
A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica
De 2 a 5 de outubro de 2012 - Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo/RS
Informações e inscrições: (51) 3590 8474 ou 3590 8247 – www.ihu.unisinos.br

OBJETIVO GERAL: Debater em perspectiva transdisciplinar a semântica do Mistério da Igreja no contexto


das novas gramáticas da tecnociência, desenhando possibilidades e perspectivas de interlocução com a
nova cultura.

CONVIDADOS JÁ CONFIRMADOS:
• Prof. Dr. Christoph Theobald, Centre Sèvres, Paris; Prof. Dr. George Coyne – Vatican Observatory Foun-
dation – Itália; Prof. Dr. Joe Marçal Gonçalves dos Santos – PUCRS; Prof. Dr. José Maria Vigil – ASETT/AL;
Profa. Dra. Lúcia Pedrosa de Pádua - PUC-Rio; Prof. Dr. Manuel Hurtado – FAJE/MG; Prof. Dr. Marcelo
Gleiser – Dartmouth College – Estados Unidos; Prof. Dr. Mario de França Miranda – PUC-Rio; Profa. Dra.
Mary Ann Hinsdale – Boston College – Estados Unidos; Prof. Dr. Paul Valadier – Centre Sèvres, Paris; Prof.
Dr. Peter Phan – Georgetown University – Estados Unidos; Prof. Dr. Roger Haight – Union Theological
Seminary – Nova Iorque.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Analisar transdisciplinarmente os discursos, as linguagens, os signos e os símbolos teológico-religiosos
e seus significados para a cultura e a sociedade atual.
• Refletir sobre as várias formas de interlocução da Igreja com a cultura contemporânea.
• Discernir, dentre o atual pluralismo semântico, vias possíveis para a escritura do Mistério da Igreja que
propiciem o diálogo inter-religioso e intercultural que são expressos pelos novos sujeitos socioculturais.
Em sua programação, o simpósio, destinado a professores(as), pesquisadores(as), estudantes e comuni-
dade em geral, inclui grandes conferências, minicursos, apresentações de comunicações e pôsteres.

Confira a programação completa em http://bit.ly/rx2xsL

Congresso Continental de Teologia


O evento será realizado de 8 a 11-10-2012. Confira a pro-
gramação completa em http://bit.ly/rP3rAZ.

Apoio:

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