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EM BUSCA DAS VOZES DA MINHA PESQUISA: ausculta atenta das potências

narrativas de si e dos outros

Thiago César Carvalho dos Santos

VOZES, OZES, ZES, ES... SSSS. Por entre uma profusão de vozes na
multidão, fecha-se os olhos para tentar escutar o sussurro; o silêncio daquelas vozes
que ainda não saíram, que estão abafadas, mutadas. Essa é uma das tarefas que
esse exercício propõe. Trata-se de tentar encontrar quais são as vozes em silêncio
dentro do meu processo de pesquisa para a escrita da dissertação de mestrado que
apresentarei até o ano de 2022 no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.
Como se propor a escutar, a dar voz, àquelas e àqueles que jamais foram
escutados? Como dar ouvidos àquilo que jamais foi dito, que nem sequer pode ser
dito, que é incomunicável? Como escutar aquilo que é tão intrínseco à existência
singular, que não consegue ser transposto em escrita ou fala? É certamente uma
proposta complexa, desafiadora e em alguma medida impossível; mas que nesse
momento me coloco à experiência de tentar encontrar caminhos possíveis para tal.

1. Primeiro ato: dentre as vozes, aquela da VEZ

Umas das primeiras vozes que proponho a escutar na minha pesquisa é talvez
uma que, até então, havia restado silenciada por muito tempo: a minha própria voz.
Algo que se tornou nítido para mim há pouco tempo é que a minha pesquisa está
intrinsecamente ligada a mim mesmo, esse locutor que vos fala.
A proposta do trabalho é jogar luz ao caráter artificial e ficcional que os papéis
e os códigos de sexo, gênero e sexualidade possuem, de modo a evidenciar a
imprescindibilidade dessas naturalizações para o projeto de produção capitalista; para
então, em seguida, pensar, analisar, inventar, propor, experimentar estratégias não
só de resistência, mas de desinstituição dessa estrutura normativa a partir da
plasticidade do corpo e do que poderia se chamar de performatividade queer.
Sendo assim, hoje consigo reconhecer bem que a produção teórica da minha
pesquisa está umbilicalmente vinculada com uma produção subjetiva em mim. O
reconhecimento da minha identidade como produto – plenamente intencional ou não
– de técnicas biopolítica de subjetivação, as quais são absolutamente artificiais e do
meu próprio corpo como espaço potente para produção de outros modos de existir e
estar nesse mundo, tem cada vez mais dado abertura para pensar o que este corpo
pode fazer.
Sendo assim, dentro e fora da minha pesquisa todo esse processo tem sido
essencial para efetivamente dar voz para esses murmúrios que meu corpo fazia
ressoar internamente, e que outrora não consegui entender muito.
A proposta é muito inspirada pelos trabalhos recentes de Paul Preciado, que
combina elementos autobiográficos e de ficção para criar o que se pode chamar de
autoficção1. Bakhtin (2006) diferencia autobiografias de autoficcções entendendo
essas últimas como atos literários muito mais próximos do plano artístico, em razão
do comprometimento com o belo e o fantasioso. Nesse sentido, uma autoficção seria
formada pelo uso de recursos ficcionais combinados com elementos da biografia do
autor para construir uma narrativa. Desta forma, na autobiografia, o elemento trazido
à tona é o Eu e a vida do autor, enquanto na autoficção o próprio texto literário se
torna primeiro plano da narrativa.
É importante sempre lembrar das considerações de Bahktin, bem sintetizadas
pela pesquisadora Marilia Amorim (2002), as quais importa diferenciar o locutor do
texto e a voz do autor. Segundo o autor, o locutor seria um personagem do texto, o
qual jamais poderia ser idêntico ao sujeito da enunciação, qual seja o próprio autor.
Existe sempre um véu leitoso e opaco que diferencia ambos, de modo que por mais
intentada uma autenticidade no processo de escrita, algo sempre fica de fora. O texto
é editado, cortado, apenas uma visão parcial da voz do autor.
Sendo assim, a proposta de escrita que estou desenvolvendo é justamente
tentar expor, a partir de elementos autobiográficos combinados com ficção, essas
clandestinidades da vida privada, da minha vida privada. Ciente da plasticidade do
texto e do corpo, a aposta é na construção de uma autoficção na escrita e as
inscrições corpóreas.

1
Preciado faz isso brilhantemente em textos como “Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica” e “Um Apartamento em Urano: crônicas da travessia”. Segundo o autor (2020),
“a filosofia transforma-se numa linguagem de ficção política” que permite imaginar um novo mundo.
2. Segundo ato: nas vozes tem também o SEO(u)

Acima, explicitei o caráter autoficcional que a escrita da dissertação de


Mestrado intentar possuir. Entretanto, pmporta ressaltar, como bem lembra Amorim
(2002), que não se trata de um monologismo.
Isso, primeiramente pois, em uma dimensão, o próprio fato do texto estar
sempre direcionado um destinatário/leitor, isso faz com que ele seja dialógico. A
autora explica o gesto de enunciar, o qual “põe e supõe sempre um outro”
(BENVENISTE apud AMORIN, 2002, p. 8), acaba por determinar ou infuenciar a forma
e o conteúdo do que é dito a partir do destinatário. Desta forma, Bakhtin – citado por
Amorim – considera o destinatário um coautor do enunciado, eis que estabelece uma
relação de codependência entre o contexto de escrita e o contexto da escuta. Assim,
jamais poderia se constituir um monologismo.
Assim, talvez um paradoxo entre o que disse anteriormente, é preciso
reconhecer que escrevo essa pesquisa tendo como destinatário a mim mesmo. Um
dos grandes bloqueios que encontro ainda no processo de escrita, é o fantasma da
insuficiência e do julgamento dos outros sobre o produto desse trabalho. Entretanto,
ter reconhecido que muito mais esse trabalho precisa fazer sentido e dar orgulho a
mim mesmo coloca tanto o processo quanto a obra em um lugar mais leve. Ter como
um dos destinatários da pesquisa eu mesmo, garante que os dos esforços primordiais
é fazer com que o texto faça sentido para e pelo meu próprio contexto subjetivo. Em
alguma medida, essa pesquisa é um processo de conversa comigo mesmo, ou com
os muitos “eus”, atuais ou virtuais, mas todos reais.
Por sua vez, a intenção da minha pesquisa não é jamais torná-la um monólogo
laudatório e dogmático sobre os processos de constituição do eu, mas ao contrário,
trazer essas possibilidades para o debate e igualmente escutar o máximo de vozes
possíveis que possam contribuir para o entendimento e desfazimento dos processos
de subjetivação.
Desta forma, é importante reconhecer que o trabalho de pesquisa jamais é
autônomo e monográfico (apesar do título de monografias que recebem). O primeiro
e mais óbvio interlocutor da minha pesquisa é meu orientador. Em alguma medida, a
minha construção analítica se insere dentro de um projeto de pesquisa mais amplo,
cujo coordenador é o meu orientador. Nesse sentido, o meu trabalho precisa e efetiva
um diálogo com as pesquisas deste, assim como dos demais pesquisadores do
projeto coletivo. Em alguma medida, é importante reconhecer que a minha
contribuição não é deslocada ou descolada de um trabalho conjunto, e que, na
verdade, corresponde apenas a um pequeno recorte desse corpo multitudinal.
O mesmo acontece com o debate na comunidade acadêmica de modo geral,
ou mesmo entre os interlocutores sociais dos atuais debates sobre gênero, sexo e
sexualidade. Relevante reconhecer que a minha pesquisa se localiza dentro de uma
gramática da teoria crítica e dos debates pós-estruturalistas, de modo que o diálogo
com esses destinatários que potencialmente poderiam ler esse trabalho precisa ser
considerado.
Sendo assim, seguindo os ensinamentos de Foucault ao propor o método
genealógico, importa debruçar sobre a pesquisa não com um objetivo de construir
uma teoria geral, mas sim tentar entender o que os elementos materiais que o objeto
de estudos nos apresenta e tentar ver como o arcabouço teórico desenvolvido se
comporta. Nesse sentido, não se pretende fazer aqui um processo de aplicação geral
da teoria sob os aspectos concretos da realidade, como se ela servisse meramente
para comprovar os axiomas teóricos. Pelo contrário, é uma proposta metodológica
que se coloca como aberta às revelações que a realidade apresenta. Não se que
afirmar certezas, sem possibilidade de dúvida, mas propor questões, pontes.
Mesmo porque, é importante reconhecer que a materialmente, a minha
identidade constitui uma série de privilégios dentro do contexto social contemporâneo
– sou homem, cisgênero, pele clara, com formação superior – o que me coloca muitas
vezes cego e insensível a uma série de outras precariedades e violências que
incorrem outras vidas.
Assim, o interesse da minha escrita é muito mais propor uma abertura, um se
colocar ao risco e aos afetos de outras narrativas e outras formas de vida,
possibilitando um mergulhar sem proteções nesse mar de potências de existência e
experiência do mundo.

3. Terceiro ato: será que se O(u)VE isto? O que (h)O(u)VE?

Como já dito, a minha pesquisa se insere dentro de uma tradição teórica pós-
estruturalista e crítica. Nesse sentido, é bastante evidente que, para construir o enredo
teórico proposto, foi e está sendo necessário mergulhar e escutar as vozes de autores
que contribuíram para essa linha argumentativa. São eles, até então: Paul Preciado,
Michel Foucaul, Judith Butler, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Giorgio Agamben, Guy
Debourd, Jacques Derrida, Michael Hardt, Antonio Negri, Donna Harraway, Monique,
Wittig.
Logo aí, encontramos um grande problema, que eu tenho até evitado pensar
muito sobre. Tão todas e todos autoras e autores brancos, majoritariamente homens,
localizados no norte global. Acredito que aqueles que se prestam a fazer uma
pesquisa dentro de uma “filosofia da diferença”, especialmente em países
colonizados, deveria se preocupar se os pilares dos seus estudos não estão
reproduzindo (e reafirmando) os propósitos coloniais de exclusividade e primazia na
construção discursiva e de conhecimento.
Nesse sentido, mesmo incluindo em meu radar as contribuições de pensadores
decoloniais como o cubano José Esteban Muñoz e o camaronês Achille Mbembe,
temo sempre soar como uma “cota latina/negra” para justificar uma pesquisa
essencialmente colonizada. “Justificar” e “incluir” não estão dentre os propósitos
dessa pesquisa, que inclusive reconhece esses termos como uma das marcas do
poder soberano do Estado.
Essa homogeneidade colonial das pensadoras que tenho como marcos
teóricos pode ser entendido como um novo silenciamento das vozes de pensadores
do sul global. Aparentemente, por mais atento que eu esteja sobre os problemas do
modo de construção dos discursos de poder na modernidade, aparentemente estarei
incorrendo nos mesmos modos de funcionamento.
Minimamente, o processo construtivo desse exercício de identificar as vozes
da minha pesquisa, é positivo no sentido de localizar, especificamente, em que ciclo
teórico eu estou circulando. Ainda que insuficiente, e em alguns momentos reprodutor
dos padrões coloniais de produção do pensamento, ao pontuar esses silêncios, deixa
de se apresentar como uma tese geral e ampla. Desta forma, o ato de pontuar
precisamente quais são os caminhos teóricos utilizados, aceitando os limites
intrínsecos da pesquisa, abre-se espaço para um debate às claras, sem escamotear
o conteúdo produzido como um teor universalizante.
Assim, a polifonia que me proponho a escutar, e que tentarei fazer ecoar do
texto da minha dissertação se encontra localizado dentro da produção teórica
contemporânea sobre os mecanismos de poder e técnicas de subjetivação, em uma
perspectiva pós-estruturalista e de teoria crítica das estruturas do Estado e do capital.
Especificamente, me interessam as vozes que apontam por como o sexo, o gênero e
a sexualidade se inserem dentro desse jogo de poder proposto.
Infelizmente haverão inúmeras autoras e autores que eu não pude ler e ouvir,
o quais convido a todes que se tornarem meus destinatários reais do conteúdo da
pesquisa, para uma conversa, uma troca, um encontro de pensamentos.

4. Quarto ato: VOE, junto com as vozes que (re)SOE

Esse experimento começa com um pensamento sobre o silêncio e chego aqui


com um sentimento de reverberação múltipla de vozes. Como um eco que insiste em
repetir aquilo que foi dito, ligeiramente diferente, parcialmente alterado. Desta forma,
começo a perceber a minha pesquisa muito além de sua polifonia, o que é preciso
reconhecer novamente diante da quantidade de autoras e autores que estou trazendo
ao debate. Agora, passo a apostar na polissemia dessa pesquisa.
Amorim (2002) nos ensina que polissemia estaria na ordem da língua como
sistema abstrato, assim, remetendo a um universo de possibilidades de significação.
Trata-se de uma aposta em todas as possibilidades que um texto/expressão
apresenta, para além das intenções dos autores. Apesar de escutar tudo o que cada
um dos autores que li e lerei apresentam, em alguma medida poderei e talvez buscarei
extrair algo que talvez não fora originalmente intentado por eles. Deleuze, em um texto
intitulado “Carta a um crítico severo” nos dá uma explicação gráfica desse processo
de se relacionar com as obras alheias e com a história da filosofia:

Mas minha principal maneira de me safar nessa época foi concebendo a


história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo,
de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um
autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso.
Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente
ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso
também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda
espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me
deram muito prazer. (DELEUZE, 1992).

Nesse sentido, seguindo a dimensão da iterabilidade/citacionalidade da


linguagem Jacques Derrida (1991), o ato de inscrição da linguagem possui uma
relação tanto de repetição, que garante a comunicabilidade e legibilidade do signo,
mas também existe algo que escapa essa dimensão, um certo excesso, decorrente
da ausência da presença do enunciador.
Acredito haver uma potência nessa dimensão excessiva/exceptiva do discurso.
É possível mergulhar na profusão de enunciados e fazer reverberar algo
completamente novo. O ato de fazer passar os fluxos de pensamentos outros pela
máquina pensante que habita a mim mesmo, pode gerar registros outros nem mesmo
esperados, nem pelos autores que foram citados, nem por mim mesmo. Chega a ora
de fazer passar eletricidade sobre esse corpo Frankenstein para ver se ele toma vida.
Trata-se de pensar a escrita também como monstruosa, uma produção da
multidão. É preciso tornar-se multidão, esse corpo biopolítico formado por inúmeras
singularidades, una e múltipla; ao mesmo passo que a obra se tornará multidão.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Marilia. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas.


Cadernos de pesquisa, n. 116, p. 7-19, jul. 2002.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.

DERRIDA, Jacques. Assinatura. Acontecimento. Contexto. In: DERRIDA, Jacques. As


margens da filosofia. Tradução Joaquim Torres Costa, Antônio M. Magalhães;
Revisão técnica Constança Marcondes Cesar. - Campinas, SP: Papirus, 1991.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Forntes, 2000.

PRECIADO, Paul B. Um Apartamento em Urano: Crônicas da Travessia. Editora,


Zahar. Ano de Edição, 2020

PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era


farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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