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VOZES, OZES, ZES, ES... SSSS. Por entre uma profusão de vozes na
multidão, fecha-se os olhos para tentar escutar o sussurro; o silêncio daquelas vozes
que ainda não saíram, que estão abafadas, mutadas. Essa é uma das tarefas que
esse exercício propõe. Trata-se de tentar encontrar quais são as vozes em silêncio
dentro do meu processo de pesquisa para a escrita da dissertação de mestrado que
apresentarei até o ano de 2022 no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.
Como se propor a escutar, a dar voz, àquelas e àqueles que jamais foram
escutados? Como dar ouvidos àquilo que jamais foi dito, que nem sequer pode ser
dito, que é incomunicável? Como escutar aquilo que é tão intrínseco à existência
singular, que não consegue ser transposto em escrita ou fala? É certamente uma
proposta complexa, desafiadora e em alguma medida impossível; mas que nesse
momento me coloco à experiência de tentar encontrar caminhos possíveis para tal.
Umas das primeiras vozes que proponho a escutar na minha pesquisa é talvez
uma que, até então, havia restado silenciada por muito tempo: a minha própria voz.
Algo que se tornou nítido para mim há pouco tempo é que a minha pesquisa está
intrinsecamente ligada a mim mesmo, esse locutor que vos fala.
A proposta do trabalho é jogar luz ao caráter artificial e ficcional que os papéis
e os códigos de sexo, gênero e sexualidade possuem, de modo a evidenciar a
imprescindibilidade dessas naturalizações para o projeto de produção capitalista; para
então, em seguida, pensar, analisar, inventar, propor, experimentar estratégias não
só de resistência, mas de desinstituição dessa estrutura normativa a partir da
plasticidade do corpo e do que poderia se chamar de performatividade queer.
Sendo assim, hoje consigo reconhecer bem que a produção teórica da minha
pesquisa está umbilicalmente vinculada com uma produção subjetiva em mim. O
reconhecimento da minha identidade como produto – plenamente intencional ou não
– de técnicas biopolítica de subjetivação, as quais são absolutamente artificiais e do
meu próprio corpo como espaço potente para produção de outros modos de existir e
estar nesse mundo, tem cada vez mais dado abertura para pensar o que este corpo
pode fazer.
Sendo assim, dentro e fora da minha pesquisa todo esse processo tem sido
essencial para efetivamente dar voz para esses murmúrios que meu corpo fazia
ressoar internamente, e que outrora não consegui entender muito.
A proposta é muito inspirada pelos trabalhos recentes de Paul Preciado, que
combina elementos autobiográficos e de ficção para criar o que se pode chamar de
autoficção1. Bakhtin (2006) diferencia autobiografias de autoficcções entendendo
essas últimas como atos literários muito mais próximos do plano artístico, em razão
do comprometimento com o belo e o fantasioso. Nesse sentido, uma autoficção seria
formada pelo uso de recursos ficcionais combinados com elementos da biografia do
autor para construir uma narrativa. Desta forma, na autobiografia, o elemento trazido
à tona é o Eu e a vida do autor, enquanto na autoficção o próprio texto literário se
torna primeiro plano da narrativa.
É importante sempre lembrar das considerações de Bahktin, bem sintetizadas
pela pesquisadora Marilia Amorim (2002), as quais importa diferenciar o locutor do
texto e a voz do autor. Segundo o autor, o locutor seria um personagem do texto, o
qual jamais poderia ser idêntico ao sujeito da enunciação, qual seja o próprio autor.
Existe sempre um véu leitoso e opaco que diferencia ambos, de modo que por mais
intentada uma autenticidade no processo de escrita, algo sempre fica de fora. O texto
é editado, cortado, apenas uma visão parcial da voz do autor.
Sendo assim, a proposta de escrita que estou desenvolvendo é justamente
tentar expor, a partir de elementos autobiográficos combinados com ficção, essas
clandestinidades da vida privada, da minha vida privada. Ciente da plasticidade do
texto e do corpo, a aposta é na construção de uma autoficção na escrita e as
inscrições corpóreas.
1
Preciado faz isso brilhantemente em textos como “Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica” e “Um Apartamento em Urano: crônicas da travessia”. Segundo o autor (2020),
“a filosofia transforma-se numa linguagem de ficção política” que permite imaginar um novo mundo.
2. Segundo ato: nas vozes tem também o SEO(u)
Como já dito, a minha pesquisa se insere dentro de uma tradição teórica pós-
estruturalista e crítica. Nesse sentido, é bastante evidente que, para construir o enredo
teórico proposto, foi e está sendo necessário mergulhar e escutar as vozes de autores
que contribuíram para essa linha argumentativa. São eles, até então: Paul Preciado,
Michel Foucaul, Judith Butler, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Giorgio Agamben, Guy
Debourd, Jacques Derrida, Michael Hardt, Antonio Negri, Donna Harraway, Monique,
Wittig.
Logo aí, encontramos um grande problema, que eu tenho até evitado pensar
muito sobre. Tão todas e todos autoras e autores brancos, majoritariamente homens,
localizados no norte global. Acredito que aqueles que se prestam a fazer uma
pesquisa dentro de uma “filosofia da diferença”, especialmente em países
colonizados, deveria se preocupar se os pilares dos seus estudos não estão
reproduzindo (e reafirmando) os propósitos coloniais de exclusividade e primazia na
construção discursiva e de conhecimento.
Nesse sentido, mesmo incluindo em meu radar as contribuições de pensadores
decoloniais como o cubano José Esteban Muñoz e o camaronês Achille Mbembe,
temo sempre soar como uma “cota latina/negra” para justificar uma pesquisa
essencialmente colonizada. “Justificar” e “incluir” não estão dentre os propósitos
dessa pesquisa, que inclusive reconhece esses termos como uma das marcas do
poder soberano do Estado.
Essa homogeneidade colonial das pensadoras que tenho como marcos
teóricos pode ser entendido como um novo silenciamento das vozes de pensadores
do sul global. Aparentemente, por mais atento que eu esteja sobre os problemas do
modo de construção dos discursos de poder na modernidade, aparentemente estarei
incorrendo nos mesmos modos de funcionamento.
Minimamente, o processo construtivo desse exercício de identificar as vozes
da minha pesquisa, é positivo no sentido de localizar, especificamente, em que ciclo
teórico eu estou circulando. Ainda que insuficiente, e em alguns momentos reprodutor
dos padrões coloniais de produção do pensamento, ao pontuar esses silêncios, deixa
de se apresentar como uma tese geral e ampla. Desta forma, o ato de pontuar
precisamente quais são os caminhos teóricos utilizados, aceitando os limites
intrínsecos da pesquisa, abre-se espaço para um debate às claras, sem escamotear
o conteúdo produzido como um teor universalizante.
Assim, a polifonia que me proponho a escutar, e que tentarei fazer ecoar do
texto da minha dissertação se encontra localizado dentro da produção teórica
contemporânea sobre os mecanismos de poder e técnicas de subjetivação, em uma
perspectiva pós-estruturalista e de teoria crítica das estruturas do Estado e do capital.
Especificamente, me interessam as vozes que apontam por como o sexo, o gênero e
a sexualidade se inserem dentro desse jogo de poder proposto.
Infelizmente haverão inúmeras autoras e autores que eu não pude ler e ouvir,
o quais convido a todes que se tornarem meus destinatários reais do conteúdo da
pesquisa, para uma conversa, uma troca, um encontro de pensamentos.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.