Construção do pensamento
Copyright © UVA 2021
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia
autorização desta instituição.
AUTORIA DO CONTEÚDO
Eduardo Reis Silva
REVISÃO
Janaina Vieira
Lydianna Lima
Formato: PDF
ISBN 978-65-5700-109-7
1. Pensamento. 2. Teoria do conhecimento. 3. Racionalismo. I. Universidade
Veiga de Almeida. II. Título.
CDD – 153.42
Metáforas à parte, o que se pretende dizer é que tudo é narrativa e narrar é contar
história — a palavra cria dimensões formais e inteligíveis para tudo que existe e possa
vir a existir no âmbito das relações interpessoais, nas quais todos estamos inseridos.
Pensar o modo como se entende a filosofia hoje é determinante para se avaliar quais
os caminhos e descaminhos propostos pelo seu ensino na contemporaneidade. Não
menos indispensável é a responsabilidade ética. Esta, não com a intenção de que se
faça cumpri-la cegamente, mas no sentido de sempre estar em estado de alerta para
investigar os princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o compor-
tamento humano, na intenção de criar reflexão a respeito das normas vigentes, dos
valores velhos e novos e das prescrições pungentes de qualquer realidade social.
4
A multiplicidade de filosofias construídas ao longo da história, assim como as plurais
leituras que são construídas a partir delas, estão destacadas neste e-book, de forma
que se perceba a importância e a urgência de uma reflexão em perspectiva ao se con-
siderarem os contextos epistemológicos, artísticos, afetivos e psíquicos da vida social
e profissional que se pretende.
5
AU TO R
6
CAPÍTULOS
1
Multiplicidades epistemológicas na trajetória do
racionalismo ocidental
2
A aceleração tecnológica e o descrédito do mundo
suprassensível
3
Sob à luz de uma outra ideia de construção de
conhecimento
4 Construção de um pensamento
1 Multiplicidades epistemológicas na trajetória
do racionalismo ocidental
8
O filósofo italiano deixa claro o quanto é desnecessário continuar afirmando linhagens
filosóficas que não fazem mais sentido na contemporaneidade, como também ressal-
ta a necessidade de refutar o sentido das palavras e termos que sustentam as ideias
que determinaram, determinam e determinarão os nossos modos de pensar.
A liberdade de pensamento pode dar seus primeiros sinais quando se entende que
os fluxos mentais são também espaços de contaminação das mais variadas forças de
atravessamento. O meu corpo, assim como o seu, de sua mãe, de seu pai e de seus ir-
mãos são perpassados por tsunamis de cargas sensoriais e mentais o tempo todo — é
o famoso bombardeamento midiático com suas viralizações. Imaginem isso somado
a todas as informações que nos invadem em nossas existências mínimas, de nossas
casas, quartos e cozinhas. Toda essa informação é sugada para dentro de nossos pen-
samentos. Portanto, posso simplesmente reproduzir ideias prontas, afirmar valores
ultrapassados, ser conivente com um arsenal de atrocidades, simplesmente pelo fato
de que uma esfera de poder, não somente política, mas sobretudo epistemológica,
determinou o que pode ou não ser verdadeiro, correto e de bom-tom.
Esses primeiros pensadores, cada um a seu modo, tiveram como objeto de estudo a
própria racionalidade, que abarcava as seguintes sentenças:
9
Tais perguntas tentavam sintetizar o conhecimento em sentenças universais, na inten-
ção máxima de entender e dominar por completo a vida e o mundo, pela via da razão.
Essas premissas conduziram toda a história do pensamento ocidental, alicerçaram o
seu processo ao logo dos anos e das épocas, fazendo com que, por mais que existis-
sem reviravoltas, descobertas e refutações de teorias, a razão como campo de produ-
ção de verdades sempre teria o status de protagonista.
Dando um salto temporal (até porque o período medieval e a filosofia da religião não
são interessantes para este momento), de René Descartes, filósofo francês, com sua
filosofia categoricamente fundada em sentenças exatas, cunhou em seu livro Discur-
so do método (1637), as bases modernas do racionalismo, até Immanuel Kant, que
fundiu os estudos empíricos (oriundos das experiências e sensações) com a tradição
racionalista em A crítica da razão pura (1781).
Nesse sentido, o trecho citado no início desta seção, do filósofo italiano Giorgio Agam-
bem, traz uma provocação ao tema deste capítulo: multiplicidades epistemológicas
na trajetória do racionalismo ocidental. Assim, aproveitamos para lançar a reflexão:
qual a potencialidade do pensamento agora, neste instante, diante de tantas teorias
históricas canonicamente enrijecidas, irrefletidamente e sistemicamente direcionadas
por especialistas que sempre obedecem a uma lógica que julgam ser de extrema rele-
vância, mas que, no fundo, não passa de tecnicismo limitador?
Tudo que se apresenta, desde palavras e coisas, pode ser entendido como verdadeiro
apenas pelo fato de que se convencionou cingir o mundo, entre ideias falsas e verdadei-
ras, como Descartes afirmou? O que é verdade e o que é mentira, já que tudo é palavra,
e que tudo passa por ela para ganhar sentido no mundo? Então, posso dizer que toda
palavra é mentira, pelo entendimento de que ela é uma criação linguística? E no que diz
10
respeito às ideias de Kant, em que a experiência contribui para o conhecimento? Nas
ideias contemporâneas existe uma configuração entre a ficção das virtualidades com a
vida real, nas infindáveis duplicações de identidade projetadas em redes sociais?
As margens que separam ficção e realidade estão cada vez mais borradas, porém isso
não é de agora. O pensador alemão Friedrich Nietzsche, cujas ideias são o fio condutor
deste curso, já lançava luz sobre a questão em O nascimento da tragédia ou hele-
nismo e pessimismo, no sentido de que: “[...] somente como fenômeno estético, a
existência e o mundo aparecem eternamente justificados [...]” e que “[...] o homem não
é mais artista, tornou-se obra de arte [...]” (NIETZSCHE, 1992, p. 31).
Nesta perspectiva, temos uma humanidade que não está apartada da arte e da lingua-
gem. Ao contrário, somente temos entendimento de mundo e de nós mesmos porque
existe a linguagem e porque existe a arte. A ficção está indissociavelmente entrelaça-
da no que se convenciona como realidade.
Todos os questionamentos levantados até aqui são importantes para fazer pensar, ou
melhor, para impulsionar e instigar o pensamento a criar possibilidades de desloca-
mentos conceituais, fazê-los dançar, andar, pular, saltar até que se lancem para fora
de suas redomas. Para isso, a proposta é estar sempre se questionando sobre como a
realidade é composta. Ainda mais importante é reconhecer nossos papéis enquanto
compositores de outras realidades possíveis, a fim de não mais dar vazão apenas à
replicação de valores.
11
Desse modo, a crítica de Nietzsche em Sobre verdade e mentira no sentido extra-
-moral (1986) é o que inicia o processo de reconfiguração das multiplicidades do
pensamento. Para o pensador alemão, não seria possível afirmar a existência de co-
nhecimentos indubitáveis, “[...] pois todo conhecimento surge por meio de separa-
ção, delimitação e abreviação; não há conhecimento absoluto de uma totalidade! [...]”
(NIETZSCHE, 2007, p. 66), conforme foi destacado no pretenso racionalismo de Platão,
Descartes, Kant e de tantos outros filósofos.
Portanto, para Viviane Mosé, grande pensadora nietzschiana, é preciso pensar se a lingua-
gem, se a formação das palavras e suas articulações pelas regras gramaticais, se a constru-
ção de conhecimentos não seriam apenas submissões morais. Mosé ainda diz que, falar,
para Nietzsche, é atribuir valor. Para que fique claro, a grande crítica e o grande insight de
Nietzsche partem exatamente desta questão, ou seja, há um abismo entre o universo dos
códigos, o modo como eles se ordenam e o que de fato acontece no mundo.
Portanto, a relação de verdade produzida pela fala e pela palavra é uma produção de
signos, é um acordo fálico, branco, autocentrado nas instituições que as criaram. Para
o filósofo alemão ela é uma determinação e, acima de tudo, uma imposição. O modo
como eu penso, desejo, gozo, me alimento, sonho e até mesmo meus pesadelos, mi-
nhas angústias e tristezas são produtos de uma linguagem criada e imposta. Somos o
tempo todo sugestionados por estratégias mercadológicas e algoritmos.
12
Existimos, assim, em ordenações que sucedem a nós mesmos? Por exem-
plo: o modo como nos relacionamos afetivamente. Quem determinou
como eu devo amar alguém? Qual a maneira correta de se amar alguém?
Existe um padrão?
As palavras não nasceram naturalmente das coisas, muito menos as palavras repre-
sentam as coisas. Nomear, dar nomes, criar sentidos, diz Nietzsche em Genealogia da
moral, é um ato de quem comanda, é uma relação de comando. A história do conheci-
mento é marcada por quem deu nome às coisas, e isso é exatamente marcado por um
lugar de quem tem poder.
Gilles Deleuze, em Nietzsche e a filosofia, esclarece que tudo passa pelo ato de in-
terpretação e não pela busca da expressão da verdade. Em Genealogia da moral ele
questiona filosoficamente justamente qual é o valor dos valores, apresentando o cerne
do problema. É nesse sentido que Deleuze afirma que o filósofo assume o lugar de
um genealogista. A grande questão para Nietzsche é que temos a sensação de que os
valores são naturais.
13
É o que se pode ver também em Nietzsche e a filosofia. Neste livro, Deleuze e Guat-
tari elaboram um estudo acerca da construção do pensamento filosófico de modo crí-
tico e anacrônico, quando trazem as noções de rizoma, sistemas acentrados e dester-
ritorialização, ideias que fundamentam a compreensão de que a filosofia é criação e
invenção de outras formas de conceber o mundo.
A psicanalista brasileira Suely Rolnik, sinaliza, assim como Nietzsche, Deleuze e Guat-
tari sinalizaram, a importância do movimento que transforma tudo e todos o tempo
inteiro e como isso deve ser ainda mais problematizado. Na atualidade, justamente é
a lógica capitalista ao fazer evaporar tudo que é sólido, em sua gana extrativista de fa-
zer tudo virar produto para ser consumido, que consome o próprio planeta, tornando
impraticável a vida na Terra.
No prefácio de seu livro Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetina-
da, Paul B. Preciado faz uma potente observação acerca da contemporaneidade com
o advento tecnológico, ao afirmar a mais do que necessária intensificação de engaja-
mento para a confecção de outras maneiras de relação com as subjetividades e seus
agenciamentos:
Neste sentido, a ideia de subjetivação presente nos estudos de Rolnik pode ser vista
apenas como uma essência do que há no interior de cada um de nós? Na verdade, a
psicanalista problematiza a concepção de uma subjetividade apenas interna. Para ela,
esse movimento é proporcionado pela multiplicidade de encontros em cada momen-
to da vida. Cartografar as movências implica atentar para os devires e não para uma
captura fixa das nossas interioridades. É compreender os atravessamentos que nos
constituem. A esse respeito, vale refletir sobre como a espetacularização do “eu”, no
14
mundo contemporâneo, nas redes sociais, produz e impõe modos de ser, de viver e de
estabelecer relações com o outro.
Não por acaso, a linguagem, como afirma Nietzsche, é um jogo legislativo. E não só
isso, ela é também uma amputação, porque separa determinadas características de
uma realidade para poder embuti-las no universo de uma palavra. Ao fazer essa sele-
ção abre-se mão de determinadas paisagens para o fortalecimento de outras. A histó-
ria é toda narrada por essa via seletiva e por olhares assépticos.
É possível existir verdade se tudo passa pela enunciação e pelo discurso? Ao discursar,
eu não estou reduzindo aquilo que eu estava querendo dizer? Este texto é um exem-
plo disso, um conglomerado de palavras para tentar criar um discurso plausível, que
seja compreendido por todos. Para Mosé, é a esse limite que Nietzsche se refere em
sua crítica da linguagem.
É por acreditar em perspectivas fixas que a humanidade impôs modos de viver, de ser,
de estabelecer relação com o outro, de se apropriar da natureza, em um desejo racio-
nal de modernidade e evolução, que acabou instituindo, com tais condutas, formas de
pensar e interpretar a vida com verdades absolutas. Foram justamente esses gestos
15
que naturalizaram violências e tornaram legítimas, em muitos momentos, a domina-
ção, a hierarquização, a violência e a extinção.
16
RE SUMO
17
RE FE RÊ NCIA S
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia. São Paulo: Editora 34, 1997.
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Hedra, 2007.
PRECIADO, P. B. Um prólogo para Suely Rolnik. In: Esferas da insurreição: notas para
uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1, 2019.
18
2 A aceleração tecnológica e o descrédito do mundo
suprassensível
Com o advento da modernidade e a constante ruptura com tudo que não era e conti-
nua não sendo pautado pela ciência e pela tecnologia, abriu-se espaço para o confron-
to inevitável com escolas de pensamento, sistemas filosóficos e sistemas religiosos
que depositavam e buscavam respostas em possíveis territorialidades suprassensíveis
(metafísicas), como se a vida tivesse que ser legitimada apenas por uma outra realida-
de, em suma, universal e inquestionável, que ultrapassaria aquilo que pode ser per-
cebido por meio dos sentidos. Com os conflitos bélicos mundiais, com a Revolução
Industrial e a Revolução Digital em larga escala, tudo se transformou. Porém, quando
se trata de construção de pensamento, ainda existem resquícios conflitantes sobre os
modos de pensar e construir pensamento na contemporaneidade. É o que você pode-
rá acompanhar neste capítulo.
19
de verdades universais. Você pode estar se perguntando o que quer dizer essa palavra
tão usada pelos autores que estamos estudando: “desterritorialização.”
Compreende que tudo isso que eles construirão nesse contato com o novo
mundo são enquadramentos? Formas de se relacionar com o mundo, e não
a verdade desse mundo? São maneiras de apalpar o mundo em que habi-
tam sem memória. Se entendermos que tudo isso é criado, entenderemos
o que é desterritorializar: quando tiramos uma fotografia, enquadramos o
espaço. Por isso, muitas vezes, não reconhecemos que lugar é esse da foto,
porque é enquadramento, e não o lugar em si.
O que Nietzsche faz é justamente nos contar que somos essa comunidade que foi
lançada neste mundo e que tivemos que inventar formas de viver, falar e construir
relações e conceitos. Só que nos esquecemos de que foi um enquadramento e acredi-
tamos que o sistema moral que criamos é a realidade. Com Nietzsche, portanto, per-
cebe-se uma intensificação da filosofia crítica, ou seja, do pensamento criticando sua
própria dimensionalidade.
20
Emmanuel Kant, antecessor de Nietzsche e último pensador clássico, também já havia
produzido, em sua Crítica da Razão pura (1781), posicionamentos avaliativos acerca
da procedência epistemológica, porém “jamais ousou colocar em questão o valor da
verdade nem as razões de nossa submissão ao verdadeiro” (DELEUZE, 2018, p. 118).
Nietzsche redireciona toda a história do pensamento ocidental não apenas na propo-
sição de uma quebra conceitual que visaria uma nova perspectiva, uma nova teoria ou
descoberta de um novo sistema norteador, mas, sobretudo, a partir da ideia de que
o conhecimento em si é múltiplo, multifacetado, superabundante e sem-fim, não se
encerrando em nenhuma verdade indubitável.
Para Nietzsche, seria impossível pensar em apenas uma força dominante e indivisível,
da qual todas as outras nasceriam. Os campos de forças que atravessam nossas expe-
riências no mundo, em todos os momentos de nossas grandes e pequenas existências,
são vontades de potência, pulsações e pulsões que nos fazem mover, expandir e nos
potencializar em nós mesmos. Nessa perspectiva, o filósofo alemão, em vez de conti-
nuar afirmando a vontade de verdade — que foi exaustivamente marcada por todos
os pensadores até então como instância suprema, com a ideia de um Deus inquebran-
tável —, criará a vontade de potência.
É como se você pudesse ter a clareza de que pode ser mais do que é, sem deixar de ser
aquilo que é. Não como meritocracia, muito menos no âmbito das vaidades, mas sim
no que deve ser alargado no sentido das instâncias de potencialidades de vivências,
do poder de ser afetado pelas experiências e pelos atravessamentos que extravasam
a ideia de si mesmo.
Como tirar proveito e aprendizado dos acontecimentos de toda natureza, que estão
na ordem dos dias, que enredam os meses e os anos das trajetórias de cada um? Niet-
zsche afirma que o começo de tal processo se dá pela destruição de qualquer possi-
bilidade de conhecimento metafísico (aqueles que transcendem a natureza física das
coisas, como a ideia de Deus). No trecho a seguir Deleuze comenta que:
21
sentidos de cada acontecimento. Não existe sequer um acontecimen-
to, um fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo sentido não
seja múltiplo. Alguma coisa ora é isso, ora aquilo, ora algo mais com-
plicado segundo as forças (os deuses) que dela se apoderam. (DELEU-
ZE, 2018, p. 12)
Vale destacar que os temas supracitados fazem parte de toda uma teoria do pensador
alemão e, mais tarde, foram ressignificados e se expandiram nos estudos pós-estru-
turalistas da contemporaneidade. Jaspers, então, dirá que “a existência do homem”
para Nietzsche seria uma espécie de reconhecimento da essência de si mesmo e do
entendimento de sua autonomia e de seu processo de modificação de si próprio. Para
Jaspers, “Nietzsche, ao considerar a existência — incluindo também o já presente sen-
tido do filosofar —, procura em primeiro lugar fixar comparativamente aquilo que se-
ria propriamente a posição do homem no mundo”, em segundo lugar, “ele procura
investigar o homem em sua mutabilidade psicológica” (JASPERS, 2015, p. 170).
22
No entanto, o mundo é uma imensidão inimaginável de campos de forças
que nos atravessam em impulsos que podem nos destruir ou nos potenciali-
zar, com suas moléculas e estruturas atômicas, que, ao formarem suas mate-
rialidades em uma massa corpórea, já se apresentam em tensão constante,
seja no atrito das conexões das partes ou na interação e na pulsão destas.
De acordo com Nietzsche, criaram a metafísica para eternizar a essência das coisas,
para produzir o imutável. Com isso, fabricaram toda uma narrativa ficcional, que por
muito tempo dominou e, em certa medida, ainda domina o império do pensamento
centralizador das oligarquias religiosas, políticas, farmacológicas, estéticas e episte-
mológicas. Observe que é uma dualidade que cria oposições sem relativizar nada. As
coisas do céu são todas corretas e as da terra são todas erradas — pensar assim é
pensar sob uma perspectiva binária. O ser humano, então, deixa de pensar em viver o
presente para construir uma vida futura fora da terra.
23
mesmos pela via estrutural, matemática e certeira, como se pudéssemos solucionar
todos os entraves de nossas existências em apenas uma equação matemática.
Não é melhor pensar, portanto, como Raul Seixas, que somos “essa metamorfose am-
bulante”? Veja como a arte nos desconcerta e provoca o pensamento. Para entender o
conceito de devir apresentado por Deleuze, é necessário abrir o pensamento para isso.
Somos essa “metamorfose ambulante” no encontro com a vida, com as coisas, com os
outros seres humanos. Se mudamos a cada momento, não é importante pensar que
essas ideias de essência e eternização dos conceitos são invenções do próprio homem?
A ciência não muda a cada momento e revê os próprios conceitos que eram vistos
como verdade? Veja historicamente, por exemplo, alimentos que foram considerados
maléficos e se tornaram remédios após estudos sob diferentes óticas.
Para Nietzsche, os conceitos de verdade, unidade, Deus, essência, alma e razão, como
todos os termos que utilizamos, são nada mais nada menos que palavras, criações lin-
guísticas que são utilizadas na comunicação oral entre os povos. O fato é que houve
um esquecimento ao longo dos anos e das épocas, quando deixamos de reconhecer
que tudo não passava de mentira e, nesse esquecimento, cristalizamos o entendimen-
to de homem, de mundo e de vida.
Desse modo, o pensador alemão proporá que a filosofia está também no corpo, nes-
se nosso corpo que o platonismo tanto rechaçou, e que o pensamento é inseparável
da materialidade que nos constitui. Diferentemente do pensador grego, que tanto
valorizou o mundo metafísico e virtual das ideias, com Nietzsche o ato de pensar não
pode ser outra coisa senão multiplicidade de pulsões e fluxos em confronto direto
com espaços, energias, radiações de todos os tipos e processos físico-químicos, sensa-
ções, paixões, vontades, entendimentos e desentendimentos, criações e recriações de
sentido de linguagem.
24
É o que Deleuze, em Nietzsche e a Filosofia, explica quando questiona a imagem
canônica do pensamento e a produção da ideia de verdade dos sistemas filosóficos:
Assim, Deleuze explica que “[...] não há verdade que, antes de ser uma verdade, não
seja a efetuação de um sentido ou a realização de um valor. A verdade como conceito
é totalmente indeterminada. Tudo depende do valor e do sentido do que pensamos”
(Ibid., p. 134). Portanto, para Deleuze, a respeito da filosofia nietzschiana, a verdade
estará sempre sugestionada ao que se acredita como verdade, ao sentido que conce-
bemos para a produção daquela veracidade, nada mais que um perspectivismo concei-
tual, já que o “pensamento nunca pensa por si mesmo” (Ibid., p. 134).
25
No vídeo Dossiê Cult195, do “Dossiê Derrida”, da revista Cult, a também pensadora
Olgária Matos destaca importantes pontos conceituais de sua filosofia, no que confe-
re sua indescritível forma de pensar, de produzir e criar conhecimentos nos campos
da estética, das artes e, determinantemente, da linguagem textual em oposição aos
dogmas vigentes.
Derrida, assim como Nietzsche, entende que a palavra e a textualidade são portadoras
de agenciamentos plurais que não se encerram no já estabelecido e conhecido códi-
go operacional que reproduzimos em nossos modos de ler e escrever e de produzir
pensamento. Olgária Matos também chama a atenção para a questão da desconstru-
ção da padronagem epistemológica, para o desmonte estrutural que descentraliza as
construções das faculdades dos sentidos que se multiplicam em metatextos.
Outra noção importante apresentada por ele é a de leitura. O leitor não é aquele
que simplesmente decodifica significados em um texto, mas produz sentidos em
sua leitura, pois carrega consigo seu olhar, inseminando sentidos. Isso o aproxima
de Nietzsche no sentido de que relativiza os lugares do autor do texto, do leitor e
do próprio texto. O signo, portanto, passa a ser mais importante do que o referente,
ou seja, à coisa a que se refere, bem como o significante (a palavra) mais relevante
do que o significado, pois os significados podem variar tanto a partir da relação que
uma palavra estabelece com outras palavras, com os rastros que elas trazem, como
também diante do olhar do leitor.
Em outro salto temporal, destacamos alguns pontos das ideias de Peter Pál Pelbart,
filósofo húngaro, residente do Brasil e que foi aluno de Deleuze — ele apresenta uma
significativa contribuição em debates, aulas e livros que produz no tempo presente.
Em seu artigo Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo..., trata da vida hoje,
agora, aqui no Brasil e no mundo em relação aos desafios que provocam e estimulam
o pensamento a desenvolver outras possíveis leituras para a ideia de vida, de como
viver em um mundo ultracapitalizado, neoliberal, necropolítico, com estratégias de
destruição em massa em suas higienizações classistas. Pelbart, em sua singularidade,
compartilha da força visceral das filosofias pós-estruturalistas. Em grande parte, seus
26
estudos percorrem zonas mais nitidamente calcadas nas esferas de poder, domínio,
política e psiquiatria.
Os poderes, para Pelbart, são “as ciências, o capital, o Estado, a mídia”. Ele ainda des-
taca que toda essa compreensão parece reduzir a dimensão macro do poder, quando,
na verdade, ele em si já se mostra intangível para a problematização da construção do
pensamento. É o que o pensador também questiona ao tratar o tema da revolta e da
subjetividade em seu livro Ensaios do assombro, ao lançar os seguintes questiona-
mentos: “[...] qual sujeito há de encarnar a revolta possível? Qual tipo de subjetividade
pode sustentar uma insurreição? É possível ainda designar um sujeito da história? Ha-
verá um novo ‘sujeito revolucionário’?” (PELBART, 2019, p. 149).
27
Nesse sentido, Deleuze em poucas palavras esclarece, talvez, uma boa parte do enten-
dimento e do empenho realizado pelos pós-estruturalistas, no que confere o trabalho
de dezenas de pensadores ao esgotarem conceitos, palavras, pensamentos, ideias, leis
que já não fazem sentido de serem levados adiante.
A filosofia crítica nietzschiana não salva nem a própria filosofia e desmantela a tradição
do pensamento ocidental, sobretudo o alemão. O estudioso afirma que tudo o que
tinha sido produzido até então, salvo os pensamentos oriental e pré-socrático, não
passava de ideias metafísicas que visavam opor valores, criando assim um afastamento
da vida. Desse modo, não é o pensamento que é niilista, mas sim o modo como nos
relacionamos com ele.
Para Nietzsche, se não sobra nada, ou quase nada do que acreditávamos, o que resta
para o filósofo? Apenas a linguagem e suas metáforas. Por outro lado, não é a filosofia
de Nietzsche que é niilista, mas sim a civilização, que sempre creditou os modelos e
as ideias como unidade de todas as coisas como verdades. Tudo isso, para o referido
filósofo, são apenas criações humanas amparadas em discursos falsos. Assim, para o
pensador, a civilização cultua o nada, e a única afirmação possível seria a vida, encarada
de frente, sem narrativas fictícias.
28
que produzem saúde em meio ao caos, assim como a filosofia, a antropologia, a socio-
logia, o pensamento científico e todos os estudos que contemplem a expansão cogni-
tiva. Portanto, Deleuze esclarecerá que esse conceito nietzschiano acontece quando:
Assim, o filósofo alemão concluirá, nas palavras de Deleuze, que “[...] o homem só habi-
ta o lado desolado da terra, só compreende seu devir-reativo que o atravessa e o cons-
titui. Por isso a história do homem é a história do niilismo: negação e reação”, porém “a
longa história do niilismo tem sua conclusão: o ponto final em que a negação se volta
29
contra as próprias forças reativas. Esse ponto define a transmutação ou transvalora-
ção” (Ibid., p. 247-248) de todos os valores.
Nesse contexto, deixo a reflexão: como nos relacionamos e como nos relacionaremos
com o gigantesco frenesi da aceleração tecnológica e com o mais que constante des-
crédito do mundo suprassensível? Daremos conta de nos reinventar diante do niilismo
que nos assalta de nós mesmos? Quais potências aguardam nossas ações no mundo? A
vida como vivemos é uma afirmação?
Dizer sim à vida é uma arte. Viver não é tentar descobrir uma realidade futura ou obs-
cura, mas sim criar possibilidades, por isso lançar-se na vida, inventar voos a favor dela
e abrir-se aos encontros afirmativos. Faça esse exercício de pensamento relacionando
o texto de Nietzsche à canção de Gonzaguinha.
O que é? O que é?
Gonzaguinha
[...]
E a vida
E a vida o que é?
Diga lá, meu irmão
Ela é a batida de um coração
Ela é uma doce ilusão
Êh! Ôh!
30
E a vida
Ela é maravida ou é sofrimento?
Ela é alegria ou lamento?
O que é? O que é?
Meu irmão
Há quem fale
Que a vida da gente
É um nada no mundo
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo
Há quem fale
Que é um divino
Mistério profundo
É o sopro do criador
Numa atitude repleta de amor
Sempre desejada
Por mais que esteja errada
Ninguém quer a morte
Só saúde e sorte
E a pergunta roda
E a cabeça agita
Eu fico com a pureza
Da resposta das crianças
É a vida, é bonita
E é bonita
31
Viver
E não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser
Um eterno aprendiz
32
RE SUMO
33
RE FE RÊ NCIA S
DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976. Disponível em: Micro-
soft Word - NF PRINT OUT BIS (wordpress.com). Acesso em: 10 dez. 2020.
MATOS, O. DOSSIÊ CULT195 | Jacques Derrida. 2014. Disponível em: (5) DOSSIÊ
CULT195 | Jacques Derrida - YouTube. Acesso em: 10 dez. 2020.
MOSÉ, V. Civilização x vida - Nietzsche era niilista? - E agora?. 2020. Disponível em:
(5) CIVILIZAÇÃO X VIDA - NIETZSCHE ERA NIILISTA? - E AGORA? COM VIVIANE MOSÉ -
YouTube. Acesso em: 10 dez. 2020.
PECORARO, R. Niilismo. São Paulo: Zahar, 2007. p. 14-19; 38-47. Minha Biblioteca.
34
3 Sob à luz de uma outra ideia de construção de
conhecimento
Em sua inspiração nietzschiana o pensador catalão Jorge Larossa afirma que as pala-
vras determinam o nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas
com palavras. Pensar é dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. O homem é
palavra, todo humano tem a ver com palavra, se dá em palavras, está tecido de pala-
vras, e o modo de viver se dá na palavra com a palavra.
Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em
que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos
mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, as-
pirados, multiplicados. (DELEUZE; GUATTARI, 1995)
O conhecimento não é conduzido estritamente pela razão, muito menos foi propor-
cionado e sentenciado unicamente por homens brancos europeus. Desde o século XIX,
ainda na perspectiva eurocêntrica, filósofos como Kierkegaard, Schopenhauer, Niet-
zsche, Freud, Camus e Sartre filosofaram sobre os fluxos das paixões e dos afetos,
sem contar o trabalho monumental e raramente estudado de filósofas de todas as
partes do globo, como Simone de Beauvoir, com a dissociação do sexo biológico do
gênero socialmente construído; Hanna Arendt, com sua teoria política nas relações
35
de poder e violência; Gayatri Spivak, pensadora feminista indiana; María Zambrano na
Espanha pensou o misticismo e as religiões, o também espanhol e filósofo trans Paul
B. Preciado em seus estudos sobre sexualidade e farmacologia; Angela Davis e Judith
Butler nos EUA, a primeira com seu ativismo político nas questões de raça e direito das
mulheres e a segunda com a teoria de gênero; Omolara Ogundipe-Leslie também se
dedicou a questionar a opressão das mulheres, em especial das mulheres africanas e
Donna Haraway, em seu manifesto Ciborgue.
Incrivelmente, essa pluralidade de pensamento cresce cada vez mais, mesmo diante
das viciosas e amordaçantes tendências de controle epistemológico. No Brasil mais
recente, é perceptível a significativa multiplicidade de construções de conhecimento
nas ideias de Marilena Chauí, Leandro Karnal, Viviane Mosé, Djamila Ribeiro, Luiz Felipe
Pondé, Marcia Tiburi, Suely Rolnick, Rita Von Hunty (filósofa drag queen) e Ailton Kre-
nak, pensador indígena contemplado neste capítulo.
Se não bastasse toda a degradação que sofrem, ainda irrompe nesta problemática
uma questão bem mais grave que afeta diretamente o homem branco: a questão da
saúde humana em decorrência da doença da natureza. É possível, ainda hoje, pensar a
natureza como algo alheio ao homem? Como se fossemos separados dela? Se estamos
neste curso estudando formas de construção de pensamento, nada mais prudente do
que privilegiar narrativas que fogem ou pelo menos tentam furar as espirais estrutu-
rais que cerceiam os latentes embriões de pensamentos.
36
veria ser muito maior se a justiça fosse feita — e esse confinamento
involuntário nos deu resiliência, nos fez resistentes. Como posso expli-
car a uma pessoa que está fechada há um mês num apartamento numa
grande metrópole o que é o meu isolamento? Desculpem dizer isso,
mas hoje já plantei milho, já plantei uma árvore...
[...] Faz algum tempo que nós, na aldeia Krenak, já estávamos de luto
pelo nosso rio Doce. Não imaginava que o mundo nos traria esse outro
luto. Está todo mundo parado. Quando engenheiros me disseram que
iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a mi-
nha opinião. Eu respondi: ‘A minha sugestão é muito difícil de colocar
em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que
incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita
e esquerda, até que ele voltasse a ter vida’. Então um deles me disse:
‘Mas isso é impossível. O mundo não pode parar.’ E o mundo parou.
(KRENAK, 2020, p. 4-5).
Para além de todos os atributos que trazem comodidade aos nossos dias, proporcio-
nando e disponibilizando uma centena de medicamentos e tratamentos superavan-
çados que possibilitam nossas existências, mesmo diante da infinidade de vírus exis-
tentes. Como também o conforto de nossos lares, com dezenas de eletrodomésticos,
sem contar a otimização automobilística, aérea e marítima. Tudo isso é extremamente
importante e necessário, sabemos disso, mas a que preço? Ao preço de todas as nossas
reservas naturais poluídas e inundadas de garrafas pets? Ao valor de consumir alimen-
tos ultraprocessados com altas porcentagens de açúcar que simplificam nossa rotina?
Em troca de doenças como o câncer, o diabetes e uma dezena de problemas cardíacos?
37
Krenak lança um chamado para o pensamento contemporâneo, ou melhor, para a pos-
sibilidade de que tenhamos sabedoria de construir pensamentos mais afirmativos em
relação ao mundo em que vivemos: planejar estratégias inteligentes que transformem
nossas relações com o valor das coisas e o dinheiro, de modo a transformar a perspec-
tiva do extrativismo industrial mundial.
Pode-se dizer que o autor indígena que acabo de mencionar é, com certeza, um pensa-
dor indiretamente ligado às linhagens epistemológicas das filosofias de Nietzsche, De-
leuze, Guattari e Derrida. Com isso, quero dizer que a partir desses pensadores e suas
escrituras fora da curva ressalto a virada irretornável da construção do pensamento e
o estilhaçar do núcleo duro e ingênuo do entendimento do homem e da vida.
Vale lembrar o que já foi explicitado nos capítulos anteriores em respeito à elocubra-
ção de que esses estudiosos pós-estruturalistas, juntamente com Nietzsche, partilham
de uma mesma pulsão, que é romper com todo um sistema clássico de leitura que
almejava e ainda almeja um sentido extrafísico e determinantemente verdadeiro e
universal. De acordo com todas essas conceitualizações, o mais importante talvez seja
atentar para o modo como o pensamento filosófico moderno e contemporâneo desli-
za, escorre e ganha dimensões outras de realidade com as várias esferas de vida que a
gente vivencia em nossas casas, com nossos familiares, com nossos afetos e desafetos,
com nossas virtualidades e visualidades.
38
Ao afirmarem a diferença na distribuição dos seres e das coisas recusam a
noção de desejo como falta e, negam qualquer interpretação que advenha
da ideia de transcendência — como a falsa compreensão de que existe uma
origem ou destino.
39
No caso, as máquinas literárias, filosóficas e artísticas são transformadas em máquinas
de guerra, ou seja, em territorialidades que não se entendem enquanto estruturas,
mas sim como campos de forças conectadas a outras infindáveis máquinas de guer-
ra, que, juntas, formam uma imensurável máquina abstrata que se move diretamente
contra a petrificação do aparelho de Estado e suas estagnadas estruturas lógicas, mo-
rais e normativas.
Esse sistema criado por Platão media o grau de realidade com base no grau de valor
e dizia: “quanto mais ‘ideia’, mais ser’.” Adulterava o conceito de “realidade” ao afir-
mar: “o que consideramos real é um erro, e nós, quanto mais nos aproximamos da
‘ideia’ de verdade, mais nos aproximamos da ‘verdade’.” Ou seja, esta estrutura de
pensamento depositava toda a potência humana em ideias, pois acreditava que so-
mente o mundo ideal era verdadeiro e que tudo que nós construímos, sejam objetos
ou definições linguísticas que nomeiam as coisas, não passariam de cópias, reprodu-
ções das ideias originais.
Assim, Platão negava a realidade, o corpo e seus afetos. Essa foi a maior
transformação do pensamento ocidental e que ainda hoje vigora muito forte-
mente, por ter sido retomado pelo cristianismo.
40
Desse modo, é importante entender, que a história do pensamento é marcada pela
busca de uma verdade universal, pela busca do entendimento de uma primeira força
motriz. Esta força, ou melhor, a ideia de um nascimento dessa força (síntese) pode
ser compreendida a depender da linha filosófica, como: energia, espírito, alma, célula,
fogo, água, vento, raiz de todas as coisas, mônadas, coisa em si, Big Bang, homo sapiens,
deuses e os politeísmos gregos e africanos e o monoteísmo de um deus gerador que
gerou a si próprio e, neste movimento de se autogerar, gerou tudo e todos. Nietzsche
rompe total e completamente com esse modo de pensar a existência no mundo, é daí
que surgem as percepções de multiplicidade, de devir, de vontade de potência que
estamos trabalhando neste curso.
41
RE SUMO
O tema desta unidade sob à luz de uma outra ideia de construção de conhecimento, assim
como todo este curso partem da filosofia de Nietzsche, passando por Deleuze, Guat-
tari, Derrida e Ailton Krenak. Mais uma vez é preciso relembrar que a epistemologia
nietzschiana faz parte do período moderno, quando o pensamento filosófico ainda era
pautado pela busca da verdade dos conceitos irrefutáveis.
42
RE FE RÊ NCIA S
KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das letras, 2020. Dis-
ponível em: Ailton-Krenak-O-amanhã-não-está-à-venda-1.pdf-1.pdf (zendobrasil.org.
br). Acesso em: 10 de março de 2021.
43
4 Construção de um pensamento
44
quero dizer a partir do apoio dos autores que estudamos aqui, é que ainda pode-se ir
mais longe ao se exercitarem as potencialidades criativas que inventam saídas para
todas as atrocidades que sofremos diariamente.
Por qual motivo sofremos? Por obedecer a uma lógica dominante? Se concordamos
com isso, também podemos concordar que outras lógicas podem ser construídas à
medida que sejam mais aproveitáveis, alegres e dinâmicas. Se precisamos de uma lógi-
ca para viver em comunidade, que ela seja digna da vida de quem a construiu.
Felizmente, o percurso é arborescente e a terra foi contemplada por uma teia de raízes
monstruosamente indeterminada de atravessamentos que não se conformam com o
conformismo. O movimento pós-estruturalista que surgiu na França no século XX alas-
trou-se mundo afora e se expressa como uma força de extrema importância para a
filosofia, e mais ainda para a educação, assim como para as artes e para o modo como
nos encaramos e encaramos os outros politicamente em nossas relações éticas e afeti-
vas. É notória a importância desse pensamento nas produções acadêmicas das últimas
décadas, tendo contribuído para o surgimento de uma centena de outros pensadores,
pensadoras e todos os gêneros brilhantemente potentes.
45
É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar socie-
dade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisaria dois
tipos de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de sobe-
rania e as sociedades de controle. A passagem típica de uma sociedade
de soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu, segundo ele,
com Napoleão. A sociedade disciplinar definia-se — as análises de Fou-
cault, com todo mérito, por causa disso tornaram-se famosas — pela
constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas,
hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso. [...]
Essa análise engendrou ambiguidades em certos leitores de Foucault,
pois se pensou que essa era sua última palavra. Evidentemente que
não. Foucault jamais pensou, e ele o disse com bastante clareza, que
as sociedades disciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava que en-
traríamos num tipo de sociedade nova. É claro que existe todo tipo de
resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio,
mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro
tipo, que deveria chamar-se, segundo o tempo proposto por William
Burroughs — e Foucault tinha por ele uma viva admiração —, de socie-
dade de controle. (DELEUZE, 1999, p. 11)
Ainda que a história da filosofia se caracterize por uma sucessão de rupturas, realiza-
das por pensadores que desmontavam teorias pregressas, esses rompimentos eram
apenas parciais, porque sempre restava um resquício de segurança estrutural, restos
de territorialidades em que ainda era possível pisar. No entanto, com a força da ruptu-
ra nietzschiana não sobrou nenhum solo, nenhuma terra, nenhum lugar de segurança,
tamanha a erosão provocada por seus escritos.
46
Nosso entendimento é uma força pouco profunda, é superficial. Ou,
como também se lhe denomina, é “subjetivo”. Ele conhece através
de conceitos: isso significa que nosso pensamento é um rubricar, um
nomear. Algo, portanto, que resulta de um arbítrio do homem e que
não remonta à própria coisa. Apenas mediante o cálculo e tão somen-
te nas formas do espaço possui o homem conhecimento, quer dizer,
os últimos limites do que pode ser conhecido são quantidades, sendo
que ele [o homem] não compreende nenhuma qualidade, mas apenas
uma quantidade. [...] Qual poderá então ser a finalidade de tal força
superficial? [...] Ao conceito corresponde, em primeiro lugar, a imagem;
imagens são pensamentos primordiais, isto é, as superfícies das coisas
abreviadas no espelho do olho. [...] A imagem é outra coisa, o modo
matemático é outra. [...] Imagens nos olhos humanos! Eis o que domina
todo ser humano: a partir do olho! Sujeito! O ouvido escuta o som! Uma
concepção maravilhosa e inteiramente diferente do mesmo mundo.
(NIETZSCHE, 2007, p. 60)
Nesta percepção, o filósofo ainda vai dizer que “[...] todo conhecimento surge por
meio de separação, delimitação e abreviação; não há conhecimento absoluto de uma
totalidade!” (NIETZSCHE, 2007, p. 66). A subjetividade e, consequentemente, a sua
criação surgem exatamente da transdisciplinaridade de saberes, do impulso criador,
afirmador da vida, que, no contexto lógico e racional, era e ainda é solapado pelo vi-
ciante impulso à verdade. É importante ressaltar que o estudo desse tema também
está presente na primeira unidade deste curso. Para o pensador, a gana de provar a ve-
racidade dos conceitos é o que nega a vida, pois a submete à convenção e ao contrato.
47
o comentador nietzschiano Karl Jaspers, de todas as contribuições de sua filosofia,
diferentemente do que falam sobre a sua obra de maneira equivocada, a mais essen-
cial, sem dúvida, não é a seriedade descomunal de sua vida na vontade de ruptura
com tudo, mas, com certeza, a vontade do sim, da afirmação da vida e do que nela é
diferença e subjetividade.
Deleuze e Guattari, por exemplo, assim como Nietzsche, fizeram uma reflexão sobre o
ser em sua teoria da diferença, afirmada na ideia de acontecimento dos agenciamentos
possíveis, ao prescreverem a necessidade de se produzir linhas de fuga e de resistência
aos totalitarismos de toda ordem investidos sobre as democracias contemporâneas.
Nada mais urgente do que abrir caminhos hoje, permitir o advento da mudança, da al-
ternativa, da trajetória que faz a curva e que não se paralisa diante dos impedimentos
associados aos fatores políticos e psicológicos, tendo em vista, ainda, o acirramento
liberalista das dinâmicas de poder que transformam tudo e todos em meros produtos
a serem comercializados nos pregões da bolsa de valores, em um mundo em estado
de surto. A sensação é a de que tudo e todos resolveram se rebelar ao mesmo tempo.
Diante desses abismos só nos resta criar saídas, imaginar soluções para as nossas mi-
cropolíticas de cada dia, sonhar realidades mais proveitosas, apaixonantes e alegres
assim como as da personagem da Moça Tecelã, de Marina Colasanti, que, inconforma-
da com sua história, em um gesto de fabulação acabou por instaurar linhas de fuga,
fluxos que fugissem da lógica na qual ela estava inserida. A personagem da Tecelã,
assim como a ideia de feminilidade, hoje são perspectivas que extravasam qualquer
leitura sobre a mulher ocidental, ou seja, quem dá sentido à própria existência é o su-
jeito que se pensa para além das conceitualizações vigentes. No conto de Colasanti, a
personagem não vê beleza nesse lugar de reprodução do movimento da ação e reação
inscrita na nossa cultura. Ao contrário, não há como haver beleza no cerceamento, na
opressão, na estigmatização das sequenciais violências dos feminicídios.
48
não se situou nesse novo cenário mundial. A Tecelã, inconformada por tecer aquilo
que está pautado pela moral, estabelece uma fuga, ou melhor, um movimento aber-
rante que é contrário à norma ao destecer o que ela mesma reproduziu.
49
GLOSSÁRIO
Linha de fuga: ação de fugir e de romper que conduz a outro modo de exis-
tência, que não se encerra apenas ao burlar as vias reconhecíveis e determi-
nadas, mas também à possibilidade de fluição, de deixar-se ir.
50
RE SUMO
51
RE FE RÊ NCIA S
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O ato de criação. São Paulo: Folha de São Paulo, 1999.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Que é filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010.
52