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Construção do pensamento

Construção do pensamento
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autorização desta instituição.

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

AUTORIA DO CONTEÚDO
Eduardo Reis Silva

REVISÃO
Janaina Vieira
Lydianna Lima

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


UVA

S586 Silva, Eduardo Reis.


Construção do pensamento [recurso eletrônico] / Eduardo Reis Silva. –
Rio de Janeiro: UVA, 2021.

1 recurso digital (1285 KB)

Formato: PDF
ISBN 978-65-5700-109-7

1. Pensamento. 2. Teoria do conhecimento. 3. Racionalismo. I. Universidade
Veiga de Almeida. II. Título.

CDD – 153.42

Bibliotecária Adriana R. C. de Sá CRB 7 – 4049.


Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA.
A P RE SE NTAÇ ÃO

O que é construir o pensamento? Como ele se constrói? O pensamento é um espaço


rígido, claro e objetivo pronto para ser usado, como um HD? Ou indiscriminadamen-
te é assim que ele vem sendo formatado? Existem formatos predeterminados para a
racionalidade? Se sim, eles podem sofrer mutações, ressignificações e reinicializações
aos “padrões de fabricação”?

Esses questionamentos atravessam as mais diversas fundamentações de sistemas filo-


sóficos, desde o período clássico grego até o presente. Isso quando tratamos a história
por uma perspectiva eurocêntrica, que, em seu recorte, desprivilegiou toda uma gama
de pensadores africanos, asiáticos e latino-americanos. Somente por meio dessa leitu-
ra é possível constatar o quanto fomos e somos induzidos a conduzir um bastão que
não é nosso, de um jogo olímpico do qual não fazemos parte.

Metáforas à parte, o que se pretende dizer é que tudo é narrativa e narrar é contar
história — a palavra cria dimensões formais e inteligíveis para tudo que existe e possa
vir a existir no âmbito das relações interpessoais, nas quais todos estamos inseridos.

A construção do pensamento enquanto campo de aprendizagem apresenta-se como


uma problemática para si mesma. Trata-se, nessa experiência, de detectar que o pen-
samento pode e deve pensar sobre si próprio. Nesse movimento, compreender que é
possível desnaturalizar formas, contextos e tudo o que estiver amparado na linguagem.

Pensar o modo como se entende a filosofia hoje é determinante para se avaliar quais
os caminhos e descaminhos propostos pelo seu ensino na contemporaneidade. Não
menos indispensável é a responsabilidade ética. Esta, não com a intenção de que se
faça cumpri-la cegamente, mas no sentido de sempre estar em estado de alerta para
investigar os princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o compor-
tamento humano, na intenção de criar reflexão a respeito das normas vigentes, dos
valores velhos e novos e das prescrições pungentes de qualquer realidade social.

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A multiplicidade de filosofias construídas ao longo da história, assim como as plurais
leituras que são construídas a partir delas, estão destacadas neste e-book, de forma
que se perceba a importância e a urgência de uma reflexão em perspectiva ao se con-
siderarem os contextos epistemológicos, artísticos, afetivos e psíquicos da vida social
e profissional que se pretende.

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AU TO R

EDUARDO REIS SILVA

Dramaturgo, diretor teatral e professor universitário. Doutorando em Artes Cênicas


pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Mestre em Literatura e Crítica literária
pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP (2019). Licenciatura Plena em Filosofia
pela Faculdade de São Bento (SP-2012). Estreou no festival de Curitiba (2013) o espe-
táculo Eu e o coração torturado de Jean-Nicolas, de sua autoria e direção, que também
cumpriu temporada no Solar de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, em novembro
do mesmo ano. Em Paris, participou de workshops com François Chaignaud e Joris
Lacoste (2011). Em 2010 foi colaborador dramatúrgico na adaptação do espetáculo O
Banquete, no Teatro Oficina, em São Paulo, com direção de José Celso Martinez Cor-
rea. Em 2008 dirigiu o espetáculo Espelhos Partidos, livremente inspirado na narrativa
poética de Hilda Hilst. Em outros processos coletivos trabalhou com Georgette Fadel
e Claudia Schapira. Entre 2001 e 2004 integrou um núcleo de investigação cênica e
dramatúrgica coordenado por Antônio Araújo (Teatro da Vertigem) e Luís Alberto de
Abreu, quando desenvolveu dois espetáculos colaborativos: Crime e castigo (2003) e
Para aqueles que sempre nos amaram (2004).

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CAPÍTULOS

1
Multiplicidades epistemológicas na trajetória do
racionalismo ocidental

2
A aceleração tecnológica e o descrédito do mundo
suprassensível

3
Sob à luz de uma outra ideia de construção de
conhecimento

4 Construção de um pensamento
1 Multiplicidades epistemológicas na trajetória
do racionalismo ocidental

Neste capítulo abrem-se oportunidades de conexão com outras potências de cons-


trução de pensamento, com o trabalho de desconstrução de saberes lógicos e, conse-
quentemente, com a ideia de verdade e mentira da filosofia nietzschiana. Destacam-se,
acima de tudo, a abertura e a disponibilidade para o entendimento das multiplicidades
de linhas, sistemas e correntes filosóficas que exploram, das mais variadas formas, os
modos de pensar os embriões de nossas forças de ação contra a estagnação das capa-
cidades intelectuais, emocionais e linguísticas.

O que eu posso e o que eu não posso quando o assunto é o próprio pensamento?


Giorgio Agamben (2015) em A potência do pensamento: ensaios e conferências,
propõe uma interessante indagação:

Não se trata, para mim, de voltar a dar atualidade a categorias filosófi-


cas caídas no esquecimento há muito tempo; estou convencido, pelo
contrário, de que esse conceito nunca deixou de operar na vida e na
história, no pensamento e na prática dessa parte da humanidade que
acrescentou e desenvolveu a tal ponto sua potência que impõe a todo
o planeta seu poder. Em vez disso, seguindo o conselho de Wittgens-
tein, segundo o qual os problemas filosóficos se tornam mais claros se
os formulamos como perguntas sobre o significado das palavras, gos-
taria de enunciar o tema de meu estudo como uma tentativa de com-
preender o significado do sintagma ‘Eu posso’. O que queremos dizer
quando dizemos: ‘Eu posso, eu não posso?’ (AGAMBEN, 2015, p. 243)

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O filósofo italiano deixa claro o quanto é desnecessário continuar afirmando linhagens
filosóficas que não fazem mais sentido na contemporaneidade, como também ressal-
ta a necessidade de refutar o sentido das palavras e termos que sustentam as ideias
que determinaram, determinam e determinarão os nossos modos de pensar.

A liberdade de pensamento pode dar seus primeiros sinais quando se entende que
os fluxos mentais são também espaços de contaminação das mais variadas forças de
atravessamento. O meu corpo, assim como o seu, de sua mãe, de seu pai e de seus ir-
mãos são perpassados por tsunamis de cargas sensoriais e mentais o tempo todo — é
o famoso bombardeamento midiático com suas viralizações. Imaginem isso somado
a todas as informações que nos invadem em nossas existências mínimas, de nossas
casas, quartos e cozinhas. Toda essa informação é sugada para dentro de nossos pen-
samentos. Portanto, posso simplesmente reproduzir ideias prontas, afirmar valores
ultrapassados, ser conivente com um arsenal de atrocidades, simplesmente pelo fato
de que uma esfera de poder, não somente política, mas sobretudo epistemológica,
determinou o que pode ou não ser verdadeiro, correto e de bom-tom.

O estudo da filosofia é constantemente abordado em instituições de ensino apenas


por uma perspectiva histórica, muitas vezes com especificidades meramente repre-
sentativas e conteudistas. É importante saber quem foi Sócrates, Platão e Aristóteles?
Sim, com certeza. Foram os principais pensadores do período clássico grego.

Sócrates, por exemplo, é visto como um dos fundadores da filosofia oci-


dental. Já Platão foi seu discípulo e também quem documentou de forma
escrita os pensamentos de seu mestre, bem como fundou a primeira Aca-
demia onde se reuniam os interessados em estudar matemática, ciências
e filosofia. Dentre eles, destaca-se Aristóteles, que mais tarde criaria sua
própria fundamentação teórica.

Esses primeiros pensadores, cada um a seu modo, tiveram como objeto de estudo a
própria racionalidade, que abarcava as seguintes sentenças:

• O que é o mundo sensível e o que é o mundo inteligível?


• Quais os limites da razão?
• Seria possível chegar a ideias universais, a verdades indubitáveis?
• Qual a origem de todas as coisas?

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Tais perguntas tentavam sintetizar o conhecimento em sentenças universais, na inten-
ção máxima de entender e dominar por completo a vida e o mundo, pela via da razão.
Essas premissas conduziram toda a história do pensamento ocidental, alicerçaram o
seu processo ao logo dos anos e das épocas, fazendo com que, por mais que existis-
sem reviravoltas, descobertas e refutações de teorias, a razão como campo de produ-
ção de verdades sempre teria o status de protagonista.

Dando um salto temporal (até porque o período medieval e a filosofia da religião não
são interessantes para este momento), de René Descartes, filósofo francês, com sua
filosofia categoricamente fundada em sentenças exatas, cunhou em seu livro Discur-
so do método (1637), as bases modernas do racionalismo, até Immanuel Kant, que
fundiu os estudos empíricos (oriundos das experiências e sensações) com a tradição
racionalista em A crítica da razão pura (1781).

Feitas as resumidas apresentações de momentos pontuais da historiografia do pen-


samento, é preciso dizer que até agora não falamos de filosofia, mas sim sobre os
pensadores que fizeram filosofia. Sobre suas histórias e teorias principais, apresenta-
mos apenas notícias. Com isso, queremos reafirmar o já sabido: estamos habituados,
ou melhor, viciados a interagir em redes sociais, artigos de jornais e programas de TV
apenas pela via da informação. Percebemos o quanto se valoriza uma pessoa bem in-
formada. Como se diz no jargão popular: uma pessoa que sabe das coisas.

A questão é a seguinte: o que se faz com a informação? Ela é meramente


depositada em receptáculos cognitivos, como se a potencialidade de pen-
sar tivesse apenas a limitação de receber conteúdos?

Nesse sentido, o trecho citado no início desta seção, do filósofo italiano Giorgio Agam-
bem, traz uma provocação ao tema deste capítulo: multiplicidades epistemológicas
na trajetória do racionalismo ocidental. Assim, aproveitamos para lançar a reflexão:
qual a potencialidade do pensamento agora, neste instante, diante de tantas teorias
históricas canonicamente enrijecidas, irrefletidamente e sistemicamente direcionadas
por especialistas que sempre obedecem a uma lógica que julgam ser de extrema rele-
vância, mas que, no fundo, não passa de tecnicismo limitador?

Tudo que se apresenta, desde palavras e coisas, pode ser entendido como verdadeiro
apenas pelo fato de que se convencionou cingir o mundo, entre ideias falsas e verdadei-
ras, como Descartes afirmou? O que é verdade e o que é mentira, já que tudo é palavra,
e que tudo passa por ela para ganhar sentido no mundo? Então, posso dizer que toda
palavra é mentira, pelo entendimento de que ela é uma criação linguística? E no que diz

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respeito às ideias de Kant, em que a experiência contribui para o conhecimento? Nas
ideias contemporâneas existe uma configuração entre a ficção das virtualidades com a
vida real, nas infindáveis duplicações de identidade projetadas em redes sociais?

As margens que separam ficção e realidade estão cada vez mais borradas, porém isso
não é de agora. O pensador alemão Friedrich Nietzsche, cujas ideias são o fio condutor
deste curso, já lançava luz sobre a questão em O nascimento da tragédia ou hele-
nismo e pessimismo, no sentido de que: “[...] somente como fenômeno estético, a
existência e o mundo aparecem eternamente justificados [...]” e que “[...] o homem não
é mais artista, tornou-se obra de arte [...]” (NIETZSCHE, 1992, p. 31).

Nesta perspectiva, temos uma humanidade que não está apartada da arte e da lingua-
gem. Ao contrário, somente temos entendimento de mundo e de nós mesmos porque
existe a linguagem e porque existe a arte. A ficção está indissociavelmente entrelaça-
da no que se convenciona como realidade.

Assim, quem é a pessoa de carne e osso e quem é a pessoa projetada


nos vários perfis que sustentam uma outra sociedade, agora mais virtual
que nunca?

Todos os questionamentos levantados até aqui são importantes para fazer pensar, ou
melhor, para impulsionar e instigar o pensamento a criar possibilidades de desloca-
mentos conceituais, fazê-los dançar, andar, pular, saltar até que se lancem para fora
de suas redomas. Para isso, a proposta é estar sempre se questionando sobre como a
realidade é composta. Ainda mais importante é reconhecer nossos papéis enquanto
compositores de outras realidades possíveis, a fim de não mais dar vazão apenas à
replicação de valores.

O mundo não é uma realidade única. Ao contrário, sua composição permite


inumeráveis qualidades de existências que estão aí. Não as vemos devido à
mecanização do nosso modo de ver? É nessa perspectiva que os pensadores
modernos e contemporâneos pensam o mundo: para além do já conhecido,
compreendendo que tanto nós quanto a vida somos multiplicidades.

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Desse modo, a crítica de Nietzsche em Sobre verdade e mentira no sentido extra-
-moral (1986) é o que inicia o processo de reconfiguração das multiplicidades do
pensamento. Para o pensador alemão, não seria possível afirmar a existência de co-
nhecimentos indubitáveis, “[...] pois todo conhecimento surge por meio de separa-
ção, delimitação e abreviação; não há conhecimento absoluto de uma totalidade! [...]”
(NIETZSCHE, 2007, p. 66), conforme foi destacado no pretenso racionalismo de Platão,
Descartes, Kant e de tantos outros filósofos.

Nietzsche, diferentemente desses pensadores, desmascarou o entendimento dado


aos conceitos e às palavras apenas por uma angulação. As terminologias, para o pen-
sador alemão, são porosas, moventes, sofrem alterações, ganham outros significados.
Muitas delas desaparecem, outras surgem nos encontros com outras línguas, com ou-
tros povos e com os adventos culturais. Um exemplo disso é a própria tecnologia, que
incorporou um novo vocabulário em nossas redes de comunicação.

Portanto, para Viviane Mosé, grande pensadora nietzschiana, é preciso pensar se a lingua-
gem, se a formação das palavras e suas articulações pelas regras gramaticais, se a constru-
ção de conhecimentos não seriam apenas submissões morais. Mosé ainda diz que, falar,
para Nietzsche, é atribuir valor. Para que fique claro, a grande crítica e o grande insight de
Nietzsche partem exatamente desta questão, ou seja, há um abismo entre o universo dos
códigos, o modo como eles se ordenam e o que de fato acontece no mundo.

É o que Karl Jaspers, em seu estudo Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche,


também explica ao questionar o que até então era praticamente inquestionável. A
ciência e a filosofia sempre estiveram em lugares intocáveis, sempre recorremos a
elas, em alguma instância, seja para dar crédito ao que falamos ou para findar qual-
quer dúvida.

O que Nietzsche faz é desmistificar o caráter inquestionável de ambas. O filósofo


quebra o binarismo estrutural dos termos “verdade” e “mentira” ao propor pensar na
diferença. Estabelece a desnecessidade de verificar a veracidade das coisas a fim de
pensar de modo diferente para criar alternativas, rotas e saídas para o entendimento
de nós mesmos na vida que levamos, sem com isso necessitar comprovar verdade al-
guma. Assim, ganha-se a compreensão de que tudo estaria sob a perspectiva da multi-
plicidade e da movência das conceitualizações.

Portanto, a relação de verdade produzida pela fala e pela palavra é uma produção de
signos, é um acordo fálico, branco, autocentrado nas instituições que as criaram. Para
o filósofo alemão ela é uma determinação e, acima de tudo, uma imposição. O modo
como eu penso, desejo, gozo, me alimento, sonho e até mesmo meus pesadelos, mi-
nhas angústias e tristezas são produtos de uma linguagem criada e imposta. Somos o
tempo todo sugestionados por estratégias mercadológicas e algoritmos.

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Existimos, assim, em ordenações que sucedem a nós mesmos? Por exem-
plo: o modo como nos relacionamos afetivamente. Quem determinou
como eu devo amar alguém? Qual a maneira correta de se amar alguém?
Existe um padrão?

As palavras não nasceram naturalmente das coisas, muito menos as palavras repre-
sentam as coisas. Nomear, dar nomes, criar sentidos, diz Nietzsche em Genealogia da
moral, é um ato de quem comanda, é uma relação de comando. A história do conheci-
mento é marcada por quem deu nome às coisas, e isso é exatamente marcado por um
lugar de quem tem poder.

Gilles Deleuze, em Nietzsche e a filosofia, esclarece que tudo passa pelo ato de in-
terpretação e não pela busca da expressão da verdade. Em Genealogia da moral ele
questiona filosoficamente justamente qual é o valor dos valores, apresentando o cerne
do problema. É nesse sentido que Deleuze afirma que o filósofo assume o lugar de
um genealogista. A grande questão para Nietzsche é que temos a sensação de que os
valores são naturais.

Vamos fazer esse exercício de pensar criticamente! Quais os parâmetros


utilizados em muitos momentos no Brasil para impedir a exposição de
intervenções artísticas com a justificativa de que tais obras não são arte
verdadeira? Quais os “valores” produtores dessa forma de valoração que
direcionam uma forma de pensar a arte, senão o olhar de um determinado
segmento social? Essas ações são sintomas de forças que se apropriam e
exercem dominação.

Quando avaliamos algo, o fazemos partindo de critérios de valor, baseamo-nos em um


conjunto de premissas para dizer se algo é bom ou não. Sempre buscamos referências
preexistentes para avaliar. Se pensarmos bem, veremos que essas premissas, que ser-
vem de parâmetros para julgar as coisas, também são pontos de vistas de um certo
modo de viver. Assim, quando ajuizamos como boa ou ruim determinada religião, arte,
forma de constituição familiar, entre tantas outras coisas, é importante pensar quais
os parâmetros que tornaram esses valores legítimos.

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É o que se pode ver também em Nietzsche e a filosofia. Neste livro, Deleuze e Guat-
tari elaboram um estudo acerca da construção do pensamento filosófico de modo crí-
tico e anacrônico, quando trazem as noções de rizoma, sistemas acentrados e dester-
ritorialização, ideias que fundamentam a compreensão de que a filosofia é criação e
invenção de outras formas de conceber o mundo.

A psicanalista brasileira Suely Rolnik, sinaliza, assim como Nietzsche, Deleuze e Guat-
tari sinalizaram, a importância do movimento que transforma tudo e todos o tempo
inteiro e como isso deve ser ainda mais problematizado. Na atualidade, justamente é
a lógica capitalista ao fazer evaporar tudo que é sólido, em sua gana extrativista de fa-
zer tudo virar produto para ser consumido, que consome o próprio planeta, tornando
impraticável a vida na Terra.

No prefácio de seu livro Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetina-
da, Paul B. Preciado faz uma potente observação acerca da contemporaneidade com
o advento tecnológico, ao afirmar a mais do que necessária intensificação de engaja-
mento para a confecção de outras maneiras de relação com as subjetividades e seus
agenciamentos:

Vivemos um momento contrarrevolucionário. Estamos imersos em


uma reforma heteropatriarcal, colonial e neonacionalista que visa
desfazer as conquistas de longos processos de emancipação operá-
ria, sexual e anticolonial dos últimos séculos. Como já anunciava Félix
Guattari em 1978, respirar se tornou tão difícil como conspirar. Se de-
trás do brilho da prata de Potosí se ocultava o trabalho exterminador
da mina colonial no século XVI, detrás do brilho das telas se ocultam
hoje as formas mais extremas de dominação neocolonial, tecnológica
e subjetiva. A obscura era do pixel poderia ser inclusive a última, se não
conseguirmos inventar novas formas de equilíbrio entre os mundos do
carbono e do silício, novas modalidades de diálogo entre as entidades
subjetivas, maquínicas, orgânicas, imateriais e minerais do planeta.
(PRECIADO, 2018, p. 11).

Neste sentido, a ideia de subjetivação presente nos estudos de Rolnik pode ser vista
apenas como uma essência do que há no interior de cada um de nós? Na verdade, a
psicanalista problematiza a concepção de uma subjetividade apenas interna. Para ela,
esse movimento é proporcionado pela multiplicidade de encontros em cada momen-
to da vida. Cartografar as movências implica atentar para os devires e não para uma
captura fixa das nossas interioridades. É compreender os atravessamentos que nos
constituem. A esse respeito, vale refletir sobre como a espetacularização do “eu”, no

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mundo contemporâneo, nas redes sociais, produz e impõe modos de ser, de viver e de
estabelecer relações com o outro.

Filosofar não é informar, representar, descrever, projetar, descobrir, mas


sim criar, relacionar, desfazer fazendo. Afinal, como vimos com Nietzsche,
o que chamamos de verdade são metáforas que se esqueceram de que são
metáforas. Descosturar essas verdades, portanto, é um ato de pensamento.

Os artistas são pensadores, as artes produzem pensamentos. Tanto Nietzsche como


Deleuze propõem uma atitude criadora diante da vida. Outras formas de interpretar o
mundo possibilitam outros modos potentes de vida e esses são gestos de arte: é o que
Nietzsche denomina de vontade afirmativa de potência.

Não por acaso, a linguagem, como afirma Nietzsche, é um jogo legislativo. E não só
isso, ela é também uma amputação, porque separa determinadas características de
uma realidade para poder embuti-las no universo de uma palavra. Ao fazer essa sele-
ção abre-se mão de determinadas paisagens para o fortalecimento de outras. A histó-
ria é toda narrada por essa via seletiva e por olhares assépticos.

É possível existir verdade se tudo passa pela enunciação e pelo discurso? Ao discursar,
eu não estou reduzindo aquilo que eu estava querendo dizer? Este texto é um exem-
plo disso, um conglomerado de palavras para tentar criar um discurso plausível, que
seja compreendido por todos. Para Mosé, é a esse limite que Nietzsche se refere em
sua crítica da linguagem.

O que é, na verdade, falar? Falar é enjaular determinados códigos dos vio-


lentos fluxos de coisas que estão entrando em choque o tempo todo. A fala
trabalha com a representação das coisas, com o signo delas e não com elas.
A pedra, a água e o sol não eram pedra, água e sol antes do advento huma-
no na Terra. O que eles eram? O que as coisas são antes de terem nome?

É por acreditar em perspectivas fixas que a humanidade impôs modos de viver, de ser,
de estabelecer relação com o outro, de se apropriar da natureza, em um desejo racio-
nal de modernidade e evolução, que acabou instituindo, com tais condutas, formas de
pensar e interpretar a vida com verdades absolutas. Foram justamente esses gestos

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que naturalizaram violências e tornaram legítimas, em muitos momentos, a domina-
ção, a hierarquização, a violência e a extinção.

Devemos pensar o agora como uma força de transmutação de valores ininterrupta,


abertos a outros modos de viver, aos cruzamentos, trocas e encontros e não como uma
amortização das potências criativas. Fazer valer a existência é estar ciente do confron-
to corajoso frente aos comandos diários a que somos sujeitados desde que nascemos.

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RE SUMO

Destacou-se, nesta perspectiva, a importância de se reconhecerem as multiplicidades


e ramificações epistemológicas que construíram e desconstruíram os conceitos, os
desvios e linhas de fuga do movimento filosófico moderno e contemporâneo em cor-
respondências críticas com os pensadores clássicos. O entendimento desses argumen-
tos é fundamental para descolonizar o pensamento estrutural que, ainda hoje, vigora
em todas as instâncias sociais.

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RE FE RÊ NCIA S

AGAMBEN, G. A potência do pensamento: ensaios e conferências. Tradução de Antô-


nio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. O Que é filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto


Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010.

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: N-1, 2018.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia. São Paulo: Editora 34, 1997.

JASPERS, K. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. Tradução de Marco An-


tônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2015. Minha Biblioteca.

MACHADO, R. O professor e o filósofo. In: Revista Trágica: estudos de filosofia da


imanência. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015. Disponível em: TRÁGICA: Estudos de Filosofia
da Imanência (ufrj.br). Acesso em: 15 jan. 2021.

MOSÉ, V. Especial Nietzsche no café filosófico. 29/03/2009. YouTube. Disponível


em: (29) Especial Nietzsche Viviane Mosé Café Filosófico Exibido dia 29 03 2009) avi -
YouTube. Acesso em: 15 jan. 2021.

NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Hedra, 2007.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:


Companhia de Bolso, 2007.

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.

PRECIADO, P. B. Um prólogo para Suely Rolnik. In: Esferas da insurreição: notas para
uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1, 2019.

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2 A aceleração tecnológica e o descrédito do mundo
suprassensível

Com o advento da modernidade e a constante ruptura com tudo que não era e conti-
nua não sendo pautado pela ciência e pela tecnologia, abriu-se espaço para o confron-
to inevitável com escolas de pensamento, sistemas filosóficos e sistemas religiosos
que depositavam e buscavam respostas em possíveis territorialidades suprassensíveis
(metafísicas), como se a vida tivesse que ser legitimada apenas por uma outra realida-
de, em suma, universal e inquestionável, que ultrapassaria aquilo que pode ser per-
cebido por meio dos sentidos. Com os conflitos bélicos mundiais, com a Revolução
Industrial e a Revolução Digital em larga escala, tudo se transformou. Porém, quando
se trata de construção de pensamento, ainda existem resquícios conflitantes sobre os
modos de pensar e construir pensamento na contemporaneidade. É o que você pode-
rá acompanhar neste capítulo.

A filosofia de Nietzsche impulsionou o pensamento moderno e, consequentemente,


contribuiu para o desabrochar de questões que movimentaram e continuam movi-
mentando a produção de conhecimento na contemporaneidade. É o que se percebe
ao ler pensadores como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, David Lapou-
jade, Suely Rolnik, Viviane Mosé, Peter Pál Pelbart e Roberto Machado, todos contem-
plados neste curso.

As ideias nietzschianas foram responsáveis pelo reconhecimento e pela abertura de


outras vias de leitura, análise e compreensão da vida e da própria filosofia, como tam-
bém pelas desterritorializações da racionalidade hegemônica vigente no século XIX,
em referência ao pensamento como centralizador e detector exclusivo de produção

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de verdades universais. Você pode estar se perguntando o que quer dizer essa palavra
tão usada pelos autores que estamos estudando: “desterritorialização.”

Primeiro, vamos entender o que é estar “territorializado”. Suponhamos que um gru-


po de pessoas fosse lançado em um planeta onde jamais houve vida humana. Imagi-
nemos, também, que esse grupo de humanos tenha passado por uma máquina que
apagou qualquer tipo de memória. A partir daí, eles terão que construir, entre eles,
leis de convivência, maneiras de se relacionar com as coisas, formas de comunicação.
Lembre-se de que eles não têm nenhuma lembrança, nem das formas de comunicação
nem mesmo das ideias de tempo e lugar. Todos os conceitos que conhecemos — o que
é vida, o que é família, o tempo, o que são as crenças, o que é moralmente correto —
serão construídos. Essas pessoas estão soltas em um mundo e, para conviver com ele,
terão que se territorializar, fazer recortes, usar pedaços de terra, relacionar-se com
parte dela, ou seja, enquadrar o mundo novo em conceitos, em linguagens, em um
sistema de moral para se compreenderem na relação com esse mundo.

Compreende que tudo isso que eles construirão nesse contato com o novo
mundo são enquadramentos? Formas de se relacionar com o mundo, e não
a verdade desse mundo? São maneiras de apalpar o mundo em que habi-
tam sem memória. Se entendermos que tudo isso é criado, entenderemos
o que é desterritorializar: quando tiramos uma fotografia, enquadramos o
espaço. Por isso, muitas vezes, não reconhecemos que lugar é esse da foto,
porque é enquadramento, e não o lugar em si.

A nossa dificuldade de pensar as coisas deve-se ao fato de estarmos contaminados


demais pelos automatismos da nossa memória — refiro-me, aqui, a uma memória cul-
tural, socialmente construída —, por isso repetimos sempre, mesmo quando acredi-
tamos que estamos pensando. Vemos apenas os enquadramentos, enquanto a vida
de fato está acontecendo em sua dimensão mais ampla de todos os lados, ao mesmo
tempo — por isso, é necessário desterritorializar, fazer novos recortes do mundo para
sair do automatismo e produzir pensamento de fato.

O que Nietzsche faz é justamente nos contar que somos essa comunidade que foi
lançada neste mundo e que tivemos que inventar formas de viver, falar e construir
relações e conceitos. Só que nos esquecemos de que foi um enquadramento e acredi-
tamos que o sistema moral que criamos é a realidade. Com Nietzsche, portanto, per-
cebe-se uma intensificação da filosofia crítica, ou seja, do pensamento criticando sua
própria dimensionalidade.

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Emmanuel Kant, antecessor de Nietzsche e último pensador clássico, também já havia
produzido, em sua Crítica da Razão pura (1781), posicionamentos avaliativos acerca
da procedência epistemológica, porém “jamais ousou colocar em questão o valor da
verdade nem as razões de nossa submissão ao verdadeiro” (DELEUZE, 2018, p. 118).
Nietzsche redireciona toda a história do pensamento ocidental não apenas na propo-
sição de uma quebra conceitual que visaria uma nova perspectiva, uma nova teoria ou
descoberta de um novo sistema norteador, mas, sobretudo, a partir da ideia de que
o conhecimento em si é múltiplo, multifacetado, superabundante e sem-fim, não se
encerrando em nenhuma verdade indubitável.

Para Nietzsche, seria impossível pensar em apenas uma força dominante e indivisível,
da qual todas as outras nasceriam. Os campos de forças que atravessam nossas expe-
riências no mundo, em todos os momentos de nossas grandes e pequenas existências,
são vontades de potência, pulsações e pulsões que nos fazem mover, expandir e nos
potencializar em nós mesmos. Nessa perspectiva, o filósofo alemão, em vez de conti-
nuar afirmando a vontade de verdade — que foi exaustivamente marcada por todos
os pensadores até então como instância suprema, com a ideia de um Deus inquebran-
tável —, criará a vontade de potência.

É como se você pudesse ter a clareza de que pode ser mais do que é, sem deixar de ser
aquilo que é. Não como meritocracia, muito menos no âmbito das vaidades, mas sim
no que deve ser alargado no sentido das instâncias de potencialidades de vivências,
do poder de ser afetado pelas experiências e pelos atravessamentos que extravasam
a ideia de si mesmo.

Como tirar proveito e aprendizado dos acontecimentos de toda natureza, que estão
na ordem dos dias, que enredam os meses e os anos das trajetórias de cada um? Niet-
zsche afirma que o começo de tal processo se dá pela destruição de qualquer possi-
bilidade de conhecimento metafísico (aqueles que transcendem a natureza física das
coisas, como a ideia de Deus). No trecho a seguir Deleuze comenta que:

A filosofia de Nietzsche só é compreendida quando levamos em conta


seu pluralismo essencial. E, na verdade, o pluralismo (também cha-
mado empirismo) e a filosofia são uma única coisa. O pluralismo é a
maneira de pensar propriamente filosófica, inventada pela filosofia:
único fiador da liberdade no espírito concreto, único princípio de um
violento ateísmo. Os deuses morreram, mas morreram de rir ouvindo
um Deus que disse que era o único. “Justamente isso não é divino, que
haja deuses, mas nenhum Deus? E a morte deste Deus é um aconteci-
mento cujo sentido é múltiplo. Eis por que Nietzsche não acredita nos
“grandes acontecimentos” ruidosos, mas na pluralidade silenciosa dos

21
sentidos de cada acontecimento. Não existe sequer um acontecimen-
to, um fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo sentido não
seja múltiplo. Alguma coisa ora é isso, ora aquilo, ora algo mais com-
plicado segundo as forças (os deuses) que dela se apoderam. (DELEU-
ZE, 2018, p. 12)

Pode-se imaginar, então, dentro desse pensamento deleuziano acerca da filosofia de


Nietzsche, as seguintes indagações: o que é o homem no mundo? Qual é a sua relação
com este mundo sem Deus? O pensador alemão perceberá que não foi Deus que mor-
reu, mas sim a própria humanidade, que deixou de delegar somente aos deuses suas
súplicas e seus pedidos de misericórdia. Com o advento científico em franca expan-
são na modernidade e com a aceleração tecnológica, as respostas que anteriormente
eram designadas ao sagrado dos sistemas religiosos agora estão nas mãos de médicos,
farmacêuticos, físicos, astrônomos e cientistas de todas as ordens. Esse desafio da
subjetividade, porém, não diz respeito a um objeto claramente delimitado — ou, em
outras palavras, a um objeto determinado —, mas a algo abrangente, que somos nós,
homens e mulheres, seres plurais movendo-se no espaço-tempo.

Em Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche, de Karl Jaspers, apresentado na


primeira unidade deste e-book, temos, no primeiro capítulo do segundo livro, um estu-
do sobre o conceito de “homem”, da filosofia nietzschiana, com os seguintes temas: “o
que é o homem no mundo”; “o homem como originariamente mutável (comportar-se
em relação a si mesmo, os impulsos e suas conversões)”; “o homem que produz a si
mesmo (a moral)”; “o ataque de Nietzsche à moral”; “a exigência de Nietzsche (contra
o universal em favor do indivíduo, inocência do devir, criação, o homem que produz a
si mesmo)”; “criar como liberdade sem transcendência”; “a imagem nietzschiana pro-
movedora do homem”; “o homem superior”; “contra o culto ao herói” e “o além do
homem” (JASPERS, 2015, p. 169).

Vale destacar que os temas supracitados fazem parte de toda uma teoria do pensador
alemão e, mais tarde, foram ressignificados e se expandiram nos estudos pós-estru-
turalistas da contemporaneidade. Jaspers, então, dirá que “a existência do homem”
para Nietzsche seria uma espécie de reconhecimento da essência de si mesmo e do
entendimento de sua autonomia e de seu processo de modificação de si próprio. Para
Jaspers, “Nietzsche, ao considerar a existência — incluindo também o já presente sen-
tido do filosofar —, procura em primeiro lugar fixar comparativamente aquilo que se-
ria propriamente a posição do homem no mundo”, em segundo lugar, “ele procura
investigar o homem em sua mutabilidade psicológica” (JASPERS, 2015, p. 170).

22
No entanto, o mundo é uma imensidão inimaginável de campos de forças
que nos atravessam em impulsos que podem nos destruir ou nos potenciali-
zar, com suas moléculas e estruturas atômicas, que, ao formarem suas mate-
rialidades em uma massa corpórea, já se apresentam em tensão constante,
seja no atrito das conexões das partes ou na interação e na pulsão destas.

Não compreender a vida como multiplicidade, como espaço de tensionamento de for-


ças, é uma autossabotagem criada pela história do pensamento, na tentativa de criar
algum terreno seguro no qual se pudesse pisar com tranquilidade e domínio. Não obs-
tante a vida, sabemos disso, não é tranquilidade nem pode ser dominada pela razão
instrumental. A filosofia platônica tentou estruturar a unidade verdadeira no mundo
das ideias ao menosprezar as materialidades dos corpos e das sensações, colocando-os
apenas como lugares de espelhamento de cópias e reproduções da ideia imutável e
inteligível de nossas faculdades mentais.

Os seguidores do pensamento cristão, por sua vez, inspiraram-se na teoria socráti-


co-platônica e a aplicaram em todo o pensamento ocidental. Ao macular os corpos,
apostaram tudo em outra vida ideal e perfeita, em um céu divino e hipotético. Criou-
-se, assim, uma coalizão entre pecado e salvação, sagrado e profano, céu e terra, vida
mundana e vida espiritual.

De acordo com Nietzsche, criaram a metafísica para eternizar a essência das coisas,
para produzir o imutável. Com isso, fabricaram toda uma narrativa ficcional, que por
muito tempo dominou e, em certa medida, ainda domina o império do pensamento
centralizador das oligarquias religiosas, políticas, farmacológicas, estéticas e episte-
mológicas. Observe que é uma dualidade que cria oposições sem relativizar nada. As
coisas do céu são todas corretas e as da terra são todas erradas — pensar assim é
pensar sob uma perspectiva binária. O ser humano, então, deixa de pensar em viver o
presente para construir uma vida futura fora da terra.

Esses pensamentos dizem respeito ao imaginário da industrialização moderna do pro-


duto homem, criado como um objeto em larga escala, pronto para acreditar e propa-
gar que suas essências são imutáveis e eternas. Ironicamente, tudo parece ter mudado
quando se pensa na era digital, mas há algo que ainda permanece na esfera do domínio
epistemológico que vigorou na história do pensamento ocidental e que, mesmo com
pensadores do quilate de Nietzsche, Deleuze, Guattari e Derrida, parece que nada foi
alterado. Mesmo com todos os esforços dessas filosofias, ainda pensamos a vida e nós

23
mesmos pela via estrutural, matemática e certeira, como se pudéssemos solucionar
todos os entraves de nossas existências em apenas uma equação matemática.

É também o que se vê em programas televisivos em todo o mundo, com o modelo de


exploração do zoológico humano dos laboratórios de reality shows, ao explorarem a
esgotada sentença cômica, na fala de seus participantes: “Eu continuo sendo eu”; “eu
não mudei.” Essa tentativa de contenção da instabilidade da vida e de todas as forças
que dela advém é o que se prega como valor, como verdadeiro e bom. É inacreditável
que, no século XXI, ainda se acredite na imobilidade e na eternidade das essências do
ser humano, que elas sejam tão inquebrantáveis ao ponto de não cederem às forças
que invadem suas subjetividades, que contaminam, que motivam e, consequentemen-
te, transformam a cadência dos movimentos do pensamento ao produzirem agencia-
mentos de todos os tipos em suas linhas de fuga do cerceamento parasitário das gran-
des certezas.

Não é melhor pensar, portanto, como Raul Seixas, que somos “essa metamorfose am-
bulante”? Veja como a arte nos desconcerta e provoca o pensamento. Para entender o
conceito de devir apresentado por Deleuze, é necessário abrir o pensamento para isso.
Somos essa “metamorfose ambulante” no encontro com a vida, com as coisas, com os
outros seres humanos. Se mudamos a cada momento, não é importante pensar que
essas ideias de essência e eternização dos conceitos são invenções do próprio homem?
A ciência não muda a cada momento e revê os próprios conceitos que eram vistos
como verdade? Veja historicamente, por exemplo, alimentos que foram considerados
maléficos e se tornaram remédios após estudos sob diferentes óticas.

Para Nietzsche, os conceitos de verdade, unidade, Deus, essência, alma e razão, como
todos os termos que utilizamos, são nada mais nada menos que palavras, criações lin-
guísticas que são utilizadas na comunicação oral entre os povos. O fato é que houve
um esquecimento ao longo dos anos e das épocas, quando deixamos de reconhecer
que tudo não passava de mentira e, nesse esquecimento, cristalizamos o entendimen-
to de homem, de mundo e de vida.

Desse modo, o pensador alemão proporá que a filosofia está também no corpo, nes-
se nosso corpo que o platonismo tanto rechaçou, e que o pensamento é inseparável
da materialidade que nos constitui. Diferentemente do pensador grego, que tanto
valorizou o mundo metafísico e virtual das ideias, com Nietzsche o ato de pensar não
pode ser outra coisa senão multiplicidade de pulsões e fluxos em confronto direto
com espaços, energias, radiações de todos os tipos e processos físico-químicos, sensa-
ções, paixões, vontades, entendimentos e desentendimentos, criações e recriações de
sentido de linguagem.

24
É o que Deleuze, em Nietzsche e a Filosofia, explica quando questiona a imagem
canônica do pensamento e a produção da ideia de verdade dos sistemas filosóficos:

A imagem dogmática do pensamento aparece em três teses essenciais:


1) Dizem-nos que o pensador, enquanto pensador, quer e ama o verda-
deiro (veracidade do pensador); que o pensamento como pensamento
possui ou contém formalmente o verdadeiro (inatismo da ideia, a prio-
ri dos conceitos); que pensar é o exercício natural de uma faculdade,
que basta então pensar “verdadeiramente” para pensar com verdade
(natureza reta do pensamento, bom senso universalmente partilhado).
2) Dizem-nos também que somos desviados do verdadeiro por forças
estranhas ao pensamento (corpo, paixões, interesses sensíveis). Por
não sermos apenas seres pensantes, caímos no erro, tomamos o falso
pelo verdadeiro. O erro: tal seria o único efeito, no pensamento como
tal, das forças exteriores que se opõem ao pensamento. 3) Dizem-nos
finalmente que basta um método para pensar bem, para pensar verda-
deiramente. (DELEUZE, 2018, p. 133)

Para o estudioso francês:

[...]“o mais curioso nessa imagem do pensamento é a maneira pela qual o


verdadeiro é concebido como universal abstrato. Nunca se faz referência
a forças reais que criam o pensamento, nunca se relaciona o próprio pen-
samento com as forças reais que ele supõe como pensamento” (Ibidem).

Assim, Deleuze explica que “[...] não há verdade que, antes de ser uma verdade, não
seja a efetuação de um sentido ou a realização de um valor. A verdade como conceito
é totalmente indeterminada. Tudo depende do valor e do sentido do que pensamos”
(Ibid., p. 134). Portanto, para Deleuze, a respeito da filosofia nietzschiana, a verdade
estará sempre sugestionada ao que se acredita como verdade, ao sentido que conce-
bemos para a produção daquela veracidade, nada mais que um perspectivismo concei-
tual, já que o “pensamento nunca pensa por si mesmo” (Ibid., p. 134).

Com um salto temporal chegamos em Jaques Derrida, em meados da década de 1960.


O filósofo franco-magrebino também foi influenciado pelas ideias de Nietzsche e, com
sua filosofia da desconstrução, inverte a hierarquia dos modos de produção de pensa-
mento, com a proposição do heterogêneo que está nas sentenças homogêneas que
visam manter a viciosa semelhança de simetrias.

25
No vídeo Dossiê Cult195, do “Dossiê Derrida”, da revista Cult, a também pensadora
Olgária Matos destaca importantes pontos conceituais de sua filosofia, no que confe-
re sua indescritível forma de pensar, de produzir e criar conhecimentos nos campos
da estética, das artes e, determinantemente, da linguagem textual em oposição aos
dogmas vigentes.

Derrida, assim como Nietzsche, entende que a palavra e a textualidade são portadoras
de agenciamentos plurais que não se encerram no já estabelecido e conhecido códi-
go operacional que reproduzimos em nossos modos de ler e escrever e de produzir
pensamento. Olgária Matos também chama a atenção para a questão da desconstru-
ção da padronagem epistemológica, para o desmonte estrutural que descentraliza as
construções das faculdades dos sentidos que se multiplicam em metatextos.

Segundo Derrida, a dúvida estaria no âmbito do questionamento: “Onde e como se


produz esse descentramento da estruturalidade da estrutura?” (Ibid., p. 232). O filóso-
fo apresenta duas reflexões bastante importantes. Ele questiona a noção do signo e a
noção de texto. Para ele, o signo, a palavra, não é apenas uma cópia da fala, dos sons
que emitimos; não é uma transcrição. Para ele, há um rastro, ou seja, existe relação
entre a palavra (o significante) e os sentidos. O que isso quer dizer? Que existem conte-
údos nas palavras que não estão explícitos. Assim, elas carregam rastros, “conotações
laterais” — é o que Derrida denomina de escritura.

Outra noção importante apresentada por ele é a de leitura. O leitor não é aquele
que simplesmente decodifica significados em um texto, mas produz sentidos em
sua leitura, pois carrega consigo seu olhar, inseminando sentidos. Isso o aproxima
de Nietzsche no sentido de que relativiza os lugares do autor do texto, do leitor e
do próprio texto. O signo, portanto, passa a ser mais importante do que o referente,
ou seja, à coisa a que se refere, bem como o significante (a palavra) mais relevante
do que o significado, pois os significados podem variar tanto a partir da relação que
uma palavra estabelece com outras palavras, com os rastros que elas trazem, como
também diante do olhar do leitor.

Em outro salto temporal, destacamos alguns pontos das ideias de Peter Pál Pelbart,
filósofo húngaro, residente do Brasil e que foi aluno de Deleuze — ele apresenta uma
significativa contribuição em debates, aulas e livros que produz no tempo presente.
Em seu artigo Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo..., trata da vida hoje,
agora, aqui no Brasil e no mundo em relação aos desafios que provocam e estimulam
o pensamento a desenvolver outras possíveis leituras para a ideia de vida, de como
viver em um mundo ultracapitalizado, neoliberal, necropolítico, com estratégias de
destruição em massa em suas higienizações classistas. Pelbart, em sua singularidade,
compartilha da força visceral das filosofias pós-estruturalistas. Em grande parte, seus

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estudos percorrem zonas mais nitidamente calcadas nas esferas de poder, domínio,
política e psiquiatria.

O autor afirma que tudo foi domesticado pelo poder e que:

A primeira dessas tendências pode ser formulada como segue: o poder


tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou em todas as esferas
da existência e as mobilizou e as pôs para trabalhar em proveito pró-
prio. Desde os genes, o corpo, a afetividade, o psiquismo até a inteli-
gência, a imaginação, a criatividade, tudo isso foi violado e invadido,
mobilizado e colonizado, quando não diretamente expropriado pelos
poderes. Mas o que são os poderes? Digamos, para ir rápido, correndo
todos os riscos de simplificação: as ciências, o capital, o Estado, a mídia
etc. Mas essa é uma resposta muito geral e molar, pois o poder é muito
mais esparramado, disperso, infinitesimal, molecular do que essa fra-
se deixa supor. Em todo caso, o que talvez seja relativamente novo é
que esses poderes se exercem de maneira positiva, isto é, investindo a
vitalidade social de cabo a rabo, intensificando-a, mobilizando-a, otimi-
zando-a e ao mesmo tempo monitorando-a por dentro, pilotando-a e
integrando seus elementos. (PELBART, 2015, p. 1)

Os poderes, para Pelbart, são “as ciências, o capital, o Estado, a mídia”. Ele ainda des-
taca que toda essa compreensão parece reduzir a dimensão macro do poder, quando,
na verdade, ele em si já se mostra intangível para a problematização da construção do
pensamento. É o que o pensador também questiona ao tratar o tema da revolta e da
subjetividade em seu livro Ensaios do assombro, ao lançar os seguintes questiona-
mentos: “[...] qual sujeito há de encarnar a revolta possível? Qual tipo de subjetividade
pode sustentar uma insurreição? É possível ainda designar um sujeito da história? Ha-
verá um novo ‘sujeito revolucionário’?” (PELBART, 2019, p. 149).

Nessa linha de pensamento, o estudioso propõe um tensionamento com a ideia de su-


jeito na contemporaneidade. Assim, cita as trajetórias de Deleuze e Guattari, Blanchot,
Derrida, Lyotard e Rancière como contribuidoras no que se refere a pensar o sujeito
em resposta à pergunta de Jean-Luc Nancy: “Depois do sujeito, quem vem?” (Ibid., p.
150). A reposta de Deleuze, citada por Pelbart, é a seguinte:

Um conceito nunca morre como se quer, mas somente na medida em que


novas funções em novos campos o tornam caduco. Por isso, nunca é mui-
to interessante criticar um conceito: mais vale construir novas funções
e descobrir novos campos que o tornam inútil ou inadequado. (Ibidem)

27
Nesse sentido, Deleuze em poucas palavras esclarece, talvez, uma boa parte do enten-
dimento e do empenho realizado pelos pós-estruturalistas, no que confere o trabalho
de dezenas de pensadores ao esgotarem conceitos, palavras, pensamentos, ideias, leis
que já não fazem sentido de serem levados adiante.

Voltando um pouco aos estudos de Nietzsche, é importante esclarecer o conceito de


niilismo, que comumente é mal empregado por seus leitores. Vale ponderar que tudo
o que foi exposto até agora neste capítulo poderia soar como algo niilista, uma espécie
de culto ao nada, já que todos os pensadores citados, de certa forma, trabalham com
a desterritorialização e com a desconstrução. Então, poderíamos cair em uma inter-
pretação equivocada ao pensar que a pós-estrutura somente empenha-se em destruir
o já construído — não é bem assim. No caso do pensador alemão, a filosofia precisa-
va se libertar da metafísica e com isso Nietzsche esgotou a ideia do monoteísmo, da
idealização de um único Deus provedor de tudo e de todos. Em seus textos, ele critica
claramente essa noção religiosa. Por outro lado, o pensador também critica a ciência e
suas verdades empíricas e matemáticas e a vaidade do homem, que imaginava, em sua
ânsia de domínio, controlar o mundo por meio da cientificidade do projeto moderno.
Todas essas questões já foram contempladas no primeiro capítulo, de modo que o que
deve ser levado em conta, nesta contextualização, é o termo “niilismo”.

A filosofia crítica nietzschiana não salva nem a própria filosofia e desmantela a tradição
do pensamento ocidental, sobretudo o alemão. O estudioso afirma que tudo o que
tinha sido produzido até então, salvo os pensamentos oriental e pré-socrático, não
passava de ideias metafísicas que visavam opor valores, criando assim um afastamento
da vida. Desse modo, não é o pensamento que é niilista, mas sim o modo como nos
relacionamos com ele.

Para Nietzsche, se não sobra nada, ou quase nada do que acreditávamos, o que resta
para o filósofo? Apenas a linguagem e suas metáforas. Por outro lado, não é a filosofia
de Nietzsche que é niilista, mas sim a civilização, que sempre creditou os modelos e
as ideias como unidade de todas as coisas como verdades. Tudo isso, para o referido
filósofo, são apenas criações humanas amparadas em discursos falsos. Assim, para o
pensador, a civilização cultua o nada, e a única afirmação possível seria a vida, encarada
de frente, sem narrativas fictícias.

A vontade de potência e o sentimento de potência da filosofia nietzschiana surgem


para designar a relação da força com a própria força “que produz a qualidade de for-
ça”, seja de modo negativo positivo ou reativo. Tudo é força: o niilismo é uma força que
cultua o vazio; a metafísica é uma força que induz o pensamento a acreditar em forças
suprassensíveis; a necropolítica é uma força política governamental que mata a pró-
pria população; as artes, de modo geral, são forças que criam possibilidades de vida,

28
que produzem saúde em meio ao caos, assim como a filosofia, a antropologia, a socio-
logia, o pensamento científico e todos os estudos que contemplem a expansão cogni-
tiva. Portanto, Deleuze esclarecerá que esse conceito nietzschiano acontece quando:

A relação das forças é determinada, em cada caso, na medida em que


a força é afetada por outras, inferiores ou superiores. Daí se segue que
a vontade se manifesta como um poder de ser afetado. Esse poder
não é uma possibilidade abstrata: é necessariamente preenchido e
efetuado a cada instante pelas outras forças com as quais a força está
em relação. Não nos espantaremos com o duplo aspecto da vontade
de potência: ela determina a relação das forças entre si, do ponto de
vista da gênese e da produção das forças; mas é determinada pelas
forças em relação ao ponto de vista de sua própria manifestação. Por
isso, a vontade de potência é sempre determinada ao mesmo tempo
que determina, qualifica ou desqualifica. Em primeiro lugar, portanto, a
vontade de potência manifesta-se como o poder de ser afetado, como
o poder determinado da força de ser ela própria afetada. (DELEUZE,
2018, p. 82)

Essa condição do conceito de vontade de potência, como já foi explicado anterior-


mente, surge como uma resposta à vontade de verdade da hegemônica estrutura
dominante do pensamento europeu e, consequentemente, como uma superação do
niilismo moderno. É importante perceber que, para Deleuze, o poder da vontade de
potência nietzschiana está amplamente ligado ao sentimento e à sensação, pois, antes
mesmo da criação desse conceito, Nietzsche já escrevia sobre o sentimento de poder
como uma sensibilidade da força, que surge como afirmação da vida, antes de ser tra-
tada como uma vontade. Portanto, a vontade de potência carrega em si a afirmação da
vida em todas as suas nuances e

“[...] o sentido da filosofia de Nietzsche é: o múltiplo, o devir, o acaso


são objetos de afirmação pura. A afirmação do múltiplo é a proposição
especulativa, assim como a alegria do diverso é a proposição prática.
O jogador só perde porque não afirma o suficiente, porque introduz
o negativo no acaso, a oposição no devir e no múltiplo. (Ibid., p. 247)

Assim, o filósofo alemão concluirá, nas palavras de Deleuze, que “[...] o homem só habi-
ta o lado desolado da terra, só compreende seu devir-reativo que o atravessa e o cons-
titui. Por isso a história do homem é a história do niilismo: negação e reação”, porém “a
longa história do niilismo tem sua conclusão: o ponto final em que a negação se volta

29
contra as próprias forças reativas. Esse ponto define a transmutação ou transvalora-
ção” (Ibid., p. 247-248) de todos os valores.

Segundo Nietzsche, a vontade de potência não nega os contingentes e as


adversidades da vida nem reage a eles; a potência é sempre afirmativa em
todos os momentos, mesmo diante do trágico.

Nesse contexto, deixo a reflexão: como nos relacionamos e como nos relacionaremos
com o gigantesco frenesi da aceleração tecnológica e com o mais que constante des-
crédito do mundo suprassensível? Daremos conta de nos reinventar diante do niilismo
que nos assalta de nós mesmos? Quais potências aguardam nossas ações no mundo? A
vida como vivemos é uma afirmação?

Dizer sim à vida é uma arte. Viver não é tentar descobrir uma realidade futura ou obs-
cura, mas sim criar possibilidades, por isso lançar-se na vida, inventar voos a favor dela
e abrir-se aos encontros afirmativos. Faça esse exercício de pensamento relacionando
o texto de Nietzsche à canção de Gonzaguinha.

O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos;


a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacri-
fício de seus mais elevados tipos — a isso chamei dionisíaco, nisso vis-
lumbrei a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para livrar-se
do pavor e da compaixão, não para purificar-se de um perigoso afeto
mediante sua veemente descarga — assim o compreendeu Aristóteles
—, mas para, além do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno
prazer do vir a ser. (NIETZSCHE, 2006, p. 85)

O que é? O que é?
Gonzaguinha

[...]

E a vida
E a vida o que é?
Diga lá, meu irmão
Ela é a batida de um coração
Ela é uma doce ilusão
Êh! Ôh!

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E a vida
Ela é maravida ou é sofrimento?
Ela é alegria ou lamento?
O que é? O que é?
Meu irmão

Há quem fale
Que a vida da gente
É um nada no mundo
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo

Há quem fale
Que é um divino
Mistério profundo
É o sopro do criador
Numa atitude repleta de amor

Você diz que é luta e prazer


Ele diz que a vida é viver
Ela diz que melhor é morrer
Pois amada não é
E o verbo é sofrer

Eu só sei que confio na moça


E na moça eu ponho a força da fé
Somos nós que fazemos a vida
Como der, ou puder, ou quiser

Sempre desejada
Por mais que esteja errada
Ninguém quer a morte
Só saúde e sorte

E a pergunta roda
E a cabeça agita
Eu fico com a pureza
Da resposta das crianças
É a vida, é bonita
E é bonita

31
Viver
E não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser
Um eterno aprendiz

Ah, meu Deus!


Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser
Bem melhor e será
Mas isso não impede
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita

32
RE SUMO

Neste capítulo, os conceitos vinculados aos desafios da subjetividade em Nietzsche,


Deleuze, Guattari, Derrida, Peter Pál Pelbart e Viviane Mosé foram importantes para
a reflexão e a atualização do pensamento moderno diante do irretornável fluxo dos
agenciamentos pós-estruturalistas, somados aos ininterruptos disparos da aceleração
tecnológica contemporânea. A compreensão desses saberes em trânsito diante das
estruturações dos saberes lógicos nos coloca em uma nova relação com o pensamen-
to, permitindo-nos agir e construir potencialidades que desorganizem os retrocessos
que visam mumificar nossas experiências.

33
RE FE RÊ NCIA S

DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976. Disponível em: Micro-
soft Word - NF PRINT OUT BIS (wordpress.com). Acesso em: 10 dez. 2020.

DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995.

JASPERS, K. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. Trad. Marco Antônio Ca-


sanova. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 169-231. Minha Biblioteca.

MATOS, O. DOSSIÊ CULT195 | Jacques Derrida. 2014. Disponível em: (5) DOSSIÊ
CULT195 | Jacques Derrida - YouTube. Acesso em: 10 dez. 2020.

MOSÉ, V. Civilização x vida - Nietzsche era niilista? - E agora?. 2020. Disponível em:
(5) CIVILIZAÇÃO X VIDA - NIETZSCHE ERA NIILISTA? - E AGORA? COM VIVIANE MOSÉ -
YouTube. Acesso em: 10 dez. 2020.

NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo. Tradu-


ção, notas e posfácio; Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

PECORARO, R. Niilismo. São Paulo: Zahar, 2007. p. 14-19; 38-47. Minha Biblioteca.

PELBART, P. P. Ensaios do assombro. São Paulo: N-1 edições, 2019.

PELBART, P. P. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Saúde soc.,


São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: Políticas da vida, produção
do comum e a vida em jogo... (scielo.br). Acesso em: 10 dez. 2020.

34
3 Sob à luz de uma outra ideia de construção de
conhecimento

Em sua inspiração nietzschiana o pensador catalão Jorge Larossa afirma que as pala-
vras determinam o nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas
com palavras. Pensar é dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. O homem é
palavra, todo humano tem a ver com palavra, se dá em palavras, está tecido de pala-
vras, e o modo de viver se dá na palavra com a palavra.

Desse modo, como pensar o pensamento? É aí que entra a ideia de construção de


conhecimento para fazer pensar o pensamento em palavras, colocá-lo sob à luz dele
mesmo ao explorar a variabilidade linguística de que ele dispõe. Igualmente, para evi-
denciar que o movimento mental em si, é processual, dinâmico e múltiplo.

Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em
que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos
mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, as-
pirados, multiplicados. (DELEUZE; GUATTARI, 1995)

O conhecimento não é conduzido estritamente pela razão, muito menos foi propor-
cionado e sentenciado unicamente por homens brancos europeus. Desde o século XIX,
ainda na perspectiva eurocêntrica, filósofos como Kierkegaard, Schopenhauer, Niet-
zsche, Freud, Camus e Sartre filosofaram sobre os fluxos das paixões e dos afetos,
sem contar o trabalho monumental e raramente estudado de filósofas de todas as
partes do globo, como Simone de Beauvoir, com a dissociação do sexo biológico do
gênero socialmente construído; Hanna Arendt, com sua teoria política nas relações

35
de poder e violência; Gayatri Spivak, pensadora feminista indiana; María Zambrano na
Espanha pensou o misticismo e as religiões, o também espanhol e filósofo trans Paul
B. Preciado em seus estudos sobre sexualidade e farmacologia; Angela Davis e Judith
Butler nos EUA, a primeira com seu ativismo político nas questões de raça e direito das
mulheres e a segunda com a teoria de gênero; Omolara Ogundipe-Leslie também se
dedicou a questionar a opressão das mulheres, em especial das mulheres africanas e
Donna Haraway, em seu manifesto Ciborgue.

Incrivelmente, essa pluralidade de pensamento cresce cada vez mais, mesmo diante
das viciosas e amordaçantes tendências de controle epistemológico. No Brasil mais
recente, é perceptível a significativa multiplicidade de construções de conhecimento
nas ideias de Marilena Chauí, Leandro Karnal, Viviane Mosé, Djamila Ribeiro, Luiz Felipe
Pondé, Marcia Tiburi, Suely Rolnick, Rita Von Hunty (filósofa drag queen) e Ailton Kre-
nak, pensador indígena contemplado neste capítulo.

Krenak surge no cenário intelectual brasileiro em referência ao grito de so-


corro mais que urgente de milhares de índios eliminados de suas terras e
de suas existências por um sistema higienista, como também trazendo um
grito de alerta para o fim próximo de nossas reservas naturais, nossa bio-
diversidade e o debate mais que urgente sobre os temas fluviais com suas
usinas e hidrelétricas.

Se não bastasse toda a degradação que sofrem, ainda irrompe nesta problemática
uma questão bem mais grave que afeta diretamente o homem branco: a questão da
saúde humana em decorrência da doença da natureza. É possível, ainda hoje, pensar a
natureza como algo alheio ao homem? Como se fossemos separados dela? Se estamos
neste curso estudando formas de construção de pensamento, nada mais prudente do
que privilegiar narrativas que fogem ou pelo menos tentam furar as espirais estrutu-
rais que cerceiam os latentes embriões de pensamentos.

Ailton Krenak, em O Amanhã não está à venda, publicado no início da pandemia da


Covid-19, traz uma contundente reflexão que nos impõe a reconsiderar nossos estilos
de vida. No decorrer da narrativa do pensador indígena, é possível entender o quanto
fomos tragados desde a Revolução Industrial por uma sede de progresso e por uma ex-
plosão de experimentações científicas. É o que está destacado no seguinte pensamento:

A verdade é que vivemos encurralados e refugiados no nosso próprio


território há muito tempo, numa reserva de 4 mil hectares — que de-

36
veria ser muito maior se a justiça fosse feita — e esse confinamento
involuntário nos deu resiliência, nos fez resistentes. Como posso expli-
car a uma pessoa que está fechada há um mês num apartamento numa
grande metrópole o que é o meu isolamento? Desculpem dizer isso,
mas hoje já plantei milho, já plantei uma árvore...
[...] Faz algum tempo que nós, na aldeia Krenak, já estávamos de luto
pelo nosso rio Doce. Não imaginava que o mundo nos traria esse outro
luto. Está todo mundo parado. Quando engenheiros me disseram que
iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a mi-
nha opinião. Eu respondi: ‘A minha sugestão é muito difícil de colocar
em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que
incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita
e esquerda, até que ele voltasse a ter vida’. Então um deles me disse:
‘Mas isso é impossível. O mundo não pode parar.’ E o mundo parou.
(KRENAK, 2020, p. 4-5).

O pensamento de Krenak chega acompanhado também por uma renovação empírica,


filosófica e poética de um discurso bastante desgastado, batido e nada respeitado,
que é o bem-estar ambiental, que não se restringe apenas a indígenas e quilombolas,
trata-se aqui, de uma questão global. Viver bem no espaço é uma vontade de saúde e
um direito de todos, como bem disse o líder indígena ao propor a paralisação de toda e
qualquer interferência humana sobre o rio, na tentativa de fazer com que ele voltasse
a ter vida.

Ironicamente, a pandemia forçou o mundo a desacelerar. Ou para tudo ou não tere-


mos saída, fomos encurralados, isto é um fato. Porém, ainda assim o sistema conti-
nuou produzindo e consumindo freneticamente. Se houve alguma modificação, com
certeza foi o aumento da precarização do trabalho e o triste e intenso alargamento da
miséria nas famílias dos grandes centros mundiais.

Para além de todos os atributos que trazem comodidade aos nossos dias, proporcio-
nando e disponibilizando uma centena de medicamentos e tratamentos superavan-
çados que possibilitam nossas existências, mesmo diante da infinidade de vírus exis-
tentes. Como também o conforto de nossos lares, com dezenas de eletrodomésticos,
sem contar a otimização automobilística, aérea e marítima. Tudo isso é extremamente
importante e necessário, sabemos disso, mas a que preço? Ao preço de todas as nossas
reservas naturais poluídas e inundadas de garrafas pets? Ao valor de consumir alimen-
tos ultraprocessados com altas porcentagens de açúcar que simplificam nossa rotina?
Em troca de doenças como o câncer, o diabetes e uma dezena de problemas cardíacos?

37
Krenak lança um chamado para o pensamento contemporâneo, ou melhor, para a pos-
sibilidade de que tenhamos sabedoria de construir pensamentos mais afirmativos em
relação ao mundo em que vivemos: planejar estratégias inteligentes que transformem
nossas relações com o valor das coisas e o dinheiro, de modo a transformar a perspec-
tiva do extrativismo industrial mundial.

Pode-se dizer que o autor indígena que acabo de mencionar é, com certeza, um pensa-
dor indiretamente ligado às linhagens epistemológicas das filosofias de Nietzsche, De-
leuze, Guattari e Derrida. Com isso, quero dizer que a partir desses pensadores e suas
escrituras fora da curva ressalto a virada irretornável da construção do pensamento e
o estilhaçar do núcleo duro e ingênuo do entendimento do homem e da vida.

Em Para lá de uma hermenêutica do sentido, os estudos dos filósofos supracitados


se articulam e se entrelaçam no compartilhamento da ideia de que existe uma cisão
entre a impossibilidade de uma hermenêutica do sentido, ou seja, de uma interpreta-
ção de textos filosóficos — o que confere certa crença no mundo extrassensível, divi-
no, absoluto e imutável. Como também os segmentos cientificistas e teleológicos que
trabalham com um tipo sintético de entendimento que visam chegar a uma causa e à
explicação final acerca dos fatos que engendram tudo que faz parte da existência. A
perspectiva desses pensadores proporciona uma renovação da filosofia pela exigência
de a colocar novamente na vida vivida e não no mundo das ideias tal e qual o pensa-
mento clássico socrático/platônico: “viver em filósofo” é um imperativo ético e episte-
mológico, comum a Nietzsche, Derrida e Deleuze.

Vale lembrar o que já foi explicitado nos capítulos anteriores em respeito à elocubra-
ção de que esses estudiosos pós-estruturalistas, juntamente com Nietzsche, partilham
de uma mesma pulsão, que é romper com todo um sistema clássico de leitura que
almejava e ainda almeja um sentido extrafísico e determinantemente verdadeiro e
universal. De acordo com todas essas conceitualizações, o mais importante talvez seja
atentar para o modo como o pensamento filosófico moderno e contemporâneo desli-
za, escorre e ganha dimensões outras de realidade com as várias esferas de vida que a
gente vivencia em nossas casas, com nossos familiares, com nossos afetos e desafetos,
com nossas virtualidades e visualidades.

As maquinarias, sistemas e conceitos da sociedade contemporânea nos processos ma-


quínicos de Deleuze e Guattari em Mil Platôs trabalham com a construção do con-
ceito de multiplicidade, para além dos binarismos e oposições entre consciência e in-
consciente, natureza e história, corpo e alma. Nessa obra, o conceito de multiplicidade
proposto pelos pensadores franceses parte de uma análise da realidade que interliga
uma construção ontológica, ou seja, um estudo das materialidades existentes no mun-
do, como a natureza do ser, a realidade e a sociedade.

38
Ao afirmarem a diferença na distribuição dos seres e das coisas recusam a
noção de desejo como falta e, negam qualquer interpretação que advenha
da ideia de transcendência — como a falsa compreensão de que existe uma
origem ou destino.

A perspectiva da imanência e o conceito de multiplicidade transformam a construção


do pensamento em uma atividade, acima de tudo, ética. Uma ação no mundo que pre-
dispõe modelos, regras e finalidades transcendentes, opostas a todo e qualquer con-
formismo moral ou perspectiva histórica. Em A exterioridade da máquina de guerra
em Mil Platôs: uma questão de método, os conceitos de máquina e de multiplici-
dade construídos por Deleuze e Guattari são vistos como máquinas de guerra contra
o recrudescimento violento do poder acachapante da máquina de Estado. Em outras
palavras, é como se os sistemas governamentais dos principais centros econômicos do
mundo ditassem os modelos de ser e de pensar, de modo que não sobre espaço para
o pensar na diferença.

Em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guattari não reproduzem uma


representação de uma matriz, no caso, um livro, um argumento, um segmento discur-
sivo que visasse apoiar o aparelho de Estado e toda sua segmentação epistemológica.
Ao contrário, trata-se de construir com o livro e com tudo aquilo que habita essa arma
poderosa uma ou várias noções de exterioridade, na produção de outras plataformas
cognitivas, sensoriais e sobretudo passionais, com mil ou milhares, ou milhares de mi-
lhares de platôs, de espaços mentais ou materiais de possibilidades de subjetivação
contra toda e qualquer estratificação.

Logo na introdução do livro supracitado, os pensadores franceses problematizam a des-


necessidade de objetificação e materialização das forças que nos constituem enquanto
sujeitos e também sobre o livro como uma experiência do fora, no sentido de que:

Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferente-


mente formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que
se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das ma-
térias e a exterioridade de suas correlações. Fabrica-se um bom Deus
para movimentos geológicos. Num livro, como em qualquer coisa, há
linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades,
mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e de-
sestratificação. (DELEUZE, 1995, p. 10)

39
No caso, as máquinas literárias, filosóficas e artísticas são transformadas em máquinas
de guerra, ou seja, em territorialidades que não se entendem enquanto estruturas,
mas sim como campos de forças conectadas a outras infindáveis máquinas de guer-
ra, que, juntas, formam uma imensurável máquina abstrata que se move diretamente
contra a petrificação do aparelho de Estado e suas estagnadas estruturas lógicas, mo-
rais e normativas.

É o que se percebe na filosofia de Nietzsche que antecede os estudos pós-estruturalis-


tas, em que o avesso da ideia de síntese e o pensamento como campo inesgotável de
multiplicidades excluem tanto as ideias sintéticas, quanto as interpretações binárias.
Sua filosofia nasce da análise da diferença, da afirmação do diferente e da não nega-
ção das oposições. Nietzsche não nega um conceito para afirmar outro, ele redireciona
o entendimento, fazendo-o se exercitar na criação de outra perspectiva. Portanto, não
existe dualismo, nenhuma dicotomização, e por isso o pensador alemão tem como
ponto de ataque o irresolúvel e catastrófico platonismo.

A filosofia socrática de Platão, que se destaca no período clássico grego, é consti-


tuída pela gênese da dicotomia entre o mundo sensível (das aparências) e o mundo
inteligível (das ideias), nascendo também nesse movimento a noção de pecado moral
original, do qual mais tarde o cristianismo viria a se apropriar. O “platonismo” não
designa somente o modo como entendemos a leitura comum histórico-conceitual
do conjunto de correntes de pensamento inspiradas em Platão, mas coincide, antes
de tudo, com um sistema e um gesto teórico-epistemológico cristalizado em nossas
potencialidades cognitivas.

Esse sistema criado por Platão media o grau de realidade com base no grau de valor
e dizia: “quanto mais ‘ideia’, mais ser’.” Adulterava o conceito de “realidade” ao afir-
mar: “o que consideramos real é um erro, e nós, quanto mais nos aproximamos da
‘ideia’ de verdade, mais nos aproximamos da ‘verdade’.” Ou seja, esta estrutura de
pensamento depositava toda a potência humana em ideias, pois acreditava que so-
mente o mundo ideal era verdadeiro e que tudo que nós construímos, sejam objetos
ou definições linguísticas que nomeiam as coisas, não passariam de cópias, reprodu-
ções das ideias originais.

Assim, Platão negava a realidade, o corpo e seus afetos. Essa foi a maior
transformação do pensamento ocidental e que ainda hoje vigora muito forte-
mente, por ter sido retomado pelo cristianismo.

40
Desse modo, é importante entender, que a história do pensamento é marcada pela
busca de uma verdade universal, pela busca do entendimento de uma primeira força
motriz. Esta força, ou melhor, a ideia de um nascimento dessa força (síntese) pode
ser compreendida a depender da linha filosófica, como: energia, espírito, alma, célula,
fogo, água, vento, raiz de todas as coisas, mônadas, coisa em si, Big Bang, homo sapiens,
deuses e os politeísmos gregos e africanos e o monoteísmo de um deus gerador que
gerou a si próprio e, neste movimento de se autogerar, gerou tudo e todos. Nietzsche
rompe total e completamente com esse modo de pensar a existência no mundo, é daí
que surgem as percepções de multiplicidade, de devir, de vontade de potência que
estamos trabalhando neste curso.

Assim, nessas porosidades sensíveis e inteligíveis que reconhecemos em nossos cor-


pos e nas corporeidades de tudo que é passível de ser denominado pelas palavras, ine-
vitavelmente, ao ler os pensadores contemplados neste curso, acabamos por eliminar
por completo ou quase que completamente a noção de síntese, de início, de gênese
e de origem e o modo como tais conceitos são explorados em todas as áreas do co-
nhecimento. Para Nietzsche, uma questão impossível acreditar é que o pensamento
chegará em um ponto comum a todos, que as palavras em seu mundo ideal teriam o
poder de resolver todos os paradoxos e quimeras.

Não. Diferentemente disso, o pensador considera que o homem e, consequentemen-


te, sua inteligibilidade estão em devir, em infinita e constante transformação, sendo
bombardeado por uma inimaginável interferência de forças que o atravessam inces-
santemente, das mais variadas intensidades e que, portanto, seria incapaz de susten-
tar o pensamento sintético, exato e rígido da racionalidade filosófica ocidental que
ainda vigora na contemporaneidade.

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RE SUMO

O tema desta unidade sob à luz de uma outra ideia de construção de conhecimento, assim
como todo este curso partem da filosofia de Nietzsche, passando por Deleuze, Guat-
tari, Derrida e Ailton Krenak. Mais uma vez é preciso relembrar que a epistemologia
nietzschiana faz parte do período moderno, quando o pensamento filosófico ainda era
pautado pela busca da verdade dos conceitos irrefutáveis.

O trabalho de Nietzsche dilacera a segmentação discursiva do Ocidente, dando mar-


gem para que todos esses pensadores pós-estruturalistas se aventurem nas pluralida-
des e multiplicidades do ato de pensar como campo de produção de palavras, signifi-
cados e significantes e não para sua perpetuação.

42
RE FE RÊ NCIA S

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro:


Ed. 34, 1995.

FERREIRA, J. P. G. A exterioridade da máquina de guerra em Mil Platôs: uma ques-


tão de método. Kínezis. Marília, 2019. Disponível em: A EXTERIORIDADE DA MÁQUI-
NA DE GUERRA EM MIL PLATÔS: UMA QUESTÃO DE MÉTODO | Kínesis - Revista de Es-
tudos dos Pós-Graduandos em Filosofia (unesp.br). Acesso em: 10 de março de 2021.

GONÇALVES, V. M. Nietzsche, Derrida, Foucault, Deleuze: para lá de uma hermenêu-


tica do sentido. Lisboa, 2017. Disponível em: Repositório da Universidade de Lisboa:
Nietzsche, Derrida, Foucault, Deleuze : para lá de uma hermenêutica do sentido. Aces-
so em: 10 de março de 2021.

KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das letras, 2020. Dis-
ponível em: Ailton-Krenak-O-amanhã-não-está-à-venda-1.pdf-1.pdf (zendobrasil.org.
br). Acesso em: 10 de março de 2021.

LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Hedra,


2007.

43
4 Construção de um pensamento

Nesta disciplina, e mais propriamente neste último capítulo, privilegiamos determina-


dos autores e ramificações conceituais pela preocupação de trazer à tona o processo
de decantação que fizeram com as palavras e os sentidos ao capturarem as intensida-
des das forças, as quais, em seus estados brutos, em um primeiro momento, são ina-
preensíveis. No entanto, quando decantadas pela criação, pela ressignificação e pela
atualização das palavras, tais forças trazem propósito para a linguagem que operacio-
naliza nossas vivências nas mais diversas coletividades que habitam os mundos ditos
reais e fictícios de nossas grandes e pequenas existências.

A potência do pensar está na constante e urgente valoração da autonomia, que deve


ser exercitada por todos quando o assunto é construção de pensamento. Estar dispo-
nível para os atravessamentos, invasões e contaminações que rasgam tecidos e tramas
metálicas salitrizadas pelo mar morto da domesticação dos fluxos é, e sempre deve
ser, o ato mais corajoso e necessário a ser desempenhado pelos corpos. Sim! Desem-
penhado pelos músculos que sustentam o que deve ser sustentado com leveza; pelos
estômagos que valorizam o bom alimento, mas que sabem digerir toxinas; pelas peles,
pelos e poros que suam e acariciam; pelos calcanhares, canelas, dedos, pés, tarsos,
metatarsos e falanges que permitem andar, dançar, pular, saltar nas vicissitudes, alter-
nâncias e volubilidades da vida.

A construção do pensamento dá margem ao entendimento de que existem territoria-


lidades outras a serem desvendadas pela produção de sentidos. Pô-lo em risco, digo, o
pensamento, é um ato de bravura consigo mesmo. Ao enfrentá-lo, enfrenta-se toda a
genealogia da história familiar, social e cultural de cada um. O enfrentamento é neces-
sário e inevitável, todos passam por ele, em menor ou maior grau. No entanto, o que

44
quero dizer a partir do apoio dos autores que estudamos aqui, é que ainda pode-se ir
mais longe ao se exercitarem as potencialidades criativas que inventam saídas para
todas as atrocidades que sofremos diariamente.

Por qual motivo sofremos? Por obedecer a uma lógica dominante? Se concordamos
com isso, também podemos concordar que outras lógicas podem ser construídas à
medida que sejam mais aproveitáveis, alegres e dinâmicas. Se precisamos de uma lógi-
ca para viver em comunidade, que ela seja digna da vida de quem a construiu.

Passamos por Nietzsche para chegarmos a Krenak? Aonde se chega?


Qual o destino? Qual a caminhada subjetiva e objetiva de cada um?

Felizmente, o percurso é arborescente e a terra foi contemplada por uma teia de raízes
monstruosamente indeterminada de atravessamentos que não se conformam com o
conformismo. O movimento pós-estruturalista que surgiu na França no século XX alas-
trou-se mundo afora e se expressa como uma força de extrema importância para a
filosofia, e mais ainda para a educação, assim como para as artes e para o modo como
nos encaramos e encaramos os outros politicamente em nossas relações éticas e afeti-
vas. É notória a importância desse pensamento nas produções acadêmicas das últimas
décadas, tendo contribuído para o surgimento de uma centena de outros pensadores,
pensadoras e todos os gêneros brilhantemente potentes.

Em Deleuze e Guattari, e principalmente em Nietzsche, é que surge a crítica da fatídica


dialética (raciocínio lógico da filosofia ocidental, regido por ideias, que por meio do
diálogo criava outras que visavam alcançar verdades universais). No artigo Da teoria
crítica ao pós-estruturalismo: breves apontamentos para uma possível confronta-
ção entre Adorno e Deleuze tem-se o pós-estruturalismo desabrochando no seio das
esferas anônimas de poder das grandes organizações burocráticas como uma reação
intelectual ao totalitarismo, à lógica da instrumentalização capitalista, à colonização
unidimensional das sociedades democrático-liberais e às técnicas e práticas de norma-
tização legitimadas pela ciência.

Do mesmo modo, uma reação intelectual à administração da liberdade exercida pela


sociedade de controle — para citar alguns dos grandes temas de que se ocuparam am-
bas as linhas teóricas —, os pensadores alemães e franceses procuraram refletir e com-
preender o fenômeno da progressiva opressão da vida humana exercida de forma pla-
nejada, racional e científica. Sobre este tema, em O ato de criação Deleuze comenta:

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É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar socie-
dade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisaria dois
tipos de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de sobe-
rania e as sociedades de controle. A passagem típica de uma sociedade
de soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu, segundo ele,
com Napoleão. A sociedade disciplinar definia-se — as análises de Fou-
cault, com todo mérito, por causa disso tornaram-se famosas — pela
constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas,
hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso. [...]
Essa análise engendrou ambiguidades em certos leitores de Foucault,
pois se pensou que essa era sua última palavra. Evidentemente que
não. Foucault jamais pensou, e ele o disse com bastante clareza, que
as sociedades disciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava que en-
traríamos num tipo de sociedade nova. É claro que existe todo tipo de
resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio,
mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro
tipo, que deveria chamar-se, segundo o tempo proposto por William
Burroughs — e Foucault tinha por ele uma viva admiração —, de socie-
dade de controle. (DELEUZE, 1999, p. 11)

Nessa ótica de controle, os saberes transdisciplinares nos processos de construção de


subjetividade, na abordagem nietzschiana, são as expressões mais extremas que a fi-
losofia já produziu, ao decretar em seus livros uma ruptura total com o posicionamen-
to histórico tradicional e com o modo que sentenciou toda uma regência de nossas
singularidades epistemológicas. Para o pensador alemão, todos os ideais do homem
desapareceram. Ele busca rejeitar a moral, abandonar a razão e a humanidade; ele vê a
verdade como uma mentira universal; a filosofia até aqui é uma constante ilusão.

Ainda que a história da filosofia se caracterize por uma sucessão de rupturas, realiza-
das por pensadores que desmontavam teorias pregressas, esses rompimentos eram
apenas parciais, porque sempre restava um resquício de segurança estrutural, restos
de territorialidades em que ainda era possível pisar. No entanto, com a força da ruptu-
ra nietzschiana não sobrou nenhum solo, nenhuma terra, nenhum lugar de segurança,
tamanha a erosão provocada por seus escritos.

Nos fragmentos póstumos publicados no livro Sobre verdade e mentira no senti-


do extra-moral, Nietzsche pontua a superficialidade do entendimento humano acer-
ca de tudo que nos afeta. Seja pela recepção visual ou auditiva, em cada perspectiva
há uma variação, uma modificação, de modo que nunca apreendemos os sentidos de
modo idêntico. Ele diz:

46
Nosso entendimento é uma força pouco profunda, é superficial. Ou,
como também se lhe denomina, é “subjetivo”. Ele conhece através
de conceitos: isso significa que nosso pensamento é um rubricar, um
nomear. Algo, portanto, que resulta de um arbítrio do homem e que
não remonta à própria coisa. Apenas mediante o cálculo e tão somen-
te nas formas do espaço possui o homem conhecimento, quer dizer,
os últimos limites do que pode ser conhecido são quantidades, sendo
que ele [o homem] não compreende nenhuma qualidade, mas apenas
uma quantidade. [...] Qual poderá então ser a finalidade de tal força
superficial? [...] Ao conceito corresponde, em primeiro lugar, a imagem;
imagens são pensamentos primordiais, isto é, as superfícies das coisas
abreviadas no espelho do olho. [...] A imagem é outra coisa, o modo
matemático é outra. [...] Imagens nos olhos humanos! Eis o que domina
todo ser humano: a partir do olho! Sujeito! O ouvido escuta o som! Uma
concepção maravilhosa e inteiramente diferente do mesmo mundo.
(NIETZSCHE, 2007, p. 60)

Nesta percepção, o filósofo ainda vai dizer que “[...] todo conhecimento surge por
meio de separação, delimitação e abreviação; não há conhecimento absoluto de uma
totalidade!” (NIETZSCHE, 2007, p. 66). A subjetividade e, consequentemente, a sua
criação surgem exatamente da transdisciplinaridade de saberes, do impulso criador,
afirmador da vida, que, no contexto lógico e racional, era e ainda é solapado pelo vi-
ciante impulso à verdade. É importante ressaltar que o estudo desse tema também
está presente na primeira unidade deste curso. Para o pensador, a gana de provar a ve-
racidade dos conceitos é o que nega a vida, pois a submete à convenção e ao contrato.

Submetida ao contrato, a liberdade e a subjetividade se deparam com o sufo-


camento; a subjetivação se retira de cena e dá lugar à circulação das conven-
ções morais, da metrificação e padronização do sujeito.

Para Nietzsche, “[...] conhecemos apenas uma realidade — a dos pensamentos. E se


isso fosse a essência das coisas! Se memória e sensação fossem o material das coisas!”
(NIETZSCHE, 2007, p. 70). O pensamento, desse modo, é um espaço de produção con-
ceitual, portanto, um lugar de criação de sentidos e memórias. Esse exercício falseia
a ideia de produção de verdade sobre as coisas. Ao produzir conceitos, produzimos
sentidos para determinadas existências e não a verdade sobre elas. Nessa angulação,
o estudioso nos apresenta um novo modo de filosofar ao romper com a hegemonia e
com o lastro poderoso das esferas de domínio dos corpos mentais e musculares. Para

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o comentador nietzschiano Karl Jaspers, de todas as contribuições de sua filosofia,
diferentemente do que falam sobre a sua obra de maneira equivocada, a mais essen-
cial, sem dúvida, não é a seriedade descomunal de sua vida na vontade de ruptura
com tudo, mas, com certeza, a vontade do sim, da afirmação da vida e do que nela é
diferença e subjetividade.

Sobre as linhas de fuga na construção do pensamento contemporâneo pós-estrutu-


ralista, tem-se na ideia de futuro — no caso, o da humanidade — o grande questio-
namento da atualidade, seja pela questão climática, pelo aquecimento global, pelas
radiações ou pelas contaminações de todos os tipos nas águas e alimentos. Somam-se
ainda as catástrofes ambientais, a necropolítica e, por fim, as não menos devastadoras
pandemias. A busca pelo esclarecimento e pelo tensionamento dessas questões pode
estar no centro dos debates e argumentos dos estudos dos filósofos destacados nos
quatro capítulos desta disciplina.

Deleuze e Guattari, por exemplo, assim como Nietzsche, fizeram uma reflexão sobre o
ser em sua teoria da diferença, afirmada na ideia de acontecimento dos agenciamentos
possíveis, ao prescreverem a necessidade de se produzir linhas de fuga e de resistência
aos totalitarismos de toda ordem investidos sobre as democracias contemporâneas.
Nada mais urgente do que abrir caminhos hoje, permitir o advento da mudança, da al-
ternativa, da trajetória que faz a curva e que não se paralisa diante dos impedimentos
associados aos fatores políticos e psicológicos, tendo em vista, ainda, o acirramento
liberalista das dinâmicas de poder que transformam tudo e todos em meros produtos
a serem comercializados nos pregões da bolsa de valores, em um mundo em estado
de surto. A sensação é a de que tudo e todos resolveram se rebelar ao mesmo tempo.

Diante desses abismos só nos resta criar saídas, imaginar soluções para as nossas mi-
cropolíticas de cada dia, sonhar realidades mais proveitosas, apaixonantes e alegres
assim como as da personagem da Moça Tecelã, de Marina Colasanti, que, inconforma-
da com sua história, em um gesto de fabulação acabou por instaurar linhas de fuga,
fluxos que fugissem da lógica na qual ela estava inserida. A personagem da Tecelã,
assim como a ideia de feminilidade, hoje são perspectivas que extravasam qualquer
leitura sobre a mulher ocidental, ou seja, quem dá sentido à própria existência é o su-
jeito que se pensa para além das conceitualizações vigentes. No conto de Colasanti, a
personagem não vê beleza nesse lugar de reprodução do movimento da ação e reação
inscrita na nossa cultura. Ao contrário, não há como haver beleza no cerceamento, na
opressão, na estigmatização das sequenciais violências dos feminicídios.

A mulher precisou se reinventar e se reinventa o tempo todo, como também os seg-


mentos cada vez mais plurais de identidade de gênero e orientação sexual. Nesse pa-
norama sobrou um tipo de homem e, consequentemente, de masculinidade que ainda

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não se situou nesse novo cenário mundial. A Tecelã, inconformada por tecer aquilo
que está pautado pela moral, estabelece uma fuga, ou melhor, um movimento aber-
rante que é contrário à norma ao destecer o que ela mesma reproduziu.

É nesse gesto de confeccionar outros possíveis, no ato de destecer, na ação


de puxar o fio de algo que já estava construído e edificado é que se produz
a ideia de uma pós-estrutura. Puxamos os fios de nossas roupas, de nossos
pensamentos arraigados, de nossos desejos contaminados pela moral, de
nossas subjetividades para conceber uma outra ideia de vestimenta, de cor-
po, de paixão, de sexualidade, de política, de sabor, de sonho e de realidades.

Metáforas à parte, o que se evidencia no conto de Marina Colasanti é uma espécie de


ofuscamento da composição dos enquadramentos de ideais de felicidade, de compor-
tamento e de lugar no mundo. O que está no jogo da trama do texto da Moça Tecelã
é o que se constitui como um movimento que estranhamente destece os domínios
lógicos, sejam eles da órbita do desejo ou de tudo que nos define como seres pen-
santes e desejantes, pois ela, a Moça Tecelã, descria uma forma de desejar, de pensar
a vida e a relação com as coisas, inclusive com ela mesma. Do mesmo modo, em seus
estudos Nietzsche, Deleuze, Guattari, Derrida, Krenak, Mosé, Rolnik e uma infinidade
de pensadores e pensadoras desteceram bravamente as texturas dos organismos e or-
ganizações que por muito tempo agiram de forma perniciosa sobre os nossos corpos.

Portanto, as ramificações, sistemas e linhas epistemológicas que atualizam os movi-


mentos que atravessam a matéria, a vida e o pensamento ganham, na análise de David
Lapoujade, um nome demasiadamente potente: movimentos aberrantes. Entende-se
por aberrante uma espécie de fluxos de movimentações irracionais que atravessam a
materialidade da vida e das coisas, a vivência das experiências de nossos dias, o pensa-
mento que nos determina e que determina nossa subjetivação no mundo em face da
historicidade das sociedades.

Neste sentido, trata-se de entender que os movimentos aberrantes são, na verdade,


deslocamentos, linhas de fuga. É o destecer da Moça Tecelã, são os campos de forças
nietzschiano, as desterritorializações de Deleuze e Guattari. São os fluxos anormais,
mas anormais não por serem exóticos, mas sobretudo por não pertencerem a um pa-
drão vigente, por não seguirem a via da normalidade, que apontam para outros modos
“de povoamento da terra — não apenas humanos, animais, físicos ou químicos, mas
também de populações afetivas, mentais e estéticas; combatendo, assim, as formas
de organização sociopolíticas que ainda pesam sobre nós” (LAPOUJADE, 2015, p. 10). 

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GLOSSÁRIO

Arte aberrante: é a criação artística que pretende uma produção, invenção,


fabulação. A ideia não é copiar, mas intervir no mundo, produzir afetações no
espectador, tornando-o participante porque ele passa a atuar também. Nas
obras de Lygia Clark, Hélio Oiticica, por exemplo, o espectador é impelido a
participar ativamente.

Arte mimética: é a criação artística que parte da verossimilhança com o que


chamamos de realidade, sejam filmes, quadros, esculturas ou textos literá-
rios que têm por base a representação mimética da vida. Arte que tem a pre-
tensão de fazer a cópia.

Devir: para Deleuze, trata-se de uma multiplicidade de fatores em trânsito


contínuo, de tal modo que escapa da conceitualização, já que opera no que
ainda não é, mas sim no que está sendo formado. Um devir nunca chega em
seu lugar, ele está sempre indo. É um processo de transformação constante.

Fluxo: produção ininterrupta de movimentos e agenciamentos que podem


se juntar, se separar ou se anular.

Forças: os campos de forças do pensamento nietzschiano são pulsões que


estão presentes em tudo, desde a vida orgânica até as reações físico-quími-
cas, como também nas questões ligadas à consciência e ao inconsciente.

Linha de fuga: ação de fugir e de romper que conduz a outro modo de exis-
tência, que não se encerra apenas ao burlar as vias reconhecíveis e determi-
nadas, mas também à possibilidade de fluição, de deixar-se ir.

Potência: na filosofia nietzschiana, significa o ato de superação, de expan-


são de si mesmo; é o que faz mover a existência, é o sentido de poder ser
mais daquilo que já se é.

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RE SUMO

A construção do pensamento clareou e irá continuar clareando a ideia de que os ter-


renos cognitivos não necessariamente obedecem a uma lógica perfeitamente com-
preensível, aceitável e pragmática, mas que podemos construir, sim, outras formas de
entendimento que não sejam necessariamente e plenamente racionais.

Todos os filósofos e filósofas contemplados aqui trabalharam e ainda trabalham com a


intenção de ampliar as potências do pensar para além da caixa craniana. Pensar como
Nietzsche pensou, com os dedos dos pés, como um artista, como um dançarino que
manifesta sua força e poder criativo no mover-se de si mesmo.

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RE FE RÊ NCIA S

BUENO, S. F. Da teoria crítica ao pós-estruturalismo: breves apontamentos para


uma possível confrontação entre Adorno e Deleuze. Scielo. Disponível em: 0101-4358-
er-56-00149.pdf (scielo.br). Acesso em: 10 jan. 2021.

COLASANTI, M. A Moça Tecelã. Rio de Janeiro: Global, 2004. Disponível em:


(38) FLIM 2020 - Contação de história: A moça tecelã - Rô Fagundes - YouTube. Acesso
em: 10 jan. 2021.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro:


Editora 34, 1995.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O ato de criação. São Paulo: Folha de São Paulo, 1999.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Que é filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: N-1, 2018.

JASPERS, K. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. Tradução de Marco


Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense, 2015. Minha Biblioteca.

LAPOUJADE, D. Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: N – 1, 2015. Dis-


ponível em: (38) David Lapoujade - Deleuze, les mouvements aberrants - YouTube.
Acesso em: 10 jan. 2021.

NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo:


Hedra, 2007.

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