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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ LINGUAGEM E COGNIÇÃO

É com grande satisfação que o Grupo Linguagem e Cognição apresenta este


número da Revista Prometheus, fruto de um trabalho de cooperação e parceria entre
vários pesquisadores de Filosofia brasileiros e estrangeiros. O Grupo é vinculado ao
Curso de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e está cadastrado no
Diretório dos Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq) desde 2012. Constituímos uma das linhas de pesquisa do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFAL e desenvolvemos investigações
sobre as temáticas de Lógica, Filosofia da Linguagem, Filosofia da Mente, Ciências
Cognitivas, Epistemologia e Filosofia da Ciência em Alagoas. Ao longo dos últimos
oito anos, colaboramos com pesquisadores do exterior e de todas as regiões brasileiras,
promovemos seis edições do Encontro Linguagem e Cognição, realizamos dez edições
do Seminário Integrado Linguagem e Cognição e estamos, neste momento, organizando
o quarto livro da série Escritos de Filosofia: Linguagem e Cognição.

O Dossiê se mostra heterogêneo nos autores, nas abordagens e no tempo


histórico dos pensadores tratados, mas circula em torno de temas tradicionais e
contemporâneos acerca das problemáticas que envolvem, especialmente, Filosofia da
Linguagem, Filosofia da Mente e Epistemologia. Temos reflexões sobre a teoria da
alma em Aristóteles e sua compreensão acerca da captação do objeto cognitivo, numa
abordagem não apenas interpretativa, mas que procura dialogar com ideias
contemporâneas das Filosofias da Mente e da Linguagem. O leitor terá oportunidade de
refletir sobre as implicações pragmáticas do contextualismo, seus profundos
i
desdobramentos e analisar algumas de suas variantes; poderá reavaliar a questão da
intencionalidade articulada com a posição disposicionalista em Filosofia da Mente;
compreender e avaliar as críticas filosóficas de viés wittgensteiniano à Neurologia. O
leitor poderá ainda tomar contato com uma série de reflexões acerca da uma recente
teoria filosófica sobre o mental e a cognição, o enativismo – reavaliando conceitos de
representação, de conteúdo semântico, percepção etc.; poderá acompanhar uma análise
fenomenológica-hermenêutica acerca da experiência da enfermidade através de dois
fenômenos: confiança corporal e memória corporal procedimental. O Dossiê também
possibilitará ao leitor revisitar temas já tradicionais, como a problemática dos nomes
próprios e dos qualia, este, com a reavaliação crítica do argumento do conhecimento de
Jackson, com seu famoso quarto de Mary. Além disso, o leitor poderá retomar temas
relacionados às compreensões evolucionistas para tratamento do mental, isso através da
avaliação da possibilidade da transmissão cultural ser um processo de replicação
memética, similar à evolução biológica, como propõe a teoria dos memes, tendo com
referência a crítica de Dan Sperber; e compreender como as principais concepções sobre
a evolução biológica, numa panorâmica histórico-científica, influenciaram o modo
como o naturalismo biológico de Searle se coloca no cenário da discussão sobre o
problema mente-corpo.

No Dossiê consta ainda uma resenha sobre o livro de introdução à Filosofia da


Mente de nosso colega André Leclerc e três traduções de artigos que, de certo modo,
podem ser considerados clássicos da Filosofia da Mente: dois de David Chalmers e um
de Max Velmans, disponibilizando acesso ao conhecimento a um número maior de
pessoas e contribuindo, assim, para a qualificação do debate sobre a problemática da
consciência em língua portuguesa.

Finalmente, gostaríamos de registrar os seguintes agradecimentos: aos demais


membros do grupo – Juliele Sievers, Ricardo Rabenschlag, André Leclerc e aos/às
estudantes que fizeram e ainda fazem parte de nossa equipe; a todas e a todos que
conosco colaboraram, sobretudo aos colegas e estudantes da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) e da Universidade Federal de Sergipe (UFS) pela constante
participação em nossos eventos e publicações; à UFAL, à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal), à Editora da Universidade Federal de Alagoas
(Edufal), à Editora Fi e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

ii
Superior (Capes) pelo apoio institucional e financeiro; a Pedro Lucena, por ter criado a
nossa logomarca, e a João Dias, pelo projeto gráfico; por fim, somos muito gratos a
Aldo Dinucci, por nos ter confiado a confecção desse número especial, e às
pesquisadoras e aos pesquisadores que com ele contribuíram – cabe agora à leitora e ao
leitor avaliá-lo.

Marcus Souza
Marcos Silva
Maxwell Lima Filho
Editores Convidados

iii
ALMA ARISTOTÉLICA Y MENTE CONTEMPORÁNEA:
DIVERGENCIAS Y CONVERGENCIAS DE UN PROBLEMA
DIFÍCIL

Marcelo D. Boeri
Pontificia Universidad Católica de Chile

RESUMEN: El propósito de este ensayo es mostrar algunos puntos de acuerdo y desacuerdo entre
la teoría aristotélica del alma y algunas discusiones contemporáneas de la mente. Primero, discuto
algunos aspectos importantes del modelo psicológico de Aristóteles; para aclarar su argumento,
mostraré el valor de algunos de los principios metafísicos aristotélicos básicos (materia-forma,
potencia-acto) en el dominio psicológico. Luego regresaré a la discusión de algunas lecturas
contemporáneas de la psicología aristotélica y procuraré mostrar por qué, al menos algunos aspectos
de dicha psicología, todavía pueden tomarse seriamente y por qué (siguiendo los rótulos
habitualmente empleados en la filosofía de la mente contemporánea) es susceptible de ser leída
desde perspectivas diferentes.

PALABRAS CLAVE: Aristóteles. Alma. Mente. Dualismo sustancial. Funcionalismo.


Atributismo. Emergentismo.

ABSTRACT: The purpose of this essay is to show some points of agreement and disagreement
between Aristotle’s theory of the soul and some contemporary discussions of the mind. First, I
discuss some important aspects of Aristotle’s psychological model. In order to clarify his argument,
I will show the value of the basic Aristotelian metaphysical principles (matter-form, potentiality-
act) in the psychological domain. Then I shall return to the discussion of some contemporary
readings of the Aristotelian psychology and try to show why, at least some aspects of such
psychology, can still be taken seriously and why (following the labels usually employed in the
contemporary philosophy of mind) it can be read from different perspectives.

KEYWORDS: Aristotle. Soul. Mind. Substance dualism. Functionalism. Attributivism.


Emergentism.


Este texto recoge, desarrolla y complementa algunas ideas y argumentos presentados antes en
Boeri (2009, 2010, y 2018), y en Boeri & Kanayama (2018). También presento aquí algunos
desarrollos e ideas que no se encuentran en ninguno de esos trabajos. Este trabajo es un resultado
parcial del Proyecto Fondecyt 1150067 (Chile).
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

§ Introducción

El interés filosófico por el “alma” (ψυχή) – i.e., qué es, cuáles son sus propiedades,
en qué se distingue del cuerpo, su rol en procesos psicológico-cognitivos tales como
percepción, imaginación o representación, memoria, pensamiento, y su papel en la
explicación de la decisión práctica – es un tema de vieja data. El primer tratamiento
sistemático de este problema filosófico, centrado especialmente en el alma o mente, se
remonta a los antiguos griegos, aunque los análisis y discusiones más sofisticadas y agudas
se encuentran recién en Platón y Aristóteles.
Por lo general (a veces por razones ciertamente atendibles), ni Platón ni Aristóteles
son tenidos en cuenta en las discusiones contemporáneas de filosofía de la mente y, cuando
se los considera, se los cita como “intentos fallidos” en la exploración de la mente, por así
decir, (cuyo fracaso a veces se atribuye a la ausencia de una ciencia empírica de la mente y
a una fisiología particularmente defectuosa) y como una referencia obligada si lo que se
pretende hacer es un repaso histórico cuando el debate se centra en lo que suele llamarse “la
historia del problema mente-cuerpo”. En dicha historia se habla de tres paradigmas: el
aristotélico, el cartesiano y el “científico” materialista1. En las discusiones contemporáneas
de las últimas seis o siete décadas la palabra “alma” ha sido cuidadosamente omitida y
reemplazada por el término (supuestamente más neutro) “mente”. En efecto, la palabra
“alma”, se argumenta, conlleva un peligro potencial para el tratamiento filosófico y
científico de esa entidad dadas sus implicancias teológicas y presumiblemente
trascendentes (en el sentido deflacionario de una entidad que podría seguir existiendo y
ejerciendo sus poderes más allá de la muerte física). Sin embargo, si uno explica que
Aristóteles suele referirse al alma como a una entidad que garantiza procesos tales como la
respiración, la reproducción, los procesos fisiológicos asociados a la nutrición, la
percepción, el pensamiento teórico y el cálculo racional, los fenómenos de la imaginación o
la representación, los deseos, el sentir dolor o placer, miedo o ira, etc., esa sospecha queda

1
Cf., por ejemplo, Crane & Patterson (2000, p. 2-4).
2
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

en cierto modo eliminada2. Desde la perspectiva aristotélica el alma es, más que una
entidad trascendente por su misma naturaleza, el principio de los seres vivos3, aquello que
explica y garantiza ciertas funciones básicas que dan cuenta del hecho de que uno se
encuentra frente a un ser vivo. Desde luego que también hay otros prejuicios para eliminar
la consideración de los antiguos de los problemas psicológicos del horizonte científico-
filosófico contemporáneo: la ciencia sobre la que se funda la discusión de los problemas
psicológicos en la Antigüedad es tan primitiva (y a veces está tan llena de errores) que lo
más razonable es dejar de lado cualquier tipo de examen que tenga en cuenta las
discusiones de los filósofos antiguos (y, por lo que aquí importa especialmente, Aristóteles)
en el debate de los problemas filosóficos de la mente4.
Algunas de estas razones explican el hecho de que, en la mayor parte de los casos,
los abundantes libros y artículos dedicados a discutir los problemas filosóficos de la mente
no mencionan (ni siquiera al pasar) lo que los filósofos antiguos suelen proponer y
argumentar en ese dominio. Hay, no obstante, algunas interesantes excepciones: hace varias
décadas Hilary Putnam comenzó a interesarse por las posiciones aristotélicas en torno del
alma y de todos los fenómenos asociados a ella. Aunque más no sea de un modo primitivo,
algunas tesis y argumentos aristotélicos se acercaban a su enfoque funcionalista en el
dominio de la discusión especializada de filosofía de la mente5. Algunas intuiciones de
Putnam parecen coincidir con la tesis de Aristóteles, según la cual todo se define por su

2
Con esto no estoy sugiriendo que la palabra “alma” deba ser restituida al debate contemporáneo de
la discusión mente-cuerpo. Sólo estoy indicando que varios prejuicios que habitualmente se asocian
a dicha palabra se basan en creencias falsas o al menos infundadas. Por lo demás, la palabra
“mente” deriva del término latino mens, que es la traducción que Cicerón y otros escritores latinos
antiguos hacen del griego νοῦς, que, en el modelo psicológico de Aristóteles, no es más que una
“especie de alma” (cf., por ejemplo, Cicerón, Disputas Tusculanas V 39). Toda vez que incluyo un
término griego o latino lo acompaño de una traducción (todas las traducciones de los textos
antiguos citadas literalmente me pertenecen).
3
De anima (De an.) 402a6-7; la idea ya se encuentra en Platón (Fedón 105c9-d4).
4
Varios de esos prejuicios contemporáneos son sin duda justificados: Aristóteles pensaba que el
centro de la vida psíquica es el corazón, no el cerebro (cf. De an. 403a31; 432b31; 408b25. Acerca
de las partes de los animales [PA] 665a10-667b. En 670a25-26 habla del corazón como de “la
acrópolis del cuerpo”, seguramente porque es “la parte prioritaria” del animal (PA 666a10; De an.
424a25; cf. también Acerca de la sensación y de los sensibles [Sens.] 439a1-2 y PA 656a27-28). El
cardiocentrismo de Aristóteles es discutido en detalle por Morel (2011, p. 70-74), quien muestra
tanto el lugar crucial que ocupa el corazón como principio básico de la vida como su papel en
relación con las funciones cognitivas y la acción. Para la relevancia del corazón en la fisiología de
Aristóteles, véase la sofisticada explicación de Corcilius & Gregoric (2013, p. 58-60).
5
Cf. Putnam (1997), p. xiv; Putnam (1997a, p. 302).
3
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

función (ἔργον) y cada cosa es lo que verdaderamente es cuando es capaz de llevar a cabo
su función propia6. Ahora bien, si lo que sostiene el funcionalismo es cierto, entonces, el
dolor o el placer pueden ser realizados por diferentes tipos de “estados físicos” en
diferentes tipos de cosas, o sea, pueden ser “múltiplemente realizados”. A pesar de lo que
han argumentado algunos funcionalistas sobre el hecho de que el funcionalismo no caería
ni en el dualismo ni en el materialismo, el funcionalismo ha resultado una teoría
especialmente atractiva a aquellos que pretenden dar una explicación materialista de los
estados mentales. De hecho, algunas variantes de la posición materialista sostienen que
cualquier estado que sea capaz de desempeñar los papeles antes descritos debe ser un
estado físico. Si uno quisiera incorporar las teorías psicológicas aristotélicas a esta
discusión, como han hecho varios prestigiosos aristotelistas contemporáneos y algunos
filósofos de la mente contemporáneos7, tendría que preguntarse si cabe alguna posibilidad

6
Cf. Meteorologica 390a10-13; Acerca del movimiento de los animales 703a34-b2; PA 641a2-3;
654b4, 657a6 et passim. Para una defensa de una lectura funcionalista de la psicología aristotélica
cf. Nussbaum & Putnam (1995). Nussbaum ya había defendido esa interpretación en su obra de
1985. En el texto que compuso junto con Putnam ella parece retractarse en parte de lo dicho antes,
pues ahora parece negar que las condiciones materiales o físicas puedan suministrar condiciones
suficientes para los estados psíquicos (cf. Nussbaum & Putnam, 1995, p. 33). Este artículo conjunto
fue escrito en reacción a las objeciones de Burnyeat (1995), quien niega que Aristóteles precise
“bases categóricas suficientes” para la existencia de las disposiciones psíquicas, una negación que
sería de índole “racionalista”. De este modo, la explicación de la existencia de una actividad
psíquica no dependería de – al menos no exclusivamente – la estructura material del organismo; la
explicación es de naturaleza racionalista y depende de un recurso a la mera disposición o poder para
la actividad mental que posee el organismo (cf. Burnyeat, 1995, p. 21-22). Esto, sin embargo, no
significa que las disposiciones o poderes psíquicos no requieran ciertas condiciones de tipo físico
(por ejemplo, como dice Aristóteles, para que haya visión debe haber cierto material trasparente,
además de un órgano sensorio en buenas condiciones). No obstante, tales materiales sólo
suministran condiciones necesarias, no suficientes de la visión.
7
Nussbaum & Putnam (1995). Véase también el trabajo pionero de Sorabji (1979), quien
argumenta que el funcionalismo psicológico (i.e., la teoría que establece que los estados mentales
son estados funcionales de los organismos) tiene un precedente relevante en la filosofía de la mente
de Aristóteles. Una posición similar puede verse también en Nussbaum (1985, Essay 1). Si lo que
Sorabji y Nussbaum sugieren es correcto, Aristóteles, como los funcionalistas contemporáneos,
habría evitado respaldar el materialismo reductivo (que en el ejemplo aristotélico discutido en De
an. I corresponde a las posiciones psicológicas de los atomistas) y el dualismo (que en la discusión
dialéctica del mismo libro de De an. corresponde a Platón). Modrak, en cambio, sostiene una
posición que, a mi juicio, es mucho más matizada y que, probablemente, hace más justicia al texto
de Aristóteles: la psicología aristotélica no puede asimilarse al funcionalismo psicológico
contemporáneo sin más, entre otras razones, porque Aristóteles no está dispuesto a dar
descripciones funcionales de estados anímicos que no hagan ningún tipo de referencia a la
fisiología (cf. Modrak, 1987, p. 6; p. 38-43).
4
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

de que dentro de su modelo psicológico Aristóteles podría haber aceptado la tesis de la


“múltiple realizabilidad de lo mental”8.
Donald Davidson afirmó – no sin algo de exageración – que la posición psicológica
aristotélica era un sano intento de abandonar el dualismo sustancialista de Platón y que para
Aristóteles los estados mentales están corporizados, de modo que lo mental y lo físico
solamente son dos modos de describir el mismo fenómeno9. Aunque Aristóteles no llega tan
lejos, sí señala con especial énfasis que pasiones o emociones (πάθη), tales como cólera,
calma, miedo, compasión, etc. se dan acompañadas de un cuerpo, pues junto con ellas el
cuerpo es, en cierto modo, afectado (De an. 403a16-19). Es decir, aunque un estado
afectivo o emocional tiene su origen en un cierto estado mental (o actitud proposicional) –
como creer o tener la expectativa de que lo que se aproxima es malo o doloroso para uno,
i.e. miedo (Retórica 1382b29-1383a8) – se trata de un estado que no es ni completamente
físico ni completamente “mental”, además del hecho de que para existir presupone una
especie de correlación entre lo físico y lo psicológico.
El propósito de este ensayo no es ofrecer una explicación detallada del modelo
aristotélico de “psicología filosófica”, sino mostrar algunos puntos de encuentro y
desencuentro entre la teoría del alma de Aristóteles y algunas discusiones filosóficas
contemporáneas de la mente10. En la siguiente sección (§ 2) discuto algunos aspectos
importantes del modelo psicológico de Aristóteles. En el desarrollo de mi presentación
señalaré algunos puntos de acuerdo y desacuerdo entre la posición psicológica aristotélica y
algunos enfoques de la filosofía de la mente contemporánea. Para aclarar el argumento de
Aristóteles, mostraré el valor de sus principios metafísicos básicos (materia-forma,

8
En vista de la brevedad y para no repetirme demasiado, remito a Boeri (2009), donde he
argumentado que, a pesar de que pueden detectarse en Aristóteles “rasgos funcionalistas” en el
sentido contemporáneo, no hay razones para creer que él habría estado de acuerdo con la tesis de
que la identidad de un estado mental se determina por sus relaciones causales con estímulos
sensorios, otros estados mentales o la conducta, caracterización general a partir de la cual se sigue,
al menos según algunos funcionalistas, que los estados mentales son “múltiplemente realizables”,
i.e., que pueden darse en diferentes sistemas (incluso en sistemas artificiales) siempre y cuando
tales sistemas lleven a cabo de una manera apropiada las funciones apropiadas (cf. Fodor, 2008, p.
91).
9
Davidson (2005, p. 290).
10
Por razones de espacio omitiré una discusión detallada de las tres capacidades cognitivas básicas
según Aristóteles: (i) sensación/percepción, (ii) imaginación/representación y (iii) pensamiento; sin
embargo, a veces haré referencia al pasar a ellas.

5
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

potencia-acto) aplicados a su modelo psicológico. Luego (§ 3) intentaré mostrar por qué el


modelo psicológico de Aristóteles puede leerse desde perspectivas tan diferentes.
Finalmente, suministraré algunas breves conclusiones.

§ 2 Un paseo turístico por la psicología de Aristóteles

Aristóteles es el primer filósofo antiguo que presenta una discusión sistemática de


una teoría psicológico-filosófica. Ello, claro está, no significa que él haya “inventado” el
problema sin tener en cuenta las reflexiones (algunas de ellas bastantes sofisticadas) que ya
se encuentran en sus predecesores (particularmente en Platón). Por el contrario, hay
suficiente evidencia textual que muestra que algunos de los logros más importantes de
Aristóteles en esta área derivan de o fueron inspirados por una discusión minuciosa con sus
predecesores, debate en el que se advierten desacuerdos importantes, pero también algunos
acuerdos. De hecho, aunque Aristóteles es muy crítico del materialismo psicológico de los
presocráticos (Aristóteles por lo general piensa en Demócrito y en Empédocles), encuentra
algunas explicaciones razonables en esos filósofos. Los paseos turísticos tienen ventajas y
desventajas: una ventaja relevante es que en poco tiempo es posible ver una cantidad
significativa de cosas. Una desventaja, en cambio, es el hecho de que, aunque se puede ver
mucho, sólo puede hacérselo de una manera más bien superficial. Aunque lo que presentaré
a continuación puede resultar relativamente superficial para un experto en Aristóteles,
confío en que no será tan simplista como para terminar trivializando las tesis y argumentos
aristotélicos. En esta sección articularé mi discusión en los siguientes pasos: (2.1) primero
trataré la cuestión relativa a la naturaleza del alma; (2.2) luego, discutiré la utilidad (o
inutilidad) que ciertos rótulos (como “atributismo”, “dualismo”, “materialismo”, etc.)
tienen para comprender la psicología aristotélica.
2.1 ¿Qué es un alma aristotélica?
Como es habitual en Aristóteles, el punto de partida de una investigación es saber
en qué consiste el objeto de estudio. En cuanto al alma, entonces, hay que comenzar por (1)
averiguar a qué género de cosa pertenece, es decir, “qué es” (De an. 402a23-24: ἐν τίνι τῶν
γενῶν καὶ τί ἐστι): si es un “esto” (τόδε τι) o, más precisamente, una “sustancia” (οὐσία),
una cualidad, una cantidad o alguna otra, dice Aristóteles, entre las demás determinaciones

6
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

categoriales (De an. 402a23-25). Además, (2) también deberá examinarse si el alma se
encuentra entre lo que “es en potencia” o más bien es una cierta “actualidad” o “actividad”
(ἐντελέχειά τις). El análisis rápidamente muestra que no puede ser sino una sustancia y un
cierto tipo de sustancia, i.e., una sustancia en el sentido de “forma” (porque sustancia puede
entenderse en tres sentidos: como materia, como forma y como compuesto de materia y
forma, es decir, como el individuo). Las razones de Aristóteles para pensar que el alma
debe ser una forma (esto es, una entidad inmaterial con poderes activos) es que la materia
(que en el compuesto es el cuerpo) es esencialmente pasiva o inerte. Un caballo, un ser
humano o una planta no son un mero conjunto de carne, huesos, sangre, pelos, tallos o
raíces, sino ese conjunto de cosas dispuestos formalmente de cierta manera y la entidad que
las dispone de esa manera determinada es el alma que, considerada desde la perspectiva
metafísica, es la forma en el compuesto que es “este caballo”, “esta persona” o “esta
planta”11. Según Aristóteles, las cosas materiales requieren de algo que las cohesione (τὸ
συνέχον; De an. 410b12) y, en el caso de los seres vivos, ese “algo cohesionante” es el
alma. Pero ¿por qué el alma cohesiona al cuerpo y éste al alma? Porque cuando el alma
abandona el cuerpo, argumenta Aristóteles, éste se dispersa y se pudre (De an. 411b7-9; cf.
también PA 641a17-19). El materialista podría argumentar que no es posible que el alma
“salga de o abandone” el cuerpo: a menos que Aristóteles esté hablando de manera
metafórica, este tipo de categorías espaciales no pueden aplicarse al alma, ya que ella no es
un cuerpo. Más aún, ¿cómo puede una entidad incorpórea estar en un cuerpo? Aristóteles
no tiene la menor duda de que el alma (una forma) está en el cuerpo y muy probablemente
replicaría al materialista que el alma no está en el cuerpo de la misma manera en que lo está
un cuerpo en otro cuerpo, sino como la forma está en la materia12.
El argumento de Aristóteles para llegar a su primera definición de alma procede así:
(i) entre los cuerpos naturales, algunos tienen vida y otros no; (ii) por “vida” debe

11
La idea de Aristóteles es que todo lo existente (ya sea que se trate de un objeto natural o artificial)
es producido por algo “actualmente” existente” (i.e., ya existente) a partir de lo que es tal “en
potencia” (ὑπ' ἐνεργείᾳ ὄντος γίγνεται ἐκ τοῦ δυνάμει τοιούτου). No hay rostro, mano o carne sin
que haya alma en ello; es sólo en sentido homónimo o equívoco (ὁμωνύμως) que algo podrá
llamarse “rostro”, “mano” o “carne” si ya no hay alma en ello (Aristóteles, Acerca de la generación
de los animales [GA] 734b19-31).
12
Este tipo de objeción materialista puede parecer fuera de lugar, pero Alejandro de Afrodisia fue
sensible a la objeción fisicalista (cf. su De anima 13, 10; véase también Aristóteles, Física 210a14-
24, donde explica los significados de “estar en”).
7
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

entenderse la auto-nutrición de un ser vivo, esto es, el crecimiento y el decrecimiento 13. De


donde infiere (iii) que todo cuerpo natural que participa de vida será una sustancia
entendida en el sentido del compuesto (De an. 412a15-16)14. Pero (iv) el alma no puede ser
un cuerpo, porque el cuerpo no se encuentra entre lo que se dice de un sujeto, sino que es
un sujeto (o “sustrato”: ὑποκείμενον). Dicho de otro modo, el cuerpo no se encuentra en el
dominio de lo que se dice de un sujeto porque, visto el problema desde la perspectiva de la
teoría de las categorías, no es un atributo o predicado, sino un sujeto. En efecto, uno puede
decir que el cuerpo es blanco (cualidad), que mide 1.70 mts. (cantidad), que es más grande
o pequeño que otro cuerpo (relación), que está sentado (posición), que es quemado
(pasión), que quema (acción), etc. La forma, en cambio, es un predicado, por cuanto es lo
que se dice o predica de un sujeto (cf. Física 190a31-b5). Se trata de una tesis que
Aristóteles ya enuncia en algunos tratados tempranos (Categorías 1a25-b3), pero que repite
en textos maduros como Metafísica VII15 (como es evidente, este tipo de pasaje hace
razonable la lectura atributista de la psicología aristotélica)16. De aquí, concluye Aristóteles,
se sigue que (D1) “es necesario, por lo tanto, que el alma sea una sustancia en el sentido de
forma (ὡς εἶδος) de un cuerpo natural que en potencia tiene vida” (De an. 412a19-21).

13
Aquí aparece por primera vez en el De an. la especie más básica o primitiva de alma: el alma
nutritiva o vegetativa, lo que en De an. (415a23-14; 416a18, 434a21-25) y otros tratados (Ética
Nicomaquea [EN]1097b34, donde habla de “vida nutritiva y de crecimiento”; GA 736a34, b8;
757b15 et passim) llama θρεπτικὴ ψυχή o τὸ θρεπτικόν (“lo nutritivo” en el sentido de “facultad
nutritiva”; De an. 413b4-6; 414a30-32; 415a17; cf. también Ética Eudemia 1219b20; GA 735a16;
744b32-33; Sens. 436b16; 443b20). La capacidad o potencia nutritiva es “primera” o “prioritaria”
en el sentido de que es la que, en un sentido básico o prioritario garantiza la primera o más básica
forma de vida que es condición de las demás: la nutrición y la reproducción del ser vivo (De an.
416b21-22; 416b 25).
14
Es decir, el ser vivo que se nutre a sí mismo y se reproduce (una planta, un caballo o un ser
humano) es un individuo corpóreo, es decir, una “sustancia” en el sentido de un compuesto de
materia y forma.
15
Cf. Metafísica 1029a1-7 y, especialmente, 1049a27-36.
16
El otro argumento poderoso a favor de la interpretación atributista se relaciona con la
caracterización del alma como “actualidad primera” (ver la segunda definición de alma – D2 – en lo
que sigue), i.e., como la capacidad de ejercer una actividad: la capacidad de ejercer una actividad es
anterior a su ejercicio (De an. 412a21-b1). Al describir el alma como un conjunto de capacidades o
facultades (δυνάμεις), que refieren a funciones vitales, Aristóteles elimina la posibilidad de que el
alma pueda identificarse con el cuerpo y, por ende, con un sujeto. La capacidad de alimentarse es
diferente de estar alimentándose, la de sentir dolor, placer o miedo, diferente de estar sintiendo de
manera efectiva esas afecciones. También Putnam (1997b, p. 279) se pronuncia a favor de una
lectura atributista cuando escribe: “as Aristotle saw, psychological predicates describe our form, not
our matter”. Ésa es también la estrategia de Barnes (1979, p. 34 ss).
8
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Aristóteles completa esta definición de la siguiente manera: D2 (ii) “el alma es la


actualidad (o actividad) primera (ἐντελέχεια ἡ πρώτη) de un cuerpo natural que en potencia
tiene vida” (412a27-28); D3 “si efectivamente hay que mencionar algo común a toda alma,
[ésta] será la actualidad primera de un cuerpo natural orgánico/instrumental” (ὀργανικόν;
412b4-6)17. D1, como D2 y D3, tiene varias dificultades que han sido cuidadosamente
analizadas por los intérpretes desde la Antigüedad a nuestros días 18. Que el alma es una
“sustancia en el sentido de forma” significa que es una entidad inmaterial. El alma debe
serlo de un cuerpo natural que “en potencia” tiene vida porque no cualquier tipo de cuerpo
es capaz de albergar vida (i.e., debe ser un cuerpo que sea capaz de desplegar poderes
anímicos como alimentarse, tener sensación o pensar, funciones que corresponden a los tres
tipos o especies de alma distinguidas por Aristóteles: nutritiva, senso-perceptiva y
racional). El alma humana – que es la forma de este cuerpo determinado que llamamos
“cuerpo humano” – determina formalmente de una cierta manera la materia que conforma
un ser humano; el alma del buey la materia que conforma lo que llamamos “buey”, la de
una rosa la materia que constituye lo que llamamos “rosa”, etc. Pero no se trata solamente
de una determinación formal de un cierto tipo de materia: dado que Aristóteles distingue
tipos de alma en una especie de scala naturae (De an. II 2-3, et passim), cada alma tiene
ciertas propiedades específicas que introduce determinaciones también específicas: quien
tiene alma racional, también tiene alma sensitiva y vegetativa; la inversa, en cambio, no es
cierta (De an. 413a20-b1).
Ahora bien, es precisamente allí donde comienza el desacuerdo: si el ser animado –
i.e. el ζῷον en el sentido de “ser vivo” – es un compuesto de materia y forma, siendo el
alma la forma y el cuerpo su materia, no es completamente claro en qué sentido hay que
entender la identificación del alma con la forma ni en qué sentido puede entenderse que el
cuerpo es la materia, porque para Aristóteles un cuerpo en sentido estricto es el que
funciona como tal, es decir, se trata ya de un cuerpo animado que cumple las funciones que

17
El significado preciso de ὀργανικόν ha sido objeto de un intenso debate; Bos argumenta que en
Aristóteles ὀργανικόν nunca significa “orgánico”, sino “instrumental” (Bos, 2000, p. 25; 2002, p.
278-279; 2003, p. 11-12; 84-90). Una lectura menos radical y más matizada puede verse en
Polansky (2007, p. 160-161) y Mittelman (2013, p. 548-551).
18
Algunas de esas dificultades son discutidas por Filópono, Comentario al De anima de Aristóteles,
215, 1-216, 26, ed. Hayduck; Bodéüs (1993, p. 44-49), Charlton (1995) y, más recientemente, por
Polansky (2007, p. 154-159) y Zucca (2015, p. 94-101).
9
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

lo identifican como tal y que, por lo tanto, ya está formalmente determinado como un
cuerpo que puede desplegar funciones vitales específicas19. Si esto es así, las definiciones
aristotélicas de alma parecen redundantes, porque sería tanto como decir que el alma es la
forma de algo que ya tiene forma – toda vez que un cuerpo es cuerpo si y sólo si funciona
como tal, porque ya está “informado” como el cuerpo que es y está dotado de las
capacidades que le permiten cumplir determinadas funciones orgánicas –, con lo cual el
modelo hilemórfico aplicado a la explicación del viviente como compuesto de materia y
forma al menos resulta complicado.
De acuerdo con D2, el alma es una “actualidad primera”. En De an. 412a22-26
Aristóteles aclara que “actualidad” (ἐντελέχεια) puede entenderse de dos maneras: (a) en
potencia (la expresión aristotélica es mucho más lacónica: “como el conocimiento”) y (b)
en acto (como “el teorizar”, i.e., el ejercicio del conocimiento). El alma también puede
entenderse como una capacidad porque es la facultad de ejercer una actividad (una cosa es
el sentido de la vista, otra la visión en el sentido de “estar viendo”; De an. 426a14-15). Es
decir, la potencia (o capacidad) es anterior a la actividad, ya que la capacidad de ejercer una
actividad es anterior a su ejercicio (De an. 412a21-b1 y EN 1103a26-31, donde aparece el
argumento con más claridad y tomando como ejemplo la posesión de capacidades
perceptivas y su ejercicio)20. Que éste debe ser el significado de “actualidad primera” es
claro en la analogía con el sueño y la vigilia21. Pero también lo es a partir de otro pasaje en

19
Por eso, un cadáver no es un cuerpo en sentido estricto; por una especie de “economía semántica”
se puede decir que un cadáver sigue siendo un cuerpo, pero en sentido estricto no lo es porque no
funciona como tal (cf. Acerca de la generación y la corrupción 321b28-33. El ojo de un muerto
sigue llamándose “ojo”; GA 735a5-9). Sobre este importante detalle, cf. la discusión de Williams
(2008, p. 222).
20
Claro que, visto el problema desde la perspectiva ontológica, las actividades y acciones (αἱ
ἐνέργειαι καὶ αἱ πράξεις) son conceptualmente (κατὰ τὸν λόγον) anteriores a las facultades o
capacidades (De an. 415a18-20).
21
“Es evidente” (φανερόν), dice Aristóteles, que el alma es una actualidad como el conocimiento
(ἐπιστήμη), es decir, como una capacidad. Pero ¿cómo explica esta “evidencia”? Argumentando que
hay que presuponer la existencia del alma, ya sea que uno esté durmiendo o esté despierto. El
ejemplo del sueño y la vigilia sirve para mostrar la relación potencia-acto: cuando el animal está
despierto todas sus funciones vitales “están en acto”. El animal dormido, en cambio, es comparable
a la actualidad en el sentido del conocimiento (i.e., poseer el conocimiento y no estar utilizándolo;
De an. 412a25-26), ya que hay funciones vitales (como las perceptivas e intelectuales) que se
encuentran mitigadas o “desactivadas”. Dado que el animal que está durmiendo sigue vivo (i.e., está
“animado” y, por ende, tiene alma, ya que ésta sigue animando al animal, aun cuando algunas
funciones no estén operando), el alma debe ser una actualidad como el conocimiento que, aunque
no se está ejerciendo, puede ejercerse. A esta altura debería haber quedado ya resuelto el problema:
10
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

el que Aristóteles explica los significados de potencia-capacidad (De an. 417a22-29): (i) se
podría llamar a algo “conocedor” como si se dijera que “un hombre es conocedor” porque
“hombre” se encuentra entre los que conocen o tienen conocimiento, o (ii) como cuando
decimos que ya es conocedor el que tiene la gramática, pero no la ejerce. Cada uno de ellos
posee una potencialidad, pero no del mismo modo: el uno porque su género y materia es de
tal índole, el otro porque, cuando quiere, es capaz de efectuar una actividad teórica, si nada
externo se lo impide. Este argumento confirma que lo que Aristóteles entiende por
actualidad primera es una capacidad en el sentido de una “propiedad disposicional”22.
En la definición D3 el alma es la actualidad o actividad primera de un cuerpo natural
orgánico u “orgánico instrumental” (el cuerpo es un medio o instrumento del alma, pues es
aquello a través mediante lo cual se “despliegan” los poderes psicológicos). El alma es una
sustancia en el sentido que corresponde a la explicación o definición de una cosa (después
de todo, es una “forma”) y en cuanto es lo que es para un cuerpo natural orgánico. Si no
fuera así, se podría decir que un hacha (i.e., un artefacto en el mapa ontológico aristotélico)
es un cuerpo natural y que su esencia es su alma (De an. 412b11-17). Este ejemplo muestra
que Aristóteles visualizó, al menos ex hypothesi, el problema de si es posible que haya alma
en un artefacto, y su respuesta es, claramente, que no es posible (éste puede entenderse
como un argumento aristotélico en contra de la “múltiple realizabilidad de lo mental”, que
es un aspecto relevante del funcionalismo). La forma de hacha es solamente la estructura
conceptual que determina qué es ese objeto como tal, pero no es “alma” en el sentido de la
sustancia formal que garantiza funciones vitales como nutrirse, sentir o pensar. Si la forma
de hacha fuera “alma”, el hacha ya no sería un artefacto, sino un cuerpo natural que

es una “actualidad” porque el alma sigue ejerciendo sus funciones activas, y es “primera” porque las
capacidades son anteriores a las actividades. La interpretación de estos pasajes es muy
controvertida; para un tratamiento más detallado de las dificultades (desde la Antigüedad a nuestros
días), cf. Filópono, Comentario al De anima de Aristóteles, 216, 1-26; p. 217, 9-15, ed. Hayduck;
Granger (1996, p. 20-28); Schields (2016, p. 170-171); Miller, Jr. (2018, p. xxvi-xxxi).
22
Ver Granger (1996, p. 21). No deja de ser sorprendente, sin embargo, que Aristóteles piense en
una “actualidad” en términos de capacidad o potencialidad, lo cual parecería una contradicción en
los términos. Una manera de resolver ese problema sería sugerir que, además del hecho de que el
alma debe entenderse como una capacidad que puede ser actualizada o activada, está pensando en lo
que en otros pasajes llama “el alma primera o prioritaria” (De an. 405b4-5; 416b20-25), es decir, el
alma nutritiva, que es la forma básica de vida que sigue “actuando” mientras el animal duerme. Esta
sugerencia, que no puedo desarrollar aquí, puede ser útil para explicar el ejemplo del sueño y la
vigilia: mientras el animal duerme hay capacidades psíquicas que están mitigadas (cf. nota anterior),
pero el animal sigue estando vivo.
11
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potencialmente podría albergar alguna forma de vida (De an. 412b15-17). Solamente hay
alma en los entes naturales, los mismos que Aristóteles distingue con toda precisión en
Física 192b8-14 como diferentes de los artificiales.

2.2 La psicología aristotélica, ¿es una teoría “dualista”, “atributista”, “materialista”?

Aunque Aristóteles debe estar aclarando con cierta frecuencia que el alma no está
mezclada con el cuerpo (De an. 407b1-5; 429a24-25; cf. Sentido 440b1-25, donde es claro
que, en su opinión, una mezcla sólo lo es entre cuerpos) y que no es un cuerpo, afirma que
está localizada en el cuerpo y que existe o se da a través del cuerpo. Esto último explica por
qué el cuerpo es un “instrumento” – ὄργανον – del alma (415b18-19), y puede ayudar a
comprender el intento de Aristóteles por distanciarse del dualismo sustancialista de Platón
(i.e., la tesis de que el alma puede seguir existiendo aparte del cuerpo; Fedón 78c-79b).
Pero, (i) si el alma aristotélica es una entidad inmaterial y si (ii) uno puede entender por
dualismo la tesis de que hay dos tipos de sustancia diferente (una física – que es el objeto
de la ciencia natural – y otra mental presumiblemente no física – que es el “material” del
que se componen nuestros estados de conciencia)23, ¿en qué sentido puede decirse que
Aristóteles no es un dualista? Los estudiosos de Aristóteles suelen argumentar que el rótulo
“dualismo” no puede aplicarse apropiadamente a Aristóteles (especialmente cuando
“dualismo” significa “dualismo sustancial”), ya que él niega que el alma (el alma
“numérica” o “individual”, no la “específica”; De an. 415b7) pueda continuar existiendo
independientemente del cuerpo.
Los aristotelistas tienden a rechazar la opinión de que Aristóteles respalde una
visión dualista, ya que tanto en De an. como en otras obras psicológicas considera que el
ser vivo es un todo unificado24. En efecto, si las capacidades psicológicas son vistas como
funciones de un todo psicofísico unificado, lo psicológico no puede oponerse a lo físico y,
por ende, no hay dualismo. Sin embargo, en la medida en que Aristóteles distingue (como
Platón) el alma del cuerpo como dos cosas ontológicamente diferentes (esta es una
caracterización habitual del “dualismo” en la filosofía contemporánea de la mente), me

23
Kim (1998, p. 3-4, p. 211-212). Watson (1999, p. 244). Beakley & Ludlow (2006, p. 3).
24
Un compuesto de materia y forma; véase MOREL 2006, p. 122-124, y 2007, cap. III. 3.
CHARLES 2008.
12
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parece que todavía se puede decir que él también avala un cierto tipo de dualismo25.
Cuando Aristóteles define el alma como “la actualidad primera de un cuerpo natural
orgánico” enfatiza el hecho de que hay que descartar la pregunta de si el cuerpo y el alma
son una sola cosa (De an. 412b5-9)26, como también hay que descartar la posibilidad de que
la cera y la figura que a ella se le imprime sean una sola cosa. Es decir, lo que hay que
hacer es distinguir la materia de cada cosa de aquello de lo cual es materia. Además, el
texto claramente señala que el alma no es un cuerpo porque éste es un sustrato, en tanto que
el alma puede entenderse como “algo del cuerpo”, i.e., un atributo (De an. 412a15-19; este
pasaje parece respaldar de nuevo la lectura atributista de la psicología aristotélica). Pero el
rechazo de una lectura dualista de la psicología aristotélica radica especialmente en el
hecho de que el hilemorfismo presupone que no hay forma sin materia ni materia sin forma;
si eso es así, el ser vivo (ζῷον) es una unidad psicofísica que solamente puede distinguirse
en sus componentes de un modo conceptual.
Aristóteles hace esfuerzos ingentes por apartarse del dualismo sustancialista de
Platón; de modo expreso y probablemente pensando en la tesis platónica sugiere (De an.
414a19-20) que el alma no puede existir separada del cuerpo y que, aun cuando ello no
necesariamente significa que el alma no persista después de la muerte de la persona27,
enfatiza el hecho de que el alma no puede existir independientemente del cuerpo (De an.
413a3-5; después de todo, el alma es una forma y las formas sólo existen en el compuesto).
Aristóteles no tiene dudas de que las partes nutritiva y sensitiva (o perceptiva) del alma no
pueden seguir existiendo después de la muerte, aunque sí sospecha (tal vez como una
rémora de su platonismo implícito que viola la premisa hilemórfica, según la cual una
forma no puede existir si no es en el compuesto) que al menos el alma racional puede

25
Para esa caracterización habitual de dualismo cf. supra n. 23. De una manera más cautelosa
Shields sugiere que Aristóteles adopta un modo no cartesiano de dualismo sustancial (que
habitualmente se denomina “dualismo superveniente” en el dominio de la filosofía contemporánea
de la mente): la sustancia inmaterial del alma “sobreviene” a la sustancia material del cuerpo
(Shields, 1988, p. 106). Este enfoque ha sido seriamente cuestionado (cf. Bolton, 2005, p. 216).
26
Una advertencia de Aristóteles contra el riesgo de “reificar” el alma al plantear cuestiones
inapropiadas acerca de su unidad con el cuerpo (como agudamente hace notar Mittelmann, 2013, p.
546).
27
El alma racional en su función de “intelecto agente”, que se da “separado” (del cuerpo o, tal vez
mejor, del intelecto paciente) es, dice Aristóteles, “inmortal y eterno” (De an. 430a22-23: ἀθάνατον
καὶ ἀΐδιον). No hay acuerdo entre los intérpretes respecto del significado de “separado” (χωρισθείς).
Omito aquí la discusión de este complicado problema; para una explicación pormenorizada, cf.
Gerson (2005, p. 152-162) y Boeri (2010, p. LI, n. 53 y p. CXII-CXXIII).
13
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existir sin el cuerpo. Más aún, si el alma se identifica con la forma y el cuerpo con la
materia (De an. 412a17-19; 412b6-8; 414a14-19), y si debe haber una cierta relación de
dependencia entre la forma y la materia, no puede haber una forma separada (en el sentido
de una “separación real”, que para Aristóteles es claramente espacial: τόπῳ; De an.
413b15) de su correspondiente materia28.
También se podría sugerir que la psicología aristotélica es un cierto tipo de
“sustancialismo”; claro que Aristóteles aclara que se trata de una sustancia “en el sentido de
forma” (εἶδος), pero decir que el alma es una forma no está exento de dificultades. Bernard
Williams sostiene que el hilemorfismo aristotélico que subyace a su psicología es sólo una
forma “educada” (polite) de materialismo (Williams, 2008, p. 224-225)29. Williams (2008,
p. 219) y Kenny encuentran el origen de la dificultad en una ambigüedad en la noción de
forma: si se dice que el alma es una sustancia (lo cual puede llevarnos a pensar que es una
“cosa”) y luego resulta que el alma es más bien una propiedad, hay una ambigüedad crucial
en la noción de forma. Cuando Kenny se refiere a esa ambigüedad de la forma aristotélica y
distingue entre una noción abstracta de forma y una noción entendida en el sentido de un
agente motriz o eficiente, parece que el punto de vista aristotélico se oscurece30. La
definición de alma sugiere que ella no es una cosa, sino una propiedad de una cosa, de
donde parece seguirse que Aristóteles avalaría un enfoque atributista. El problema de
Williams y Kenny es que algo no puede ser a la vez un x abstracto (la forma sustancial que
es el alma aristotélica, tal como se la define en D1) y un x concreto que puede ser un agente
de cambio. Pero eso no es un problema para Aristóteles, ya que, por una parte, no toda
sustancia aristotélica es una “cosa” (si por “cosa” se entiende un objeto perceptible del
mundo empírico). La forma sustancial en un ser humano es aquello por la cual una persona
es una persona, o aquello que hace a una persona una persona (εἶδος aquí debe significar
“esencia”). En cada uno de estos casos el “hace” es el “hace” de la causalidad formal, como
cuando decimos que es una cierta forma la que “hace” de un trozo de madera una mesa.

28
Sobre el problema de si el alma está o no localizada en distintas partes del cuerpo, cf. Movia
(1991, p. 288-289). Éste, desde luego, no es un problema para el materialismo contemporáneo, pero
sí lo fue para Aristóteles quien, aun argumentando a favor de la inmaterialidad del alma, advierte
los problemas que hay para explicar cómo esa entidad inmaterial está en el cuerpo y tiene poderes
causales sobre él.
29
Jaworsky (2016, p. 213-217) ha presentado un conjunto de argumentos vigorosos en contra de la
sospecha de Williams. Sería interesante discutirlos; omito hacerlo en vista de la brevedad.
30
Cf. Kenny (1994, p. 149).
14
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Además, no toda la causalidad eficiente aristotélica está asociada a objetos corpóreos: la


deliberación de una persona o su elección también son ejemplos apropiados de lo que la
tradición llamó “causa eficiente” (cf. Física 194b30; Metafísica 1025b22-24; EN 1139a31-
32). Pero tanto la deliberación como la elección son ítems mentales y, por tanto, entidades
abstractas en el mapa ontológico
Tanto Williams como Kenny asumen que nada puede ser a la vez abstracto y
concreto (lo cual parece ser un supuesto muy razonable), pero ése no es el modo en el que
Aristóteles entiende lo que él llama οὐσία y que nosotros solemos traducir por “sustancia”.
Una sustancia aristotélica puede ser algo concreto (un “compuesto”: σύνθετον) y algo
abstracto (una sustancia en el sentido de forma es una entidad inmaterial y por eso es algo
abstracto), aunque Aristóteles no afirma que lo son a la vez, sino que son modos en que se
dice “sustancia”. Williams y Kenny parecen suponer que la ambigüedad en la noción de
forma es fatal para el hilomorfismo, pero Aristóteles podría replicar que las “almas
aristotélicas” no son “sustancias” en el sentido de compuesto, sino en el de forma.
¿Y qué sucede con los materialistas psicológicos con los que discute Aristóteles? A
diferencia de la explicación que daban los presocráticos sobre la actividad biológica
entendida como la presencia azarosa de una materia esencialmente extraña (i.e., el alma)
dentro de la constitución física del cuerpo del animal, Aristóteles insiste en que debe haber
un paralelismo estructural necesario entre alma y cuerpo. Cualquier actividad de un ser
vivo (un animal – racional o irracional –, una planta) se explicará, en un sentido, en
términos de la materia que compone el cuerpo mismo y, en otro sentido, en términos del
alma. Pero es la misma actividad la que se explica en ambos casos; por ejemplo, sin el
órgano apropiado en buenas condiciones no es posible ver, pero el ver en sí mismo, cree
Aristóteles, no puede ser exactamente lo mismo que el órgano de la vista.
Aunque el modelo aristotélico de materialismo psicológico son los atomistas, (De
an. 403b31-404a1), también se refiere a Empédocles como un filósofo representativo de ese
enfoque filosófico. La tesis que, según Aristóteles, hace similar la posición de Empédocles
y de Platón (¡a quien acerca al materialismo!) es la de que “lo semejante es conocido por lo
semejante” (De an. 410a30-b2). El argumento más claro en contra de este punto de vista es
que lo que en los cuerpos de los animales es tierra (es decir, las partes duras que, según la
química aristotélica, tienen una mayor concentración de tierra) no percibe nada, ni siquiera

15
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

cosas semejantes, aunque, según el principio de que “lo semejante es conocido por lo
semejante”, debería hacerlo. Esta objeción parece un poco presuntuosa, pero sirve para
neutralizar la sospecha de que un objeto corpóreo por sí mismo sea capaz de desarrollar
actividades psicológicas (como conocer y percibir).
Si bien la atribución de Aristóteles a Platón de la tesis de que lo semejante es
conocido por lo semejante tiene una base textual bastante precisa en los textos platónicos
(cf. Timeo 45c2-d3), es de todos modos sorprendente que en su objeción a esa tesis atribuya
a Platón la idea de que un objeto corpóreo es capaz de conocer o percibir, pues conocer y
percibir son actividades psicológicas por excelencia también en la psicología platónica. En
todo caso, lo que Aristóteles parece querer señalar es que esas actividades psicológicas no
pueden estar ancladas en lo corpóreo, por un lado; pero su interés principal es enfatizar que
los elementos (fuego, aire, agua y tierra) – que son como la materia – requieren de un
principio unificador que los mantenga juntos y los determine de cierta manera (De an.
410b12). Esto, leído en el trasfondo de la metafísica aristotélica, es la relación entre la
materia (que es inerte) y la forma (que es capaz de “poner en movimiento” la materia).
La objeción aristotélica fundamental al fisicalismo presocrático y, en cierto modo, a
la “metafísica naturalizada” de su tiempo es que el alma lo es de “un cierto tipo de
cuerpo”31; en lo que creo que fue su intento de superar el materialismo reductivo de los
presocráticos y el inmaterialismo extremo de Platón, Aristóteles postula una especie de “co-
dependencia” entre alma y cuerpo (que a su vez deriva de la dependencia recíproca entre
materia y forma), pero en tal co-dependencia el alma no puede ser el principio vital de
cualquier tipo de cuerpo, sino de aquel en el que puede tener lugar el despliegue de
funciones psíquicas bien definidas (cf. el ejemplo del hacha en De an. 412b10-17). Si este
argumento es razonable, hay al menos un motivo para pensar que la psicología de
Aristóteles puede entenderse como un capítulo de su física y, por ende, también de su
biología. Los seres vivos aristotélicos son entidades físicas, pero Aristóteles los explica
recurriendo a sus nociones metafísicas fundamentales, según las cuales cualquier individuo
perceptible es un compuesto de materia y forma.

31
La “metafísica naturalizada” se entiende como la teoría que afirma que dicha metafísica se refiere
a un dominio dentro de lo empírico, no a un dominio que vaya más allá de él (cf. Esfeld, 2018, p.
143-144).

16
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Un problema clave de Aristóteles es cómo dar cuenta del movimiento, tanto en


sentido físico como psicológico. Aquí la aplicación de su teoría hilemórfica proporciona la
ayuda necesaria: en el marco del hilomorfismo aplicado a la psicología, el alma es la forma
y el cuerpo la materia del ser vivo. Además, el alma debe ser una forma porque es “una
especie de principio de los seres vivos” (De an. 402a6-7) y, si es un principio, su naturaleza
debe ser diferente de aquello de lo que es principio. Las entidades corpóreas tienen un
carácter pasivo; por lo tanto, siempre requieren un principio activo (la forma) que activa,
organiza o dispone los ingredientes materiales de una manera apropiada para constituir un
cierto tipo de cosa. Tanto en el dominio artificial como en el natural (de los seres vivos), lo
que unifica es una forma, pero en el caso de los seres vivos tal forma es equivalente al
alma, el principio “vivificante” de la materia.

La idea de fondo, entonces, es que no hay cuerpo sin alma ni alma sin cuerpo;
después de todo, es el propio Aristóteles quien afirma que “el alma no es/existe sin un
cuerpo ni es cierto tipo de cuerpo” (De an. 414a19-20). Creo que la relevancia de esta sutil
observación no puede ser exagerada; de hecho, es descriptiva de la manera en que la
psicología aristotélica se aleja de la psicología platónica (“el alma no existe sin un cuerpo”)
pero, al mismo tiempo, conserva un supuesto fundamental del platonismo (“el alma no es
un cuerpo”). La innovación de Aristóteles consiste en subrayar que las operaciones
psicológicas no pueden ocurrir independientemente de un cuerpo. Este tipo de enfoque
podría entenderse como la “teoría psicológica del término medio”, siendo los dos extremos
de este término medio un “materialismo burdo”, por un lado (vinculado en cierta medida a
una metafísica naturalizada representada por los atomistas), y un “inmaterialismo puro”
(Platón), por el otro (asociado a la metafísica no naturalizada). Las objeciones que ponen en
duda que la forma sea activa y la materia pasiva parten de un conjunto de premisas
materialistas que Aristóteles rechaza, pero el problema más interesante es, en mi opinión,
por qué él niega que la materia por sí misma pueda tener poderes activos. Una explicación
razonable aquí, creo, es que esté reaccionando al hilozoísmo tan característico de los
filósofos presocráticos. Esos filósofos, sostiene Aristóteles, suponen que todo es cuerpo,
pero no proporcionan una razón para explicar por qué la materia está en movimiento (como
de hecho parece estarlo), e implícitamente declaran que la materia es un objeto en
movimiento. El milesio Tales parece haber supuesto que el alma es algo capaz de mover,

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“si, en realidad, sostuvo que la piedra imantada tiene alma porque mueve al hierro” (De an.
405a19-21). Más tarde, Aristóteles conjetura que, después de los que afirman que el alma
estaba mezclada en el universo mismo, por esa razón “Tales pensó que todo estaba lleno de
dioses” (411a7-8).
Este famoso dictum, atribuido a Tales (tanto por Aristóteles como por Platón, Leyes
899b), constituye la versión más evidente del hilozoísmo presocrático, la tesis de que la
materia está animada. El ejemplo del imán (en 405a19) sugiere que incluso las cosas
aparentemente inertes parecen tener vida. La tesis de que “todo está lleno de dioses” es una
cierta forma de lo que en la actualidad suele entenderse por “pansiquismo”, es decir, la
afirmación que atribuye alguna forma de conciencia a la materia. Aristóteles da varias
razones en contra de este punto de vista; una de ellas es que el alma que está en el aire o en
el fuego no produce un ser vivo, mientras que sí lo produce cuando está en los elementos
mezclados.
Para concluir esta sección, discutiré brevemente lo que entiendo como “el método
dialéctico en acción”; argumentaré que cuando Aristóteles discute con los materialistas
psicológicos (que lo preceden o de su época) trata con teorías que tienen principios falsos
pero razonables, por un lado, y principios falsos y burdos, por el otro. Los puntos de vista
de Empédocles y Platón son buenos ejemplos de lo que he llamado “teorías falsas y
burdas”: sostener que “lo semejante es conocido por lo semejante” no sólo es falso (por lo
que ya he explicado), sino que, en la medida en que confiere poderes cognitivos a los
elementos por sí mismos (es decir, a un trozo de materia por sí misma), también constituye
una posición burda. Pero en opinión de Aristóteles, el mejor ejemplo de una tesis que es a
la vez falsa y burda es la de aquellos que, como Jenócrates, sostienen que el alma es un
número que se mueve por sí mismo. Llegado a este punto Aristóteles piensa que ya ha
demostrado que el alma no puede ser movida, y si no es movida en general, es evidente que
tampoco puede ser semoviente (cf. De an. 408b30-409a10; en el pasaje 408b32 califica la
tesis de que el alma es un número como “la más absurda, o irracional”: ἀλογώτατον).
Pero, por otro lado, Aristóteles también presenta tesis que, según mi distinción
inicial, a pesar de ser falsas, contienen algunos ingredientes razonables. De hecho, cuando
observa que aquellos que han hecho la suposición razonable (405a5) según la cual, lo que
pone en movimiento por su propia naturaleza está entre las cosas primarias, encuentra una

18
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razón para comprender por qué algunos declararon que el alma es fuego. La tesis es falsa
porque, en su opinión, un objeto corpóreo es inerte por naturaleza y, por tanto, no puede
identificarse con el alma, que en su propia naturaleza es algo activo y cuyas capacidades
biológicas e intencionales no pueden reducirse a un cuerpo (además del hecho de que, si el
alma fuera un cuerpo, habría dos cuerpos en el mismo lugar, lo que para Aristóteles es
absurdo; De an. 409b2-e). Pero esta posición también es de alguna manera razonable en la
medida en que el fuego es el más sutil e incorpóreo de los elementos (405a6-7). Así,
aunque la tesis es falsa, proporciona un ingrediente decisivo para la doctrina aristotélica del
alma: la incorporeidad.

3. ¿Por qué puede leerse desde tantas perspectivas la psicología aristotélica?

La literatura especializada de las últimas décadas sobre la psicología aristotélica


muestra que Aristóteles ha vuelto a ser tenido en cuenta en la discusión contemporánea del
problema mente-cuerpo y, en general, de la naturaleza de los estados mentales. A partir de
los años 70’, el funcionalismo psicológico se impuso como teoría de la mente dominante.
Quizás una parte importante del éxito de este enfoque se debe a que se cree que el
funcionalismo es compatible con la investigación empírica de la mente y a que el no
requiere – al menos no necesariamente – una reducción materialista de la mente al cerebro.
De acuerdo con los mentores del funcionalismo, los procesos mentales internos son estados
funcionales del organismo, cuyo órgano no es necesariamente el cerebro. Si eso es así, el
dolor o la creencia no es un estado físico-químico del cerebro o del sistema nervioso, sino
un estado funcional del organismo tomado en su totalidad. De este modo, los fenómenos
mentales pueden entenderse como estados funcionales del organismo y no es posible
conocerlos estudiando los procesos parciales en los que están implicados, como los
procesos cerebrales.
Ya he explicado someramente arriba en qué sentido Putnam vio adelantada su
funcionalismo en Aristóteles. El funcionalismo presupone que una misma función puede
ser desempeñada por sistemas muy distintos, ya que la naturaleza de sus componentes no es
esencial para el correcto desempeño de su función. Las creencias y deseos son estados
físicos de sistemas físicos que pueden estar hechos de diferentes tipos de materiales. Algo

19
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

es una creencia o un deseo en virtud de lo que hace y no en virtud de los materiales de los
que su sistema está compuesto. No es analizando el sistema sino su función como
comprenderemos el proceso. Cualquier sistema puede tener mente a condición de que sea
capaz de realizar la función adecuada32.
Aunque tanto las lecturas materialistas33 como las espiritualistas34 han reclamado
que su interpretación de la psicología aristotélica es la correcta, los desacuerdos reinantes
parecen deberse a la falta de precisión de los textos psicológicos de Aristóteles al hablar de
“lo anímico-mental” o, mejor aún, al carácter exploratorio de sus escritos. Sin duda,
Aristóteles tiene numerosas certezas (que, además, argumenta cuidadosamente) acerca de lo
anímico o mental: (i) el alma no es un cuerpo, pero (ii) no “existe” si no es a través del
cuerpo. (iii) El alma es el principio de los seres vivos, ya que garantiza determinadas
funciones vitales de los mismos. (iv) Si el alma es una forma, hay dudas razonables para
suponer que el alma “numérica” (i.e., individual) no puede persistir después de la muerte
(cf. De an. II 4). (v) La capacidad de alimentarse o de percibir es diferente de estar
alimentándose o de experimentar una percepción (visual, por ejemplo). Pero si el sistema
corpóreo-fisiológico no se encuentra en buenas condiciones, no es posible activar esas
capacidades35.

32
“Dos sistemas son funcionalmente isomórficos si hay una correspondencia entre los estados de
uno y los estados del otro que conserve las relaciones funcionales” (Putnam, 1997a, p. 291; el
destacado en itálica es de Putnam). Es decir, dos sistemas pueden tener constituciones muy
diferentes y ser isomórficos desde el punto de vista funcional (cf. p. 292-293). Desde el punto de
vista de la realización de la función la realización físico-química del sistema es completamente
accidental para el funcionalismo (p. 293).
33
Atributismo, funcionalismo, emergentismo, materialismo no reductivo (sobre el cual, cf. Sorabji,
1979, p. 49, n. 22; ver también infra n. 35).
34
Burnyeat (1995; 1995a). Sobre el contraste espiritualismo-materialismo, cf. la discusión de Zucca
(2015, p. 143-151).
35
La lectura emergentista de Aristóteles a veces puede resultar interesante. Según los emergentistas,
los estados mentales no son idénticos a los estados físicos del cerebro ni pueden reducirse a ellos,
pero tampoco son independientes de los mismos. A diferencia del materialismo reductivo, el
emergentismo afirma que respecto de la estructura y la función de ciertos sistemas físicos complejos
se dan propiedades que son únicas y que no se encuentran en las partes más pequeñas de la materia.
Dichas propiedades de los sistemas más complejos no son reductibles a las de los elementos
constitutivos, aun cuando no pueden existir sin ellos (cf. Kim, 1998, p. 226-229). Shields es uno de
los aristotelistas contemporáneos que ha defendido una interpretación “emergentista-superviniente”
de la psicología aristotélica (cf. Shields, 1988), según la cual el alma es una cosa que “sobreviene”
al cuerpo. Aristóteles habría planteado un cierto tipo de “dualismo sustancialista”, que Shields
prefiere llamar “dualismo superviniente”, una interpretación que parece haber abandonado en su
20
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Por otra parte, no parece haber sido un problema genuinamente aristotélico si el


alma es una propiedad que “emerge” del cuerpo o si un determinado tipo de actividad
cerebral podría ser identificada con un estado psicológico determinado (además del hecho
de que, como vimos, erróneamente Aristóteles pensaba que el centro de la vida mental del
animal era el corazón, no el cerebro). No obstante, también tuvo interés por evitar (contra
Platón) los problemas inherentes al dualismo sustancialista y (contra los atomistas) los
inherentes al materialismo reductivo. Como el funcionalismo contemporáneo, Aristóteles
evita tanto el dualismo como el materialismo; como ya he señalado, al describir el alma en
términos de capacidades de las funciones vitales, evita la identificación del alma con el
cuerpo (o con un cierto tipo de “cuerpo sutil”, como hacían los atomistas). Un alma
aristotélica no es aquello que tiene capacidades o facultades, sino que es dichas capacidades
o facultades36.
Uno podría razonablemente argumentar que la teoría aristotélica de la percepción y
de las emociones resulta creíble a varios filósofos, epistemólogos y psicólogos cognitivos
en nuestros días porque hay al menos una posibilidad de interpretar tales teorías en clave
funcionalista. Un dolor o un placer no sería más que aquello que es causado por un daño o
un beneficio corpóreo, respectivamente, lo que da lugar a la creencia de que algo está mal
en el cuerpo y al deseo de abandonar ese estado, o a la creencia de que algo está bien en el
cuerpo y al deseo de permanecer en ese estado. Dado que el funcionalismo limita lo mental
a su “funcionalidad”, sostiene que cada “entidad mental” es un ejemplo de la propiedad que
especifica su mentalidad en términos funcionales, por un lado, y la propiedad que
especifica su naturaleza material, por el otro. De donde parece seguirse que las propiedades
mentales y materiales no son idénticas y que, por ende, puede conservarse la inmaterialidad
de lo mental, pero “dándose” a través del cuerpo (un enfoque enteramente aristotélico)37.

reciente traducción comentada del De an. (Shields, 2016), donde, hasta donde he podido ver, ya no
argumenta a favor de entender la psicología aristotélica como un dualismo superviniente.
36
Esta aguda observación es de Sorabji (1979, p. 43, n. 2).
37
Cf. Granger (1996, p. 34). El funcionalismo no es (al menos no necesariamente) materialista en
sentido reductivo en la medida en que permite que pueda conservarse la inmaterialidad de los
estados mentales. Sin embargo, exige que todo estado mental sea ejemplificado en algún tipo de
sistema material: para cualquier variedad de funcionalismo, el “organismo” será una cosa material,
y aunque todos sus estados serán estados materiales, algunos de dichos estados materiales también
serán estados mentales porque serán capaces de satisfacer ciertas funciones propias de lo mental.
21
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Un enfoque que intentaba mostrar los límites del materialismo reductivo en la


consideración de los estados mentales fue el que, además del funcionalismo, dio Davidson
entre mediados de los 70’ y comienzos de los 80’ con su tesis del “monismo anómalo”38, la
cual ayudó a ubicar lo mental en un plano diferente del físico, oponiéndose así a las
posiciones materialistas radicales que sostenían que los eventos mentales eran únicamente
procesos cerebrales. Davidson sostiene que, aunque el monismo anómalo se parece al
materialismo en su afirmación de que todos los eventos son físicos, rechaza la tesis,
esencial al materialismo, según la cual a los fenómenos mentales se les puede dar
explicaciones puramente físicas39. Su “monismo anómalo” es un “monismo” porque
sostiene que los eventos psicológicos son eventos físicos; y es “anómalo” porque insiste en
que los eventos no caen bajo leyes estrictas cuando se los describe en términos
psicológicos40. Aunque la posición de Davidson puede ser calificada de “fisicalista” (“todos
los eventos son físicos”), su esfuerzo por matizar su posición y diferenciarla de cualquier
forma de materialismo burdo puede ser entendido como un interesante intento por mostrar
la irreductibilidad de los ítems mentales a los físicos, contradiciendo de ese modo la tesis de
la identidad mente-cuerpo del materialismo radical41.
No hay duda de que los compromisos metafísicos de la psicología aristotélica alejan
el modelo psicológico de Aristóteles de las discusiones contemporáneas de filosofía de la
mente. Hay muchos pasajes en sus escritos psicológicos en los que su compromiso
metafísico con el examen de la vida es evidente, pero el siguiente puede ser particularmente
relevante:

38
La tesis de que no hay correlaciones estrictamente “legales” entre los fenómenos “mentales” y los
“físicos”, lo cual establece que el dominio de lo mental, debido a su esencial falta de normatividad,
no puede ser un objeto serio de investigación científica. Cf. Davidson (2004, p. 121).
39
Davidson (1980, p. 214). Desde el momento en que Davidson admite que hay interacciones
causales en las que intervienen eventos mentales, también debe admitir que tales eventos mentales
pueden funcionar como factores causales, puesto que son idénticos a ciertos eventos físicos. Esto,
sin embargo, no implica que las propiedades mentales sean reductibles a propiedades físicas.
40
Davidson (1980a, p. 230-231).
41
Tanto el monismo anómalo de Davidson, como el funcionalismo de Putnam pueden entenderse
como ejemplos de “materialismo no reductivo”. Al menos algunas formas de emergentismo y de
funcionalismo tienen, por tanto, razones para asimilar algunas tesis psicológicas de Aristóteles a sus
propias explicaciones. En efecto, aunque Aristóteles distingue con claridad los ítems físicos de los
anímicos, defiende con especial interés la tesis de que no es posible que los estados anímicos se den
independientemente del cuerpo o de ciertos estados corpóreos.
22
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

La laringe es el órgano de la respiración, y la parte [del cuerpo] que existe


en vista de esto42 es el pulmón. Pues los [animales] terrestres tienen mayor
calor en esta parte que en las demás. El lugar que primero necesita de la
respiración es el que está en torno del corazón; por lo tanto, es necesario
que el aire penetre dentro [del cuerpo] cuando es inspirado, de manera que
‘voz’ (φωνή) es el impacto del aire inspirado contra la llamada ‘tráquea’ a
causa del alma [presente] en estas partes (De an. 420b24-30).

Aristóteles quiere aclarar (i) cuáles son las condiciones físicas que permiten ciertos
procesos fisiológicos y anímicos (es decir, vitales) como la respiración. Sin laringe, no hay
respiración, y los pulmones son la parte del cuerpo que permite que el animal respire. (ii) El
lugar que fundamentalmente necesita de la respiración es el que “está en torno del
corazón”; Aristóteles afirma esto porque, erróneamente, pensaba que el corazón es el centro
de la vida anímica del animal (aunque hay un sentido en el que uno debería ser caritativo
con él, ya que no cree que el corazón sea el centro de la vida mental, sino “anímica”, y
anímica debe significar vital en sentido amplio: vida nutritiva, perceptiva y mental en el
sentido de “intelectual”). Si el corazón deja de latir, el animal muere y, obviamente,
también cesan todas las funciones vitales ancladas en cada una de las “partes” del alma. (iii)
Cuando el aire es inspirado entra dentro del cuerpo, de donde parece inferir que (iv) la
“voz” (φωνή; i.e., un sonido articulado y significativo), vista desde una perspectiva
puramente fisiológica, no es más que el impacto o choque del aire inspirado contra la
tráquea. Pero ese impacto o choque es producido por o a causa del alma “dispersa” en esas
partes. Es decir, sin la función anímica respectiva (en este caso debe tratarse de la función
anímica correspondiente al alma nutritiva o vegetativa, porque la respiración es parte de los
procesos vitales vegetativos), no puede producirse ese impacto y, por ende, tampoco la voz.
Para concluir: creo que por las razones que he dado el hilomorfismo es clave para
entender el proyecto aristotélico de psicología filosófica. Pero por eso mismo, el modelo
psicológico aristotélico, además del hecho de basarse en una fisiología errónea o deficiente,
parte de una premisa que la mayor parte de las teorías contemporáneas de la mente
rechazan: un objeto natural es, como cualquier otro objeto del mundo perceptible (el “único
mundo” diría un filósofo contemporáneo para quien el materialismo es un punto de partida

42
Es decir, de la respiración. Sobre la relevancia de la laringe como condición necesaria de la
respiración y, por ende, de la voz, cf. Aristóteles, Investigación de los animales 535a29-30. Los
peces son áfonos porque carecen de laringe y de pulmones (Investigación de los animales 535b14-
15).
23
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básico) una especie de combinación de dos clases de “cosas” ontológicamente diferentes:


materia y forma.
Como indiqué al comienzo, se podrían dar numerosas razones para explicar la
ausencia de los filósofos antiguos en el debate contemporáneo sobre la mente; además de la
que ya he mencionado antes (las relacionadas con la fisiología deficiente y errónea), habría
que mencionar el hecho de que nosotros tenemos una concepción más “mecánica” de la
vida, por así decir, que la de Aristóteles (sus concepciones de materia y cuerpo son muy
diferentes de las que tenemos nosotros después de Newton). En suma, el proyecto
psicológico aristotélico ya no es creíble porque su física no es creíble43. Los enfoques de la
mente de los antiguos son errados porque lo que ellos sostienen no tiene nada que ver con
lo que la ciencia empírica contemporánea de la mente dice y, por tanto, debe ser desechado.
Sin embargo, dado que aún no tenemos un conocimiento claro y certero de qué es la
mente, algunas reflexiones de Aristóteles pueden resultar todavía atractivas para mostrar
distintos procedimientos exploratorios del alma/mente, así como las limitaciones que
cualquier “teoría reductiva” tiene44. Es cierto que el hilemorfismo es una doctrina que ha
sido desechada a partir del surgimiento de la ciencia física, cuya confianza más sólida se
encuentra anclada en la “causa eficiente” y rechaza las formas aristotélicas y la tesis de que
la materia tiene un carácter pasivo. Pero Aristóteles podría alegar que ésta no es una buena
razón para rechazar su modelo físico-metafísico, pues, como he mostrado arriba, una
entidad anímica (como la deliberación o la elección) y, por tanto, inmaterial (en el mapa
ontológico aristotélico) califican perfectamente como “causas eficientes”. En cualquier
caso, si lo que he tratado de mostrar es al menos razonable, parece que todavía hay razones
para leer la psicología aristotélica desde perspectiva filosófica vital, no de un modo
“arqueológico”.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

43
Burnyeat (1995, p. 19).
44
Parece que Aristóteles entrevió esto con claridad al proponer lo que antes he llamado su “teoría
psicológica del término medio” (para la cual me permito enviar a Boeri, 2018, p. 154-155; p. 161-
165).
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28
A CAPTAÇÃO DO OBJETO COGNITIVO PELA EPISTEMOLOGIA
DE ARISTÓTELES

José Trindade Santos


Universidade Federal do Ceará

RESUMO: O texto tenta construir um argumento sobre a captação de objetos cognitivos pela
alma, em Aristóteles. Da repetição de percepções indiferenciadas, a imaginação obtém imagens
que condensa numa única experiência, da qual forma o universal. Esse resultado só pode ser
atingido porque os dados colhidos das faculdades perceptivas são traduzidos pelos elementos
significativos da linguagem, permitindo a formulação de juízos verdadeiros e falsos, pelos quais
a realidade pode ser descrita.
PALAVRAS-CHAVE: Aristóteles. Percepção. Sensíveis. Imaginação. Experiência.
Universais.

ABSTRACT: This text tries to construe an argument on how the soul grasps cognitive objects
in Aristotle. From the repetition of undifferentiated sense perceptions, imagination gets images
condensed in a single experience from which the universal is formed. Such result can only be
achieved because the data collected from sense perception were captured by the significative
elements of discourse enabling the formulation of true and false judgements through which
reality may be described.

KEYWORDS: Aristotle. Perception. Sensibles. Imagination. Experience. Universals.


PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Quando se encontra na tradição filosófica grega uma formulação do problema


posto pela captação de um objeto1 do conhecimento, particularmente de um “sensível”?
Escusando-nos a buscar indícios em fragmentos dos pré-socráticos, quase sempre
antecipatórios, partiremos de algumas questões propostas por Platão para as quais
encontraremos respostas em Aristóteles.

Platão

O Mestre da Academia confronta-se com a questão em diversos diálogos,


embora sempre de diferentes perspectivas. No Fédon 73c ss., no contexto da
reminiscência, distingue a percepção de “algo” pelos sentidos da captação simultânea de
outro “algo”, que concebe e de que “tem outro saber” (SANTOS, 2016b).
Na República V 476a ad fin., apoia em Parménides (B2) uma teoria da cognição
que confronta as competências paralelas do “saber” e da “opinião”. Esboça aí uma
“epistemologia de dois mundos”2 (FINE, 1999, p. 215-216; SANTOS, 2009, p. 32-33,
n. 16), que superará adiante, na ‘Linha’ (VI 510d ad. fin.) e na ‘Caverna’ (VII 514a ss.),
ao conferir à alma a “reflexão” (“entendimento”: dianoia: 524d3, passim), que lhe
permitirá se elevar do “visível” ao “inteligível”. Em VII 523a-525a, elabora este ponto
de vista distinguindo a percepção de, por exemplo, um dedo, da de qualquer predicado a
ele atribuído (maior/menor, duro/mole etc.). Considera aí que, ao contrário do primeiro,
o segundo caso de percepção “eleva a mente à reflexão” (SANTOS, 2013, p. 134-135;
2012, p. 82-86).
No Teeteto, depois de ter postulado a infalibilidade do saber e da
sensopercepção (152c), prova a inviabilidade da identificação de uma com o outro,
distinguindo as sensopercepções do raciocínio sobre elas (186c). Justifica a
possibilidade do erro e da opinião falsa — relativamente ao que se ‘sabe’ e ao ‘que é’
—, pela combinação da “opinião” e do “pensamento” com a “percepção” e a “memória”

1
A ‘objeto’ não corresponde nenhum termo ou expressão definida em grego. O termo é ao
longo deste texto tomado em dois sentidos: 1. como o complemento da função de um órgão,
aquilo que ele capta: cor, som, cheiro, sabor, textura; 2. a “coisa” definida, o “isto” que o sujeito
percipiente percebe: um homem, uma mesa etc.
2
Apesar de não sustentar de forma explícita a estrita incomunicabilidade entre as duas
competências.

30
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(193b-194b). Mostra-se, no entanto, incapaz de explicar um erro do pensamento (por


exemplo, “5+7=11”: 195e ss.; SANTOS, 2013, p. 135-138; 2005, p. 118-140).
A resolução dos problemas do saber e do erro é conseguida no Sofista, pela
atribuição ao enunciado da capacidade de chegar à verdade e falsidade (SANTOS
2016a, p. 91; 2012, p. 112-116); em particular a esta última, quando imaginação
combina percepção e opinião (264a-b).
Todavia, em nenhuma das obras citadas Platão dá a entender que o processo pelo
qual um “objeto” é conhecido — seja relativamente ao modo como é captado, seja
como conteúdo cognitivo específico —, constitui um problema que precisa ser
resolvido; para mais, tendo em conta a exigência de infalibilidade do saber e da
percepção (SANTOS 2013; 2012, p. 111-126). Nem explica como pode um “sensível”
ser conhecido, visto, ao se mostrar deficiente, em comparação com o inteligível do qual
participa (Fédon 74d-e, 100c-e), não poder gozar do estatuto de “objeto cognitivo”,
conferido à Forma epônima.

Aristóteles

Nesta questão, o Estagirita toma a decisão oposta, ao eleger a sensopercepção


como forma de atingir o conhecimento dos princípios (Segundos analíticos: Apo II19,
99b27 ss.). Porém, como o seu mestre na Academia (SANTOS, 2012, p. 111-116),
confronta-se com o dilema posto pelo postulado da infalibilidade das faculdades
cognitivas: se o aceita, nega a possibilidade do erro; se o nega, retira à cognição a
capacidade de atingir a verdade.
Acaba por encontrar a solução para o problema. Mas deixa-a disseminada por
diversos tratados, pelo fato de agregar informações relativas a diferentes disciplinas:
Psicologia, Lógica, Epistemologia e até Ética. Teremos, pois, de a buscar a partir da
exploração de obras distintas, montando um percurso não apontado pelo filósofo.

Da alma (DA II)

É no Livro II do DA (5-12) que é abordado o estudo da faculdade


sensoperceptiva. Em II5, superando a tese de que a percepção é do “semelhante pelo

31
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semelhante”3, conclui que é do dessemelhante, mas que o órgão percipiente acaba por se
tornar semelhante ao [objeto] percebido 4 (417a18-20, 418a3-6; III2, 425b22-23).
Resolvida esta dificuldade preliminar, pode então avançar para a análise da faculdade
perceptiva.

Sensíveis: próprios, comuns e por acidente

A solução permite que à sensopercepção seja conferida a infalibilidade, embora


acarrete o custo acima apontado de inviabilizar a possibilidade do erro. Para evitar esse
inconveniente Aristóteles adota o expediente de distinguir três espécies de sensíveis:
próprios, comuns e por acidente, atribuindo infalibilidade exclusivamente aos
primeiros5.
Estes sensíveis per se são captados por cada um dos sentidos para os quais os
animais dispõem de órgãos próprios: vista, ouvido, olfato, gosto e tato. São percebidos
em virtude de si mesmos, como “causas da percepção” (POLANSKY, 2007, p. 252),
por serem específicos a cada um dos sentidos, de acordo com o esquema abaixo:

PERCEPÇÃO DOS SENSÍVEIS PRÓPRIOS

Sentido Função Órgão Intermediário Objeto Contrários

Vista Ver Olhos Ar/Água Cor Luz/Treva

Ouvido Ouvir Ouvidos Ar/Água Som Agudo/Grave

Olfato Cheirar s/ nome Ar/Água Odor Fedor/Aroma

3
Bom exemplo será: Empédocles DK31B109 (31A86). Note-se que, apesar da sua relação com
o tópico, este fragmento do Agrigentino não é citado neste passo (já fora em I2,402b, 12-14,
noutro contexto). O fragmento que formalmente defende essa tese é de Demócrito (Sexto Adv.
math. VII 116-118), mas pode se tratar de uma concepção espalhada, veja-se DA III3, 427a22-
23; 427b2-5, comentado adiante.
4
“O [órgão] percipiente é em potência aquilo que o percebido já é em ato. Não é, portanto,
afetado por ser semelhante ao percebido, porém, uma vez afetado, se assemelha e é tal como
ele” (418a3-6). Significa isto que — ao receber a forma sem a matéria [do percebido] (II12,
424a19-20) —, o órgão é afetado, se tornando receptivo da forma sensível (424a24-28). Sobre o
problema posto pelo tipo de ‘alteração’ envolvido na percepção do dessemelhante, ver II5, e M.
Burnyeat (2002).
5
Embora atribua a infalibilidade à percepção dos sensíveis próprios, Aristóteles adverte ser
possível o erro pela relacionação desses sensíveis, por exemplo, com os corpos físicos que os
suportam (418a16-17).

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Gosto Degustar Língua s/nome Palatável, Sabor Doce, Amargo


etc.
Tato Tocar s/ nome Corpo, Carne Tangível Duro/Mole,
Quente/Frio etc.

Cada faculdade, enquanto potência, realiza a sua função captando, em ato, pela
atividade do órgão próprio, o objeto específico deste6, sendo cada sentido constituído
como uma proporção (logos), definida a partir do par de contrários que é capaz de
captar7. O intermediário medeia a interação do órgão com o seu objeto, visto Aristóteles
defender que o sensível não atua diretamente sobre o órgão (419a13-35).
A captação dos sensíveis próprios é infalível. No entanto, como é raro que um
destes sensíveis seja percebido isoladamente (por exemplo, uma cor sem extensão, um
som alheio ao choque que o produz, um gosto sem o cheiro ou textura a eles associado:
418a16), no momento em que a sua captação é concomitante com a atividade de outros
sentidos, deixa de ser infalível.
Nestes casos, o filósofo pensa que intervém na percepção um outro tipo de
sensíveis, a que chama comuns, por serem ao mesmo tempo captáveis por diversos
sentidos (418a18-20 8 ). Por exemplo, o granulado branco, percebido pelo tato e pela
vista sobre a mesa, é identificado pelo gosto como ‘açúcar’, se adoça, ou como ‘sal’, se
em vez disso salga.
Dado a gama dos sensíveis comuns abarcar “movimento, repouso, figura,
grandeza, número” (DA II6, 418a17-18, ou “unidade”: III1, 425a15-16) 9 , é fácil
perceber que nenhum objeto corpóreo pode ser percebido, se não for mediante o

6
“A percepção é, em potência, aquilo que o sentido é em ato” (DA II5, 418a3-4). Todavia, a
verdade da percepção reside no percebido (som, cor, cheiro etc.) e não no “estado mental” que
“internamente” o capta (EVERSON, 1995, p. 268), apesar de “órgão e potencialidade serem o
mesmo”, mas “não o [seu] ser” (424a25).
7
Aristóteles sustenta que todas as cores percebidas se situam entre a luz e a treva, como todos
os sons entre o agudo e o grave. Quando a experiência perceptiva não permite a manifestação de
contrários, ocorrem diferentes percepções, como aquelas que o quadro acima exemplifica, em
relação ao olfato, gosto e ao tato.
8
“São comuns a todos, pois constituem certo tipo de movimento, sensível pelo tato e pela vista”
(418a19-20).
9
Outros “comuns” são apontados noutras fontes (SHIELDS, 2016, p. 226, indica várias;
POLANSKY, 2007, p. 256; ver ainda a crítica à caracterização dos diversos “comuns”: p. 256-
259).

33
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concurso de um ou mais de um daqueles10, definindo “o sentido” (enquanto “potência”,


não “órgão”) como “receptivo das formas sensíveis, sem a matéria” (424a17-18; ver
abaixo, n. 10; POLANSKY 2007, p. 380-402). Torna-se capital entender como os
sensíveis próprios cooperam entre si para que os “comuns” e os “por acidente”11 sejam
percebidos, de modo a que a síntese informativa seja colhida instantaneamente pelos
percipientes.
Havendo apenas os cinco sentidos mencionados, não há motivo para supor que
há um sentido especial, dedicado à percepção dos sensíveis comuns e por acidente
(425a13-16). Como cada um funciona como “ subfaculdade da faculdade central”
(POLANSKY, 2007, p. 380-402), todos eles são percebidos por alguma espécie de
movimento, ou ausência deste, no sensível (425a17-24).
Outra prova de que não é necessário postular um outro sentido reside no fato de,
sempre que há percepção de um sensível, ocorrer também uma “percepção da percepção
por ela própria” (autê hautês: 425b15-16):

Dado que percebemos que vemos e ouvimos, é forçoso ou que


percebamos que vemos, com a vista ou com qualquer outro [sentido].
Mas então, o mesmo [sentido] perceberá a vista e a cor subjacente; de
modo que haverá dois [sentidos] que perceberão o mesmo ou o
mesmo se perceberá a si mesmo 12 (DA III2, 425b12-16; EN IX9,
1170a29-b1; De somno 2, 455a15).

Consciência

É possível ver nos passos referidos — particularmente no da Ética — a


manifestação do estado psíquico que virá a ser designado como ‘consciência’. V. Caston

10
Tendo Aristóteles esclarecido que tanto os sensíveis per se como os comuns são percebidos
como próprios (II6, 418a19-20) e que não há um órgão próprio dos sensíveis comuns (III1,
424b23-24, 425a13-b11), estes só podem ser percebidos porque cada sentido funciona como
próprio e como comum. Quando vemos uma cor, vemos também o seu limite definido por
outras, e o repouso ou movimento etc., que seriam difíceis de perceber se a vista fosse o único
sentido e o “branco” o seu objeto (DA III1, 425b6-11; EVERSON, 1995, p. 282-290).
11
Os ‘sensíveis por acidente’ “envolvem a identificação de objetos coincidentes com objetos
especiais ou comuns” (SHIELDS, 2016, p. 224, p. 227).
12
A partir da tradução de V. Caston (2002). Notar as mudanças de foco nos passos que referem
a receptividade das formas sem a matéria: onde era mencionado “o sentido” (aisthêsis: II12,
424a17), aparecerá adiante “o órgão” (aisthêtêrion: III2, 425b23); onde antes eram apontadas
“as formas sensíveis”, depois se lê “o sensível”, no singular (tou aisthêtou); ver o comentário de
Polansky (2007, p. 383, p. 401) ao passo citado, e também o de C. Shields (2016, p. 263-267).

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(2002, 2004) interpreta esta “consciência” como intrínseca — agindo reflexivamente


sobre si própria —, e ao mesmo tempo relacional: atuando sobre “um objeto externo”.
Quer dizer, “as nossas percepções têm um caráter fenomênico, que tem que ver com as
qualidades que representam, mas que não é exaurido pelo conteúdo representativo”
(CASTON, 2002, p. 799).
Significa isto que a percepção se não limita ao conteúdo efetivamente percebido,
mas que inclui algo mais. Para evidenciar esse “algo mais”, noutro texto, publicado
mais tarde, o A. acrescenta:

[Aristóteles] nega que isso [perceber que vemos ou ouvimos] se deva


ao fato de um espécime (token) de um segundo estado mental ser
dirigido ao primeiro. Em vez disso, a percepção é dirigida tanto a ela
própria, como a uma qualidade perceptiva no mundo: possui um
conteúdo de ordem superior além do seu conteúdo original, de
primeira ordem (CASTON, 2004, p. 523).

Esta percepção em que “o sentido se percebe a si mesmo” não é marginal, pois é


necessária a todos os animais, na sua constante interação com o ambiente13. Embora o
texto do DA não tome posição sobre a questão, é na consciência que o objeto cognitivo
se manifesta claramente. Será, porém, necessário prestar atenção ao processo mediante
o qual os dados perceptivos se deixam estruturar pela linguagem e pelo pensamento.

Síntese

O percurso realizado pelo filósofo nos sete últimos capítulos de DA II, aos quais
se acrescentam os três primeiros de DA III, atesta a múltipla funcionalidade do
tratamento conferido às faculdades sensoperceptivas. Incorporando diversos tipos de
sensível num processo que inicia a recepção de dados perceptivos, a Psicologia de
Aristóteles atinge um grau de sofisticação inédito, revelando o seu poder no modo como
a sensopercepção vai interagir com outras faculdades e subsistemas cognitivos.

Da interpretação (DI) e Categorias (Cat.)

13
Caston usa contra Sisko (2004) o flagrante exemplo de alguém que, além de perceber que há
“um ônibus avançando velozmente”, percebe também que é “contra ele” que, com perigo,
avança, para mostrar isso mesmo (2004, p. 532).

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A breve análise acima revelou a importância da participação da linguagem na


síntese operada pelos sensíveis comuns e por acidente. Sem ela não é possível discernir
a cooperação dos diversos sentidos, necessária para a fixação da identidade e ulterior
definição dos objetos que povoam o “mundo sensível”.
A questão de como a linguagem concorre para a efetivação da tarefa da
percepção é apresentada pelo filósofo na tríplice analogia com que inicia o DI:

Os sons emitidos pela voz são símbolos das afecções de alma, e as


marcas14 escritas são símbolos dos sons emitidos pela voz. E, tal como
as marcas escritas não são as mesmas para todos, também os sons
vocais não são os mesmos. Mas aquilo de que em primeiro lugar estes
são sinais, a saber, as afecções da alma, são as mesmas para todos; e
aquilo de que estas são semelhanças, a saber, as próprias coisas, são
também as mesmas”15.

Lançando as bases de uma teoria da significação, pela combinação do uso das


faculdades cognitivas com a linguagem, o passo encadeia três casos de “representação”:
dos “sons emitidos pela voz” pelas “marcas escritas”, das “afecções da alma” pelos
“sons”, das “próprias coisas” pelas “afecções da alma”. Tal como os escritos
representam “as coisas ditas”, estas representam “afecções da alma”, que Aristóteles
sustenta representarem “próprias coisas” (pragmata)16 (DI I, 16a1-8).
O passo suscita uma imensidade de perguntas, das quais destacamos duas: que
serão estas “coisas” — “escritas”, “ditas” e “na alma” —, que se referem às “próprias
coisas”? Como podem uns representar e ser representados pelos outros? Para lhes
responder teremos de relacionar passos de dois tratados do Organon.
No DI, a proposta inicial de Aristóteles começa a ser esclarecida nos quatro
primeiros capítulos. Os elementos da linguagem17 não têm todos a mesma capacidade
significativa. Existem nela termos e expressões, ditos e eventualmente escritos, que
condensam o seu poder significativo: ou seja, a sua capacidade para se referirem a
coisas no mundo exterior. Além disso, nem todos eles significam do mesmo modo (DI

14
Note-se a falta, no grego clássico, de um termo que signifique inequivocamente ‘palavra’. O
termo traduz a expressão ta graphomena, “as coisas escritas”.
15
Tradução de Ricardo Santos, 2016; ver as notas à tradução.
16
A referência ao DA no final do passo citado atesta a relação íntima dos dois tratados, no que
diz respeito à questão discutida.
17
Ao contrário de Platão, que estrutura a realidade a partir do modo como pode ser captada
pelas competências cognitivas, Aristóteles parte da sua análise da linguagem para relacionar
Epistemologia e Ontologia.

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1-3, 16a19-17a22), pois, esses “sons” vocais são de três tipos: ‘nomes’ e ‘verbos’, além
do ‘enunciado’ (logos) por eles formado.
De que é o nome ‘nome’? Nas Categorias, o Estagirita analisa os diferentes
tipos de expressões combinadas por enunciados. São elas as “substâncias” —
“primeira” e “segunda” — e os dois ‘acidentes’: simples e “substancial” (Cat. 2a20-b9).
Podemos considerar que estes quatro tipos de entes exemplificam “coisas” que,
percebidas “na alma”, podem ser ditos pelo discurso.
Por exemplo, no enunciado — “Sócrates é homem” —, ‘Sócrates’ é o nome
próprio que identifica o sujeito — uma “substância primeira” —, enquanto ‘homem’
nomeia a “substância segunda” — o gênero, o universal —, à qual Sócrates pertence. Os
universais são aqui vistos como classes, das quais os particulares, reunidos sob a mesma
definição, são membros.
Mas o que é uma ‘definição’? Por exemplo, o enunciado — “O homem é um
animal racional” — constitui a definição do gênero ‘homem’, e aponta “animal
racional” como o “acidente substancial”, aquilo que “existe” em todos os (sujeitos)
particulares incluídos no gênero e “é dito” deles. Falta ainda referir os acidentes que
“existem num sujeito”, mas não são ditos dele, porque não o definem (por exemplo,
“alto/baixo”, “gordo/magro” etc).
Estes quatro tipos de nomes são algumas das “coisas ditas”, sem as quais não
seria possível referir quaisquer entes, nem reconhecer as diferenças que os distinguem e
permitem o seu conhecimento. Mas isso só pode acontecer porque o poder significativo
de cada um se manifesta de modo diferente. Os nomes são sons vocais significativos por
convenção, que se não referem ao tempo (DI 2, 16a19-21); enquanto os verbos
acrescentam o tempo (passado, presente, futuro) à significação daqueles (3, 16b6-7).
Essa diferença permite que, combinados com eles, possam ser usados para afirmar ou
negar uma coisa de outra: seja um universal, um acidente, ou um predicado, como os
elencados nas Categorias.
Ao instrumento linguístico que permite afirmar e negar chama-se ‘enunciado’.
Este é um conjunto de sons vocais, dos quais cada um dos elementos que combina —
nome e verbo — é significativa, por enunciar algo, sem afirmar ou negar (4, 16b26-28).
Afirmando e negando, o enunciado torna-se “verdadeiro” ou “falso” (4, 17a3-4),
manifestando a aptidão da linguagem para representar a realidade exterior, tal como os
sentidos a proporcionam às faculdades cognitivas.

37
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No cerne da teoria, acha-se a substância primeira, da qual tudo é dito pela


predicação (Cat. 5, 2a11-4b18). Enquanto a substância segunda “diz” a primeira,
inserindo o particular no gênero a que pertence, os dois tipos de ‘acidente’ referem-se
ao “que existe” na substância primeira.

O problema do universal

Tanto a substância primeira como os acidentes existem: estes “no sujeito”,


aquela como “sujeito”, sendo captados pelas faculdades cognitivas. Parece não ser esse,
porém, o caso da substância segunda, a qual, embora seja dita da substância primeira,
não existe nela, nem em qualquer outro lugar na natureza. Levanta-se então a pergunta
acerca de como pode ela vir a ser percebida pelos sentidos.
Partamos de um exemplo. Muitas vezes sucede que, quando esperamos alguém,
confundamos essa pessoa com outra, que de longe achamos a ela se assemelhar. Se
perguntarmos como foi possível a confusão, encontramos resposta na semelhança dos
vultos dos seres humanos. Pois, havendo entre eles semelhança, essa aparência não
poderá ser estranha à captação da “forma” (logon; WEDIN, 1988, p. 43: Apo II,19,
100a2) do universal percebido.
Como observa Aristóteles, nos Segundos analíticos (Apo II19, 100a15-b1):

Na medida em que algo indiferenciado se estabiliza,


primeiramente surge na alma um universal (pois, se percebe
(aisthanetai) o particular, mas a percepção (aisthêsis) é do
universal; por exemplo, de homem18, mas não de Cálias homem.

A formação do universal

Neste passo, a diferença entre “percebido” e “percepção” é difícil de captar, bem


como a interdição da percepção de “Cálias homem”. Em Apo II19, Aristóteles,
parecendo argumentar contra a reminiscência platônica, sustenta que a partir da
sensopercepção se pode chegar ao conhecimento dos princípios. Para exemplificar o
processo de formação do universal, recorre ao exemplo de um exército em debandada.

18
Caracterizado como “um animal de tal e tal tipo” (100b2-3), “o universal significa uma
essência real” (IRWIN, 1982, p. 255-266), cuja forma inteligível é captada pelo pensamento
(DA III, 4, 429a27-28; tradução de L. Angioni, 2004).

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Quando um soldado se imobiliza no terreno e é seguido de outro, outro e muitos, acaba


por ser o próprio exército que reassume a ordem de batalha (100a11-13).
É algo como isso o que ocorre com a geração do universal “em repouso na
alma”. Resultando de percepções repetidas da mesma coisa, a sua persistência na
memória permite que sejam condensadas numa ‘experiência’. Tal como a percepção é
conservada, da sua ativação por novas percepções indiferenciadas vem a experiência,
pois “recordações numericamente múltiplas são de uma única experiência” (Apo. II19,
100a5-6; Met. I1, 980b30-981a2; DA III, 11 434a9-10).
É assim que uma criança é capaz de, a partir das, muitas vezes repetidas,
percepções dos seus progenitores, gradualmente formar os universais ‘pai’ e ‘mãe’,
cujos “nomes relativamente ao enunciado” 19 fixará, só com o tempo aprendendo a
distinguir deles outros pais e mães. O exemplo acima mostra como, conjugando
elementos perceptivos e discursivos, o processo de formação e fixação dos universais
permite a passagem gradual do que é “mais cognoscível para nós” ao “que é mais
cognoscível por natureza” (Física I1, 184a16-25).
A explicação avançada contribui para esclarecer onde o filósofo quer chegar
com a distinção entre “percebido” e “percepção” e a proibição da captação de “Cálias
homem”. O que é percebido é sempre o particular. Mas o conhecimento é do universal
(DA II5, 417b22-24, Physica I1, 184a24-25), que já se encontrava na alma, fruto de um
número indefinido de percepções anteriores que a experiência condensa num único
nome.
Portanto, dizer que o percebido é o “Cálias homem” é errado porque particular e
universal são captados de modo diferente. Enquanto aquele é percebido em ato, este é
construído a partir da acumulação de percepções na memória, condensando a diferença
que constitui a experiência de uma multiplicidade de percepções do mesmo. O passo
mostra como a atribuição de nomes aos universais condensa na memória a tarefa
realizada pela faculdade perceptiva, habilitando a experiência à emissão do juízo
(Physica I1, 184a10).
Portanto, a explicação de como os universais são captados pela sensopercepção,
agregada aos três tipos de expressões significativas — nome, verbo e enunciado —,
capacita o discurso à descrição da realidade exterior. Todavia, faltará ainda mostrar
como a informação colhida pela percepção é obtida e conservada na memória.

19
Tradução de H. Carteron, 1996.

39
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Afirmamos atrás que Aristóteles recebe de Platão o problema da


compatibilização da necessária infalibilidade de algumas competências cognitivas com
a possibilidade do erro (427a21-29). O envolvimento dos sensíveis próprios pelos
comuns e por acidente resolve a dificuldade no âmbito da sensopercepção, mas mostra-
se incapaz de a superar quando é contemplado o pensamento.

DA III,3

Em DA III3, 427a17-b14, para aceder às instâncias mais complexas do processo


cognitivo (Caston 1996, 20-40), Aristóteles recorre à possibilidade do erro para rejeitar
a identificação, atribuída aos antigos, da percepção com o pensamento. Caracterizando a
percepção dos próprios — “sempre verídica para todos os animais” (427b11-13) —,
compara-a com o “pensamento” (noein, phronein), que, nos dotados de razão, lhes
permite “pensar discursivamente” (dianoeisthai) o falso (7-14).

A imaginação

Invoca então a “imaginação” (phantasia), cuja análise o ocupará no resto de


III,3. Distingue-a da aisthêsis, por não ser possível sem esta, e da dianoia, por sem ela
não haver “suposição” (hypolêpsis: 427b14-16). Separando-a desta última (b14-26), vai
depois distingui-la sucessivamente: do “pensamento” (428a16-18), da “opinião” (doxa;
a18-24) e da combinação desta com a percepção (a24-b9), até chegar à sua definição
(428b30-429a-2).
Refaçamos este percurso. A imaginação não é suposição porque recorremos a
ela quando queremos, como se contemplássemos um quadro. Ao contrário, por ser
verdadeira ou falsa, a opinião não depende de nós20. Como poderão se relacionar uma
com a outra?
A imaginação não é sensopercepção, porque ocorre quando esta não está
presente, como nos sonhos, sendo, ao invés dela, as mais das vezes, falsa. Logo, não é
também ‘saber’ (epistêmê), nem pensamento. Poderia ser opinião — também verdadeira

20
A transição da suposição à opinião implica que aquela seja proposicional. A afinidade da
suposição com “saber, opinião, sabedoria prática e seus contrários” (427b26-28; 428a, 22-24),
confirma esta leitura (WEDIN, 1988, p. 145-146).

40
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ou falsa —, mas a opinião segue a “crença” (pistis), e esta, a razão discursiva, que
nenhum outro animal possui, embora muitos tenham imaginação.
Portanto, como a opinião não acompanha a percepção, não é [adquirida] através
dela, nem se mistura com ela — ou seria objeto dela —, é claro que não será a
combinação das duas (428a24-27). Resta-lhe ser a combinação da opinião “com aquilo
de que também há a percepção” (28-29), se concluindo que: “imaginar é opinar sobre
aquilo que se percebe, não por concomitância” (428b1-2).
Então, a “imaginação será uma espécie de movimento que não ocorre sem a
percepção”. Em percipientes de algo, resulta da percepção em ato desse algo a que
necessariamente se assemelha. Como, porém, “o percipiente pode agir e ser afectado
por muitas coisas, [a imaginação] pode ser verdadeira ou falsa” (428b11-16).
Pois, sendo apenas a percepção dos próprios verdadeira — ao contrário da dos
comuns e dos concomitantes —, o movimento por elas produzido será diferente da
sensopercepção atual, quando esta não está presente ou quando é distante (428b25-30).

Da percepção ao pensamento

O intrincado percurso do argumento ao longo de III,3 justifica-se pela natureza


híbrida da imaginação. Afim ao pensamento e à suposição, entre as faculdades
(WATSON, 1982, p. 109) da sensopercepção e do pensamento, a imaginação — “pela
qual uma imagem ocorre em nós” (428a1-2) — não é faculdade, por lhe faltarem tanto
um órgão como um objeto (WEDIN, 1988, p. 57-63). Desempenha o seu papel ao
assegurar a comunicação entre as faculdades.
Usando a sensopercepção, funciona como sistema articulado de operações
cognitivas distintas, com conteúdos diferentes (428b19-29; CASTON, 1996, p. 43;
WEDIN, 1988, p. 77 ss., 101), que habilitam pensamento e desejo a captarem os seus
objetos próprios (III, 7, 431a15-17).
É sobretudo nela que — explorando a emblemática fragilidade das imagens
recebidas nos sonhos (CASTON, 1996, p. 49, p. 51-52; SCHOFIELD, 1978, p. 10121;
1992, p. 252, p. 255, n. 20) — assenta a resolução do problema posto pela necessidade

21
Para quem a imaginação é entendida como “uma experiência sensorial não-paradigmática”.
Contra, M. Wedin, que defende a imaginação como uma “teoria canônica consistente” (1988, p.
64-90).

41
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de permitir o erro no juízo. Salvaguardando a verdade ou falsidade dos diversos tipos de


suposição (acima, n. 20), com os quais não se confunde, mostra não ser um “poder
discriminatório (428a3-4), mas representativo” (POLANSKY, 2007, p. 415-416;
WEDIN, 1988, p. 74).
Apoiada na persistência das imagens geradas por percepções anteriores,
presentes no aisthêtêrion (III2, 425b23-25), ao contrário da sensopercepção — sempre
presente e verdadeira —, a imaginação não é uma, nem outra. Mas é ela que habilita a
opinião, logo, o pensamento, a afirmar ou negar, atingindo a verdade ou a falsidade
(428a3-5, III,4).
Condensando a percepção verídica dos sensíveis próprios (19-20), a dos
“concomitantes”, que pode ser falsa, e a dos “comuns”, sobre os quais a percepção pode
se enganar (22-23), a imaginação é definida como “um certo movimento, gerado pela
sensopercepção em ato” (429a1-2), sem a qual não ocorre (428b11-12). A sua função no
processo cognitivo é gerar o movimento, verdadeiro ou falso, que a atividade da
sensopercepção provoca (428b18-19).

Crítica a Platão

A manobra supera as dificuldades que Platão enfrentou no Teeteto (188a-200c).


O êxito de Aristóteles é devido à teoria pela qual a imaginação condensa as percepções
em ‘imagens’. A despeito da diversidade dos elementos que congrega, a preservação da
imagem na memória permite a prolongada combinação das percepções com a
diversidade de dados colhidos pelo pensamento discursivo (De memoria 450a12-14; DA
III, 7 431a14-17, b2).
Implicitamente o Estagirita endereça a Platão (Soph. 264a; Ti. 52a) críticas ao
que toma como definição de imaginação (embora talvez o desacordo não seja tão
profundo: WATSON, 1982, p. 112-113). Mas a referência não será casual, pois,
Aristóteles usará a imaginação para promover o acesso da sensopercepção à forma
inteligível, inserindo a imagem num sistema de operações cognitivas22 (III, 8 432a3-10;
WEDIN, 1988, p. 114-117).

22
O exemplo da imagem do Sol, na qual o tamanho do astro é comparado com o de um pé
(428b3-4) não sortiria efeito se o percipiente não estivesse consciente da natureza ilusória dessa
aparência (POLANSKY, 2007, p. 422-423).

42
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Abarcando os diversos níveis de percepção, a experiência extrai das imagens


fixadas na memória universais, captados pelo pensamento (III4,429b6-10). Por isso, o
filósofo deixa claro que “o pensamento não se dá sem imagens” (DA III8, 432a7-14),
insistindo, no De memoria, “não haver pensamento sem imagem” (I,449b34-450a1).

Conclusão

No DA III3, Aristóteles recorre às imagens para mostrar como, a partir da


diversidade das sensopercepções, os animais podem ser levados a agir de acordo com
elas (429a5-6). Todavia, o relato dos Segundos Analíticos II19 ilustra a função das
imagens na cognição.
Quando um objeto particular é fixado numa imagem e esta identificada por um
nome, é fixado “na alma” um universal, que pode vir a ser usado num juízo. Da
descrição do objeto percebido, com verdade ou falsidade, decorrerá então a
possibilidade de ele vir a ser conhecido.
Rejeitando outras possibilidades, Aristóteles mostra como, a partir da
sensopercepção, a captação dos universais torna possível “por indução, a aquisição do
conhecimento dos primeiros princípios” (Apo II, 19, 100b3-4). Mais não poderá se
acrescentar em abono da primeira teoria que torna acessível aos homens a transição da
experiência sensível para o inteligível.

REFERÊNCIAS

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45
AS CONSEQUÊNCIAS DE ESQUECER AUSTIN
(CONCEPÇÕES DE CONTEXTO E VARIEDADES DE
CONTEXTUALISMO)1
Sofia Miguens
Universidade do Porto (Portugal)

RESUMO: J.L. Austin afirmou: “Quando examinamos o que devemos dizer quando, que
palavras devemos usar em que situações, estamos a olhar não meramente para as palavras (ou
“significados”, o que quer que estes sejam) mas também para as realidades de que falamos com
essas palavras que usamos”. Neste artigo analiso a forma como Michael Williams (Williams,
2018, 2019) segue a sugestão de Austin em discussões recentes com outro epistemólogo,
Duncan Pritchard (Pritchard, 2016). O resultado é a explicitação de algumas (más)
consequências de nos esquecermos de Austin quando professamos ser ‘contextualistas’. Um
objectivo central do artigo é identificar diferentes concepções de contexto pressupostas por
diferentes variantes de contextualismo epistemológico.

PALAVRAS-CHAVE: Contextualismo. Hinge epistemology. Pritchard. Williams.

ABSTRACT: J.L. Austin claimed: “When we examine what we should say when, what words
we should use in what situations, we are looking again not merely at words (or “meanings”,
whatever they may be) but also at the realities we use words to talk about”. In this article I will
examine the way Michael Williams (Williams, 2018, 2019) follows Austin’s lead in recent
exchanges with another epistemologist, Duncan Pritchard (Pritchard, 2016), in order to spell out
some (bad) consequences of forgetting Austin when one is a contextualist. One main goal of the
article is to identify different conceptions of context underlying varieties of epistemic
contextualism.

KEYWORDS: Contextualism. Hinge epistemology. Pritchard. Williams.

1
O trabalho aqui apresentado foi desenvolvido no âmbito do Projecto The epistemology of religious
belief: Wittgenstein, grammar and the contemporary world (PTDC/FER-FIL/32203/2017), financiado
pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia – Portugal). As traduções dos originais citados no
corpo do texto são minhas. Os originais aparecem em nota de pé de página.
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

1. Contextualismo em epistemologia

Quando se pensa em contextualismo em epistemologia pensa-se normalmente


em autores como Keith De Rose, Stuart Cohen ou David Lewis (RYSIEW, 2016). Neste
artigo, no entanto, terei como referência um clássico da história da filosofia analítica
que não é normalmente evocado nas discussões mais recentes: J. L. Austin 2 . Vou
argumentar que esquecer Austin tem consequências perniciosas para a forma como
concebemos hoje o contextualismo. A relevância deste ponto estende-se para além da
filosofia da linguagem, a área com a qual Austin é mais imediatamente associado:
nomeadamente, estende-se à epistemologia. Na verdade, o meu pretexto próximo para
este artigo é precisamente o trabalho recente de dois epistemólogos, Duncan Pritchard
(PRITCHARD, 2016) e Michael Williams (WILLIAMS, 2004, 2018, 2019). Podemos
chamar-lhes contextualistas (pelo menos Michael Williams é hoje considerado um dos
nomes cimeiros do contextualismo epistemológico). No entanto, talvez, seja mais
apropriado pensar em ambos no contexto da chamada hinge epistemology
(epistemologia das proposições-dobradiça). A hinge epistemology é assim chamada em
referência a formulações usadas por Ludwig Wittgenstein em Da Certeza
(WITTGENSTEIN, 1972); Wittgenstein usa aí os termos hinges, framework e riverbed
(i.e. dobradiças, enquadramento, leito do rio) para nomear aspectos particularmente
fixos e não explicitados, aspectos não sujeitos a dúvida da nossa vida mental e que
permanecem ‘imóveis’ e intocados durante o processo normal de ajuste e revisão de
crenças que caracteriza o inquérito racional. Um exemplo seria a convicção de que o
mundo não começou a existir há cinco minutos atrás3.

2. Uma controvérsia reconstituída

Aquilo que me interessa aqui é um ponto particular do diferendo entre os dois


epistemólogos, Duncan Pritchard e Michael Williams, um ponto que pode até parecer

2
Para uma introdução ao pensamento de J.L. Austin publicada no Brasil, cf. Miguens (2016). Ver
também Miguens (2019).
3
Duncan Pritchard e Michael Williams têm sido importantes para nós no projecto Epistemology of
Religious Belief para compreender o reflexo na epistemologia das crenças religiosas das diferentes formas
de o contextualista enfrentar o céptico. O tópico é trabalhado no projecto quer por pessoas que têm
convicções religiosas pessoais quer por pessoas que não as têm. Esta é no entanto uma questão que aqui
deixarei totalmente de parte.

48
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

relativamente menor. Interessa-me a forma como o apelo que Michael Williams


(WILLIAMS, 2018, 2019) faz à dependência da circunstâncias austiniana (Austinian
circumstance-dependence) funciona não apenas na sua oposição ao contextualismo do
atribuidor (o attributor contextualism de Stuart Cohen ou Keith DeRose), mas também
à particular versão da hinge epistemology defendida por Duncan Pritchard em Epistemic
Angst (PRITCHARD, 2016). Sublinho que o próprio Williams prefere neste momento
utilizar a expressão Austinian circumstance-dependence em vez de contextualismo para
nomear a sua própria posição (COUTO & CORTI, no prelo). A razão é que o termo
‘contextualismo’ se ligou, na maioria das discussões em curso, precisamente às posições
que Williams critica.
Seguindo Williams, vou procurar pôr em relevo duas consequências de esquecer
Austin; isso envolverá alguma história da filosofia analítica4. A primeira consequência
tem a ver com a própria noção de contexto: em causa está o facto de se conceber, ou
não, o ‘contexto’ como sendo basicamente conversacional ou dialéctico. A segunda
consequência tem a ver com a forma como se concebe as fronteiras entre a
epistemologia e a filosofia da linguagem.

3. Austin: a dependência das circunstâncias da verdade e das provas (evidence)

Na passagem que cito em seguida (retirada das conferências sobre percepção


dadas por Austin em Oxford5 e noutros lugares) e que foram publicadas sob o título
Sense and Sensibila6, Austin articula duas teses sobre dependência das circunstâncias.
Estas são teses austinianas que Williams subscreve totalmente. Diz Austin:

A questão da verdade e da falsidade não está dependente apenas


daquilo que uma frase é, ou daquilo que ela significa, mas falando
muito latamente, das circunstâncias nas quais ela é enunciada. Frases
como tais não são verdadeiras ou falsas7 (AUSTIN, 1962, p. 111).

E continua:

4
Para este contexto de história da filosofia contemporânea, ver Miguens (2019).
5
E noutros lugares, nomeadamente nos Estados Unidos.
6
Austin (1962). Na edição brasileira foi escolhido o título Sentido e Percepção (São Paulo, Martins
Fontes, 2004).
7
« (…) the question of truth or falsity does not turn only on what a sentence is, nor yet on what it means,
but on, speaking very broadly, the circumstances in which it is uttered. Sentences are not as such either
true or false».

49
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Mas é igualmente claro, quando pensamos nisso, que, pelas mesmas


razões, não pode haver questão de separarmos, no nosso monte de
frases, aquelas que constituem prova para outras frases, aquelas que
são ‘testáveis’ ou aquelas que são ‘incorrigíveis’. Que tipo de frase é
pronunciada como oferecendo provas depende, de novo, das
particulares circunstâncias de particulares casos; não há um tipo único
de frase que como tal forneça evidência ou prova, assim como não há
um tipo único de frase que seja surpreendente, ou duvidosa, ou certa,
ou incorrigível, ou verdadeira8 (AUSTIN, 1962, p. 111).

Do ponto de vista da história da filosofia (especificamente da história da


filosofia analítica) é importante sublinhar o seguinte. Esta passagem de Sense and
Sensibilia é escrita em oposição à teoria do estatuto epistémico do conteúdo, atribuída a
A. J. Ayer, o conhecido positivista lógico britânico (a expressão content theory of
epistemic status, que estou a traduzir por teoria do estatuto epistémico do conteúdo, é do
próprio Williams). Noutras palavras, Austin formula a sua posição contra o estatuto
especial que teriam as frases que exprimem um conteúdo específico (concretamente
sense data), de acordo com o positivista lógico. A ideia do positivista lógico seria que
as únicas frases que podem oferecer provas (evidence providing sentences) são
precisamente frases de sense data; elas seriam, por assim dizer, em si e por si
fornecedoras de prova e só elas poderiam sê-lo.
Note-se que, na passagem citada, uma observação semântica acerca de verdade
(diz-se que as frases como tais não são verdadeiras ou falsas: apenas enunciações
particulares em circunstâncias particulares poderão ser verdadeiras ou falsas) é seguida
por uma observação epistemológica sobre conhecimento e provas (afirma-se que
nenhum tipo de frase é como tal, por si só, fornecedor de provas). Da mesma forma que
não poderíamos, diz Austin,

(…) pegar num feixe de frases (ou proposições como Ayer prefere
dizer) impecavelmente formuladas numa linguagem ou outra e as
dividimos naquelas que são verdadeiras e naquelas que são falsas,
também não poderia ser questão de pegar do nosso feixe de frases
naquelas que são prova para outras, naquelas que são ‘testáveis’, ou
naquelas que são ‘incorrigíveis’9 (AUSTIN, 1962, p. 110-11).

8
« But it is really equally clear, when one comes to think of it, that for much the same reasons there could
be no question of picking out from one’s bunch of sentences those that are evidence for others, those that
are ‘testable’, or those that are ‘incorrigible’. What kind of sentences uttered as providing evidence for
what depends, again, on the particular circumstances of particular cases; there is no kind of sentence
which as such is evidence-providing, just as there is no kind of sentence which as such is surprising, or
doubtful, or certain, or incorrigible, or true”.
9
« (…) take a bunch of sentences (or propositions as Ayer prefers) impeccably formulated in some
language or other and sort them out in those that are true and those that are false», there could be no
question of picking out from one’s bunch of sentences those that are evidence for others, those that are
‘testable’, or those that are ‘incorrigible’.»

50
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

O que Austin quer sublinhar é que o faz prova de quê depende das
circunstâncias particulares de casos particulares. O ponto acerca de linguagem é que
nenhum tipo de frase é por si, por ser uma frase desse tipo, fornecedor de prova ou
evidência. Quando Austin liga as duas observações (a observação semântica e a
observação epistemológica) com a expressão ‘pelas mesmas razões’ o que ele está a
fazer é sublinhar a dependência das circunstâncias, quer da verdade (o ser verdadeira ou
falsa de uma frase – ou melhor, de uma enunciação, utterance), quer do facto de algo
constituir evidência ou prova de alguma coisa.
É aqui que encontramos o ponto que me interessa no diferendo entre Williams e
Pritchard. É que, embora Williams admita que ele e Pritchard partilham muita coisa nas
sua leitura de Da Certeza (WITTGENSTEIN 1972), ele pensa que Pritchard é cego à
dependência das circunstâncias austiniana, que está, por sua vez, muito próxima daquilo
que Wittgenstein quer defender em Da Certeza. Na leitura de Pritchard, o grande
propósito de Wittgenstein em Da Certeza é mostrar que a justificação epistémica é
local, i.e. que o inquérito racional não coloca em questão a totalidade das crenças. Isto
é muito diferente de pensar que a significação, a verdade e a prova são dependentes das
circunstâncias, que é o que pensa Williams. Essa diferença é o meu interesse
fundamental no presente artigo.

4. Variedades do contextualismo epistemológico

O contextualismo epistemológico, tal como os contextualismos de outros tipos,


tem uma variedade de versões. Em geral, fala-se de contextualismo epistemológico
quando alguém defende que certas características do contexto afectam os standards que
um sujeito S tem de satisfazer para que as crenças de S contem como conhecimento (ou,
em alternativa, para que uma frase atribuindo conhecimento a S seja verdadeira). As
atribuições de conhecimento são sensíveis ao contexto. Esta posição tornou-se uma
opção particularmente discutida como resposta ao problema do cepticismo. O mesmo se
passa com a epistemologia das proposições-dobradiça; a disputa entre Pritchard e
Williams tem lugar nesse quadro. Embora os seus propósitos não sejam hermenêuticos,
a epistemologia das proposições-dobradiça começa como uma interpretação de Da
Certeza. Os parágrafos seguintes são os parágrafos de Da Certeza mais frequentemente
citados pelos epistemológicos das proposições-dobradiça:

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

§ 341. As questões que levantamos e as nossas dúvidas dependem do


facto de algumas proposições serem isentas de dúvida, como se
fossem dobradiças nas quais estas giram10.
§ 342. Quer dizer, faz parte da lógica das nossas investigações
científicas não duvidar de fato de certas proposições11.
§ 343. Mas não é que a situação seja a seguinte: nós simplesmente não
podemos investigar tudo, e por essa razão devemos contentar-nos com
a suposição. Se queremos que a porta abra, as dobradiças têm de
manter-se no lugar12.

Quer Williams quer Pritchard aceitam a ideia wittgensteiniana geral segundo a


qual a avaliação racional das nossas crenças acontece sobre um pano de fundo de
certezas, de compromissos-dobradiça (hinge commitments), no sentido em que o
conhecimento e a justificação dependem de certezas básicas que fornecem um
enquadramento das nossas práticas epistémicas de inquérito e justificação (o leito do rio
e as dobradiças são as imagens do próprio Wittgenstein). Exemplos de proposições-
dobradiça poderiam ser por exemplo eu sei que tenho duas mãos, que tenho pais, que
tenho um cérebro, que estou a falar português, que vivo no Porto. Estas proposições-
dobradiça têm um carácter epistémico muito sui generis – elas não respondem
directamente à consideração racional, não estão abertas à questão ‘Como é que sabes?’
da mesma forma que outras proposições. Imaginemos que um amigo alemão me diz que
o primeiro ministro de Portugal é Pedro Passos Coelho. Eu digo-lhe: ‘Mas Pedro Passos
Coelho já não é primeiro ministro de Portugal, deixou de o ser em 2015! O actual
primeiro ministro é António Costa’. O meu amigo alemão prontamente reformularia a
sua crença, sem mais problemas, passando a acreditar que o primeiro ministro português
é António Costa. O mesmo não se passa, no entanto, com a convicção de que o mundo
não começou a existir há cinco minutos atrás. O que seria alguém dizer-me que eu estou
enganada e que, na verdade, o mundo começou a existir há cinco minutos atrás, mesmo
tendo nós todas as memórias e convicções que temos acerca do passado distante? O que
é que eu faço se acreditar nessa pessoa? Como altero as minhas crenças em função
dessa descoberta? São estas hinges – proposições-dobradiça – que nós não pomos em
geral em causa, que marcam a groundlessness (o sem fundo) das nossas crenças

10
«The questions we raise and our doubts depend on the fact that some propositions are exempt from
doubt, are as it were like hinges on which those turn.»
11
«That is to say, it belongs to the logic of our scientific investigations that certain propositions are in
deed not doubted»
12
«But it isn’t that the situation is like this: We just can’t investigate everything, and for that reason we
are forced to rest content with assumption. If I want the door to turn, the hinges must stay put.»

52
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

(WITTGENSTEIN, 1972, §166). É porque há proposições-dobradiça como estas ‘a


trabalhar’ na avaliação de crenças e no inquérito racional que a própria ideia de uma
avaliação racional geral das crenças parece incoerente; Pritchard e Williams concordam
quanto a isso.
No núcleo da disputa entre Pritchard e Williams está algo diferente. Desde logo
está a questão de saber se estas certezas básicas, estas crenças-dobradiça, constituem
conhecimento. De acordo com Pritchard, a resposta é negativa. As proposições-
dobradiça não são knowledge-apt, não são aptas para o conhecimento, não são crenças
propriamente ditas. Para Williams, pelo contrário, elas são certamente conhecimento –
elas são, aliás, o protótipo daquilo que é saber alguma coisa. Se há certeza nas nossas
vidas mentais, é em crenças como estas. Para mostrar que o próprio Wittgenstein via as
hinge-propositions como conhecimento, Williams costuma citar o seguinte parágrafo de
Da Certeza (WITTGENSTEIN, 1972, § 340):

Nós sabemos com a mesma certeza com que acreditamos numa


qualquer proposição matemática como se pronuncia as letras A e B,
como se chama a cor do sangue humano, que outros seres humanos
têm sangue e lhe chamam ‘sangue’13.

Olhemos para um exemplo muito simples. Digamos que Austin, ele próprio, diz:
Eu vivo em Oxford (ou que eu digo: Eu vivo no Porto). Ele tem a certeza disso. A
pessoa ao seu lado não tem a certeza disso, não tem de ter. A pessoa ao lado de Austin
pode perfeitamente duvidar do que Austin diz (ou um amigo brasileiro pode duvidar do
que eu digo quando digo que vivo no Porto). Mas Austin, ele próprio, não pode duvidar
que vive em Oxford e eu própria não estou em posição de duvidar do que digo e penso
quando digo ‘Eu vivo no Porto’. Que forma poderia ter a dúvida de Austin sobre viver
em Oxford? Ele tem a certeza. Que forma teria a minha dúvida acerca de viver no
Porto? Eu tenho a certeza. Mas uma tal certeza não pode ser provada. O que poderia
constituir prova? Será que, no caso de Austin, o facto de receber correspondência em
seu nome, com um endereço de Oxford, constitui prova de que vive em Oxford? Será
que saber que vive em Oxford é algo que ele conclui a partir daí? Por exemplo, ele
recebe a correspondência endereçada a si e pensa: bem, eu devo viver em Oxford, já que
esta correspondência está endereçada a um Mr. J. L. Austin, e tanto quanto sei J. L.

13
«We know with the same certainty we believe any mathematical proposition, how the letters A and B
are pronounced, what the colour of human blood is called, that other human beings have blood and call it
‘blood’».

53
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Austin sou eu. Isto significa que eu devo viver em Oxford 14 . Seria muito estranho
pensar assim. Mas, claramente, também não se trata de uma verdade auto-evidente.
Como pode algo assim ser conhecimento?
Lembremo-nos da tese de Austin na passagem com que comecei: não existem
frases que sejam em si e por si duvidáveis ou indubitáveis – como se houvesse a pilha
das frases que seriam verdadeiras e a pilha das frases que seriam falsas, a pilha das
frases que fornecem evidência e a pilha das frases que precisam de provas (que em si,
an sich, precisam de provas). Se mesmo assim há certezas, proposições-dobradiça das
quais estamos tão certos quanto podemos estar certos de alguma coisa, então (e este é o
ponto de Austin e o ponto de Williams) isso significa que existem certezas objectivas
que não estão ligadas nem a razões conclusivas nem à auto-evidência. A ideia que entra
aqui então é a ideia de que uma certeza objectiva pode estar simplesmente ligada à
ausência de dúvidas razoáveis. Perguntamos: faz sentido duvidar disto? Por exemplo:
eu sei que vivo no Porto. Faz sentido eu duvidar disso? Não, que não faz sentido.
Williams preocupa-se evidentemente por explicitar o que significa aqui ‘fazer sentido’
(veja-se WILLIAMS, 2019, p. 73, acerca de ‘making sense’). Parece colocar-se uma
alternativa: será que não faz sentido duvidar porque duvidar disto seria ininteligível?
Ou será que não faz sentido duvidar porque duvidar disto seria totalmente irrazoável?
Williams escolhe as duas, ambas estão em causa no fazer ou não fazer sentido de uma
dada forma de pensar; retomarei este ponto mais à frente. A grande insistência de
Williams (presente no título do seu livro de 1991, Unnatural Doubts) é que dúvidas
também precisam de fundamento, não são apenas as crenças que precisam de
fundamento. O que Williams quer dizer com isto é que é preciso ter razões especificas
para duvidar de algo, da mesma forma que é em geral preciso ter razões específicas para
ter uma dada crença. Ora, pode simplesmente acontecer que numa dada circunstância
tudo fale a favor de p (por exemplo que eu tenho duas mãos, que o mundo não começou
a existir há 5 minutos atrás, que eu vivo no Porto) e nada fale contra. Então, nessa
circunstância eu não tenho razão para duvidar.
Frequentemente, os cenários para dúvida são trazidos à discussão nos termos das
chamadas ‘alternativas pertinentes’ (relevant alternatives). Vale a pena recordar que a
ideia de alternativas pertinentes que fez tanto trabalho na epistemologia das ultimas
décadas tem a sua origem em Austin, e precisamente no mesmo contexto que comecei

14
Claro que conseguimos imaginar circunstâncias excepcionais – por exemplo em que alguém ficou
amnésico – em que esta situação faria sentido. Mas elas são precisamente anormais.

54
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por evocar, i.e. em Sense and Sensibilia, as lectures de Oxford sobre percepção. A ideia
surge quando Austin está a considerar a percepção e a insdiscriminabilidade subjectiva
de percepções verídicas e ilusões e quer saber o que poderia aliviar as dúvidas que aí
surjam.
Consideremos um exemplo muito conhecido de Sense and Sensibilia: digamos
que p é a proposição ‘está um pintassilgo no jardim’. Eu sei que está um pintassilgo no
jardim. Dizer que eu sei que p, que eu sei que está um pintassilgo no jardim é dizer que,
para os presentes propósitos e na presente situação, não existe uma alterativa pertinente.
Não significa que seja suficiente para estabelecer definitivamente que não se trata, por
exemplo, de um pintassilgo empalhado. Saber que p é o que é e não é muitas outras
coisas, diz Austin. Austin está, portanto, a sugerir que eu conte como sabendo que está
um pintassilgo no jardim mesmo se não sei que não é um pintassilgo empalhado, e se
for um pintassilgo empalhado, então evidentemente não é um pintassilgo.
Note-se que Pritchard pensa que Austin está simplesmente a sublinhar quão
diferentes são as nossas práticas comuns de avaliação epistémica e a avaliação radical
que o céptico exige. Ele crê que isso é tudo o que Austin faz (veja-se PRITCHARD,
2016, p. 68). Creio que o que Austin diz não é tão pouco, ou tão fraco, como Pritchard
pensa, mas não entrarei por aí.
De qualquer forma, certamente os leitores já reconheceram aqui a forma de
argumentos cépticos radicais, tais como o Génio Maligno ou o Cérebro numa Cuba.
Estes são formuláveis como um Argumento a partir da Ignorância (AI). CS é um
cenário céptico, como o cenário do Génio Maligno, p uma proposição como, por
exemplo, ‘Estas mãos são minhas’:

(AI-P1) Eu sei que p


(AI-P2) Eu não sei que não-CS
(AI-C) Se eu não sei que não-CS, então eu não sei que p.

Uma orientação fundamental do trabalho de Williams em epistemologia é a ideia


segundo a qual razões para duvidar não são tão fáceis de encontrar como o céptico
pensa. Muito especificamente, contos de fadas não chegam (“fairy tale imaginings do
not do it” diz Williams, i.e. imaginações de conto de fadas não são suficientes). Ora,
para Williams, cenários tais como o Cérebro numa Cuba não são hipóteses, são
precisamente contos de fadas, meras histórias – algo que ele costuma ilustrar com a
seguinte imagem:

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Wile E. Coyote a flutuar por cima do abismo não nos faz duvidar da
lei da gravidade (WILLIAMS, 2019, p. 76)15.

Williams vê esta consideração como um ponto acerca de contexto. O problema


do contextualismo do atribuidor é supor que se pode efectuar uma mudança de contexto
meramente considerando em pensamento hipóteses de erro: a receita do contextualismo
do atribuidor para considerar possibilidades de erro é a Possibilidade Metafísica mais
fecho (Closure) num contexto dialético, i.e. linguisticamente formulado. Ora, Williams
defende que a mera consideração dialética da possibilidade de erro não pode ser um
obstáculo ao conhecimento, nomeadamente porque aquilo a que ele chama ‘cenários de
contos de fadas’ falha o mundo actual, o mundo real.
Mas por que é que o mundo actual seria importante? Chegamos aqui a uma outra
ideia essencial acerca de contexto. Recordemos que, de um ponto de vista austiniano, os
objectos da avaliação epistémica são enunciações, i.e. pretensões avançadas, ou
compromissos assumidos, por falantes específicos em circunstâncias particulares. Se
uma enunciação constitui conhecimento depende daquilo que é a pretensão, de quem é a
pretensão, a quem é dirigida, onde e quando. Noutras palavras, estar em posição de
saber que p envolve todos os aspectos acima listados das circunstâncias epistémicas de
uma pessoa, não apenas uma troca linguística com um interlocutor com quem se pactua,
por exemplo, jogar o jogo do cenário céptico. Contexto não é apenas uma questão
conversacional ou dialética, defende Williams. Todos os aspectos da situação do agente
no mundo (real, actual) importam, não apenas a troca linguística.
Esta noção de contexto de Williams, um contexto multidimensional e
dependente das circunstâncias, está por trás da leitura que ele faz de Da Certeza e das
proposições-dobradiça (como já referi, ele prefere o termo framework, que Wittgenstein
também utiliza). Ora uma tal leitura contrasta fortemente com o foco de atenção de
Pritchard. Para Pritchard, o que Wittgenstein está a fazer em Da Certeza é mostrar que a
avaliação racional é local. A crença, em geral, não apenas a crença religiosa, supõe
compromissos de fé, no sentido de crenças básicas, compromissos-dobradiça (também
por isso não constitui argumento contra a crença religiosa o facto de esta envolver

15
«Wile E. Coyote floating above off the cliff on the screen does not make us doubt the law of gravity».
Wile E. Coyote é uma personagem de série de animação (Looney Tunes).

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compromissos não racionais; na verdade, todas as crenças envolvem compromissos não


racionais). Tais certezas básicas estão simplesmente aí, diz Pritchard, tal como as nossas
vidas: eu tenho duas mãos, eu tenho pais, eu estou a escrever em português, eu vivo no
Porto. Uma avaliação perfeitamente geral do meu corpo de crenças que tivesse
resultados negativos é uma ideia incoerente. Pritchard dá aliás ainda um passo mais: ele
propõe não apenas que tais crenças-dobradiça são arracionais como também que há
uma überhinge, uma supra-dobradiça: a convicção de que a maioria das minhas crenças
são verdadeiras, que nós não estamos radicalmente e fundamentalmente errrados nas
nossas crenças. Isto leva-o a acentuar aquilo a que chama o carácter animal de tais
crenças básicas (entre leitores do Da Certeza, que vão desde Crispin Wright a Annalisa
Coliva, Pritchard está mais próximo das leituras não proposicionais das ‘dobradiças’
como a leitura de Danièle Moyal-Sharrock). Dado o seu carácter visceral, os
compromissos-dobradiça não são opcionais, defende Pritchard. Eles não poderiam ser
intelectualmente opcionais porque são viscerais, são compromissos animais (veja-se
Epistemic Angst). Por isso, eles não são nem adquiridos através de processos racionais
nem respondem a considerações racionais. Ninguém nos ensina que temos duas mãos; o
que nos ensinam é a fazer coisas com elas. O inquérito racional não avalia tais
convicções básicas e fundamentais – e não vamos encontrar um dia uma forma de as
avaliarmos.
No entanto, Williams pensa (segundo Pritchard) que as dobradiças podem ser
(re)movidas, que elas são opcionais. Isto é um grave problema da posição de Williams
para Pritchard. Williams defende-se dizendo que Pritchard não o entendeu: ele não está
a afirmar que proposições-dobradiça tais como ‘eu tenho duas mãos’ ou ‘eu tenho pais’,
ou ‘eu estou a falar português’, ou ‘eu vivo no Porto’, são opcionais para mim. O que
ele está a fazer é defender uma tese sobre significação e pretensões de conhecimento
(knowledge claims), mais especificamente uma tese sobre a enunciação de pretensões de
conhecimento. Ele está a afirmar que qualquer enunciação é dependente do contexto, no
sentido de contexto que foi explicitado acima (pense-se na enunciação de ‘eu tenho duas
mãos’ ou ‘eu tenho pais’ no contexto de um videogame e na nossa vida normal). Quanto
a proposições – dobradiça ou hinges, Wittgenstein afirma em Da Certeza
(WITTGENSTEIN, 1972, §340) que nós sabemos com a mesma certeza com que
acreditamos numa proposição matemática como são pronunciadas as letras A e B, como
se chama a cor do sangue humano, que os outros seres humanos têm sangue e lhe
chamam sangue. Para Williams, isto é conhecimento, isto é certeza, se alguma coisa

57
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

pode alguma vez ser conhecimento e certeza. Ao contrário do que diz Pritchard, estas
convicções não são arracionais ou inaptas para o conhecimento. Da forma como
Williams vê as hinges, estas não são compromissos viscerais: elas permitem
wissenschftlichen Untersuchungen16, i.e. investigações científicas (no sentido em que
‘científico’ tem em alemão e que se aplica a todas as áreas académicas e não apenas às
ciências naturais e formais). Pense-se no papel de acreditar que ‘o mundo não começou
a existir há cinco minutos atrás’ quando se está a escrever um artigo de história do
Brasil ou de Portugal. Tal crença não é um compromisso visceral e no entanto é uma
hinge, no sentido que está ser discutido.

5. A diferença entre Williams e Pritchard colocada em termos de cenários e


contexto, crenças e significação

A chave para tudo isto é orientarmo-nos quando falamos de contexto, cenário,


ser local e dependência da circunstâncias. Williams afirma (COUTO & CORTI, no
prelo):

(…) não tenho simpatia pelo contextualismo do atribuidor porque a


minha noção de contexto nunca foi a noção de contexto deles. Qual é
a noção de contexto deles? É uma noção de “contexto conversacional”
ou “contexto dialético” de acordo com a qual podemos mudar os
standards de justificação e focarmo-nos nos standards de
conhecimento que são mantidos pelas possibilidades de erro trazidas
pela conversação. No final de contas “contexto” é uma questão do
assunto sob discussão – acerca de que possibilidades de erro têm de
ser excluídas pela nossa evidência ou o que seja, se queremos contar
como conhecendo algo17.

Ora a noção de contexto de Williams foi sempre, afirma ele, multidimensional.


Com isto ele quer dizer (veja-se o seu livro Problems of Knowledge) que um conjunto
de factores constituem o contexto. Contexto não é apenas aquilo sobre que se está a
falar; não é apenas uma questão das possibilidades de erro que foram postas em cima da
mesa na conversa que estamos a ter neste momento (por exemplo, entre filósofos). Há

16
O termo é de Wittgenstein.
17
«I'm not sympathetic to it (attributor contextualism) because my notion of context was never that notion
of context. What is their notion of context? It is a notion of “conversational” or “dialectical context”
according to which you can change the standards of justification and focus on the standards for
knowledge that are enforced by what error possibilities are brought up in the conversation. In the end
“context” is a matter of the question under discussion – about what error possibilities need to be excluded
by one's evidence or whatever, if one is to be knowledgeable.»

58
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conhecimento de fundo (background knowledge), existem objecções correntes que


podem estar disponíveis para certas concepções que são avançadas e existe a situação
mundana real em que se está:

Estar em posição de saber alguma coisa é uma questão de como se


está no mundo, não apenas de que possibilidades de erro nos passam
pela mente18.

O ponto de Williams é um ponto sobre justificação: a justificação está sujeita a


constrangimentos de inteligibilidade, ou constrangimentos semânticos, em situações
reais no mundo. A justificação não é simplesmente questão de não se estar enganado em
cenários dialeticamente formulados (como faz notar Williams em WILLIAMS, 1999, p.
160). Em algum momento, os erros passam (de forma esbatida) a ininteligibilidade; é
isso mesmo, de resto, que Wittgenstein explora em muitos dos exemplos de Da Certeza.
Isto está em contraste com a abordagem de Pritchard. Consideremos a dialética
global do seu livro Epistemic Angst. A proposta biscópica de Pritchard, que visa evitar a
‘angústia epistémica’ (epistemic angst), é uma defesa unificada contra o cepticismo
radical. Ela inclui uma forma wittgesnteiniana de enfrentar o cepticismo radical baseado
em closure (fecho) e também o disjuntivismo epistemológico. O resultado da primeira
parte do projecto é que a justificação é local, mas que ainda assim se pode manter o
conhecimento paradigmático (por exemplo: eu sei que estou sentado à minha secretária,
a escrever no meu computador) 19 e a prioridade epistémica 20 em conjunto com as
hinges, proposições-dobradiça. Noutras palavras: se quer Pritchard quer Williams se
erguem contra a ideia de justificação global, envolvendo todas as crenças, há no entanto
uma profunda divergência entre ambos quanto à prioridade epistémica. Isto acontece
porque para um a discussão sobre hinges é uma discussão sobre o carácter sempre local
da justificação, enquanto que para o outro a discussão é sobre o facto de a justificação
ser dependente das circunstâncias. Ora estas duas coisas são muito diferentes.
Para Williams, que Pritchard possa falar sobre E como uma proposição que
exprime uma caso paradigmático de conhecimento quotidiano ou comum (paradigm
case of everyday knowledge) está longe de ser inocente e mostra que ele é cego às

18
«Being in a position to know is a matter of how you are fixed in the world, and not just what error
possibilities are fleeting through your mind» (Williams em Couto & Corti, no prelo).
19
Pritchard (2016, p. 12). Pritchard chama a esta proposição a proposição E.
20
A expressão, tal como é usada por Williams significa prioridade do conhecimento experiencial
relativamente ao conhecimento do mundo externo (Williams, 2019, p. 62).

59
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

circunstâncias. Pritchard continua simplesmente a discutir conhecimento do mundo


como tal. Mas, afirma Williams:

(…) a questão do fecho desvia a atenção do mais importante. Para


Wittgenstein, como para mim, o erro mais importante é feito já na
primeira premissa (de um argumento de ignorância como o dos
cenários cépticos)

(AI-1) Eu sei que O


(AI-2) Eu não sei que não-CC
(AI-3) Se eu não sei que não CC, então eu não sei que O.

A premissa apoia-se sobre duas suposições. A primeira é que uma


‘proposição comum’, como candidata a ser conhecida, pode ser
identificada simplesmente por algum traço geral do seu conteúdo. Ela
é acerca de um objecto determinado ou situação que pode ser
reconhecido sem conhecimento especializado. A segunda é que não há
razão evidente para duvidar da verdade da proposição: tanto quanto
sabemos, a situação parece conduzir a nós sabermos aquilo que
pensamos saber. Ambas as suposições estão erradas. Os objectos
apropriados da avaliação epistémica são o que Austin chama
enunciações, ‘statements’: pretensões avançadas, ou compromissos
assumidos, por falantes particulares em circunstâncias particulares. Se
uma enunciação exprime conhecimento, ou se um compromisso
redunda de facto em conhecimento, depende de que pretensão é
avançada, por quem, onde e quando. Estar em posição de saber
alguma coisa envolve todos estes aspectos, quatro aspectos, das
cricunstâncias epistémicas de uma pessoa (WILLIAMS, 2019, p. 78-
79)21.

A tese geral de Williams é assim que a abordagem de Pritchard está apoiada na


suposição de independência quanto às circunstâncias. Sem tal suposição, Pritchard não
poderia ter as relações de prioridade epistémica de que precisa para montar o seu caso.
Mas foi precisamente a prioridade epistémica que Austin afastou, conjuntamente com a

21
«(…) the issue of closure is a red herring. For Wittgenstein as for me, the crucial mistake is taken in the
first premise [of the Argument from Ignorance above, dealt with the radical skeptical scenarios)

(AI-1) I know that O


(AI-2) I do not know that not-SS
(AI-3) If I do not know that not-SS, I do not know that O.

The premise builds in two assumptions. The first is that an ‘everyday proposition’, as a candidate for
being known, can be identified simply by some broad feature of its content: it about a determinate object
or situation that can be recognized without specialist knowledge. The second is that there is no evident
reason to doubt the proposition’s truth: as far as we can tell, the situation appears to be conducive to our
knowing what we take ourselves to know. Both assumptions are wrong. The proper objects of epistemic
evaluation are what Austin calls ‘statements’: claims made (or commitments undertaken) by particular
speakers in particular circumstances. Whether a statement expresses knowledge, or a commitment
amounts to knowledge, depends on what is claimed, by whom, where and when. Being in a position to
know engages all four aspects of a person’s epistemic circumstances.»

60
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independência relativamente das circunstâncias. Sem tais suposições, simplesmente não


existe o problema céptico baseado no fecho (closure), que Pritchard pensa que existe.
Não vou entrar agora na complexa discussão de Pritchard ou na análise de toda a sua
terminologia – creio que é realmente uma questão saber se Pritchard é vulnerável a esta
crítica bem mais simples que acabo de enunciar.

6. Conclusão: Filosofia da linguagem e epistemologia

Até aqui considerei elementos de um debate acerca da natureza e da estrutura da


justificação racional, e acerca da certeza em particular. O meu interesse por Williams
provém do facto de ele pensar que, a um nível fundamental, a certeza está fundada em
condições para a significação; a certeza não é directamente uma questão de evidência e
provas. Assim sendo, o estatuto epistémico de uma qualquer pretensão (claim) é
duplamente dependente das circunstâncias (quanto à verdade, quanto à evidência ou
prova). Saber se faz sequer sentido pedir razões para uma crença numa particular
situação depende não apenas do que é perguntado, mas de quem está a perguntar a
quem, numa particular situação mundana.
É por isso que o conhecimento é dependente das circunstâncias (“knowledge is
circumstance-dependent”, diz Williams, em WILLIAMS, 2019, p. 64). Dependência das
circunstâncias não é apenas localidade da justificação epistémica: tem a ver com as
condições requeridas para as coisas que dizemos fazerem sentido num contexto
multidimensional. Um contexto multidimensional inclui a situação actual concreta do
putativo conhecedor; os factores dialéticos são apenas uma parte desse contexto
epistémico multidimensional. É por isso que contextos (por exemplo, contextos
cépticos) não podem ser meramente criados conversacionalmente, como se fosse por
fiat.
A esta luz, a hinge epistemology de Pritchard aparece aos olhos de Williams
como puramente epistemológica e apenas superficialmente contextual, já que ela é cega
à dependência das circunstâncias. A dependência das circunstâncias é uma questão
acerca de linguagem, de significação e de fazer sentido por um agente produzindo
enunciações num mundo real e actual. Quando Williams acusa a hinge epistemology de
Pritchard de ser puramente epistemological, o que ele quer dizer é que Pritchard passa
por cima de quaisquer considerações acerca de sentido e verdade de asserções, passa
por cima de quaisquer considerações de filosofia da linguagem. Para Williams, essas

61
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considerações de filosofia da linguagem estão no coração de Da Certeza, e são centrais


nas preocupações de Austin. Não perceber a sua importância é uma consequência de
esquecer Austin.
Em contraste, para Pritchard (Epistemic Angst), tais questões de verdade e
significação são controversas, pertencem claramente à filosofia da linguagem e devem
ser deixadas de lado quando fazemos epistemologia:

Embora pudesse ter sido o intento último de Wittgenstein [em On


Certainty] motivar o seu anti-cepticismo fazendo apelo a uma teoria
da significação altamente sensível ao contexto, devemos ter o cuidado
de não nos sobrecarregarmos com esta bagagem filosófica se
pudermos evitá-lo. Porque seguir esta linha de argumentação (…) é
tornarmo-nos reféns de teses filosóficas mais amplas, que se estendem
bem para além da epistemologia e que podem não ser elas próprias em
última análise plausíveis (PRITCHARD, 2016, p. 86)22.

Porque mantém Austin em mente, Williams afirma, em contraste, e olhando para


a sua carreira de décadas como epistemólogo:

Nunca pensei que pudéssemos tratar a epistemologia como uma


espécie de subespecialidade autosuficiente, como algumas pessoas
fazem hoje. Não acredito que existam linhas claras a separar a
epistemologia, a filosofia da linguagem, a filosofia da mente e a
metafísica23 (COUTO & CORTI, no prelo).

Gostaria por isso de acabar com uma citação de Austin, de A Plea For Excuses (Austin
1970):

Quando examinamos o que devemos dizer quando, que palavras


devemos usar em que situações, nós não estamos a olhar meramente
para palavras (ou para ‘significados’, sejam estes o que forem), mas
para as coisas reais sobre que falamos: estamos a usar a consciência
aguçada das palavras para aguçar – não para ser o árbitro final – a
nossa consciência dos fenómenos (AUSTIN, 1970, p. 182)24.

22
«While it might ultimately have been Wittgenstein’s intent [in OC] to motivate his anti-skepticism by
appeal to a highly context-sensitivity account of meaning, we should be wary of saddling ourselves with
this philosophical baggage if we can avoid it. For to take this kind of line (…) is to make oneself hostage
to wider philosophical claims, extending well beyond epistemology that may not be themselves plausible
in the final analysis.»
23
«I have never thought that one could treat epistemology as a kind of self-standing subspecialty, in the
way some people do today. I don't believe there are clear lines between epistemology, philosophy of
language, philosophy of mind, and metaphysics».
24
«When we examine what we should say when, what words we should use in what situations, we are
looking again not merely at words (or “meanings”, whatever they may be) but also at the realities we use
words to talk about: we are using a sharpened awareness of words to sharpen our awareness of, though
not as the final arbiter of, the phenomena».

62
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Aquilo que Austin representa para os muitos filósofos que se declaram austinianos,
como Williams, é a ideia segundo a qual em filosofia, pelo menos, não há uma coisa tal
que seja ‘meramente olhar para palavras’, como não há uma coisa tal que seja
meramente olhar para o conhecimento ou para a certeza sem querer saber de what we
say when (o que dizemos quando) e onde, e a quem e em que situação mundana, quando
dizemos que sabemos que p. Isto é algo que devemos manter em mente quando
discutimos num contexto epistemológico exemplos tais como ‘eu sei que estou sentado
à minha secretária, a escrever no meu computador’ ou ‘eu sei que estas mãos são
minhas’.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUSTIN, J.L. Sense and sensibilia. Oxford: Oxford University Press, 1962.
_____. A Plea for Excuses. In: AUSTIN, J.L. Philosophical papers. Oxford: Oxford
University Press, 1970.
COUTO, D. & CORTI, L. Contextualism in context – interview with Michael Williams.
In: Avant – Trends in Interdisciplinary Studies (no prelo).
MIGUENS, S. J.L. Austin, o realismo de Oxford e a epistemologia: uma releitura de
“Other Minds”. Revista Aurora, v. 28, n. 44, p. 653-686, 2016.
_____. Uma leitura da filosofia contemporânea – figuras e movimentos. Lisboa:
Edições 70, 2019.
PRITCHARD, D. Epistemic angst. Princeton NJ: Princeton University Press, 2016.
RYSIEW, P. Epistemic Contextualism. In: Zalta, N. (Ed.) The Stanford encyclopedia of
philosophy (Winter 2016 Edition). Disponível em:
<https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/contextualism-epistemology/>
WILLIAMS, M. Unnatural doubts. Princeton NJ: Princeton University Press, 1991.
_____. Problems of knowledge. Oxford: Oxford University Press, 2001.
_____. Wittgenstein’s refutation of idealism. In: McMANUS, D. (Ed.). Wittgenstein
and scepticism. London: Routledge, 2004.
_____. Beyond unnatural doubts. In: MARCHESAN E. & ZAPERO, D. (Eds.).
Context, truth and objectivity. London: Routledge, 2019.
WITTGENSTEIN, L. On certainty. New York: Harper, 1972.

63
COMO SER INTENCIONALISTA E DISPOSICIONALISTA

André Leclerc
UnB/CNPq1

RESUMO: Intencionalistas acreditam que a intencionalidade, a propriedade relacional de ser acerca de


algo, é constitutiva do mental. De acordo com a Tese de Brentano: 1) o mental é intencional; 2) nada
físico é intencional. O disposicionalismo, acredito, deve ser ampliado para incluir todas as propriedades
mentais que também são propriedades disposicionais realizadas fisicamente no cérebro e no sistema
nervoso como um todo, da mesma maneira que a solubilidade do açúcar é realizada na sua estrutura
molecular. Meu objetivo é mostrar como podemos ser intencionalistas (aceitar a primeira parte da Tese de
Brentano) e disposicionalistas ao mesmo tempo (aceitar que os estados, atos e eventos mentais
intencionais tenham uma base física de realização). Resumindo em um slogan: o intencional é a
manifestação de disposições mentais. As disposições em geral, e as disposições psicológicas em
particular, têm dois lados (two-sidedness): elas pressupõem uma realização física, de um lado, e de outro,
uma manifestação que é propriamente mental. Uma exposição sobre a linguagem se faz necessária neste
contexto, pois as representações públicas também instanciam propriedades semânticas que são
intencionais, e muitos de nossos estados mentais têm conteúdo especificado pelo uso de uma frase de uma
língua pública.

PALAVRAS-CHAVE: Intencionalismo. Disposicionalismo. Mental. Físico. Manifestações.

ABSTRACT: Intentionalists believe that intentionality, the relational property of being about something,
is constitutive of mentality. Brentano’s thesis says: 1) the mental is intentional; 2) nothing physical
exhibits that property. Dispositionalism, I believe, should be extended to include all mental properties,
which are also dispositional and realized physically in the brain, like the solubility of sugar which is
realized in its molecular structure. My aim is to show how we can be intentionalists (by accepting the first
part of Brentano’s Thesis) and dispositionalists at the same time (by accepting that mental states, acts and
events have a physical base of realization). In a nutshell: the intentional is the manifestation of mental
dispositions. Dispositions in general, psychological dispositions in particular, are two-sided and
presupposes, on the one hand, a physical realization, and a manifestation which is properly mental, on the
other. Something has to be said about language in that context, because public representations instantiate
semantic properties which also are intentional, and many of our mental states have their content specified
by the use of a sentence belonging to a public language.

KEYWORDS: Intentionalism. Dispositionalism. Mental. Physical. Manifestations.

1
Essa pesquisa foi desenvolvida graças a uma bolsa de produtividade do CNPq (processo 305365/2012-
6). Quero agradecer a Dra. Gesuína de Fátima Elias Leclerc pela leitura sempre atenta e as observações
valiosas.
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Algo extraordinário apareceu cedo na evolução da vida – ou talvez junto com ela
–, quando organismos adquiriram a capacidade de representar, de alguma forma, o meio
ambiente e de antecipar acontecimentos. Não sabemos com precisão quando e por quê.
Certamente, para ter a capacidade de representar, um organismo deve apresentar um
certo nível de complexidade. São chamados hoje de “intencionalistas” aqueles que
acreditam que esta propriedade relacional, a de ser acerca de algo, é constitutiva do
que é, para um organismo, ter uma mente. O que é mental é intencional. Essa
propriedade relacional pode ser instanciada não só por representações mentais de todo
tipo, como estados (crenças, desejos, intenções), eventos (como percepções, sensações,
dores, orgasmos, etc.), e atos mentais (julgar, decidir, lembrar, deliberar), como também
por representações públicas como fotografias, retratos, partituras, gráficos, mapas,
frases, palavras, etc. Temos boas razões para pensar que representações públicas
existem e são úteis somente porque existem organismos providos de mentalidade que as
usam na realização de seus planos, em particular nos planos comunicacionais. As
representações públicas são artefatos concretos cuja definição remete a necessidades,
desejos, ou intenções de usuários potenciais. De outro modo, nenhuma representação
pública (palavras, gráficos, mapas, etc.) poderia referir a algo ou ter um referente.
Todas as representações mentais e públicas “referem” ou “indicam”, ou ainda
“apontam” para algo que pode ser um objeto material concreto, algo abstrato (o único
número primo par), um estado de coisas simplesmente possível (que Rio Grande do Sul
seja um Estado independente da federação brasileira), um fato (a Inglaterra está fora da
UE), um evento (está chovendo), um outro estado mental (minha alegria motiva meu
desejo de ligar para minha esposa), uma propriedade instanciada (viajar a 800
quilômetros por hora), uma propriedade nunca instanciada (viajar mais rápido do que a
luz), algo inexistente (o Eldorado), ou ainda um artefato abstrato que necessita de uma
base material, como é o caso das instituições e dos personagens fictícios, que não
existem sem uma base material para funcionar, mas não se identificam com ela (o STF
não se identifica com um edifício nem com grupo de juízes, e os personagens fictícios,
como Hamlet ou Sherlock Holmes, são objetos culturais que existem graças a livros
concretos (token books), películas, CDs, e a atividade mental de pessoas interessadas,
etc.). Vivemos cercados de artefatos e as representações públicas são claramente
artefatos. Temos até boas razões para acreditar que muitas de nossas representações

66
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

mentais também são artefatos, quando o conteúdo mental é conceitual e depende da


existência de convenções linguísticas e de regularidades sociais.
Como um organismo pode produzir e manter estados mentais que são acerca de
outra coisa? Trata-se de um problema que Brentano teve que enfrentar. A resposta que
quero oferecer a esse problema é simples e naturalista: o mental é intencional e o que é
mental é disposicional. Noutras palavras, o que é mental é a manifestação de
disposições, e como disposições precisam de uma base de realização física, o mental é
assim naturalmente amarrado ao físico.

***

As propriedades intencionais das representações (mentais ou públicas) são aquelas que


determinam os objetos dos atos (estados ou eventos) mentais e também das
representações públicas. No caso dessas últimas falamos de propriedades semânticas,
como ter um sentido ou ter uma referência. Essas propriedades relacionais e
extrínsecas não são determinadas pelas propriedades intrínsecas das representações
físicas. As ocorrências concretas da palavra “lua”, consideradas materialmente, têm
propriedades físicas e químicas intrínsecas, mas elas não determinam as condições de
aplicação do termo (seu sentido) nem sua referência. Pensar de outro modo nos traria de
volta para uma concepção mágica da linguagem. As propriedades físicas ou químicas
dos exemplares concretos de uma palavra, bem como a forma e tamanho das letras (ou
altura do som), não determinam a maneira como ela é usada; as moléculas que
compõem a tinta de um exemplar concreto da palavra “lua” têm propriedades físicas e
químicas intrínsecas, mas nenhuma dessas propriedades determinam qual o sentido ou a
referência de “lua”2.
Ninguém decide sozinho acerca do significado de uma palavra (com a exceção
das definições estipulativas e neologismos). Tive que aprender o significado de “lua”
em português, de “lune” em francês, etc. São regularidades sociais admitidas numa
comunidade que determinam as propriedades semânticas das palavras usadas; por
exemplo, “lua” designa em português o único satélite natural da Terra; isso se deve ao
fato de que os falantes do português, durante gerações, usaram essa palavra para se
referir àquele objeto. Depois de Galileu, a palavra ganhou um significado a mais; ela
passou a designar também qualquer satélite natural de qualquer planeta (e.g. as luas de
2
Sobre isso, ver Robert Stalnaker (1989 e 1990).

67
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Júpiter). Palavras ou signos não têm o mesmo significado para sempre ou em todos os
contextos de uso. Um aperto de mão entre dois desconhecidos pode ser um sinal de boa
vontade e colaboração entre duas pessoas; entre duas pessoas que acabam de brigar, tem
outro significado; entre dois inimigos de longa data, é ainda diferente; quando envolve
dois velhos amigos, pode ser o sinal de que a relação esfriou (por que eles não se
abraçam?); e o famoso aperto de mão do Marechal Pétain e de Adolf Hitler causou uma
profunda tristeza, porque significou, para grande parte da nação francesa, a rendição.
Esse fenômeno da variabilidade do sentido das palavras usadas em contexto, nós o
chamamos de plasticidade do sentido. A plasticidade não se explica em termos de
ambiguidade. Temos um caso autêntico de ambiguidade quando a lista dos possíveis
significados associados a uma palavra é finita, fechada. A inspiração aqui vem da ideia
de textura aberta introduzida por Friedrich Waismann (1945): há sempre novas
possibilidades de aplicação para termos já em uso. Nunca podemos fechar a lista.

***

Línguas são regularmente apresentadas de maneira muito abstrata, como


sistemas recursivos que permitem a formação de um número potencialmente infinito de
frases bem formadas (ou de pares som-sentido), transmitidos de geração em geração.
Mas, são seus usuários que mantêm a língua viva a cada geração. Cada falante deve
aprender a língua, mas ninguém consegue “absorver” a língua por inteiro (gramáticos e
lexicógrafos, talvez, sejam aqueles que mais se aproximam desse ideal). Assim, há
muitas diferenças entre qualquer par de falantes do português quanto ao conhecimento
da língua: esse conhecimento é desigual, de um falante para outro. O mesmo vale para o
repertório de conceitos que cada um possui. O conhecimento, por mais incompleto que
seja, que um falante adquire de uma língua é o que chamamos de idioleto. E o que
chamamos de “português” é uma abstração sobre os idioletos dos falantes do português.
Os lexicógrafos tentam estabelecer quais são as convenções linguísticas, a partir das
falas de indivíduos dentro de uma comunidade de falantes, e as convenções linguísticas
são regularidades sociais valendo dentro de uma comunidade de falantes. Um locutor é
considerado competente quando sabe usar as palavras com sucesso na maior parte das
ocasiões de uso. A capacidade de usar corretamente palavras deve ser realizada
fisicamente de alguma maneira no cérebro, normalmente pela repetição e pelo
treinamento, que tem por efeito a criação de pistas neuronais (neural pathways) que

68
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

facilitam futuras execuções com o caráter de automatismos. Grandes performances na


dança, na música, nos esportes, dependem disso. É a melhor hipótese que temos. Há
diferenças entre os idioletos dos falantes da mesma comunidade, é óbvio. Nunca
usamos todo o repertório linguístico de uma só vez, mas, nossa capacidade de usar as
partes não usadas não é perdida quando não é exercitada. Basta as circunstâncias serem
favoráveis para ativar essa capacidade. Aprendemos a usar a linguagem com o treino e a
repetição, e nossa capacidade de usar a linguagem pode melhorar com o tempo, com o
treino, o ensino, estudo e o exemplo. Finalmente, essa capacidade de usar a linguagem
(ou partes dela) nos segue, não importa onde estivermos, como nosso repertório de
conceitos e nossas atitudes proposicionais. Qual a melhor explicação desses fatos
comuns? A resposta em uma só palavra é: disposições!
As disposições têm uma base física de realização. A solubilidade do açúcar é
realizada na estrutura molecular do açúcar; a fragilidade do vidro, na sua estrutura
molecular, e assim por diante. O mesmo vale para disposições psicológicas como nossas
capacidades fundamentais (como reconhecer os rostos), nossas atitudes (crenças,
desejos, etc.), nossas habilidades ou capacidades adquiridas, nossas competências (saber
dirigir um carro, falar uma língua, tocar um instrumento, dominar uma técnica, dominar
uma bateria de conceitos, etc.). Nosso vocabulário disposicional é simplesmente
imenso, como Ryle revelou na sua grande obra, The Concept of Mind (1949).
Desde a década de 1990, as disposições voltaram a ocupar o palco em filosofia
da ciência e da mente. A novidade veio da Austrália, onde filósofos como D. M.
Armstrong, U. T. Place e George Molnar defendem uma interpretação realista das
propriedades disposicionais, o que contrasta com a posição tradicional dos empiristas. O
behaviorismo tradicional, de inspiração empirista, recorre às disposições com certa
relutância e somente na medida em que exista uma tradução para frases condicionais
que eliminem a referência a qualquer episódio “privado”. Propriedades disposicionais
físicas, como a solubilidade, a condutividade, a resistência, etc., bem como propriedades
disposicionais psicológicas, como as habilidades, hábitos, inclinações, tendências,
gostos, competências, etc., não podem ser observadas. Muitos filósofos, nessa tradição,
“eliminam” as disposições através de uma “análise condicional”. Elas são aceitáveis na
medida em que podemos eliminá-las sem perda de sentido num programa de tradução
(e.g. o programa de tradução de Ryle e as “frases de redução” de Carnap). Na metafísica
analítica, desenvolvida sobretudo nas últimas décadas, a concepção de disposição
defendida por George Molnar (2003), U. T. Place, C. B. Martin, D. M. Armstrong (cf.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Crane 1996) e outros, é realista. O mesmo vale para a concepção de Stephen Mumford
& Rani Anjum (2011). As disposições deixaram de ser metafisicamente e
epistemicamente suspeitas. Desapareceu, aos poucos, a tentação de reduzir ou de
eliminar as propriedades disposicionais na metafísica, na filosofia da mente e na
filosofia da ciência.
A atribuição de uma disposição pressupõe a verdade de um condicional
contrafactual (subjuntivo). Jansen (2007), um especialista em Aristóteles, sugere a
seguinte forma lógica para as propriedades disposicionais: (dyn (MC)) (x), em que
“dyn” está para lembrar a dynamis aristotélica, “M” para as manifestações da
disposição, “C” para o conjunto de circunstâncias favoráveis ou auspiciosas, e “x”
para qualquer objeto podendo instanciar a propriedade. A análise das propriedades
disposicionais que adotamos neste ensaio foi proposta recentemente por Justin C.
Fisher. Se um pedaço de açúcar tem a propriedade disposicional de solubilidade,
então é verdade que se ele fosse colocado numa solução aquosa, então se dissolveria.
Se a água de uma garrafa fosse envenenada, então, se ela fosse ingerida, ela causaria
danos à saúde. Estes são condicionais contrafactuais (ou contrafáticos), ou
condicionais subjuntivos. O verbo principal do antecedente está no modo verbal
subjuntivo e o verbo principal do consequente está no modo condicional. De modo
geral o conceito de disposição que vamos pressupor e usar aqui pode ser enunciado
assim:

Uma coisa X está disposta a dar uma resposta do tipo R a um


estímulo do tipo E em circunstâncias do tipo C, se e somente se, se
X ou qualquer réplica molecular de X fosse exposta a um estímulo
do tipo E em circunstâncias do tipo C, então X manifestaria uma
resposta do tipo R3.

Nossa capacidade de usar corretamente uma palavra depende de sua associação a


um conjunto de disposições. Certas disposições, quando ativadas, permitem o
reconhecimento da palavra (ou de certo padrão sonoro ou gráfico); outras ativam
processos motores na hora dos proferimentos e outras ainda determinam as condições
de aplicação da palavra, seu sentido. Assim, cada palavra é associada a um feixe de
disposições. Isso não parece óbvio para quem reflete sobre sua língua materna.
Condillac dizia que comunicamos sem saber antes de saber comunicar. O aprendizado

3
Ver Justin C. Fisher, 2013, p. 450.

70
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

da primeira língua não resulta de nenhum treinamento especial. Tudo parece tão natural,
um simples jogo de imitação sem esforço, até o aprendizado da escrita na escola, com a
gramática e tudo mais, que representa um primeiro verdadeiro treinamento especial com
a linguagem. Ao chegar na escola, no entanto, já sabemos falar. Mas quando se trata de
línguas adicionais, precisamos treinar a pronúncia, aprender a reconhecer as palavras e a
segmentar corretamente a cadeia falada e, ainda, a procurar várias vezes a mesma
palavra no dicionário para fixar seu significado.
John L. Austin introduziu uma distinção muito importante na teoria da
linguagem, a distinção entre as convenções descritivas e as convenções demonstrativas.
As convenções descritivas são capturadas pelos lexicógrafos. Depois de muitas
observações e consultas, o lexicógrafo chega à conclusão de que a palavra “café”
designa algo como a semente de um arbusto tropical que, uma vez torrada e moída,
produz uma bebida estimulante e levemente amarga com o acréscimo de água quente.
Essa descrição é o núcleo de sentido da palavra, mas a palavra tem outros usos ligados
ou derivados desse núcleo de sentido. “Café” às vezes pode designar uma cor, ou uma
certa quantidade da bebida (um café = uma xícara de café), ou ainda o lugar onde se
pode beber café etc. A convenção descritiva é uma abstração sobre os usos permitidos
numa comunidade. Sempre tem um caráter geral, pois nunca remete a algo particular,
real, histórico, concreto.
Agora, como falamos sempre em contextos altamente específicos, o uso da
palavra “café” normalmente tem um significado muito claro determinado pelas
convenções demonstrativas. Essas convenções são um conjunto de indicações que fixam
com precisão o significado em contexto. A frase “Querida, o café está pronto!” dita às 7
horas da manhã significa o mesmo que: “Vem, a cafeteira está na mesa”; por sua vez,
“Querida, quer um café?” significa: “Gostaria de uma xícara de café?”. A frase
“Querida, me desculpe, esqueci de comprar o café” significa que não comprei o pó de
café, etc. Essas frases são compreendidas imediatamente, sem dificuldade, em razão de
um conjunto de indicações contextuais claras que elimina qualquer equívoco. Elas
determinam condições de verdade ou de satisfação facilmente acessíveis para todos os
participantes da conversação, e os termos usados remetem a objetos, eventos ou
situações concretas.
O que é parte de meu idioleto é o núcleo de sentido das palavras, não o sentido
enriquecido e determinado em contexto pelas convenções demonstrativas. O sentido da
palavra “cortar”, por exemplo, pode variar muito de um contexto para outro. O que

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

podemos dizer sobre as disposições de uma pessoa competente que sabe usar a palavra
“cortar”, uma palavra suscetível a enormes variações contextuais de sentido? Cortamos
diversas coisas ou materiais com diversos instrumentos (faca, machado, serra, bisturi,
laser, cortador de grama, fio quente, canivete, espada, punhal etc.). Podemos afirmar o
seguinte: se ela tivesse considerado a questão de saber se o uso da palavra “cortar” em
circunstâncias favoráveis é apropriado ou não, então, após considerar seu melhor juízo,
ele responderia sinceramente que sim. Wittgenstein recomenda associar a compreensão
de uma expressão, frase ou série aritmética a uma habilidade (o “domínio de uma
técnica”) e não a algo que teríamos em mente, um conceito, uma ideia, uma imagem,
uma função ou fórmula que teria o poder de determinar de uma só vez todas as
aplicações possíveis de uma expressão linguística ou de uma regra e que seria presente
de alguma forma em todas as aplicações corretas. Essa orientação de Wittgenstein é
muito bem-vinda para as línguas naturais. Querer aplicar às línguas naturais as mesmas
técnicas de análise do discurso usadas para as linguagens arregimentadas da lógica e das
ciências não dá bons resultados. Em muitos casos não sabemos exatamente qual é a
função que devemos associar a uma expressão como seu significado. Uma maneira de
mostrar isso de modo convincente é usar a notação --‐-λ para especificar o significado de
uma palavra muito comum de uma língua natural sujeita a enormes variações
contextuais, como a palavra “cortar”. Cortar a grama é uma atividade muito diferente de
cortar um bolo, ou cortar com um bisturi, com um machado etc. O resultado é a seguinte
função:

λX λx λy [X(y) & (cortar à maneira de X) (x, y)],

em que “X” é uma variável de segunda ordem que percorre o domínio das “maneiras
de cortar”, “x” está para o agente do contexto, e “y” para qualquer objeto a ser cortado
(ver Recanati, 2010, p. 34). Trata-se de algo (uma função) extremamente abstrato,
portanto, e a ideia de que algo dessa natureza deve estar presente na mente de qualquer
falante competente, em todas as ocasiões de uso correto da palavra “cortar” é,
simplesmente, delirante. E nem consideramos os usos figurados da palavra, como
“cortar o orçamento”, “cortar a luz” etc. Mas podemos sempre atribuir uma disposição
(ou feixe de disposições interligadas) a um locutor competente capaz de usar a palavra
“cortar”. Sua compreensão da expressão “cortar”, ou de qualquer outra expressão,
frase ou série aritmética, depende de uma habilidade.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Uma “semântica vetorial” pode ajudar a entender como nossa compreensão se


ajusta e modifica o núcleo de sentido associado a uma palavra em função de fatores
contextuais. Aprendemos a usar a palavra “cortar” em relação a diversas práticas, em
várias situações onde se usa diferentes instrumentos. Nosso conhecimento
enciclopédico do mundo, das regularidades naturais e sociais, é aqui de importância
decisiva. O núcleo de sentido para “cortar” poderia ser algo como: “separar ou dividir
por meio de um corte”. Mas cortar um bolo com uma faca e cortar uma árvore com um
machado etc., são práticas totalmente diferentes. O uso que fazemos da palavra
“cortar” se ajusta às circunstâncias, às atividades realizadas. No espaço vetorial que
segue, na Figura 1, o comprimento das setas horizontais representa a frequência com a
qual um instrumento cortante é usado (ou a probabilidade segundo a qual a palavra é
usada) considerando a minha experiência pessoal. Na imensa maioria dos casos,
quando corto algo, ou quando ouço alguém falar em cortar algo, é com uma faca. A
representação para o mesmo núcleo de sentido no idioleto de um lenhador ou de um
cirurgião resultaria em algo bem diferente. A seta vertical poderia ser prolongada
indefinidamente, permitindo a introdução de novos instrumentos cortantes (canivete
com raio laser, robô cortador de grama etc.). Como já foi dito, textura aberta não é e
não se explica em termos de ambiguidade.
“Separar ou dividir por meio de um corte”

Faca

Cortador
Machado
de grama

Bisturi

Figura 1 (elaborada pelo autor)

(No meu idioleto, o espaço vetorial para a palavra “cortar” poderia ser representado
assim)

***

73
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Minha hipótese de trabalho neste breve ensaio poderia ser descrita assim: as
disposições psicológicas, como as outras disposições (físicas), têm duas faces 4: uma,
objetiva, como realização física no cérebro dos agentes, e outra, subjetiva e,
propriamente, psicológica, como manifestação intencional. Conceitos, que são
disposições, podem ser analisados em termos funcionais (como Frege viu muito bem) e
que se manifestam nas suas aplicações. Os conhecimentos em geral são disposições;
mais especificamente, o conhecimento dos significados (a competência semântica) é um
conjunto enorme de disposições. A consciência também é uma capacidade. Sigo Lynne
Rudder Baker quando disse que “[u]ma pessoa é um ser consciente mesmo quando
dorme e deixa de manifestar consciência”5. A famosa “perspectiva em primeira pessoa”
é a manifestação de uma disposição. Na mesma veia, Simone Gozzano reconstrói as
propriedades fenomenais (qualia) como a manifestação de propriedades disposicionais6.
As disposições não funcionam em isolamento. Peter Geach dá o exemplo de um
aquecedor que tem a capacidade de aquecer e manter a temperatura de uma sala em
até, digamos, 28o C, sob a condição de que as janelas estejam todas fechadas. Um
dançarino experiente tem muito mais facilidade para aprender uma nova dança do
que um principiante, porque pode usar movimentos que já domina perfeitamente e
pode coordená-los com um novo ritmo, numa nova sequência. Uma violonista
experiente não demora para aprender uma nova melodia; ela já sabe todos os acordes,
e combiná-los de uma nova maneira dá pouco trabalho. A noção de repertório é
usada em teoria da ação desde Arthur C. Danto (1973). Os repertórios variam muito
de uma pessoa para a outra. Algumas podem mexer as orelhas, por exemplo, outras
não. A variedade cultural, a diversidade dos interesses, a educação e o trabalho fazem
o resto. Cada pessoa acaba tendo um repertório altamente específico, único. Isso se
aplica aos idioletos: nossos repertórios de disposições semânticas variam muito de
uma pessoa para a outra. Quem fala um segundo ou terceiro idioma, há pouco tempo,
tem um idioleto mais pobre do que os falantes nativos; quem estudou mais tempo ou
lê muito tem um idioleto mais rico em relação aos amigos com um grau de educação
formal inferior ou que lê menos etc.
4
Nancy Cartwright, What Makes a Capacity a Disposition? Center for Philosophy of Natural and
Social Sciences.
<Http://personal.lse.ac.uk/cartwright/PapersGeneral/what%20a%20capacity%20a%20disposition.pdf>
Em particular, p. 4 e 12.
5
L. Rudder Baker (2013, p. 175).
6
Ver S. Gozzano (2018).

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

As atividades se dividem em rotinas e sub-rotinas, elementos de nossos


repertórios. Normalmente, a formação de um plano apela exclusivamente para
possíveis elementos do repertório do agente. Uma rotina, na maioria dos casos, é algo
flexível, e um plano pode ser visto como uma disposição complexa. Conceitos
também são disposições, que se manifestam quando identificamos e classificamos
objetos, e o repertório de conceitos de um agente cognitivo pode ser muito diferente
do repertório de conceitos de outro; mas, em qualquer caso, é nosso repertório de
conceitos que alimenta nossa atividade judicativa.
Como já dito, as disposições não funcionam em isolamento. Elas são ativadas
em circunstâncias auspiciosas e se manifestam em pacotes. O nível de ativação não é o
mesmo para todas as disposições no mesmo pacote. Existe algo como uma hierarquia na
ativação das disposições. Uma comparação pode ajudar aqui. Alguém me pede para
contar as minhas férias em Pipa. Imediatamente pacotes de informações atravessam a
minha mente: a viagem até a praia de Pipa com a família (com vários detalhes
associados, nem todos da mesma importância), a chegada no hotel (com detalhes
associados), o primeiro banho de mar nas piscinas naturais na praia (com detalhes
associados), as refeições no restaurante (com detalhes associados) etc. Com certeza,
uma miríade de detalhes é deixada de lado nessa narrativa, por ser julgada irrelevante.
Mas são “disponíveis”, para mim, e fazem parte do grande pacote de informações sobre
minhas férias (a temperatura da água, o tom de voz particular do servidor no
restaurante, a limpeza do banheiro de nosso quarto etc., podem ser considerados
detalhes irrelevantes).
Isso vale, a fortiori, para as disposições psicológicas. Quando as circunstâncias
são auspiciosas e uma disposição é ativada, muitas outras são inevitavelmente ativadas.
Temos, para usar um termo que tomo emprestado de Willard van O. Quine, uma espécie
de “interanimação” das disposições. Sugiro a seguinte representação para níveis de
ativação.

Níveis e força da Ativação

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Figura 2 (elaborada pelo autor)

Acima da linha, a ativação é forte e imediatamente relevante para o agente; as


manifestações do pacote de disposições são diretamente acessíveis à consciência do
agente; abaixo da linha, as outras disposições são cada vez menos relevantes. A ideia é
que as disposições psicológicas sempre são ativadas em pacotes, e não isoladamente, e
isso se deve ao holismo dos conteúdos mentais, em particular, dos conteúdos
conceituais. O que temos aqui é algo que pode lembrar a Rede e o Background de
Searle por ter, grosso modo, a mesma função. No topo da pirâmide, acima da barra,
temos nossa atividade mental consciente, sempre apoiada na manifestação de nossos
repertórios de conceitos, conhecimentos, habilidades, competências, capacidades
fundamentais e propriedades fenomenais. Nossas atitudes proposicionais, por exemplo,
são individuadas pelo conteúdo. Como especificamos o conteúdo dos estados mentais
uns dos outros? Simples: usamos frases que pertencem a uma língua pública. Quando
Maria afirma que seu cabelereiro é socialista, ela expressa a crença de que seu
cabelereiro é socialista. Não se pode afirmar sinceramente que P e logo depois negar
que se tem a crença que P (paradoxo de Moore). Maria tem uma crença que envolve os
conceitos CABELEREIRO7 e SOCIALISTA. Esses conceitos têm relações com muitos
outros que não são plenamente ativados, como o de SISTEMA POLÍTICO, ou de
POLÍTICAS SOCIAIS FORTES etc. Além do mais, formamos a maioria de nossos
conceitos involuntariamente, sem nos dar conta disso, e estes também entram em
pacotes, mas normalmente com um nível de ativação baixo. Como dizia o grande
Michael Polanyi (1958, 1966): “Nós sabemos mais do que podemos dizer”.

***
Agora, podemos chegar à nossa conclusão: se aceitarmos o intencionalismo, a
tese plausível de que a intencionalidade é a marca do mental, podemos propor essa

7
Sigo aqui a convenção que consiste em usar maiúsculas para denotar conceitos. Assim, na frase
“Cavalos são quadrúpedes”, a palavra “cavalo” é usada para denotar os cavalos; em “cavalo tem seis
letras”, estamos falando da própria palavra. É a distinção tradicional entre uso e menção. Mas
“CAVALO” denota o conceito de cavalo.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

relação entre o intencional e o disposicional: o que é mental é intencional e o que é


intencional é a manifestação de disposições. Espero ter avançado na direção de uma
solução para ao problema mencionado no início: como um organismo vivo, portanto
algo físico, pode ter e manter estados que são acerca de outra coisa? Ao adotar um
disposicionalismo generalizado, podemos manter a intencionalidade e seu poder
explicativo como marca do mental e de tudo que depende de nossas atividades mentais.
O mental, a manifestação de disposições, é assim amarrado ao físico, pois não há
disposições sem uma base de realização física.

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS

CARTWRIGHT, N. What makes a capacity a disposition? Center for Philosophy of


Natural and Social Sciences.
<Http://personal.lse.ac.uk/cartwright/PapersGeneral/what%20a%20capacity%20a%20di
sposition.pdf>
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Studies, 164(2), 2013, p. 443-464.
GOZZANO, S. The dispositional nature of phenomenal properties. Topoi, 2018.
JANSEN, L. On ascribing dispositions. In: Kistler M. & Gnassounou, B. (Eds.).
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RYLE, G. The concept of mind. Londres: Hutchinson, 1949.
STALNAKER, R. On what’s in the head. Philosophical perspective 3: philosophy of
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77
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

_____. Narrow content. In: C. Anthony Anderson & Joseph Owens


(Eds.). Propositional attitudes: the role of content in logic, language and mind.
Stanford: CSLI, 1990, p. 131-146.
WAISMANN, F. Verifiability. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary
Volume XIX, 1945.

78
PSYCHOLOGICAL CONCEPTS IN COGNITIVE
NEUROSCIENCE: SOME REMARKS ON BENNETT &
HACKER’S PHILOSOPHICAL FOUNDATIONS OF
NEUROSCIENCE
Marcelo Carvalho
Universidade Federal de São Paulo

ABSTRACT: The use of psychological concepts in cognitive neuroscience is heavily


criticized by Bennett & Hacker's Philosophical Foundations of Neuroscience. The central
objection points to neuroscience's attribution to the brain of psychological concepts that are
meaningful only when applied to the entire being. That is supposedly the case of “seeing,”
“communicating,” and “reading.” Bennett & Hacker identify in such attributions what they call
a mereological fallacy. The critical revision of Bennett & Hacker's argument is an opportunity
to present the debate about philosophy and psychological neuroscience and outline a
Wittgensteinian perspective about the meaning of psychological concepts, its interest, and its
relevance to scientific research.

KEYWORDS: Cognitive Neuroscience. Philosophy of Mind. Wittgenstein.

RESUMO: O uso de conceitos psicológicos na neurociência cognitiva é fortemente criticado


por Bennett & Hacker em Philosophical Foundations of Neuroscience. Sua objeção central
dirige-se à atribuição ao cérebro pela neurociência de conceitos psicológicos que são
significativos apenas quando aplicados a todo o ser. Esse é supostamente o caso de “ver”,
“comunicar” e “ler”. Bennett & Hacker identificam em tais atribuições o que eles chamam de
falácia mereológica. A revisão crítica do argumento de Bennett & Hacker é uma oportunidade
para apresentar o debate sobre filosofia e neurociência psicológica e delinear uma perspectiva
wittgensteiniana sobre o significado dos conceitos psicológicos, seu interesse e sua relevância
para a pesquisa científica.

PALAVRAS-CHAVE: Neurociência Cognitiva. Filosofia da Mente. Wittgenstein.


PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

1.
For most right-handed people only the left hemisphere can speak or
communicate through writing. It also rules most of the capacity to deal with
language, although the right hemisphere may understand spoken words to a
limited extend and probably deals with the music of speech. When the
callosum is cut, the left hemisphere sees only the right half of the visual field;
the right hemisphere, the left half. Each hand is controlled by the opposite
hemisphere, although the other hemisphere can produce some of the coarser
movements of the hand and arm. Except under special conditions both
hemispheres can hear what is being said...1

With this description of the effect of a commissurotomy, Francis Crick intends


to show that understanding and communicating through writing are functions of the left
part of the brain. “What different brain regions do,” and how can they do it, are among
the main questions in neuroscience. 2 These problems are not strange to philosophy,
Descartes being the more evident of the authors associated with it, in a tradition that
goes back to Plato and Aristotle.3 M. Bennett & P. Hacker’s Philosophical Foundations
of Neuroscience have, in its core, the idea that descriptions like the one presented by F.
Crick make a problematic use of psychological concepts and entangle cognitive
neuroscience in error and confusions. The problem is what Bennett & Hacker
characterize as the mistaken attribution of understanding, seeing, expecting, etc., to the
brain. This kind of use of psychological concepts is, they say, “a source of much further
confusion.” 4 Crick’s description is only one example of what supposedly is a vast
problem that pervades cognitive neuroscience:

the characteristic form of explanation in contemporary cognitive neuroscience


consists in ascribing psychological attributes [perceiving, thinking, guessing
and believing] to the brain and its parts in order to explain the possession of

1
CRICK, 1995, p. 169f.; after BENNETT & HACKER, 2014, p. 388-9.
2
BECHTEL, MANDIK & MUNDALE, 2001, p. 4-7.
3
Cf. e.g., DESCARTES, 1996, VOL 11 (Les passions de l’ame), Art. 31-31.
4
BENNETT & HACKER, 2014, p. 3.

80
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psychological attributes and the exercise of cognitive power by human beings.5

Revising the use of the traditional psychological vocabulary is a relevant


philosophical project, not only to identify mistakes and problems in it, as Bennett &
Hacker propose, but also to make clear their complex relationship with our ordinary
language games, and the way they revise and change it. Variation in the way we use
words is not a problem. It is the very reason for Wittgenstein introducing the concept of
“language games.” According to him, concepts do not have clear limits or follow fixed
rules.6 Therefore, F. Crick’s ascription of vision to the brain is not an exception or a
problem in itself. But it should be asked, for example, the consequences of saying, for
example, that “I have a picture of it in my mind” is synonymous with “I remember it.”
In the same way, we should ask about the relationship between Crick’s use of
“understanding” and our ordinary use. Beyond that, we should be cautious about the
philosophical consequences, if any, of such uses of “understanding” and “mind.” Do
they have a place in our practices? Are they connected with our experiences?
Bennett & Hacker have a very critical position about the use of psychological
concepts by cognitive neuroscience. Instead of presenting Wittgenstein as the primary
source of their investigations7, this criticism resorts to philosophical conceptions that are
closer to the heritage of Plato and Kant. They describe their work, for instance, in an
uncomfortable vocabulary, as a “conceptual hygiene” that results in “[liberating]
neuroscience from various forms of incoherence and from bogus mysteries, which are
generated by current conceptual confusions.” The consequence of that is “elucidating
the conceptual scheme that determines the psychological concepts with which
neuroscience actually works, but which they inadvertently misuse.”8
The complex set of ideas and presuppositions outlined in Philosophical
Foundations of Neuroscience may be organized as follows:
A1) It may be established a clear boundary between philosophy and science;
A2) Philosophical investigations precede anything of empirical;

5
BENNETT & HACKER, 2014, p. 3.
6
Wittgenstein says that “we can draw a boundary [for a concept] – for a special purpose. Does it
take this to make the concept usable? Not at all! Except perhaps for that special purpose.”
WITTGENSTEIN, 2009, 69.
7
BENNETT & HACKER, 2014, p. 71 and p. 97-103.
8
BENNETT & HACKER, 2014, p . 114.

81
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

A3) Consequently, philosophy is responsible for the foundations of any science,


particularly of neuroscience;
A4) But the conceptual revision proposed by philosophy leaves the results of
neuroscientists untouched;
B5) There is a correct and meaningful use of psychological terms;
B6) Neuroscience does not use psychological terms correctly;
B7) The correct use of psychological concepts is that of ordinary language, and
it is the result of a (behavioral) criteria for the attribution of psychological terms;
C8) The mistakes of neuroscience in its use of psychological concepts are the
consequence of a mereological fallacy;
C9) This fallacy comes from cognitive neuroscience having its origin in the
Cartesian tradition;
C10) Eliminating the mereological fallacy results in hygienising neuroscience’s
vocabulary.
These suppositions are problematic in themselves and in their relationship with
each other. In what follows, we will review some of them to understand Bennett &
Hacker’s project and its place in the philosophical debate. The result is the outline of an
alternative, Wittgensteinian perspective on the relevance of philosophical investigations
to psychology and neuroscience. To do that, we will survey Bennett & Hacker’s
conceptions about the relationship between philosophy and (neuro)science, their
criterium for the correct use of a concept, and their description of the “mereological
fallacy,” confronting all that with Wittgenstein’s late philosophy.

2.
Central to Bennett & Hacker’s description of their project is that the conceptual
investigation they propose, notwithstanding its relevance, “leaves” neuroscientist’s
achievements “as they are.”

Abandoning the style of though that is enmeshed in the mereological fallacy in


neuroscience (...) will not deprive neuroscientists of any of their hard-won and
remarkable achievements. On the contrary, it will enable those achievements to
9
be seen clearly (...).

9
BENNETT & HACKER, 2014, p . 114.

82
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

It is not easy to understand how it is possible. Bennett & Hacker’s criticism is


vast and seems to imply that there are confusion and fallacy in every relevant
achievement of neuroscience. It seems to demand a revision of all its descriptions and
conclusions, undermining the very existence of this science.
The idea that neuroscience is immune to the philosophical debate results from a
particular appropriation of paragraph 124 of the Philosophical Investigations, where
Wittgenstein says that:

Philosophy must not interfere in any way with the actual use of language, so it
can in the end only describe it. / For it cannot justify it either. / It leaves
everything as it is. / It also leaves mathematics as it is, and no mathematical
discovery can advance it.10

However, Philosophical Foundations of Neuroscience presents an interpretation


of this remark that is closer to Kant than to Wittgenstein. According to it, empirical
science has a conceptual schema at its foundation. This conceptual schema determines
(like a transcendental schema) how we understand and describe our experiences. As a
consequence, instead of not being part of our experiences and having no empirical
impact, a philosophical analysis puts concepts in order. It makes adjustments in the
conceptual basis that formally precedes any empirical investigation, within which
empirical science works. The relationship between the conceptual schema at the
foundation of neuroscience and the descriptions of its results are presented by Bennett &
Hacker in the following terms:

These categories of concepts [use in ordinary psychological descriptions], and


the more specific concepts that they subsume, are the spectacles through which
psychological phenomena are viewed and understood. If these spectacles are
11
askew, then neuroscientists cannot but see the phenomena awry.

They propose to elucidate “the conceptual scheme that determines the

10
WITTGENSTEIN, 2009, 124.
11
BENNETT & HACKER, 2014, 115; this also implicitly refers to WITTGENSTEIN, 2009,
103.

83
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

psychological concepts, with which neuroscientists actually work, but which they
inadvertently misuse.”12 The assertion that a conceptual scheme stands at the foundation
of neuroscientific research implies (in this context) that it determines the description of
the results of this research and of experience in general. Any such result is to be viewed
only through the glasses of a particular conceptual scheme. It follows that, “meaning
precedes truth,” conceptual investigation precedes empirical science, and that Bennett &
Hacker’s philosophical criticism precedes (neuro)science.13
Instead of comparing conceptual schemes to glasses, Bennett & Hacker refuse
and criticize Helmholtz’s supposition that perception involves the development of an
unconscious hypothesis based on inductive inferences from the senses. According to
Bennett & Hacker, this theory is incorrect, among other reasons, because

Perceptions cannot be conclusions of unconscious inferences the premises of


which are unconscious and more or less indescribable sensations and
(unconscious) generalizations about the correlations between past sensations
and objects perceived. (...) To perceive something is not to form a hypothesis.14

The concept of “hypotheses” in Helmholtz’s theory seems very close to the


spectacle metaphor used by Bennett & Hacker. Both are succedaneums to the Kantian
distinction between phenomenon and thing-in-itself, and the correlated supposition that
what we recognize as “our experience” results from an active interference from a
transcendental schema. The spectacle metaphor has its origin in a Kantian context. It is
part of a famous description of Kant’s philosophy made by Heinrich von Kleist in a
letter from 1801.15 In The Big Typescript, Wittgenstein uses Kleist’s metaphor in a sense

12
BENNETT & HACKER, 2014, 144 (italics added); “It [the crypto-Cartesianism of
contemporary neuroscience] leads to incoherent descriptions of the results of neuroscientific
research, and sometimes to the formation of incoherent research programs.”
13
“Whether a hypothesis makes sense must be settled in advance of determining its or its
evidential support” (BENNETT & HACKER, 2014, 382). This idea finds explicit support in
Wittgenstein’s earlier works, the Tractatus and in the Philosophical Remarks.
14
BENNETT & HACKER, 2013, p. 9.
15
“I recently became familiar with the more recent, so-called Kantian philosophy, and I may
impart one of its leading ideas to you without fear of its shattering you as deeply, as painfully,
as it has me. For, after all, you are not versed enough in the whole matter to grasp its import
completely. I shall therefore speak as clearly as possible. If everyone saw the world through
green glasses, they would be forced to judge that everything they saw was green, and could
never be sure whether their eyes saw things as they really are, or did not add something of

84
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that is close to Kant’s philosophy. In the Philosophical Investigations16, however, the


core of his mature work, it appears in a new context and with a different meaning that
does not support a Kantian interpretation.17 The idea of a conceptual schema is part of
an idealist perspective that the Philosophical Investigations explicitly refuses.18
The widely stressed independence between neuroscience’s foundations (its
conceptual schema) and its results19 raises some questions that do not find easy answers
in Bennett & Hacker’s book. If it is true, it implies the irrelevance of their work, at least
to empirical scientists. If all the “hard-won and remarkable achievements” of cognitive
neuroscience are left untouched and if these achievements are obtained without the
hygienizing proposed by Bennett & Hacker, this entire job seems to be fruitless, or at
least dispensable (from its own perspective). The relevance of such an investigation
seems to be in the opposite way: it results in an adequate foundation for scientific
research. How can that be without any empirical consequence? The authors only say
that they intend to remove confusion, leaving the achievements untouched. But where
are the consequences of such confusion, however, if not in the results of scientific
investigations? Bennett & Hacker say, in a positivistic-tractarian vocabulary, that
neuroscientific theories “transgress the bounds of sense” and that their philosophical
criticism intends to prevent us from “talking nonsense.” 20 But if nonsense is not in
neuroscience’s achievements, and if all the results remain as they are, why is the entire
project worth at all?
That the Philosophical Investigations do not give clear support to assert the
immunity of psychological neuroscience to philosophical criticism is, paradoxically, a
conclusion found in G. Baker & P. Hacker’s commentary of the same paragraph of

their own to what they saw. And so it is with our intellect. We can never be certain that what
we call Truth is really Truth, or whether it does not merely appear so to us. If the latter, then
the Truth that we acquire here is not Truth.” KLEIST, 1982, p. 95.
16
WITTGENSTEIN, 2009, 103.
17
For the critique of the orthodox interpretation about the relationship between Wittgenstein’s
middle period works (The Big Typescript, Philosophical Grammar) and the Philosophical
Investigations, cf. STERN, 2004; ENGELMANN, 2013; MEDINA, 2002; CARVALHO, 2014.
18
For Wittgenstein’s use and criticism of the idea of a “schema”, cf. WITTGENSTEIN, 2009,
73, 86, and 134-6.
19
BENNETT & HACKER, 2014, p. 114; “[It] will not deprive neuroscience of any of their
hard-won and remarkable achievements. On the contrary, it will enable those achievements to
be seeing clearly, striped of the conceptual confusion in which they are currently all too often
wrapped.”
20
BENNETT & HACKER, 2014, p. 116.

85
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Wittgenstein. Reversely, Understanding and Meaning implies a revision of the assured


independence of neuroscience’s results.

If, ‘in psychology there are experimental methods and conceptual confusion’
(PI p. 232/197), philosophical investigation into psychological concepts will
affect empirical psychology, for it may show that some questions are senseless,
that some experiments rest on incoherent presuppositions, and that some
experimental results do not prove what they are held to demonstrate.21

From another, more uncomfortable perspective, the independence between


conceptual schema and the findings of psychological neuroscience seems to imply that
the discoveries of neuroscience are “hard facts” that remain the same whichever
description we give of them, even after revising its fundamental conceptual schema.
This idea is not easily maintained or conciliated with the centrality that Bennett &
Hacker attribute to (psychological) concepts in their (Kantian) approach.
Following one example of Bennett & Hacker’s criticism of neuroscience’s
vocabulary makes more explicit what they suppose that remains the same after a
conceptual hygienizing. The result of a commissurotomy is, in Francis Crick’s words,
that “one half of the brain appears to be almost totally ignorant of what the other half
saw.” 22 Roger Sperry describes the relationship between the two hemispheres of the
brain in the following terms:

both the left and the right hemispheres may be conscious simultaneously in
different, even in mutually conflicting, mental experiences that run along in
parallel.23

The experiment that supports this conclusion goes as follows. After the
commissurotomy, the patient is presented to different pictures in his right and left visual
fields. He describes what he sees with his right side as a “normal person” (a person
without a commissurotomy) does. If, however, a picture is shown to his left side (to his
right, “non-speaking” hemisphere), “the results are quite different.”

21
BAKER & HACKER, 2009, p. 266.
22
After BENNETT & HACKER, 2014, p. 389.
23
After BENNETT & HACKER, 2014, p. 389-90.

86
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

The left hand (largely controlled by this non-speaking hemisphere) can point to
and identify unseen objects by touch (...). But when the patient is asked to
explain why his left hand behaves in that particular way, he will invent
explanations on the basis of what his left (speaking) hemisphere saw, not on
what his right hemisphere knew.24

Bennett & Hacker refuse attributions of consciousness and speech to the brain or
its parts, like the ones that are used in this description. As an alternative, they propose to
present the experiment’s result in the following way:

The light stimulus (...) affected the right hemisphere, the severance of which
from the left hemisphere deprived the patient of the ability to describe or be
visually aware of what was present to him on the left of his visual field,
although, remarkably, he was, by pointing, able to associate correctly what was
there (...). Nevertheless, he did not know why he made that association (not
being aware of the snow scene presented to him [to the right hemisphere]), and
confabulated a tale to explain why he has done so (a confabulation comparable
to those produced by subjects to explain their post-hypnotically suggested
behavior). This, in turn, is (crudely) explicable by reference to the fact that the
visual stimulation of the right hemisphere is disconnected from the left
hemisphere, so that the patient is deprived of his normal cognitive capacity to
be visually aware of what is presented to him and to recognize and describe
familiar objects that are thus presented. It does not, however, deprive him of
the ability to associate what was visually presented to him on the screen with
an appropriate object (...) – but without knowing why he is doing so. / It is
senseless to speak of the right hemisphere observing the action of the left hand,
for neither hemispheres of the brain can observe or fail to observe anything at
all.25

This alternative description substitutes expressions like “what the right


hemisphere saw” by “the affection of the right hemisphere by the light stimulus,”

24
After BENNETT & HACKER, 2014, p. 389.
25
BENNETT & HACKER, 2014, p. 392.

87
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something that does not seem central to the argument. It also avoids talking about what
the right or the left hemispheres do know since hemispheres “cannot be either aware or
unaware of anything,” only human beings can do that.26 But as a result, the description
proposed by Bennett & Hacker is not able to explain why there are different reactions to
what is presented to different sides of the brain (a consequence, in Crick’s description,
of their different “abilities” and the lack of “communication” between them after the
commissurotomy). To Bennett & Hacker, only human beings can communicate. How is
it possible to explain that the patient in the example does not present a plausible verbal
justification of his choice without asserting that the linguistic ability resides mainly in
the left side of the brain, and that, as a consequence, the split-brain is not capable of
talking about what is presented only to its right hemisphere, instead of being, in a clear
sense of the word, aware of it? Bennett & Hacker’s alternative description does not give
us a full and plausible explanation about the experiment’s results. The vocabulary’s
revision they propose seems to be either irrelevant or unacceptable.
We may also ask what are the facts in the experiment? What remains the same
after changing the description? Is the statement that the light stimulus affects the right
side of the brain (made by Bennett & Hacker) a fact? Is it independent of any conceptual
schema? Doesn’t it imply attributing awareness or sensibility to parts of the brain? Will
this fact be the same in any different conceptual schema? What is the relevance, then, of
a conceptual schema? How can we draw the line between what is a fact and what
changes with the conceptual schema? It is not clear how these questions can be
answered within Bennett & Hacker’s framework. In the end, if all our descriptions
depend, at least partially, on the concepts we use, how is it possible to say that the
philosophical investigation proposed in Philosophical Foundations of Neuroscience
does not undermine neuroscientist’s empirical results?
There is a remaining question about the relationship between the book’s
perspective and Wittgensteinian philosophy. That the ideas of conceptual “hygienizing”
and “determination by a conceptual schema” do not find support in Wittgenstein’s
Philosophical Investigations, as we assert, do not have relevance only as part of a debate
in the history of philosophy, about how to read Wittgenstein. The conceptions presented
by Bennett & Hacker are, in fact, close to some ideas from Wittgenstein’s work in his
middle period, particularly to the Philosophical Remarks (1930) and The Big Typescript

26
BENNETT & HACKER, 2014, p. 391.

88
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(1932-3). But they are sharply criticized in the Philosophical Investigations.


Wittgenstein’s mature work presents a critique of his earlier concept of grammar (that
is, of his particular version of a “conceptual schema”) that make clear the mistakes and
consequences of Bennett & Hacker’s ideas about the role of concepts in science and
experience and present an alternative perspective to this debate. Doing so, Wittgenstein
offers a new and relevant alternative to the Kantian ideas about the relationship between
concepts and practices, and, in this particular case, between philosophy and
psychological neuroscience.

3.
Bennett & Hacker’s conceptions of “philosophical foundation of science” and
“conceptual hygiene,” 27 do not have a place in the Philosophical Investigations. The
Investigations rarely refers to foundations, and never in Bennett & Hacker’s sense. The
unique exception to that is the very last remark of the PPF28, where Wittgenstein says
that the investigations about psychology that he presents are also possible in
mathematics and that they are not psychological or mathematical investigations. He says
that “it might deserve the name of an investigation of the ‘foundations of mathematics’”
(echoing the same expression that appears in the “Preface”). Instead of it, Wittgenstein
criticizes foundationalism in many other places, particularly in his Remarks on the
Foundations of Mathematics (a book that received from its editors a title that contradicts
its content). Wittgenstein does not present his philosophical work as an analysis or a
search for foundations, but as clarification.

What does mathematics needs a foundation for? It no more needs one, I


believe, than propositions about physical objects – or about sense impressions,
need an analysis. What mathematical propositions do stand in need is a
clarification of their grammar [Klarlegung ihre Grammatik], just as do those
other propositions.29

That mathematics does not need a foundation does not imply that there is no

27
Cf. BENNETT & HACKER, 2014, p. 116.
28
WITTGENSTEIN, 2009, PPF, xiv, 372. Another relevant reference can be found in
Wittgenstein’s “Preface”.
29
WITTGENSTEIN, 1978, VII, 16; Cf. also MÜHLHÖLZER, 2010, I, 1.

89
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foundation for our knowledge or our use of language. In On Certainty Wittgenstein


presents a very interesting conception about this subject, concluding that what lies at the
foundation of “all our operating with thoughts” and language are not the propositions of
logic, but “propositions of the form of empirical propositions,” which “do not serve as
foundations in the same way as hypotheses which, if they turn out to be false, are
replaced by others.”30 The distinction between what is an “empirical” proposition and
what is a “grammatical” one does not result from their form, but of the way we use them
in our practices. The entire work of philosophy consists, then, in clarifying our use of
language, our practices. Therefore, there is no conceptual system at the foundation of
our knowledge claims; there is only an “ungrounded way of acting.”31 The clarification
that Wittgenstein proposes is not something that may be described as conceptual
hygiene.
The Philosophical Foundations of Neuroscience has, in its core, the supposition
that neuroscience is full of conceptual errors, confusions, and nonsense. What is the
context that makes it possible to talk about errors this way? Why saying that “the brain
feels...”, like in F. Crick’s description, is an “error”? How is it possible to determine
what is right and wrong in neuroscience’s use of these words?32
For Wittgenstein in the Philosophical Investigations, understanding a word is to
understand its use in particular contexts, as part of our practices. As a result, the

30
WITTGENSTEIN, 1974, 401-2.
31
WITTGENSTEIN, 1974, 110; cf. CARVALHO, 2016.
32
Prescribing a correct use of language is not easily adjustable to Wittgenstein’s later
philosophy. It becomes clear to him in the early 1930s that he could not talk about a connection
between language and something outside it, and that his analysis remains “inside language.”
Even in an ostensive definition, “there is no confrontation of a sign with reality.” According to
this intermediary conception, the meaning is relative to grammar. In the Philosophical
Investigations, however, the concept of “grammar” does not have the same use that it had in the
middle period, and it is not as relevant as it was before. From this latter perspective, the
previous use of “grammar” was idealist, formalist, and still shared a residual referentialist
perspective. It is particularly clear in the intermediary conception of “rule,” strongly criticized
by Wittgenstein in the Philosophical Investigations. From this new perspective, a word has
meaning only in the context of forms of life, of a culture. The first thing to do when we are
presented to a new word, in a new context, is asking how people use it. The ordinary mistakes
in the use of concepts are relative to these contexts. Philosophy may only show, for example,
that we suppose to attribute use to some expressions when, in fact, we do not. This seems to be
the case of the word “know” in expressions like “I know I have a pain”. The problem here is
not a particular use of “to know” that is absolutely forbidden and nonsense, but that we, in our
practices, do not attribute a use, a meaning, to it, and, as a consequence, that we cannot point to
an effective case in which we mean it, we cannot identify any difference between saying “I
know I have a pain” and saying “I have a pain.”

90
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meaning is not given as a hierarchical system, with foundations and fixed


determinations. If meaning arises only in the use of a word, it is not possible to be
prescriptive about it. Saying that philosophy leaves “everything as it is”33 points to an
absolute lack of ground to prescribe the use of a word. The determination of meaning
by a rule or the reference to an object is not even possible, as we learn in the debate
about “private language.” There is no absolute standard of right and wrong to which we
must adjust our language games.
But there are things that we recognize as mistakes and confusion. We may argue
against particular uses of a word and certain perspectives. But that has nothing to do
with “conceptual hygiene.” In his Lectures on Aesthetics, Wittgenstein tries to make
clear the nature of this work as a fight to persuade about how to understand what is
before us:

What I’m doing is also persuasion. If someone says: “There is not a


difference”, and I say: “There is a difference” I am persuading, I am saying “I
don’t want you to look at it like that.”34
I am in a sense making propaganda for one style of thinking as opposed to
another. I am honestly disgusted with the other. Also I’m trying to state what I
think. Nevertheless I’m saying: “For God’s sake don’t do this.” E.g. I pulled
Ursell’s proof to bits. But after I had done, he said that the proof had a charm
for him. Here I could only say: “It has no charm for me. I loathe it.”35

There are different descriptions in dispute, and there is no independent or


absolute instance to settle it. Our everyday use of language does not remain unchanged
face to anything that changes our lives – science, for example. It is open and changes all
the time. We may evaluate new uses and their context, and we may conclude, for
example, that saying that “the brain sees” something or that its left side “communicates”
with its right side may lead to confusion and may be mystifying. We may try to
persuade neuroscientists to use different concepts. But Bennett & Hacker’s conception
about the foundation of cognitive science is something quite different and is far from
what we find in Wittgenstein’s later philosophy.

33
WITTGENSTEIN, 2009, 124.
34
WITTGENSTEIN, 1966, p. 35.
35
WITTGENSTEIN, 1966, p. 37.

91
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

4.
Bennett & Hacker seems to conceive that the “mereological fallacy” is a
pervasive problem in psychological neuroscience.

A cardinal conceptual error of so much current cognitive neuroscience is that it


ascribes to the brain attributes that it makes sense to ascribe only to the animal
as a whole. In so doing, contemporary neuroscience commits what we called ‘a
mereological fallacy.’ Strikingly, neuroscience ascribes to the brain much of
the same range of properties that Cartesians ascribed to the mind. It thus
operates with a conceptual scheme that is roughly isomorphic with Cartesian
36
dualism.

The debate about the mereological fallacy refers to an argument from Aristotle’s
De Anima: “to say that the soul [psyché] is angry is as if one were to say that the soul
weaves or builds. For it is surely better not to say that the soul pities, learns or thinks,
but that a man does this with his soul”.37 Aristotle’s assertion that it is “better not to”
attribute anger to the soul is part of his argument in support of a particular conception
about the soul. It is not a general contraposition to any such attribution. Bennett &
Hacker’s argument, by its turn, is not circumscribed to particular language games with
the concepts of “soul” and “brain.” It is a logical objection to any attribution of
psychological concepts to the brain. It also presents a general demand for a specific kind
of criterion to the use of psychological concepts. A strikingly result of accepting their
argument seems to be that we are not allowed to say about the soul that it knows, feels,
dies, etc., since all our criteria for attributing these concepts refer to body actions, not to
the soul.
Bennett & Hacker relate the mereological fallacy also to Descartes’ Homunculus

36
BENNETT & HACKER, 2014, p. 111. “Like Cartesianism, it [cognitive neuroscience]
ascribes psychological attributes to a part of a human being. Furthermore, it explains the
possession of psychological attributes by a human being by reference to the psychological
attributes allegedly ascribable to a part of the human being, namely, to the brain. This (…) is
not an error of fact, but a logical or conceptual error.” (BENNETT & HACKER, 2014, 111);
“It comes to this: Only of a human being and what resembles (behaves like) a living human
being can one say: it has sensations; it sees, is blind; hears, is deaf; is conscious or
unconscious.” (WITTGENSTEIN, 2009, 281)
37
ARISTOTLE, 2016, 408b, 12-
15.

92
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argument. In the Dioptrics, Descartes rejects the supposition that the eye produces an
image that is sent to the brain.38 If there is an image in the brain, there must be another
eye to see it (hence the homunculus), which, by its turn, produces another image,
leading to an infinite regress. Descartes’s intention is to refuse the demand for an
explanation about how the “inverted image” produced in the eye is “corrected” in the
brain. The Homunculus argument is interesting and useful but is different from that of
Aristotle. It is useful to contrapose the supposition that there are images in the brain (or
in the mind). However, it does not imply or support that there is a mereological fallacy.
There is no reason in Descartes’ argument to suppose that a mereological fallacy is a
problem in the attribution of seeing to the brain, instead of being possible to reformulate
his argument as a mereological fallacy.
In a reformulation of their argument about the mereological fallacy, Bennett &
Hacker say that we do not have a criterion for the attribution of thinking to the brain,
only to an entire animal. This is a general argument against any kind of “reductionism.”
The problem with it is to know how we should understand the demand for a criterion
for the use of a word. Bennett & Hacker’s conception about it seems close to that of N.
Malcolm in his presentation of what he supposes to be Wittgenstein’s “private language
argument.” Malcolm demands a public or behavioral criterion to determine the reference
of a word. “Only by being associated with criteria could a word mean something.”39 It
follows that sensation terms are “conceptually tied to criteria with behavioral conditions
of satisfaction”40. These criteria are, in the end, behaviors, and Malcolm’s demand is
“essentially a form of the old verificationist dogma of the Vienna Circle.”41

To run together one use of ‘criterion’ which is oriented towards verification


with another whose orientation is toward meaning is to make the notion of
‘criteria’ carry essentially the burden of a verificationist theory of meaning.42

This seems to be precisely the case of Bennett & Hacker’s use.

38
Cf. DESCARTES, AT VI, 130: “as if there were yet other eyes within our brain by mean of
which we could perceive [an image resembling an external object];” cf. also COTTINGHAM,
2008, p. 19-20, and KENNY, 2008, p. 172-3.
39
NIELSEN, 2008, p. 77.
40
NIELSEN, 2008, p. 92.
41
NIELSEN, 2008, p. 92.
42
BUCK, 1962, p. 196, apud NIELSEN, 2008, p. 92.

93
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

We ascribe pain to a person or an animal on the basis of their behavior


(including their verbal behavior). If a person injures himself and screams or
groans, (...) we take such pain-behavior in these circumstances to be justifying
grounds or evidence for ascribing pain to the person. / Pain-behavior is a
criterion – that is, logically good evidence for being in pain – and perceptual
behavior (...) is a criterion for the animal’s perceiving.43

There is well-established literature showing that behind the kind of demand for
criteria presented by Malcolm lies the positivist concept of verification.44 But even if we
accept such a request, a neuroscientist could still answer that they may present clear
criteria for their attribution of psychological concepts, clearer than human behavior:
thinking and seeing is identified and situated in the brain by an MRI while the person
answers some question or sees an image. It can even be shown that the same process
happens in every instance that a perception or memory is accessed. Neuroscientists are
not simply attributing to parts of the body what may be assigned only to the whole body.
Otherwise, they would also conclude that feet also think and see. They have reasons for
saying that thinking happens in the brain, that it is a brain process – the MRI, for
instance. Beyond that, if we apply the mereological argument to other contexts, we will
also reject, together with saying that the brain thinks, that Earth moves and that we
know somebody is sick because we have a lab exam, and not because we can identify
specific symptoms.
From a Wittgensteinian point of view, there is no clear-cut and stable use or
meaning of a word: uses constitute families. Wittgenstein’s “private language
argument,” for instance, is not an investigation about the criteria for applying some
psychological words, but about the way we use them, with the intention of making clear
that some uses of psychological concepts are not what they seem to be. Meaning is
understood as the effective use we make of words. How can that conciliate with Bennett
& Hacker’s supposition that they shall “sketch out the conceptual framework for
neuroscience”?45 Transposing ordinary psychological vocabulary to descriptions about
the brain presents real problems. It is not evident that the vocabulary may be changed

43
BENNETT & HACKER, 2014, p. 81-82.
44
MALCOLM, 1954, p. 530-559.
45
BENNETT & HACKER, 2014, p. 114.

94
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

this way without originating obscurity and confusion. Neuroscience’s uses of


psychological concepts may be problematic, but not because they result from a fallacy.
The question we may present is not about the logical correctness of the use of a
concept. We do not have any criteria for that. According to Wittgenstein, our task is to
describe new contexts of use, identifying its peculiarities, ambiguities, and limits, aware
that any word is used with blurred edges and that there is no absolute clarity.
Cognitive Neuroscience has an extensive superposition with traditional fields of
philosophical research. Descartes’ homunculus fallacy, for example, is a relevant
argument in the contemporary debates about vision and perception. 46 The interest of
research on philosophy and neuroscience is both in clarifying the use of cognitive and
psychological vocabulary and in revising philosophical conceptions that are under the
direct impact of these studies. This kind of interplay is strongly absent in Bennett &
Hacker’s work. Their idea that philosophy precedes and is independent of scientific
research implies that it is not open to the fruitful results of psychological neuroscience,
to their new and relevant use of concepts. Their position is strongly prescriptive and
conservative in their attitude about concepts (instead of their explicit denial of that). A
different conception about the meaning of concepts, a different perspective on
Wittgenstein’s mature work, may result in a more relevant intervention in the debate
about philosophy and psychological neuroscience.

5.
In an exemplary fragment of the Philosophical Investigations, Wittgenstein
evaluates the translation of psychological concepts into brain processes. It is part of the
debate about the criteria for saying that a student is reading a word (instead of
“accidentally” saying it). After a certain point, repetition in the student’s behavior may
lead to that conclusion. But the question “about that first word” remains: “the change
when the pupil began to read was a change in his behavior; and it makes no sense here
to speak of ‘a first word in his new state’.”47

But isn’t that only because of our too slight acquaintance with what goes on in
the brain and the nervous system? If we had a more accurate knowledge of

46
NÖE, 2006, p. 39-44.
47
WITTGENSTEIN, 2009, 157.

95
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

these things, we would see what connections were established by the training,
and then when we looked into his brain, we would be able to say: “Now he has
read this word, now the reading connection has been set up.” — And it
presumably must be like that – for otherwise how could we be so sure that there
was such a connection? That it is so is presumably a priori – or is it only
probable? And how probable is it? Now, ask yourself: what do you know about
these things? — But if it is a priori, that means that it is a form of representation
48
which is very appealing to us.

If more accurate knowledge about the brain could unveil that psychological
concepts correspond to brain processes, one could look at the student’s brain and search
for the first event of “reading.” It would allow us to identify the first word the student
read, the first time “the reading connection has been set up.” Things being so, one could
suppose that a brain process, not the student’s behavior, is what is called “reading.” The
discomfort with not being possible to point to the “one thing” that we call “reading” is
what leads, in Wittgenstein’s example, to the search for something hidden in the brain.
A brain process is, supposedly, the thing that “is the meaning” of “reading.” The
situation is similar to the one Wittgenstein describes ironically in his commentaries
about ostensive definitions:

And we do here what we do in a host of similar cases: because we cannot


specify any one bodily action which we call pointing at the shape (as opposed to
the color, for example), we say that a mental, spiritual activity corresponds to
these words. / Where our language suggests a body and there is none: there, we
49
should like to say, is a spirit.

The brain process plays the role of a hidden thing meant by “reading.” Against
this conception, Wittgenstein contraposes the central idea of the Philosophical
Investigations, that meaning does not presuppose or imply reference. We play language-
games with words, they have a place in our actions, in our forms of life. The use of a
words presupposes training, not definitions. That a word or sentence is meaningful
results from our practices, not from a fixed relationship between sounds and “things” (or

48
WITTGENSTEIN, 2009, 158.
49
WITTGENSTEIN, 2009, 36.

96
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

processes) in the world. We say the student is reading as a reaction to his behavior. That
is the game we were trained to play with this word. As a consequence, we cannot
determine the first word and sentence he read. The idea that the meaning of
psychological concepts is a brain process insists on finding “something” that is reading,
hidden behind our use of that word. It is accessory in supporting the conception about
meaning that Wittgenstein is criticizing in the Philosophical Investigations.
The problem Wittgenstein sees in presenting brain processes as the meaning of
psychological concepts (or, at least, the criterium for ascribing such concepts) is not the
mereological fallacy that could be identified, for example, in saying that “the mind
reads.” The problem is that moving the reference of a word to inside the brain does not
solve the initial problem. How is it to be identified the particular brain processes
correlated to specific psychological concepts? It is determined either a priori (as a
necessary connection) or as something inferred from experience (and only probable).
Saying that it is a conclusion from experience means that the assertion that the student is
reading at a certain time is what allows us to associate reading with what is
simultaneously happening in his brain. This is an empirical inference, and the possibility
of misidentifying the proper mental process is always present. Any conclusion about
such a connection must be confronted with our preliminary recognition that the student
was reading. Our final criterium for ascribe “reading” is, therefore, still the student’s
behavior. The translation of psychological concepts to brain processes seems to be a
paraphrase of the habitual use of these concepts.
If we say, on the other hand, that the connection between “reading” and a
particular process in the brain is necessary and a priori, Wittgenstein concludes that “it
is a form of representation [Darstellungsform] which is very appealing to us.” To be a
priori, the correlation should be set as a definition. We do not discover brain processes
behind the use of such concepts, we assert them as the meaning of psychological
concepts – even when it is not congruent with our everyday use of “reading,” for
instance. There is no problem with such definitions, but the result is that we have a
different concept, and, in the end, there is no reason to suppose that there is a
correlation between brain processes and ordinary psychological concepts.
Wittgenstein’s remarks about “reading” and brain processes are exemplary of his
perspective on the use of psychological concepts in neuroscience. It potentially involves
a mistaken conception about meaning as a reference relationship. The reason for
searching the brain processes correlated to “reading” is often to assure referentiality to

97
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

this concept. Beyond that, to assert that there is a brain process we call “reading,” either
we presuppose the ordinary use of this concept and try to find something recurrent in the
brain when the student is reading, or we say it by definition, obtaining a different
concept (what is much less appealing and useful than saying that what we ordinarily call
“reading” means a brain process). Wittgenstein does not object, however, to the
supposition that reading is a brain process, or to attributing reading to the brain. If there
is a place for that in our practices (and it can easily be supposed), if there is a game we
play with it, the word is as meaningful as any other. Philosophy is not prescriptive about
meaning, but it makes clear that the result of our experiments and ideas may not be what
we expected: the development of neuroscience does not assure that psychological
concepts mean brain processes. Even when the meaning of these concepts is the use
neuroscience makes of it.

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10
0
FENOMENOLOGIA HERMENÊUTICA E AS NOÇÕES DE
CONFIANÇA E MEMÓRIA CORPORAL NA DESCRIÇÃO DA
EXPERIÊNCIA DA ENFERMIDADE1

Róbson Ramos dos Reis


Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria

RESUMO: No presente artigo, é desenvolvida uma abordagem fenomenológico-hermenêutica da


enfermidade. Partindo da descrição da dúvida corporal apresentada por Havi Carel, são identificados dois
fenômenos de base que condicionam o sentimento corporal nuclear na experiência da enfermidade:
confiança corporal e memória corporal procedimental. Para cada um desses fenômenos, é apresentada
uma abordagem fenomenológico-hermenêutica, que consiste em explicitar os compromissos ontológicos
implicados nos conceitos que descrevem a sequência de desenvolvimento da confiança infantil e a
estrutura das aptidões capazes de formar capacidades habituadas. Tais compromissos são explicitados
com base no pluralismo ontológico hermenêutico exemplificado na ontologia fundamental projetada por
Heidegger. Como resultado mais geral, a presente abordagem da dúvida corporal estabelece a sugestão de
que a abordagem fenomenológico-hermenêutica da enfermidade precisa ser executada em colaboração
recíproca com a investigação empírica sobre a experiência significativa, explicando compromissos
ontológicos a partir do pluralismo ontológico hermenêutico.

PALAVRAS-CHAVE: Fenomenologia-hermenêutica. Enfermidade. Dúvida corporal. Confiança.


Memória procedimental. Pluralismo ontológico.

ABSTRACT: In this paper, a phenomenological-hermeneutical approach to illness is developed. Taking


into account the description of bodily doubt presented by Have Carel, two basic phenomena are identified
that conditions the bodily feeling belonging to the core of the experience of illness: body trust and
procedural body memory. For each of these phenomena, a phenomenological-hermeneutic approach is
presented, which consists of making explicit the ontological commitments implied in the concepts that
describe the developmental sequence of infant trust and the structure of aptitudes capable of forming
habituated capacities. Such commitments are made explicit with the help of the hermeneutic ontological
pluralism exemplified by the fundamental ontology designed by Heidegger. As a more general result, the
following account of bodily doubt establishes the suggestion that the phenomenological-hermeneutic
approach to illness needs to be carried out in reciprocal collaboration with the empirical investigation of
meaningful experience, explaining ontological commitments within the framework of a hermeneutic
ontological pluralism.

KEYWORDS: Hermeneutic phenomenology. Illness. Bodily doubt. Trust. Procedural memory.


Ontological pluralism.

1
Este trabalho recebeu o apoio do CNPq.
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

1. Introdução

A aplicação de um modelo hermenêutico à teoria da Medicina oferece um


resultado crítico e outro construtivo. Além de recusar a redução da Medicina à Biologia
aplicada, a abordagem hermenêutica entende o encontro clínico como um
empreendimento integralmente hermenêutico. A prática da Medicina clínica seria
similar à leitura de um texto. O suposto desta abordagem é a concepção de que o objeto
da Medicina, o paciente, é um texto complexo, e diferentes propostas de apresentação
da textualidade do paciente já foram sugeridas anteriormente (DANIEL, 1986, p. 202;
LEDER, 1990b, pp. 11-16; DEKKERS, 1998, p. 280).
A pressuposição da natureza textual do paciente foi objeto de uma crítica
interna. Com base no argumento de que a hermenêutica na Medicina tem uma
característica ontológica incontornável, Svenaeus (2000c, p. 350) considera que tal
premissa é falsa. Na abordagem ontológica, a vida humana é concebida como
estruturalmente compreensiva e imersa em horizontes de significação. Isso implica que
o corpo não pode ser entendido como um texto autoral e escrito, mas é um aspecto
elementar da abertura humana para a dimensão normativa da significatividade. Além
disso, a noção de corpo como texto bloqueia uma das contribuições mais importantes da
hermenêutica filosófica, que consiste na natureza dialógica da compreensão. Com isso,
obtém-se um modelo hermenêutico da prática da Medicina clínica como sendo dialógica
e promovendo a fusão de horizontes (SVENAEUS, 2000a, pp. 146-163; 2000c, pp. 181-
184).
Insistindo no enfoque ontológico, a abordagem fenomenológico-hermenêutica
que será esboçada a seguir parte da suposição de que a transformação hermenêutica da
fenomenologia implica em duas concepções básicas sobre os agentes humanos: a
autorreferência compreensiva, a partir de situações que integram interpretações já
ocorridas, e a apreensão compreensiva de modos de ser. Desenvolvimentos
interpretativos recentes na metaontologia permitiram a interpretação da fenomenologia
hermenêutica, exemplificada no projeto da ontologia fundamental de Ser e Tempo,
como um tipo de pluralismo ontológico (McDANIEL, 2009). Nesse sentido, um
pluralismo ontológico hermenêutico concebe os modos de ser como condições
metanormativas de constituição ontológica. Essas condições, que formam contextos
intencionais nos quais algo aparece significativamente, devem ser entendidas como

102
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

possibilidades internas acessíveis no acontecer histórico da compreensão de ser (REIS,


2014; 2017).
Assim entendida, uma abordagem fenomenológica-hermenêutica tem como
objetivo a explicitação das pressuposições ontológicas que condicionam as interações
intencionais em contextos normatizados de experiência significativa. Na medida em que
os comportamentos teóricos são entendidos como igualmente condicionados por
pressuposições ontológicas, os métodos e conceitos fundamentais empregados nas
teorias científicas formam um campo privilegiado para o exercício da abordagem
fenomenológico-hermenêutica. De outro lado, esse próprio exercício precisa ser
praticado em colaboração com a investigação científica sobre a experiência
significativa. Ressalte-se, além disso, que a suposição de que a tematização científica
implica uma transgressão categorial não é consistente com a atual situação
hermenêutica das Ciências Cognitivas não redutivas.
O objetivo do presente trabalho é o exame da abordagem fenomenológico-
hermenêutica no campo da teoria da enfermidade. Tomando por base uma recente
elucidação da experiência da enfermidade em doenças crônicas, será considerado o
fenômeno da dúvida corporal (CAREL, 2016; 2014). A experiência da ruptura na
confiança corporal será examinada a partir de duas noções: confiança e memória
corporal. Com esse objetivo, pretende-se evidenciar os compromissos ontológicos
implicados nesses dois fundamentos da experiência da enfermidade. Em razão da
amplitude desse intuito, alguns dos principais resultados oferecidos a seguir têm uma
incontornável natureza programática. Acompanha esse objetivo a expectativa de sanar
essa insuficiência em trabalhos futuros.
O presente artigo estrutura-se da seguinte maneira. Na próxima seção, é
resumido um resultado da recente fenomenologia da Medicina, que identifica na dúvida
corporal o cerne da experiência da enfermidade. Na terceira seção, a análise da dúvida
corporal alcança um nível mais básico, caracterizado como uma modificação na
experiência pré-reflexiva da certeza corporal. Tendo por base a teoria dos sentimentos
existenciais, a certeza corporal é interpretada como um fenômeno afetivo. Nas seções
quarta e quinta, a certeza corporal é examinada com mais detalhe, tomando em
consideração a noção de corpo habitual, o que conduz a um exame da abordagem
fenomenológica da memória implícita e, mais especificamente, da memória corporal
procedimental. O componente de confiança, presente no sentimento de certeza corporal,
é abordado na seção sexta. Afastando-se de uma análise contratualista, a confiança é

103
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

examinada em um cenário desenvolvimental, tomando como marco de interpretação a


Psicologia Experimental do Desenvolvimento. Por fim, nas seções oitava e nona são
ressaltados os compromissos ontológicos implicados nos resultados do exame da
confiança corporal e da memória corporal procedimental, o que perfaz a contribuição
específica da fenomenologia hermenêutica.

2. Dúvida corporal

O fenômeno da dúvida corporal consiste no distúrbio no senso tácito e pervasivo


de certeza e confiança no próprio corpo. Tal fenômeno não é apenas uma modificação
dóxica, mas um sentimento corporal (CAREL, 2016, p. 92).2 A enfermidade gera uma
experiência de irrealidade, estranhamento e distanciamento. A dúvida corporal também
é um fenômeno variável segundo graus, intensidade e especificidade, assumindo
configurações pervasivas ou específicas a certos aspectos do funcionamento do corpo.
A dúvida corporal, por fim, apresenta algumas características gerais: ocorre instantânea
ou gradualmente; irradia para o sentimento existencial, substituindo o senso de imersão
em uma realidade já dada por um sentimento de suspensão; revela uma vulnerabilidade
especificamente corporal; e proporciona a experiência da incapacidade corporal,
afetando o espectro de possibilidades práticas correspondentes à natureza da
enfermidade (CAREL, 2016, pp. 93-96).
A despeito da relatividade aos tipos de enfermidade, o sentimento de dúvida
corporal possui uma fenomenologia (CAREL, 2016, pp. 96-97), apresentando-se com
qualidades vivenciais e hedônicas. Ela é vivenciada como ansiedade corporal, como
uma hesitação no movimento e na ação acompanhada da perturbação correlata no senso
de espacialidade e temporalidade. Sendo uma perturbação profunda no sentimento
existencial, a dúvida corporal é vivenciada como uma modificação restritiva no
horizonte de possibilidades. É o sentimento corporal de “eu não posso”, “meu corpo não
consegue”.
Um aspecto fundamental do sentimento de dúvida corporal reside no seu
componente mostrativo. Além de modificar o conteúdo da experiência intencional, a
dúvida corporal modifica o senso corriqueiro de controle corporal, transparência e

2
A descrição da dúvida corporal apoia-se fortemente na teoria dos sentimentos existenciais
(RATCLIFFE, 2005, 2008 e 2015).

104
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continuidade. A convicção de que o próprio corpo é capaz – vivenciada como


experiência de continuidade, transparência e confiança – é perturbada ou até mesmo
destruída na enfermidade. Com isso, a dúvida corporal revela a estrutura complexa da
confiança no próprio corpo, fazendo patente a contingência desse senso que opera
tacitamente na condição saudável.
A dúvida corporal consiste, além disso, num conjunto de perdas: perda da
continuidade, perda da transparência e perda da confiança no próprio corpo (CAREL,
2016, pp. 97-103). A continuidade da experiência e das ações orientadas para objetivos
sofre uma suspensão com a ocorrência da dúvida corporal. Ações habituais tornam-se
objetos de atenção, esforço consciente e planejamento. A participação no mundo
público normatizado precisa ser repactuada. Hábitos e expectativas são perdidos, e a
recuperação das capacidades, quando acontece, não supera o factum da dúvida corporal.
A transparência e a ausência características do corpo saudável sofrem uma redução com
o evento da dúvida corporal. A enfermidade promove resistências nas interações do
corpo e do ambiente, de tal modo que as capacidades antes subentendidas passam a ser
aquisições explícitas, resultantes de algum tipo de plano que toma em consideração os
limites da ação.
Não apenas a espontaneidade e o significado das tarefas rotineiras sofrem
modificações substantivas, mas o corpo próprio surge tematicamente como problema.
Como fonte de incerteza, dor e sofrimento, o corpo é tematizado na companhia de
afetos, medos, ansiedade e preocupação. Na condição saudável, estão atuantes de modo
tácito um conjunto de crenças sobre o corpo e seu funcionamento continuado. Tais
crenças dão suporte para as ações cotidianas, mas também para as mais elaboradas,
tornando possíveis orientações para metas e projetos pessoais. Tais crenças têm um
alicerce epistêmico baseado no costume. Elas são aprendidas indutivamente e integram
uma rede de formas de confiança que permeia as relações com outras pessoas e com o
mundo. Com a dúvida corporal, essas crenças sofrem uma perturbação, e é a própria
confiança corporal que é modificada.
Ao proporcionar a perda da continuidade, da transparência e da confiança no
próprio corpo, a dúvida corporal manifesta um potencial fenomenológico importante.
Na perda evidencia-se que a confiança corporal, as crenças tácitas sobre o
funcionamento do próprio corpo e o costume na realização das capacidades corporais
compõem um suposto que condiciona as ações e a experiência em geral, e tal suposto
admite ser analisado mais detalhadamente.

105
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

3. Aspectos básicos da certeza corporal

O suposto adjunto às ações e aos projetos que sofre uma perturbação com a
enfermidade é a certeza corporal. Esse fenômeno não é de natureza dóxica ou uma
atitude proposicional, apesar de poder ser expresso e elaborado proposicionalmente.
Portanto, “certeza” não designa um valor epistêmico de uma crença. Certeza corporal é
um fenômeno afetivo, um sentimento corporal. Trata-se do sentimento de estar
confiante em relação ao funcionamento e operação usuais do próprio corpo. É o senso
de que o corpo é hábil e continuará sendo capaz tal como o foi no passado. Além disso,
é um sentimento de possibilidade, de abertura e de habilidade: “eu posso”, “meu corpo é
capaz”. Tal sentimento é pervasivo, subjazendo de modo tácito, pré-reflexivo e reflexo
aos movimentos, ações e projetos (CAREL, 2016, pp. 89-91).3
De outro lado, a certeza corporal possui uma fenomenologia, um “what is like”.
Nela, se apresentam as qualidades vivenciadas do ser capaz, do sentir-se confiante e
familiarizado nos afazeres. O sentimento de confiança, além disso, é referido ao corpo,
é um sentimento corporal. Como tal, a certeza corporal é um reflexo da ação e dos
funcionamentos habituais do próprio corpo. É um sentimento originado do operar
habitual do próprio corpo (CAREL, 2016, p. 91).
Nesse ponto, é relevante ressaltar duas características básicas da certeza corporal
que permitem desenvolver a análise na direção da abordagem fenomenológico-
hermenêutica na teoria da enfermidade. Em primeiro lugar, a certeza corporal é
entendida como um sentimento corporal. Além disso, Carel (2016, p. 89) sustenta que a
certeza corporal é um componente dos sentimentos existenciais. Surge, então, o
problema de elucidar a relação de dependência entre sentimentos. Dado que os
sentimentos existenciais e a certeza corporal são ambos sentimentos corporais, o
problema especifica-se na dependência entre sentimentos corporais. A teoria dos
sentimentos corporais oferece um recurso para abordar esse problema na medida em
que distingue sentimentos dirigidos ao corpo ou partes do corpo, sentimentos em que o
corpo opera como veículo da relação intencional a algo e sentimentos corporais pré-
intencionais que condicionam as relações intencionais. Permanece a sugestão de que,
sendo integrados por sentimentos de certeza corporal, os sentimentos existenciais sejam

3
Sobre a diferença entre sentimentos reflexos e reflexivos, ver Collombetti e Ratcliffe, 2012, p. 146.

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dependentes de sentimentos corporais referidos ao modo habitual de funcionamento do


corpo. De outro lado, caberia elucidar o tipo de dependência ontológica entre os
sentimentos existenciais e a certeza corporal.
Sem responder a essa questão, proponho a conjectura de que a função pré-
intencional dos sentimentos existenciais é dependente do sentimento de certeza ou
dúvida corporal. Há plausibilidade nessa hipótese porque os sentimentos existenciais
são modos de relação a espaços e horizontes de possibilidades, e os sentimentos de
certeza e dúvida corporais são sentimentos de possibilidade. Uma declaração de Havi
Carel oferece uma dupla indicação para entender como a abordagem fenomenológico-
hermenêutica pode ser promissora para elucidar esse tema. Inicialmente, a enfermidade
evidenciaria que a relação com o próprio corpo tem como subjacente um sentimento
corporal “ancorado em nossa natureza animal” (CAREL, 2016, p. 87). Salvo melhor
juízo, essa asserção não foi desenvolvida. Nesse sentido, o pluralismo ontológico
hermenêutico e a análise da integração entre modos de ser com base na diferença entre
modos composicional e constitucional oferecem um recurso conceitual para elucidar a
questão.
Em segundo lugar, o sentimento de confiança corporal é um sentimento de
possibilidade que caracteriza as ações rotineiras e familiares. Como tal, possui uma base
nos hábitos e rotinas acumulados no corpo habitual (CAREL, 2016, p. 90). Tal
ancoragem é explicitada quando se considera a caraterística corporal do sentimento de
certeza em relação ao próprio corpo. Dado que o próprio corpo procede com segurança
pré-reflexiva e fluidez habitual, o sentimento corporal reflete essa habitualidade e essa
segurança. A relação do sentimento de certeza corporal com a habitualidade do próprio
corpo indica uma possível contribuição da descrição do fenômeno da memória corporal
para a fenomenologia da enfermidade.

4. Memória corporal implícita

A recente fenomenologia tem examinado um fenômeno mnemônico que foi


investigado na Psicologia Cognitiva. Com a demonstração da existência de múltiplos
sistemas de memória (CASEY, 2000; FUCHS 2000, 2011, 2012a, 2017 e 2018;
SUMMA, 2012), identificou-se a memória implícita, distinta da memória explícita
(declarativa, episódica, semântica), que aparece quando experiências prévias facilitam a
realização de tarefas sem que seja exigida a rememoração consciente ou intencional

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daquelas experiências (SCHACTER, 1987, p. 501). Na abordagem fenomenológica, a


noção de memória corporal refere-se a um domínio mais abrangente do que o da
memória implícita, na medida em que não se limita à aprendizagem procedimental ou
de habilidades (FUCHS, 2017, p. 335). O termo “memória corporal” refere-se a uma
memória do corpo no sentido do genitivo subjetivo, segundo o qual o corpo possui uma
forma intrínseca de memória (CASEY, 2000, p. 147). A memória corporal pode ser
definida, então, como a totalidade das disposições corporais e habilidades que se
estabeleceram no curso do desenvolvimento de um indivíduo. Tais disposições e
habilidades tornam-se atuais por meio do corpo vivido, sem a necessidade de se lembrar
de situações anteriores (FUCHS, 2011, p. 91; 2017, p. 335). A memória corporal é uma
forma de consciência pré-temática e operativa do passado e que se exibe num sujeito
corporificado. Trata-se de uma forma de intencionalidade operativa que implica a
totalidade das disposições subjetivas perceptuais e comportamentais (SUMMA, 2012, p.
24).4
A abordagem fenomenológica destacou algumas características da memória
corporal implícita. A direção temporal do recordar corporal não tem o sentido
retrospectivo de uma presentificação representacional de situações, vivências ou
acontecimentos passados. Ela não corre do presente ao passado, mas contém o passado
como atualmente efetivo no presente. O recordar corporal implícito contém o passado
que impacta no presente e orienta-se para o futuro. A repetição e a sedimentação de
vivências formam uma estrutura de hábito – um saber como corporal – que contém
fundidas as situações e ações vivenciadas reiteradamente. Desse modo, na memória
corporal o passado está contido de forma latente como experiência atualmente efetiva
(FUCHS, 2000, p. 72; 2018, p. 52; SUMMA, 2012, p. 23).
A memória corporal, além disso, é um fenômeno dinâmico, na medida em que
admite uma formação contínua ao longo da vida (FUCHS, 2018, p. 51). Ela não designa
um depósito interno estático, mas consiste na capacidade de atualizar disposições
adquiridas em processos de aprendizado. Essa capacidade está relacionada com a
dinâmica de acoplamento que se dá entre o sistema orgânico e o ambiente, podendo ser
concebida como uma propriedade disposicional emergente do organismo como um
todo, que está conectado ao ambiente. Trata-se, pois, de uma memória dinâmica em

4
A teoria do engajamento material fornece uma abordagem da memória corporal a partir de uma
perspectiva enactivista (MALAFOURIS; KOUKOUTIK, 2018), mas ainda não foi integrada no marco
metodológico da fenomenologia hermenêutica.

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razão de sua formação por meio da interação do corpo com o ambiente e também em
razão de sua reatualização flexível em interações futuras (FUCHS, 2017, p. 337). Nesse
sentido, a memória corporal, como habitualidade da efetuação vital pré-reflexiva e
familiaridade do corpo com o ambiente, é atuante em situações de reconhecimento.
Como tal, a categoria que subjaz à dinâmica de reconhecimento na memória corporal é
a da semelhança (FUCHS, 2000, pp. 77-81).
Em relação à explicitação, a memória corporal revela-se como de difícil
explicitação declarativa e até mesmo como não verbalizável enunciativamente. Nela, as
vivências reiteradas estão fundidas sem que se destaquem como individualizadas
(FUCHS, 2000, p. 72; 2018, p. 52). Não obstante, os dois sistemas da memória
implícita e explícita não são separados, mas exibem uma estreita conexão (FUCHS,
2000, p. 85). Mesmo reconhecendo que a demonstração da dependência causal da
memória explícita em relação à implícita não é de competência filosófica (CASEY,
2000, pp. 147-148), a abordagem fenomenologia sustenta que a memória corporal
possibilita um acesso da memória explícita ao passado (FUCHS, 2012a, p. 19).
Naturalmente, esse é um tema que demanda investigações empíricas e conceituais mais
detalhadas. Contudo, uma notável característica se depreende da limitação na
explicitação declarativa da memória corporal. Na recordação explícita de eventos
ocorridos, há um constitutivo traço autonoético. O evento recordado também está
referido à pessoa que se lembra. De sua parte, porém, a memória corporal possui uma
peculiar anonímia. O passado não precisa mais ser recordado, pois tornou-se presente.
Os feitos e vivências conscientes penetram num substrato anônimo, do qual a
consciência se retira. Memória corporal significa, portanto, esquecimento biográfico
(FUCHS, 2000, p. 76; 2017, p. 336).
Essas características permitem reconhecer o papel básico que é atribuído à
memória corporal. Seus rendimentos são concebidos como condicionantes de traços
fundamentais da experiência e da identidade pessoal. A abordagem fenomenológica da
memória corporal resulta no reconhecimento da corporeidade como locus de um nível
primário e pré-reflexivo da experiência significativa (FUCHS, 2017, p. 340; CASEY,
2000, p. 149). Os rendimentos da memória corporal implícita são vistos como
constitutivos do significado perceptivo. Dito em outros termos, a gênese do significado
perceptual (e também dos de ordem mais elevada) deve ser orientada para o
condicionamento oferecido pela intencionalidade operativa da memória corporal
(SUMMA, 2012, p. 30).

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

De outro lado, com a habitualidade resulta a automatização das ações que


atualizam capacidades perceptuais e motoras. Com isso, a ação é facilitada, na medida
em que a atenção se desloca do corpo e de suas realizações para as metas do agir. Desse
modo, também a vontade é liberada, pois momentos particulares do querer também se
tornam não conscientes (FUCHS, 2000, p. 74; CASEY, 2000, p. 152). Além disso, a
memória corporal é condicionante da identidade pessoal e da personalidade. O hábito
proporciona constância para as pessoas, que permanecem as mesmas em meio às
mudanças exteriores (CASEY, 2000, p. 150; FUCHS, 2012a, p. 15; 2017, p. 338; 2018,
p. 67). De outro lado, a memória corporal desempenha um papel mediador entre o corpo
próprio e a história cultural, na medida em que preserva estilos e hábitos formados
culturalmente (FUCHS, 2017, p. 341). Dado que as estruturas da memória corporal
podem sofrer modificações, especialmente em função de enfermidades, uma adequada
elucidação dessa forma de memória implícita é altamente relevante para abordagens
terapêuticas que têm apoio na experiência corporal (FUCHS, 2012a, p. 20; 2018, pp.
71-72; KOCH, CALDWELL & FUCHS, 2013).
É importante ressaltar que a abordagem fenomenológica, mesmo reconhecendo a
base da memória corporal em padrões específicos de ativação neuronal (FUCHS, 2017,
p. 336), não concebe o sistema da memória implícita como sendo interior e restrito ao
corpo físico. Trata-se de um campo sensório-motor, interativo, dotado de relevâncias e
valências. Desse modo, a partir da memória corporal, abrem-se campos procedimentais
dotados de possibilidades e affordances (FUCHS, 2011, p. 92; 2017, pp. 337-338).
Um dos rendimentos mais fundamentais da memória corporal reside na
vinculação determinada a pessoas e coisas. O corpo próprio e suas disposições
aprendidas orientam-se habitualmente em ambientes circundantes. Desse modo, ele
introduz o seu passado no espaço circundante, de tal forma que as experiências e
disposições depõem-se como uma rede no ambiente, permitindo a conexão com algo. A
memória corporal perfaz, por assim dizer, o “tecido conetivo da intencionalidade
corporal” (CASEY, 2000, p. 149), permitindo a vinculação com algo determinado
(FUCHS, 2000, p. 89; 2011, p. 91). Como será visto a seguir, a memória corporal é um
fenômeno complexo que se manifesta em diferentes tipos. Um deles é primário para o
entendimento da confiança corporal.

5. A memória corporal procedimental

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Casey (2000, pp. 148-162) descreveu três tipos de manifestação da memória


corporal implícita: habitual, traumática e erótica. Seis formas de aparição dessa
memória foram identificadas por Fuchs (2000, 2011, 2012a e 2018): procedimental,
situacional, intercorporal, incorporativa, dor e traumática. Assim sendo, uma
fenomenologia detalhada da enfermidade deve investigar a contribuição dessas formas
de memória para a experiência dos enfermos. Como foi visto, considera-se que o núcleo
da experiência da enfermidade está no sentimento existencial que integra de alguma
maneira a dúvida corporal. A seguir, será examinado com mais detalhe um tipo de
memória que aparenta ser básico para a elucidação da confiança corporal e, portanto, da
dúvida corporal.
A memória corporal procedimental consiste no conjunto de capacidades
sensório-motoras e cinestésicas que se fixam no corpo próprio a partir da repetição e do
exercício (FUCHS, 2000, p. 71; 2012a, p. 12; 2018, p. 54). Tais capacidades são
procedimentais porque se efetivam em sequências padronizadas de movimentos, nos
hábitos bem exercitados, na lida com instrumentos e na familiaridade com padrões de
percepção (FUCHS, 2012a, p. 12; 2018, p. 54). Com a repetição e o exercício, tais
efetivações sensório-motoras instalam-se no corpo próprio como disposições, formando
uma habitualidade. A gama de faculdades integrantes da habitualidade abrange as
capacidades motoras e perceptivas, o andar ereto, as capacidades linguísticas (falar, ler,
escrever) e as disposições culturais mais especializadas (FUCHS, 2000, pp. 71-72).
A habitualidade, por sua vez, torna possível a automatização e a
fisiognomização. Com isso, obtém-se uma vantagem motora e sensorial (FUCHS, 2000,
p. 74). A atenção concentra-se na meta da ação e no significado perceptual,
promovendo uma liberação e uma facilitação. Dessa forma, não é preciso concentrar-se
nas ações motoras particulares em cada nova circunstância para realizar um movimento
orientado para metas. A execução de ações e percepções ocorre de modo irrefletido. O
corpo próprio torna-se o meio não temático das ações. Ao mesmo tempo que a
habitualidade promove liberação, ela também restringe as ações e percepções na medida
em que estas acontecem por vias previamente formadas (FUCHS, 2018, p. 54).
Uma das principais realizações da memória procedimental consiste na
implicação do saber e do fazer explícitos. O aprendizado corporal permite que o já feito
e sabido explicitamente possam ser esquecidos ao ingressar na memória implícita. Tais
realizações tornam-se implícitas ao formarem capacidades e aptidões (FUCHS, 2000, p.
75; 2017, p. 13; 2018, p. 54). Dessa sorte, a memória procedimental promove a

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continuidade e a consistência da ação em meio às variações de situação. Com a


habituação, tem-se a experiência da permanência na mudança situacional. A
consistência na ação (CASEY, 2000, p. 150), por sua vez, relaciona-se com a
experiência da familiaridade, que dispensa a renovação da atenção e a retomada
explícita do feito ou aprendido. A experiência da familiaridade e da continuidade são
promovidas, portanto, pela memória corporal procedimental (FUCHS, 2000, p. 75;
2018, p. 54).
A memória procedimental descrita por Fuchs tem uma grande similaridade com
a memória habitual, da qual Casey ofereceu a seguinte definição: “Uma imanência ativa
do passado no corpo, que dá forma de maneira eficaz, orientadora e regular para as
ações corporais presentes” (CASEY, 2000, p. 149).
A definição compreende três elementos principais: a) imanência ativa do
passado; b) configuração das ações corporais atuais; e c) configuração eficaz,
orientadora e regular.
Que o passado seja imanente no corpo próprio significa intuitivamente que
lembrar é fazer. O passado está corporificado nas ações como um ingrediente dos
movimentos corporais que perfazem a ação. O passado atua como uma força
sedimentada no movimento corporal, tendo se tornado uma habitualidade.
Evidentemente, a formação dessa habitualidade perfaz uma história própria, na qual os
primeiros estágios de formação são determinantes da maneira como o passado será ativo
nas diferentes situações. Com a habitualidade, forma-se a consistência nas ações e a
capacidade de permanência idêntica ao longo do tempo (CASEY, 2000, pp. 149-150).
Além disso, o passado é ativamente imanente no corpo ao dar uma forma para as ações
presentes. A atuação da memória habitual consiste em proporcionar uma característica
identificável para as ações, que passam a contar como sendo de um certo tipo. Formada
a tipificação, o comportamento estruturado no hábito instancia-se em certas
circunstâncias (CASEY, 2000, p. 150).
Por fim, a memória habitual efetiva essa imanência configuradora de um modo
que é eficaz, orientador e regular. A eficácia significa que a força configuradora do
passado efetivada nas ações presentes promove diferenças no ambiente circundante, ao
mesmo tempo que promove a preservação da identidade própria, no sentido específico
da manutenção de um corpo próprio costumeiro e coerente. As memórias corporais
habituais são, além disso, orientadoras, porque auxiliam na obtenção e na preservação
de orientação nos ambientes de ação. Elas formam uma base de segurança sobre a qual

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podem surgir atividades mais complexas. A orientação proporciona familiarização com


o ambiente, na medida em que padrões usuais de movimento auxiliam na discriminação
das rotas possíveis e desejáveis de movimento. Além disso, para que aconteça a
permanência da orientação, a formação de hábitos deve dar lugar a respostas
consistentes e habituais e a propensões consolidadas para a ação. Com a orientação
obtida e sustentada, formam-se áreas familiares de ação, possibilitando as áreas de ação
livre (CASEY, 2000, pp. 151-152).
Um aspecto básico que possibilita a atuação eficaz e orientadora da memória
habitual consiste na sua regularidade. A atuação da habitualidade não pode ser irregular,
imprevisível, instável ou caprichosa. De outro lado, essa atuação não consiste em uma
repetição mecânica. As ações habituais bem-sucedidas devem proceder segundo regras
de sequência e de timing. Graças às suas memórias habituais, o corpo próprio
proporciona essa sequência e esse timing de modo regular. A geração regular da
regulamentação sequencial e do timing será mais eficaz na medida em que tenha menos
foco nas regras em jogo. Isso implica que a articulação proposicional ou pictográfica de
tais regras é supérflua na memória corporal habitual (CASEY, 2000, pp. 152-153).
Dessa breve caracterização resulta a sugestão de que o cerne da experiência da
enfermidade, a dúvida corporal, é possível porque a confiança corporal está ancorada na
memória corporal procedimental e habitual. Como um sentimento reflexo, a confiança
corporal é a sintonia com uma história de aprendizado corporal. A seguir, examinarei
com mais detalhe essa conexão.

6. Confiança

De acordo com Carel, a confiança corporal está baseada na habitualidade, ou


seja, na memória corporal procedimental. Trata-se de uma dependência ontológica do
tipo existencial, pois, sem a existência da habitualidade nas disposições sensório-
motoras, não existiria a confiança corporal.5 No entanto, apenas a habitualidade não é
suficiente, porque a confiança é uma ocorrência simultaneamente afetiva, cognitiva e
conativa (BAIER, 1995b, p. 132). A confiança corporal, portanto, está dotada de
qualidades fenomênicas próprias do confiar, não sendo apenas uma configuração

5
Sobre a noção de dependência ontológica, ver Tahko (2015) e Correia (2008).

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habitual de capacidades. Nesse sentido, a fenomenologia da confiança corporal deve


considerar o fenômeno da confiança como tal.
Divergindo da abordagem contratualista, segundo a qual a confiança é uma
atitude que é racional adotar perante outras pessoas apenas sob condições de contrato, a
perspectiva inaugurada por Annette Baier (1995a, p. 99; 1995b, p. 132) interpreta a
confiança como a atitude da vulnerabilidade aceita. É atitude de antecipação da boa
vontade de outras pessoas, presumindo que elas não obterão vantagens diante da
vulnerabilidade pessoal. A variedade da confiança, além disso, é relativa à diversidade
daquilo que valoramos e pode cair sob o poder de outros, como é relativa também à
proximidade a outras pessoas que se é obrigado a aceitar (BAIER, 1995a, p. 100). A
variedade de formas da confiança é uma função da variedade da vulnerabilidade e da
socialidade humanas. Além disso, a confiança costuma apresentar-se em relações que
são implícitas, causalmente disseminadas e não específicas (BERNSTEIN, 2011, p.
402). A confiança aparece em rede (BAIER, 1995b, p. 149) e é natural reconhecer a
confiança em pais e cuidadores, em pessoas próximas ou desconhecidas, em instituições
e mesmo em ambientes de ação e interação social (KUSCH & RATCLIFFE, 2018, p.
73).
Em suma, a confiança aparece como uma solução diante do problema resultante
da intrínseca vulnerabilidade humana e da exposição a conexões involuntárias com
outras pessoas. A confiança, além disso, possui uma dinâmica fenomenológica própria,
no sentido de que, ao se formar, atua de maneira inconspícua, irrefletida e retirando-se
em favor daquilo que proporciona (BERNSTEIN, 2011, p. 408). Ela tende a manifestar-
se quando a vulnerabilidade é confirmada por ofensas, perdas, violência ou trauma
(BAIER, 1995a, p. 100).
Um aspecto fundamental na análise da confiança resulta da consideração do
paradoxo deliberativo. As relações de confiança se estabelecem, apesar de dificilmente
se estar na posse das razões suficientes para adotar a atitude de confiar. Torna-se
forçoso admitir que a confiança precisa surgir e vigorar antes que alguém seja capaz de
assumir o ponto de vista da razão (BERNSTEIN, 2011, p. 404). A conclusão dessa
consideração implica que a prioridade da confiança deve ser elucidada no marco de uma
abordagem desenvolvimental (HERTZBERG, 1989; McGEER, 2002, p. 24;
BERNSTEIN, 2011, p. 406). Está além dos limites deste artigo examinar de forma
sistemática o estudo do desenvolvimento psicossocial das formas de confiança e de suas
interrelações. Para indicar os componentes básicos da experiência da enfermidade, na

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medida em que está referida ao sentimento de dúvida que se instala com a ruptura na
confiança corporal, será considerado apenas um aspecto do desenvolvimento da
confiança: a confiança em pais ou cuidadores.

7. O desenvolvimento do antecedente básico da confiança infantil

De acordo com Bernstein (2011, p. 406), o desenvolvimento psicossocial da


confiança consiste no aprendizado da confiança adulta a partir da aquisição da
confiança infantil. Tal aprendizado surge basicamente na superação da desconfiança,
aprendendo a confiar condicionalmente, moderando, qualificando, segmentando e
localizando a confiança incondicional da criança. Essa é uma história de riscos, na qual
a aquisição da confiança infantil desempenha um papel preponderante. A formação
primeva da confiança, por sua vez, obedece a uma sequência desenvolvimental
determinada, sendo primariamente decisivo o aprendizado de um antecedente
fundamental da confiança infantil. Esquematicamente, tal sequência contém quatro
etapas experienciais:

a) sentir o que se chama de “ser amado”;


b) adquirir o senso de um valor e de uma dignidade próprios;
c) esperar que outros respondam de acordo com a condição de ser pessoa
vulnerável e parcialmente autodeterminante;
d) antecipar a si mesmo como também tratando os outros como pessoas
igualmente vulneráveis e parcialmente autodeterminantes.

O ponto de partida da etapa a) é a condição de radical dependência dos bebês em


relação aos cuidados dispensados por outros. Nessa condição, não é apropriado
descrever as relações dos infantes com cuidadores como sendo instâncias do confiar
(HERTZBERG, 1988, p. 316). Nesse primeiro momento, o infante deve poder ser
levado a uma posição original, a saber, que ele assuma e antecipe afetivamente que suas
necessidades serão atendidas, suas dores acalmadas, que ele será cuidado. Caso os
cuidados parentais sejam constantes e densos, com o tempo o bebê aprende o que se
chama de “ser amado” (BERNSTEIN, 2011, p. 407).
Daqui, parte-se para uma segunda etapa, na qual se pode aprender a condição
fundamental da confiança em geral. É a aquisição de um senso determinado acerca de si

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mesmo, o sentimento de contar-se como digno e valoroso para alguém. O infante


aprende, se a história correr com sucesso, o senso do que é a resposta adequada diante
de sua presença como alguém com valor e que conta como digno para alguém. Quando
a expectativa de receber tal resposta torna-se automática e espontânea, é correto dizer
que a confiança infantil em pais e cuidadores já é presente (BERNSTEIN, 2011, pp.
407-408).
A história que corre da posição de ser amado até a etapa d) é o aprendizado de
uma complexa atitude, porque o aprendizado do senso do valor próprio modifica-se
numa dupla expectativa: esperar que outros respondam adequadamente a uma pessoa
vulnerável e limitadamente autodeterminante, mas também antecipar a si próprio como
alguém que também tratará a outros como pessoas vulneráveis e parcialmente
autodeterminantes. Alcançar a confiança infantil é concomitante com alcançar um senso
de si e de outros como pessoas. No processo desenvolvimental do infante de tornar-se
relativamente independente, a posição inicial de ser amado pode resultar na posição
final, complexa, da vulnerabilidade aceita e do mútuo reconhecimento da pessoalidade
(BERNSTEIN, 2011, p. 408).
Naturalmente, essa é uma história arriscada e com variações culturais, mas
conjectura-se que a sequência seja universal (BERNSTEIN, 2011, p. 410). É importante
registrar, mesmo que isso não seja analisado agora, que há aspectos cognitivos e
conativos nesse processo. Não obstante, é patente o componente normativo na aquisição
do antecedente da confiança (etapa b): alcançar o senso de si mesmo como dotado de
importância e de se contar como valoroso perante pais e cuidadores. O senso de uma
dignidade própria é uma condição normativa, pois há respostas que são adequadas a
alguém tomado como valoroso. Alcançar esse senso, porém, é dependente de um
complexo processo interacional, a saber, da imitação.
Cabe ressaltar aqui a importância dos resultados da Psicologia Experimental do
Desenvolvimento em relação à natureza dos comportamentos miméticos que ocorrem já
após o nascimento. A atenção dispendida a um bebê, o ser visto por um outro, é se ver
como pessoa. A resposta mimética, o ver um outro, também é virtualmente um ver
como pessoa. A complexa e diferenciada interação mimética que se desenrola entre
bebês e cuidadores é implícita e progressivamente uma história de reconhecimento. As
trocas miméticas fomentadas por atos parentais expõem o infante a um espaço de
razões, no sentido de que tais trocas constroem áreas normativas: não se trata de repetir
mecanicamente ações, mas de responder a ações livres com ações livres. Além disso, as

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trocas miméticas constroem o senso de que as ações podem ser feitas correta ou
incorretamente. Na troca rítmica da imitação, acontece a formação de zonas normativas,
a aquisição do senso de dignidade própria e o reconhecimento da condição de pessoa
vulnerável (BERNSTEIN, 2011, pp. 410-411).
Um duplo resultado pode ser destacado dessa reconstrução do desenvolvimento
da confiança infantil. De um ponto de vista teórico, a confiança corporal não depende
apenas da formação da habitualidade e da memória procedimental. Ela depende da
formação da rede da confiança e, portanto, da sequência desenvolvimental que pode
levar à confiança infantil. De um ponto de vista metodológico, a fenomenologia da
enfermidade, centrada na experiência da dúvida corporal, precisa integrar tanto uma
fenomenologia da memória procedimental quanto uma fenomenologia do
desenvolvimento da confiança infantil. Esses dois temas serão programaticamente
considerados a seguir.

8. Aspectos hermenêuticos na confiança corporal

Como foi sugerido, a confiança corporal integra uma rede de relações de


confiança. Kusch e Ratcliffe (2018) examinaram, com base num caso de dor crônica, a
maneira como a erosão na confiança em outras pessoas (profissionais da área da saúde)
e em instituições contribui para a perda da confiança corporal e para a intensificação da
dúvida corporal. A história pessoal da confiança corporal está determinada, portanto,
pela trajetória de outras formas de confiança. Pode-se conjecturar, nesse sentido, que o
impacto da enfermidade na confiança corporal é uma função da natureza da
enfermidade, mas também da história pessoalmente indexicada da confiança. Assim,
uma abordagem fenomenológico-hermenêutica da confiança precisaria identificar os
domínios específicos em que seriam caracterizados os aspectos propriamente
hermenêuticos da história da confiança, contribuindo desse modo para uma abordagem
fenomenológico-hermenêutica da experiência da enfermidade. A minha sugestão é a de
que a sequência desenvolvimental da confiança infantil perfaz um campo básico nesse
programa de investigação.
Na exposição de Bernstein, a sequência de estágios de desenvolvimento conduz
da posição de ser amado até a atitude de esperar tratamento como pessoa e de antecipar
a si mesmo como tratando outros como pessoas. Em cada um desses momentos e em
sua dinâmica própria, deveriam ser identificados aspectos hermenêuticos.

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Especialmente a formação do antecedente crucial da confiança, que é um estágio


decisivo na sequência desenvolvimental do confiar infantil, pode ser o campo de uma
interpretação fenomenológica. Chegar ao sentimento de importar a outrem, ao senso de
uma dignidade própria que é correspondida com os cuidados parentais demandados,
consiste na condição para as etapas subsequentes e para a formação da relação de
confiança nos pais ou cuidadores.
Como foi visto, a aquisição desse senso de valor próprio pertence aos
rendimentos das interações e dos ritmos das práticas miméticas interpessoais. A
imitação fomentada por cuidadores e o jogo mimético praticado possuem aspectos
cognitivos, normativos e conativos. Com a imitação, se alcança as formas de cognição
proporcionadas pelos comportamentos sensório-motores e a propriocepção. Além disso,
o jogo da imitação é a exposição a zonas normativas e à formação pessoal de áreas de
normatividade. Fomenta-se não uma cópia mecânica de ações, mas a ação pessoal da
criança, ação que está exposta a um gradiente adverbial de adequação. Em conjunção
com esses aspectos, há também um componente volitivo e conativo no jogo da imitação,
pois ele integra a vontade e o desejo de cuidadores e infantes: querer mais afecção vital,
querer o desejo dos cuidadores e querer que os cuidadores queiram o próprio desejo
(BERNSTEIN, 2011, pp. 411-413).
A fenomenologia hermenêutica do desenvolvimento do sentimento de
importância diante de cuidadores precisaria interpretar os aspectos hermenêuticos
constitutivos da dimensão cognitiva, conativa e normativa da prática rítmica da
imitação. Tal interpretação não é possível sem a interação com os resultados da
Psicologia Experimental do desenvolvimento baseado em imitação. Os limites do
objetivo aqui proposto admitem oferecer apenas uma indicação dupla da direção a ser
adotada na execução desse projeto hermenêutico.
Em primeiro lugar, o aspecto cognitivo da imitação é conjugado com o
normativo, não apenas no aprendizado do começar pessoalmente as ações miméticas
apropriadas, mas na apreensão da própria normatividade. De acordo com a
fenomenologia hermenêutica de Heidegger, em todo comportamento normativo estão
supostas condições metanormativas. Tais requisitos metanormativos são, além disso,
condições ontológicas de constituição.
Descortina-se nesse contexto um duplo sentido de investigação. De um lado, um
estudo do desenvolvimento da apreensão das condições metanormativas que constituem
a normatividade das ações e a identidade dos itens ontológicos que integram a ação

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

mimética. No vocabulário de Heidegger, é o exame do desenvolvimento da


compreensão de ser. De outro lado, a identificação e a caracterização das condições
metanormativas especificamente atuantes no jogo mimético que leva ao antecedente
fundamental da confiança infantil. A despeito do “andaime parental” oferecido por pais
e cuidadores (McGEER, 2002, pp. 32-33), na medida em que já dispõem da cognição
das condições metanormativas que regulam as ações no jogo da imitação, conjectura-se
que possa haver um estatuto propriamente infantil da apreensão e da constituição dessas
condições.
Em segundo lugar, o antecedente fundamental da confiança infantil é um senso
de importar para alguém. É um fenômeno afetivo e não dóxico. É sentir-se como sendo
de importância para alguém que cuida. De modo similar, o aspecto conativo na
interação mimética também integra um componente afetivo. Bernstein (2011, p. 412)
interpretou a repetição demandada como proporcionando um vínculo continuado de
obtenção e satisfação. O desejo renovado por satisfação seria um desejo de mais
vitalidade. Assumindo a existência de afetos de vitalidade (vitality affects) (STERN,
2000, pp. 53-61), e considerando que tais afetos possuem uma dimensão de ativação,
Bernstein sugere que a atividade mimética está conectada com a ativação dos afetos de
vitalidade.
Com a hipótese de que os afetos de vitalidade são as emoções de pano de fundo,
está posta a sugestão adicional de analisar o componente conativo da interação
mimética a partir da teoria dos sentimentos existenciais. De acordo com tal sugestão, os
afetos de vitalidade já devem estar presentes no infante que permanece no jogo de
imitação, o que implica a presença de sentimentos existenciais no curso do
desenvolvimento da confiança. Uma hipótese a ser analisada reside justamente na
relação entre os afetos de vitalidade e o sentimento existencial de estar vivo. Além das
evidências empíricas correspondentes, a fenomenologia hermenêutica precisa
considerar o compromisso ontológico que está formado com o conceito do sentimento
de estar vivo, que tem sido apresentado como uma variedade muito básica de
sentimento existencial (SLABY & STEPHAN, 2008, p. 510; FUCHS, 2012b).
Além disso, dado que o sentimento de importar para alguém consiste
genericamente em um senso de importância (que pode ser descrito com os conceitos de
valor e dignidade ou merecimento), infere-se que, no desenvolvimento da confiança,
está presente uma forma básica de valência ou de reflexividade afetiva, uma sintonia
consigo mesmo do infante. O antecedente fundamental da confiança infantil suporia,

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

portanto, uma sintonia consigo mesmo. Nesse caso, seria uma afinação afetiva
(Stimmung) que subjaz o contar-se como importante para alguém, na acepção específica
de que as necessidades próprias são sentidas como merecedoras da atenção e do cuidado
por parte daqueles de quem o infante depende.
Em resumo, as duas direções esboçadas formam dois campos de execução da
abordagem fenomenológico-hermenêutica. Está em vista nesse contexto a elucidação
dos compromissos ontológicos implicados nos aspectos conativo e cognitivo-normativo
da imitação. A hipótese a ser justificada consiste precisamente na pretensão de que há
aspectos hermenêuticos na apreensão da normatividade e na sintonia afetiva consigo
mesmo que subjazem ao antecedente fundamental da confiança infantil (o senso de
importar para cuidadores e pais). À continuação, será examinada uma contribuição da
abordagem fenomenológico-hermenêutica para a análise da base sobre a qual se assenta
a confiança corporal, a saber, a memória corporal procedimental.

9. Aspectos hermenêuticos na memória corporal procedimental

Com exercício e prática repetitiva, as capacidades sensório-motoras tornam-se


disposições habituais. Ao conferir uma padronização, a habitualidade promove a
familiaridade na ação e na percepção. Habitualidade significa, além disso, liberação na
ação e na volição, pois a atenção orienta-se para as metas da ação, não sendo
necessárias atenção e volições particulares para com as ações específicas que conduzem
à meta desejada. Ao mesmo tempo, habitualidade é restrição nas configurações de ação
e percepção. A habitualidade, ademais, é dotada de uma plasticidade formativa, pois
segue com sua dinâmica virtual de configuração e reconfiguração ao longo da vida dos
indivíduos. A habitualidade da memória procedimental, por fim, delimita as maneiras
de vinculação a algo no ambiente porque dá forma aos campos de possibilidades e
affordances em que são executadas as capacidades habituadas.
O característico de uma abordagem fenomenológico-hermenêutica da memória
procedimental reside na explicitação dos compromissos ontológicos implicados no
fenômeno da habitualidade assim descrito. Em outros termos: como um ente deve estar
constituído ontologicamente para ser capaz de formar uma habitualidade plástica,
liberadora-restritiva e condicionante da vinculação com algo determinado no ambiente?
O começo de uma resposta reside na elucidação da estrutura das capacidades sensório-
motoras, chegando ao nível formal da estrutura da capacidade como tal.

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Na abordagem fenomenológico-hermenêutica executada por Heidegger, a


questão da estrutura formal da capacidade é formulada no marco do pluralismo
ontológico. Isso implica que a estrutura da capacidade é relativa ao modo de ser próprio
dos entes que podem formar habitualidades. Esse quadro categorial exibe uma
complexidade adicional, pois o pluralismo ontológico esboçado por Heidegger admite
dois modos de ser distintos em que as maneiras de determinação não são formadas por
instanciação de propriedades de estado, mas por capacidades e por aptidões. Vida (de
animais e plantas) e Existência (de seres humanos) são os modos de ser de entes cuja
determinação é constituída por maneiras específicas de ter e dar possibilidades. A
identidade ontológica nos dois modos de ser é dinâmica, relacional e prática. Neles, a
interação prática com itens que comparecem nos campos relacionais é normatizada; vale
dizer: não pode ser analisada tão somente em termos de interações causais de estímulo e
resposta. Ao seu modo, animais, plantas e humanos interagem com algo diferente que se
apresenta de forma normatizada e significativamente. 6 Segue-se, portanto, que o
problema da estrutura formal da capacidade precisa ser elucidada de acordo com o
modo de ser dos entes suscetíveis de formar habitualidade.
Segundo Heidegger, os entes vivos não estão primitivamente determinados
como unidades de tecidos e sistemas de órgãos, mas como unidades de aptidões, sendo
intrinsecamente ambientais e comportamentais. As aptidões, ademais, possuem uma
estrutura formal determinada por uma regulamentação interna, e não por instruções
externas. Segue-se que as aptidões são dotadas de uma plasticidade que torna possível o
adestramento. Além disso, as aptidões são reguladoras na formação de órgãos e nas
interações ambientais. Aptidões são fenômenos conativos porque têm em sua estrutura
um elemento pulsional. A pulsão, contudo, não é suscetível de uma análise mecânica,
pois ela tem uma natureza dimensional. Isso significa que há um tipo de autorregulação
na pulsão que, ademais, antecipa a forma do ambiente com o qual o organismo interage.
Daqui se segue que os ambientes não têm uma estruturação independente dos
organismos (HEIDEGGER, 1983, p. 335; SKOCZ, 2004, pp. 226-229). Os itens
ambientais são desinibidores de pulsões, mas sua determinação é uma função da
configuração ambiental que é, em parte, constituída pelas regulações pulsionais das
aptidões. Uma característica fundamental da estrutura da aptidão é a sua qualidade

6
Sobre a ontologia do modo de ser da vida orgânica, ver: Skocz (2004), Ainbinder (2012), Engelland
(2015) e Reis (2012, 2018 e 2019).

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

dinâmica. As aptidões se unificam nos organismos, mas estão submetidas a um


movimento qualitativo que conduz à inaptidão, ou seja, à morte dos organismos. Apesar
de não ter desenvolvido esse tema, Heidegger mencionou a perspectiva de conceber os
organismos como entes, ao seu modo, históricos. Uma indicação nessa direção está na
sugestão de que as unidades de aptidões orgânicas sofrem abalos essenciais nas
interações ambientais (HEIDEGGER, 1983, p. 396).
No modo de ser da existência, por sua vez, os comportamentos habituados
também são uma função da condição de estar determinado por maneiras de ter e de dar
possibilidades. No entanto, as aptidões existenciais diferem das orgânicas porque nelas
atuam condições metanormativas já compreendidas. Em outros termos, os
comportamentos relativos às capacidades humanas são normatizados a partir da
apreensão de condições de constituição ontológica. Os ambientes de ação na existência
também possuem uma constituição antecipada. Nesse caso, a constituição é dada pelas
condições metanormativas cuja apreensão acontece por uma estrutura denominada de
compreensão de ser. Humanos são relacionais e atuam em ambientes, com o diferencial
de que tais ambientes são antecipados por uma compreensão de ser. Isso implica que os
nichos propriamente humanos são nichos da verdade (ENGELLAND, 2015, pp. 178-
180).
A consequência dessa diferença na estrutura das capacidades consiste em que a
habitualidade humana não está condicionada apenas por sedimentação cultural, herança
e repetição. As capacidades humanas estão condicionadas por apreensão compreensiva
de condições metanormativas de constituição ontológica. Nesse sentido, a habitualidade
humana não exibe apenas uma historicidade pessoal, social e coletiva, mas uma
historicidade advinda da dinâmica dos modos de ser e da correspondente apreensão
compreensiva. A conclusão programática a ser extraída assevera que a formação
humana de memória procedimental é dependente da historicidade da compreensão de
ser.
Assim como essa temática, a abordagem fenomenológico-hermenêutica também
precisaria desenvolver um tema relevante na interpretação de aspectos hermenêuticos da
memória procedimental. O concomitante aspecto liberador e restritivo da habitualidade
deveria ser examinado a partir da noção de finitude ontológica. Há um isomorfismo
entre o aspecto liberador-restritivo da habitualidade e o aspecto de abertura e
fechamento na apreensão das condições metanormativas de identidade. Ao mesmo
tempo que a compreensão de ser apreende modos de ser, ela também exclui e, por assim

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

dizer, fecha o acesso a outros modos de ser (LINDÉN, 1997, pp. 99-100). Daqui se
segue a hipótese de que a finitude na apreensão de ser introduz uma finitude que não é
apenas cultural na configuração específica da estrutura liberadora-restritiva da
habitualidade.
Num nível mais específico, no entanto, a abordagem fenomenológico-
hermenêutica da memória procedimental oferece uma complexidade adicional. Nos
seres humanos, evidencia-se uma unidade de modos de ser diferentes. Nos entes
humanos, a constituição é existencial, mas os elementos componentes têm o modo de
ser da vida. Existência é o modo de ser constitucional, ao passo que vida é o modo
composicional dos seres humanos. Isso significa que a habitualidade humana não
apenas está constituída por apreensão compreensiva de ser, mas é composta por uma
habitualidade orgânica baseada em aptidões pulsionais reguladas. Esse é um tema que
não foi elaborado por Heidegger. Um problema relevante nesse contexto é o exame da
relação de dependência entre os dois modos de ser e, por conseguinte, entre os dois
modos de habitualidade. Além de uma dependência existencial (não há habitualidade
baseada em compreensão de ser sem habitualidade baseada em aptidão orgânica),
7
haveria também uma dependência essencial simétrica? Ou seja, há um
condicionamento recíproco entre os diferentes modos de formação de habitualidade?
Esse problema integra um programa mais amplo no marco do pluralismo
ontológico hermenêutico. Sua identificação, contudo, é suficiente para indicar a direção
geral de investigações que são fomentadas numa abordagem fenomenológico-
hermenêutica. Para concluir, indicarei a seguir um grupo de temas que também
integram esse mesmo programa, retomando a temática geral da contribuição da
fenomenologia hermenêutica para a elucidação da experiência da enfermidade.

10. Conclusão

Neste artigo, foi esboçada uma abordagem fenomenológico-hermenêutica das


bases estruturais que condicionam um elemento nuclear na experiência da enfermidade.
Partindo da sugestão formulada por Havi Carel (2016, pp. 87, 90) de que a dúvida
corporal está ancorada no corpo habitual e na natureza animal dos seres humanos, foram
considerados os compromissos ontológicos implicados na análise da memória corporal

7
Sobre a noção de dependência essencial, ver Tahko (2015, pp. 98-104).

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procedimental e na análise da sequência desenvolvimental da confiança infantil. Na


estrutura das aptidões que podem formar disposições habituais, foi identificado um
complexo compromisso ontológico. As disposições humanas são formadas por aptidões
estruturadas por uma apreensão compreensiva das condições metanormativas da
experiência significativa. Ademais, essas aptidões estão compostas por aptidões dotadas
do modo de ser da vida. A unidade do modo constitucional com o modo composicional
implica que as capacidades humanas são compostas por aptidões orgânicas, mas,
contudo, existencialmente constituídas.
Além disso, também foram explicitados os compromissos ontológicos
implicados nos conceitos fundamentais que descrevem a sequência desenvolvimental da
confiança infantil. Na formação do senso de importância pessoal, desenvolvido na
interação imitativa, localiza-se a apreensão de normatividade e a sintonia que permite o
sentimento de importar para alguém. Em ambas as estruturas está suposta uma forma de
apreensão de condições metanormativas de constituição ontológica, tanto naquele que
percorre a sequência desenvolvimental, quanto nos cuidadores que fornecem os
“andaimes parentais”. Adicionalmente, é pertinente ressaltar que sem os resultados
obtidos na Psicologia Experimental do Desenvolvimento da confiança infantil e sem a
investigação empírica sobre a memória corporal implícita, os aspectos ontológicos
interpretados na fenomenologia hermenêutica não teriam sido sequer identificados.
Nesse sentido, resulta fortemente sugerido que também a fenomenologia hermenêutica
se situa numa atitude de mútuo esclarecimento (Gallagher, 1997) com as Ciências
Cognitivas não redutivas.
Dados os compromissos ontológicos assinalados, um resultado pertinente da
abordagem fenomenológico-hermenêutica da dúvida corporal consiste na interdição do
uso do conceito de utensílio quebrado para interpretar a enfermidade. 8 Pode-se dizer
que, com a experiência da dúvida corporal, ocorre uma dinâmica ontológica em que o
corpo próprio habitual deixa de mostrar-se apenas como existencial, manifestando-se
como existência composta de vida. A experiência da enfermidade torna patente a
notável particularidade ontológica ligada ao ser humano, no qual o modo constitucional,
a existência, é diferente do modo composicional, a vida orgânica. O pluralismo

8
Essa interpretação, frequente na literatura fenomenológica, foi qualificada como analógica, por
exemplo, em Rawlinson (1982, p. 75), Leder (1990a, pp. 19, 33, 83-84) e Toombs (1988, p. 225, n. 82;
1992, p. 136, n. 7), e também apresentada como literal por Svenaeus (2000b, pp. 130-131) e Carel (2016,
p. 99).

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ontológico, portanto, acrescenta maior robustez conceitual na fenomenologia da


enfermidade, evidenciando, além disso, a estruturação complexa da experiência da
dúvida corporal.

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LINGUAGEM E ENATIVISMO: UMA RESPOSTA NORMATIVA PA-
RA A OBJEÇÃO DE ESCOPO E O PROBLEMA DIFÍCIL DO CON-
TEÚDO

Marcos Silva
Departamento de Filosofia (UFPE/CNPq)
marcossilvarj@gmail.com
Iana Cavalcanti
Mestranda em Filosofia (UFPE)
ianavcavalcantii1@gmail.com
Hugo Mota
Mestrando em Filosofia (UFPE)
hugousa17@gmail.com

RESUMO: A linguagem não precisa ser vista como um problema para enativistas radicais. A objeção do
escopo usualmente apresentada para criticar explicações enativistas só representa um problema, se tivermos
uma visão referencialista e representacionalista da natureza da linguagem. Apresentamos uma hipótese nor-
mativa para a grande questão do problema difícil do conteúdo, a saber, a respeito de como práticas linguísti-
cas se desenvolvem de mentes sem conteúdo. Nós portamos conteúdo representacional quando dominamos
relações inferenciais e dominamos relações inferenciais quando dominamos relações normativas, especial-
mente quando somos introduzidos em quadros de autorizações e proibições. Inspirados no anti-
intelectualismo do segundo Wittgenstein e no inferencialismo de Brandom, apresentamos a hipótese que a
linguagem emerge da ação inferencialmente articulada a partir de elementos normativos e não da manipulação
em estados mentais internos de conteúdos fixados pela referência a coisas externas.

PALAVRAS-CHAVE: Enativismo. Linguagem. Normatividade. Brandom. Wittgenstein.

ABSTRACT: Language does not have to be held as a problem for radical enactivists. The scope objection
usually presented to criticize enactivist explanations is a problem only if we have a referentialist and represen-
tationalist view of the nature of language. Here we present a normative hypothesis for the great question con-
cerning the hard problem of content, namely, on how linguistic practices develop from minds without content.
We carry representational content when we master inferential relations and we master inferential relations
when we master normative relations, especially when we are introduced into frameworks of authorizations
and prohibitions. Inspired by the anti-intellectualism of the later Wittgenstein and Brandom’s inferentialism,
we present the hypothesis that language emerges from inferentially articulated action from normative ele-
ments and not from manipulation in internal mental states of contents fixed by reference to external things.

KEYWORDS: Enactivism. Language. Normativity. Brandom. Wittgenstein.


PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

1. Introdução

De acordo com Hutto e Myin (2013, 2017), uma revolução enativista está em curso
nas discussões sobre a cognição. Aspectos internalistas, individualistas e intelectualistas na
abordagem da cognição estão sendo desafiados. Com efeito, a ideia própria que a cognição
deve ser identificada com algum processo de manipulação simbólica de conteúdos em esta-
dos mentais internos que representam elementos externos ao indivíduo está sendo substituí-
da por abordagens que enfatizam elementos enativos, situados, extensos e corporificados na
assim chamada 4-E cognition.
As abordagens da recente tradição 4E-Cognition caminham para uma investigação
de atividades cognitivas a partir do enfoque nos aspectos “E” da mente, a saber: (i) embodi-
ed (corporificado), em que é sustentada a tese de que “at least some ― not all by any me-
ans, but some ― mental processes are constituted not just by brain processes but by a com-
bination of these and wider bodily structures and processes.” (ROWLANDS, 2010, p. 54);
(ii) enactive (enativo), em que a investigação se direciona para a maneira como um organ-
ismo articula suas ações com as exigências do meio onde está inserido; (iii) extended (es-
tendido), na qual se defende a noção de que “at least some mental processes ― not all, but
some ― extend into the cognizing organism's environment in that they are composed, part-
ly (and, on the version I am going to defend, contingently), of actions, broadly construed,
performed by that organism on the world around it.” (ROWLANDS, 2010, p. 58); e (iv)
embedded (situado), onde se examina como o organismo pode usar um meio especifica-
mente localizado para reduzir o trabalho de uma tarefa cognitiva. Assim, a tradição 4E-
Cognition examina problemas para além do âmbito representacional (HUTTO & MYIN,
2013, 2017; CLARK, 2016), possibilitando a modificação da própria noção de representa-
ção fora de uma matriz intelectualista (NÖE, 2004; CARVALHO, 2019; ROLLA, 2019).
Hutto e Myin (2013, 2017) são representantes da vertente autodenominada radical de
enativismo, o radical enactive cognition (REC). Eles defendem que a tese cognitivista a-
cerca da ubiquidade da representação ou de conteúdos representacionais em atividades
cognitivas é falsa. Contudo, vale notar que REC não desafia a tese cognitivista com o seu
contrário, a saber, a tese que nenhuma atividade cognitiva envolva a manipulação em esta-

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dos internos de conteúdo representacional, como Di Paolo et al. (2018) fazem. O REC de-
safia a tese da ubiquidade da representação do cognitivismo com a sua contraditória, a sa-
ber, que nem todo ato cognitivo envolve a manipulação de representação em estados men-
tais internos.
No presente trabalho, é examinado o assim chamado problema do escopo apresen-
tado contra o REC. Pretendemos apontar uma hipótese de como estender a revolução da
4E-cognition para a linguagem. Alguns autores defendem que o REC não pode ser genera-
lizado para todas as atividades cognitivas (scale up problem). O escopo explicativo do REC
seria limitado ao âmbito de atividades cognitivas básicas, onde há a interação imediata e
atual do organismo com o meio onde está inserido. Como consequência, atividades cogniti-
vas mais sofisticadas, que envolvem capacidades linguísticas, simbólicas e matemáticas,
por exemplo, constituiriam um desafio intransponível para a abordagem enativista. Uma
explanação destas competências parece requerer que nos movamos para além do aqui-
agora, dos dados imediatos da experiência, do acoplamento direto com o ambiente, em ou-
tras palavras, aonde prescindimos da interação dinâmica atual com o ambiente onde esta-
mos inseridos.
O objetivo do presente trabalho é apresentar uma saída normativa através da qual o
REC poderia enfrentar a objeção de escopo. Pretendemos fazer o REC avançar em escopo,
além da cognição básica, em direção a discussões sobre a filosofia da linguagem inspirados
na filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein e de Brandom. Mostraremos que o “tip
of the cognitive iceberg”, onde a linguagem é tradicionalmente situada, não deveria ser nem
intelectualista e nem representacionalista. É importante notar que a objeção de escopo só é
um desafio intransponível se tivermos uma visão equivocada da natureza da linguagem. Se
linguagem for um fenômeno inferencialista e normativo, baseada fundamentalmente em
termos do lidar competente com autorizações e proibições de ações a partir de critérios pú-
blicos, e não como uma atividade prioritariamente descritiva, é possível apresentarmos uma
narrativa naturalista coerente com o REC para explicar a emergência da linguagem.
Assim, apresentamos uma hipótese normativa para a grande questão a respeito de
como práticas linguísticas se desenvolvem de mentes sem conteúdo. Nós portamos conteú-
do representacional quando dominamos relações inferenciais e dominamos relações infe-

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renciais quando dominamos relações normativas, especialmente quando somos introduzi-


dos em quadros de autorizações e proibições. Usaremos Wittgenstein e Brandom para mos-
trar que a linguagem emerge da ação inferencialmente articulada a partir de elementos
normativos e não da manipulação em estados mentais internos de conteúdos fixados pela
referência a coisas exteriores. A linguagem emerge das atividades regradas de algumas
criaturas a partir do domínio prático de proibições e autorizações e não de um raciocínio a
partir de representações internas. Afinal, somos animais que jogamos, ou seja, animais que
se engajam com o mundo a partir de critérios públicos que podem ser usados para corrigir
possíveis desvios em nossas práticas regradas e inferencialmente articuladas.
O presente texto é dividido em três seções. A primeira trata do anti-intelectualismo
na mente e na linguagem, apresentando o assim chamado problema difícil do conteúdo, ou
Hard Problem of Content (HPC) e a proposta Dupplex Account do REC. A segunda exami-
na a linguagem como ação a partir do segundo Wittgenstein, ao criticar o referencialismo e
representacionalismo na linguagem e apresentá-la como articulada por nossas ações no
mundo. A terceira utiliza o inferencialismo de Brandom para introduzir a hipótese de uma
“plataforma de lançamento” normativa e inferencialista para superar a objeção do escopo
ao REC.

2. Anti-intelectualismo sobre a mente e a linguagem

Uma das discussões mais profícuas na tradição filosófica é a respeito do que nós
somos ou do que define nossa natureza como seres humanos. Podemos dizer que uma tradi-
ção intelectualista da filosofia, com frequência, coloca a ênfase na resposta a esta questão
em alguma propriedade especial de nossa cognição para nos distinguir de outros animais.
De maneira que a pergunta sobre quem nós somos é identificada com a pergunta “o que é
pensar?” ou “o que é ser racional?”, ou com jargão mais intelectualista, “como manipula-
mos intelectualmente conteúdos representacionais dentro de nossas mentes de maneira que
possamos descrever com acurácia estados de coisas externos?”. Com esta pergunta em
mente, esta tradição gostaria de explicar a singularidade do ser humano na natureza. Com
efeito, algumas qualidades são elencadas para nos distinguir de outros organismos como

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nossa habilidade de construir civilizações ou de maneiras inventivas de nos protegermos do


mundo selvagem. Ou do nosso entendimento especial do bem e do mal ou como nós agi-
mos eticamente, porque nós seríamos, afinal, animais racionais em um mundo de irraciona-
lidade. Uma alternativa é colocar a ênfase em nosso livre arbítrio ou em nossa certeza da
morte para pavimentar nossa peculiaridade no mundo natural. Sem dúvida, a nossa lingua-
gem pode também ser algo que pode nos separar de outros animais e de nos manter aparta-
dos da irracionalidade.
Uma visão tradicional intelectualista articula todas estas qualidades ao fundamentá-
las em uma espécie de substância imaterial puramente racional que nós possuímos e consti-
tui nosso verdadeiro ser. Esta substância manipula intelectualmente imagens ou representa-
ções internas as quais só ela mesma tem contato para poder avançar conhecimento sobre o
mundo exterior. Nós temos variações desta narrativa em muitos autores influentes ao longo
da história da filosofia. Contudo, outros autores ao invés disso definem que todos estes cri-
térios não são nem necessários e nem suficientes para determinar nossa humanidade e nos-
sas atividades cognitivas e que a ideia ela mesma de uma substância imaterial e intelectual
independente das interações materiais no mundo natural é muito controversa. Em verdade,
todo o programa intelectualista pode ser tomado como desencaminhador.
A resposta tradicional e seus desenvolvimentos para o problema da natureza de ati-
vidades cognitivas motivaram o que Hutto e Myin (2013) chamam de I-Cognition, uma
visão baseada em um amálgama de internalismo, intelectualismo e individualismo para se
pensar as atividades cognitivas que nos tornariam especiais na natureza. Na filosofia con-
temporânea, esta saída tradicional incorpora à ideia de uma substância imaterial, intelectual
e individual a noção importante de manipulação de representações simbólicas pelo cérebro.
O tipo especial de cognição que nós entretemos deveria ser baseada no cérebro e deveria
exibir um mecanismo sofisticado de manipulação de ideias, imagens ou símbolos acerca do
mundo externo. Em última análise, nesta visão comumente chamada de cognitivista, nós
pensamos, nós temos atividades cognitivas, porque nosso cérebro computa informações
sobre o mundo externo coletada por nossos sentidos. Como consequência, nós deveríamos
capturar, processar, modelar informação acerca do mundo para que pudéssemos, enfim,
agir nele. Em outras palavras, processos cognitivos que dão emergência para nossas ativi-

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dades cognitivas tomam a forma de computações baseadas no cérebro em cima de conteú-


dos mentais internos e privados que deveriam representar coisas e estados de coisas exter-
nos. De acordo, o único tipo de cognição relevante tomaria lugar no interior intelectual de
alguns animais especiais, convenientemente, nós.
Um dos grandes problemas com esta abordagem tradicional, mesmo com a sua rou-
pagem computacionalista mais contemporânea, é o seguinte: se o cérebro realmente for
uma espécie de veículo de representações, um que só tem acesso a seus próprios conteúdos,
então não estaria em posição para comparar diretamente o que representa como sendo o
caso com o que é realmente o caso no mundo. Uma vez que as cognições intelectuais do
cérebro estariam desacopladas do mundo externo, elas ficam insularizadas na interioridade
do sujeito pensante. Como resultado desta abordagem intelectualista, nós seríamos especi-
ais, sim, mas também radicalmente separados do mundo natural. Nós poderíamos somente
com muita dificuldade tentar enfrentar as lacunas que aprendemos com os filósofos moder-
nos entre a subjetividade e objetividade do mundo, entre o interior e o exterior e, pior, entre
nossos estados internos mentais e o nosso próprio corpo. Esta saída internalista e intelectua-
lista é uma porta escancaradamente aberta para o dogmatismo e o ceticismo.
Esta bem estabelecida tradição intelectualista em filosofia da mente e das ciências
cognitivas defende que cognição envolve fundamentalmente conteúdos como também é
fundamentalmente constituída por manipulações internas e intelectuais de representações.
Onde houver cognição, há manipulação de representações internas. Esta é a tese da ubiqui-
dade da representação, como vimos. De outro lado, alguns adversários radicais, inspirados
em correntes pragmatistas, advogam que cognição não é nem basicamente representacional
e nem envolve, como em visões internalistas usuais, processamento e manipulação de con-
teúdos informacionais. Vários filósofos contemporâneos, como Wittgenstein e Brandom,
desenvolveram tópicos importantes do pragmatismo (pensado largamente) para motivá-lo
como uma fundação filosófica alternativa para o entendimento abrangente da cognição,
oposta a uma tradição representacionalista e intelectualista. Os RECers, por exemplo, cha-
mam atenção para a importância de práticas corporificadas e herdadas de interações sociais
para se entender tópicos relevantes na percepção, linguagem e na natureza da intencionali-
dade. O REC leva a sério sistemas biológicos e indivíduos situados interagindo em comu-

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nidades durante um período longo como precondições de nossas atividades cognitivas, ca-
racterísticas comumente negligenciadas em uma tradição intelectualista da cognição.
No contexto da discussão acerca da natureza da mente, pensamento, cognição e ra-
cionalidade, as últimas décadas de fato testemunharam a emergência da 4-E Cognition co-
mo uma alternativa ao I-Cognition. A primeira é uma plataforma interativa, relacional e
dinâmica que tenta prover ferramentas conceituais originais para o nosso entendimento do
que somos. Esta abordagem incorpora, assim, insights biológicos dentro do debate acerca
da cognição, ao chamar atenção para fatos básicos sobre organismos vivos, negligenciados
pela tradição intelectualista, tais como sua atividade perceptual de autoconstrução
(autopoiesis), sua necessidade de estar constantemente se adaptando a mudanças de condi-
ções do meio ambiente (adaptatividade), e a sua responsividade seletiva a aspectos especí-
ficos do meio ambiente criando seu próprio mundo de significado (enação). Desenvolvendo
esta visão, enativistas radicais exploram um passo corajoso ao removerem completamente o
conteúdo representacional da explicação de atividades cognitivas básicas em organismos
simples e também no nível humano.
De acordo, a visão intelectualista conservadora que o conteúdo é a marca do cogni-
tivo deveria ser rejeitada. Como resultado, a neurociência não deveria continuar a focar no
desenvolvimento de métodos e técnicas que nos possibilitem estudar o que causa o que den-
tro do cérebro. Filosofia, de acordo com 4-E Cognition, deveria motivar uma nova agenda
na neurociência ao oferecer um caminho conceitual alternativo sofisticado o suficiente, mas
parcimonioso, de fazer sentido do trabalho da cognição sem ter que introduzir extravagân-
cias teóricas ou conceituais, nos permitindo evitar mistérios teóricos sobre a lacuna entre o
interior e o exterior ou a subjetividade e a objetividade.
Este programa de pesquisa radical teve sucesso em prover explicações para uma
grande variedade de atividades cognitivas básicas (HUTTO & MYIN 2013, 2017). Contu-
do, uma solução direta da total naturalização do conceito de conteúdo e representações
mentais requer, dentre outras coisas, explicar como é possível sair da fundação básica da
cognição que é alegadamente não-conteudística para uma teoria do conteúdo mental usando
somente recursos naturalistas. A questão é como prover uma narrativa completa e sem la-
cunas naturalistas para a cognição. Com efeito, críticos concernentes à possibilidade de um

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programa totalmente enativo puseram desafios como “a objeção de escopo”, como vimos, o
problema do REC se provar relevante para a investigação de problemas tradicionais relaci-
onados com cognição superior envolvendo conceitos como informação com conteúdo, es-
tados representacionais, pensamento simbólico, inferências lógicas, conhecimento matemá-
tico, etc.
Teóricos enativistas, como Hutto e Myin (REC), Nöe (Enativismo Sensório Motor),
Thompson, Varela e Rosch (Enativismo Autopoiético) podem ser identificados como apoi-
ando abordagens ascendentes (bottom up) metodológicas para a explicação de fenômenos
cognitivos. Neste sentido, são autores em que a pretensão teórica envolve explicar caracte-
rísticas propriamente humanas como a cultura e a linguagem a partir da continuidade com
nossas características compartilhadas com outros animais não-humanos. Uma justificativa
comum para a defesa dessa perspectiva enativista é a de que o papel do corpo biológico foi
injustamente marginalizado durante boa parte da história da filosofia. Neste caso, entender
processos básicos do corpo como aqueles que permitem, por exemplo, nossa capacidade de
se movimentar habilidosamente em um ambiente é de fundamental importância para enten-
der processos mais complexos, como aqueles que permitem nossa capacidade, por exemplo,
de raciocinar, pois eles estariam intimamente acoplados.
Neste contexto, a linguagem somente seria um desafio para abordagens enativistas se
adotássemos uma posição referencialista e representacionalista como teoria semântica de
base de nossas explicações sobre como expressões linguísticas ganham significado. O refe-
rencialismo é uma tese da filosofia da linguagem que estipula que o significado da lingua-
gem deveria, em última análise, redundar na referência de termos a coisas extra-
linguísticas. É fácil notar a continuidade com teses representacionalistas mais gerais. Para
um referencialista, as expressões linguísticas só ganham significado por se remeterem dire-
ta ou indiretamente à referência, ou em outras palavras, as expressões da linguagem só ga-
nham significado ao se tornarem representação de elementos extra-linguísticos. Nesta tradi-
ção, proposições, por exemplo, só teriam sentido, por exibirem suas condições de verdade,
por serem compostas por nomes que denotam ou representam objetos no mundo. Como
consequência, se uma proposição exibir um nome que não tem referência, por exemplo, o
sentido de uma sentença estaria ameaçado; ela não poderia representar estados de coisas do

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mundo de maneira veritativa. Como explicar novamente como nossas representações lin-
guísticas podem descrever estados de coisas possíveis no mundo sem supor alguma isomor-
fia metafísica entre mundo e linguagem? Como explicar a nossa pretensa referência interna
a coisas externas no mundo? A base da linguagem deveria estar no etiquetar de coisas no
mundo através de nomes a partir da repetição de algum ato de ostensão mental ou físico? A
natureza da nossa linguagem deve ser de fato representar estados de coisas do mundo?
Assim, se a referência perder o papel de destaque para a definição do significado lin-
guístico e assumirmos um posicionamento pragmatista da linguagem, uma visão que de-
fende uma inseparabilidade entre conhecer e agir no mundo (LEGG & HOOKWAY, 2019),
o desafio do escopo seria, no mínimo, enfraquecido. Moyal-Sharrock (2019) afirma, por
exemplo:

The connection between the name and the thing is not made by an act of
ostension, not by merely hooking gestures on to their public referents, but
by contextualized repetition in practice […] in first picking up the linguis-
tic expression, the child is not describing with it or referring with it, but
still reacting with it. (Moyal-Sharrock, 2019, p. 9).

Contudo, antes de desenvolver este ataque wittgensteiniano ao referencialismo e ao


representacionalismo, é importante introduzirmos a hipótese do Duplex Account de Hutto e
Myin (2017). O pressuposto enativista de que organismos naturais funcionam em um aco-
plamento com o meio explica com eficiência as dinâmicas do aqui-e-agora, isto é, as dinâ-
micas do tipo online, mais comuns em investigações enativistas ― em contraposição, há
também dinâmicas do tipo offline, desacopladas do meio no qual se encontram os organis-
mos, caracterizadas pelo raciocínio simbólico.
O principal objetivo do livro de 2017 de Hutto e Myin é este, como anunciado no
subtítulo, fazer a ponte entre cognição sem conteúdo e cognição com conteúdo. Hutto e
Myin tentam explicar como cognição básica e cognição que envolve conteúdo se combinam
na cognição humana para dar uma explanação completa da relação de nossas capacidades
inferenciais e de julgamento com nossa alegada cognição básica sem conteúdo. De fato,
RECers em seu último trabalho estão avançando indiretamente em um problema epistemo-
lógico moderno: como ocorre a passagem da percepção simples de coisas para crenças e
julgamentos acerca destas coisas? Para filósofos de orientação kantiana, por exemplo, a

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percepção deveria já ser articulada conceitualmente para suplantar a lacuna entre percepção
e cognição de alto nível (MCDOWELL, 1994). Os problemas concernentes à aplicação de
nossos conceitos à nossa percepção para que possamos julgá-la com correção parece ter que
impregná-la inteiramente de conteúdo intencional.
Entretanto, de acordo com a interpretação de REC, como vimos, mentes básicas e
cognição básica não portariam conteúdo. “Cognição básica” significa todas as atividades
cognitivas exceto aquelas envolvendo linguagem pública e sistemas simbólicos culturais.
Da perspectiva do REC, conteúdo não é uma característica de toda a cognição. A cognição
que envolve conteúdo é uma realização especial de animais sociais especiais. Uma vez que
“conteúdo" deveria significar possuir condições de correção (acurácia e condições de ver-
dade) e uma vez que Hutto e Myin negam respostas kantianas e cartesianas que incorporam
representações por toda a cognição, eles devem oferecer uma explicação de como o conteú-
do emerge na natureza.
Para isto, eles defendem o que chamam de Duplex Account, a saber: a tese que a base
biológica e natural deveria encontrar uma plataforma social para que o conteúdo emergisse
na natureza. Aprofundando a agenda radical, o modo de investigação de REC é abandonar
a tese intelectualista a respeito do processamento interno de informação sobre o mundo
externo em favor de um know how puramente corporificado. Se mentes básicas não tem
conteúdo, então elas também não são veículos para suportar conteúdos. De acordo com esta
visão, criaturas inteligentes capazes de pensamento com conteúdo, como nós, deveriam
participar de e dominar práticas sócio-culturais estabelecidas ao longo de um período longo
de interações materiais complexas com o meio e com outros indivíduos. Estas práticas de-
veriam envolver representações públicas que dependem, para sua existência, de uma gama
de instituições e costumes contingentes. Participar de tais práticas sócio-culturais estabele-
cidas é necessário para a emergência de formas de cognição envolvendo conteúdo. De a-
cordo com Rolla (2018, p. 33), “a tese enativista está comprometida com as ideias de que a
percepção se direciona fundamentalmente a possibilidades de ação/interação com objetos e
eventos do ambiente.”
Hutto e Myin apresentam as motivações explícitas do REC ao afirmarem que: “tak-
ing the radical REC line is motivated by a desire to provide a complete and gapless natural-

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istic account of cognition, right here, right now.” (HUTTO & MYIN, 2017, p. 41). Todas
as explicações naturalistas que competem para entender a cognição básica devem enfrentar
o que chamam de Hard Problem of Content (HPC) de um modo ou de outro. Como é pos-
sível ter, a partir de fundações informacionais não-conteudísticas, uma teoria de conteúdos
mentais usando somente narrativas coerentes com as ciências naturais e que não pressu-
põem passos ou postulados metafísicos? Hutto e Myin (2017) explicam:

REC assumes that the normative practices required for claim making
arose with the advent of special kinds of practices was made possi-
ble by the establishment of sociocultural niches. (…) The trick to under-
standing the emergence of content is to understand the emergence
of a special sort of normative sociocultural practice involving the use
of public symbols. Thus unless there is something deeply mysterious about
social conformity and cultural evolution, there is nothing in the proffered
explanation that introduces any inexplicable gap into nature. (HUTTO &
MYIN, 2017, p. 146, destaques nossos).

Mesmo que algo mais seja dito para explicar o que há de distintivo na cognição hu-
mana que permita o tipo de performance característica da cognição superior, como
matemática, lógica e raciocínios contrafactuais, essa explicação ainda deixaria em aberto
como a linguagem emerge a partir da participação em práticas socioculturais, e um crítico
do enativismo poderia apontar que a explicação de dois níveis, a Duplex Account, apenas
pressupõe que, em algum momento, criaturas com certos traços biológicos efetivam habili-
dades linguísticas, mas que não explica como isso de fato ocorre.
Para enfrentarmos a objeção de escopo e oferecermos uma hipótese para a emergên-
cia de conteúdo pela linguagem no mundo natural é importante termos uma postura anti-
intelectualista. Cognição não deve ser pensada em termos de uma entidade consumindo e
manipulando representações, assim como a linguagem não deve ser pensada como um veí-
culo de representações do mundo a partir da referência a objetos. Em oposição, ambas,
cognição e linguagem, devem ser pensadas como capacidades especiais de alguns animais
corporificados de se engajar deontologicamente em trocas permanentes e dinâmicas com
outros animais em partes selecionadas do seu ambiente. Se engajar "deontologicamente"
aqui é crucial, porque nos oferece a posição normativa que precisamos para enfrentar o
desafio do escopo em relação à linguagem. Normatividade, como usamos regras e critérios

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para corrigir nossas práticas e ações, não é um subproduto de uma substância imaterial
computando coisas desaclopadamente do mundo, mas é fundamental para o entendimento
de nossa racionalidade de maneira geral e de nossa linguagem, em específico.
Com efeito, a linguagem só é um desafio para o enativista, caso tenhamos a visão
incorreta dela. Entendimento, significado, cognição são conectados primeiramente através
de inferências de ordem prática que constituem e articulam nossas ações no mundo e não
através da referência abstrata a partir de estados mentais internos de objetos do mundo.
Nossas práticas cognitivas, as maneiras a partir das quais nós agimos no mundo, são infe-
rencialmente articuladas e podem, portanto, ser testadas e controladas publicamente. Ser
racional como nós é de fato coordenar e dominar dinamicamente vários tipos de raciocínios
práticos heterogêneos e conformá-los a inúmeras pressões sociais e ambientais.
Neste contexto anti-intelectualista, podemos retornar a questão que abre esta seção:
"o que nós somos então?". O que ser é racional? O que significa desempenhar atividades
cognitivas? Um proposta enativista, coordenada com o inferencialismo linguístico de tipo
social e deontológico, afirma que o que é especial sobre nós não é o que temos dentro de
nossas mentes, mas sim o que nós fazemos no mundo. Como nós agimos no mundo é o que
nos torna especiais. Nós somos criaturas que, antes mesmo do domínio da linguagem, nos
damos regras, normas, critérios para avaliar coisas e nossas ações em um mundo instável e
misterioso. Nós fazemos este mundo inteligível para nós ao agirmos nele a partir de regras
e acordos que determinam um quadro de autorizações e proibições inferencialmente articu-
ladas.
Sim, nós podemos enfrentar o problema do escopo, pelo menos em relação a lin-
guagem, se tivermos uma abordagem da linguagem que enfatize elementos pragmatistas,
enativos e normativos para lidar com cognições complexas de maneira coerente com o na-
turalismo. A nossa plataforma de lançamento, coerente com a Duplex Account do REC, são
práticas sociais. Ou melhor, práticas sociais que já devem ser inferencialmente articuladas
em quadros de autorizações e proibições que constituem as regras e critérios pelos quais
controlamos e corrigimos nossas práticas. Nossas atividades cognitivas no mundo estão
imersas em um espaço de comprometimentos, autorizações e proibições. Neste contexto,
moralidade não é a consequência de sermos seres linguísticos e lógicos, mas deveríamos

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pensar o inverso. Somos linguísticos e lógicos em virtude de já termos sensibilidade e


domínio em identificar elementos deontológicos (autorizações e proibições) em práticas
cooperativas. Nós nos damos regras para julgar e fazer coisas no mundo, antes de represen-
tarmos ou denotarmos coisas a partir de estados mentais internos. Nós agimos a partir de
regras para tornar o mundo inteligível, antes de representá-lo.

3. Sobre o enativismo Wittgensteiniano: Ação e Linguagem

Nesta seção, trataremos da relação entre cognição básica e cognição complexa e


como podem se relacionar através do enativismo. Neste contexto, é importante pensar a
linguagem como ação e em continuidade com a cognição animal e não como um veículo de
manipulação de representações internas sobre o mundo exterior.
No que se segue, apresentaremos uma crítica feita por Moyal-Sharrock (2019) ao
REC, a saber, a de que seria incoerente que a linguagem cumprisse a função demarcativa
entre cognição básica e cognição superior. Em seguida, apresentaremos a proposta da ela-
boração de uma abordagem enativista informada por uma concepção pragmatista da lin-
guagem, inspirada no pensamento do segundo Wittgenstein.
Vale notar que os intérpretes do filósofo austríaco-britânico dividem seu pensamen-
to em fases. A divisão tradicional é a de que haveria um “primeiro Wittgenstein”, referindo-
se ao período de escrita, publicação e disseminação do Tractatus Logico-Philosophicus
(1913-1921) e ao seu aparente abandono da filosofia (1921-1928); um “Wittgenstein
intermediário”, referindo-se ao período de seu retorno à filosofia, marcado pelo início da
mudança de sua concepção de linguagem (1929-1934); e um “segundo Wittgenstein”, refe-
rindo-se ao período de escrita das Investigações Filosóficas (publicada postumamente em
1953) e de diversos outros textos, dentre eles, Sobre a Certeza (publicado postumamente
em 1969). Estes consolidam sua autocrítica e alteram radicalmente os eixos não só de seu
próprio pensamento, mas também do pensamento filosófico contemporâneo.
A partir da filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein, evitando o referencia-
lismo e representacionalismo próprios de uma abordagem intelectualista, é possível impedir
que a linguagem seja de fato um empecilho para as abordagens ascendentes (bottom-up). A
linguagem deveria ser vista como uma prática regrada, um jogo social com inúmeros usos

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distintos para fins distintos e não redutíveis a funções representacionais de objetos e estados
de coisas externos. Esta visão wittgensteiniana da linguagem pode ser usada pelo REC para
enfrentar a objeção de escopo.
Como vimos, segundo Hutto e Myin (2013), o intelectualista acredita que a cogni-
ção redundaria na manipulação intelectual de símbolos e apresenta a objeção de escopo ao
REC justamente por acreditar que só há atividade cognitiva se houver manipulação interna
de conteúdo representacional. Com efeito, o intelectualista pode eventualmente conceder
que o modelo explicativo de credenciais naturalistas do REC poderia ser empregado para
atividades cognitivas muito básicas, mas duvida que possa ser generalizado para atividades
mais sofisticadas:
REC approaches dealing with most cases of bona fide cognition
would be, accordingly, of limited value, on the assumption that they
won’t scale up. Call this the Scope Objection. It allows one to ac-
cept certain antirepresentationalist lessons learned from the lab and
nature while safe in the knowledge that even if representations aren’t
needed to explain the most basic forms of cognition this doesn’t pose an
interesting threat to intellectualism. (HUTTO & MYIN, 2013, p. 45).

Segundo Hutto e Myin o intelectualista desenvolve o problema do escopo ao defen-


der que, especialmente, em atividades cognitivas acerca de elementos que não estão presen-
tes ou situados na experiência imediata do sujeito, se demanda representações e
manipulação simbólica para mediarem a falta de acoplamento:
[...] This assessment fits snugly with the oft-cited claim that some behav-
ior is too off-line and representation hungry to be explained without ap-
peal to the manipulation of symbolic representations. In particular, non-
representational cognition, which might suffice for simple robots and an-
imals, isn’t capable of explaining properly world-engaging, human
forms of cognition. (HUTTO & MYIN, 2013, p. 46).

Com efeito, o intelectualista poderia defender que talvez o REC poderia lidar bem
com a cognição de animais muito simples e robôs, mas não com aspectos importantes e
sofisticados da cognição humana. Contudo, Hutto e Myin são otimistas em provar que o
representacionalismo do intelectualista é uma maneira inadequada para se investigar a cog-
nição de maneira geral e a linguagem em particular. Representações, em verdade, só seriam
necessárias em alguns casos especiais de cognição humana. Assim, Hutto e Myin contestam
o intelectualista:

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

But should that assessment prove mistaken—that is, should REC ap-
proaches make substantial inroads into explaining important forms of
human cognition—then the boot might just be on the other foot, for it
might turn out that representationally hungry tasks make up only a very
small portion of mental activity. Representationally based cognition might
be just the tip of the cognitive iceberg. (HUTTO & MYIN, 2013, 46).

Como vimos, segundo a Duplex Account, a emergência de conteúdo representacio-


nal linguístico deveria ser articulada com a emergência própria de práticas socioculturais
normativas envolvendo o uso público e regrado de aparato simbólico. Se RECers estiverem
corretos, ainda há o problema a respeito de como práticas sócio-culturais evoluíram de
mentes sem conteúdo representacional.
A partir de uma visão pragmatista, combinando aspectos da filosofia do segundo
Wittgenstein e de Brandom, podemos oferecer uma abordagem enativista para lidar com a
natureza da linguagem, uma vez que “through their acquaintance with culture, some
cognitive creatures acquire the capacity to think about the world in wholly new ways.
Through mastering what are for them novel practices, they become capable of new forms
of thinking of a unique kind.” (HUTTO & MYIN, 2017, p. 138).
Contudo, Moyal-Sharrock (2019) acusa Hutto e Myin de assumirem a posição do ce-
ticismo de continuidade para a abordagem naturalista e, consequentemente, para as preten-
sões enativistas ― mais especificamente para as pretensões do REC, uma vez que o conte-
údo mental apresentaria um desafio para uma explicação de continuidade da cognição hu-
mana em desenvolvimento com a cognição de animais não-humanos. Sobre isso, Moyal-
Sharrock (2019), ao apresentar o ceticismo de continuidade que atribui a Hutto e Myin,
comenta:

Linguistic and mathematical capabilities constitute a challenge for the en-


activist approach because an explanation of these abilities requires us to
move beyond dynamic interaction with the here-and-now environment.
(MOYAL-SHARROCK, 2019, p. 2).

De acordo com a autora, o Enativismo Radical é confrontado pela dificuldade de


explicar atividades cognitivas de nível mais alto. Sendo assim, é possível levantarmos a
hipótese de que haveria alguma diferença fundamental entre as cognições básicas, o tipo de
cognição em que o pressuposto enativista visa se apoiar, e as cognições complexas, o tipo
de cognição constituída por conteúdos representacionais. Enquanto mantivermos a tese da

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Duplex Account, a saber, que a cognição básica não envolveria representações e conteúdos
veritativos, mas a cognição superior envolveria, mantemos uma lacuna difícil de ser expli-
cada: “With Enactivism ― particularly Dan Hutto and Erik Myin’s Radical Enactivism —
representational content is out of the picture in basic human cognition. Does this mean that
Enactivism loses its grip when it comes to higher level cognition?” (MOYAL-
SHARROCK, 2019, p. 2).
Um exemplo importante de tentativa de naturalização da linguagem é proposta pela
teleosemântica. Esta abordagem movimentou uma gama de autores, como Millikan (1984),
em favor da concepção de que o conteúdo mental portaria uma normatividade oriunda de
uma função biológica:
According to teleological theories of content, what a representation repre-
sents depends on the functions of the systems that produce or use the rep-
resentation. The relevant notion of function is said to be the one that is
used in biology and neurobiology in attributing functions to components
of organisms. (NEANDER, 2018).

Hutto e Myin (2013, 2017) apresentam um veredito negativo a respeito de insuficiên-


cias da explicação que coloca normatividade no mundo natural. Eles advogam que nesta
explicação existe um descompasso fundamental entre erro representacional, ou falsidade, e
a falha de uma função biológica. Se apoiando em vários autores influentes diferentes eles
defendem que “evolution won’t give you more intentionality than you pack into it” (PUT-
NAM, 1992, p. 33); que há uma distinção crucial entre “functioning properly (under the
proper conditions) as an information carrier and getting things right (objective correctness
or truth)” (HAUGELAND, 1998, p. 309); ou que “natural selection does not care about
truth; it cares about reproductive success” (STICH, 1990, p. 62). Ou ainda como, por e-
xemplo, BURGE (2010, p. 303) nos lembra: “Evolution does not care about veridicality. It
does not select for veridicality per se.”
Por outro lado, a analogia do processamento de informação, típico da visão intelectua-
lista da nossa vida interior, deveria ser tomada como supérflua para entender cognição.
Como vimos, independente de ser fundada em nossa alma ou cérebro, a cognição não deve-
ria ser pensada em termos computacionais baseada em informação que é codificada, deco-
dificada, processada, transmitida, estocada. De acordo com a interpretação cognitivista,
informação supostamente colhida pelos sentidos por diferentes canais, é codificada, proces-

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sada e integrada de muitas maneiras, permitindo o seu acesso posterior. Ao invés disto,
Hutto e Myin abordam a cognição em termos wittgensteinianos, isto é, eles tomam ativida-
des cognitivas superiores, como a linguagem, como know how, ao invés de know that. As-
sim avançam na discussão através do exame de atividades e práticas regradas ao invés de
teorias verdadeiras sobre a realidade e através da investigação de competências e habilida-
des ao invés de propriedades de substâncias. Eles também aplicam o método de Wittgen-
stein neste contexto, quando eles afirmam que “certain conceptual problems do not warrant
straight solutions, they warrant dissolution by rethinking the underlying assumptions that
bring them into being and make them seem, at once, intractable yet unavoidable.” (HUTTO
& MYIN, 2017, p. 39).
Mesmo assim, diante de tais dificuldades como o HPC, Hutto e Myin procuram en-
frentar esses desafios buscando indícios de que haveria de fato alguma diferença fundamen-
tal entre tipos de mentes distintas; neste caso, entre mentes com conteúdo mental e mentes
básicas. Em suma, Hutto e Myin assumem que a mente com conteúdo (somente a humana)
se diferencia da mente básica quando há presença de linguagem e cultura; mais especifica-
mente, quando há presença de símbolos usados publicamente, tendo assim a chamada ca-
racterística de condição de satisfação. Desta forma, a prática sociocultural que envolve o
uso de símbolos e normas públicas é o que possibilita a existência de mentes com conteúdo
representacionais, como prevê a sua Duplex Account. Como consequência, criaturas capa-
zes de cognição com conteúdo devem dominar práticas especiais estruturantes, ou seja,
práticas envolvendo normas públicas para o uso de símbolos, onde tais normas dependem
para sua existência de uma variedade de costumes e instituições.
Moyal-Sharrock (2019) descreve que, neste ponto, o enativismo radical (REC) esta-
ria endossando posições que enativismo algum deveria endossar:

Hutto and Myin’s kink sounds like Deacon’s Rubicon. It reflects the view
that divides animal forms of communication from language proper. On
such a view, language essentially requires the manipulation of symbols —
the possibility to go from basically expressive modes of communication to
referential or representational modes of communication. For there to be a
language — or for our ancestors to have crossed this Rubicon — they had
to have mastered the ability to use sounds that hooked up with referents
by representing them. This is a view which, it seems to me, ought not to

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

be endorsed by Enactivism of any kind. It certainly doesn’t square with


Wittgenstein’s enactivism. (MOYAL-SHARROCK, 2019, p. 5).

Neste sentido, o REC parece fazer surgir ― ainda que não explicitamente ― uma la-
cuna entre nós e outros animais no ponto específico do uso da linguagem. Ainda que Hutto
e Myin assumam que o fato de possuirmos mentes com conteúdo não excluiria a presença
da cognição básica, fica claro que o argumento cria uma demarcação incoerente à proposta
inicial do enativismo, e também com a proposta inicial do REC. Neste caso, parece que o
REC, ao perceber a seriedade muitas vezes negligenciada do problema da existência do
conteúdo mental no mundo natural (HPC) ― ou, mais ainda, da passagem da mente sem
conteúdo para a mente com conteúdo ― busca uma explicação que o coloca em dificulda-
des com a sua própria visão enativista.
Moyal-Sharrock (2019) utiliza argumentos voltados às características da cognição
animal e ao enativismo Wittgensteiniano para apoiar uma concepção de linguagem centrada
em seu uso e para fragilizar o critério de demarcação apresentado por Hutto e Myin. A lin-
guagem, em sua proposta, passa a ser compreendida como um comportamento, uma ação,
não especialmente diferenciada em tipo de qualquer outra ação ou comportamento animal,
mas apenas em grau. Ela afirma: “Note that Hutto and Myin do find their own continuity
story gappy in one respect: ‘it can’t fill in all the relevant details’ (Hutto & Myin, 2017, p.
140). So I will now try — with the help of Wittgenstein — to fill in some of those details.”
(MOYAL-SHARROCK, 2019, p. 7).
Para compreendermos a argumentação de Moyal-Sharrock (2019), nos voltaremos
em maior detalhe à exposição e análise de seu enativismo Wittgensteiniano.
A concepção naturalista de Wittgenstein de que a linguagem é uma ação e uma ex-
tensão de um comportamento primitivo ― ou seja, ela seria apenas mais uma maneira de
aprender a se comportar e agir no mundo dentre outras ― é esclarecedora para demonstrar
fragilidades na demarcação apresentada até agora. Essa visão Wittgensteiniana se contrapõe
à visão tradicional das teorias do significado na história da filosofia. Como afirmam
Biletzki & Matar (2018):

Traditional theories of meaning in the history of philosophy were intent


on pointing to something exterior to the proposition which endows it with
sense. This ‘something’ could generally be located either in an objective

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space, or inside the mind as mental representation. (BILETZKI & MA-


TAR, 2018).

Como consequência, aquele que queira compreender o significado de uma palavra


não mais deveria centrar-se primariamente na busca pela referência desta palavra. Ao in-
vestigarmos o significado de uma palavra, não deveríamos mais pensar (generalizando),
mas sim ver (em cada caso particular) a multiplicidade de usos aos quais essa palavra é
submetida (Cf. PI §66). Segundo Biletzki & Matar (2018),
In order to address the countless multiplicity of uses, their un-fixedness,
and their being part of an activity, Wittgenstein introduces the key con-
cept of ‘language-game’. He never explicitly defines it since, as opposed
to the earlier ‘picture’, for instance, this new concept is made to do work
for a more fluid, more diversified, and more activity-oriented perspective
on language. (BILETZKI & MATAR, 2018).

A partir dessa abordagem Wittgensteiniana, Moyal-Sharrock (2019) aponta que a


linguagem emerge do desenvolvimento de algumas de nossas reações animais ou naturais
compartilhadas, e não de algum tipo de raciocínio (Sobre a Certeza §475). Essas reações
seriam como chorar quando se está triste ou com dor, sorrir quando se está alegre, ofegar ou
gritar quando se está com medo, e fariam parte do que Wittgenstein chama de ‘‘modo de
agir humano compartilhado” (Investigações Filosóficas, §206). Neste mesmo texto ele de-
senvolve a ideia:
Como uma pessoa aprende o significado de nomes de sensações, por e-
xemplo, da palavra “dor”? Esta é uma possibilidade: as palavras vêm a ser
ligadas com a expressão original, natural, da sensação, e colocadas no seu
lugar. Uma criança se machuca e grita; os adultos, então, falam com ela e
lhe instruem com exclamações, e, mais tarde, sentenças. Eles ensinam à
criança um novo comportamento de dor. (§244).

Tomando essa descrição do processo de aprendizado da linguagem, podemos afirmar


que haveria aqui um importante pressuposto acerca da linguagem; a saber, ela seria especi-
almente voltada para um uso:
Para uma grande classe de casos de utilização da palavra “significado” ―
se bem que não para todos os casos da sua utilização ― pode-se explicar
assim essa palavra: o significado de uma palavra é o seu uso na lingua-
gem. (Investigações Filosóficas, §43).

Podemos agora retornar ao exemplo proposto por Wittgenstein nas Investigações


§244. Quando a criança aprende a falar “dor”, ela não está aprendendo a se referir (neces-

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sariamente) à palavra “dor” e ao conteúdo da palavra dor, mas está aprendendo a reagir
com a palavra “dor” ou com a proposição “tenho dor”, ampliando, assim, seu repertório de
comportamentos e reações à dor. Desta maneira, não está claro que a linguagem tenha
sempre uma relação íntima com conteúdos representacionais ― partir dessa imagem da
linguagem, teríamos suporte para rejeitar a tese representacionalista de que toda cognição
envolve necessariamente conteúdo representacional.
A partir dessa interpretação, seria possível descrever um uso legítimo de linguagem
feito, por exemplo, por uma criança que está aprendendo a falar, sem que seja necessário
afirmar que ela deve ser capaz de realizar atividades que requerem uma cognição complexa,
como representar estados mentais a partir de símbolos. Neste contexto, Moyal-Sharrock
(2019) afirma:

The connection between the name and the thing is not made by an act of
ostension, not by merely hooking gestures on to their public referents, but
by contextualized repetition in practice […] in first picking up the linguis-
tic expression, the child is not describing with it or referring with it, but
still reacting with it. (MOYAL-SHARROCK, 2019, p. 9).

Reforçando a relevância de se aliar a uma visão Wittgensteiniana da linguagem para


mostrar que cultura e uso público da linguagem não seriam características adequadas para a
demarcação proposta por Hutto e Myin, Moyal-Sharrock recorre ao conceito de regra gra-
matical. Estas regras determinam o uso de palavras que são exibidas no discurso humano,
em explicações do significado, em correção de erros e o que conta como uso aceito. Segun-
do a autora:

Rules of grammar are simply expressions of the norms of sense that are
socially generated and maintained; they grow out of, and with, our natural
ways of acting and our socio-cultural practices. Grammar does not gener-
ate language; nor does it exist independently of language or action; it is
embedded and enacted in what we say and do. (MOYAL-SHARROCK,
2019, p. 12).

Em continuidade com esse raciocínio, Moyal-Sharrock explora o conhecimento que


temos sobre a capacidade de animais não humanos serem capazes de aprender pequenos
conjuntos de relações entre símbolos:
Take the fall field cricket; its less desirable smaller males produce court-
ship calls that dishonestly signal the body size of high condition males in
order to be more sexually attractive. This example of animal interaction

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beyond the here-and-now environment also indicates that animals are ca-
pable of false representation. But this crosses Hutto and Myin’s dividing
line between animal and human cognition. For, on their view, forms of
cognition are content-involving in that ‘they represent the world in ways
that can be true or false, accurate or inaccurate, and so on’ (Hutto & Myin,
2017, p. xii). (MOYAL-SHARROCK, 2019, p. 6).

Se a capacidade de “representar falsamente” estiver presente em outros animais além


dos seres humanos, então parece que alguns animais deveriam ser classificados enquanto
capazes de cognição complexa. Assim, o critério proposto pelos autores do REC para dis-
tinguir as cognições básicas e complexas em tipos perde sua plausibilidade, já que ativida-
des simbólicas também estão presentes em animais não humanos. Outros exemplos interes-
santes para sustentar essa declaração de Moyal-Sharrock são o da capacidade de primatas
de fingirem estar feridos, esconderem alimentos, ou mesmo de crianças pré-linguísticas de
forçarem choros.

As Whiten and Byrne (1988) have shown, all groups of monkeys and apes
use deception, though the insight necessary to plan or understand decep-
tion seems restricted to great apes (Byrne 1999, p. 203). Examples of de-
ception include: leading other animals towards or away from places; mak-
ing them think that the agent has been hurt; concealing the excited glances
that would reveal a hidden food, or concealing the food itself in the hand
or under the body… Prelinguistic children often misrepresent their feel-
ings and behaviour—sometimes concealing the latter, and exaggerating
the former by forced crying. (Moyal-Sharrock, 2019, p. 6).

Todos estes casos descritos envolveriam a noção de engano ― ou, como chama
Wittgenstein, uma raiz primitiva da dúvida. “An ape who tears apart a cigarette, for exam-
ple. [...] The mere act of turning an object all around and looking it over is a primitive root
of doubt.” (Remarks on the Philosophy of Psychology, II §345). E isto, por sua vez, envol-
veria a noção de condição de satisfação, tão cara ao conceito de “conteúdo representacio-
nal”, atribuído por Hutto e Myin apenas à espécie humana com o advento do uso de símbo-
los públicos da linguagem. Moyal-Sharrock, 2019, critica:

To speak as do Hutto and Myin of ‘the emergence of a special sort of


normative sociocultural practice involving the use of public symbols’
(Hutto & Myin, 2017, p. 146) is not to encounter a kink in our practices,
but a natural and enactive extension of our practices. [...] Stepping into
language is not a crossing into a brave new world, where suddenly, be-
cause the word (sometimes) replaces the deed, concepts have become in-
commensurable with our actions. Yes, our tools are more sophisticated

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than those of primates but they evolve from those, without a kink. (MO-
YAL-SHARROCK, 2019, p. 14).

A partir dessa perspectiva pragmatista da linguagem ― que pode ser descrita como
uma técnica (Investigações Filosóficas §199) ou uma atividade ―, concluímos que a lin-
guagem não precisa ser um empecilho para a tese de continuidade entre mentes básicas e
complexas. Na próxima seção, veremos como desenvolver a ideia do enativismo Wittgens-
teiniano que linguagem é fundamentalmente ação a partir do pragmatismo e inferencialis-
mo de Brandom.

4. Sobre uma plataforma de lançamento normativa para enfrentar o HPC inspi-


rada em Brandom

Como vimos na seção II, o modo de investigação de REC é abandonar a imagem da


cognição baseada no processamento de informação e a visão representacionalista em favor
de um know how puramente corporificado. Com efeito, a maneira clássica na história da
filosofia de abordar a linguagem humana como uma atividade cognitiva essencialmente
diferente das ações do corpo (isto é, essencialmente diferente de uma maneira de se
comportar no mundo) foi questionada por alguns filósofos de inspiração pragmatista, em
especial por Wittgenstein.
A virada pragmática teve uma grande repercussão no debate filosófico. No próprio
desenvolvimento da filosofia de Wittgenstein, percebe-se uma mudança de olhar. No
Tractatus Logico-Philosophicus (1921), Wittgenstein não apresenta nenhum exemplo práti-
co de uso da linguagem, enquanto que nas Investigações Filosóficas (1953) o texto não só
apresenta incontáveis exemplos práticos, dentre os quais alguns com referência à aquisição
da linguagem por crianças, mas também avança teses filosóficas que valorizam o papel da
ação e práticas regradas para uma compreensão mais ampla de fenômenos linguísticos e
sociais. No lugar de se pensar a formação de crenças e o uso da linguagem em adultos já
formados, começa-se a investigar a aquisição de linguagem em crianças.
Acreditamos que a possibilidade da mudança de investigação acerca do papel da lin-
guagem humana proposta por visões como a de Wittgenstein nos possibilita usufruir de e
nos apoiar em um novo arcabouço conceitual mais pragmatista. Por exemplo, podemos

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explicar a linguagem a partir de práticas sociais regradas ou jogos. Contudo, mesmo que a
linguagem possa ser entendida, também, no âmbito pragmático e comportamental, ainda há
a pergunta de como a linguagem como jogo evolui de mentes sem conteúdo. A hipótese a
ser defendida nesta seção é: Nós portamos conteúdo representacional na linguagem quando
dominamos relações inferenciais e dominamos relações inferenciais quando dominamos
relações normativas, especialmente quando respondemos apropriadamente a quadros de
autorizações e proibições. Desenvolvemos ideias Wittgensteinianas a partir do
inferencialismo de Brandom para mostrar que a linguagem emerge da ação inferencialmen-
te articulada a partir de elementos normativos e não da manipulação em estados mentais
internos de conteúdos fixados pela referência a coisas.
Hutto e Myin (2017) lidam com o que chamamos de enigma moderno concernente à
articulação entre percepção e julgamento ao usarem noções sociais e normativas. Assim
como vimos, o problema moderno pode ser posto da seguinte forma: como nós transitamos
da percepção para crença ou julgamento? Parece que a percepção já deveria ser conceitu-
almente articulada e impregnada de conteúdos representacionais para que o julgamento
pudesse se aplicar sistematicamente a ela. A partir deste problema, Hutto e Myin defendem
que “it is possible, in principle, to explain the origins of content-involving cognition in a
scientifically respectable, gapless way. RECers aim to do so by making special reference to
the important role played by sociocultural scaffolding.” (HUTTO & MYIN, 2017, p. 122).
O trabalho do REC, como vimos, deveria ser, pois, procurar explicar como estados
mentais com conteúdo surgem a partir de um processo de domínio de práticas sociocultu-
rais de tipos especiais. Que tipo de prática social daria oportunidade para a emergência de
conteúdos representacionais? REC já aponta que o desenvolvimento de práticas intersubje-
tivas e da nossa sensibilidade em relação a normas relevantes para a linguagem surgem com
o domínio do uso de sistemas simbólicos públicos. Hutto e Myin defendem, pois, que:

Content only arises when special sorts of sociocultural norms are in place.
The norms in question depend on the development, maintenance, and sta-
bilization of practices involving the use of public symbol systems through
which the biologically inherited cognitive capacities can be scaffolded in
particular ways. (HUTTO & MYIN, 2017, p. 145).

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Neste contexto, a distinção da imagem de evolução natural baseada em uma plata-


forma de lançamento (launchpad) e de outra inspirada em uma correia ou coleira (leash) é
seminal, porque deveríamos ver a evolução como colocando plataformas que funcionam
como lugar de lançamento para a emergência de novas competências e habilidades e não
como uma correia guiando, orientando e limitando os próximos passos evolutivos. Além
disto, Hutto e Myin (2017) defendem que, para a emergência sociocultural do conteúdo,
nós devemos assumir que nossos ancestrais foram capazes de processos sociais de aprendi-
zado de outros membros da espécie, e que eles estabeleceram práticas culturais e institucio-
nais em um longo período de interações.
Na explicação dos RECers haveria a necessidade de uma articulação da dinâmica de
um mundo sem conteúdo sendo suplementada por uma plataforma socio-cultural de práti-
cas para que o conteúdo representacional possa surgir no mundo natural. Mas que tipo de
plataforma social deve ser esta? Se linguagem deve ser de fato um jogo, o que torna possí-
vel este jogo especial, esta prática regrada especial?
Acreditamos que a resposta a estas perguntas podem ser encontradas em um tipo de
explicação inferencialista do conteúdo, tal como a de Brandom (1994, 2000, 2008). Uma
explicação de conteúdo em termos de estados inferenciais instituídos por aspectos normati-
vos parece ser compatível com o enativismo e ajudar a superar as dificuldades da Duplex
Account do REC, porque podemos nos preocupar se esta explicação separa tanto a cognição
sem conteúdo da cognição com conteúdo que permanece um mistério como estes dois ní-
veis de cognição podem ser funcionalmente integrados. Assim com para um autor cartesia-
no, por exemplo, é difícil explicar como a mente e o corpo interagem, para RECers é difícil
explicar como cognição sem conteúdo se conecta com cognição com conteúdo. A nossa
hipótese aposta no papel que inferências articuladas normativamente desempenham no con-
texto em jogos de linguagem.
A pragmática lida com modos pelos quais falantes usam expressões. Já a pragmática
normativa é derivada da assunção que são regras do uso dos falantes que são cruciais para a
semântica e concentram seu estudo nestas regras. O paradigma básico é que a linguagem é
um tipo de jogo, como xadrez ou futebol: assim com são as regras do xadrez que fazem
peças de madeira se tornarem peões ou reis, ou tornam eventos como chutar uma coisa ar-

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redondada através de uma coisa quadrada em um gol, são as regras de nossos jogos de lin-
guagem que fazem alguns sons que emitimos (ou de marcas físicas que produzimos) se
transformarem em palavras e expressões significando alguma coisa. Esta visão é posta ex-
plicitamente pelo segundo Wittgenstein e é desenvolvida por Brandom.
Nossas práticas linguísticas, pensa Brandom inspirado em Wittgenstein, podem ser
articuladas do mesmo modo. Nós somos jogadores no que é chamado de jogo de dar e de-
mandar razões, o jogo mais fundamental que podemos jogar. Este jogo pode ser central-
mente articulado em termos de dois tipos de status deontológicos, a saber, comprometimen-
tos e autorizações. Comprometimentos se referem ao que nós somos obrigados a fazer de
acordo com regras do jogo. Ao passo que autorizações são nossas permissões de fazer algo
ou performar uma atividade de acordo com regras do jogo. No mesmo sentido que altera-
mos o status deontológico do jogo de xadrez quando movemos uma torre para por o rei em
xeque, quando fazemos uma asserção, por exemplo, não estamos apenas tentando descrever
estados de coisas externos, mas também alteramos o conjunto de status em nossa comuni-
dade linguística.
Brandom (2008) descreve sua filosofia da linguagem como um inferencialismo ex-
pressivista pragmático. Por inferencialismo ele quer dizer uma abordagem da semântica de
acordo com a qual conceitos e proposições só adquirem seu significado em virtude do papel
que desempenham em inferências. De maneira mais detida, a concepção da linguagem de
Brandom é articulada em termos de duas noções primitivas, a saber, asserções e inferências.
Ele descreve a primeira como: “The core case of saying something is making a claim, as-
serting something.” (BRANDOM, 2008, p. 42). E a segunda é entendida como o ato de
inferir uma asserção de outra e o know how prático de “sort inferences into those that are
and those that are not materially good ones.” (BRANDOM, 2008, p. 44). De fato, as noções
de asserção e inferência são internamente relacionadas, como “[a]ssertions are essentially
[...] speech acts that can play the role both of premises and conclusions of inferences.”
(BRANDOM, 2008, p. 42). Agora, neste ponto de vista, raciocínio redunda em fazer mo-
vimentos, dar passos entre asserções de acordo com propriedades de inferências socialmen-
te estabelecidas, como oferecer razões para asserções com as quais se comprometeu ou de-

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mandar razões de outros, assim a linguagem aparece como um jogo de fazer asserções, e
usá-las para dar e demandar razões de outros.
Making It Explicit (1994) de Brandom é provavelmente a primeira tentativa comple-
tamente sistemática e tecnicamente rigorosa de lidar e explicar o significado de expressões
linguísticas em termos do seu uso governado por normas sociais (“significado como uso”,
segundo o slogan Wittgensteiniano). Como consequência, temos uma explicação não repre-
sentacionalista da intencionalidade do pensamento e da racionalidade da ação também.
Brandom tenta atingir estes objetivos ao oferecer uma abordagem inferencialista oposta a
uma semântica clássica baseada no referencialismo e na semântica de condições de verdade
para linguagens naturais. Oferece, portanto, baseado no inferencialismo, uma explicação do
papel expressivo da lógica e do vocabulário semântico tais como “verdade”, “referir”, e
“representar”. Assim, ao começar com atitudes normativas práticas e os status deontológi-
cos de comprometimento e autorização para asserções, e normas que são implícitas em nos-
sas práticas de dar e perguntar por razões, a obra de Brandom tenta traçar uma rota social
do raciocínio à representação. Finalmente, Brandom também enfatiza o caráter holista da
semântica inferencialista: “one cannot have any concepts unless one has many concepts (...)
the content of each concept is articulated by its inferential relations to other concepts.” As-
sim, “concepts, then, must come in packages (though it does not yet follow that they must
come in just one great big one).” (BRANDOM, 2000, p. 15-16).
Isto também traz luz para o paralelo entre linguagem e jogos. Assim como um pe-
daço de madeira se torna uma peça no jogo de xadrez em virtude somente de ser governado
por certas regras do jogo e pela relação destas regras com todas as outras regras do jogo,
uma expressão significa algo em função de ser governada por regras do jogo de linguagens
e de suas relações com outras regras em vários outros jogos. Por conseguinte, assim como
as regras do xadrez constituem um espaço no qual podemos desfrutar jogos de xadrez, as
regras dos nossos jogos de linguagem constituem o espaço de significação de nossas práti-
cas.
O fenômeno de regras dentro do contexto de nossas práticas linguísticas também
foram discutidas por Wittgenstein (1953). Como vimos, ele apontou a grande diversidade
de “jogos de linguagem”, mas também levou a atenção para o problema de como nós a-

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prendemos, seguimos e mantemos regras que são inerentes a estes jogos. Wittgenstein de-
fendeu alguns pontos cruciais de regras que não são imediatamente óbvias: especialmente
que nossas regras não são todas explícitas, porque para sermos capazes de seguir uma regra
temos que interpretá-la, e para interpretá-la corretamente, nós iríamos precisar de alguma
outra regra, o que nos levaria para um regresso ao infinito.
Brandom defende que jogos de linguagem são governados por regras inferenciais,
ou que nossa linguagem é inferencialmente articulada. As regras inferenciais são o que é
necessário para fazer a linguagem ser um veículo do jogo de dar e receber razões. Assim,
para sermos capazes de dar razões, temos que ser capazes de fazer asserções que servem de
razões para outras asserções, assim nossa linguagem deve oferecer sentenças que acarretam
outras sentenças. Para sermos capazes de demandar razões, nós devemos ser capazes de
fazer asserções que desafiam outras asserções, assim nossa linguagem deve nos oferecer
sentenças que são incompatíveis com outras sentenças. Assim nossa linguagem deve ser
estruturada por acarretamentos e, especialmente, por relações de incompatibilidade materi-
al.
Neste sentido, é importante notar que, subjacente a inferências e incompatibilidade,
estão certos status normativos, que seres discursivos adquirem e mantêm ao usarem a lin-
guagem. Estes status compreendem vários tipos de comprometimentos e autorizações. As-
sim, por exemplo, quando faço uma asserção, estou me movimentando em um quadro de-
ontológico de comprometimentos e autorizações. Com efeito, por exemplo, quando faço
uma asserção, me comprometo em dar e receber razões para ela quando for desafiado. E ao
asserir algo, também autorizo pessoas a reasserirem minha asserção refletindo qualquer
novo possível desafio. Esta ação recíproca de compromissos e autorizações é também a
fonte subjacente da relação de incompatibilidade, uma vez que comprometimento de uma
asserção exclue a autorização para outras. Adicionalmente, existe a relação de herdar com-
promissos e autorizações, por exemplo, por me comprometer com “isto é um cachorro”, eu
estou comprometido também com ˜isto é um animal” e se tiver autorizado a asserir “está
chovendo”, eu estou autorizado também a asserir “as ruas estão molhadas”.
A ideia de Brandom é que viver em uma sociedade humana é estar inserido em uma
rede rica de relações sociais normativas que possuem diferentes tipos de status normativos.

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Estes status alcançam muitas dimensões. Acreditamos que esta é a plataforma de lançamen-
to normativa que precisamos para o desafio de naturalizar a linguagem. A comunicação
linguística constitui um importante estrato destes status (compromissos e autorizações) e
entender linguagem significa ser capaz de, dentre outras coisas, de acompanhar os status de
um interlocutor. Precisamos de uma distribuição social anterior a linguagem já com status
normativos, para possibilitar a multiplicidade de perspectivas que fazem a objetividade do
conteúdo linguístico possível, tirando a centralidade do papel de representações na nossa
cognição linguística. Temos conteúdo, porque temos linguagem que, por sua vez, emerge
de jogos mais rudimentares que jogamos com status normativos.
A resposta de Brandom ao desafio de Wittgenstein a respeito da impossibilidade da
explicitação de todas as regras da linguagem, de fato é defender que ao menos as regras
mais fundamentais devem permanecer implícitas em nossas práticas. Elas existem a partir
dos status normativos de falantes, o seu tratamento das asserções de outros, e também das
suas próprias, como correto ou incorreto.
Inspirados no segundo Wittgenstein e em Brandom, vemos como a linguagem não
precisa ser vista como um problema para enativistas radicais. A objeção de escopo usual-
mente apresentada para criticar explicações enativistas só representa um problema, se ti-
vermos uma visão referencialista e representacionalista da natureza da linguagem. Mas ao
usarmos a ideia pragmatista de que a linguagem é constituída por jogos, atividades regra-
das, que são, por seu turno, inferencialmente articuladas em função de status normativos e
deontológicos, como compromissos e autorizações entre indivíduos, vemos que o desafio
de naturalização do conteúdo pode ser respondido. Apresentamos a hipótese aqui do uso do
inferencialismo pragmático para superar o problema difícil do conteúdo.
Trata-se, então, de uma hipótese normativa para a grande questão a respeito de co-
mo práticas linguísticas se desenvolvem de mentes sem conteúdo. Nós portamos conteúdo
representacional quando dominamos relações inferenciais e dominamos relações inferenci-
ais quando dominamos relações normativas, especialmente quando somos introduzidos em
quadros de autorizações e proibições. Assim, a linguagem e o conteúdo representacional
emergem da ação inferencialmente articulada a partir de elementos normativos em práticas

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

regradas e não da manipulação em estados mentais internos de conteúdos fixados pela refe-
rência a coisas externas.

5. Considerações finais

Seria a linguagem um desafio para abordagens enativistas? Não necessariamente.


Nós manipulamos conteúdo quando dominamos relações inferenciais e dominamos rela-
ções inferenciais quando quando somos inseridos em quadros deontológicos de autoriza-
ções, proibições e compromissos. Em outras palavras, quando jogamos jogos, quando es-
tamos imersos em práticas regradas inferencialmente articuladas as quais fomos introduzi-
dos pela nossa comunidade. Apresentamos uma hipótese inferencialista pragmatista para
mostrar como conteúdo pode surgir de práticas socioculturais e estas, por seu turno, pude-
ram se desenvolver de mentes sem conteúdo.
Além disso, se decidirmos utilizar uma teoria pragmatista da linguagem em vez de
assumirmos a tese referencialista, então parece-nos que a demarcação de tipos diferentes de
cognição em relação às cognições humana e animal a partir do uso público da linguagem
não apresentaria um desafio forte para a hipótese de continuidade. As abordagens bottom-
up seriam, portanto, eficazes para explicar características humanas a partir de característi-
cas não exclusivamente humanas como a competência de alguns primatas em se movimen-
tar normativamente na natureza ou seja a partir de autorizações e proibições, mesmo que
rudimentares, em princípio.
Esta é a plataforma de lançamento para mostrarmos como o conteúdo representacio-
nal da linguagem emerge de cognições básicas. Basta que algumas cognições básicas sejam
baseadas em comportamento social de animais que dominem mesmo que rudimentarmente
proibições e autorizações de suas práticas comunitárias. A linguagem não deve, assim,
provocar uma lacuna explanatória na investigação sobre as diferenças de tipo, por exem-
plo, entre a nossa capacidade de se movimentar e a nossa capacidade de raciocinar. Ambas
são capacidades práticas desenvolvidas em um período longo ao se reagir competentemente
a pressões ambientais. São competências (ou know how) com uma base biológica. Como
defende a concepção Wittgensteiniana, a linguagem surgiu pela ação e não pelo raciocínio.

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A linguagem pode portar conteúdo representacional, como discutiram Hutto e Myin


ao tentarem responder ao HPC e ao scale-up problem, em função da complexificação de
quadros de inferências baseadas em status normativos pré-linguísticos, como autorizações,
comprometimentos e proibições. Assim, a linguagem não deve ser tratada como uma ativi-
dade cognitiva isolada e fundamentalmente distinta das práticas do corpo, mas sim como
mais uma maneira de se comportar no mundo: se portar no mundo de uma maneira especi-
al, a saber, exibindo status e comportamento normativo. A linguagem não seria responsá-
vel, portanto, por uma distinção de tipo fundamental entre a cognição humana e a cognição
animal, somente por uma distinção de grau. Nós portamos conteúdo quando dominamos
relações inferenciais e dominamos relações inferenciais quando dominamos atividades de-
ontológicas, mesmo que rudimentarmente, de autorizações e proibições em práticas regra-
das.

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160
O DESAFIO DA INTEGRAÇÃO EXPLANATÓRIA PARA O
ENATIVISMO: ESCALONAMENTO ASCENDENTE OU
DESCENDENTE

Eros Moreira de Carvalho


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Giovanni Rolla
Universidade Federal da Bahia

RESUMO: Enativismo é uma família de teorias que interpretam a ação como


constitutiva da cognição e que rejeitam a necessidade de postular representações para
explicar todas as atividades cognitivas. O reconhecimento de um modo biologicamente
básico e não representacional de cognição, no entanto, levanta a questão sobre como
explicar atos cognitivos superiores ou complexos, o que chamamos de desafio de
integração explanatória. Neste artigo, examinamos criticamente algumas tentativas de
atender a esse desafio através do escalonamento ascendente (scale up) da cognição
básica e do escalonamento descendente (scale down) da cognição complexa dentro do
programa de pesquisa enativista.

PALAVRAS-CHAVE: Enativismo radical. Enativismo autopoiético adaptativo. Cognição


básica. Cognição superior.

ABSTRACT: Enactivism is a family of theories that construe action as constitutive of


cognition and reject the need to postulate representations in order to explain all
cognitive activities. Acknowledging a biologically basic, non-representational mode of
cognition, however, raises the question of how to explain higher or more complex
cognitive acts, what we call explanatory integration challenge. In this paper, we
critically discuss some attempts to meet that challenge through scaling up basic
cognition and through scaling down complex cognition within the enactivist research
program.

KEYWORDS: Radical enactivism. Adaptive autopoietic enactivism. Basic cognition. Higher


cognition.
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1. Introdução: o desafio da integração explanatória para o enativismo

De um modo geral, o enativismo é uma concepção da mente e da cognição que


nasce — ou, ao menos, que recebe esse nome — no trabalho inaugural de Varela,
Thompson e Rosch (1991) sobre cognição corporificada. Mas é equivocado falar do
enativismo. Conforme o programa de pesquisa avançou nessas quase quatro décadas,
tornou-se possível distinguir algumas variações ou vertentes com diferenças
substanciais1. Há, no entanto, dois consensos, e é com base nestes consensos que nos
referiremos a uma teoria unificada: por um lado, a rejeição do representacionalismo e,
por outro, a tese de que a ação é constitutiva de pelo menos algumas atividades
cognitivas (ou seja, a ação não possui apenas relevância causal para a cognição)2. A
rejeição do paradigma representacionalista, segundo o qual todo ato cognitivo requer a
manipulação de representações, abre caminho para uma concepção de cognição de
acordo com a qual o agente está em contato imediato com o seu ambiente. O famoso
lema inspirado nas palavras do roboticista Rodney Brooks, que surge no debate acerca
dos limites do representacionalismo na inteligência artificial (1991), ilustra bem esse
ponto: o mundo é seu melhor modelo—ou seja, não é preciso representar um mundo
através de modelos internos se entendermos que o agente é presente no mundo3. Já a

1
A distinção entre as variedades de enativismo geralmente dá-se da seguinte maneira. O que hoje alguns
chamam de enativismo autopoiético (MATURANA & VARELA, 1980; VARELA, 1979) caracteriza-se
pela tese de que a ação relevante para a cognição é uma ação de automanutenção e autoprodução da
identidade do sistema cognitivo, chamada de autopoiese. Como veremos em mais detalhes a seguir,
alguns proponentes dessa vertente defendem que há uma continuidade forte entre vida e cognição, isto é,
que as condições de emergência para sistemas vivos são ipso facto condições de emergência para
sistemas cognitivos (THOMPSON, 2007), outros qualificam essa tese e acrescentam condições de
adaptação como uma condição complementar (DI PAOLO, 2005; DI PAOLO; BURHMANN;
BARANDIARAM, 2017). O enativismo sensório-motor (NOË, 2004, 2012; O’REGAN; NOË, 2001)
defende marcadamente a tese de que o entendimento de habilidades sensório-motoras é condição
necessária para a consciência perceptual, sendo, portanto, uma tese a respeito de estados fenomênicos.
Fica em aberto, nessa perspectiva, como a noção de entendimento é usada, o que, em uma leitura menos
caridosa, interpretaria o enativismo sensório-motor como contrabandeando noções representacionais. Por
fim, o enativismo radical (HUTTO; MYIN, 2013; 2017) argumenta por um não-representacionalismo
forte, segundo o qual não há bases epistemologicamente viáveis que permitam tratar processos cognitivos
como instanciando propriedades semânticas. Nessa perspectiva, como veremos abaixo, a intencionalidade
mínima de agentes cognitivos é não-representacional.
2
Outra maneira de interpretar esse aspecto do enativismo é que não existe uma diferença conceitual, ou
ao menos não há boas bases para aceitar essa diferença, entre a relevância meramente causal de uma fonte
de cognição e a constituição da cognição por essa fonte.
3
Brooks, na verdade, escreve: “quando nós examinamos inteligências de nível muito simples, nós
descobrimos que representações explícitas e modelos do mundo simplesmente atrapalham [get in the
way]. Ocorre que é melhor usar o mundo como seu próprio modelo” (BROOKS, 1991, p. 140).

162
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

tese afirmativa explicita o que conecta o agente ao mundo nessa nova perspectiva, a
saber, a ação exploratória do agente no seu meio imediato. Isso significa que é a partir
da ação que o agente efetiva a sua presença—o que ecoa, não por acaso, a tradição
fenomenológica de Merleau-Ponty e Heidegger. Assim, de acordo com o enativismo, a
unidade mínima de análise para qualquer ato cognitivo é a relação dinâmica de
acoplamento entre agente e ambiente, uma relação que ocorre, por um lado, em função
das disposições morfológicas do agente e, por outro, em função das constantes e
variáveis ambientais que aquelas disposições permitem ao organismo explorar
proficientemente. Por essa razão, o enativismo implica a hipótese de que a cognição
possui um nível irredutivelmente corporificado e situado.
A concepção enativista da mente rejeita, portanto, uma concepção clássica—mas
o faz com um alto preço a pagar. Segundo a concepção clássica, uma mente é
essencialmente uma entidade que articula, compõe e combina representações. Os
proponentes contemporâneos do representacionalismo, com efeito, entendem esses
processos representacionais como subpessoais, visto que estão aquém do limiar da
consciência e do controle do sujeito. Mas o ponto crucial é que o processamento
cognitivo vai desde a recepção crua de estímulos sensoriais até a formação de
pensamentos conscientes que permitem a tomada de decisões baseadas nesses
pensamentos (FODOR, 1975; 1983), de modo que todas as etapas da cognição seriam
explicadas pelo mesmo recurso teórico, a saber, o processamento de informações por
meio da articulação de representações. A concepção clássica, portanto, não encara
nenhum desafio de integração ou de unidade explanatória. Ela encara outro tipo de
desafio, o que ajudou a motivar o surgimento do programa de pesquisa em cognição
corporificada, a saber: operacionalizar uma concepção representacionalista da mente em
que a ação não ocupa nenhum papel distintivo. O enativismo, ao introduzir uma
concepção de cognição básica, que é biologicamente mais simples do que a cognição
tradicionalmente tomada como o alvo das ciências cognitivas e da filosofia da mente;
não oferece a mesma vantagem inicial. Não há garantias de integridade explanatória na
perspectiva enativista, ao contrário do que se pressupunha no paradigma
representacionalista, pois o enativismo introduz uma cisão entre cognição básica e o que
podemos chamar por enquanto de cognição superior (como veremos, essa qualificação
é ela mesmo alvo de disputa).

163
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Os dois modos de cognição podem ser distinguidos da seguinte maneira: a


cognição básica é tipicamente imediata ou direta no sentido que apresentamos acima.
Ela requer o exercício de habilidades que relacionam o movimento à sensação, as
chamadas habilidades sensório-motoras, e também a percepção do feedback que
possibilita o ajuste dinâmico do organismo diante de variações ambientais. A cognição
básica responde a uma normatividade biológica, selecionada em escalas filogenética e
ontogenética, isto é, o modo como a morfologia corpórea do agente é selecionada e
desenvolvida determina, junto ao modo como o ambiente está disposto, como o agente
deve realizar as ações relevantes. A informação veiculada nessa camada biologicamente
mais básica de cognição é a informação para a ação, isto é, o agente explora a
informação que especifica quais tipos de ação ele pode, em virtude da sua morfologia,
realizar em um cenário específico e com intenções específicas4. Acender um interruptor,
trazer uma caneca de café à boca, amarrar os sapatos e evitar colisões ao deslocar-se em
um ambiente são algumas ações intencionais que são naturalmente caracterizadas como
cognição básica na perspectiva enativista. A cognição supostamente superior, por outro
lado, é tradicionalmente pensada como off-line, porque inclui casos de planejamentos,
de pensamentos contrafactuais, de inferências, etc.—como no caso em que você planeja
o que vai fazer no final de semana se o tempo for bom, ou quando tenta lembrar quais
eram os itens na lista de compras ao chegar no supermercado, ou quando infere que, se
não tiver ninguém na sala, é porque a reunião terá sido adiada e assim por diante.
Plausivelmente, portanto, ela envolve estruturas representacionais, pois estas seriam as
melhores candidatas para lidar com alvos ausentes ou inexistentes (CLARK; TORIBIO,
1994). Ou seja, a cognição superior aparentemente requer a manipulação de símbolos
com conteúdo semântico determinado. Essa manipulação responde a uma
normatividade que pode ser explicada através de normas de composição da lógica
clássica ou, mais recentemente, através de modelos bayesianos de inferência
probabilística. A informação veiculada é tipicamente descritiva, a informação sobre
determinado estado de coisa, seja ele factual ou não. Por essas razões, explicar a

4
O enativismo radical proposto por Hutto e Myin (2013, 2017) defende a ideia de que o único tipo de
informação cientificamente respeitável é a informação como covariação ou variação nomológica de
estados. Esses autores pretendem rejeitar a ideia, herdada da psicologia ecológica, de que sistemas
cognitivos operam através de informação para ação. Há, no entanto, tentativas de compatibilizar as duas
noções, veja CARVALHO; ROLLA (no prelo), VAN DIJK; WITHAGEN; BONGERS (2015),
SEGUNDO-ORTIN; HERAS-ESCRIBANO; RAJA (2019).

164
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cognição superior envolveria explicar como seria possível um decoplameno, por assim
dizer, e não mais um acoplamento, do sujeito em relação ao mundo.
É nessa perspectiva que surge o desafio de integração explanatória para o
enativismo. Alguns autores concebem esse desafio como exclusivamente um caso de
escalonamento ascendente (scale up), como comentaremos na seção seguinte. De
acordo com essa perspectiva de resposta ao problema, a fim de ampliar o alcance
explanatório do programa de pesquisa, o enativista deve mostrar como a cognição
básica pode ascender a performances de cognição superior sem descaracterizar a teoria
enativista, isto é, retendo a ênfase explanatória na ação. A opção por caracterizar o
desafio de integração explanatória apenas como um caso de escalonamento ascendente,
no entanto, já é uma escolha tendenciosa do ponto de vista conceitual, porque não
contesta o modo como a cognição superior é caracterizada. Com efeito, na terceira
seção, discutiremos uma alternativa que visa, de certo modo, desmistificar a cognição
supostamente superior—isto é, que ao fim e ao cabo deve rejeitar o próprio rótulo de
cognição “superior” e que talvez considere mais adequado o título de cognição
“complexa”. Essa perspectiva, ao invés de escalonar ascendentemente a cognição
básica, visa escalonar descendentemente (scale down) a cognição complexa, tornando-a
mais próxima da cognição básica, o que significa explicar ambas pelos mesmos
recursos, sem cisões explanatórias.

2. Escalonamento ascendente: estratégia, consequências e dificuldades

A dificuldade de explicar a assim chamada cognição superior foi colocada mais


incisivamente como uma limitação do enativismo radical, a vertente enativista cujo
locus classicus é o livro de Dan Hutto e Erik Myin, Radicalizing Enactivism, Basic
Minds without Content (HUTTO; MYIN, 2013). Os radicais negam que seja razoável
naturalizar o conteúdo representacional, ao menos segundo as regras de um naturalismo
estrito que buscaria identificar as bases fisiológicas de representações mentais. Seu
argumento, conhecido como o Problema Duro do Conteúdo, ganha a seguinte forma:
segundo o que as melhores evidências científicas permitem constatar, sistemas naturais
não apresentam relações semânticas, que por sua vez seriam necessárias para a
existência de conteúdo representacional. Pense, por exemplo, na diferença entre a
alegação de que a presença de fumaça indica a presença de fogo e a alegação, um tanto

165
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mais contenciosa, de que a fumaça representa o fogo. Apenas interpretações de


fenômenos naturais do primeiro tipo são cientificamente respeitáveis e, segundo
enativistas radicais, elas caracterizam uma covariação ou variação nomológica, que é
insuficiente para a presença de conteúdo (HUTTO; MYIN, 2013, p. 67). O princípio
aqui é que covariação não implica conteúdo. O representacionalismo, portanto, passa
um cheque sem fundo do ponto de vista epistemológico: não há boas razões para
acreditar que sistemas naturais representem estados de coisas.5
Esse argumento teve uma recepção negativa, exemplificada na resenha do livro
de Hutto e Myin por Lawrence Shapiro (SHAPIRO, 2014): o enativismo radical parece
ser nada mais do que um behaviorismo com uma nova roupagem, pois negaria qualquer
relevância da “caixa-preta” mental para a compreensão de processos cognitivos. No
entanto, esse seria o caso se o argumento dos radicais fosse ontológico— pela
inexistência de representações—e não epistemológico, isto é, pela dificuldade de
naturalizar representações a partir das nossas melhores concepções de fenômenos
naturais. Se esse fosse o caso, os enativistas radicais não estariam em condições
melhores do que os proponentes do computacionalismo que negam a priori a
viabilidade de explicações de eventos cognitivos através da modelagem por redes
conexionistas, o que Chemero chama, nada caridosamente, de “argumento hegeliano”
(CHEMERO, 2009, pp. 4–6). Segundo a leitura epistemológica do argumento dos
enativistas radicais, no entanto, é plenamente possível que exista conteúdo mental—é
até mesmo incontestável se pensarmos nos casos clássicos de cognição superior
(HUTTO; MYIN, 2017, pp. 93–94)—, ainda que esse conteúdo não possa ser reduzido
segundo as regras de um naturalismo estrito, isto é, identificado a bases fisiológicas.
Como, então, os enativistas radicais pretendem explicar performances de
cognição superior? A resposta desenvolvida por Hutto e Satne (2015) e Hutto e Myin
(2017) consiste em distinguir dois níveis de intencionalidade e oferecer uma explicação
de “dois andares” (duplex) da cognição, em que cada andar requer recursos explicativos
diferentes. Segundo esses autores, a tarefa de explicar mecanismo cognitivos em última
análise é uma questão de explicar a intencionalidade, entendida de modo deflacionário
como um direcionamento (directedness) da mente ao mundo, sem que isso implique
5
Segundo os enativistas radicais, o mesmo se segue para vertentes moderadas de enativismo que
concebem representações que dependem de e que são influenciam a ação como necessárias para a
cognição.

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conteúdo representacional (HUTTO; SATNE, 2015, p. 530). Sem dúvidas essa é uma
maneira de entender a intencionalidade na contramão da tradição inaugurada por
Brentano, mas um enativista radical pode argumentar que nada na concepção de
direcionamento implica direcionamento descritivo, ou direcionamento que respeite
condições de acurácia ou de verdade—isto é, intencionalidade representacional. Com
efeito, há um precedente desse tipo de explicação no projeto teleosemântico de
naturalização da intencionalidade.
O projeto teleosemântico, que teve seu apogeu nos anos 80, pretendia explicar
como estruturas naturais permitem ao organismo direcionar-se ao mundo a partir da
seleção evolutiva (DRETSKE, 1988; MILLIKAN, 1984; 2004; 2005; PAPINEAU,
1987). A versão mais refinada das teorias teleosemânticas, tal como apresentada por
Ruth Millikan, concebe que estruturas naturais selecionadas evolutivamente cumprem
uma função própria que, quando consumidas pelo sistema cognitivo, dão origem ao
conteúdo representacional. O exemplo, um tanto batido, é o do sapo que possui as
habilidades intencionais de rastrear, alcançar e comer moscas, de tal modo que essas
habilidades seriam a base para o conteúdo representacional dos seus estados
intencionais. A bem conhecida objeção a esse projeto é que explicações baseadas em
seleções evolutivas são extensionais—elas explicam como o sapo dirige-se a moscas,
mas não selecionam uma entre infinitas descrições possíveis através das quais isso
poderia ser feito (“pequeno inseto que se move no ar”, “ponto escuro que voa”, “coisa
com asas que se mexe assim-e-assado”, etc.). Isso, por sua vez, é o fundamental para
fixar o conteúdo da representação —que, portanto, permanece sem uma explicação
natural. Como Jerry Fodor famosamente colocou: a evolução “se importa com quantas
moscas você come, não sob qual descrição vocês as come” (FODOR, 1990, p. 73).
Apesar do fracasso em explicar a emergência da representação, Hutto e Satne (2015) e
Hutto e Myin (2017) argumentam que esse projeto ainda é bem sucedido em explicar
um nível biologicamente básico, não representacional, de intencionalidade. Com efeito,
a teleosemântica tem como herdeiro conceitual o que os enativistas radicais chamam de
proto-intencionalidade (Ur-intentionality), isto é, o aperfeiçoamento evolutivo que
permite exercícios não-acidentais de engajamento entre sujeito e mundo. É por meio das
habilidades biológicas que herdamos, adquirimos e refinamos que somos capazes de
interagir inteligentemente com o mundo, direcionarmo-nos a ele, sem representá-lo.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Tendo em vista essa concepção de proto-intencionalidade, a estratégia de dois


andares que exemplifica um modo de escalonamento ascendente funciona da seguinte
maneira: organismos com proto-intencionalidade e com os requisitos biológicos
necessários adquirem intencionalidade com conteúdo na medida que passam a fazer
parte de um contexto sociocultural. Ou seja, a emergência do conteúdo representacional
não é mais explicada através de um naturalismo estrito, que recorreria apenas ao estado
da arte das ciências naturais; mas de um “naturalismo relaxado”, que admite as
descobertas das ciências naturais e que, portanto, permite explicar como representações
existem socialmente. É porque um organismo com as disposições cognitivas específicas
faz parte de um contexto sociocultural, em que conteúdos são compartilhados pelo uso
da linguagem, que ele passa a dispor de representações. Ou seja, rejeita-se assim que o
organismo precise ser capaz de representar para fazer parte de práticas socioculturais.
Com efeito, pode parecer circular que representações tenham sua base emergente a
partir de engajamentos e práticas socioculturais, mas essa circularidade só ocorre se
aceitarmos estas três proposições: (1) participar de relações socioculturais requer
cognição/inteligência, (2) cognição/inteligência requer intencionalidade e (3)
intencionalidade requer conteúdo (Cf. HUTTO; MYIN, 2017, p. 127; HUTTO;
SATNE, 2015, p. 528). No entanto, é justamente pela concepção de uma proto-
intencionalidade que o enativista radical rejeita (3), evitando a circularidade
explanatória. A capacidade de representar nasce da linguagem, por assim dizer, e não o
contrário.
Notemos que essa versão de escalonamento ascendente vê uma continuidade
evolutiva entre a cognição básica e a cognição com conteúdo, porque esta só emerge em
criaturas com os traços biológicos necessários para engajar-se em contextos
socioculturais; e, ao mesmo tempo, reconhece que há um nó ou uma dobra (kink) na
passagem de um andar para o outro; porque a cognição com conteúdo tem outro tipo de
alvo, ela envolve a manipulação de símbolos e respeita uma normatividade que é
distinta da normatividade biologicamente mais básica. Por essa razão a explicação de
escalonamento ascendente, ao menos nessa versão, envolve uma espécie de
bidimensionalidade explicativa. Além disso, é importante notar que muito pouco foi
dito sobre os traços evolutivos necessários para o engajamento sociocultural, mas uma
hipótese independentemente plausível é que esses traços envolvem a capacidade de
realizar tarefas de ação conjunta, que ocorre através da ressonância de neurônios-

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

espelhos (GALLAGHER, 2008). Como primeiramente observado (GALLESE et al.,


1996), neurônios-espelhos em primatas permitem uma sincronia entre agente e
observador, permitindo explicar como um observador é capaz de antecipar o
comportamento de outro e, portanto, realizarem tarefas de ação conjunta. Mas é claro,
isso não pode ser suficiente, porque nem todos primatas—com efeito, até onde as
melhores evidências permitem aferir, a minoria deles—desenvolveram linguagem e
cognição superior, pelo menos conforme a caracterização corrente desses conceitos.
Mesmo que algo mais seja dito para explicar o que há de distintivo na cognição
humana que permita o tipo de performance característica da cognição superior, essa
explicação ainda deixaria em aberto como a linguagem emerge a partir da participação
em práticas socioculturais, e um crítico do enativismo poderia apontar que a explicação
de dois andares apenas pressupõe que, em algum momento, criaturas com certos traços
biológicos efetivam habilidades linguísticas, mas que não explica como isso de fato
ocorre. A linguagem, do ponto de vista explanatório, ocorre aqui como um dado. Em
resposta, proponentes do escalonamento superior podem argumentar que essa é uma
dificuldade que atinge qualquer programa de pesquisa que trate das origens naturais da
mente e da linguagem, e que é de fato uma questão em aberto.
Por fim, a ideia de que a cognição superior emerge a partir do engajamento
sociocultural tem como consequência que o emprego de certos conteúdos é orientado
por questões contingentes, isto é, por fenômenos que em última análise concernem a
estruturas sociais e que, portanto, podem não ser universalmente compartilhados. De
qualquer modo, é independentemente plausível—pace concepções estritamente
cartesianas da mente—que as normas para o emprego de conteúdos representacionais
não são oriundas de um reino cristalino do a priori, mas sim relativas aos interesses e às
dificuldades que necessitaram o surgimento daqueles conteúdos em primeiro lugar.
Com efeito, evidências empíricas apontam na direção de que há variação através de
culturas no modo como certas performances de cognição superior são realizadas
(ROLLA, 2018) —e não é surpreendente que a postura essencialmente pragmatista do
enativismo para compreender a cognição básica, em conjunção com a continuidade
explicativa que explicitamos acima, tenha como consequência que a cognição superior
também seja afetada por questões pragmáticas.

3. Escalonamento descendente: estratégia, consequências e dificuldades

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Como vimos na seção anterior, o escalonamento ascendente acaba se


comprometendo com dois níveis de explicação para dar conta da assim chamada
cognição superior. Por exemplo, para explicar capacidades linguísticas, que se assume
envolverem representações, o repertório das cognições básicas precisa ser incrementado
com outros recursos, como estruturas sociais e capacidades cognitivas específicas para a
formação de contextos socioculturais. Sem esses recursos adicionais, não haveria como
escalonar ascendentemente a cognição básica para explicar a emergência da linguagem.
Uma estratégia diferente é o escalonamento descendente, que ataca uma premissa do
escalonamento ascendente: cognição superior envolve representação. Em vez que
procurar recursos adicionais à cognição básica para explicar o fenômeno alvo, e.g.
habilidades linguísticas, tenta-se antes compreender e conceber o fenômeno alvo em
termos mais próximos dos da cognição básica, eliminando-se possivelmente a
necessidade de recursos adicionais para a sua explicação. Como salienta Hanna De
Jaegher, “nada na teoria da enação a restringe à assim chamada cognição básica” (DE
JAEGHER, 2019) uma vez que nos livramos do dogma de que planejamento,
pensamento, linguagem etc. são essencialmente fenômenos representacionais. Uma
consequência dessa estratégia é a defesa de uma continuidade mais estrita entre níveis
mais baixos e mais elevados da cognição (KIVERSTEIN; RIETVELD, 2018, p. 149),
se é que ainda faça sentido falar em níveis mais elevados ou mais baixos, talvez apenas
na medida em que algumas cognições sejam mais complexas e flexíveis do que outras.
Nesse sentido, cognições superiores são apenas “elaborações e complexificações
graduais que se desenvolvem a partir das formas de cognições não-representacionais
mais baixas” (2018, p. 149). A estratégia de escalonamento descendente tem sido
defendida para dar conta de fenômenos cognitivos tais como a linguagem, o
planejamento e a imaginação por enativistas autopoiéticos (DE JAEGHER, 2019; DI
PAOLO; CUFFARI; JAEGHER, 2018), por teóricos que buscam unificar o enativismo
e a psicologia ecológica (BRUINEBERG; CHEMERO; RIETVELD, 2019;
KIVERSTEIN; RIETVELD, 2018, 2020) e mesmo por fenomenólogos simpáticos às
abordagens 4E (KEE, 2020). Nesta seção, veremos brevemente como podemos
reelaborar a nossa compreensão da imaginação e da linguagem para que tais fenômenos
sejam vistos como livres de representação.

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Como mencionado na primeira seção, as representações normalmente são


introduzidas para explicar atividades cognitivas que envolvem entidades ausentes,
inexistentes ou contrafactuais (CLARK; TORIBIO, 1994). Na literatura, essas
atividades também são caracterizadas como processos cognitivos que têm fome de
representações (representational-hungry cognitive processes) (KIVERSTEIN;
RIETVELD, 2018, p. 149). Por exemplo, você poderia imaginar agora como seria
passar as férias no Japão, ou em uma estação espacial em Marte, que nem mesmo
existe. A atividade de imaginação tem fome de representação porque ela supostamente
envolve a capacidade representacional de visar algo que não está presente no ambiente
em que o agente se encontra. A interação entre organismo e ambiente seria assim
insuficiente para explicar a imaginação. Kiverstein and Rietveld (2018) sustentam, no
entanto, que a imaginação pode ser compreendida de uma maneira diferente, livre de
representações. Para entender a proposta dos autores, temos antes de ver como eles
mobilizam o enativismo autopoiético em conjunto com a psicologia ecológica.
Como vimos na primeira seção, o enativismo autopoiético alega que há uma
continuidade entre a vida e a mente, de modo que entender o que faz de algo um ser
vivo esclarece também como esse algo possui uma mente. Um esclarecimento aqui é
importante. Especialmente para o enativismo autopoiético adaptativo, essa continuidade
não significa que qualquer processo biológico é cognitivo ou mental, nem apenas a
trivialidade de que processos biológicos são causalmente relevantes para os processos
mentais. Essa continuidade deve ser entendida da seguinte maneira: “os fenômenos
mentais demandam constitutivamente explicações da individualidade, da agência e da
subjetividade, e os princípios e categorias para essas explicações são os mesmos que são
requeridos para as tentativas de explicar o fenômeno da vida” (DI PAOLO, 2018, p.
74). Ou seja, as categorias centrais para explicar a cognição são também as categorias
que explicam a vida. O conceito central para entender a vida, segundo o enativismo
autopoiético adaptativo, é o de sistema autônomo. Um sistema autônomo é um sistema
operacionalmente fechado, composto por vários processos interdependentes entre si que
ativamente geram e sustentam uma identidade sob condições de precariedade (DI
PAOLO, 2015, p. 17–18; DI PAOLO; CUFFARI; JAEGHER, 2018, p. 25, 329). Duas
características dos sistemas autônomos se destacam: eles se auto-produzem e se auto-
distinguem. As condições em que o sistema autônomo se auto-produz são precárias
porque os recursos que viabilizam a regeneração dos seus processos nem sempre são

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ótimos ou mesmo se fazem presentes. Quando aplicamos o conceito de sistemas


autônomos aos processos metabólicos que dão sustentação à vida celular, temos a
autopoiese: “uma rede de processos biológicos organizados de tal maneira que a
operação desses processos sustenta e regenera a rede de relações e forma uma unidade
topológica que se auto-distingue no espaço” (DI PAOLO; CUFFARI; JAEGHER, 2018,
p. 329). Uma célula viva é um exemplo de sistema autônomo autopoiético. O conceito
de sistema autônomo é mais geral e não se limita a processos metabólicos. O sistema
imunológico, o sistema nervoso e redes de habilidades sensório-motoras podem ser
compreendidos como sistemas autônomos (DI PAOLO, 2019, p. 207). Por fim, mais
duas características dos sistemas autônomos são fundamentais para conectá-los
compreensivelmente aos fenômenos mentais e cognitivos: a capacidade de adaptação e
a atividade de produção de sentido (sense-making). A adaptabilidade é a capacidade de
um sistema autônomo de regular os seus estados para que os seus processos se
mantenham nos limites da sua viabilidade, e produção de sentido é a atividade
adaptativa por meio da qual o sistema autônomo regula os seus estados e a sua relação
com o ambiente para a preservação da sua identidade. Pela atividade de produção de
sentido o sistema autônomo distingue o que é positivo ou negativo, bom ou ruim para a
sua atividade de autoprodução e auto-individuação. Um certo tipo de bactéria, por
exemplo, é capaz de mover-se em direção a um meio onde há uma concentração maior
de substâncias que são vitais para a sua manutenção, ela assim regula de modo
adaptativo a sua interação com o ambiente. Desta maneira, as interações do sistema
autônomo com o ambiente são significativas para ele. Na medida em que o sistema
autônomo ordena e atua (enact) um mundo de significados através da sua atividade de
produção de sentido, ele tem uma perspectiva do mundo e essa é a base para a sua
mentalidade e subjetividade (DI PAOLO; CUFFARI; JAEGHER, 2018, p. 33).
Outro conceito importante para entender como o enativismo dispensa as
representações é o de consequências virtuais. O sistema autônomo não regula os seus
estados tendo em vista apenas a configuração mais imediata do seus estados e do seu
ambiente, ele é sensível também a configurações dos seus estados e do seu ambiente
que são virtuais, isto é, que não foram ainda atualizados, mas são potenciais ou reais e
encontram-se na vizinhança dos estados atuais. A bactéria responde à diminuição do
gradiente de sacarose mudando a direção do seu movimento, ainda que, no momento,
essa diminuição não seja ainda catastrófica para a sua viabilidade, mas isso significa

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que ela exibe sensibilidade às consequências virtuais catastróficas de uma tendência do


ambiente em que ela se encontra (DI PAOLO; BUHRMANN; BARANDIARAN, 2017,
p. 130). A atividade de produção de sentido incorpora, através da atividade exploratória
do organismo, sensibilidade às consequências virtuais mais próximas dos seus estados
internos e do ambiente, possibilitando a regulação dos processos do organismo e da sua
interação com o ambiente para manter-se dentro dos limites da sua viabilidade ao longo
do tempo. Nesse sentido, a atividade de produção de sentido tem uma dimensão
temporal e uma orientação para o futuro. Por fim, a sensibilidade às consequências
virtuais é adquirida interativamente, reforçando disposições e ações que se mostraram
bem-sucedidas no passado, e assimilada na forma de habilidades. O organismo ou o
sistema autônomo exibe sensibilidade às consequências virtuais na medida em que age
ou se prepara para agir em face delas, como a bactéria que se afasta de uma tendência
de diminuição da concentração de sacarose, ou uma criança que se prepara para agarrar
uma bola que foi lançada em sua direção. Assim, o mundo de significados que o
organismo atua e gera através da atividade de produção de sentido é um mundo de
possibilidades de ações. Nenhuma representação interna das consequências virtuais é
necessária.
Segundo Kiverstein and Rietveld, a psicologia ecológica ajuda a enriquecer o
quadro explicativo do enativismo. Eles sugerem que entendamos as consequências
virtuais às quais um organismo é sensível em termos de uma paisagem de affordances
(landscape of affordances) (KIVERSTEIN; RIETVELD, 2018, p. 155). Affordances,
como definem os autores, são relações entre aspectos do ambiente e habilidades
disponíveis em uma forma de vida. A paisagem de affordances refere-se ao conjunto de
possibilidades de ações que um indivíduo encontra disponível no seu ambiente por
participar de uma forma de vida. Nesse sentido, a atividade de produção de sentido
oferece ao organismo uma paisagem de affordances. A vantagem é tornar mais evidente
que embora os organismos atuem no aqui e agora, eles visam um ambiente espalhado,
um ambiente extensivo e que perdura (KIVERSTEIN; RIETVELD, 2018, p. 155) e, no
caso dos organismos humanos, um ambiente socialmente estruturado que oferece
possibilidades de ação específicas à nossa forma de vida. Em uma sala de aula, durante
uma aula, um quadro oferece-nos a possibilidade de enfatizar certas informações, ao
passo que para outras espécies ele é só um adendo a uma parede que oferece um
obstáculo ou um suporte (e.g. lagartixas) para a locomoção. Assim, já no contato

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perceptivo que o organismo tem com o seu ambiente, o mundo envolvido pela atividade
de produção de sentido vai além do aqui e agora, envolvendo virtualidades que só serão
atualizadas pela interação e ação do organismo ao longo do tempo.
Esse percurso sobre as bases da abordagem ecológica-enativista foi necessário
para entendermos agora como a imaginação pode ser reelaborada de modo a dispensar
representações. Suponha que você seja convidado a imaginar a casa onde você cresceu.
Você visualiza a disposição dos cômodos, algumas decorações, o quadro da sua banda
preferida em seu quarto etc. Nenhuma dessas coisas está presente a você aqui e agora.
Para ter essa imaginação, não precisaria de representações? Os autores chamam esse
tipo de imaginação de imaginação de memória episódica. Segundo os autores, o que
fazemos ao ter esse tipo de imaginação é reencenar (re-enact) deliberadamente
experiências passadas. Ao fazê-lo, nosso organismo ocupa estados que são semelhantes
aos que ele teve ao ter experiências da sua casa. Na perspectiva ecológica-enativista,
isso significa que o organismo ocupará também alguns estados de prontidão para a ação
que ele ocuparia se estivesse percebendo a casa. Como vimos, essa seria a maneira pela
qual a atividade de produção de sentido conferiria significado a interações efetivas com
o ambiente. Assim, a imaginação de memória episódica é caracterizada como “atividade
de fingir fazer o que é feito na percepção” (KIVERSTEIN; RIETVELD, 2018, p. 156).
É uma espécie de faz de conta que se apoia nos recursos já adquiridos da percepção e
que não envolve qualquer representação6. Através da reecenação, a imaginação produz
sentido. É digno de nota que em algumas dessas situações de imaginação chegamos a
mover os olhos e levemente o corpo, como faríamos se estivéssemos percebendo o
objeto imaginado. Pode-se objetar que, para imaginar a casa em que viveu na infância, o
sujeito deveria ter um modelo ou representações das affordances dessa casa. Mas isso
não é necessário. As habilidades incorporadas por meio das quais o sujeito se prepararia
para agir se o objeto estivesse presente são suficientes para o agente “fingir atuar os

6
Pode-se questionar se a conversa sobre “fingir ou fazer de conta o que é feito na percepção” não é uma
maneira camuflada de falar de representações ou conteúdos semânticos. Mas não é o caso. Assim como,
para alguns enativistas, perceber é entendido como a posse de habilidades sensório-motoras (NOË, 2004),
fingir ou fazer de conta seria também entendido como a posse de habilidades semelhantes, mas não
idênticas, às sensório-motoras, já que elas poderiam ser exercidas sem a correspondente estimulação
sensorial que é necessária no caso da percepção. A reencenação deve ser encarada mais pelo lado motor,
a preparação corporal, e as consequências para a fenomenologia do corpo vivido que se seguem daí. De
maneira bastante similar, Hutto e Peeters afirmam que “os radicais (enativistas) procuram explicar formas
básicas de aprendizagem e memória inteiramente em termos de saber-fazer reencenado (re-enacted know-
how)” (HUTTO; PEETERS, 2019, p. 105).

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estados de prontidão para a ação que tipicamente o habilitariam a se coordenar com as


affordances” (2018, p. 157, ênfase dos autores).
Sem dúvida muito mais precisa ser dito para mostrar que todos os alegados tipos
de cognição superior podem ser reelaborados de modo a dispensarem representações.
Mesmo o caso da imaginação, apresentamos uma abordagem que dá conta apenas de
um subtipo de imaginação. No que se segue, por falta de espaço, iremos apenas esboçar
em linhas muito gerais o caminho que Di Paolo et al. (2018) adotaram para apresentar o
fenômeno da linguagem como elaborações complexas de cognições básicas. Ainda
assim, esses dois exemplos nos permitem entender e perceber a fecundidade do
escalonamento descendente.
A tese central dos autores de Linguistic Bodies (DI PAOLO; CUFFARI;
JAEGHER, 2018) é a de que podemos compreender o fenômeno linguístico como uma
manifestação e ação de corpos linguísticos. A chave, então, para o escalonamento
descendente é a noção de corpo tal como elaborada a partir dos recursos enativistas que
já exibimos nesta seção. Um corpo pode ser compreendido como um sistema autônomo.
Olhando por esse ângulo, somos uma multidão de corpos, um que corresponde a um
sistema autônomo metabólico e fisiológico, outro que corresponde ao fechamento
sensório-motor e assim por diante, na verdade, “há literalmente bilhões de diferentes
corpos humanos” (2018, p. 97), cada um formando um sistema operacionalmente
fechado distinto com a sua autonomia própria, ainda que muitos deles estejam
profundamente entrelaçados entre si. O tipo de corpo relevante para o fenômeno
linguístico é o intersubjetivo, que emerge a partir da interação entre corpos sensório-
motores. Essas interações assumem uma dinâmica própria formando sistemas
autônomos que, ao mesmo tempo, (1) não se resumem à autonomia dos corpos
sensório-motores participantes, mas também7 (2) não anulam a autonomia dos corpos
sensório-motores participantes (DE JAEGHER; DI PAOLO, 2007, p. 493; DI PAOLO;
CUFFARI; JAEGHER, 2018, p. 70–71). O aspecto relevante de qualquer modo é que a

7
Um exemplo trivial para perceber a autonomia das próprias interações sociais são as situações
corriqueiras em que, andando em um corredor apertado, cruzamos com outra pessoa que vem da direção
oposta. Nos movemos para o lado para dar passagem, mas a pessoa simultaneamente faz o mesmo, nos
encontrando novamente um diante do outro e a interação assim prossegue, sem que queiramos, até que
um pare e o outro dê a passagem. Note que durante um tempo a dinâmica das nossas interações assumiu
uma vida própria, se auto-produzindo à revelia dos nossos interesses de chegar aos nossos respectivos
destinos.

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autonomia da interação social retroage sobre os corpos sensório-motores, orientando-os


à formação de uma dimensão intersubjetiva (2018, p. 79). Isto é, a responsividade ao
outro emerge ao longo das interações sociais, tendemos inclusive a exibir maior
prontidão à interação conforme elas se desenrolam. Se as interações sociais formam
sistemas autônomos, então por trás delas há uma atividade de produção de sentido que
visa a preservação da identidade dessas interações. Por envolver mais de um
participante, os autores chamam essa atividade de produção de sentido participativa
(participatory sense-making). Isto é, dois ou mais indivíduos regulam conjuntamente
suas ações de modo a produzir um entendimento social, algo que é atuado como uma
prática compartilhada (2018, p. 74). Carregar um tronco conjuntamente, compartilhar a
atenção conjuntamente, fazer uma lista de compra conjuntamente e escrever um artigo a
quatro mãos são todos exemplos de produção de sentido participativa. Em uma
interação social, há sempre uma assimetria de normatividades em jogo, a normatividade
ligada à autonomia da própria interação social e a normatividade ligada à autonomia dos
participantes envolvidos. O equilíbrio entre a autonomia participativa e individual é
precário e continuamente negociado. Há várias formas de resolver essa tensão, que os
autores qualificam como primordial. Uma delas é pelo diálogo, uma organização da
interação social que já assume práticas assentadas e acordadas entre os participantes.
Por exemplo, quem pode assumir o papel de regular a interação, por quanto tempo, de
que maneira, quando alternar o papel para outro participante etc. Conforme esses
componentes sejam especificados, pode-se ter uma grande variedade de gêneros de
diálogo (2018, p. 179). Os autores então definem o proferimento (utterance), a unidade
linguística mais básica, como qualquer ação realizada por quem está no papel de
regulador em uma interação dialógica (2018, p. 173, 201). Repare que não é necessário
que seja uma ação verbalizada. Em uma conversa, vendo que alguém se prepara para
assumir o papel de regulador, posso simplesmente levantar a minha mão para sinalizar
que espere um pouco mais. Esse ato é um proferimento tanto quanto qualquer uma das
minhas falas, pois o essencial em um proferimento é o seu papel regulatório em uma
interação dialógica. Nesse sentido, a ação linguística é uma espécie de ação social, e a
atividade linguística é uma espécie de produção de sentido participativa. Assim como a
participação em interações sociais faz emergir um corpo intersubjetivo, a participação
em interações dialógicas faz emergir um corpo linguístico, e uma responsividade cada
vez mais ampla ao outro enquanto outro. Corpos linguísticos “são processos dinâmicos

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precários para navegar na tensão primordial da produção de sentido participativa nos


contextos dialógicos” (2018, p. 215). Novamente, nenhuma noção de representação foi
necessária para compreender a emergência do fenômeno linguístico. As noções de
interação dialógica e proferimento dispensam representações e mesmo proposições.
Obtemos também uma reelaboração da nossa compreensão do fenômeno linguístico, ele
não é entendido como a comunicação de uma proposição, mas como uma atividade
regulatória da produção de sentido participativa em interações dialógicas. Linguagem é
fundamentalmente uma questão de coordenação.
Como no caso da imaginação, também se pode questionar se o modelo esboçado
acima é suficientemente rico para dar conta de todo o fenômeno linguístico. A noção de
proferimento foi reelaborada para que se tornasse possível ver a emergência da
linguagem em gestos regulatórios, mesmo o simples gesto de tomar uma certa distância
ao conversar com outra pessoa. Mas pode-se objetar que há espécies de proferimentos,
raciocínios e inferências, por exemplo, que requerem representações ou proposições
para o seu completo entendimento. Esse é um ponto que os autores de Linguistic Bodies
terão de desenvolver com mais detalhes. Seja como for, esses dois exemplos de
escalonamento descendente deixam claro que essa é uma estratégia fecunda para o
enativismo. Ela promove a unidade explicativa e diminui ou mesmo supera a lacuna
entre cognições básicas e superiores. Seu alcance, no entanto, é limitado no sentido de
que a estratégia precisa ser aplicada caso a caso, além de ser trabalhosa na medida em
que exige a ordenação e organização complexa de fenômenos simples para que
consigamos entender como emergem as chamadas cognições “superiores”. Como não se
trata, na maioria dos casos, de reduzir a cognição superior à cognição básica, mas
mostrar como aquela emerge desta, a noção de emergência também precisa ser discutida
e elucidada. Por fim, nem sempre é fácil determinar se o escalonamento descendente foi
completamente bem-sucedido, isto é, se ele fez justiça ao fenômeno alvo, sem deixar
restos.

4. Conclusão

O desafio da integração explanatória tem sido uma das principais dificuldades e


objeções ao programa de pesquisa enativista, pode-se dizer que é o seu calcanhar de
Aquiles. Neste artigo, apresentamos e discutimos duas estratégias que têm sido usadas

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pelos enativistas em resposta a esse desafio: o escalonamento ascendente e o


escalonamento descendente. Ambas estratégias têm vantagens e desvantagens. O
escalonamento ascendente costuma não questionar a suposição de que a cognição
superior envolve representações e procura reforçar o repertório conceitual do
enativismo com mecanismos adicionais para superar a lacuna entre cognição básica e
superior. É uma estratégia que pode ser mais facilmente aceita por cognitivistas
clássicos. Seu custo, para o enativista, é a dualidade ou bidimensionalidade
explanatória. O escalonamento descendente questiona a suposição representacionalista e
procura reelaborar a compreensão da cognição superior de modo que possamos vê-la
como livre de representações. O escalonamento descendente é mais radical que o
ascendente na medida em que disputa uma suposição muito arraigada nas ciências
cognitivas. Mas essa é também uma das principais virtudes dessa estratégia, pois ela
persegue a unidade explanatória. Em princípio, essas estratégias parecem ser
antagônicas, mas o nosso último comentário é que elas não precisam ser vistas deste
modo. O enativismo é um programa de pesquisa cujo objetivo primordial é explicar a
totalidade dos fenômenos mentais e cognitivos. A simplicidade é certamente um ideal
teórico, mas não temos de sacrificar brutalmente o escopo do enativismo para preservá-
la. As duas estratégias podem ser combinadas para buscarmos o melhor balanço entre
simplicidade e cobertura. Escalamos descendentemente, com o perdão do oximoro, até
onde for possível, simplificando o nosso quadro das diversas cognições, e escalamos
ascendentemente o que foi deixado de fora pela primeira estratégia, obtendo uma
cobertura tão ampla quanto possível.

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181
UM CAMINHO DO MEIO ENTRE TRADIÇÃO E RADICALISMO EM
COGNIÇÃO

Carlos Brito (Computação - UFC)


carlos@lia.ufc.br
RESUMO: Enquanto a teoria cognitivista da mente apresenta o cérebro como a locus exclusivo da cognição,
trabalhando isolado manipulando as suas representações, nas descrições do enativismo radical os papeis do
cérebro, corpo e ambiente se confundem em uma dinâmica total que caracterizaria o comportamento corporal
engajado com a realidade. Ao colocar em foco o fenômeno do aprendizado, a nossa abordagem do caminho
do meio encontra um equilíbrio entre as duas posições: em um processo interativo, onde corpo e elementos do
ambiente entram em contato direto, o cérebro encontra oportunidades para dar forma a um comportamento
que alcança os objetivos desejados. Nós analisamos e desenvolvemos essa ideia com auxílio de uma analogia
entre o comportamento inteligente e a operação de uma máquina, e entre o aprendizado e a construção da
máquina. Um primeiro resultado que nós obtemos é a identificação de lacunas fundamentais nas explicações
cognitivista e enativista. O resultado mais interessante, no entanto, consiste na observação de que os projetos
cognitivista e enativista estão trabalhando sobre o mesmo problema: a construção e operação de máquinas
cognitivas. Não apenas isso, mas aquilo que falta a cada um parece ser oferecido pelo outro — o que permite
colocar os dois projetos em continuidade.

PALAVRAS-CHAVE: Cognição. Cognitivismo. Enativismo radical. Aprendizado. Regras.

ABSTRACT: While the cognitivist theory of the mind presents the brain as the exclusive locus of cognition,
working isolated manipulating its representations, in the descriptions of radical enactivism the roles of brain,
body and environment get confused in the total dynamics that characterise the embodied embedded behavior.
Putting the phenomenon of learning in focus, our middle way approach finds an equilibrium between the two
opposing positions: in an interactive process, where the body and the elements of the environment are in di-
rect contact with each other, the brain encounters opportunities to give form to a behavior that is capable to
reach the goal. We analyze and develop this idea with the help of an análogo between the intelligent behavior
and the operation of a machine, and between learning and the construction of the machine. The first result we
obtain is the identification of fundamental gaps in the cognitivist and enactivist explanations. The most inter-
esting result, however, consists in the observation that the cognivist and enactivist projects are working on the
same problem: the construction and operation of cognitive machines. Not only that, but that which missing on
each of them seems to be offered by the other — which allows us to portray the two in continuity.

KEYWORDS: Cognition. Radical Enactivism. Cognitivism. Learning. Rules.


PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

1. Introdução

O debate entre representacionalistas e não-representacionalistas em cognição já vem se


desenrolando há bastante tempo (e.g., Clark e Toribio, Jackendoff 1995, Chemero 2000,
van Gelder 1995, Hutto e Myin 2017, Haselage et al 2003) e, durante esse período, as res-
pectivas posições foram sendo gradualmente consolidadas e radicalizadas. Nesse contexto
de aberta oposição, o objetivo desse trabalho é esboçar uma espécie de caminho do meio
entre as duas posições antagônicas. Com esse propósito, nós fazemos uma breve revisão da
teoria cognitivista da mente, e revisamos o desenvolvimento mais recente do enativismo
radical. Nenhuma dessas revisões pretende ser completa, acurada, ou mesmo fazer justiça
aos argumentos mais sofisticados das duas posições — de fato, elas podem mesmo ser con-
sideradas como meras caricaturas se assim se desejar. A sua função consiste apenas em
fincar marcos de referência que indicam algumas diferenças muito básicas entre o ponto de
vista cognitivista e o ponto de vista enativista. Uma vez que o terreno está assim demarca-
do, nós utilizamos essas referências como guia para esboçar a trajetória do nosso caminho
do meio. Ora se aproximando e ora se afastando de cada uma das duas posições, nós vamos
aos poucos delineando uma perspectiva alternativa que lança luz sobre alguns aspectos fun-
damentais do problema da cognição, sem nos comprometermos demais com as soluções
que estão em oferta de um lado ou de outro. O resultado desse exercício, é bom que se diga,
não se propõe a ser mais uma opção para se conduzir as investigações sobre cognição. De
fato, a nossa abordagem do caminho do meio não se coloca em oposição nem ao projeto
cognitivista nem ao projeto enativista. Poderia-se dizer que ela visa contribuir com um e o
outro. Mas isso também não é adequado. A maior contribuição do nosso trabalho, segundo
nós entendemos, consiste em ganhar uma visão mais clara e completa dos elementos que
constituem o fenômeno da cognição. De posse dessa visão, é possível notar que as aborda-
gens cognitivista e enativista ainda trabalham com uma perspectiva parcial do problema —
e que, em certo sentido, aquilo que falta a cada uma delas pode ser encontrado na outra.

184
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Vendo as coisas desse modo, o antagonismo entre as duas posições se dissolve, e nós pas-
samos a perceber os dois projetos em continuidade.

A apresentação do trabalho está organizada da seguinte maneira. A Seção 2 revisa a


posição cognitivista da mente, e a Seção 3 revisa a posição enativista radical. Em seguida,
na Seção 4, nós apresentamos o nosso argumento do caminho do meio, centrado no papel
do cérebro na atividade cognitiva — isto é, ele não é uma entidade isolada que realiza o seu
trabalho manipulando representações, e também não se confunde com o corpo e os elemen-
tos do ambiente em uma dinâmica total onde todos contribuem da mesma maneira. A Seção
4 também apresenta uma breve análise sobre o papel do vocabulário informacional no con-
texto da atividade cognitiva corporal engajada com o ambiente. Na Seção 5 nós obtemos os
primeiros frutos da nossa análise, na forma de uma compreensão alternativa para os proje-
tos cognitivista e enativista para a cognição. Finalmente, nós concluímos o trabalho com
uma visão de alto nível onde o cognitivismo e o enativismo são apresentados como projetos
em continuidade um com o outro.

2. Cognitivismo

Não é preciso muita astúcia ou grandes poderes de introspecção para se chegar à realização
de que, ordinariamente, nós pensamos e depois fazemos as coisas. Essa observação aparen-
temente inocente pode ser tomada como um ponto do partida para se derivar boa parte das
ideias que servem de base para a teoria cognitivista da mente. O primeiro passo consiste em
dividir a cognição em duas partes: o pensamento é tomado como a cognição propriamente
dita e a causa do comportamento inteligente subsequente, que é tomado como a mera mani-
festação externa, ou resultado visível do processo cognitivo. A seguir, observa-se que uma
das marcas que distingue o comportamento inteligente é o fato de que ele é sensível ao con-
texto — qualquer sorte de objetivo pré-especificado (possivelmente implícito) deve ser
efetivamente alcançado em um contexto onde podem haver diversos elementos, relevantes
ou irrelevantes para a situação. E agora é preciso explicar essa dependência do processo
cognitivo com relação aos fatores externos. A ideia de que os elementos externos fazem o
papel de causa da cognição deve ser descartada por uma série de motivos simples: o pen-

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samento é, supostamente, a causa do comportamento inteligente, nós não devemos querer ir


buscar essa causa em outro lugar; não é plausível pensar que a origem da inteligência possa
ser encontrada nos arranjos arbitrários e na dinâmica aparentemente aleatória das coisas do
ambiente; é frequente o caso em que a solução inteligente para um problema envolve ir na
direção contrária da ordem natural das coisas; a estimulação sensorial não exerce qualquer
tipo de força sobre o agente cognitivo capaz de guiar o seu comportamento inteligente; e
por aí vai. A solução da questão é dada então pela noção de informação: o aparato sensori-
al teria, de algum modo, a capacidade de capturar ou extrair informação do ambiente e tor-
ná-la disponível para os processos cognitivos. Mas, para essa solução ser efetiva, a infor-
mação precisa carregar ou conter algo a respeito dos objetos, relações e processos do ambi-
ente. E, dessa maneira, a informação produzida pelos sentidos passa a ser compreendida
em termos de conteúdos mentais ou representações, que tomam o lugar dos elementos ex-
ternos, em um formato mais adequado, para serem inspecionados e manipulados pelos pro-
cessos cognitivos que dão forma e controlam o comportamento inteligente.

O ponto mais atraente da visão cognitivista da mente é que esse conjunto de ideias pode ser
transformado em uma poderosa e concreta teoria da cognição, com o auxílio das noções de
formalização e computação. A dificuldade mais óbvia associada ao esquema descrito acima
é que se, de um lado, a noção de estados mentais com conteúdo informativo sobre estados
de coisas externos é intuitivamente clara e aparentemente fiel à nossa experiência conscien-
te do mundo, de outro lado, essa ideia se provou extremamente difícil de ser capturada com
precisão por meio de explicações naturalistas. A solução que foi encontrada para dar conta
dessa dificuldade é um tanto indireta. O primeiro passo consiste em postular que os estados
mentais são constituídos pelas chamadas representações mentais, como já foi indicado aci-
ma. A seguir, há uma pequena mudança de perspectiva: ao invés de se apoiar em uma co-
nexão direta entre as representações internas e os elementos externos, procura-se encontrar
suporte na maneira como as representações são manipuladas. A inspiração para esse mo-
vimento parece ter sido o programa formalista em matemática: "the discovery that large
swaths of mathematics can in fact be formalized ... — i.e., that the semantic relationships
intuitively deemed important in a domain like geometry can in fact be preserved by infer-

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

ences sensitive only to the syntactic form of the expressions" (Horst, 2007). A ideia, então,
é que as representações mentais devem ter tanto uma dimensão semântica (i.e., uma corres-
pondência com objetos e estados de coisas externos) como uma dimensão sintática (i.e., um
conjunto de propriedades formais precisas), de modo que a cognição possa ser explicada
em termos de um processo de raciocínio que consiste na manipulação de representações por
meio de operações que: (1) dependem apenas da forma sintática das representações, e (2)
preservam as suas relações semânticas. Finalmente, o passo final da solução consiste em
lançar mão da noção de computação para explicar como "it is possible to design a mecha-
nism that is capable of evaluating any formalizable function" (Horst, 2007). Portanto, em
resumo, "formalization shows us how to tie semantics to syntax ... [while computation]
shows us how to link up syntax to causation" (Horst, 2007). Essa solução não é apenas ele-
gante, mas, tendo em vista os resultados da teoria da computação que mostram como
funções computáveis arbitrariamente complexas podem ser definidas com base em um pe-
queno conjunto de funções primitivas (utilizando, por exemplo, composição e recursão),
parece ter, em princípio, todas as condições de explicar comportamentos cognitivos arbitra-
riamente complicados.

Uma vez que a teoria representacional/computacional da mente está bem formulada e é


julgada satisfatória, alguns autores decidem dar um passo adiante e apresentar argumentos
no sentido de que qualquer teoria válida e geral da cognição deve necessariamente envolver
a noção de representação, de uma forma ou de outra. Ou talvez possa se dizer que esse
passo seja apenas uma reação contra a reação, por parte dos anti-representacionalistas, à
ideia de que a cognição envolve representação interna e computação. Por exemplo, T. van
Gelder apresenta o governador centrífugo de Watt como um modelo de como o comporta-
mento inteligente adaptativo pode ser guiado por fatores externos, sem a necessidade de
qualquer processamento interno (van Gelder, 1995). De fato, a ausência de computação
interna é apresentada como a chave para a responsividade fluente do sistema, que rapida-
mente se ajusta e encontra um novo ponto de equilíbrio quando as condições externas se
modificam. Reagindo a essa observação, Clark e Toribio chamam atenção para as muitas
instâncias em que os fatores externos relevantes não estão disponíveis para interação, e ar-
gumentam que não se vai muito longe sem representações: "The ability to track the distal or

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the non-existent requires, prima facie, the use of some inner resource which enables appro-
priate co-ordination without constant ambient input to guide us. Whatever plays that kind
of inner role is surely going to count as some kind of internal representation" (Clark e
Toribio, 1994). Clark e Toribio também chamam atenção para uma segunda classe de casos
em que o problema não é tanto que os fatores externos relevantes estão ausentes, mas que a
propriedade relevante ou aspecto da situação a que o sistema deve responder não está dire-
tamente associada a nenhum parâmetro físico com que o sistema possa interagir: "These are
states of affairs which are highly relational or otherwise functional and `abstract'. ... It is
hard ... to see how to set up a system to track such properties unless it is capable to sub-
summing a variety of superficially very different inputs under a common rubric, and then
define further processing events not over the sensory array but over some inner item or pat-
tern whose content correspond to the more abstract property in question" (Clark e Toribio,
1994). A conclusão que se quer obter aqui é que até se pode admitir que existam situações
onde o comportamento inteligente pode ser explicado em termos da interação direta com
elementos do ambiente. No entanto, essas situações corresponderiam apenas a uma classe
restrita de fenômenos que não inclui os casos realmente interessantes de cognição, marca-
dos pelo raciocínio sobre o `ausente' e o `abstrato'. Não apenas isso, mas a investigação
desses exemplos mais simples de cognição não nos colocaria em uma posição melhor para
entender os casos interessantes de verdade. Isto é, existiria uma limitação ou insuficiência
fundamental associada com a abordagem dinâmica interativa à cognição, que só poderia ser
superada adotando-se um conjunto de princípios básicos inteiramente diferente: representa-
ções internas e processamento de informação.

3. Enativismo radical

A estratégia adotada pelo enativismo radical para se afirmar contra a tradição foi realizar
um ataque direto e frontal à noção que se encontra no centro da teoria cognitivista da men-
te: a noção de conteúdo representacional. A principal fonte de dificuldade, de acordo com
Hutto e Myin, é que "[t]he familiar cognitivist talk of information processing — certainly,
to the extent that it takes seriously that information is some kind of commodity that carries
abstract contentful messages — evokes ... serious scientific mysteries" (Hutto e Myin,

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2017, p.31). Isto é, como vimos na seção anterior, o cognitivismo se apoia na ideia de que
os sentidos capturam informação do ambiente, que então é codificada e processada para
definir e controlar o comportamento inteligente. Mas, o que é exatamente capturado e codi-
ficado pelos sentidos, e como isso é colocado à disposição para consumo e manipulação
pelos processos neuronais que se encontram mais adiante? Por outro lado, se nós não de-
vemos levar a estória de conteúdo informacional a sério, então nós podemos perguntar qual
é o valor explanatório real da teoria cognitivista da mente? Para avançar a sua posição nos
termos mais fortes possíveis, Hutto e Myin elaboram cuidadosamente essas observações
iniciais na forma do chamado Hard Problem of Content (HPC, ou o problema difícil do
conteúdo). A primeira observação é que existe uma lacuna na narrativa cognitivista: não é
claro como a noção abstrata de conteúdo informacional, que é supostamente extraído do
ambiente, codificado pelos sentidos e manipulado pelos processos cognitivos, se conecta
com descrições detalhadas de como os mecanismos físicos que suportam a cognição real-
mente operam. A suposição de que essa lacuna deve ser explicada de maneira cientifica-
mente respeitável coloca, então, um dilema para o cognitivista. Na primeira perna do di-
lema está a observação de que a noção de informação-como-covariância possui "impecca-
ble naturalistic credentials": "a state-of-affairs is said to carry information about another
state-of-affairs if and only if it lawfully covaries with that other state-of-affairs, to some
specified degree" (p.29). Portanto, a possibilidade está aberta para o cognitivista oferecer os
detalhes da estória de codificação e processamento de informação com base na noção de
informação-como-covariância. Mas, ter essa noção bem definida de informação não parece
tornar o problema nem um pouco mais fácil: "How can relations that hold between
covarying states-of-affairs be literally ‘extracted’ and 'picked up' from the environment so
as to be 'encoded' within minds?" (p.30). Hutto e Myin também observam que a utilização
de um "quasi-communicative vocabulary" de sinalização e recepção de mensagens também
não ajuda muito, pois a noção de códigos mentais ou neuronais é igualmente problemática.
Em resumo, trazer a noção de informação-como-covariância para a mesa não elimina a la-
cuna das explicações, e é tarefa do cognitivista mostrar como isso pode ser feito. É claro, a
possibilidade também está aberta para que o cognitivista encontre alguma outra noção cien-
tificamente respeitável de informação, e isso corresponde à outra perna do dilema: "[This]
requires identifying an alternative notion of information with sound naturalistic credentials

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

that can do the additional explanatory work necessary to validate the standard information
processing story" (p.31). No entanto, Hutto e Myin acham improvável que qualquer uma
das noções alternativas de informação disponíveis possam ter sucesso onde o melhor can-
didato falhou.

Deixando os problemas do cognitivista de lado, o enativismo radical move a sua atenção


para a agenda positiva de desenvolver uma teoria da cognição que não se apoia na noção de
conteúdo informacional. E, mais uma vez, é possível derivar as principais ideias dessa teo-
ria a partir de uma observação simples: às vezes, nós ficamos completamente envolvidos no
que estamos fazendo e não pensamos realmente no que está acontecendo. Note que o ponto
dessa observação não é realmente negar que qualquer coisa que possa ser chamada de pen-
samento esteja presente na situação, mas apenas chamar atenção para o fato de que nesses
casos não parece razoável analisar a situação em termos de um processo de pensamento
separado que é a causa do comportamento inteligente subsequente. Uma descrição mais
apropriada da situação deveria mostrar como o agente responde às circunstâncias imediatas,
fazendo aquilo que é habitual, monitorando as coisas para ver se tudo vai bem, e corrigindo
pequenos desvios do curso normal sempre que necessário. A medida que a atividade se
desenrola, os elementos externos/contingentes/acidentais do ambiente e as capacidades mo-
toras do corpo estão constantemente oferecendo alternativas possíveis para dar seguimento
à situação, que devem ser aproveitadas ou perdidas — não há espaço para cálculos internos
nessa estória. Mais uma vez, não é que não haja qualquer tipo de pensamento envolvido,
mas apenas que o pensamento que estiver envolvido está espalhado e entremeado com todo
o resto durante toda a extensão da atividade. Além disso, o pensamento está em direto
contato e cooperação próxima com o corpo e os elementos do ambiente. Em resumo, não
se pode encontrar barreiras temporais, espaciais ou lógicas separando estritamente a ativi-
dade cerebral dos eventos que envolvem o corpo e o ambiente. Quando as coisas são con-
cebidas dessa maneira, não há razão para privilegiar os processos que acontecem dentro da
cabeça como o locus exclusivo da cognição. Hutto e Mying capturam essa ideia sucinta-
mente na forma do seu "Equal Partner principle", que advoga um tratamento uniforme dos
fatores neuronais, corporais e ambientais nas explicações cognitivas: "variables of any kind
make an equally important contribution, irrespective of where they lie with respect to the

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boundaries of skin and skull, just as long as they make an appropriate contribution to ex-
plaining the overall shape of the system responsiveness" (p.21). Uma vez que o cérebro
perde o seu status privilegiado de centro da cognição, a percepção não deve mais ser enten-
dida como tendo a função de prover informação para os processos que operam dentro da
cabeça. Na dinâmica total que agora caracteriza a cognição, a percepção corresponde ape-
nas a um dos lados da interação que entrelaça agente e ambiente — o outro lado sendo, é
claro, a ação. Além disso, esses dois, percepção e ação, por vezes se encontram tão funda-
mentalmente conectados que é difícil separá-los um do outro, sendo preferível então falar
de um laço sensório-motor. Tomando emprestado uma expressão de Hutto e Myin, e assu-
mindo o ponto de vista do agente cognitivo, nós podemos dizer que os laços sensório-
motores são processos dinâmicos ativos "in the service of getting an effective, practical grip
on the world" (p.22).

Essa transformação radical na maneira como a cognição é entendida, e a completa reformu-


lação de conceitos chave como pensamento, percepção e ação, devem ser acompanhadas
pela introdução de um novo conjunto de ferramentas teóricas em termos das quais fenôme-
nos cognitivos interessantes possam ser descritos e analisados de forma precisa. O desafio,
no entanto, é produzir tais descrições sem se apoiar, nem ao menos implicitamente, na no-
ção de conteúdo representacional. A solução oferecida pelo enativismo radical se apresenta
na forma da Teoria dos Sistemas Dinâmicos (DST, ou Dynamical Systems Theory) e suas
equações diferenciais. A DST pode ser vista como um formalismo que permite descrever a
interação dinâmica de um conjunto de elementos não interpretados. Os elementos são não
interpretados no sentido de que tudo o que nós sabemos sobre eles é o fato de que eles são
caracterizados por um estado numérico que se modifica com o tempo (e isso não representa
informação semântica alguma). Na medida em que os elementos de um sistema dinâmico
são não interpretados, eles não podem ser compreendidos em termos funcionais. E, na me-
dida em que eles são componentes não funcionais, as suas interações também não podem
ser entendidas em termos funcionais. A forma genérica de interação entre os elementos de
um sistema dinâmico é uma interação que afeta a maneira como os seus respectivos estados
se modificam ao longo do tempo: as equações diferenciais descrevem como a taxa de varia-
ção de um elemento depende dos estados e das taxas de variação de outros elementos. Do

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ponto de vista matemático, sistemas descritos por equações diferenciais são sistemas não
lineares. Acontece que (certos) sistemas não lineares exibem propriedades de (auto-
)organização, no sentido de que o estado global do sistema é atraído para certas regiões do
seu espaço de fase, e é repelido de outras regiões. Na medida em que algumas variáveis do
sistema não linear descrevem os estados de elementos do ambiente, o seu comportamento
(auto-)organizado modela a maneira como agentes cognitivos adquirem padrões articulados
de resposta a mudanças externas. E, na medida em que a dinâmica dessas variáveis ambien-
tais é controlada por outras variáveis do sistema de equações, mudanças nessas últimas va-
riáveis modelam as intervenções que o agente pode realizar nos elementos do ambiente.
Finalmente, como não existe assimetria entre as variáveis do sistema, não existe um centro
privilegiado de ação ou controle — e aqui nós temos o "Equal Partner principle".

Como se deveria esperar, conceber a cognição como sistemas dinâmicos governados por
sistemas dinâmicos por conjuntos de equações diferenciais tem as suas implicações concei-
tuais. Especificamente, isso nos leva a perceber o fenômeno cognitivo como o desenrolar
de "continuous, temporal and interdependent changes" (p.24). A ideia mais saliente aqui é a
evolução de variáveis contínuas em um tempo contínuo, que está implicada pela caracteri-
zação da dinâmica em termos de equações diferenciais. Mais sutilmente, há aqui a ideia de
que tudo acontece de maneira síncrona, no sentido de que uma mudança em uma das variá-
veis se propaga imediatamente pelo sistema (de equações) afetando a dinâmica das outras
variáveis. Em outras palavras, não há pausa para iniciar um processo (cognitivo) paralelo,
cujo resultado é então utilizado quando se retorna à ação. Essa observação, por outro lado,
envolve a ideia de que um sistema dinâmico não se presta a uma decomposição em compo-
nentes (funcionais): o comportamento deve ser "understood as the overall responsiveness of
a complex system" (p.29). Em certo sentido, essas implicações conceituais são bastante
convenientes para o enativismo radical porque, tomadas em conjunto, elas correspondem a
uma negação do paradigma de processamento de informação e a visão de que a cognição
deve envolver a manipulação de representações internas: "purely embodied know-how is
not grounded in or mediated by any kind of knowledge" (p.29). Mais precisamente, Hutto
e Myin querem desafiar a visão de que "there must be concrete mediators of perception and
behavior in the form of discrete representations" (p.35). De acordo com eles, "the putative

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work that discrete, concrete representations mediating perception and action do is twofold:
they are meant to distill what is encountered through learning and thereby they come to
modulate a complex set of possible behaviors" (p.34,35). Isto é, as representações discretas
entram em cena (para o cognitivista) para dar conta do fato empírico de que agentes inteli-
gentes estão constantemente modificando o seu comportamento para se adaptarem a mu-
danças que ocorrem no ambiente. Mas, Huto e Myin observam que esse fato empírico pode
ser explicado em termos de modificações estruturais (sem conteúdo) que se acumulam no
curso da história de interações entre o agente e o ambiente. A plasticidade do cérebro é o
candidato natural para explicar essas modificações: "Through ... processes of organism-
environment adjustments the weights of neural connections change and are recalibrated"
(p.26). Mas, Hutto e Myin rapidamente acrescentam que "relevant changes can also be lo-
cated in the environment", e, presumivelmente, no corpo também. Com essa explicação em
termos de modificações estruturais (sem conteúdo), Hutto e Myin estão mais uma vez
reafirmando a sua posição conceitual: "[radical enactivism] is cautious in the way it under-
stands the character and basis of such changes — it steers clear of casting them in infor-
mation processing and representational terms" (p.26).

4. Um caminho do meio

Antes de começar a exposição das nossas ideias a respeito de um caminho do meio para
investigar a cognição, é bom deixar claro já de início que nós estamos conscientes dos ris-
cos envolvidos em manobrar nessa terra de ninguém. De fato, Hutto e Myin são bastante
explícitos e enfáticos em suas advertências: "And, of course, we don't want to mess with
Mister In-Between (...) Hybrid accounts tend to inherit weaknesses rather than resolving
fundamental problems — so, where possible, it is best to steer clear of ... halfway house
proposals" (p.xv). O que parece preocupar a eles aqui são soluções que, na tentativa de
encontrar algum tipo de compromisso com a posição tradicional, terminam vulneráveis à
mesma crítica que foi formulada ao cognitivismo (isto é, o HPC): "The agenda ... is not
merely to tinker with and reform the notion of representation and thereby modestly adjust
the vision of cognition associated with" (p.36). Em vista desse perigo, o conselho
inequívoco de Hutto e Myin é que adotemos a posição radical, onde "[g]oing radical ... is to

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abandon the information processing representationalist views of cognition in favor of a


purely embodied know-how account" (p.36). De fato, o projeto é mesmo radical, pois, ao
que parece, eles desejam substituir "[a] whole system of concepts and rules by a new sys-
tem" (Thagard, 1992, citado por Hutto e Myin, 2017).

Tendo deixado esse ponto claro, nós vamos motivar a nossa procura por um caminho do
meio com a observação de que existe uma lacuna na explicação radical. A posição radical
assume que a atividade cognitiva corporificada "takes the form of more or less successful
organism-environment couplings" (p.25), onde esses acoplamentos correspondem a com-
plexos padrões de interação entre fatores cerebrais, corporais e ambientais. A questão natu-
ral que se coloca, então, é como esses padrões complexos de interação surgem e se estabe-
lecem em primeiro lugar? Examinando como Hutto e Myin lidam com esse problema, nós
encontramos passagens como: "embodied skills are aquired and emerge as a consequence
of a history of interactions between learners and their embedding environment" (p.25), and
"Through sustained, context-sensitive, active engagements with wordly offerings, organ-
isms are changed so as to be able to get `a grip on the patterns that matter for the interac-
tions that matter'" (p.25), and "through adjusting and attuning to the world over time ... or-
ganisms enactively evolve their most fundamental cognitive capacities" (p.25), e por aí vai
(ênfases adicionadas). Mas, então, nós podemos perguntar novamente: como? como? co-
mo? — isto é, quais são os processos e mecanismos por trás dessa emergência, mudança,
ou evolução enativa? Hutto e Myin parecem estar se apoiando na propriedade de auto-
organização exibida por sistemas dinâmicos não lineares quando eles mencionam "the
complex self-organizing responsiveness of learners acquiring skills in embodied activities"
(p.24). Mas, nós podemos argumentar, não é razoável esperar que o complexo cérebro-
corpo-ambiente se auto-organize espontânea e consistentemente, de uma maneira que é
adaptativa e funcional da perspectiva do organismo. Portanto, a lacuna que requer explica-
ção é como os acoplamentos organismo-ambiente, que constituem o comportamento cogni-
tivo corporificado, se estabelecem no contexto de uma história de interações continuadas.
Felizmente, essa lacuna não é tão séria quanto aquela apontada pelo HPC. Mas, como ve-
remos a seguir, para eliminá-la será necessário dar alguns passos atrás com relação à posi-
ção radical.

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Como já fizemos com as duas abordagens anteriores à cognição, nós vamos tentar derivar
as ideias principais do nosso caminho do meio a partir de uma observação simples: existem
ocasiões em que nós nem pensamos nem atuamos de maneira fluente, mas tentamos coisas
aqui e ali para ver o que pode dar certo. O que nós temos em mente aqui são situações
práticas com as quais nós não estamos familiarizados ou nunca nos engajamos antes, mas já
temos alguma ideia do que se tratam. Por exemplo, imagine que você quer aprender a andar
de monociclo. Você tem um bem na sua frente e sabe que isso é possível, mas você sim-
plesmente não consegue fazê-lo. Parece claro que nenhuma quantidade de pensamento pode
ajudá-lo aqui, e você também não pode conceber um plano que permita organizar o apren-
dizado como um processo passo a passo. Assim, você decide pegar o monociclo e começar
a fazer as suas tentativas. No início tudo parece dar errado. Você não sabe onde deve posi-
cionar as suas pernas, como movimentar os seus braços, e também não sabe onde deve co-
locar a sua atenção. E, sempre que você se sente um pouquinho mais confiante para arriscar
alguma coisa, você acaba indo parar no chão. Em meio a toda essa frustração, no entanto,
você eventualmente se dá conta de que fez algo certo: você não perdeu o equilíbrio tão rá-
pido dessa vez. Mas, você não tem a menor ideia do que aconteceu. Então, você continua
com as suas tentativas, as coisas começam a se encaixar, e daqui a pouco você será capaz
de dar algumas voltas curtas e desengonçadas. Com o tempo, e muita persistência, você
será capaz de chegar finalmente ao ponto em que o andar de monociclo é um comporta-
mento fluente. Nesse momento, você e o monociclo serão, como que, uma coisa só, se mo-
vimentando juntos como a operação contínua e suave de uma máquina.

Nessa última frase nós encontramos afinal a nossa ideia principal: nós propomos conceber
o comportamento cognitivo como a operação de uma máquina. Mais precisamente, nós
assumimos que os agentes cognitivos estão sempre na posição de tentar fazer avançar a sua
situação atual em direção a algum objetivo que lhes interessa — isto é, eles estão sempre
confrontando o mundo a partir de uma perspectiva interessada, e estão sempre com a dispo-
sição de fazer alguma coisa. Nos casos mais simples, um simples ato como mudar a posição
do corpo, ou se mover para outro lugar, ou empurrar alguma coisa (ou alguém) para o lado,
pode resolver a situação. Os casos mais interessantes, no entanto, são marcados pelo fato de

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que nenhuma ação simples poderia ser efetiva, e a situação deve ser resolvida pela articula-
ção de diversos elementos, que podem envolver fatores do ambiente. Isto é, todo um nexo
causal deve ser articulado para mover a situação na direção que se deseja. Esse nexo causal
é exatamente o que nós queremos dizer com o termo "máquina".

Mas, na maior parte do tempo os agentes cognitivos estão apenas manifestando comporta-
mentos que já foram aprendidos, o que consiste basicamente em colocar certas máquinas
em operação. Nesses momentos, o agente está completamente imerso na situação, concen-
trado em oferecer respostas imediatas a estímulos imediatos do ambiente (para manter a
máquina operando), e nenhuma ideia tangível de objetivo precisa estar presente em sua
cabeça — a experiência já mostrou no passado que o comportamento em geral produz o
resultado que se quer. Em particular, as noções de cálculo e planejamento parecem comple-
tamente fora de lugar aqui. Como se pode ver facilmente, essas descrições se aproximam
bastante da concepção radical de cognição baseada em sistemas dinâmicos, defendida por
Hutto e Myin. Na medida em que todas as interações entre os componentes de uma máqui-
na são de natureza causal, "the factors that shape the trajectory of [the] system do not do so
"in the sense of 'instructing' how it should behave or of 'monitoring' its evolution"" (Co-
lombetti 2014, citado por Hutto e Myin, 2017). Ou, como nós diríamos, cada componente
da máquina está ocupado com a sua própria tarefa, puxando ou empurrando componentes
vizinhos, sem se preocupar com o que os outros estão fazendo. Além disso, "neural, bodily
and environmental factors all make equally important contributions" (i.e., o Equal Partner
principle), no sentido de que uma falha em qualquer um deles é suficiente para interromper
a boa operação da máquina.

A consequência mais interessante de se conceber o comportamento cognitivo como a ope-


ração de uma máquina, no entanto, é que o problema da emergência do comportamento
pode ser reformulado como o problema da construção de uma máquina. E, nesse ponto,
nós começamos a nos distanciar da posição radical. A primeira observação é que, com esse
movimento, a cognição é novamente dividida em duas fases: (1) o momento em que o
comportamento adquire a sua forma (i.e., quando a máquina é construída), e (2) o momento
em que o comportamento é colocado em prática (i.e., quando a máquina entra em opera-

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ção). Por outro lado, esse movimento não nos leva de todo até a posição cognitivista, por-
que a construção não é tarefa exclusiva de um cérebro isolado que opera com representa-
ções. Ao contrário, como vimos no exemplo do monociclo, cérebro, corpo e ambiente to-
mam parte juntos no processo de construção da máquina (ou aprendizado). O método de
construção é basicamente o método da tentativa e erro: através do engajamento corporal
com os elementos do ambiente, regularidades subjacentes à situação são descobertas, ou
melhor, o seu impacto sobre o estado do organismo é detectado, e, com base nisso, certos
graus de liberdade são fixados definindo a estrutura da máquina. Existe uma pequena suti-
leza aqui, no fato de que as mudanças estruturais podem ocorrer em todos os três parceiros
(cérebro, corpo e ambiente), e todas essas mudanças contribuem para a forma final do com-
portamento. No entanto, apenas o cérebro toma algumas dessas mudanças como "boas ou
não" (adaptativas ou não adaptativas), e utiliza esses "julgamentos" para guiar a construção.
Em outras palavras, apesar de todos os três parceiros participarem ativamente (e serem
transformados) no processo de aprendizado, o cérebro é o gerente da construção. E aqui nós
encontramos mais uma diferença com relação a posição radical: o cérebro foi colocado de
novo no centro, contrariando o "Equal Partner principle". De fato, a ideia de uma assimetria
entre organismo e ambiente não é estranha ao enativismo: em seu artigo seminal "Biology
of Intentionality", Francisco Varela nos diz que "in [the] dialogic coupling between the
living unit and the physico-chemical environment, the balance is slightly weighted towards
the living since it has the active role in the reciprocal coupling” (Varela, 1992). Nós acredi-
tamos que a nossa analogia da máquina, e a consequente separação entre o momento da sua
construção e o momento da sua operação, contribui para que se veja com mais clareza co-
mo se pode ter uma assimetria entre cérebro, corpo e ambiente, mesmo na situação em que
todos os três participam de maneira ativa no processo da cognição.

Análise: o papel do vocabulário informacional

A ideia de assimilar o comportamento cognitivo à operação de uma máquina também reduz


a carga de trabalho do cérebro — comparado à estratégia cognitivista. De um ponto de vista
pragmático, tudo o que importa é que a máquina opere corretamente, e não que a máquina
(ou algum de seus componentes) mantenha tudo sob controle. Lembre que o proceso de

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construção pode se aproveitar oportunisticamente de regularidades da situação que parecem


(consistentemente) úteis. Mas, isso significa que, no momento da operação, cada compo-
nente pode se concentrar em realizar a sua própria tarefa, e confiar no fato de que as regula-
ridades envolvendo os outros componentes farão a sua parte também. Mais especificamen-
te, nós não precisamos entender a operação da máquina em termos de componentes que
monitoram os estados de outros componentes. E isso, por sua vez, significa que nós não
precisamos fazer uso do vocabulário de informação e tráfico de informação para entender
como o comportamento cognitivo (básico, corporificado) funciona; a linguagem das intera-
ções causais pode muito bem ser suficiente.

Mas, se nós não precisamos do conceito de informação para entender a operação de uma
máquina, talvez esse vocabulário possa ser necessário para entender o processo da sua
construção. De fato, a atividade humana de projetar e construir máquinas faz uso intensivo
de informação. Mas, para tirar proveito das regularidades causais de uma situação não é
preciso que elas sejam descobertas uma a uma e codificadas na forma de um mapa, que em
seguida pode ser usado em busca de uma concatenação de causas e efeitos capaz de nos
aproximar do objetivo. Quando nós estamos fisicamente engajados com a situação, a inte-
ração do nosso corpo com os elementos do ambiente é governada por regularidades causais
cujo desenrolar, então, tem um efeito sobre o nosso estado interno — e.g., o nosso sentido
de equilíbrio, no exemplo do monociclo. Dessa forma, após o fato, o cérebro tem a oportu-
nidade de classificar os movimentos que foram tentados como "bons", no sentido de que
eles parecem nos fazer aproximar do objetivo, ou como "não-bons", no sentido de que eles
são inefetivos ou nos colocam em um estado indesejado. Isso parece ser o que Hutto e
Myin tem em mente quando eles falam que o trabalho dos sentidos consiste em "trying to
ensure — within suboptimal limits — that organismic activity satisfies specific, narcissistic
organismic needs" (p.71). Uma vez que os movimentos são julgados como "bons" ou "não-
bons", o cérebro pode fixar seletivamente graus de liberdade (ou boundary conditions) e
gradualmente produzir concatenações de movimentos, em um processo que eventualmente
constrói um nexo causal (ou máquina) que nós usualmente chamamos de comportamento
cognitivo. Em resumo, nós não precisamos introduzir o conceito de informação em nossas
explicações para entender nem a operação nem a construção da máquina.

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Mas, apesar disso, o conceito de informação ainda assim pode ser útil para explicar porque
o método de construção esboçado acima pode ser tão efetivo. Lembre que a noção de in-
formação-como-covariância se refere à ideia de que se um estado covaria regularmente com
outro estado, então pode-se dizer que cada um deles carrega informação sobre o outro. Mas,
na medida em que toda regularidade causal tende a produzir estados covariantes, nós deve-
ríamos esperar encontrar esse tipo de informação em todo lugar. Hutto e Myin colocam
essa ideia nos seguintes termos: "Information in this sense is perfectly objective and utterly
ubiquitous — it literally litters the streets" (p.30). Em particular, isso significa que haverão
abundantes oportunidades para que um agente em aprendizado interaja com fatores que são
ou diretamente relevantes para a tarefa cognitiva em questão, ou carregam informação so-
bre os fatores relevantes — mesmo que, nesse segundo caso, os fatores relevantes estejam
distantes, ausentes, ou mesmo não existam (no presente). A observação crucial, a seguir, é
que se pode aproveitar oportunisticamente as informações-como-covariância sem estarmos
conscientes delas — isto é, sem sabermos sobre o que ela nos dá informação. Para clarificar
esse ponto, considere a diferença entre (1) fazer alguma coisa porque em geral ela funciona
bem (ou funcionou bem da última vez), e (2) fazer alguma coisa porque se sabe que ela é
relacionada (ou covaria) com uma outra coisa, e isso nos assegura que tudo provavelmente
irá bem. Ambas as estratégias podem ser efetivas, mas na primeira delas a noção de infor-
mação só precisa entrar em cena, após o fato, se alguém quiser entender porque, afinal de
contas, as coisas deram certo. Em outras palavras, procedendo de acordo com a estratégia
(1), interagindo com estímulos locais e ajustando as suas reações, você pode eventualmente
dar forma a comportamentos cognitivos relativamente complexos, que podem trazê-lo mais
próximo daquilo que está distante, revelar aquilo que está ausente, ou fazer aparecer aquilo
que ainda não existe. E, ao tentar dar conta desse comportamento, mais tarde, um observa-
dor externo pode achar conveniente descrever a situação em termos informacionais. E essa
observação nos leva para a última parte da nossa história.

5. Discussão

Uma inversão e a tentativa de desinversão

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As três abordagens à cognição que foram esboçadas nas últimas seções concentram a sua
atenção sobre aspectos diferentes do problema — e pode-se dizer que a discordância entre
as duas primeiras se deve a esse fato. De acordo com a breve (e incompleta) exposição que
fizemos, o cognitivismo se interessa pela situação em que o pensamento é utilizado para
resolver problemas por meio da manipulação de informação, o enativismo se interessa pelo
caso de comportamentos corporais que se engajam diretamente com os elementos do ambi-
ente, e o nosso caminho do meio se interessa pela dinâmica do processo de aprendizado.
Aproximadamente relacionadas com esses interesses, mas não na mesma ordem, estão três
perspectivas diferentes que se podem adotar com relação ao comportamento inteligente: a
primeira delas procura entendê-lo em termos de interações causais entre mecanismos muito
básicos, onde não parece haver espaço para o uso de vocabulário informacional; a segunda
se questiona a respeito de como esse tipo de articulação causal adaptativa pode surgir e se
estabelecer no contexto da interação de um agente com o ambiente; e a terceira que saber,
não como o comportamento opera em baixo nível nem como ele veio a aparecer, mas por-
que ele é efetivo em produzir os seus resultados adaptativos — e é aqui que o vocabulário
informacional vem prestar os seus serviços.

O ponto que nós queremos chamar à atenção aqui é que mesmo que uma máquina tenha
sido construída e opere sem o uso de informação, ainda assim ela pode ser submetida a uma
análise informacional. Isto é, com o objetivo de tentar entender porque tudo funciona direi-
to, nós introduzimos vocabulário informacional para dar sentido a uma articulação distribu-
ída de eventos e componentes que, em última análise está ancorada apenas em interações
causais. O papel do vocabulário informacional nesse caso — mais especificamente, infor-
mação-como-covariância — é explicitar, codificar e abstrair toda uma série de regularida-
des causais que subjazem a operação da máquina, mas que não são relevantes para um en-
tendimento em alto nível da sua lógica de operação. A parte mais interessante dessa histó-
ria, a seguir, é que, uma vez que as regularidades causais foram abstraídas e codificadas em
vocabulário informacional, elas dão acesso a um novo método de construção de máquinas:
a concatenação de relações de causa e efeito por meio da inspeção e manipulação de descri-
ções ou representações. De fato, a atividade de construção de máquinas por esse novo mé-

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todo acaba produzindo todo um novo conjunto de regras: regras que indicam como conectar
relações de causa e efeito em diferentes situações (tendo em vista certos objetivos). Essas
regras, por sua vez, também podem ser explicitadas e codificadas em vocabulário informa-
cional. E o acesso a essas regras traz ainda mais uma novidade. Isto é, na medida em que
nós temos regras que indicam como conectar relações de causa e efeito (de modo adaptati-
vo) com base em diferentes aspectos de uma situação, nós podemos construir máquinas que
reorganizam a sua estrutura causal com base na percepção de (ou a interação com) aspectos
seletivos da sua situação atual. Nos parece que esse tipo de máquinas pode ser descrito ge-
nuinamente como máquinas que operam em termos informacionais. Em resumo, a análise
da operação de uma máquina já construída nos dá acesso a um novo modo de construção de
máquinas, que por sua vez dá acesso a um novo modo de operação de máquinas. E quando
nós chegamos a esse ponto, fica extremamente difícil ver as coisas de outro modo. Isto é,
nós passamos a conceber a cognição (e as máquinas), mesmo em suas manifestações mais
básicas, em termos informacionais — o que corresponde, em última análise, a uma
inversão.

O projeto enativista, nesse sentido, pode ser visto como a tentativa de realizar uma desin-
versão. E o obstáculo com que ele se depara é a dificuldade de se produzir explicações que
nos permitam entender o funcionamento de sistemas adaptativos complexos sem utilizar o
vocabulário informacional. Isso não é uma tarefa nada fácil e o sucesso que tem sido obtido
é limitado, no sentido em que até hoje nós testemunhamos a polêmica entre representacio-
nalistas e anti-representacionalistas, e até hoje se acusa o projeto enativista de dar conta
apenas de formas de cognição muito básicas, e de uma maneira que não é informativa para
a investigação de fenômenos cognitivos mais interessantes. Nesse contexto, a nossa tentati-
va de encontrar um caminho do meio acaba oferecendo uma nova perspectiva para analisar
a situação. Especificamente, ao invés de focar a atenção em estratégias para a descrição do
funcionamento de máquinas, a nossa abordagem se concentra no processo da sua constru-
ção. E os resultados dessa mudança de perspectiva são basicamente dois. O primeiro deles é
que, ao entender com clareza a dinâmica do aprendizado por tentativa e erro, onde as regu-
laridades causais que estruturam a nossa situação são detectadas por meio dos efeitos que
elas tem sobre a nossa atividade de aprendizado, e a nossa reação a elas são incorporadas

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ou não ao nosso comportamento, oportunisticamente, com base nesses efeitos, nós acaba-
mos por contribuir com o projeto enativista de desinversão. Isto é, na medida em que fica
mais claro como comportamentos adaptativos complexos podem surgir e se estabelecer sem
o uso de informação, fica mais plausível o caso de que comportamentos adaptativos com-
plexos possam operar sem o uso de informação.

Máquinas construtoras de máquinas

O segundo resultado é baseado na observação de que a estratégia explicativa cognitivista


também envolve um processo de construção. Isto é, quando o pensamento se coloca para
resolver um problema, e coleta no ambiente as informações relevantes para a situação, o
que ele faz em seguida é inspecionar e manipular essas informações, e quaisquer outras que
ele porventura tiver à sua disposição, para dar forma a uma solução que corresponde a um
comportamento inteligente que resolve o problema. O objetivo do cognitivista, então, é
encontrar uma maneira de descrever essa atividade de modo que pareça plausível que ela
pode ser realizada por uma máquina (ou um computador). Em outras palavras, a estratégia
cognitivista consiste em descrever uma máquina (a cognição) construtora de máquinas
(comportamentos inteligentes). Mas se, por um lado, o sucesso dessa estratégia explicativa
nos permitiria entender a origem e a natureza do comportamento inteligente (i.e., o fato de
que ele é uma máquina — ou uma articulação de relações causais — que é construída dessa
e dessa maneira), por outro lado, ele deixa uma série de questões em aberto a respeito da
máquina que produz esse comportamento. Isto é, em certo sentido, a estratégia cognitivista
apenas empurra o problema um pouquinho mais para frente.

Nesse ponto, nós podemos utilizar mais uma vez a nossa abordagem do caminho do meio
para realizar uma pequena mudança de perspectiva. Isto é, do mesmo modo que, com rela-
ção ao enativismo, nós redirecionamos o olhar de uma perspectiva de operação para uma
perspectiva de construção, aqui também, com relação ao cognitivismo, nós podemos nos
questionar a respeito da origem da máquina cujo funcionamento ele descreve. Aqui, entre-
tanto, surge uma pequena sutileza: o cognitivista pode muito bem responder que a sua má-
quina aparece como resultado de um processo de evolução por seleção natural. Pode ser.

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Mas, não é essa estrutura mais básica da máquina que nos interessa em nosso questiona-
mento. Lembre que a máquina do cognitivista opera manipulando informações e represen-
tações (com conteúdo). Parece razoável assumir que isso (i.e., as informações e as ope-
rações que são aplicadas sobre elas) não pode ter aparecido por meio de evolução por sele-
ção natural — ou, pelo menos, não toda a informação que nós utilizamos em nossas ativi-
dades cotidianas. E também não é razoável assumir que a mera percepção desengajada da
realidade possa ser a origem da informação que precisamos. Esse tipo de percepção pode
nos dar acesso, supostamente, a estados de coisas externos. Mas, isso não basta. Para que a
manipulação (sintática) de representações possa ser efetiva, é preciso ter regras que indi-
quem como essas representações se relacionam umas com as outras, e como essas represen-
tações e as operações que nós realizamos sobre elas se relacionam com as nossas habilida-
des práticas e os objetivos que nós queremos alcançar. Mais uma vez, não é razoável as-
sumir que a mera percepção desengajada de um objeto ou uma cena nos daria acesso à ma-
neira como eles reagiriam às nossas manipulações com relação aos objetivos que queremos
alcançar — a menos que, de alguma maneira, esse objeto ou cena já nos sejam familiares;
mas, então, nós podemos nos questionar a respeito da origem dessa familiaridade.

Tendo eliminado essas possíveis respostas fáceis, nós perguntamos novamente: daonde
vêm as regras que nos permitem manipular as representações? ou, daonde vem o conteúdo
associado a essas representações? A única alternativa que parece ter restado é: o engaja-
mento direto com a realidade no contexto da construção de máquinas (ou articulações de
relações causais) por meio de tentativa e erro. Isto é, somente quando nós nos colocamos a
manipular os objetos e estados de coisas à nossa volta por meio de nossas habilidades práti-
cas na tentativa de alcançar os objetivos que nos interessam é que nós descobrimos como
esses objetos e estados de coisas reagem às nossas tentativas de manipulação. Essa desco-
berta, é claro, se dá apenas após o fato. Isto é, quando nós percebemos os efeitos (positivos,
negativos, ou nulos) das nossas tentativas (com relação aos objetivos que nós queremos
alcançar). Mas, aquilo que é percebido como um efeito, pode em seguida ser utilizado co-
mo uma causa. Isto é, assumindo que a relação de causa e efeito que acabou de ser detecta-
da corresponde a uma regularidade causal da situação em que nós estamos trabalhando, o
mesmo tipo de movimento que nos levou à descoberta pode ser utilizado em seguida para

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produzir o mesmo tipo de efeito em contextos semelhantes. Aqui estão as regras que permi-
tem a máquina do cognitivista funcionar, e esse é o segundo resultado da mudança de pers-
pectiva proporcionada pelo nosso caminho do meio.

6. Conclusão

Para encerrar, nós vamos tentar ver as coisas de um ponto de vista mais alto. Como já foi
observado, a nossa abordagem do caminho do meio não se coloca em oposição e termina
por contribuir com o projeto enativista. Isto é, ao mostrar como se pode construir uma má-
quina manipulando diretamente os elementos da situação e experimentando os efeitos das
regularidades causais a que eles estão submetidos, se torna mais plausível a ideia de que
máquinas (cognitivas) consideravelmente complexas possam operar sem o uso de informa-
ção ou representações internas. Além disso, a nossa análise também mostra que a máquina
que o enativista deseja descrever (sem utilizar o conceito de informação) é constituída pela
articulação de regularidades causais que precisam ser descobertas por meio do engajamento
direto com a realidade. Em outras palavras, na base do comportamento corporal engajado
com a realidade, pelo qual o enativista se interessa, está a atividade de descoberta das re-
gras do jogo — que, nesse momento, ainda permanecem implícitas e não codificadas em
linguagem.

Da mesma maneira, a nossa abordagem do caminho do meio também não se coloca em


oposição ao projeto cognitivista. Tudo o que ela faz é chamar atenção para o fato de que a
máquina que o cognitivista deseja descrever (por meio de vocabulário informacional)
também é baseada em uma estrutura (de regras que determinam o conteúdo das representa-
ções) que não pode ser tomada como dada, e cuja origem não é explicada pelo cognitivista
— nesse sentido, há uma lacuna no cognitivismo semelhante àquela que apontamos no pro-
jeto enativista radical. De fato, a nossa análise mostra que, devido à natureza das regras que
são necessárias para que se possa dar forma a comportamentos inteligentes por meio do
pensamento (i.e., regras que articulam estados de objetos e coisas, as nossas habilidades
práticas, e os objetivos que desejamos alcançar), só se pode chegar a essas regras por meio
do engajamento direto com a realidade. Em outras palavras, na base do pensamento intelec-

204
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tual articulado em linguagem, pelo qual o cognitivista se interessa, também se encontra a


atividade de descoberta das regras do jogo — já explicitadas e codificadas em linguagem,
ou ainda implícitas (e.g., na forma de inferências materiais entre conceitos).

Ora, mas agora as coisas estão começando a ficar mais claras. Nós dissemos um pouco
mais atrás que a nossa abordagem do caminho do meio se interessa pela dinâmica do pro-
cesso de aprendizado. E que a perspectiva ou atitude investigativa associada a ela consiste
no questionamento a respeito de como articulações causais adaptativas podem surgir e se
estabelecer no contexto da relação de um agente com o ambiente. O que as observações
acima revelam é que o processo de aprendizado ou emergência das articulações causais
adaptativas pode ser analisado como sendo constituído por duas etapas. A primeira delas
corresponde ao que nós chamamos de descoberta das regras do jogo, ou a detec-
ção/explicitação de regularidades causais/correlações potencialmente úteis com relação ao
objetivo que se deseja alcançar. E a segunda consiste na articulação propriamente dita des-
sas regras para se construir a máquina cognitiva que efetivamente alcança o objetivo.

No contexto enativista dos comportamentos corporais engajados com o ambiente, essas


duas etapas acontecem entrelaçadas e simultaneamente, sendo difícil distinguir uma da ou-
tra na prática — de fato, a construção e a operação da máquina também podem se confun-
dir, sendo possível conceber o comportamento como em permanente (re)construção. No
contexto cognitivista do comportamento de alto nível mediado pelo pensamento conceitual,
por outro lado, as duas etapas de construção (bem como a construção e a operação) da má-
quina cognitiva aparecem claramente separadas. Tão separadas, de fato, que a etapa de des-
coberta das regras do jogo acaba escapando do esforço de análise do cognitivista. A opera-
ção da máquina tampouco desperta o seu interesse, e o cognitivista acaba se concentrando
sobre o pensamento (ou o jogo de manipulação de regras e representações), que se apresen-
ta para ele como o fenômeno autônomo da cognição.

Portanto, a contribuição da nossa análise do caminho do meio ao debate sobre a cognição


consiste em (1) introduzir as distinções necessárias para entender o fenômeno com clareza,
na perspectiva enativista, e (2) resgatar aspectos relevantes do problema que foram deixa-

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dos de lado na perspectiva cognitivista. Quando fazemos isso, nós observamos que, do pon-
to de vista estrutural, o projeto enativista e o projeto cognitivista estão tratando essencial-
mente do mesmo problema — apesar de que sobre uma base de regras diferentes em cada
caso. Não apenas isso, mas aquilo que falta a cada um deles parece ser oferecido pelo outro.
Isto é, a crítica recorrente que se faz à abordagem enativista ao problema da cognição é que
os seus métodos não escalam para além de um certo nível de complexidade e, por esse mo-
tivo, não são capazes de dar conta de fenômenos cognitivos mais interessantes. Esse pro-
blema não se apresenta para a abordagem cognitivista porque o vocabulário informacional é
rico em recursos de abstração, modularização, generalização, etc., que permitem manipular
uma grande quantidade de elementos de forma organizada e, dessa maneira, dar conta de
situações arbitrariamente complexas. Por outro lado, a crítica recorrente que se faz à abor-
dagem cogntivista ao problema da cognição é que não é nem um pouco claro como os seus
símbolos e outras estruturas sintáticas se relacionam com as noções de significado, conteú-
do, etc. Essa dificuldade é a base do problema difícil do conteúdo, formulado por Hutto e
Myin, e também aparece nas discussões sobre inteligência artificial, na forma do problema
do aterramento simbólico (symbol grounding problem, Harnad 1990). Esse problema, é
claro, não se apresenta para a abordagem enativista pois, na medida em que ela descreve o
engajamento direto de um agente com o ambiente, ela já está trabalhando, digamos assim,
em um contexto semântico — a sua dificuldade, de fato, consiste em explicar como é que a
dimensão sintática pode surgir nesse contexto. Portanto, ao invés de continuar alimentando
uma polêmica entre o projeto enativista e o projeto cognitivista para a cognição, a nossa
abordagem do caminho do meio sugere que seria mais adequado perceber os dois projetos
em continuidade um com o outro.

REFERÊNCIAS

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4, p. 625-647, 2000.
Harnad, S. The symbol grounding problem. Physica D: Nonlinear Phenomena. 42, 1-3, p.
335-346, 1990.

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Haselager, P., De Groot, A. & Van Rappard, H. Representationalism vs. anti-


representationalism: a debate for the sake of appearance. Philosophical psychology, 16, 1,
p. 5-24, 2003.
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Horst, S. The computational theory of mind. The Stanford Encyclopedia of Philosophy.
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Hutto, D. and Myin, E. Evolving enactivism: basic minds meet content. The MIT Press,
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Thagard, P. Conceptual revolutions. Princeton University Press, 1992.
Colombetti, G. The feeling body: affective science meets the enactive mind. MIT Press,
2014.
Varela, F. Autopoiesis and a biology of intentionality. Proceedings of the workshop “Auto-
poiesis and Perception”, p. 4-14, 1992.

207
PROPOSTAS ENATIVAS E A QUESTÃO DA CONTINUIDADE
ENTRE FORMAS DE COGNIÇÃO

Jeferson Diello Huffermann1


Pedro Maggi Rech Noguez2

RESUMO: Analisaremos duas vertentes do enativismo, a autoproclamada “radical” por Hutto e Myin
(2013; 2017) e aquela encontrada em Linguistic Bodies de Di Paolo, Cuffari e De Jeagher (2018). A
primeira ocupa-se principalmente da tarefa de identificar dificuldades internas a qualquer teoria que
pretenda valer-se de uma noção naturalizada de conteúdo semântico para explicar as capacidades
perceptual e motora de organismos vivos. Traçando uma divisão entre cognição básica e cognição
superior, RECers distinguem faculdades cognitivas intuitivamente mais complexas da percepção e do
movimento corporal. Isso coloca aos enativistas autoproclamados radicais a dificuldade de reconciliar
cognições básica e superior sob uma linha explicativa contínua. A segunda vertente que analisaremos é
uma que de fato faz a primeira parecer conservadora, na medida em que seu programa consiste em
eliminar qualquer linha fronteiriça entre cognições básica e superior, estabelecendo assim uma
continuidade naturalista entre linguagem e vida. Argumentamos, assim, que a proposta de Di Paolo,
Cuffari e De Jaegher ao mesmo tempo cumpre os objetivos e evita as dificuldades encontradas em Hutto
e Myin.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia das Ciências Cognitivas. Enativismo. Cognição básica e superior.


sense-making.

ABSTRACT: We examine two varieties of enactivism: Hutto and Myin’s (2013;2017) self-proclaimed
radical enactivism (REC), and the one we encounter in Di Paolo, Cuffari and De Jeagher’s (2018). The
former mainly focuses on takes the task of identifying difficulties internal to any theory that intends to
deploy a naturalized notion of semantic content to account for living organisms’ perceptual and motor
capacities. By tracing a division between lower and higher cognition, RECers distinguish intuitively
complex cognitive faculties from mere perception and bodily movement. This brings forward to RECers
the burden of reconciling basic and higher cognition under a continuous explanatory line. The second
trend we will examine is one that ends up making the first one seem too conservative, insofar as its
program consists in eliminating any borderly line between basic and higher cognition, thus establishing a
naturalistic continuity between life and language. We will argue, thus, that Di Paolo, Cuffari and De
Jeagher’s proposal at the same time both accomplishes Hutto and Myin’s goals and avoids its traps.

KEYWORDS: Philosophy of Cognitive Sciences. Enactivism. Low and Higher Cognition. Sense-
making.

1
Doutorando do PPGFIL UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail de contato:jeferson.diello@gmail.com
2
Mestrando do PPGFIL UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail de contato: pedro.noguez@ufrgs.br
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

1. Introdução

Conquanto a revolução científica possa advir da aceitação de rearticulações da


teoria em voga que, embora alternativas, sejam em larga medida conservadoras ou
sequer se sucedam à proliferação de teorias alternativas, a articulação precisa dos
pressupostos teóricos de uma comunidade científica permite o surgimento de
dissidências mais radicais. No caso das ciências cognitivas, cuja noção central de
representação ou conteúdo mental é notório alvo de discussões no interior da
comunidade científica desde que foi adotada, a dissidência radical já tem grande número
de adeptos, programas de pesquisa e bases teóricas progressivamente consolidadas. Essa
dissidência atende pelo rótulo de “enativista”, e é radical na medida em que nega a
ubiquidade da noção de representação para explicar a cognição.
Adeptos do enativismo afirmam, em geral, que a cognição é constituída
(necessária, não suficientemente) pelas ações de organismos em seus ambientes
imediatos, e não pode ser propriamente entendida ignorando-se como as características
do ambiente balizam o agregado de possibilidades de ação do organismo e como as
ações elas mesmas afetam o ambiente. Ao rejeitar ou desenfatizar noções como
representação, conteúdo, verdade, diferentes instrumentos conceituais são empregues –
ênfase em habilidades sensório-motoras, conceitos biológicos como o conceito de
autopoiesis (uma forma de autonomia característica dos seres vivos), a psicologia
ecológica gibsoniana (principalmente a teoria das affordances), assim como conceitos e
métodos da fenomenologia. 3 Complementarmente – e de modo não surpreendente –
também são incorporados diversos resultados empíricos. Há na literatura abordagens
enativistas a experimentos as quais julgamos bem-sucedidas, que mostram como é
possível entender diferentes fenômenos cognitivos de modo a reduzir ou até mesmo
eliminar o papel da noção de representação na compreensão desses fenômenos.4

3
A convergência das teses enativistas com aquelas da psicologia ecológica é uma tendência
recente, ver Rietveld e Kiverstein (2014), Kiverstein e Rietveld (2018) e Chemero (2009).
4
Destaca-se a obra de Turvey et al. (1981), de grande importância para formação de um novo
grupo de psicólogos experimentais que rejeitam uma visão representacionalista da percepção. Nela,
busca-se clarificar a afirmação de que existem leis ecológicas que associam o organismo com as
possibilidades de ação no ambiente. A partir dessa contribuição se tornou possível formular mais
precisamente e testar a tese de que a percepção é percepção imediata de possibilidades de ação do
organismo no ambiente em que se encontra.

210
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Um dos exemplos mais famosos e influentes de percepção compreendida à


maneira enativista é o tratamento de Alva Noë (2004 & 2012) à visão, enfatizando o uso
de habilidades sensório-motoras na interação com aquilo que é visto. Gibson ([2015]
1979), também trata da visão de modo similarmente não-representacionalista, sendo um
antecedente importante. A experiência visual tem sido explicada de maneira frutífera
em termos enativistas, sendo essa explicação bem-sucedida uma das motivações à
transposição de estratégias enativistas a outros casos de cognição. Subsequentemente,
estratégias enativistas vêm sendo empregadas para dar conta de outros tipos de cognição
fortemente associadas às noções de conteúdo mental e estados internos.
Muito se fez, na alvorada da filosofia analítica, para se separar da natureza do
conteúdo semântico as propriedades constitutivas de seu veículo, quer fosse esse
veículo considerado o espírito, a mente, o sujeito transcendental ou o cérebro. O veículo
do conteúdo semântico fora tradicionalmente concebido como sendo o pensar
verdadeira ou falsamente, o ato intelectual por excelência comparável com a realidade,
o juízo. Mas verdade e a falsidade não se atribuem ao pensar enquanto juízo, senão
derivativamente, pelo fato de se pode abstrair do ato, e de tudo que lhe cabe enquanto
tal, a proposição.5 O esforço de destilar a noção de proposição das impurezas do fato de
ser pensada devolveu à filosofia a possibilidade de reencontrar na lógica e na teoria dos
conjuntos o domínio de leis do ser, não enquanto cognoscível pelas condições de
possibilidade do ser pensado, mas sim simplesmente enquanto ser, ora concebível de
direito como determinante da verdade de uma função proposicional para dado
argumento. Em parte por obra da História que precedeu seu renascimento, essa ambição
à metafísica jamais deixou, até hoje, de ser contestada. Mas fato é que foi abraçada por
muitos, os quais viam e veem, assim, que a natureza de objetos e de propriedades
enquanto tais não é dependente da natureza de qualquer modo de acesso cognitivo
possível, quer a objetos, quer a propriedades.6 Um século depois de Frege, como temos
visto, muito se faz agora para separar a natureza dessa mesma cognição, enquanto ato,
do que permite ligá-la à proposição. Não se trata de uma tentativa de provar qualquer
forma de inacessibilidade a conteúdos proposicionais; antes, trata-se de excluir
conteúdos proposicionais da constituição de nossas faculdades cognitivas, repensando o

5
Luiz Henrique Lopes dos Santos (2008), O Olho e O Microscópio
6
Um exemplo já clássico, embora recente, dessa reabertura à metafísica é Shaffer (2009), On
What Grounds What

211
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

papel que conteúdos proposicionais desempenham na vida orgânica e social humana.


Pois, se muitos hoje se convencem de que a proposição não é, constitutivamente, obra
humana, muitos mais ainda pensam que toda obra humana é, constitutivamente,
proposicional.
Duas vertentes do enativismo serão de nosso interesse: uma, a autoproclamada
“radical” desde Hutto e Myin (2013; 2017), ocupa-se principalmente da tarefa de
identificar dificuldades internas a qualquer teoria que pretenda valer-se de uma noção
naturalizada de conteúdo semântico para explicar as capacidades perceptual e motora de
organismos vivos. Os RECers7 traçam uma divisão entre cognição básica e cognição
superior, a última aludindo a faculdades cognitivas intuitivamente mais complexas –
como aquelas para formação de atitudes proposicionais, tomadas de decisão, álgebra, –
do que percepção e movimento corporal. Já a segunda vertente é uma que de fato faz a
primeira parecer conservadora, na medida em que seu programa consiste em eliminar
qualquer linha fronteiriça entre cognições básica e superior, estabelecendo assim uma
continuidade naturalista “entre linguagem e vida” 8 . Di Paolo, Cuffari e De Jeagher
(2018) pretendem demonstrar como os fenômenos que constituem a “base” da cognição
em cada sistema organismo-ambiente podem desenvolver habilidades sociais que, por
remodelação dos processos já presentes na esfera individual, terminam por constituir a
espécie de vida cognitiva com a qual seres humanos aculturados como nós estão
familiarizados. Linguistic Bodies (LB) carece do foco famigeradamente destrutivo da
proposta de Hutto e Myin, foco este que tomamos como passo – não obstantes as
críticas por sua falta de propositividade – importante no desenvolvimento das ideias
enativistas. Oferece-se em LB, no lugar da crítica, as bases para uma abordagem
completa à cognição; uma que, indo na direção apontada por Hutto e Myin, termina no
entanto por não encontrar espaço para o fenômeno da “cognição com conteúdo”, senão
sob o signo da idealização. Na seção 2 abaixo, apresentaremos brevemente a proposta
de Daniel Hutto e Erik Myin (2013; 2017), uma abordagem funcionalmente descontínua
à cognição, por ser uma opção explicativa que defende que cognição representacional
que envolve conteúdo apresenta uma drástica curva na continuidade evolutiva entre as
mais diversas complexidades comportamentais encontradas nos sistemas cognitivos,

7
Da sigla em inglês 'Radical Enactive Cognition'
8
DI PAOLO, E., CUFFARI, E. C., & JAEGHER, H. D. Linguistic Bodies: the Continuity
between Life and Language. Cambridge:MA: The MIT Press. 2018

212
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

tratando-se de um tipo distinto de cognição. Em contraponto, na seção 3, exploraremos


a maneira pela qual Di Paolo et.al (2018) tentam explicar o surgimento gradual de
características ligadas à cognição superior a partir da complexificação de traços
cognitivos desde antes tomados como básicos e sua explicação da emergência e do
desenvolvimento de interações sociais e seus impactos à cognição dos indivíduos.
Concluímos que a abordagem contínua oferecida em Linguistic Bodies levanta
profundos questionamentos sobre categorias epistemológicas tradicionais como a de
atitude proposicional, não obstante trazendo consigo a vantagem de facilitar a
integração de nosso entendimento da cognição a uma perspectiva naturalizada.

2. REC e a suposta descontinuidade entre tipos de cognição

O Enativismo Cognitivo Radical, ou REC na abreviatura em inglês cunhada por


Daniel Hutto e colaboradores (Hutto & Satne, 2015; Hutto & Myin, 2013 & 2017) é
uma tentativa de unificação de estratégias enativistas de modo a rejeitar a ubiquidade de
representações na cognição. Rejeitar a ubiquidade de conteúdos representacionais no
processo cognitivo, por sua vez, faz com que o papel explicativo de tais conteúdos tenha
que ser revisto. Independentemente da abordagem, qualquer enativista que nega a
ubiquidade das representações nos processos cognitivos depara-se com o problema de
explicar aqueles estados cognitivos que a princípio demandam a noção de representação
para sua compreensão adequada, processos cognitivos orientados a algo ausente ou não
atual (como imaginação, ilusão, desejo ou expectativa). Negar que representações
constituam estados cognitivos básicos demanda ainda explicar como tais estados se
relacionam a estados cognitivos superiores (como memória imagética, planejamento de
atividades futuras, inferências preditivas, pensamento abstrato, linguagem proposicional
etc). O cognitivismo, paradigma de abordagem ainda hoje hegemônico à cognição,
assume como princípio que a veiculação de representações da realidade é um traço
9
constitutivo de estados propriamente cognitivos. Representações podem ser
compreendidas como estruturas semânticas com condições mínimas de acurácia

9
Deve-se salientar que, embora comum, a atitude de definir fenômenos cognitivos como
fenômenos que envolvem representações do ambiente da parte de estruturas orgânicas é uma atitude
criticada não apenas pelos enativistas. Ver e.g. Ramsey (2007; 2015)

213
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

devidamente satisfeitas, e são tomáveis como verdadeiras ou falsas respectivamente à


existência ou à inexistência do estado de coisas que representam. A intencionalidade é
em geral entendida de maneira associada. O que seria característico da intencionalidade
é que seus objetos, aquilo ao que me direciono (o que vejo, sobre o que penso, imagino,
etc.), são intencionais apenas sob determinadas descrições, sendo que estas podem ainda
ser vagas, ou mesmo falsas. 10 Assumir a ubiquidade da noção de representação na
constituição de estados cognitivos (conscientes ou não) provê um elo explicativo para
fenômenos que de outra maneira poderiam parecer desconexos. Os itens intencionais
são, por assim dizer, itens de uma representação. Desse modo, o enativista radical deve,
nos contextos descritos por ele como não representacionais, empregar uma noção
distinta de intencionalidade, uma que seja desprovida de conteúdo representacional, ou
Ur-intencionalidade, explicada em termos do acoplamento dinâmico entre indivíduo e
ambiente. Os supramencionados aspectos diretivos das capacidades cognitivas básicas
seriam explicados, assim, pelo gradual remanejo das disposições do organismo para se
deslocar no ambiente tendo em vistas a sua própria manutenção, o que lhe demanda, por
óbvio, a capacidade de discernimento de padrões ambientais em função dos quais
regulará seu próprio comportamento. Não é obvio, no entanto, que se lhe demandem
representações do ambiente para obter-se uma tal sintonização, ainda que precária, ao
longo do tempo.
REC explica as capacidades cognitivas em geral a partir da ênfase em seu caráter
corporificado e do seu desenvolvimento ao longo de períodos biologicamente
consideráveis de tempo. Primeiro, todas as formas de cognição são corporificadas,
consistem de “concretos padrões de interação dinâmicos espaço-temporalmente
estendidos entre organismos e o seu ambiente.” (HUTTO & MYIN, 2013, p. 3)11 As
interações dinâmicas, por sua vez, devem ser entendidas como “ancoradas no, moldadas
por e explicadas por, e explicadas por nada mais que, o histórico das interações prévias
do organismo.” (HUTTO & MYIN, 2013, p. 8) No entanto, para explicar as
capacidades cognitivas do agente cognitivo particular é inadequado reportar-se somente
ao desenvolvimento dele, sendo necessário considerar fatores como a seleção natural.
Um exemplo de explicação pode ser dado pensando-se no caso de um sapo e sua

10
Ver Anscombe (1981), Intentionality of Sensation
11
Todas as traduções de citações são de responsabilidade dos autores para os propósitos deste
artigo.

214
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

habilidade de capturar moscas. Um sapo pode rastrear os movimentos de uma mosca e


capturá-la graças a uma série de habilidades herdadas (características filogenéticas do
sapo) e adquiridas (características ontogenéticas do sapo), mesmo que não tenha estados
representacionais. A atividade cognitiva de captura de moscas pode ser entendida de
maneira naturalizada em termos do histórico a partir do qual as habilidades filogenéticas
e ontogenéticas se desenvolveram. A ação do sapo é orientada à captura da mosca
devido a desenvolvimentos evolutivos ao longo de um período extenso de tempo.
Contudo, é preciso enfatizar que para o enativista radical até mesmo as
capacidades cognitivas mais básicas possuem um elemento de aprendizagem. Todas as
interações são possíveis graças a interações prévias entre o organismo e o ambiente que
moldam como serão as interações futuras. A ideia de uma intencionalidade primitiva
desprovida de conteúdo é a ideia de uma orientação ou direção (directness) com relação
a atividades específicas (cognitivas) moldada pelo histórico de interações com o
ambiente que é falível e nem por isso representacional. Ela é falível porque selecionada
a partir de um histórico contingente de encontros com o ambiente no qual as estruturas
que geraram maior sucesso adaptativo permaneceram, não por seu objeto ser um estado
mental interno. Ao dissociar, assim, conteúdo de intencionalidade, pode-se explicar a
cognição com conteúdo e intencionalidade (a cognição superior) em termos dos tipos de
habilidades e características ambientais requeridos por esse tipo de cognição. A
sugestão de Hutto & Myin (2017) é que “Somente mentes que dominaram um tipo
especializado de prática sócio-cultural podem se engajar em cognição que envolve
conteúdo.” (p.17) Em linhas muito gerais, seres humanos em processos como a
experiência visual são mentes básicas, assim como o sapo no exemplo acima é uma
mente básica. Dado o nosso histórico de interações com ambiente que desenvolvemos
interações especializadas, com conteúdo representacional.
Hutto & Myin (2017) não avançam exaustivamente acerca do que seriam nichos
socioculturais ou tipos especializados de prática socioculturais. Entretanto, buscam
inaugurar um programa de pesquisa que utilizaria “os achados de uma variedade de
ciências que incluem não somente as exatas, mas também arqueologia cognitiva,
antropologia, psicologia do desenvolvimento, e assim por diante.” (HUTTO & MYIN,
2017, p. 168-9) para compreender a cognição. Adota-se, desse modo, um naturalismo
metodológico, por oposição a propostas naturalistas que visam reduzir os fenômenos

215
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

cognitivos a um subconjunto de fenômenos que ocorrem no âmbito do sistema nervoso


central12. A função da filosofia na elaboração do entendimento adequado da cognição é
primariamente a articulação e clarificação conceitual das diferentes fontes científicas
reputadas. Um exemplo de contribuição do tipo a ser esperado é encontrado em Rolla
(2018), no qual se apresenta uma leitura radical de resultados experimentais acerca de
neurônios espelho. A partir disso poder-se-ia explicar como percebemos os estados
mentais de outros diretamente, isto é, de modo não representacional.

3. Continuidade entre cognição e vida

Ezequiel Di Paolo, Elena Cuffari e Hanne De Jeagher (2018) buscam abordar a


assim dita “cognição superior” de maneira ainda mais radical que a dos RECers. As
autoras e o autor de Linguistic Bodies (desde já, LB) oferecem uma maneira coerente de
explicar a linguagem, reflexões teórica e prática e as diversas tensões psicológicas,
afetivas e mesmo políticas que se manifestam na vida humana como a conhecemos a
partir de uma análise das condições materiais possibilitadoras para a emergência desses
aspectos “avançados”, “superiores” ou “únicos” à cognição humana, bem como das
contingências materiais que os atualizam. Para tanto, começa-se pela reelaboração do
que se deverá entender por “corpo” 13.
Pelos parâmetros do cognitivismo, corpos vivos capazes de articular quaisquer

formas de linguagem são usualmente pensados tendo-se em vista uma determinada

composição de estruturas essenciais à função, como regiões cerebrais, aparatos de fala e

escuta, expressividade facial e gestual, etc. De maneira secundária, ainda que relevante,

listam-se características anatômicas e nichos de interação com o ambiente e com outros

12
Um exemplo de abordagem desse tipo é encontrado em Dennett (1991): “todas as variedades de
percepção – de fato todas as variedades de pensamento ou atividade mental – são obtidas no cérebro por
processos multitrack e paralelos de interpretação e elaboração de entradas sensórias” (p. 111).
13
A proposta de LB visa ser uma continuidade e aprimoramento do que veio a ser chamado
enativismo autopoiético (classificação não utilizada na obra, referida apenas pela alcunha “enativismo”).
O enativismo autopoiético é caracterizado por sua ênfase na autonomia sui generis e especialmente
dinâmica dos organismos vivos, a autopoiesis. O locus classicus dessa vertente são a obra de Maturana e
Varela (1980) e o projeto de Varela (1979) de pensar a autonomia em termos biológicos e reinserir a
noção de organismo na teorização em Biologia. Di Paolo et al. (2018) entendem que a autonomia
primordial a partir da qual podemos compreender a cognição é, não mais a autopoiesis, mas a autonomia
exibida por sistemas autônomos adaptativos (como ficará claro nas próximas páginas).

216
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

corpos como ingredientes que influenciam, por vezes até modulam instantaneamente

sistemas responsáveis de maneira central à tradução de estímulos exteriores à intelecção

individual e posterior conversão simbólica veiculável através dos comportamentos

linguísticos convencionais. Qualquer que seja a variedade corrente da articulação do

paradigma (funcionalista, conexionista, funcionalista corporificada, &c.), deve haver

estruturas corporais capazes de se dispor de diferentes maneiras, tais que sua

configuração represente seus arredores e sirva de base para sua intelecção e exploração

do mundo.

Pelos parâmetros propostos em LB, um corpo vivo deve ser visto antes de tudo
como um sistema operacionalmente fechado (SOF). Um sistema operacionalmente
fechado é um conjunto de processos, cada componente do qual viabiliza a subsistência
de ao menos um outro componente do conjunto e é, ele próprio, viabilizado por algum
subconjunto de processos do sistema. Porém, corpos vivos são também precários, o que
quer dizer que a duração temporal da estabilidade de qualquer dos processos que
compõe o SOF de um organismo é limitada a, no máximo, a duração temporal da
estabilidade do sistema como um todo. Na medida em que a precariedade é uma
condição de um sistema processual dependente de condições ambientais externas ao
fechamento operacional do último, a subsistência do sistema sob a característica do
fechamento operacional caracteriza uma forma de auto-individuação, nada mais do que
a mantida diferenciação entre sistema e ambiente, que é precariamente reproduzida pelo
desenrolar dos processos de troca material e energética entre os dois âmbitos, até que a
diferenciação entre estes se esvaia (evento inevitável para qualquer SOF precário).
Todo SOF precário é caracterizado assim como sistema autônomo, por
definição: fechamento operacional precário =Def autonomia. Assim, por exemplo, as
raízes, o caule e as folhas de uma planta formam um sistema autônomo, que por sua vez
é como um todo dependente da irradiação solar; como o processo de irradiação solar
ocorre independentemente da fotossíntese, ele não pertence ao sistema autônomo da
planta. A distinção entre organismo e ambiente se dá conjuntamente, a partir da
emergência de um sistema autônomo, e se desvanece com a inviabilização (morte) do
primeiro. O entendimento de organismos em termos de processos constituintes, e não de
estruturas, não é casual; a precariedade do sistema autônomo exige trocas energéticas e
materiais, diretas ou indiretas, de cada processo componente com o ambiente

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circundante, a fim de que o sistema não se desintegre. Por isso, “mudanças podem, às
vezes, ser reversíveis ou podem ser cumulativas e potencialmente levar a
transformações irreversíveis. Em diferentes medidas, organismos são sempre
históricos.” (DI PAOLO et al, 2018, p.29)
Organismos ou sistemas autônomos são matematicamente concebidos, em
diversas abordagens enativistas a fenômenos cognitivos (não somente em LB), como
sistemas dinâmicos. Dois aspectos bastam, aqui, para compreendermos esse modo de
descrever. Em primeiro lugar, os valores das variáveis que descrevem o estado de um
organismo são sempre valores de taxas de alteração; a variável correspondente a
determinada característica quantitativa tende, a cada instante e com maior ou menor
intensidade, a assumir um valor maior ou menor que o atual. Em segundo lugar, as
equações diferenciais que determinam os estados de cada processo do organismo são
acopladas a equações diferenciais que determinam os valores de estados de processos
tanto de dentro quanto de fora do sistema; esse acoplamento nada mais é do que o fato
de que cada equação descritiva do estado de um processo constitutivo do sistema terá
parâmetros cujos valores serão determinados por equações descritivas de estados de
outros processos (isto é, os parâmetros das primeiras serão representados como
variáveis nestas últimas equações). Assim se expressam, mais precisamente, a
dinamicidade e a dependência mútua dos conjuntos de processos que servem de base à
análise enativista da cognição: o sistema dinâmico organismo-ambiente.
Entre dois riscos, (a) o de isolamento completo do conjunto de processos que
compõe o organismo perante seu ambiente, tal que sua autonomia seja absoluta, mas
faça desvanecer a viabilidade dos processos componentes, e (b) o de completa abertura
ao ambiente, que permita a intensificação das trocas necessárias com este, mas
comprometa a integridade do sistema, emerge aquilo a que as autoras e o autor de
Linguistic Bodies chamam “tensão primordial da vida” (LB, p. 37). Com a constituição
de um sistema organismo-ambiente, com a supramencionada tensão que o caracteriza,
poderá emergir também o equivalente enativista à “perspectiva individual” da qual
descrições fenomenológicas são objeto no nosso caso, humano. Ela (se emerge) emerge
como agência, que é uma assimetria entre o que se dá com os processos que compõem o
sistema autônomo enquanto conjunto, de um lado, frente àqueles que constituem o
ambiente circundante, de outro: apenas o conjunto de processos que constitui o sistema
autônomo tende à auto-individuação, que é justamente a tensão entre (a), a auto-
diferenciação, e (b), a auto-produção. Agir é, portanto, a regulação do sistema autônomo

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sobre si próprio no sentido de viabilizar a manutenção, não somente de si próprio


enquanto sistema autônomo, mas também das próprias tendências que vão se
constituindo com o passar do tempo: agir é adaptar-se. As tendências adquiridas no
aprendizado adaptativo não podem ser fixas; a adaptatividade visa precisamente à
estabilização da tensão primordial, que subsiste enquanto subsistir o próprio organismo.
Esse processo de auto-individuação adaptativa contém a raiz naturalizada da
normatividade (bem como da intencionalidade, como já vimos), que é intrínseca aos
sistemas autônomos na medida em que estes buscam ao mesmo tempo adaptar-se aos
fluxos de alteração de processos internos e externos que afetam o sistema, quanto
promover, em múltiplas escalas temporais, a metaestabilidade dos processos já
incorporados ao sistema.
A maneira que agentes (relembrando: SOF's precários e adaptativos) encontram
para se viabilizar enquanto tais, isto é, para concretizar o manejo do estabelecimento de
uma assimetria entre si próprios e o ambiente e assim individuarem a si próprios em
relação a este, é o mecanismo de produção de sentido (sense-making). Não se poderia
exagerar a importância dessa noção. Trata-se do mecanismo de movimento espacial
ativo (seja como deslocamento, seja como direcionamento do ganho ou da retração de
volume) responsável pela modulação dinâmica da seleção, por parte do organismo, de
estruturas ambientais com cuja interação o processo de auto-individuação é (nunca
totalmente) equilibrado. O movimento do organismo é um movimento de abertura, de
permissão a trocas materiais e energéticas dos processos que o constituem, por um lado,
com determinados processos de seu ambiente, por outro. Por ser adaptativo, trata-se de
um movimento que possibilita a discriminação de direcionamentos cinéticos do
organismo entre mais e menos favoráveis, levando-se em conta cada vez mais, ao longo
da vida do organismo, as significâncias distintas que diferentes padrões de movimento e
troca interativa adquirem para si. A discriminação de estruturas ambientais entre, umas
mais, outras menos favoráveis, feita sempre em relação ao estado historicamente
constituído de um corpo que se move, que procura, e que, ao que o faz, tem interesse e
satisfação de objetivos, é o que faz com que o enativismo reconceba as velhas
categorias da percepção e da ação; usos que se escolham dar aos termos 'percepção' e
'ação' para referir-se a fenômenos cognitivos terão suas extensões inexoravelmente
interseccionadas. Fala-se mais precisamente, portanto, da sensório-motricidade de um
agente cognitivo; de uma modulação mútua e ativa entre vetores dos fluxos perceptual e
de ação, que podem ser teoricamente separados somente desse modo, ressalvando-se o

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acoplamento das equações diferenciais que descrevem os estados perceptual e


disposicional. Não há intermediação, portanto, entre o que se vê e o que se faz, mas sim
uma mútua modulação definitória do corpo enquanto vivo. Um corpo vivo não preexiste
às suas ações, mas se configura através delas.
Pela combinação de auto-individuação precária e material e regulação adaptativa
das relações com o ambiente, a produção de sentido naturaliza o conceito de normas
vitais, e está no núcleo de toda forma de ação, percepção, emoção e cognição, visto que
em nenhuma instância deles a estrutura básica envolvimento e relevância está ausente.
Eis o que constitutivamente distingue vida mental de outros processos materiais e
relacionais (LB, p. 33). Com efeito, vincula-se o poder de discriminação de um sujeito
às suas habilidades práticas corporais: um sujeito é capaz de discriminar tanto no seu
campo perceptual quanto de mais variadas formas souber interagir com o que lhe é
apresentado. Mas cabe não só ressaltar a função acoplada que liga a constituição da
normatividade acional à estrutura discriminativa da perspectiva do agente. A
discriminação ocorre por vias de uma constituição de valências, de “significações”
distintas a padrões ambientais em relação aos interesses do organismo, resultado de sua
orientação adaptativa. Nada análogo à representação – concebida, por exemplo, como
uma estruturação ativa do dado sensível pelas categorias do entendimento – ocorre na
produção de sentido como tal. A atividade de produção de sentido é atividade corpórea,
não intelectual, a qual constitui uma relação afetiva, e não representacional. A produção
de sentido é a primeira característica de sistemas autônomos, adaptativos, a emergir
como distensionadora de características antecedentes em tensão e, ao mesmo tempo,
viabilizadora de características novas, analogamente tensionadas. Com efeito, a
produção de sentido não é necessitada, mas sim viabilizada pelas tendências tensionadas
da auto-individuação (auto-diferir-se e auto-produzir-se), e por sua vez viabiliza a
emergência de outras características. Para além dessa relação ordenadora dos traços
cognitivos, de viabilização, há a relação inversa, que é a de modulação. Tanto o que o
organismo busca ao se auto-diferenciar, protegendo-se de influências externas, quanto o
que busca ao se auto-produzir, abrindo-se às trocas com o ambiente que possibilitam a
regeneração dos processos que o constituem, acaba sendo modulado pela maneira como
empreende essa dupla tarefa através da produção de sentido. Do mesmo modo, os traços
cognitivos emergentes que são viabilizados pela produção de sentido modularão, por
sua vez, a estrutura sensório-motora do agente. Um processo caracteristicamente
possibilitado pela produção de sentido é a interação social. A interação social emerge a

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partir de um acoplamento sensório-motor de ao menos duas agências. Não é o que


ocorre quando, por exemplo, um pai posiciona um brinquedo em determinado lugar ao
alcance da criança para que esta o encontre; isso só poderia ser caracterizado como
influência ou modulação assimétrica ao influxo sensório-motor da pequenina vindo da
parte do pai. Um exemplo similar, porém aí sim, de interação social seria o caso em que
o pai estende a mão que segura o brinquedo na direção da criança, e esta acata o
convite, pegando o objeto, ou declina, afastando o brinquedo. A interação social é um
processo material, que se dá em um ambiente no qual o intercurso material e energético
constituinte das agências individuais segue se desenrolando e afeta, por sua vez, a
dinâmica interativa, exatamente como afeta a agência individual. Os movimentos de
fato perpetrados são entretanto eventos concretos, e não modificações restritas
unicamente às estruturas ambientais com as quais o agente intencionalmente se
sintoniza e sobre as quais de fato pretende agir. Todo movimento ou todo exercício de
agência causa, portanto, um “excesso” em relação à modificação estritamente tida em
vista, no mundo, bem como no influxo sensório-motor agencial que causa esse excesso.
É esse mesmo excesso, que por um lado faz com que o agente “aprenda a perceber”
com os resultados imprevistos dos próprios atos, que, por outro, faz emergir um novo
processo autônomo constituído pelos agentes envolvidos na interação e pelos processos
ambientais através dos quais a interação se dá.
O enquadramento do fenômeno da interação social na categoria formal de
sistema autônomo justifica-se pela sua precariedade e pelo fechamento operacional do
sistema que comporta ações de (digamos, dois) agentes e processos ambientais
concomitantes. A autonomia da interação traz consigo a consequência de duas
possibilidades de configuração da relação entre a interação (tomada como sistema
autônomo) e cada um dos agentes: ou bem haverá uma dissonância, ou bem haverá
sinergia. Um exemplo de dissonância é o caso do encontro em um corredor de duas
pessoas caminhando em direções opostas, em que a “dança” performada de um lado
para o outro por ambas não é o que qualquer uma delas queria, mas que emerge
justamente por uma tentativa delas de regular o influxo sensório-motor alheio para
dissolver a interação (ou então a despedida ao telefone, que se alonga para além do que
era esperado). Um exemplo de sinergia é a conversa fluida, repleta de complementações
empáticas de frases, ou de eventos circundantes que captam a atenção de ambos
participantes e alimentam a continuidade da entrega de ambos à conversação. Ou a
própria dança, em sentido literal. Dissonâncias (e sinergias), como procuramos deixar

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claro, são relações entre agentes e interações, não de agentes com outros agentes.
Mecanismos resolutivos dessa tensão (análogos à produção de sentido para a auto-
individuação) serão formas remodeladas e readaptadas de uma agência agora
peculiarmente dirigida à adaptação a um ambiente social, a produção de sentido
participatória, na qual agentes não apenas regulam seus próprios acoplamentos e
influenciam outros agentes “mas também conjuntamente regulam o acoplamento mútuo
seguindo normas que pertencem à situação interacional, tais como ser sensível a quebras
interativas e tentar conjuntamente recuperar-se destas” (DI PAOLO et al, 2018, 146).
Ocorre, a partir da sedimentação de estruturas sensório-motoras remoduladas
pela produção de sentido participatória, um crescente arraigamento do conhecimento
prático de aplicação originalmente própria a contextos interacionais, conhecimento o
qual é cada vez mais partilhado por diversos membros, de uma comunidade
proporcionalmente alargada de pessoas. A gênese de um tal processo, que deverá
culminar por fim em algo a que possamos chamar “aculturamento”, reside nalgo tão
simples como o relatado no experimento de Reed et al. (2006), mencionado em LB. No
experimento, os sujeitos são incumbidos da tarefa de girar uma manivela pesada, ora
individualmente, ora em conjunto, mas (dadas as condições de teste) em nenhum
momento cientes de seu estado gregário atual. Conforme relatado, a condução da tarefa
se demonstrou mais eficiente quando realizada em díade, muito embora estes tenham
sido os casos em que os sujeitos experimentais tivessem relatado maiores dificuldades.
Mais interessante do que isso, todavia, é que, característica dessas situações de maior
sucesso relativo, os movimentos dos sujeitos experimentais eram miméticos daqueles de
grupos musculares em tensão e distensão coordenada. A partir da perspectiva
generalizada da produção de sentido participatória, o que ocorre na dinâmica
interacional é a enação de tarefas complementares, como duas metades de um aperto de
mão, ou um aceno com a cabeça do transeunte que responde ao gesto alheio de liberar-
lhe a passagem. São conjuntos de atos de co-regulação social. A sedimentação desse
tipo de habilidade em diversos contextos dá origem à sensibilidade de cada indivíduo
hábil com relação à correção (rightness) de conjuntos paradigmáticos e sintagmáticos de
atos sociais de co-regulação, sejam estes próprios ou alheios. E tal sensibilidade lhes
oportuna remodelar, adaptar, ou mesmo adotar conjuntos paradigmáticos e
sintagmáticos de atos sociais que se sedimentaram em contextos interacionais distintos
daqueles que lhes fossem mais familiares. O objetivo do aprendizado que se vai assim
obtendo é sempre o mesmo, da parte do indivíduo: tornar a relação entre si próprio e os

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contextos de interação social uma relação sinérgica. Porque o engajamento em


interações sociais engendra a emergência de um repertório especializado de capacidades
de ação e porque esse repertório altera qualitativa e causalmente a estrutura sensório-
motora individual, o histórico de interações de um indivíduo lhe engendra “[u]ma
prontidão para interagir”, a qual “orienta nossos corpos em uma atitude participativa”
(LB, p. 64). Em resumo, é no processo de socialização que reside a constituição de uma
fenomenologia talhada para e pela atitude participativa, constituída por artefatos,
vestimentas, ornamentos, sinais, leis, armas, máquinas, rituais. E essa reestruturação das
estruturas sensório-motoras individuais pelo histórico interacional reverbera nas
próprias interações, pois oferece novas bases de ação conjunta e de produção de sentido
participatória. Conjuntos paradigmáticos e sintagmáticos de atos de co-regulação social
(bem como nossa sensibilidade à sua correção) adquirem maior sedimentação e se
parecem, cada vez mais, com uma estrutura gramatical.
Diálogos são caracterizados pela presença de períodos alternáveis, em cada um
dos quais um dos participantes assume perante os outros o papel de assimetricamente
trazer à tona e orientar a estrutura sensório-motora e agente dos demais envolvidos, os
quais por sua vez aceitam e ratificam tal configuração (LB, p. 92). A sedimentação de
papéis aceitos, alternáveis, portáveis, assimétricos, de regulação da estrutura sensório-
motora dos agentes envolvidos em interações sociais resume o aspecto pragmático de
diálogos e de seus atos parciais característicos, as elocuções (não necessariamente
verbais, mas necessariamente produzidas por quem assume o papel regulativo de um
diálogo). Sempre, e somente concomitantemente a este, em diálogos, existe o aspecto
expressivo das elocuções, cuja contraparte é a interpretação. O aspecto expressivo de
uma elocução é delimitado pelo contexto ou gênero de participação (participation
genre) da interação dialógica: a interpretação envolve a apreciação da intenção do
agente que produz a elocução, mas também a remissão tácita a outras atitudes/ações
(não necessariamente dialógicas) a que se possa fazer remissão dados os
constrangimentos ecológico-sociais que constituem o gênero em que o diálogo se
enquadra. Possibilitado pelo aspecto pragmático da interação dialógica de aceitação da
regulação por outrem da própria estrutura sensório-motora, o aspecto expressivo desse
tipo de interação explica a gênese da relação direta entre os agentes nela envolvidos,
uma relação de interpretação e de reconhecimento mútuo de estruturas sensório-motoras
alheias. Uma conversa na cozinha sobre como foi o dia, uma reunião de negócios, uma
aula, um encontro semanal entre amigos; são todos diferentes gêneros de participação (e

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passamos ao largo, aqui, das diferenças ambientais que possam dividir cada exemplo
em gêneros mais específicos): cada um destes baliza, à sua maneira, a gama de aspectos
expressivos possíveis das elocuções que circunscreve, tanto quanto a postura, os gestos
e, potencial, mas não necessariamente, as palavras empregues por quem produz a
elocução. No fato de também a remissão tácita de certos atos elocutórios a outros atos
ou atitudes (não necessariamente dialógicos) encontrar-se subordinada pragmática e
expressivamente a gêneros de participação, reside a origem de possíveis “dissonâncias
de gênero” (LB, pp. 96-7). Imagine-se, por exemplo, um encontro inesperado entre ex-
namorados: muitas práticas bem sedimentadas naquele gênero de participação local
terão de ser readaptadas, “on the fly”, pelas duas pessoas, conforme os balizamentos
ambientais específicos do lugar e do tempo do reencontro; nada garante o sucesso
sequer parcial desse conjunto de movimentos readaptativos. A sensibilidade a um tal
tipo de ameaça à integridade de interações sociais faz com que as pessoas assumam o
papel de intérpretes e reguladoras das próprias elocuções, o que as autoras e o autor
rotulam como “autocontrole social” (controle de si mesma sob ambos aspectos do
engajamento dialógico: pragmático e expressivo), que difere-se do autocontrole
individual, adaptativo, da estrutura sensório-motora por se tratar de uma autoimposição
de normas propriamente dialógicas, necessariamente advindas da familiaridade com o
desempenho de papéis de elocução e interpretação em determinados gêneros
participativos. Isso não exclui a sempre presente possibilidade de desentendimento e
dissonância de gênero, mas efetivamente a atenua e, o que é mais importante, lança
considerável luz sobre nossa capacidade deliberativa, (por assim dizer) introspectiva e
de tomada de decisões complexas, ao mesmo tempo em que nos permite dispensar vias
explicativas usuais como as que implicam contemplação de estados internos, endosso de
regras subjetivas, representações.
A possibilidade de encenar diálogos consigo mesmo expõe o corpo linguístico à
última e definidora de suas tensões entre abertura ao mundo e diferenciação de seu
entorno material e social. O reporte de elocuções pode ser feito não só para si mesmo,
mas também a outras pessoas; esse reporte é uma re-encenação (reenactment) de uma
elocução qualquer, seja da pessoa a quem é dirigida (que pode ser a pessoa que a
produz), seja de qualquer outra. É um novo ato, com o que a elocução reportada será re-
encenada e tematizada com características próprias ao contexto material presente e de
acordo com as intenções de se fazer a remissão (ironia, sarcasmo, lembrete,
ensinamento). A tensão emergente de uma tal capacidade vem de dois fatos: por um

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lado, o corpo linguístico aculturado, imerso na vida social incorpora elocuções, que se
transformam em parte de sua prática habitual perante encontros com o ambiente e com
outras pessoas nos quais ele se engaja com maior frequência. Mas, por outro lado, o
mesmo corpo linguístico também incarna certas elocuções, ao reportar elocuções a si
próprio a fim de emular diálogos reinterpretativos, rememorativos, auto-regulativos. A
incarnação é um processo de diálogo consigo próprio como outro, no que as intenções, o
histórico, os afetos e as crenças de outras pessoas ganham abertura para modular o
conjunto de práticas elocutórias já incorporadas pelo agente e serem, eventualmente,
elas mesmas incorporadas.
Ao cabo da história que nos é contada em Linguistic Bodies, duas coisas são
certas. Primeiro, qualquer atitude proposicional que imaginemos, seja ela crença, ação,
desejo, ponderação, etc, terá de ser explicada por meio da especificação o mais acurada
possível de variáveis sócio-ambientais características, sob uma perspectiva
temporalmente estendida, do sistema organismo-ambiente tomado como “portador” da
dada atitude. Segundo, a tarefa de especificar uma proposição à qual o sujeito se
relaciona adquire, no contexto científico, no máximo um papel heurístico, salvo não for
prejudicial ao entendimento do modo como as capacidades cognitivas de um organismo
de fato operam, sob este ou aquele aspecto. Com efeito, sequer o aspecto expressivo de
uma elocução é materialmente isolável de qualquer aspecto pragmático; em o sendo, por
exercício de abstração idealizante, obteríamos com isso um juízo, um comprometimento
explícito com a verdade de uma proposição, destilado de todas as características de seu
endereçamento a alguém, em algum lugar, em alguma língua, com tais ou quais
propósitos. Nem tal noção, nem, está claro, a ainda ulteriormente idealizada noção de
proposição desempenham, para a cognição, qualquer papel explicativo, ontogenético, ou
constitutivo.

4. Conclusão

De acordo com a proposta de Hutto e Myin, seres humanos são mentes básicas
(estão engajados em processos de cognição básica) quando em atividade tais quais a
percepção. Não devem ser descritos como manipulando representações. Todavia,
quando olhamos para nosso próprio percurso evolutivo vemos em nossa interação com
o ambiente “[o] estabelecimento e manutenção de práticas sócio-culturais que fazem

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uso de sistemas de representações públicos em modos particulares com finalidades


particulares” (HUTTO & MYIN, 2017, p. 177). Práticas sócio-culturais são o que
demanda representações e o que cria sua dinâmica própria. Temos dois problemas com
essa estratégia. Primeiro, ela deixa em aberto como habilidades cognitivas básicas se
relacionam com habilidades sócio-culturais. De certa maneira, trata-as como uma
boaventura evolutiva. Eles afirmam dar uma abordagem naturalista completa e sem
lacunas da cognição, mas como reconhecido pelos autores e apontado por Moyal-
Sharrock (2019), demanda uma torção ou dobra (kink) em nossa compreesão da
cognição. Mentes superiores são distinguíveis de demais mentes encontradas na
natureza: “mentes capazes de pensamento com conteúdo diferem em tipo, e nesse
aspecto central, de mentes mais básicas” (HUTTO & MYIN, 2017, p. 134). Cognição
representacional que envolve conteúdo é biologicamente contínua com outras formas de
cognição, mas funcionalmente distinta, apresenta uma drástica curva na continuidade
evolutiva entre as mais diversas complexidades comportamentais encontradas nos
sistemas cognitivos. Nossa tendência é concordar com Moyal-Sharrock, que afirma que
a linguagem pode ser entendida como “fundamentalmente enativa, e a emergência da
linguagem como suave extensão da ação” (2019, p. 2, itálico). A autora utiliza
Wittgenstein contra Hutto e Myin, mas não precisamos ir tão longe; Linguistic Bodies
nos mostra como o próprio enativismo possui ferramentas que nos autorizam a pensar a
linguagem como atuada, enativa, sem a necessidade do apelo à representações. A partir
do momento em que é possível vincular os comportamentos complexos característicos
do que vinha sendo chamado de cognição básica com os comportamentos complexos do
que vinha sendo chamado cognição superior, perde-se umas das principais motivações
para uma ênfase nessa distinção. A aproximação é possível a partir do abandono da
noção de representação, noção que legitima e torna plausível traçar a distinção ao
tomarmos a representação como marca da cognição superior. Quando deixamos de tê-la
como central em nossa compreensão da cognição, não só deixamos de ter razões para
enfatizá-la, mostra-se mais frutífero não a utilizar.
Alguém poderia perguntar, “Mas por que é mais desejável oferecer uma
abordagem contínua a um fenômeno tão complexo quanto a cognição do que, em vez
disso, admitir que enquanto alguns de seus traços remontam à dinâmica corpórea dos
organismos que constitui seu estado vivo, outros, tardios na escala evolutiva, demandam
contato com ou geração de conteúdos proposicionais?”. Nosso entendimento é de que a
disputa filosoficamente interessante que se desenrola no âmbito das ciências cognitivas

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não é aquela que busca descomprometidamente oferecer modelos explicativos para os


vários aspectos da cognição. Esta é certamente uma tarefa que em nada seria
prejudicada por um ecumenismo que abarcasse teses de diferentes vertentes, a depender
do fenômeno específico estudado. Ao se tratar da natureza da cognição, no entanto,
quer-se saber o que é perceber, o que é agir, o que é pensar, e a adequação de possíveis
respostas depende da possibilidade de integrá-las a respostas para perguntas como pela
gênese naturalista, evolutiva, desses fenômenos abordados: a suposição de que tais
fenômenos se constituem de entidades tão abstratas como proposições dificulta, senão
impossibilita sua concepção de maneira naturalizada.
A filosofia analítica se mostrou incapaz, até hoje, de cortar os laços cartesianos
que a forçavam a pensar a mente como essencialmente assuntiva de atitudes
proposicionais. 14 Conhecimento, crenças, conjecturas, alguns tipos de memória são
tipicamente caracterizados enquanto fenômenos como atitudes proposicionais. Uma
crítica que se pode fazer à ênfase no engajamento ativo e adaptativo do organismo com
seu ambiente como fundamental para as explicações dos processos cognitivos é que tal
ênfase dissolveria a distinção entre conhecimento prático e conhecimento proposicional.
Tal distinção é resultado de alta abstração e teorização, e, frente aos resultados do
enativismo, não vemos a razão pela qual deveríamos julgar retificações das
caracterizações dos fenômenos mentais listados acima como muito onerosas. Da
perspectiva enativista endossada por nós, entende-se a cognição humana num contínuo
sem rupturas bruscas ou dobras, desde nossas formas de vida. Parafraseando
Wittgenstein (1997, p. 174), um cão pode esperar pelo retorno do dono, mas não pode
esperar que ele retorne na terça-feira. Entendido ao modo do enativismo de Linguistic
Bodies isso se torna uma diferença nas formas de coregulação entre o cão e dono e entre
o dono e seu cônjuge. Uma ideia a ser explorada a partir de LB é a conexão profunda
entre gramática e comportamento complexo de coregulação ou produção de sentido
participatória. O que é sugerido é que quanto mais complexa a regulação conjunta das
agências, mais “gramatical” se torna a habilidade possibilitadora correspondente. As
noções tanto de proposição quanto de representação se tornam, neste ínterim, obsoletas,

14
Exceções a esse apego em alguma medida o justificam. Autores que dispensam a explicação de
crenças, desejos, etc., como atitudes proposicionais “jogam fora o bebê com a água do banho”, por assim
dizer, tratando como fantasiosa qualquer ambição humana àquilo que é próprio à proposição: a verdade.
Ver e.g. Rorty, R. (1979). O entendimento da produção de sentido como seleção afetiva de características
ambientais, concebido em Linguistic Bodies, parece evitar esse resultado.

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sem no entanto passarem a ser tomadas como ininteligíveis: são ficções lógicas, e não
parte dos traços cognitivos de qualquer forma de vida. A continuidade entre vida e
linguagem é capaz de explicar as mais diversas complexidades de comportamento do
mundo animal (incluindo nós mesmos) por um mesmo enquadramento teórico, de modo
naturalista e sem descontinuidades.

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229
NOMES PRÓPRIOS: O PRINCÍPIO DE RUSSELL E O
ARGUMENTO SEMÂNTICO1

Sagid Salles
Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Tenho dois objetivos principais neste artigo. Primeiro, desenvolver uma versão de
Teoria da Identificação, oriunda de Strawson e Evans, para a referência dos nomes próprios. A
teoria não é desenvolvida em detalhes, mas seus elementos centrais são revelados, com foco no
seu tratamento do fenômeno da referência por empréstimo. No centro da teoria está o Princípio
de Russell que, aplicado à referência dos nomes próprios, afirma que a identificação do objeto
nomeado é uma condição necessária para o sucesso da referência. Segundo, responder ao
desafio colocado pelo argumento semântico inspirado em Kripke e Donnellan. Este argumento
pode ser usado para mostrar que identificação não é uma condição necessária para o sucesso na
referência. Sustento que ele não é efetivo contra versão de Teoria da Identificação defendida
aqui.

PALAVRAS-CHAVE: Nomes próprios. Empréstimo da Referência. Identificação. Princípio de


Russell. Argumento Semântico.

ABSTRACT: I have two main goals in this paper. First, I develop a version of Theory of
Identification for the reference of proper names, one which comes from Strawson and Evans.
The theory is not developed in detail, but its central elements are revealed, focusing on its
treatment of the phenomenon of reference borrowing. At the center of this theory is Russell’s
Principle which, applied to the reference of proper names, states that the identification of the
named object is a necessary condition for the success of reference. Secondly, I reply to the
challenge posed by the semantic argument inspired by Kripke and Donnellan. This argument
can be used to show that identification is not necessary for the success of reference. I defend
that it is not effective against the version of Theory of Identification advocated here.

KEYWORDS: Proper Names. Reference Borrowing. Identification. Russell’s Principle.


Semantic Argument.

1
Muitas pessoas contribuíram para a produção deste artigo. Agradeço especialmente a Guido
Imaguire, Marco Ruffino, Ludovic Soutif, Iago Bozza, André Pontes, Roberto Horácio de Sá
Pereira e Elizielly Martins pelos seus comentários e objeções a este ou a manuscritos
anteriores. Também agradeço à CAPES pelo financiamento da pesquisa que tornou este artigo
possível.
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Introdução

O problema da referência singular dos nomes próprios pode ser formulado do


seguinte modo:
 Quais são as condições individualmente necessárias e conjuntamente suficientes
para que um indivíduo S, através do uso de um nome N, se refira a um objeto x?
Uma teoria da referência singular dos nomes próprios é uma teoria que fornece
uma resposta ao problema acima. As duas primeiras seções deste artigo são dedicadas à
formulação de uma versão de Teoria da Identificação para a referência dos nomes. Por
Teoria da Identificação entendo qualquer teoria da referência que aceite o Princípio de
Russell. Este princípio afirma que uma condição necessária para o sucesso da referência
(através de um nome) é a identificação, por parte do falante, do objeto referido. Um dos
principais obstáculos ao Princípio de Russell é o argumento semântico. Na seção 3
sustentarei que este argumento não é efetivo contra a versão de Teoria da Identificação
defendida aqui. Meu foco será a discussão da referência por empréstimo, pois é aí que o
argumento semântico aparenta ter mais força.
Antes de começarmos, algumas observações importantes. Primeiro, a discussão
será limitada à teoria da referência, não levando em conta a teoria do significado ou do
pensamento. Por outras palavras, não é meu interesse discutir como nomes próprios
contribuem para o significado ou condições de verdade das frases completas que os
contém, nem quais tipos de pensamento (singular/geral, de dicto/de re) os nomes nos
permitem ter sobre seus referentes. Tudo isto é de fundamental importância para a nossa
compreensão geral dos nomes próprios, mas está além do escopo deste artigo. Segundo,
e de forma relacionada, o Princípio de Russell é entendido e avaliado aqui como um
princípio sobre a referência. Isto conflita diretamente com o modo como Evans o
entendeu. Baseando-se em uma suposta distinção entre fazer referência a algo e pensar
sobre algo, ele concedeu aos objetores que o princípio não se aplicava à referência, mas
argumentou que se aplicava aos pensamentos sobre objetos particulares. Ao final do
artigo, argumento brevemente que Evans sequer precisaria ter feito esta concessão.
Por fim, o tipo de teoria da referência apresentada aqui tem inspiração em Evans
e Strawson, e algo muito próximo dela tem sido defendido por Sainsbury (2005),
Campbell (2002, sec. 2.5) e outros. Nos momentos oportunos, indicarei algumas

232
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

similaridades e diferenças de meu tratamento em relação a estes e outros autores, mas


não entrarei em detalhes interpretativos acerca de nenhum deles.

1 Modos de Identificação e o Argumento Semântico

O Princípio de Russell (PR), aplicado à teoria da referência dos nomes, afirma


que uma condição necessária para o sucesso de um ato de referência singular é que o
usuário do nome seja capaz de identificar o referente do mesmo. A capacidade de
identificar um objeto é a capacidade de diferenciar o mesmo de todos os outros objetos
do mundo. Assim, PR afirma que um falante S só terá sucesso em se referir a um objeto
x, através de um nome N, se for capaz de diferenciar x de todos os outros objetos do
mundo.
É fácil argumentar que esta condição é muito exigente. Parece exagero supor que
os falantes comuns sejam capazes de identificar todos os objetos aos quais podem se
referir por nomes. Pense, por exemplo, em todas as pessoas que são capazes de usar o
nome “Sócrates” para fazer referência ao filósofo grego. Seria implausível sustentar que
cada uma delas consegue diferenciar Sócrates de todos os outros objetos do universo.
Qualquer um que queira defender PR tem de enfrentar esta dificuldade inicial.
Uma forma de minimizar a dificuldade é aceitar a existência de diferentes modos
de identificação, de forma que sempre pelo menos um deles esteja disponível a falantes
bem-sucedidos no ato de fazer referência. Evans (1982, p. 65), seguindo Strawson
(1959, sec. 1.1.2; 1974, p. 40), lista três modos de identificação.

(a) Conhecimento de propriedades identificadoras ou modo


descritivo de identificação: o sujeito sabe (acredita) que o
referente do nome é o único objeto a possuir certo conjunto de
propriedades.
(b) Reconhecimento ou capacidade de reconhecer pela aparência: o
sujeito é capaz de reconhecer o referente do nome com base na
sua aparência, isto é, se o objeto aparecesse em sua frente, poderia
identificá-lo como aquele a quem se referia;
(c) Conhecimento por contato ou identificação demonstrativa: o
sujeito pode singularizar um objeto através do contato perceptivo
– visão, tato, audição, paladar, olfato – com o mesmo.

Se aceitarmos que estas três formas de identificação são legítimas, poderemos


reduzir a implausibilidade inicial de PR. A impressão de que PR coloca um

233
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

requerimento muito forte sobre falantes comuns pode ser devida ao fato de que não
percebemos que estes falantes dispõem de uma variedade de modos de identificação dos
objetos nomeados. Tão logo percebemos a variedade disponível aos falantes,
percebemos que em cada contexto de sucesso na referência há um deles em jogo.
O problema é que, mesmo que aceitemos a lista acima, existem razões iniciais
contra PR. Kripke e Donnellan forneceram exemplos que podem ser usados para
mostrar que alguns falantes (i) têm sucesso em fazer referência a algo através de um
nome N, mas (ii) são incapazes de identificar o referente de N em alguma das três
formas acima. Ora, de acordo com PR, (i) e (ii) não podem ser simultaneamente
verdadeiras. Logo, PR é falso. Este argumento ficou conhecido como argumento
semântico2.
Consideremos primeiro um exemplo de Kripke (1972, p. 95). Suponha que um
professor introduza o nome “Newton” a alunos que jamais tiveram contato com este
nome. Tudo que o professor diz aos alunos é “Newton foi o mestre de Platão”. Neste
caso, a única informação que os alunos têm sobre Newton é falsa. Não há qualquer
coisa que eles possam fazer para identificar Newton, pois não possuem qualquer um dos
três modos de identificação mencionados acima. Mas é lícito supor que mesmo assim os
alunos podem se referir a Newton através do nome introduzido. Se um deles disser
“Newton foi o mestre de Platão”, estará dizendo uma falsidade sobre Newton.
Considere agora um dos exemplos de Donnellan (1972). Suponha que uma
criança acaba de acordar em uma festa e é apresentado por seus pais a uma pessoa
chamada “Tom”, que lhe profere algumas palavras. No outro dia, a criança diz aos seus
pais “Tom é um bom homem”. A criança é capaz de dizer que havia um Tom na festa,
mas não é capaz de reconhecer-lhe ou de identificar-lhe por meio de uma propriedade
identificadora. Ao que parece, a criança é incapaz de identificar Tom por qualquer dos
três modos de identificação da lista acima. Ainda assim, Donnellan acredita que há boas
razões para dizer que a criança teve sucesso em se referir a Tom. Por exemplo, os pais
da criança poderiam dizer que, embora ela tenha encontrado com mais de um indivíduo
chamado “Tom”, só um disse coisas doces a ela.

2
Mas repare que não era a intenção de Kripke e Donnellan refutar PR. Eles forneceram o
argumento semântico como um argumento contra versões de teorias descritivistas da
referência dos nomes. Devitt e Sterelny (1999, p. 62) apresentam o mesmo tipo de argumento,
mas já tendo em mente também a noção de identificação.

234
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

O defensor de PR pode reagir de dois modos aos contraexemplos acima.


Primeiro, pode aceitar que os falantes do exemplo sejam incapazes de identificar os
referentes dos nomes, mas recusar que tenham sucesso em se referir a algo. Segundo,
pode aceitar que o ato de referência é bem-sucedido, mas recusar que os falantes sejam
incapazes de identificar os referentes. Ao longo deste artigo, usarei as duas estratégias,
dependendo do exemplo em questão.
Um aspecto importante do que está por vir é que aceito que o argumento
semântico tem sucesso em mostrar que falantes incapazes de identificar o referente do
nome em qualquer uma das três formas acima podem ter sucesso em fazer referência.
Mas recuso que isto implique a falsidade de PR. Sustentarei, na seção 2 abaixo, que
existe outro modo de identificação relevante para a referência por nomes e,
consequentemente, mais uma cláusula deve ser incluída em PR.

2 Nomes e identificação
2.1 Produtores

Devitt e Sterelny (1999, p. 66) corretamente notam que há pelo menos dois
fenômenos que uma teoria da referência precisa explicar: o fenômeno da fixação do
referente e o fenômeno da referência parasitária ou do empréstimo da referência. No
primeiro caso, queremos explicar como um nome pode ser atribuído a um objeto. Em
geral, isto ocorre através de um batismo3. No segundo, queremos explicar como a
referência pode passar de falante para falante, como um nome pode ser difundido de um

3
Como esperado, o conceito de batismo levanta problemas filosóficos interessantes. Os
exemplos paradigmáticos de batismo são os casos em que um falante é capaz de discriminar
perceptivamente um objeto e, a partir daí, realiza um ato de fala declarativo da seguinte forma:
Este objeto se chamará N. Mas há casos de introdução de um nome para um objeto que
diferem destes exemplos em um ou outro aspecto. Por exemplo, o contato perceptivo não é
necessário para o batismo, dado que, como veremos, existem batismos por descrição. Além
disto, podemos pensar em casos de introdução de nomes que não envolvem a intenção de
introduzir um nome, ou nos quais um sujeito atribui um nome a muitos objetos diferentes
através da realização de um único ato de fala. De fato, podemos pensar em casos legítimos de
introdução de um nome que diferem de forma tão significativa do que chamaríamos de
“batismo” que sequer é claro que possam ser considerados casos de batismo (TEXTOR, 2010,
p. 113). Uma vez que meu interesse neste artigo está muito mais no que ocorre após o batismo
– mais especificamente, no fenômeno da referência por empréstimo – não vou lidar com estes
problemas aqui.

235
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

sujeito S para um sujeito S’, de modo que, ao ouvir (ler...) S usar um nome N para
referir-se a um objeto x, S’ também adquire a capacidade de usar N para referir-se a x.
Há pelo menos dois modos reconhecidos pelos quais podemos atribuir nomes
próprios aos objetos. Primeiro, podemos introduzi-los através de batismo por ostensão.
Neste caso, o objeto está perceptivamente presente ao falante, que pode simplesmente
dizer (talvez apontando para ele): ele se chamará N. Segundo, podemos introduzir
nomes por meio de descrições. Neste caso, estipulamos que o referente do nome será
quem quer que seja o único a possuir uma determinada propriedade ou conjunto de
propriedades. Defensores de PR podem explicar o primeiro tipo de caso apelando à
cláusula (c) (conhecimento por contato) e o segundo apelando à cláusula (a)
(conhecimento de propriedades individuadoras). Assim sendo, estes casos não são
prima facie problemáticos para PR.
A cláusula (b) (reconhecimento) também não é sem utilidade. Pelo menos se
aceitarmos, como Evans (1982, p. 376) e McCulloch (1989, p. 281-282), que nem tudo
que ocorre depois do batismo é referência por empréstimo. Ambos pensam que nomes
próprios geralmente envolvem um conjunto de usuários que (i) possuem acesso
privilegiado ao referente do nome, e (ii) cuja habilidade de fazer referência por meio do
nome não é explicada em termos da habilidade de outros falantes. Evans chama a estes
usuários os “produtores” da prática de uso do nome4.
Consideremos o primeiro aspecto da descrição acima: os produtores de um nome
possuem alguma forma privilegiada de acesso ao referente do mesmo. O exemplo mais
claro de acesso privilegiado são as pessoas que podem se encontrar repetidas vezes com
o referente do nome, adquirir novas informações baseadas em certos encontros e
combiná-las com aquelas adquiridas em encontros anteriores. Estes encontros repetidos
permitirão aos falantes a combinação de informações novas com as antigas apenas se os
falantes forem capazes de reconhecer o referente do nome com base em sua aparência.
Suponha que eu encontre João agora e que descubra que ele está magro e rico. Estas

4
Apesar de a concepção de produtor brevemente esboçada aqui claramente remeter à de Evans,
alguns aspectos da última são ignorados por mim. Evans estava primordialmente interessado
em teorias do pensamento ou do significado e seu interesse se revela naturalmente em sua
explicação dos produtores. Por exemplo, ele fez questão de ressaltar que os produtores de um
nome N adquiriram a capacidade de ter pensamentos demonstrativos da forma “Este é N”
acerca de seu referente, e agora mantém a habilidade de tê-los e expressá-los nas
circunstâncias apropriadas devido à sua capacidade de reconhecer o referente de N com base
em sua aparência (EVANS, 1982, p. 376). Minha exposição dos produtores, por outro lado,
ignora a conversa sobre pensamentos demonstrativos ou de quaisquer outros tipos.

236
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

novas informações podem ser combinadas com informações obtidas em encontros


anteriores, a fim de me permitirem tirar novas conclusões. Se João era obeso, então
emagreceu; se era pobre, enriqueceu; etc. Para fazer estas combinações de informações
obtidas em diferentes encontros, é necessário que eu seja capaz de reconhecer a pessoa
que encontro agora (João) como a mesma com quem me encontrei anteriormente
(também João). Sem esta capacidade de reconhecimento, não estaria justificado em
fazer qualquer combinação de informações fundadas em diferentes encontros e não
poderia concluir, com base neles, que João emagreceu, enriqueceu etc. Parentes
próximos, amigos íntimos, cônjuges etc. geralmente fazem parte do conjunto de
usuários especiais de nomes. A capacidade destes produtores de fazer referência através
do nome pode ser explicada pelo apelo à cláusula (b) (reconhecimento)5.
Quanto ao segundo aspecto dos produtores, note que a capacidade destes de
identificar o referente do nome não é explicada em termos da capacidade de outros
falantes em identificar o referente do mesmo. Na medida em que a capacidade
referencial é explicada em termos da capacidade de identificação, a capacidade dos
produtores de fazer referência pelo nome relevante não é explicada em termos da
capacidade de outros usuários do mesmo. Produtores se referem por direito próprio.
Não entrarei em detalhes sobre os produtores aqui. Meu interesse é discutir os
casos prima facie problemáticos para PR. É com a referência por empréstimo que o
problema surge de modo mais óbvio. Como sabemos, é muito comum que nem todos os
usuários de um nome sejam produtores, e muitos nomes em uso atualmente sequer
possuem produtores. Mais especificamente, é muito comum que boa parte dos usuários
de um nome tome a sua referência de empréstimo de outros usuários. Os usuários de um
nome que fazem referência por empréstimo são os consumidores do nome. A maior

5
Repare que digo “a capacidade destes produtores” e não dos produtores em geral. Isto porque
acredito que há produtores que não são capazes de reconhecer o referente do nome com base
em sua aparência, e cuja capacidade de fazer referência é explicada em termos do modo
descritivo de identificação. Mais especificamente, acredito que há produtores do que Evans
chamou de “nomes descritivos”. A ideia de produtores de nomes descritivos é certamente
estranha, e rejeitada por Evans (1982, p. 378). Entretanto, penso que uma defesa desta ideia
pode ser tornada plausível se reconhecermos, seguindo McCulloch (1989, sec. 71 e 72), que
existe um tipo especial de descrições definidas, descrições estas que nos colocam em uma
relação privilegiada com o referente do nome relevante. Seja como for, não vou investigar este
tipo de caso aqui. Como já dito, meu interesse primordial é na referência por empréstimo, que
é um fenômeno relevante para os consumidores, e não para os produtores de um nome. De
resto, Strawson (1959, p. 31-38) e Evans (1982, cap. 5) são fontes interessantes de discussão
sobre a capacidade de reconhecer objetos e os problemas que ela envolve.

237
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

parte dos exemplos a favor do argumento semântico envolve consumidores, e não


produtores. Recorde o exemplo de Kripke. É bastante intuitivo que, naquele caso, os
alunos tomaram a sua referência de empréstimo do professor. O problema é que não
está claro como a identificação pode estar envolvida neste processo, e isto coloca o
Princípio de Russell em apuros. A partir de agora, minha atenção será voltada aos
consumidores.

2.2 Consumidores: nomes e marcadores

Comecemos com a hipótese de que nomes próprios, por si só, são ferramentas de
identificação, no sentido de que servem para identificarmos seus referentes. Para
descartar esta hipótese, basta notar que é um fato conhecido de nossa linguagem que
diferentes objetos podem possuir (e frequentemente possuem) o mesmo nome.
Hospitais podem fornecer um exemplo dramático da ineficiência dos nomes
como mecanismos de identificação. Em hospitais, é importante que os pacientes sejam
identificados de forma precisa. A má identificação pode ter consequências graves.
Imagine que um enfermeiro precise aplicar uma injeção contendo um medicamento
específico em uma paciente. Mas só o que recebe para identificá-la é que se chama
“Maria”. O enfermeiro encontra uma paciente chamada “Maria” e aplica-lhe a injeção.
Mas havia duas pessoas com este mesmo nome no hospital, e quem precisava da injeção
era a outra. Neste caso, a consequência de usar o nome como ferramenta de
identificação poderia ser desastrosa.
Para evitar este tipo de consequência, alguns hospitais adotam a estratégia de
acoplar o que Jackson (2010, p. 8) chamou de “marcadores” aos nomes. Pode-se, por
exemplo, identificar o paciente pelo seu nome + a data de seu nascimento. No caso de
haver risco de coincidência de nomes e datas, podemos acoplar ainda mais marcadores.
A moral da história é que se os nomes não são suficientes, podemos somar a eles mais
material para tornar a identificação possível. A ideia pode ser estendia para toda a
linguagem natural. Por um lado, nomes próprios são más ferramentas de identificação,
pois diferentes indivíduos podem possuir o mesmo nome. Por outro, falantes comuns
podem adicionar marcadores aos nomes, de modo a formar um material suficientemente
rico para a identificação do referente. Nas próximas páginas, veremos como exatamente
isto ocorre.

238
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Existem pelo menos dois indivíduos chamados “Sócrates”, um deles foi um


famoso filósofo da Grécia antiga, o outro foi um famoso jogador de futebol do
Corinthians. O mero nome “Sócrates” não me permitirá diferenciar entre ambos e,
consequentemente, não me permitirá identificar qualquer um em particular. A posse de
marcadores como “é um filósofo” e “é grego” pode tornar a busca mais precisa. Ela me
permite identificar um indivíduo específico dentre todos aqueles chamados “Sócrates”.
Qual indivíduo? Uma hipótese é que o nome “Sócrates” somado ao marcador “é um
filósofo grego” me fornece uma descrição metalinguística que é verdadeira de um e
somente um objeto. O referente do nome será este objeto. O indivíduo que identifico
através deste material é aquele que satisfaz a descrição ‘o indivíduo chamado “Sócrates”
que é um filósofo e é grego’. De fato, é exatamente assim que as coisas são no caso dos
hospitais. O indivíduo que o enfermeiro identificará será “aquele chamado N que é F, G
etc.”. Se isto está correto também para nossos usos cotidianos de nomes, então temos
um ponto a favor de explicar estes casos pela cláusula (a) de PR, isto é, pelo
conhecimento de propriedades individuadoras. Isto seria favorável às teorias
descritivistas da referência, que atribuem um papel central a esta cláusula na explicação
da referência dos nomes, seja alegando que (a) é uma condição necessária para a
referência, como fazem Kroon (1987), Jackson (2010) e Lewis (1984), seja alegando
que é necessária e suficiente, como fazem a Teoria Frege-Russell e a teoria dos
agregados de Searle (1958)6.
O problema com esta perspectiva é que não é claro como ela escapa do
argumento semântico. Alegadamente, falantes comuns podem ser referencialmente
bem-sucedidos mesmo quando não conhecem qualquer propriedade individuadora do
referente. Isto é uma das coisas que os exemplos mencionados na primeira parte deste
artigo supostamente mostram. A despeito de haver respostas descritivistas interessantes
aos exemplos (KROOM, 1983; LOAR, 1976; COSTA, 2011, 2013), meu objetivo é
fornecer uma imagem que não seja inicialmente tão exigente.
A ideia crucial é que o indivíduo que o falante identifica não é aquele acerca de
quem os marcadores são informações verdadeiras, mas aquele acerca de quem eles são

6
Russell (1912, cap. v; 1905; 1972, p. 29) e Frege (1892) são normalmente considerados os
primeiros descritivistas. O Descritivismo Clássico tem inspiração em suas obras, mas não é
óbvio que algum deles tenha realmente defendido isto. Costa (2009) apresenta argumentos
persuasivos contra a tese comum de que Russell e Frege teriam defendido o Descritivismo
Clássico, atribuindo aos mesmos o começo de uma versão mais refinada de Descritivismo.

239
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

informações difundidas. O objeto a quem um sujeito se referirá através do nome


“Sócrates” será aquele chamado “Sócrates” acerca de quem seus marcadores são
informações difundidas e não aquele chamado “Sócrates” acerca de quem seus
marcadores são informações verdadeiras.
Existem razões para pensar que isto seja assim. Imagine, por exemplo, que um
grande historiador da filosofia descubra que Sócrates não foi realmente um filósofo e
sequer era grego. Sócrates foi apenas um amigo íntimo de Platão, que se ocupou em
difundir um conjunto de estórias sobre ele. Suponha que nosso historiador publique um
artigo em uma renomada revista de filosofia. Agora, imagine que todo o material
identificador que um falante chamado “João” possua seja o nome “Sócrates” + o
marcador “foi um filósofo da Grécia antiga”. Neste caso, embora João não saiba,
nenhum de seus marcadores é uma informação verdadeira acerca de Sócrates. Mas isto
não o impede de identificar Sócrates através de seu material identificador. Suponha, por
exemplo, que ele tente fazer uma busca no Google. Coincidentemente, o primeiro artigo
que ele encontra é o de nosso historiador. O artigo está repleto de frases como “ao
contrário do que todos pensam, Sócrates não foi realmente um filósofo, sequer era
grego”. João estará em perfeitas condições de perceber que o artigo trata da mesma
pessoa que ele procurava. Não porque seu marcador é verdadeiro (ele não é!), mas
porque ele é difundido. O indivíduo que ele encontrará será aquele chamado “Sócrates”
acerca de quem seus marcadores são informações difundidas. O que é realmente
importante para a determinação do referente do nome “Sócrates”, como usado por João,
é que ele encara seus marcadores como informações difundidas acerca do referente.
Uma interessante consequência disto é que se não tivessem existido pessoas que
difundiram a informação “foi um filósofo da Grécia antiga” acerca de um indivíduo
particular chamado “Sócrates”, João não teria a habilidade de identificar qualquer
indivíduo por este nome e marcador. O sucesso dele em identificar Sócrates através de
seu material identificador depende da preexistência de uma prática de usar o nome
“Sócrates” para fazer referência a um indivíduo particular, na qual “foi um filósofo da
Grécia antiga” é uma informação difundida sobre este indivíduo.
Disto resulta a seguinte imagem geral sobre como um falante S pode identificar
o referente de um nome N.
 S deve dispor de um material identificador, formado pelo nome N + um
marcador – ou um conjunto de marcadores – £. S pode usar N para procurar alguém

240
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

chamado N. Mas dado que (provavelmente) há vários indivíduos chamados N, isto não
será suficiente. Assim, S pode usar seu marcador £ para distinguir um indivíduo
específico dentre aqueles chamados N: aquele acerca de quem £ é uma informação
difundida. Para que a identificação de S tenha sucesso, é necessário que exista uma
prática de usar o nome N para fazer referência a um objeto x, na qual £ seja uma
informação difundida acerca de x. Resumo este processo dizendo que S tem a habilidade
de identificar x como aquele a quem os membros desta prática se referem.
Até onde sei, Evans foi o primeiro a reconhecer – no capítulo 11 de The
Varieties of Reference – este papel dos marcadores para a referência dos nomes, e foi
seguido por Sainsbury (2005), Jackson (2010), Campbell (2002, sec. 2.5) e outros. A
despeito de nem todos terem exatamente a mesma imagem em mente, em todos os casos
a proximidade é inegável. Uma diferença importante em relação a Evans é que ele não
pensava que a identificação fosse uma condição necessária para a referência dos nomes,
mas apenas para termos pensamentos (crenças, conhecimento etc.) envolvendo nomes.
Falo algo sobre isto na próxima seção. Já Jackson propõe que falantes que usam seus
marcadores deste modo possuem, na verdade, conhecimento da propriedade
determinante do referente, e este conhecimento que envolve crenças identificadoras do
mesmo. Conforme veremos no próximo parágrafo, não me comprometo com isto.
Sainsbury e Campbell não dizem muito sobre como os marcadores funcionam. De todo
modo, esta imagem não é nova.
É necessário insistir em alguns pontos. Primeiro, não estou supondo que S tenha
de possuir conhecimento proposicional de uma descrição metalinguística qualquer. É
verdade que o referente de N, como usado por ele, será o objeto chamado N acerca de
quem £ é uma informação difundida, mas S não precisa ter conhecimento proposicional
ou ser capaz de especificar isto. Na verdade, sequer assumo que S tenha uma crença
identificadora da forma o referente de N é o objeto chamado N acerca de quem £ é uma
informação difundida. Só o que sustento é que ele tem a habilidade prática de
identificar o referente de N. Por outras palavras, ele sabe como usar seu material
identificador para distinguir o referente do nome de todos os outros objetos do mundo.
Como dito no parágrafo anterior, Jackson acredita que um falante possui este tipo de
habilidade prática apenas se conhece a propriedade determinante do referente, e este
conhecimento envolve crenças identificadoras do mesmo (JACKSON, 2010, p. 7). Se
ele estiver correto, então a existência da habilidade prática acima será, no fim das

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contas, mais um indício a favor do Descritivismo. Em todo caso, mesmo Jackson


reconhece que são precisos argumentos para mostrar que a posse daquela habilidade
acarreta a posse do tipo de conhecimento proposicional ou crença identificadora
requerido por descritivistas (para uma discussão destes argumentos, veja-se Salles
(2013, sec. 3.15)). Dado que não me comprometo com nada além da posse da habilidade
prática supracitada, não é necessário discutir estes argumentos aqui.
Segundo, não sustento que este é o único modo de identificação envolvido na
referência por nomes. Minha tese é que se trata de apenas mais um modo disponível a
falantes comuns, que deve ser acrescentado aos outros três modos mencionados
anteriormente. Sendo assim, devemos reformular o Princípio de Russell para o princípio
que afirma que uma condição necessária para um falante S se referir a um objeto x,
através de um nome N, é que ele seja capaz de identificar x em um dos quatro modos
apresentados até aqui. Portanto, a explicação da referência dos nomes envolve também
um quarto modo de identificação (neste ponto discordo de Evans (1982, p. 403) e
concordo com Sainsbury (2005, p. 97).
Por fim, o modo de identificação apresentado tem uma peculiaridade: o sucesso
da identificação depende da preexistência de uma prática de uso do nome para fazer
referência a um objeto particular. Assim, S só será capaz de identificar o referente do
nome que usa – e consequentemente de se referir àquele objeto – se tudo correr bem
com esta prática. Isto não é uma desvantagem, dado que o objetivo é explicar como a
identificação pode estar envolvida no fenômeno da referência por empréstimo. Os casos
de referência por empréstimo são justamente aqueles em que o sucesso da referência de
um falante é explicado em termos do sucesso de outros falantes. O modo de
identificação apontado nesta seção é especialmente importante para os consumidores de
um nome, e basicamente irrelevante para os produtores e todos aqueles que se referem
por direito próprio.

2.3 Falha na referência

Podemos agora considerar duas noções cruciais envolvidas na referência: os


casos de falha na referência e a noção de consumidor competente de um nome.
Anteriormente, disse que os falantes podem usar seu material identificador para
identificar o referente do nome como aquele a quem os membros de uma prática

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

específica se referem. O referente de seu uso será quem quer que seja o objeto na
origem da prática relevante. Isto sugere dois modos nos quais a identificação de um
consumidor pode falhar. Estes modos nos ajudarão a esclarecer o que é um consumidor
competente de um nome.
Primeiro, o material identificador pode falhar por haver mais de um objeto
acerca de quem os marcadores possuídos pelo falante são informações difundidas.
Imagine que todo o material que eu possua seja o nome “João” + o marcador “é um
marceneiro”. Existem muitas pessoas chamadas “João” e, correspondentemente, muitas
práticas de uso envolvendo este nome. Por sua vez, o marcador “é um marceneiro” é
uma informação difundida em muitas destas práticas. Assim, o material em questão não
me fornecerá a habilidade de distinguir qualquer indivíduo como aquele a quem os
membros de uma prática específica se referem.
Mas mesmo que o material seja suficientemente rico para me fornecer a
habilidade de identificar o referente do nome como aquele referido pelos membros de
uma prática específica, pode acontecer de esta prática não levar a lugar algum. Imagine
que eu seja um especialista na filosofia de Sócrates, de modo a possuir um material
identificador muito rico. Mas agora suponha que Sócrates seja uma invenção de Platão.
Neste caso, meu material me permitirá indicar de qual prática de uso do nome
“Sócrates” eu participo. Sou capaz de indicar que falo do alegado filósofo e não do
alegado jogador de futebol. Existe uma prática específica de uso do nome “Sócrates” na
qual meus marcadores são informações difundidas. Se existisse um objeto a quem os
membros desta prática se referem, eu teria sucesso em identificá-lo. Mas dado que não
existe qualquer objeto referido pelos membros desta prática, não identifico realmente
qualquer objeto.
Repare que o último caso é diferente do primeiro. No primeiro, meu material
identificador não me tornava capaz de situar meu uso do nome em qualquer prática
específica. Existiam várias práticas de uso do nome nas quais meu marcador era uma
informação difundida. No último, meu material me permite fazer isto, mas a
identificação falha porque os membros da prática não se referem a qualquer pessoa.
Apenas no primeiro a falha da identificação ocorre devido à pobreza do material
identificador.

2.4 Usuários competentes

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Seria implausível caracterizar o consumidor competente como aquele que tem


sucesso em se referir a algo por meio do nome. Afinal, existem práticas de uso de
nomes vazios. No século XIX, o nome “Vulcano” foi usado com seriedade por
cientistas e leigos para fazer referência a um planeta que pensavam existir, mas que não
existia. Seria contraintuitivo assumir que todos os consumidores deste nome eram
usuários incompetentes. Se assim for, então Sainsbury (2005, cap. 3; 2006: sec. 3) está
correto em notar que a existência de uma prática de uso de um nome e,
consequentemente, de usuários competentes, não depende de haver um referente. Minha
sugestão é que os falantes que falham em se referir a algo no primeiro sentido – devido
à pobreza de seu material identificador – não são consumidores competentes de nomes.
Mas aqueles que falham no segundo sentido ainda são competentes.

2.5 Marcadores especiais

Um último ponto merece nossa atenção. Nem todo marcador funciona do modo
descrito acima. Existe uma classe de marcadores especiais que nos fornecem modos
(mais) diretos de apontar a prática de uso de nome da qual participamos. Há casos em
que o único marcador de um falante é algo como “a pessoa a quem Fulano se referiu em
tal e tal situação”. Na verdade, este parece ser um caso em que o falante identifica o
referente do nome por conhecer uma propriedade individuadora dele. Ele conhece uma
propriedade que somente aquele objeto satisfaz: a propriedade de ser o único objeto
referido por Fulano naquela situação. A intenção do falante não parece ser referir-se ao
objeto de quem a informação “a pessoa a quem se Fulano referiu” é difundida. Ao
contrário, sua intenção é se referir a quem quer que Fulano tenha se referido, e ponto. O
sucesso na referência dependerá, neste caso, de ser verdade que Fulano se referiu a um e
somente um indivíduo na situação relevante.
Marcadores como “é famoso” também são frequentemente usados como um
modo mais direto de os falantes indicarem a qual prática seu uso do nome pertence.
Geralmente, falantes usam este marcador de modo que o que é importa não é apenas se
ou não ele é uma informação difundida acerca do referente do nome. Imagine que todo
o material identificador que associo a “Sócrates” seja “é um filósofo famoso”. Suponha
que exista um desconhecido estudante de filosofia, chamado “Sócrates”, que difunda

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

acerca de si mesmo a falsa informação de que é famoso. Isto não me impede de


identificar o famoso Sócrates através de meu material identificador. Isto pode ser
explicado do seguinte modo. Existem diferentes práticas de uso do nome “Sócrates”.
Presumivelmente, em mais de uma a informação “é um filósofo” é difundida. Contudo,
existe uma que se destaca das outras, no sentido de ter uma história mais longa, ou
envolver mais pessoas, maior difusão de informações etc. Podemos usar o marcador “é
famoso” para indicar nossa intenção de participar especificamente desta prática. Se
alguém me pergunta de quem eu falo quando falo de Sócrates, e respondo que falo
daquele famoso, indico que estou usando um nome muito conhecido, pertencente a uma
prática importante, que envolve estudiosos etc. O marcador foi usado como uma forma
de indicar características da prática de uso a qual pertenço. Não importa o que nosso
desconhecido estudante de filosofia difunda acerca de si mesmo, meu uso do nome
“Sócrates” não pertence à prática de uso – que é pequena, envolve poucas pessoas etc. –
que leva a ele. Desconfio que existam outros marcadores deste tipo, mas uma lista
completa está fora do alcance deste texto.
A teoria apresentada até aqui é apenas um esboço, de modo que muitos
elementos requerem maior atenção e desenvolvimento. Em todo caso, parece-me uma
alternativa promissora. Primeiro, ela não exige muito de falantes comuns. Não exige,
por exemplo, conhecimento de propriedades individuadoras. Segundo, ela se adéqua à
intuição de que um falante pode ter sucesso em se referir a algo mesmo quando não
possui qualquer informação verdadeira acerca do referente do nome. Afinal, o que
importa no quarto modo de identificação não é se os marcadores são informações
verdadeiras, mas se são informações difundidas. Por último, ao acrescentarmos uma
cláusula diferente à PR, tornamo-lo menos exigente e, consequentemente, mais
plausível. Resta saber se estamos agora livres do argumento semântico.

3 O argumento semântico

Como vimos, Kripke e Donnellan forneceram exemplos de casos nos quais


falantes ignorantes – isto é, incapazes de identificar o referente do nome –
aparentemente se referem a algo através do uso do nome. Minha resposta a estes
exemplos será dividida em duas partes: (a) alguns alegados casos de falantes ignorantes
não são realmente casos de falantes ignorantes; (b) os casos que realmente envolvem

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

falantes ignorantes não são casos nos quais intuitivamente há sucesso nos atos de
referência7.
(a) Considere primeiro o seguinte exemplo. Imagine que um sujeito ouça seus
amigos conversando acerca de Platão, mas não o que falam acerca do mesmo. Suponha
também que este seja o primeiro contato dele com o nome “Platão”. Neste contexto,
imagine que ele pergunte o seguinte:
(1) Quem é Platão?
Intuitivamente, nosso sujeito tem sucesso em se referir a Platão pelo
proferimento de (1). Entretanto, não é capaz de identificar o mesmo. Afinal, por
suposição, ele não ouviu o que os amigos disseram sobre Platão e não possuía qualquer
informação anterior que pudesse ajudar. Este é um caso alegadamente óbvio de sucesso
da referência sem capacidade de identificação.
Concordo que seja um caso óbvio de referência bem-sucedida, mas recuso que o
sujeito não seja capaz de identificar Platão. Na verdade, temos um caso claro de sucesso
da identificação. Nosso sujeito pode identificar Platão como a pessoa a quem seus
amigos se referiram (quando proferiram “Platão” há alguns segundos atrás). Para ver
que ele tem esta habilidade, basta reparar que, ao invés de (1), ele poderia muito bem ter
perguntado “Quem é este Platão de quem falavam?”.
Agora voltemos ao exemplo de Kripke. Naquele caso, o professor introduz o
nome “Newton” aos alunos com uma única descrição falsa (“o mestre de Platão”).
Supostamente, eles não possuem qualquer outra informação. Ainda assim, nossa
intuição é que os alunos são capazes de se referir a Newton por este nome. Neste ponto,
já é possível perceber o que há de errado com o exemplo. A suposição de que aquele
seja o único material identificador dos alunos é falsa. Eles são capazes de identificar
Newton como a pessoa a quem seu professor se referiu (por ‘Newton’ na última aula).
Portanto, não se trata de um caso envolvendo falantes ignorantes.
Os dois casos acima revelam um modo importante no qual os consumidores
podem identificar o referente dos nomes no momento de sua aquisição. É um fato de
nossa linguagem que os falantes precisam de pouca coisa para adquirir um nome. O

7
É importante notar que, daqui por diante, a avaliação do argumento semântico levará em conta
não três, mas quatro modos de identificação. Por outras palavras, interpretarei os exemplos de
Kripke e Donnellan como supostos casos nos quais os falantes são bem-sucedidos em suas
tentativas de se referir a algo através de um nome, mesmo sendo incapazes de identificar o
referente em qualquer um dos quatro modos descritos ao longo do texto.

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modo de identificação esboçado nos dois parágrafos acima está de acordo com este
suposto fato. A afirmação de que um falante, ao ouvir pela primeira vez o proferimento
de um nome N, pode identificar o referente de N do modo acima não é algo
extraordinário. Embora o modo de identificação em questão possua suas limitações, é
legítimo e largamente acessível aos falantes comuns.
A moral da história é que a avaliação de um exemplo a favor do argumento
semântico deve levar em conta não apenas a informação explicitamente transmitida pelo
proferimento dos interlocutores, mas também o contexto do proferimento como um
todo. Nos casos acima, os interlocutores não disseram “N é a pessoa a quem me refiro”,
mas o contexto permitiu os ouvintes saberem disto. Os exemplos acima envolvem o que
Goodman (2016) chama de “casos de testemunho puro”. Uma característica essencial
destes casos é que “o ouvinte (...) não tem meios independentes de identificar o objeto
sobre o qual se discute” (GOODMAN, 2016, sec. 6.1, tradução minha). Nestas
circunstâncias, a única forma que o ouvinte tem de identificar o referente de N é
recorrendo ao proferimento do falante e ao material fornecido pelo contexto do mesmo.
É importante ressaltar, portanto, que os ouvintes têm outras fontes de informação além
daquilo que é explicitamente comunicado pelos falantes. Estas fontes podem ajudá-los a
obter um material rico o bastante para identificar o referente do nome usado pelos
últimos. Em alguns casos, o material disponível a um ouvinte inicialmente ignorante
pode ir muito além daquilo que é explicitamente comunicado pelos falantes. Se um
professor de filosofia diz “as próximas aulas serão sobre Sócrates”, os alunos podem
justificadamente supor que o referente de “Sócrates” é um filósofo, ou talvez até mesmo
que seja um famoso filósofo, já que será o assunto de várias aulas.
Em conclusão, alguns exemplos nos quais alegadamente há falantes ignorantes
referencialmente bem-sucedidos não são realmente casos de falantes ignorantes. E
assim fica estabelecida a primeira parte de minha resposta.
(b) Passemos agora aos casos que realmente envolvem falantes ignorantes. Para
obter um caso deste tipo, basta fazer uma pequena modificação no exemplo de Kripke
considerado acima. Imagine a mesma situação, mas suponha que os alunos tenham
esquecido quem lhes introduziu o nome. Neste contexto, todo o material identificador
que eles possuem é o nome “Newton” mais o marcador “é o mestre de Platão”.
Conforme sabemos, este marcador não é uma informação verdadeira de Newton e

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

sequer é uma informação difundida dele. Agora, suponha que um dos alunos, chame-lhe
“Joãozinho”, diga o seguinte a seu pai:
(2) Newton foi o mestre de Platão.
São casos como este que favorecem o argumento semântico, pois intuitivamente
Joãozinho teve sucesso em se referir a Newton, mas é incapaz de identificá-lo. Antes de
responder ao desafio posto pelo exemplo, é preciso ressaltar dois pontos.
Primeiro, é comum que falantes e ouvintes façam pressuposições uns sobre os
outros. Concentremo-nos nas pressuposições dos ouvintes. Os ouvintes usualmente
pressupõem que os falantes estão se referindo a algo. Se um amigo nos diz que N é F,
supomos que ele está usando N como um nome, que é capaz de usar este nome, que ele
tem sucesso em se referir a algo por este nome etc. Em contextos ordinários, não
adentramos em dúvidas céticas sobre a pessoa que nos fala. Além disto, em alguns
contextos pressupomos não apenas que o falante se refere a algo, mas que ele se refere a
algo/alguém específico. Se um estudante pergunta a seu pai “Newton foi um físico
importante?”, o pai pode pressupor que ele fala de Isaac Newton.
Em segundo lugar, repare que as pressuposições dos ouvintes não são infalíveis.
Eles podem fazer pressuposições equivocadas sobre o falante. Mais especificamente,
existem situações nas quais o ouvinte está justificado em fazer uma pressuposição sobre
o falante, mas sua pressuposição é falsa. Imagine que o amigo de Marquinhos se chame
Newton, e que conte a ele que é um físico famoso. Em dúvida sobre se o que ouviu é ou
não verdade, Marquinhos pergunta a seu pai: Newton é um físico famoso? O pai, que
não está informado do contexto da dúvida de Marquinhos, certamente estará justificado
em pressupor que ele fala de Isaac Newton. Mas esta pressuposição é incorreta, dado
que ele fala de seu amigo. É fácil pensar em outros exemplos do tipo. Suponha que um
grupo de fãs de futebol está conversando sobre Sócrates, o grande jogador do
Corinthians. Um deles diz que Sócrates foi um gênio e outro responde que ninguém era
tão inteligente quanto Sócrates. Neste contexto, Chico entra na conversa e diz, com a
intenção de falar do Sócrates filósofo, “Sócrates foi um homem admirável”. Está claro
que os outros, que agora ocupam a posição de ouvintes, estão justificados em pressupor
que Chico fala do jogador de futebol. Mas esta pressuposição é falsa.
Imagino que nenhum dos pontos acima seja controverso, mas eles nos ensinam
uma lição importante: se queremos saber se alguém tem sucesso em se referir a algo,
então devemos voltar nossa atenção ao falante. Do mero fato de que os ouvintes estão

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justificados em pressupor que o falante tem sucesso em se referir a algo não se segue
que o falante de fato se referiu a qualquer coisa. No que segue, argumentarei que os
exemplos mais plausíveis a favor do argumento semântico não respeitam esta lição. Os
exemplos são apenas casos nos quais os ouvintes estão justificados em pressupor que o
falante se referiu a algo, mas não revelam qualquer intuição interessante sobre os
falantes.
Retornemos ao caso de Joãozinho. Seu pai está justificado em pressupor que ele
está usando “Newton” como um nome e que se refere a alguém. Em verdade, se o pai
conhecer um pouco de história da física, está justificado até mesmo em pressupor que
Joãozinho fala de Isaac Newton (não é o que você, no lugar dele, pressuporia?).
Todavia, sabemos agora que nada disto implica que o garoto tenha de fato se referido a
algo. Para saber se Joãozinho se referiu a algo, devemos investigar a situação dele, e não
a de seu pai. O nosso problema, então, é o seguinte: o exemplo mostra algo de relevante
sobre o sucesso de Joãozinho em se referir a algo?
Imagine o mesmo exemplo, mas agora mude o nome “Newton” por “Maria” e o
marcador “foi o mestre de Platão” por “é legal”. Isto é, imagine que Joãozinho disse (3)
ao invés de (2).
(3) Maria é Legal.
Uma vez mais, o pai estará justificado em fazer um conjunto de pressuposições
acerca de Joãozinho. Agora, no entanto, ele não pressupõe que Joãozinho se refere a
alguém que ele conhece. Talvez o pai não se lembre de conhecer alguém chamada
“Maria” ou talvez se lembre de muitas pessoas com este nome, mas o importante é que
não assume que Joãozinho esteja falando desta ou daquela pessoa. Neste contexto, é
apropriado para o pai fazer perguntas como “quem é Maria?” ou “de quem está
falando?”. Pergunte-se: qual poderia ser a resposta de Joãozinho? Por suposição, a
resposta teria de ser algo como “Eu não sei”. O pai poderia perguntar “como você
conheceu Maria?” ou “me conte mais sobre ela”, e a resposta teria de ser “eu não sei”,
“não há mais a dizer” etc. O pai poderia insistir “conte-me qualquer coisa sobre ela!”.
Novamente, a resposta teria de ser algo como “Já disse, não sei!”, e talvez o garoto
completasse “mas ela é legal”. Será este exemplo um caso muito intuitivo de sucesso na
referência? Estaríamos justificados em pensar que é óbvio ou pelo menos intuitivo que
Joãozinho se refere a algo? Tanto quanto posso ver, não há qualquer coisa óbvia aqui.
Sequer é intuitivo que o garoto seja um usuário competente do nome “Maria”.

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É fundamental manter em mente que estou tomando muito seriamente a tese de


que o único material identificador de Joãozinho é “Maria” mais “é legal”. Repare que os
casos deste tipo não são normais, mas estranhos e atípicos. Eles são estranhos porque o
proferimento de Fa é geralmente despropositado quando F é o único marcador possuído
pelo falante. Qual o ponto de proferir “Maria é legal” quando o único marcador
associado a “Maria” é “é legal”? Joãozinho não é capaz de indicar de quem fala, de
modo que não conseguirá explicar isto ao ouvinte em caso de necessidade. Ele também
não é capaz de buscar por mais informações sobre o (suposto) referente de “Maria”.
Suponha que Joãozinho decida usar seu material identificador para buscar mais
informações sobre o indivíduo a quem ele (supostamente) se refere. Se ele digitar no
Google, encontrará muitas notícias diferentes, sobre muitas pessoas chamadas “Maria”
das quais a informação “é legal” é difundida, mas não estará justificado em concluir que
qualquer uma daquelas informações é sobre a Maria a quem ele (supostamente) se
refere. Algo similar ocorreria se ele tentasse alguma outra fonte, como o testemunho de
um amigo por exemplo. Se Joãozinho recorresse a seu pai e lhe perguntasse “Quem é
Maria?”, seu pai poderia lhe contar de uma ou outra pessoa chamada “Maria” de quem o
marcador “é legal” é difundido. Mas Joãozinho não teria razão para concluir que se trata
da pessoa (supostamente) referida por ele. Em resumo, com o material que possui,
Joãozinho nem é capaz de explicar de quem (supostamente) fala nem é capaz de
aprender sobre a pessoa de quem (supostamente) fala. Nestas circunstâncias, seria
estranho que ele tentasse iniciar ou participar de uma conversação por meio do
proferimento de (3). Porque isto é estranho, suponho que seja atípico.
Alguém poderia objetar aqui que a estranheza não é importante. Do mero fato de
que a situação é estranha não se segue que Joãozinho não esteja se referindo a algo
através de seu proferimento de (3). Esta objeção, contudo, erra o alvo. O ponto que
desejo mostrar não é que Joãozinho falha em se referir a algo (apesar de pensar que ele
falha), mas que não é intuitivo que ele tenha sucesso em se referir a algo. Isto basta
para mostrar que o exemplo não representa um caso intuitivo contra o Princípio de
Russell.
Agora compare o exemplo do Newton (proferimento de (2)) com o de Maria
(proferimento (3)). Em ambos os casos, o pai está justificado em pressupor que seu filho
está usando um nome de forma séria, que tem sucesso em se referir a alguém etc.
Todavia, no primeiro caso o pai está justificado a pressupor que Joãozinho fala de uma

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pessoa específica: Isaac Newton. Dado esta pressuposição, seria apropriado para o pai
dizer coisas como “Newton não foi o mestre de Platão” ou “Você está errado. O mestre
de Platão foi Sócrates”. No caso de Maria, esta última pressuposição não existe; o pai
não assume que sabe de quem o filho está falando. Devido a isto, seria natural que ele
perguntasse “Quem é Maria?” ou “De quem está falando?”. O que muda de um exemplo
para outro são as pressuposições que o pai faz sobre o proferimento de seu filho e, com
elas, o tipo de resposta que seria apropriado dar ao mesmo. Até agora, nada de
interessante sobre o falante (o Joãozinho) foi revelado. O que podemos dizer sobre
Joãozinho é que em ambos os casos ele se encontra numa situação de ignorância. Basta
formular o exemplo de modo a realmente ressaltar esta situação de ignorância e
percebemos que não há qualquer sucesso intuitivo da referência aqui. O veredicto sobre
se Joãozinho se refere não pode ser dado pelas intuições. O que vale para o caso de
Maria vale para o de Newton.
Deixe-me insistir um pouco mais no exemplo de Newton. Suponha que
Joãozinho decida usar seu material identificador para buscar por mais informações
sobre o indivíduo a quem ele (supostamente) se refere. Ao fazer uma pesquisa,
encontrará diferentes resultados sobre alguns indivíduos chamados “Newton”. Como
poderia ele estar justificado em acreditar que algum destes resultados é sobre a pessoa a
quem ele (supostamente) se refere? De fato, ele não estará justificado em fazer este
movimento. Isto tem a consequência de que Joãozinho, na situação de ignorância em
que se encontra, não é capaz de acumular informações sobre o alegado objeto referido.
Por outras palavras, existe um sentido no qual ele é incapaz de aprender coisas novas
sobre o (suposto) referente do nome. Joãozinho também é incapaz de indicar de quem
fala. Ele não é capaz de indicar de qual pessoa chamada “Newton” ele fala, nem de qual
prática de uso de nome participa. Se o pai lhe perguntasse de quem fala, rapidamente
ficaria ciente de que o garoto é incapaz de explicar se fala de Isaac Newton, de seu
vizinho chamado “Newton” ou de qualquer outro Newton do planeta. Existe por isto um
sentido no qual o garoto é incapaz de ensinar qualquer informação ulterior sobre o
(suposto) referente do nome. Numa situação cognitiva destas, seria no mínimo estranho
que ele iniciasse ou participasse de conversações envolvendo o nome. De modo geral,
quando o material identificador de um falante não é rico o bastante, não é claro qual o
ponto em iniciar ou participar de conversações por meio de proferimentos como (2) ou
(3). A despeito disto, pode ser argumentado que Joãozinho de fato é capaz de se referir a

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algo por meio de seus proferimentos. Todavia, e isto é o mais importante, o exemplo
não é um caso intuitivo de sucesso da referência. A tese de que falantes como Joãozinho
se referem é controversa, e não uma intuição comum.
Em resumo, o exemplo de Newton é um caso no qual os ouvintes estão
justificados em pressupor que o falante teve sucesso no ato de se referir a algo. Se
pensarmos da perspectiva do ouvinte, também pressuporemos que houve sucesso da
referência. Argumentei, contudo, que devemos nos colocar na perspectiva do falante.
Uma vez que fazemos isto, as intuições se dissipam.
O mesmo vale para o exemplo de Donnellan. A única razão que ele fornece para
a tese de que a criança se referiu a Tom é que seus pais estariam justificados em
pressupor que ela o fez. É verdade que seus pais estariam justificados em fazer esta
pressuposição, mas daí não se segue que a criança de fato se referiu a algo. Os pais
sabem que havia muitas pessoas chamadas “Tom” na festa e viram uma delas
conversando com seu filho. Se nos colocarmos no lugar dos pais, teremos razões para
fazer as mesmas pressuposições. Mas tão logo nos colocamos no lugar da criança e
ficamos cientes de sua situação cognitiva, não mais há razão para tomar como intuitivo
o sucesso da referência. De fato, dado a pobreza de seu material identificador, pode-se
duvidar até mesmo que se trate de um usuário competente do nome.
Em conclusão, argumentei que alguns exemplos a favor do argumento semântico
são realmente casos intuitivos de sucesso na referência, mas não são casos de falantes
ignorantes. Por outro lado, alguns exemplos são realmente casos de falantes ignorantes,
mas não são casos nos quais intuitivamente há sucesso na referência. De fato, forneci
uma receita de dois passos para qualquer um que pretenda avaliar um exemplo a favor
do argumento semântico: (i) verifique se não há alguma informação relevante
contextualmente implícita e (ii) se coloque na perspectiva do falante, e não na do
ouvinte. Se seguirmos estes passos, evitamos a maior parte dos exemplos.
Por fim, penso que Evans (1982, sec. 3.3) cedeu mais do que precisava aos
exemplos de Kripke e Donnellan. Ele acreditou que o argumento semântico de fato
mostrava que falantes ignorantes podem ser bem-sucedidos na referência por nomes. O
que o argumento não mostraria é que estes falantes têm sucesso em pensar sobre os
referentes. A ideia central é que as condições para um sujeito pensar sobre um objeto
através de um nome são mais rigorosas do que as condições para um sujeito se referir e
dizer coisas através do nome. Kripke e outros não teriam percebido o abismo que há

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entre dizer (ou referir-se) e pensar. Mesmo que Evans esteja certo sobre sua distinção
entre dizer e pensar, acredito que esteja errado quanto ao argumento semântico. Os
exemplos acima, nos quais falantes ignorantes usam nomes, não são casos intuitivos de
sucesso referencial. A distinção importante para explicar a falha dos exemplos não é a
distinção entre dizer e pensar; mas entre a perspectiva do falante e a perspectiva do
ouvinte. Seja como for, não precisamos nos perder muito nisto. O ponto importante é
que minha defesa do Princípio de Russell é uma defesa deste princípio para a referência.
Neste sentido, é mais radical do que o próprio Evans desejaria.

Considerações finais

Nas últimas décadas surgiu uma teoria mista da referência que está entre o
Descritivismo Clássico e o Causalismo. Esta teoria aceita a lição de Kripke e Donnellan
sobre a importância de uma cadeia histórico-causal para o fenômeno da referência por
nomes, mas também coloca um requisito epistêmico sobre o mesmo. Por um lado, a
referência por nomes é um fenômeno histórico que envolve uma cadeia de usuários
relacionados (causalmente) entre si. Por outro, a habilidade de usar um nome com
sucesso envolve a capacidade de identificar seu referente. Neste artigo, defendi que a
identificação pode, em alguns casos, ser entendida como uma habilidade prática de
identificar o referente do nome como aquele a quem os membros de uma prática
específica se referem. Penso que este modo de identificação é fundamental para
entender o papel dos consumidores dos nomes e a referência por empréstimo.
A expressão “habilidade prática” tem importância especial aqui. A identificação
é uma condição necessária para o sucesso da referência por nomes, mas não é uma
condição tão forte quanto possa parecer. Os falantes comuns não precisam de muito
para diferenciar o objeto nomeado dos outros objetos do mundo. Mais especificamente,
um consumidor de um nome pode se referir a algo através do uso do nome mesmo que
não tenha conhecimento proposicional de que o objeto nomeado é o(a) F. De fato,
minha sugestão é que a habilidade de identificação dos consumidores não precisa ser
encarada como um tipo de conhecimento proposicional. Para que um consumidor seja
capaz de se referir a algo pelo uso de um nome, basta que saiba como usar o seu
material identificador para situar-se em uma prática específica de uso de nomes.

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Por fim, a inclusão de uma habilidade prática no Princípio de Russell não é algo
novo. Provavelmente a capacidade de reconhecer objetos com base em sua aparência –
que foi incluída como um dos modos relevantes de identificação – é já uma habilidade
prática. Além disto, seria um equívoco interpretar falantes com tais habilidades como
falantes ignorantes. Aceitar que o conhecimento discriminatório dos falantes seja
entendido em termos de uma habilidade prática é diferente de aceitar que falantes
ignorantes (sem conhecimento discriminatório) acerca de um objeto podem se referir a
ele por meio de seu nome próprio.

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255
DE VOLTA AO QUARTO DE MARY

Cícero Antônio Cavalcante Barroso


Universidade Federal do Ceará (UFC)

RESUMO: Neste artigo, apresento uma análise do Argumento do Conhecimento (AC), tal
como formulado em Jackson (1982) a partir da estória de Mary, assim como de algumas das
principais objeções que lhe foram dirigidas. Depois de apontar as razões pelas quais penso que o
AC escapa dessas objeções, ofereço uma objeção que me parece incontornável e que reduz
consideravelmente a potência ofensiva do AC contra o fisicalismo.

PALAVRAS-CHAVE: Argumento do Conhecimento. Fisicalismo. Informação Fenomênica.

ABSTRACT: In this article, I present an analysis of the Knowledge Argument (KA), as


formulated in Jackson (1982) on basis from Mary's story, as well as of some of the main
objections addressed to it. After pointing out the reasons why I think the KA escapes these
objections, I offer an objection that seems to me to be unavoidable and that considerably
reduces the CA's offensive power against physicalism.

KEYWORDS: Knowledge Argument. Physicalism. Phenomenal Information.


PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

1. Introdução

O Argumento do Conhecimento (AC), tal como proposto por Frank Jackson em


seu célebre artigo Epiphenomenal Qualia, de 1982, é concebido e apresentado como
uma refutação do fisicalismo. Neste artigo, argumentarei que ele não cumpre esse
desiderato. Antes, porém, de indicar onde está o seu calcanhar de Aquiles, iniciarei
examinando sua estrutura e fazendo algumas observações relevantes, e prosseguirei
reavaliando pelo menos parte das objeções que lhe foram feitas. Mostrarei que, embora
haja boas respostas para quase todas essas objeções, há uma objeção que parece mais
difícil de responder. De acordo com ela, o grande problema do AC reside na concepção
de fisicalismo apontada por Jackson. Concluirei então que, em razão disso, o AC não
funciona como uma refutação geral do fisicalismo, mas apenas de uma cepa mais
questionável de fisicalismo.

2. As estórias e o argumento

Jackson (1982) começa com caracterizações muito gerais dos conceitos de


informação física e fisicalismo. Posto de forma resumida, o que Jackson afirma, em
primeiro lugar, é que informação física é qualquer informação fornecida por teorias
científicas ou qualquer informação sobre o papel funcional dos nossos estados internos.
Em outras palavras e de modo resumido, informação física é o que poderíamos chamar
de ‘informação científico-funcional’, ou apenas, por conveniência, de ‘informação
científica’, desde que podemos conceber que as ciências cognitivas podem fornecer a
informação relevante sobre o papel funcional dos nossos estados internos.
Em segundo lugar, Jackson assume a verdade do seguinte enunciado:

(1) O fisicalismo declara que toda informação (correta) é informação física.

Esses esclarecimentos iniciais são necessários para construir certos consensos


mínimos sobre os termos que serão usados no AC.
O próximo passo é apelar para estórias envolvendo personagens que têm toda

258
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

informação física sobre certo tópico X, mas não têm toda informação sobre X. Jackson
(1982) narra duas estórias, a estória de Fred e a estória de Mary.
A primeira estória é sobre um sujeito que vê pelo menos uma cor que ninguém
mais sabe como é. Diante de uma pilha de tomates, que aos nossos olhos são
unicamente vermelhos, Fred vê duas cores tão diferentes quanto amarelo e azul, cores
que ele chama respectivamente de vermelho1 e vermelho2. Como ninguém mais vê o
que Fred vê, podemos dizer que Fred sabe de algo sobre vermelho1 (e vermelho2) que
nós não sabemos. Além disso, mesmo que alguém viesse a estudar a fisiologia de Fred e
chegasse a ter toda a informação física sobre as mudanças fisiológicas que ocorrem no
corpo de Fred quando ele vê vermelho1 (ou vermelho2), isso ainda não seria suficiente
para dar a essa pessoa informação sobre como é ver vermelho1 (ou vermelho2).
A segunda estória é a mais famosa. A apresentação que Jackson faz da sua
personagem dificilmente poderia ser mais objetiva:

Mary is a brilliant scientist who is, for whatever reason, forced to


investigate the world from a black and white room via a black and
white television monitor. She specialises in the neurophysiology of
vision and acquires, let us suppose, all the physical information there
is to obtain about what goes on when we see ripe tomatoes, or the sky,
and use terms like 'red', 'blue', and so on (JACKSON, 1982, p. 130).

Com base nesse relato, Jackson levanta uma questão: o que acontecerá se Mary
conseguir sair do seu quarto? Ela obterá alguma informação nova sobre cores? Se
respondermos que sim, então temos que admitir duas coisas:

(2) Em seu quarto, Mary tinha toda informação física sobre cores.
(3) Em seu quarto, Mary não tinha toda informação sobre cores.

Se combinarmos os enunciados (1), (2) e (3) temos o seguinte argumento:

P1: O fisicalismo declara que toda informação é informação física.


P2: Em seu quarto, Mary tinha toda informação física sobre cores.
P3: Em seu quarto, Mary não tinha toda informação sobre cores.
C1: Existe informação não-física sobre cores (de P2 e P3).
C2: O fisicalismo é falso (de P1 e C1).

259
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

É importante fazer algumas observações neste ponto.


Em primeiro lugar, deve-se observar que o argumento acima é uma instância do
AC, não o AC propriamente dito. O AC é, na verdade, a forma do argumento acima,
mas, por metonímia, podemos chamar tal instância de AC. Não devemos esquecer,
porém, que seria possível montar um argumento com a mesma forma a partir da estória
de Fred (S tem toda informação física sobre Fred, e S não tem toda informação sobre
Fred, e dado que o fisicalismo diz que toda informação é física, o fisicalismo é falso).
De fato, seria possível montar diferentes argumentos com essa mesma forma (e.g., S
tem toda informação física sobre morcegos, e S não tem toda informação sobre
morcegos, e dado que o fisicalismo diz que toda informação é física, o fisicalismo é
falso). Em todos esses casos, temos exemplos do AC.
Uma segunda observação relevante sobre o AC é que sua versão desenvolvida
por Frank Jackson foi concebida como um argumento antifisicalista, ou seja, seu
objetivo é mostrar que o fisicalismo é falso. Essa é uma pretensão extremamente
ousada, uma vez que, tanto na filosofia como na ciência, a crença de que a visão
científica do mundo implica o fisicalismo é largamente aceita. Para quem tem essa
crença, negar o fisicalismo implica em negar a visão científica do mundo. O próprio
Jackson esteve sempre preocupado em mostrar que é possível separar as coisas, isto é, é
possível insurgir-se contra o fisicalismo mantendo-se fiel ao espírito científico. Para ele,
o que a ciência implica não é o fisicalismo, mas a tese do fechamento causal do mundo
físico, a tese de que todo efeito no mundo físico tem uma causa física. Assim, é possível
defender que o mundo inclui elementos não-físicos desde que esses elementos não
produzam nenhum efeito físico no mundo. E é exatamente isso que Jackson (1982) vai
defender acerca dos qualia, é possível reconhecer a sua natureza não-física desde que se
assinale seu caráter epifenomênico. De todo modo, mesmo que o AC não ameace a
visão científica do mundo, seu insolente ataque ao fisicalismo foi desde o início visto
como algo que não poderia ficar sem resposta. Daí a contagiante e duradoura polêmica
suscitada pelo AC. A situação é retratada de forma sugestiva por William Lycan:
“Someday there will be no more articles written about the ‘Knowledge Argument’
(NAGEL 1974, JACKSON 1982). That is beyond dispute. What is less certain is, how
much sooner that day will come than the heat death of the universe” (LYCAN, 2003, p.
384).
Uma terceira observação diz respeito ao nome do argumento em pauta. Por que
‘Argumento do Conhecimento’? Como vimos, inicialmente, o argumento é expresso em

260
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

termos de informação. Ocorre, porém, que Jackson (1982) não faz um uso muito
rigoroso dos termos ‘informação’ e ‘conhecimento’, dando a ideia de que os termos
podem ser intercambiados livremente no âmbito da discussão do AC. Com efeito, no
artigo, vemos o autor afirmar indistintamente que Mary obteria informação nova sobre
cores se escapasse do seu quarto e que Mary aprenderia algo novo sobre cores em tal
situação. Em razão dessa frouxidão no uso dos termos, o AC pode ser formulado tanto
em termos de informação como em termos de conhecimento. Na verdade, é possível
encontrar na discussão empreendida por Jackson não apenas uma alternância entre
afirmações sobre as novas informações e os novos conhecimentos obtidos por Mary; em
certa altura, aparecem também afirmações sobre os novos fatos que Mary descobre ao
deixar sua prisão. Apesar dessas variações, de uma forma ou de outra, a discussão é
consistente, girando sempre em torno da possibilidade de certa mudança na condição
epistemológica de Mary no momento de sua hipotética soltura. Nesse sentido, a alcunha
de ‘Argumento do Conhecimento’ parece justificada.
Uma quarta observação faz-se necessária para esclarecer que a versão do AC
que aparece em Jackson (1982) é diferente da que aparece em Jackson (1986). No artigo
de 1986, Jackson trata de algumas objeções que foram feitas ao AC logo numa primeira
onda de reações à publicação de Epiphenomenal Qualia. Para tentar desfazer certos
equívocos, ele acaba por reformular seu argumento original. Dessa vez, Jackson
apresenta o caso de Mary em termos de ‘fatos físicos’, ao invés de apresentá-lo em
termos de ‘informação física’. Em consequência disso, o AC ganha uma nova
expressão. O raciocínio agora é o seguinte:

(1)' Mary (before her release) knows everything physical there is to


know about other people.
(2)' Mary (before her release) does not know everything physical there
is to know about other people (because she learns something about
them on her release).
Therefore,
(3)' There are truths about other people (and herself) which escape the
physicalist story (JACKSON, 1986, p. 293).

Embora Jackson entenda que essa versão do AC estabelece o seu ponto de forma
mais convincente, minha impressão é de que ocorre exatamente o contrário. Se na sua
primeira versão o argumento recebia as críticas dos fisicalistas, agora ele enfrentará
objeções tanto de fisicalistas quanto de céticos acerca de outras mentes. Em razão disso,
considero que essa reformulação torna o argumento mais frágil. Assim, neste artigo, vou

261
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

deixar de lado essa versão do AC para me dedicar unicamente a sua primeira versão, a
qual me parece mais frontal.
Uma quinta e última observação sobre o AC é a de que ele é muito convincente
para quem não esteja guarnecido de certas precauções filosóficas, e que, mesmo para
muita gente que discorda de sua conclusão, não é nada fácil mostrar onde ele tropeça.
Isso parece ser uma consequência da sua evidente simplicidade. Se analisarmos a
instância do AC apresentada acima, reconheceremos sem dificuldade que a derivação de
C1 a partir de P2 e P3 é trivial. De fato, essa passagem pode ser vista como uma
instância do silogismo Baroco (Premissa maior: toda informação física sobre cores é
possuída por Mary em seu quarto; premissa menor: alguma informação sobre cores não
é possuída por Mary em seu quarto; conclusão: alguma informação sobre cores não é
informação física sobre cores). Outrossim, a derivação de C2 a partir de P1 e C1 é
imediata. Dessa forma, se há um problema com o AC, ele não parece ser devido a um
simples erro de inferência. Destarte, a única opção disponível para quem discorda do
resultado do AC é tentar mostrar que alguma de suas premissas é falsa ou ambígua.
Efetivamente, é isso que farão os que contestam o argumento.

3. O que há de errado com o AC

Como já anteriormente mencionado, desde sua primeira aparição em 1982, o


argumento do conhecimento de Frank Jackson tem suscitado grande interesse e várias
tentativas de neutralizá-lo têm sido feitas. Nesta seção quero, primeiramente, fazer um
rápido levantamento dessas tentativas, indicando em cada caso por que me parece que a
crítica não é exitosa. Farei isso de forma rápida e esquemática porque meu principal
interesse é apresentar uma objeção específica que me parece realmente fatal. Para
facilitar a conferência dessas diferentes objeções, é conveniente dividi-las da seguinte
forma:

a) Objeções à premissa (2)

Não há muitas críticas à premissa (2), uma vez que ela é vista, em geral, como
uma estipulação, e entende-se que o autor tem liberdade para estipular como é ou deixa
de ser o caso que ele mesmo está imaginando. Esse é o procedimento padrão quando
apresentamos um experimento de pensamento. Escolhemos os traços gerais que a

262
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

situação imaginária deve ter e pedimos para o ouvinte/leitor imaginá-la assim. Se aquilo
que o autor nos pede não é absurdo, ele está autorizado a pedi-lo.
Contudo, há quem defenda que Jackson nos pede demais quando nos pede para
imaginar que Mary tinha toda a informação física sobre cores no seu quarto preto e
branco. Dennett, por exemplo, argumenta que não é claro qual seria a extensão do
conhecimento de um ser humano que possuísse toda informação física sobre cores. Ele
afirma que “it's hard for anyone to imagine the consequences of someone knowing
absolutely everything physical about anything!” (DENNETT, 1991, p. 400). Talvez
fosse até o caso que tal pessoa pudesse conceber como são as cores que nunca viu ou
pudesse alcançar pelo menos aproximações1. De fato, Dennett insiste que seria plausível
imaginar Mary saindo de seu quarto sem ficar nem um pouco surpresa com as coisas
coloridas que veria. Por essa razão, é tentador pensar que a crítica de Dennett é dirigida
contra a premissa (3), mas essa não é forma correta de entender sua argumentação. Na
verdade, o problema para ele está na premissa (2), no fato de que não podemos conceber
exatamente o que ela descreve, o que nos impede também de saber o que ela implica.
A meu ver, essa crítica perde o ponto, pois só teríamos uma razão para recusar a
premissa (2) se tivéssemos razão para acreditar que ela é um contrassenso. Dennett não
nos dá uma razão para acreditar nisso; o que ele faz é evidenciar que não conhecemos os
detalhes acerca da condição epistemológica de uma pessoa que tem toda informação
física sobre determinado tópico. Isso é uma deficiência nossa e não implica logicamente
que o cenário seja impossível. Se ele é possível, podemos supor que a premissa (2) é
verdadeira e avaliar a premissa (3) de acordo com as nossas intuições.
Outra crítica feita à premissa (2) é a de que ela é ambígua, posto que o termo
‘informação física’, que ocorre nela, também é ambíguo. Horgan (1984) contém uma
crítica desse tipo. O argumento é que ‘informação física’ pode significar tanto
‘informação científica’ (‘informação explicitamente física’, na terminologia de Horgan)
como ‘informação sobre o mundo físico’ (‘informação ontologicamente física’, na
terminologia de Horgan). Horgan admite que a estória de Mary dá suporte à primeira
leitura, mas sustenta que a tese fisicalista expressa na premissa (1) deveria ser entendida
com base na segunda leitura. O seu veredito é então que o ataque do AC ao fisicalismo
“is fallacious, being an equivocation on two different senses of the phrase ‘physical
information’” (HORGAN, 1984, p. 149).

1
Paul Churchland envereda por uma linha argumentativa semelhante em Churchland (1985, p.
25-6).
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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Jackson não deu muito importância à crítica de Horgan, dedicando a ela apenas a
nota 1 do seu artigo What Mary Didn't Know, de 1986. Nessa nota, ele esclarece que sua
compreensão do fisicalismo é de que ele implica que, se alguém soubesse tudo o que
pode ser expresso em linguagem explicitamente física, essa pessoa saberia tudo. Com
esse esclarecimento, Jackson dá a entender que o termo ‘informação física’ tem uma
única leitura possível em todas as proposições do AC, a saber, a leitura na qual
‘informação física’ significa ‘informação científica’. Isso é suficiente para rebater a
crítica de Horgan de que o AC é uma instância da falácia de quatro termos. Há, porém,
um ponto da crítica de Horgan que, a meu ver, não é respondido adequadamente pela
nota de Jackson. Vou falar mais sobre isso no final desta seção.
Uma última crítica à premissa (2) é aventada em Van Gullick (2004). A
acusação agora é de que, à luz de certa hipótese, a premissa ocultaria um disparate. O
raciocínio é o seguinte: se a experiência de cores é a única forma de obtermos certo tipo
de informação física sobre cores, uma situação em que S tem toda informação física
sobre cores é logicamente incompatível com uma situação em que S nunca viu outras
cores além de variantes de preto e branco.
Outra vez, o problema aqui é que o argumento depende de uma hipótese que
Jackson não é obrigado a aceitar. Se ‘informação física’ significa ‘informação
científica’, então a situação em que Mary tem toda a informação física sobre cores é
uma situação em que ela domina uma teoria completa das cores assim como uma teoria
completa do processamento neurofuncional das cores. E, uma vez que Jackson sustenta
que quem tem toda informação física sobre x sabe tudo o que há para saber sobre x de
um ponto de vista físico, Mary pode carecer de certas experiências de cores e ainda
assim ter toda informação física sobre cores. Em suma, não há nenhuma contradição
oculta na premissa (2). É verdade que alguém poderia querer levantar uma objeção
contra a acepção que Jackson dá à noção de informação física, mas, nesse caso, a crítica
já não seria de que a premissa (2) oculta um contrassenso, mas de que o uso que Jackson
faz de ‘informação física’ não é adequado.

b) Objeções à premissa 3

A premissa (3) do AC, apesar de ser muito plausível prima facie, é


provavelmente ainda mais questionada que a premissa (2). Como é possível que Mary
não aprenda nada sobre cores ao sair de seu cativeiro? É essa questão que todo crítico da

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

premissa (3) precisa responder. As mais célebres respostas a essa questão foram
oferecidas em Nemirow (1980), Lewis (1983) e Churchland (1985)2. Aqui vai um
resumo delas, juntamente com algumas considerações sobre sua pertinência.
Os artigos de Laurence Nemirow e David Lewis lançam as bases de uma
importante crítica ao AC que veio a ser conhecida como hipótese da habilidade.
Segundo essa posição, Mary não ganhará informação nova sobre cores se vier a escapar
do seu confinamento, ela só ganhará novas habilidades. Nemirow, comentando as ideias
de Nagel sobre a consciência, repele a tese de que compreender uma experiência seja
uma questão de apreender fatos. Para ele, isso é antes uma questão de adquirir certas
habilidades. Lewis, por sua vez, desenvolve essa ideia e apresenta a hipótese da
habilidade da seguinte forma:

Our proper answer, I think, is that knowing what it’s like is not the
possession of information at all. It isn’t the elimination of any hitherto
open possibilities. Rather, knowing what it’s like is the possession of
abilities: abilities to recognize, abilities to imagine, abilities to predict
one’s behavior by means of imaginative experiments (LEWIS, 1983,
p. 131).

Nessa formulação, fica claro como a resposta da habilidade pretende solapar a


plausibilidade da premissa (3) do AC. Mary não obterá informação nova se sair do seu
quarto porque não há tal coisa como informação sobre qualia, o que há é a experiência
com sua base neurofisiológica e as habilidades que advêm dela.
Para tornar mais persuasivo o seu ponto de vista, Lewis nos pede para imaginar
três tipos de máquinas: uma que armazena e faz operações com informações, outra que
produz um template a partir de um exemplo e o usa para reconhecer padrões
semelhantes, e uma terceira que trabalha das duas formas, usando informações e
templates. Ele ressalta então que, nesse terceiro caso, a máquina não usa informação
para fazer templates de padrões a que ela nunca foi exposta. Dessa forma, ela pode ter
informação sobre um padrão sem ter o template consentâneo, caso em que carecerá de
uma habilidade e não poderá reconhecer o padrão. Se ela vier a ser exposta ao padrão,
produzirá o template adequado e ganhará a habilidade de reconhecer o padrão, mas não

2
Apesar de ter sido motivado por uma controvérsia iniciada em Churchland (1985), Churchland
(1989) não mira mais na premissa (3); de fato, nem mesmo visa o AC apresentado em Jackson
(1982), mas a versão revisada oferecida em Jackson (1986). Como minha intenção é revisar
algumas das principais objeções à versão original do AC, não vou me deter em Churchland
(1989).
265
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

ganhará nova informação. Para Lewis, nós podemos ser essas máquinas. Mary,
especificamente, ilustraria o caso de alguém que, por um tempo, tem a informação sobre
cores, mas não tem o template. No dia de sua fuga, ela tem a experiência, produz o
template e adquire as habilidades de reconhecer, lembrar e imaginar novas cores, mas
com isso ela não ganha informação nova sobre cores.
A analogia de Lewis não é propriamente uma explicação de como adquirimos
novas habilidades, mas é algo que injeta intuições. O problema principal com ela é o
problema comum a todas as analogias: não há garantias de que a coisa a ser explicada
seja mesmo semelhante ao exemplo em seus aspectos essenciais. Mas concedamos que
somos de fato como a terceira máquina descrita no parágrafo anterior. Uma questão
emerge imediatamente: o que é o template? Lewis não dá detalhes. Não obstante, se se
trata de fato de algo similar a um template, e se Mary adquire um desses quando, por
exemplo, contempla o céu azul pela primeira vez, então provavelmente trata-se de um
modelo de azul (uma amostra de azul, um espectro de matizes de azul, um padrão de
ativação neuronal?). Nesse caso, por ocorrência de sua evasão, Mary não adquire apenas
uma habilidade, mas, antes de tudo, um tipo novo de representação que lhe confere
certas habilidades. Seja como for, é certo que o template é alguma coisa diferente de
uma habilidade, e pode-se argumentar que Mary adquire um conhecimento novo sobre
cores ou uma informação nova sobre cores justamente porque adquire conhecimento ou
informação sobre esse template. Mas se é assim, a premissa 3 do AC está correta. A
alegação de que Mary adquire novas habilidades deixa incólume a verdade da premissa
3 dado que a aquisição dessas habilidades parece depender da aquisição de um novo
conhecimento. Deve-se notar, porém, que, se o template é um padrão de ativação
neuronal, Mary já tinha conhecimento de sua estrutura em seu cárcere, ela só nunca o
instanciara; de todo modo, quando o instancia, ela não fica sabendo nada de novo sobre
seu processamento neuronal da cor experienciada. Defensores da hipótese da habilidade
podem argumentar assim. A réplica do defensor do AC, no entanto, pode ser a seguinte:
quem responde que Mary adquire uma nova informação quando vê azul pela primeira
vez pensa assim porque considera que a informação nova de Mary é sobre a aparência
do azul, não sobre qualquer representação neuronal do azul. Essa informação é
essencialmente distinta de qualquer informação sobre o funcionamento do cérebro de
Mary, e nada na defesa da hipótese da habilidade fornece qualquer razão para

266
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

abandonarmos essa intuição. Por essa análise, pode-se concluir que a hipótese da
habilidade não é suficiente para refutar o AC 3.
Churchland (1985) apresenta uma objeção contra a premissa (3) que poderíamos
chamar de resposta dos modos de conhecimento 4. A objeção é inspirada nas sugestões
anteriores de Nemirow e Lewis, ainda que tente ultrapassá-las em abrangência. Na
leitura de Paul Churchland, a essência da objeção da habilidade é a constatação de que o
AC explora uma ambiguidade de ‘knows about’, o que o tornaria uma falácia de
equivocação. Na premissa (2), quando se diz que Mary sabia tudo que se pode saber de
físico sobre cores, a expressão ‘sabia ... sobre’ indica conhecimento proposicional,
enquanto que, na premissa (3), quando se assevera que Mary não sabia tudo sobre cores,
a expressão ‘sabia ... sobre’ indica conhecimento do tipo know how. Ou seja, o novo
conhecimento de Mary é apenas uma habilidade, não é conhecimento proposicional, de
modo que (2) e (3) não suportam a conclusão de que o novo conhecimento de Mary não
é físico. Churchland observa, porém, que essa equivocação não depende de uma
dicotomia entre conhecimento proposicional e conhecimento performativo, mas do fato
de que podemos saber uma mesma coisa de muitos modos. A situação não é dual, mas
plural. Isso ocorre porque podemos recorrer a diferentes formas de representação para
representar os mesmos fatos. Baseado na ideia de que o cérebro dispõe de diferentes
meios de codificação de informação, Churchland sustenta que o que ocorre por ocasião
da soltura de Mary é que ela adquire uma nova forma de representar informações sobre
cores, uma forma de representação não proposicional que consiste em padrões de
ativação do córtex visual, algo que só está disponível para quem já tem familiaridade
com as cores do mundo. Ocorre que a aquisição dessa nova forma de representação não
dá a Mary um novo conhecimento sobre cores, mas apenas um novo meio de
representar as informações sobre cores que ela já tinha em forma proposicional. A
conclusão, portanto, é de que a premissa (3) do AC é falsa.
Mais uma vez, na minha opinião, a linha de argumentação mais viável para o
defensor do AC parte da observação de que a intuição responsável pelo nosso impulso
de assentimento à premissa (3) é uma intuição sobre o que Mary fica sabendo sobre a
aparência das cores. É verdade que as cores que passam a ser percebidas por Mary
precisam ser representadas em seu cérebro, mas isso não é tudo, também é verdade que
3
É claro que numa discussão mais aprofundada da hipótese da habilidade, outras alternativas de
defesa da hipótese seriam examinadas e ofereceriam novos desafios para o defensor do AC.
4
Outra possibilidade é denominá-la de ‘hipótese da familiaridade’ (‘acquaintance hypothesis’),
como aparece em Nagasawa, Ludlow & Stoljar (2004).
267
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

tais cores terão certa aparência quando vistas por ela. É essa aparência que, antes, a
despeito de seu extraordinário cabedal de informação física, Mary não conhecia e agora
conhece. Se é assim, a alegação de que Mary pode recorrer a novas formas de
representação neural de cores a partir de sua evasão não é suficiente para falsear a
premissa (3). A nova forma representacional que é disponibilizada para Mary pela
experiência vem junto com o conhecimento da aparência dessa mesma experiência.
Dessa forma, o AC se mantém.

c) Objeção à premissa 1

A objeção à premissa (1) ficou por último porque, a meu ver, ela é a única que
realmente pode solapar a força do AC. Este é o momento de retomar um ponto mais
tenaz da objeção apresentada em Horgan (1984), precisamente aquele ponto que,
conforme mencionei, não foi adequadamente tratado por Jackson. Um ponto de Horgan
contra o AC era de que ele derrapava ao fazer um uso ambíguo do termo ‘informação
física’. Esse ponto é rechaçado por Jackson da forma mais sumária possível, ao indicar
que o termo sempre se refere à informação expressa ou exprimível em linguagem
científica; nos termos próprios deste artigo, para Jackson, ‘informação física’ significa
univocamente ‘informação científica’ (‘informação explicitamente física’, na
terminologia de Horgan). Mas há outro ponto na crítica de Horgan que não recebe de
Jackson a devida atenção, que é este: não é pacífico asseverar que o fisicalismo declara
que toda informação é informação explicitamente física. Talvez alguns fisicalistas
desejem subscrever essa asserção, mas nem todos, talvez nem a maioria. Em outras
palavras, não resta evidente que a premissa (1) do AC deva ser acatada. Com efeito,
como vimos, o próprio Horgan sugere uma caracterização diferente do fisicalismo, uma
pela qual o fisicalismo declara que toda informação é informação ontologicamente
física, vale dizer, informação sobre o mundo físico, havendo informação sobre o mundo
físico que não é informação exprimível em linguagem científica.
Quem dá a caracterização de fisicalismo mais adequada, Jackson ou Horgan?
Mais importante do que dar uma resposta a essa questão, embora haja uma sugestão de
resposta mais adiante, é examinar como o AC se comporta em relação a essas diferentes
concepções de fisicalismo. Por conveniência, chamemos a de Jackson de ‘fisicalismoJ’ e
a de Horgan de ‘fisicalismoH’, e usemos ‘informação científica’ no lugar de ‘informação
física’. Podemos com isso formular uma versão do AC para cada proposta fisicalista:

268
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Versão J:

P1: O fisicalismoJ declara que toda informação é informação científica.


P2: Em seu quarto, Mary tinha toda informação científica sobre cores.
P3: Em seu quarto, Mary não tinha toda informação sobre cores.
C1: Existe informação sobre cores que não é informação científica (de P2 e P3).
C2: O fisicalismoJ é falso (de P1 e C1).

Versão H:

P1: O fisicalismoH declara que toda informação é informação científica.


P2: Em seu quarto, Mary tinha toda informação científica sobre cores.
P3: Em seu quarto, Mary não tinha toda informação sobre cores.
C1: Existe informação sobre cores que não é informação científica (de P2 e P3).
C2: O fisicalismoH é falso (de P1 e C1).

Está claro que a versão H não prova a falsidade do fisicalismoH uma vez que,
nela, P1 é falsa. Se consertássemos P1, escrevendo que o fisicalismoH declara que toda
informação é informação ontologicamente física, não poderíamos mais derivar C1,
tampouco C2, de modo que o fisicalismoH permaneceria intocado pelo argumento.
Desse modo, a conclusão é de que o AC é absolutamente inócuo para o fisicalismoH.
A versão J, por outro lado, até onde percebo, é uma refutação contundente do
fisicalismoJ. Desde que essa é a versão pretendida por Jackson, pode-se dizer que ele
conseguiu montar um argumento que funciona. Um grande inconveniente, porém, é que
o argumento tem alcance limitado; ele funciona apenas para o fisicalismoJ (isso, é claro,
se considerarmos que as outras objeções ao AC são ineficazes). Outro inconveniente,
vinculado ao primeiro, é que não há qualquer plausibilidade em pensar que era o
objetivo de Jackson montar um argumento de alcance limitado. Como bom dualista que
era, a intenção de Jackson só podia ser a de refutar o fisicalismo integralmente. É claro
que ele pensou estar apresentando uma refutação geral quando apresentou o AC. Nesse
sentido, uma vez que não foi isso que foi apresentado, ele fracassou. O fracasso é ainda
mais evidente quando entramos no mérito da questão sobre qual seria a caracterização
mais apropriada do fisicalismo, a de Jackson ou a de Horgan.

269
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Horgan tem um ponto contra a caraterização de Jackson que é difícil de


contestar. Suponha que Mary sai do quarto pela primeira vez e, ao ver tomates maduros,
profere a seguinte sentença: “Seeing ripe tomatoes has this property”, “where ‘this
property’ is used to designate the colour-quale that is instantiated in her present
experience” (HORGAN, 1984, p. 151). Acontece que essa sentença não transmite
informação explicitamente física, uma vez que Mary não a aprendeu em seu quarto,
onde ela tinha toda informação explicitamente física sobre cores. Não obstante, se
qualia são propriedades físicas, podemos dizer que a sentença contém informação
ontologicamente física, isto é, informação sobre itens do mundo físico. Se é assim, há
informação física que não é informação explicitamente física, e não parece razoável
caracterizar o fisicalismo como a tese de que toda informação é informação
explicitamente física. Por que o fisicalismo deveria descartar informações físicas como
a da sentença proferida por Mary? Aqui, entretanto, um objetor poderia fazer a seguinte
observação: não é admissível assumir que a sentença contém informação física, dado
que é duvidoso que qualia sejam propriedades físicas. A isso deveríamos responder:
pode até ser duvidoso que qualia sejam propriedades físicas, mas quem escolhe
caracterizar o fisicalismo como a tese de que toda informação é informação
explicitamente física, parece assumir que nenhum outro tipo de informação pode ser
física, o que implica em assumir que a sentença de Mary contém informação não física,
ou seja, implica em assumir que informação sobre um quale de cor é informação não
física. O problema é que um defensor do AC não pode assumir isso, posto que é isso
que o argumento quer provar.
Em face desses argumentos, a coisa mais sensata a fazer seria mesmo adotar
uma concepção de fisicalismo mais abrangente, vale dizer, uma concepção na qual a
noção de informação física é mais inclusiva. Pelo exemplo de Horgan, vemos que essa
noção não é a de informação explicitamente física, pois, pelo menos hipoteticamente, a
sentença de Mary contém informação ontologicamente física, mas não contém
informação explicitamente física. Per contra, é evidente que toda informação
explicitamente física é informação ontologicamente física, é informação sobre o mundo
físico. Dessa forma, a noção de informação ontologicamente física impõe-se como a
mais inclusiva, e o fisicalismoH, como o mais abrangente.
Conclui-se, assim, que o que realmente debilita o AC é a premissa 1. Com ela, o
AC prova apenas a falsidade do fisicalismoJ, mas nem sequer arranha o fisicalismoH, o

270
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qual, no final das contas, parece de fato constituir a concepção mais razoável de
fisicalismo.

4. Conclusão

Apesar das considerações anteriores, não quero encerrar esta discussão pondo
em relevo o fracasso do AC em cumprir o que se espera dele. Pelo contrário, nestes
últimos parágrafos enfatizarei dois pontos positivos do AC, um que diz respeito ao que
ele demonstra atualmente, e outro que concerne a algo que ele pode nos ajudar a
compreender através de uma de suas conclusões.
Apesar do que foi sustentado no final da seção anterior, é quase certo que ainda
haverá fisicalistas que adotarão o fisicalismoJ. É concebível que o próprio Jackson tenha
tal visão do fisicalismo pelo fato de essa ser a visão professada por muitos fisicalistas.
Isso ocorre porque gostamos de pensar na ciência como uma forma sistemática de obter
informação sobre tudo o que existe. Aceitar que há informação física que não é
explicitamente física equivale a aceitar que há informação que não podemos obter pela
via da ciência. Aparentemente, para as consciências mais suscetíveis, o pensamento de
que há tal limite para a ciência é intolerável.
O AC, mesmo com todas as suas limitações, pode ser um remédio contra essa
forma exagerada de estimar os poderes da ciência. Se reexaminarmos a versão J do AC,
veremos que uma consequência trivial de C1 é a de que há informação que não é
informação científica. Essa consequência é obtida independentemente do que venhamos
a pensar sobre a natureza dessa informação, seja ela é física ou não. Ora, se há
informação que não é informação científica, então a ciência não pode nos contar a
história toda sobre o mundo. Em particular, a ciência não pôde dar a Mary o azul do
céu, ou o vermelho dos tomares maduros, e talvez não possa efetivamente nos dar o
quale de experiência alguma. Talvez seja como Einstein disse uma vez, a ciência não
nos dá o gosto da sopa. Apontar para essa conclusão é um mérito do AC que não
deveria ser subestimado.
Essas observações me trazem ao segundo ponto positivo do AC que quero
ressaltar. O ponto é que o AC nos conduz a essa constatação de que a nova informação
obtida por Mary não é informação científica e, a partir dessa constatação, podemos
raciocinar assim: muito bem, a informação nova de Mary não é do tipo que a ciência dá,
sendo, por outro lado, do tipo que a experiência dá; mas por que isso é assim? Por que a

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

ciência não pode entregar essa informação que a experiência entrega? Vamos chamar
esse tipo de informação de informação fenomênica. Com a adoção desse rótulo, a
questão pode ser reformulada da seguinte maneira: o que há na informação fenomênica
que a coloca fora do alcance da ciência?
Tenho investigado essa questão há algum tempo e pretendo apresentar minhas
conclusões em breve em outro artigo. No momento, o que posso dizer é que a
investigação exigiu de mim uma análise da estrutura da aparência5. O primeiro passo
dessa análise foi a observação de que a informação fenomênica, como qualquer
informação, precisa de uma estrutura representacional (um medium) onde possa ser
codificada. Ora, o que poderia constituir a estrutura representacional da informação
fenomênica senão as qualidades que dão às nossas experiências a aparência que elas
têm, a saber, os qualia? De fato, essa é a primeira sugestão que gostaria de fazer no
momento, os qualia constituem a estrutura representacional da informação fenomênica.
Uma segunda sugestão é a de que um sujeito de experiência só pode tomar consciência
de uma informação fenomênica se estiver consciente da sua estrutura representacional.
Ora, estar consciente dos qualia de uma experiência equivale a estar consciente da
aparência dessa experiência, algo intrinsecamente subjetivo. A partir dessas sugestões,
emerge uma resposta à questão apresentada no final do parágrafo anterior: o que coloca
a informação fenomênica irremediavelmente fora do alcance da ciência é sua estrutura
representacional. Uma vez que essa estrutura tem uma existência puramente subjetiva e
que a ciência lida apenas com a objetividade, segue-se que a ciência não pode e nunca
poderá nos dar informação fenomênica. Seja essa análise correta ou não, o fato é que ela
só se tornou possível graças às visitas que fiz ao quarto de Mary.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHURCHLAND, P. M. Reduction, qualia, and the direct introspection of brain states.


The Journal of Philosophy, Vol. 82, No. 1, 1985, p. 8-28.
_____. Knowing qualia: a reply to Jackson. In: A Neurocomputational Perspective, MIT
Press, 1989.
DENNETT, D. Consciousness explained. Boston: Little, Brown & Co, 1991.
5
A escolha de palavras aqui não é fortuita, sabendo que alguém pode ver nelas uma alusão à
célebre obra de Nelson Goodman, ‘The Structure of Appearance’, de 1951. Lá, como aqui, há
uma preocupação com a noção de qualia, embora a minha compreensão dessa noção divirja da
de Goodman em pontos importantes.
272
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

HORGAN, T. On physical information and qualia. The Philosophical Quarterly, Vol.


34, No. 135, 1984, p. 147-152;
JACKSON, F. Epiphenomenal qualia. Philosophical Quarterly, 32, 1982, p. 127-36.
_____. What Mary didn’t know. Journal of Philosophy, Nº 83, 1986, p. 291-295.
LEWIS, D. Postscript to “Mad pain and martian pain”. In: Philososophical papers.
Volume 1. Oxford: Oxford University Press, 1983, p. 130-2.
LYCAN, W. Perspectival representation and the knowledge argument. In: QUENTIN,
S. & ALEKSANDAR, J. (Eds.). Consciousness: new philosophical perspectives.
Oxford University Press, 2003, p. 384-395.
NAGASAWA. Y, LUDLOW. P, & STOLJAR, D. (Eds.). There's something about
Mary: essays on Frank Jackson’s knowledge argument. MIT Press, 2004.
NAGEL, T. What is it like to be a bat? Philosophical Review, v. LXXXIII, n. 4, p. 435-
450, 1974.
NEMIROW, L. Review of “Mortal questions” (Thomas Nagel). The Philosophical
Review, Vol. 89, No. 3,1980, p. 473-477.
VAN GULLICK, R. So many ways of say no to Mary. In: NAGASAWA. Y,
LUDLOW. P, & STOLJAR, D. (Eds.). There’s something about Mary: essays on Frank
Jackson’s knowledge argument. MIT Press, 2004, p. 365-405.

273
SÃO MEMES REPLICADORES? A CRÍTICA DE SPERBER À
MEMÉTICA1
Gustavo Leal Toledo
Universidade Federal de São João del-Rei
lealtoledo@ufsj.edu.br

RESUMO: A teoria dos memes de Dawkins, Dennett e Blackmore tradicionalmente depende


de entender a transmissão cultural como um processo de replicação similar ao que acontece na
evolução biológica. Muitas críticas foram levantadas contra ela, sendo que uma das mais
conhecidas foi feita pelo antropólogo Dan Sperber. Para este, cérebros diferentes podem criar o
mesmo comportamento usando regras diferentes, de modo que não podemos dizer que esta
semelhança se dá porque um indivíduo passou um meme para outro indivíduo. Deste modo,
memes não seriam replicadores. No entanto, algumas respostas podem ser apresentadas. Em
primeiro lugar, empiricamente não sabemos ainda como informações são guardadas em cérebros
e passadas para outros cérebros. Porém, o mais relevante é que não é preciso entender os
microprocessos cerebrais para utilizar os modelos da Memética, pois ela não depende de uma
completa compreensão dos mesmos.

PALAVRAS-CHAVE: Memética. Dan Sperber. Replicador. Richard Dawkins. Daniel


Dennett.

ABSTRACT: Dawkins, Dennett, and Blackmore's theory of memes traditionally depends on


understanding cultural transmission as a process of replication similar to what happens in
biological evolution. Many criticisms were raised against this theory, one of the best known
being by the anthropologist Dan Sperber. For him, different brains can create the same behavior
using different rules, so we cannot say that this similarity between behaviors happens because
an individual passed a meme to another individual. In this way, memes would not be replicators.
However, some answers can be presented. First, empirically we do not yet know how
information is stored in brains and passed on to other brains. But more relevant, it is not
necessary to understand the micro-processes to use the Memetics models, since its models does
not depend on a complete understanding of them

KEYWORDS: Memetics. Dan Sperber. Replicator. Richard Dawkins. Daniel Dennett.

1
Agradeço o apoio do CNPq e demais entidades através do projeto pelo edital CNPq Nº
28/2018. Uma análise preliminar da crítica de Sperber foi dada na seção 10.1 de minha Tese do
Doutorado e foi apresentada na ANPOF de 2016, no GT de Filosofia da Neurociência, e no X
Encontro de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul. Agradeço às críticas, sugestões e
elogios dos professores Osvaldo Pessoa Junior, Gabriel Mograbi e Paulo Abrantes.
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

O conceito de “meme” foi criado em 1976 por Richard Dawkins no último


capítulo do seu livro O Gene Egoísta (2001). Um meme seria o análogo cultural do
gene, ou seja, ideias, conceitos, comportamentos que passariam de pessoa para pessoa
através de formas de aprendizado social.
O principal “ambiente” dos memes seriam as mentes, em particular a mente dos
seres humanos, pois poucos animais são capazes de aprendizado cultural. Como há um
número limitado de mentes e como em cada mente há um espaço limitado não só no que
diz respeito ao controle do comportamento, mas também no que diz respeito à memória,
então os memes competiriam para “infectar” as mentes. Competição aqui significa
somente que alguns memes seriam mais eficazes em se instalar do que outros, ou seja,
algumas ideias seriam mais comuns do que outras devido à sua adaptabilidade ao
conjunto de mentes, que são o seu principal ambiente.
Com o termo meme, Dawkins propôs que a evolução da cultura seria análoga à
evolução biológica, sendo o meme a unidade que faz o papel de replicador. Assim,
poderíamos estudar esta evolução com modelos da biologia evolutiva e da
epidemiologia. Tal ideia encontrou um de seus principais defensores no filósofo Daniel
Dennett, que defendeu que a evolução é, na verdade, um algoritmo. Deste modo,
podemos tratar os memes como entidades culturais que passam de pessoa para pessoa
através da imitação. Como há um número limitado de pessoas que estes memes podem
“infectar”, então é esperada uma competição entre eles. Se há competição, alguns serão
mais eficazes em se replicar do que outros. Se isso acontece, ocorrerá uma seleção de
memes e, por conseguinte, uma evolução dos memes. Por evolução dos memes entende-
se apenas que cada vez mais os memes serão mais eficazes em fazer cópias de si. O que
é importante aqui é que agora surge a “perspectiva do meme”, ou seja, a visão de que os
memes mais comuns são comuns porque são bons replicadores e isso quer dizer que os
memes, assim como os genes, trabalham em vantagem própria e não em vantagem do
indivíduo2.

2
Está sendo usado aqui o que Dennett chama de “Postura Intencional” (1998). Os memes e os
genes não querem realmente nada, apenas se reproduzem com maior ou menor eficácia, mas
podemos tratá-los como se quisessem. Utilizamos a postura intencional apenas para simplificar
o discurso e torná-lo mais intuitivo. Como Dennett nos mostra, utilizamos esta estratégia a todo
o momento e ela é bem-sucedida quando nos permite prever o comportamento do que estamos
tratando. Deste modo, quando é dito que um meme “quer entrar em uma mente” ou que um
gene “quer ser copiado”, apenas estamos indicando que as mudanças que aumentem a
possibilidade disso que ele “quer” tenderão e se tornar mais comuns.
276
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Baseado nestas ideias, uma nova ciência foi proposta por Dawkins, Dennett e
Blackmore: a Memética. Várias críticas a esta ciência já foram abordadas em outros
lugares, em artigos e apresentações (LEAL-TOLEDO, 2009, 2010, 2013a, 2013b,
2013c, 2014a, 2014b, 2014c, 2016, 2017). O foco deste trabalho é analisar mais uma
delas, criada por Dan Sperber, que parece ir contra o próprio núcleo conceitual da
Memética. Para Sperber, a aprendizagem social não pode ser vista como um processo de
replicação, mas sim como recriação. Neste caso, não há nada que é passado de pessoa
para pessoa e, deste modo, não existiriam os memes.
Normalmente, damos por certo a nossa habilidade de nos comunicar com os
outros e assumimos que quando falamos somos entendidos da maneira que falamos,
pelo menos dentro de certos limites razoáveis. Mais importante ainda, assumimos que o
entendimento originado foi causado pelo que falamos, ou seja, que foi possível passar
uma informação de uma mente para a outra. Esta é a base para entendermos os memes
como informações armazenadas em cérebros que são transmitidas, isto é, replicadas.
Mas Dan Sperber nos diz que o processo de transmissão de informação pode ser muito
diferente de um comunicador ativo transmitindo algo para um receptador passivo. Em
poucas palavras, ele diz que já que o receptador na verdade não recebe a informação,
melhor seria chamá-lo de criador, ou, pelo menos, de transformador.
Normalmente, acreditamos que a informação foi passada porque ela é capaz de
criar o mesmo comportamento em dois indivíduos diferentes. Se um professor diz para
o aluno que “Cabral descobriu o Brasil”, isso faz com que o aluno também tenda a dizer
que “Cabral descobriu o Brasil”. Por isso assumimos que a informação que estava na
mente do professor foi passada para a do aluno. Mas Sperber nos diz que “tipos muito
diferentes de estados mentais podem fazer surgir comportamentos de crença idênticos”
(SPERBER, 1996, p. 89. Minha tradução). Em outras palavras, a informação na mente
do aluno pode ser consideravelmente diferente da que está na mente do professor, mas
ainda assim produzir o mesmo comportamento.
Bonner (1980, p. 107) nos dá um exemplo que é bastante ilustrativo: quando
buzinamos ou ouvimos uma buzina de um carro, podemos assumir muitas informações
diferentes causando o mesmo comportamento. Pode ser “você passou o sinal vermelho”
ou “sua porta está aberta” ou “seu pneu está vazio” ou “obrigado por me deixar passar”
ou “eu também sou de Carangola” ou “sai da frente seu...” etc. De agradecimentos a
xingamentos, todos causam praticamente o mesmo comportamento. Só somos capazes
de distinguir baseados no contexto. Mas se o contexto não mudar muito, seríamos

277
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

praticamente incapazes de saber o que está sendo passado com determinado


comportamento. Como no caso do professor e do aluno. O professor pode entender
muito bem o que significa “Cabral descobriu o Brasil”, mas o aluno pode não entender
nada, mas mesmo assim acertar a questão da prova simplesmente porque decorou a
resposta. Deste modo, Sperber acredita que memes não seriam verdadeiramente
replicadores, pois o mesmo comportamento pode ser ocasionado por diferentes regras.
Concordando com isso, Boyd e Richerson nos dizem:

A informação é transmitida de um cérebro a outro apenas se a maioria


das pessoas induzirem uma regra única a partir de uma dada
performance fenotípica (BOYD & RICHERSON, 2000, p. 155. Minha
tradução).

Uma pessoa tem uma regra mental que origina um determinado comportamento.
Tal comportamento é imitado por outra pessoa, mas pode ser que seja a partir de uma
regra mental completamente diferente. No caso paradigmático que Blackmore e
Dawkins nos deram, onde uma espécie de brincadeira de telefone sem fio é feita, mas
com uma criança ensinando para a outra algum tipo de origami, é bem possível que a
regra mental de uma criança para realizar tal origami seja bem diferente da regra de
outra criança. Assim, esta regra não seria replicada de indivíduo para indivíduo.
Vemos aí um típico problema no qual é importante a resposta de se o que é
copiado é o comportamento ou a informação cerebral, pois se for o comportamento,
então as críticas de Sperber não fazem sentido. O comportamento parece ser replicado
sem absolutamente problema nenhum, é a cópia da regra mental que gera dúvidas. Se
tratarmos os memes como comportamentos ou disposições para o comportamento, então
não há problemas aqui. Se os tratarmos também, como é bastante comum, como
padrões de comportamentos, também não há grandes problemas no fato de que estes
padrões sejam armazenados ou originados de formas diferentes no cérebro. Isso deu
origem ao que poderíamos chamar de “behavioristas meméticos”:

Os behavioristas sugerem que atividades tais como a fabricação de


panelas são equivalentes meméticas dos genótipos, enquanto que os
mentalistas diriam que tais comportamentos são manifestações
fenotípicas de memes-dentro-dos-cérebros (AUNGER, 2006, p. 6.
Minha tradução).

Aunger nos dá Gatherer e Marsden como exemplos de behavioristas meméticos.


No entanto, eles têm que solucionar o difícil problema de que em outros processos de

278
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

aprendizagem não há uma verdadeira cópia do comportamento. Um professor ao


explicar um conceito a um aluno está tentando passar um meme, mas não quer que o
aluno copie o seu comportamento, apenas que ele aprenda aquele meme. Por isso ele diz
que o aluno não deve decorar a resposta, mas sim aprendê-la. Só a versão dos memes
como informação guardada em cérebros precisa responder este desafio e, neste caso, a
resposta pode ser que nenhum dos dois sabe bem como este armazenamento acontece.
O problema verdadeiro é se cérebros diferentes de fato utilizam regras diferentes
para um mesmo comportamento. Dennett (1998), um defensor dos memes, concorda
com Sperber nesta questão, pois não acredita em algo que seria como uma “linguagem
cerebral universal”. Mas esta é uma questão empírica e deve ser tratada futuramente por
experimentos capazes de fazer tal análise em cérebros. Dada a grande semelhança entre
a estrutura e o funcionamento da maioria dos cérebros humanos, pode ser que exista
uma única regra (ou talvez um número bem limitado delas) para cada comportamento.
Mas, na verdade, a própria ideia de regras cerebrais e linguagens cerebrais pode não
fazer muito sentido, como defende Dennett. Sabemos, a partir de estudos com
neurônios-espelho, que a imitação de um comportamento pode se dar de maneira
bastante direta, sem nenhuma necessidade de se tratar tal processo como um tipo de
regra interna (RIZZOLATTI & SINIGAGLIA, 2008).
Neste sentido, foi apresentado em outro lugar uma especulação, que poderia ser
desenvolvida no futuro, de que o substrato físico dos memes estaria diretamente
relacionado ao funcionamento dos neurônios-espelho (LEAL-TOLEDO, 2016, 2017).
Tais neurônios parecem estar na base de nossa habilidade de imitar e também,
possivelmente, na base de nossa linguagem e capacidade de compreender os outros.
Eles podem ser a resposta empírica ao problema de Sperber de como dois cérebros
podem ser capazes de recriar a mesma informação, mesmo que ela não tenha sido
diretamente passada. No entanto, como a descoberta dos neurônios-espelho é muito
recente, qualquer conclusão a favor ou contra seria apressada. Por isso, ela não pode,
pelo menos ainda, ser considerada como uma verdadeira resposta ao problema
ontológico.
A verdade é que, ao tratarmos dos memes como informação armazenada em
cérebros, temos que admitir que conhecemos muito pouco sobre o funcionamento de tal
órgão, tanto para criticar a memética quanto para defendê-la. Em ambos os casos, é
preciso esperar, e qualquer crítica ou defesa feita agora, neste sentido, é apressada. Nem
Blackmore nem Sperber ou qualquer outra pessoa sabem precisamente como a

279
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

informação é armazenada em cérebros e como é transmitida de um cérebro para outro.


Mas, para sorte da Memética, não é preciso que alguém saiba disto para iniciar seus
estudos; ele pode muito bem tratar dos comportamentos e da transmissão dos
comportamentos sem saber como estes surgem nos cérebros. Em um futuro, é claro que
seria importante saber como se dá tal processo. Do mesmo modo, Mendel não sabia
nada a respeito do DNA, mas pôde trabalhar e fazer grandes descobertas a respeito do
modo de funcionamento dos genes sem isso.
No entanto, ainda assim a crítica de Sperber parece atacar o próprio núcleo da
Memética como desenvolvida por Dawkins (2001), Dennett (1990, 1991, 1998a, 1998b,
1999) e Blackmore (1999, 2000), pois, para que os memes façam algum sentido, têm
que ser replicadores, mas, para Sperber, não há replicação no processo de transmissão
da informação.
Curiosamente, como veremos, ele ainda assim defende o que chamou de
“epidemiologia das representações”, mas critica a Memética no que diz respeito aos
seus “microprocessos”, pois discorda que a transmissão se dê através de replicação, com
mutações acidentais; ele também discorda da visão do processo comunicativo como um
processo de codificação que é seguido de uma decodificação de maneira simétrica. Para
ele, “a comunicação humana realiza em geral apenas algum grau de similitude entre os
pensamentos do comunicador e aqueles da audiência” (SPERBER, 1996, p. 83. Minha
tradução). A replicação, deste modo, seria só um caso-limite onde existe uma máxima
semelhança entre a mensagem enviada e a mensagem recebida. Deste modo, a
comunicação não seria um processo de replicação, mas de transformação, tendo a
replicação como um dos seus limites e a total perda de informação como o outro. Não
haveria replicação de informações, mas somente interpretação.
Não vamos entrar aqui no que ele define por representação, pois o que interessa é
esta visão como crítica à Memética entendida como replicação de informação entre
cérebros. Acredito que o próprio Sperber não se oporia a chamarmos sua teoria de
“epidemiologia dos memes”, se fizermos a ressalva que o “microprocesso” envolvido
não é uma replicação dando origem a duas informações semelhantes em cérebros
distintos. Na verdade, a crítica que ele faz é bem comum entre antropólogos, que dizem
que um meme é completamente modificado quando é transmitido entre pessoas. O que
ele significava na cultura passada é praticamente irrelevante para o que significa na
cultura presente. Como nos diz Bloch, “‘Macarrão’ para os italianos é, portanto, algo
muito diferente do que é para os chineses” (BLOCH, 2000, p. 198. Minha tradução).

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Memes não seriam como vírus que são passados entre indivíduos; eles seriam
continuamente feitos, desfeitos e refeitos durante a comunicação.
A única diferença da crítica de Sperber para a crítica comum dos outros
antropólogos é o fato de que eles costumam falar de culturas no modo mais geral,
enquanto Sperber está preocupado com os processos particulares de transmissão. Isto
torna esta crítica muito mais forte. No entanto, é simples entender que do mesmo modo
que “macarrão” pode ter significados diferentes entre italianos e chineses, a mesma
sequência de nucleotídeos pode ter efeitos bem diversos em espécies distintas
simplesmente porque está atuando conjuntamente com outros genes em outro ambiente
(LEAL-TOLEDO, 2016).
Mas, voltando a Sperber, a cultura seria re-produzida, no sentido que é produzida
de novo e de novo, mas não reproduzida no sentido de ser copiada de um para o outro
(cf. SPEBER, 2000, p. 164). Para ele, três condições deveriam ser satisfeitas para haver
uma “real replicação”. Para B ser uma replicação de A: B tem que ser causado por A, B
tem que ser similar em aspectos relevantes a A e, por último, o processo que gera B tem
que obter de A as informações que fazem B ser similar a A. O problema com a
Memética seria esta última cláusula. Neste sentido, a passagem de memes seria
semelhante a uma risada contagiosa, ou seja, o riso inicial causa os outros risos, que são
semelhantes, mas não há realmente a passagem de nenhuma informação. É o que
Blackmore (1999) chamou de “contágio”.
No entanto, se a informação que fez B ser similar a A não veio de A, de onde veio
então? Sperber não está propondo uma grande coincidência cósmica, uma harmonia pré-
estabelecida. Boyd e Richerson, embora concordem com Sperber de que a cultura não
precisa ser necessariamente replicada para ser passada, sabem da necessidade de mais
pesquisas:

Não conseguimos entender detalhadamente como a cultura é


armazenada e transmitida e, por isso, não sabemos se as ideias
culturalmente transmitidas e crenças são ou não são replicadores
(BOYD & RICHERSON, 2000, p. 158. Minha tradução).

Mas há aqui ainda outras questões. Como B pode ser semelhante a A se a


informação que o fez assim não veio do próprio A? De onde surge esta admirável
coincidência? Se cérebros têm um funcionamento parecido, a simples observação do
comportamento de outro pode ser suficiente para inferir, ou seria melhor dizer acionar
ou evocar, a mesma informação nos dois cérebros. Deste modo, houve transmissão de

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

informação, mesmo que não seja da maneira direta. Como nos diz Aunger: “A causa da
similaridade entre a informação nos cérebros de A e de B é o resultado da psicologia
evolutiva, não da memética” (AUNGER, 2000, p. 216. Minha tradução).
A informação não seria passada, mas reconstruída baseada em princípios que
garantem sua semelhança durante todo o processo. Esta resposta, na verdade, pode ser
considerada como uma versão da resposta dada a Blackmore sobre o papel da imitação
na passagem de memes (LEAL-TOLEDO, 2013a): não importa muito se foi por
imitação ou não, importa que o meme foi passado e sabemos que assim o foi porque
quem o recebeu é estatisticamente mais provável de apresentar tal meme do que a média
da população. Sperber, assim como Blackmore, exige um conceito de replicação muito
restrito, onde o meme passado tem que ser quase idêntico ao meme recebido, quando o
importante é só que ele seja mais parecido com a sua fonte do que com a média da
população. Do mesmo modo que Blackmore considera somente a imitação como forma
de transmissão de informação memética – e se esquece que o que importa não é a
imitação exata, mas sim que a informação tenha sido passada –, Sperber se preocupa
apenas com o que causa a similaridade entre os dois comportamentos, quando o que
realmente importa é se tal similaridade existe ou não; seja lá como ela tenha sido
causada.
Podemos lembrar aqui que os microprocessos da transmissão memética que
Sperber está criticando eram desconhecidos por Darwin em relação à transmissão
genética. Este chegou a dizer n’A Origem das Espécies que “as leis que regulam a
hereditariedade são geralmente desconhecidas” (DARWIN, 2004, p. 29). Na verdade,
nem mesmo Mendel compreendia tal transmissão: ao fazer seus estudos de reprodução e
ao analisar os fenótipos, ele pôde tratar dos genes sem nem mesmo saber o que eles
eram de fato. Hoje em dia, não é muito diferente. Sabemos razoavelmente o que é um
gene e como ele é transmitido, mas se vamos descobrir se algum caractere é herdável,
não precisamos fazer uma análise molecular ou observar a fecundação. Ainda se
trabalha com experimentos de reprodução e também com o conceito de herdabilidade
que, nas palavras de Ridley (2006, p. 264), “é a extensão quantitativa na qual a
descendência se assemelha aos seus progenitores, em relação à média da população”.
Uma característica pode ser herdável, mas não ter herdabilidade. Mas o inverso não é
esperado. Se uma característica dos filhos é mais parecida com a dos pais do que com a
média da população, pode-se assumir com razoável tranquilidade que é herdável,
mesmo que não seja por herança genética.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Do mesmo modo, o padrão de comportamento daquele que recebeu a informação


deve ser estatisticamente mais parecido com o padrão de comportamento daquele que
enviou do que com a média da população. Isso é o suficiente para considerar que tal
informação foi passada e, mais importante ainda, é o suficiente para se fazer Memética
se baseando em modelos matemáticos da genética das populações e da epidemiologia.
O problema de Sperber é bem simples: ele considera errado explicar a transmissão
cultural como um caso de replicação, pois haveria sempre transformação neste processo.
Mas com isso ele cria o problema de que tal processo iria transformar a cultura em algo
extremamente caótico, cada pessoa teria sua própria interpretação e não existiria
verdadeira comunicação. Voltemos ao caso da risada contagiosa: uma risada pode
acionar outra risada em outra pessoa, mas por que o que foi acionado é justamente uma
outra risada? Se cérebros funcionam com regras tão diferentes, uma risada poderia
muito bem acionar um choro, ou bocejos, ou raiva, ou, por que não, cambalhotas no ar
ou a produção de artigos científicos? Mas risadas normalmente só acionam outras
risadas.
Para ele, este caos não acontece porque a existência de atratores garante que,
mesmo em um processo de transformação, algumas serão muito mais prováveis do que
outras, garantindo, assim, que praticamente o mesmo comportamento possa ser obtido
através de regras diferentes. Tais atratores seriam em grande parte cognitivos: estruturas
cerebrais biologicamente herdadas por praticamente todos os seres humanos e que
“canalizariam” o processo de transformação.
Para dar um exemplo de tais atratores, ele utiliza o caso dos mitos:

O conteúdo de um mito tende a flutuar (drift) ao longo do tempo de


modo a manter uma memorabilidade máxima. (...) os mesmos temas e
estruturas que ajudam uma pessoa a se lembrar de uma história
parecem torná-la particularmente atraente. (...) Se as condições
psicológicas da memorabilidade e da atratividade são realizadas, é
possível que a história seja bem distribuída (SPERBER, 1996, p. 85.
Minha tradução).

Sperber chega a dizer que um mito parece ter uma vida própria, espalhando-se e
sobrevivendo por conta própria. Para Sperber, então, as tradições mitológicas mais
comuns seriam aquelas mais facilmente lembradas, as que fossem difíceis de serem
lembradas seriam esquecidas ou tenderiam a ser atraídas em direção a formas mais
memoráveis (cf. SPERBER, 1985, p. 86, in: DENNETT, 1998, p. 374). Diferente de
outras crenças, como crenças políticas ou matemáticas, que precisam mais de um

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

determinado ambiente para sobreviver. Ele nos dá também o exemplo da prova de


Gödel: para entendê-la é preciso muita educação, principalmente no que diz respeito à
lógica matemática. No entanto, se tivermos a habilidade de entendê-la, podemos dizer
que “a organização cognitiva humana é tal que não podemos entender tais crenças sem
aceitá-las como nossas” (SPERBER, 1996, p. 97. Minha tradução). Assim, não seriam
só as nossas estruturas cognitivas que serviriam de atratores, mas também as
representações que já possuímos seriam determinantes em relação à possibilidade de
sermos “infectados” por novas representações: “Representações culturais previamente
internalizadas são um fator chave na susceptibilidade a novas representações”
(SPERBER, 1996, p. 84. Minha tradução).
Contra a visão de que a cultura é aprendida por imitação, Sperber nos dá o caso da
linguagem: segundo ele, uma criança não aprende um idioma imitando sentenças que
ouviu, na verdade, a maioria das sentenças nunca vai ser imitada. “Quando canta
‘Yankee Doodle’, você não está tentando reproduzir nenhuma performance passada da
canção” (SPERBER, 1996, p. 104. Minha tradução). Ele diz, baseado em Chomsky, que
usamos tais sentenças que ouvimos como evidências para “evocar” a gramática inata
que será, ela sim, fonte de novas sentenças. Mesmo crianças que ouviram sentenças
completamente diferentes do mesmo idioma serão capazes de evocar a mesma
gramática. Como tal gramática parece ser substancialmente a mesma nas diversas
línguas conhecidas, Chomsky a chamou de gramática universal. Para Sperber, isso seria
explicado pela existência de uma capacidade genética de adquirir linguagem. Deste
modo, ele cria o que chamou de teoria dos atratores:

A similitude entre itens culturais deve ser explicada, em grande parte,


pelo fato de que as transformações tendem a ser predispostas na
direção de atratores no espaço de possibilidades (SPERBER, 1996, p.
108. Minha tradução).

No entanto, é fácil perceber que o que ele aqui chamou de atratores foi chamado
de ambiente pela memética. O ambiente, de certa maneira, direciona ou canaliza o
desenvolvimento memético. B não precisa ter tirado de A as características que o faz
semelhante a este, ele pode ter tirado do próprio processo. Se tivermos a constância de
que este processo tende a produzir B a partir de A, não precisamos de mais nada. Se
cérebros reconstroem as informações através da observação do comportamento de outro
indivíduo, então eles não precisam receber esta informação diretamente.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Em outras palavras, a informação que fez B ser semelhante a A não precisa ter
vindo de A, como Sperber defende, pois pode ter vindo do próprio ambiente, no caso,
do próprio cérebro humano. Ou melhor, pode ter vindo do próprio processo de
replicação. Acontece que, em um processo que leva de A a B, pode ser que as regras de
tal processo sejam bastante restritivas, de modo que, dada a condição inicial A, tais
regras levam a B. Tais regras, no caso da Memética, seriam regras cognitivas para a
interpretação do comportamento dos outros.
Voltando ao caso de Chomsky, podemos ver que este é um perfeito exemplo do
que foi dito acima: a restrição das regras garante a transmissibilidade. Dado um número
mínimo de sentenças que uma criança ouve, as regras do aprendizado da linguagem
evocam a gramática universal. Do mesmo modo, B não precisa ter tirado de A as
características que o faz semelhante a este, ele pode ter tirado do próprio processo. Se
tivermos a constância de que este processo tende a produzir B a partir de A, não
precisamos de mais nada para utilizar modelos meméticos.
Assim, em relação à crítica de Sperber de que regras não são copiadas, pois o
mesmo comportamento pode ser originado de muitas regras, podemos lembrar que para
que seja possível aplicar a esta transmissão memética um modelo epidemiológico ou de
genética das populações, basta que o indivíduo que está recebendo o meme tenha maior
probabilidade de expressá-lo no futuro do que a média da população. Ou seja, basta que
tratemos com o conceito de herdabilidade. Se o processo de aprendizagem causa uma
diferenciação estatística aumentando a probabilidade, em relação ao resto da população,
do indivíduo recebedor do meme utilizá-lo em seu comportamento, de modo a passar
este meme adiante, então temos herdabilidade e, por consequência, podemos usar os
modelos matemáticos da biologia para tratá-los. Podemos fazer Memética.
Deste modo, vemos que o problema é muito menor do que aparenta ser. Parece
óbvio o suficiente que alguém que assistiu uma aula ou conversou com uma pessoa ou
mesmo leu um livro tem maior chance de repetir a informação contida neles e passá-la
para outros do que um do mesmo grupo, mas que não teve a mesma experiência. Se este
é o caso, então é suficientemente seguro dizer que o meme foi passado, ou seja, foi
herdado, foi replicado. Esta solução parece indicar que, ao menos inicialmente,
devemos deixar de lado a distinção de Blackmore (1999) entre “copiar a regra” e
“copiar o produto” e tratar a Memética de um modo mais próximo do Behaviorismo
Memético, deixando a questão de Sperber de se comportamentos iguais implicam em
regras mentais iguais para ser discutida e solucionada pela neurociência no futuro. A

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Memética pode simplesmente ser feita sem solucionar este problema, basta a
constatação da herdabilidade cultural.
Deste modo, fica claro que o que Sperber está defendendo não é substancialmente
diferente do que a Memética defende, e ele mesmo admite que estas duas explicações
para a semelhança cultural – a dos atratores e a selecionista –, não são excludentes (cf.
SPERBER, 1996, p. 108). A disputa aqui é só como se dá o microprocesso da passagem
de informação, se ele é direto ou indireto; mas o relevante é que tal passagem se dá. O
macroprocesso de Sperber não é diferente do da Memética, e não é sem motivo que os
dois tratam a cultura através da epidemiologia.

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163-174.

287
A ABORDAGEM FILOGENÉTICA DA MENTE NO
NATURALISMO BIOLÓGICO DE JOHN SEARLE
Maxwell Morais de Lima Filho1
Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
max.biophilo@gmail.com

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,


Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!
[...]
Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes,
Como bolhas febris de água, fervendo!
Augusto dos Anjos

RESUMO: Objetivamos explorar neste trabalho a componente evolutiva que perpassa o naturalismo
biológico, teoria proposta pelo filósofo contemporâneo John Rogers Searle como solução ao problema
mente-corpo. Inicialmente, traçaremos um panorama histórico a respeito das concepções evolutivas de
Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet (Cavaleiro de Lamarck) e de Charles Robert Darwin. Em seguida,
utilizaremos a distinção delineada por Ernst Mayr entre Biologia Evolutiva e Biologia Funcional para
defender que Searle está comprometido com os dois vieses quando assevera que os fenômenos mentais
são fenômenos biológicos. Por fim, detalharemos a abordagem filogenética da mente no naturalismo
biológico.

PALAVRAS-CHAVE: Problema Mente-Corpo. John Rogers Searle. Naturalismo Biológico. Biologia


Evolutiva. Abordagem Filogenética.

ABSTRACT: We aim to explore in this work the evolutionary component that pervades biological
naturalism, a theory proposed by the contemporary philosopher John Rogers Searle as a solution to the
mind-body problem. Initially, we give a historical overview of the evolutionary conceptions of Jean-
Baptiste Pierre Antoine de Monet (Knight of Lamarck) and Charles Robert Darwin. Next, we employ the
distinction set forth by Ernst Mayr between Evolutionary Biology and Functional Biology to argue that
Searle is committed to both biases when he asserts that mental phenomena are biological phenomena.
Finally, we detail the phylogenetic approach to the mind in biological naturalism.

KEYWORDS: Mind-Body Problem. John Rogers Searle. Biological Naturalism. Evolutionary Biology.
Phylogenetic Approach.

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Professor do Instituto de


Ciências Humanas, Comunicação e Artes (ICHCA), membro do Grupo Linguagem e Cognição
e Co-Coordenador do Grupo de Estudos sobre Evolução Biológica (Geseb) da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL).
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Em um contexto de contraposição ao funcionalismo, Searle (1980a e 1980b)


propôs o naturalismo biológico valendo-se de uma metodologia que privilegiou o
caráter argumentativo, como é praxe na tradição analítica. Posteriormente, ele recorreu
aos aspectos históricos da Filosofia e da Ciência para explicitar a sua posição, mas, em
geral, restringia-se ao século XX, com as notáveis exceções de Descartes e, em menor
proporção, de Darwin. Feita essa ressalva, julgamos ser útil apresentar os trabalhos de
pensadores que, em maior ou menor grau, foram precursores das posições que são caras
ao filósofo estadunidense. Em outras palavras, apesar de não ser necessário recuarmos
muito cronologicamente para vislumbrarmos a proposta de Searle, pensamos ser
proveitoso explicitar o pano de fundo histórico do alicerce evolutivo que subjaz o
naturalismo biológico, razão pela qual iniciaremos expondo, de modo breve, as
perspectivas lamarckista e darwinista acerca da relação entre sistema nervoso e
faculdades mentais.
Primeiro a propor a classificação dos animais em invertebrados e vertebrados –
bem como em distinguir os insetos e os aracnídeos em dois grupos taxonômicos –, o
francês Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet, mais conhecido como Cavaleiro de
Lamarck, também foi um precursor do pensamento evolutivo. Em 1809, ano em que
Darwin nasceu, Lamarck (1963) publicou seu influente livro Philosophie Zoologique,
no qual combate a ideia da fixidez das espécies e defende que as formas mais simples
evoluem e originam os organismos mais complexos, processo esse que ocorre durante
uma vasta escala temporal e tende à perfeição, culminando no homem. Lamarck (2013)
faz questão de enfatizar na Histoire Naturelle des Animaux sans Vertèbres que essa
scala naturae não é uma abstração do pensamento, mas, sim, uma descrição objetiva da
natureza2.
Para o naturalista francês, afirmar que mamíferos são mais complexos do que
infusórios é o mesmo que dizer que aquele grupo é mais perfeito do que este.
Entretanto, como adverte Mayr (1998), essa noção de “perfeição” não diz respeito nem

2 Pimenta (2018, p. 358-9) alega que o naturalista francês se guia pelo seguinte princípio
filosófico para retratar a ordem natural: “[A] distribuição dos animais, dos invertebrados até os
mamíferos, deve reproduzir com exatidão a complexificação progressiva das formas naturais, e
a Taxonomia propriamente dita é tomada como o complemento metódico a esse quadro
histórico da natureza, processo gradual que vai do mais simples ao mais complexo”.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

à adaptação3 ambiental nem ao papel desempenhado na economia da natureza, mas se


relaciona pura e simplesmente à complexidade biológica. Um dos fatores que explicam
essa evolução orgânica é o célebre princípio do uso e do desuso: o uso contínuo de um
órgão tem como consequência o seu desenvolvimento e, inversamente, o seu desuso
ocasiona a sua deterioração e até mesmo o seu desaparecimento, caso sucessivas
gerações deixem de utilizá-lo. Por conseguinte, se uma variação ambiental alterar o
hábito do organismo, isso resultará ou na hipertrofia ou na atrofia de determinado órgão.
Mesmo afirmando que o homem é o mais perfeito dos seres, Lamarck não
agradou a muitos religiosos, haja vista que na sua concepção de perfeição fica exposto o
nosso parentesco carnal com seres “inferiores” como aves, répteis, anfíbios, peixes,
insetos, vermes e protozoários. Além do mais, a explicação fisicalista do pensador
francês não se restringe aos órgãos sensoriais, aos músculos e aos ossos, mas engloba
também os órgãos do sistema nervoso e as faculdades mentais. Como salienta Elliot
(1963), apesar do precário conhecimento sobre a fisiologia do sistema nervoso e de não
se utilizar dos métodos experimentais introduzidos por Helmholtz, Fechner e Wundt, o
naturalista francês se opôs firmemente ao espiritualismo tão em voga no seu tempo. Ele
defendeu uma concepção materialista que hoje classificaríamos como uma espécie de
Psicologia Fisiológica, na qual a noção de alma nada mais é do que uma invenção
daqueles que ignoram as leis da natureza. Nessa abordagem não há espaço para uma
entidade independente denominada alma, já que os fenômenos mentais são efeitos dos
processos neurofisiológicos e a Psicologia é redutível à Neurobiologia 4. Destarte, ele

3 Segundo Caponi (2011a, p. 2), é somente com a publicação d’A Origem das Espécies (1859)
que podemos falar de adaptacionismo, haja vista o lugar secundário que a adaptação das
estruturas biológicas às demandas ambientais ocupa na Teologia Natural e na História Natural
anterior a Darwin: “O adaptacionismo […] é um modo de entender os seres vivos que somente
se impõe como uma necessidade nessa ordem de escassez na qual Darwin transformou a
natureza. Este é um modo de entender os seres vivos que […] não tinha lugar e não tinha por
que tê-lo dentro dessa imagem da natureza que a teologia natural e a história natural anterior a
1859 haviam construído com base na presunção de um plácido, generoso e até tolerante
equilíbrio natural”. Caponi (2011b) também especifica que o que passou a ser conhecido no
século XX por adaptacionismo se originou nesta passagem de Darwin (2018, p. 210): “cada um
dos detalhes da estrutura de todas as criaturas vivas […] pode ser visto como algo que teve
utilidade especial a alguma forma ancestral, ou como algo que tenha atualmente utilidade
especial para alguns descendentes daquela forma [...]”.
4 Lamarck esposava uma visão deísta na qual inexistia qualquer espaço para a noção de alma
imaterial dos seres vivos, como nos ensina Martins (2007, p. 35): “A concepção de Lamarck
pode ser considerada materialista em vários sentidos. Negando a necessidade de qualquer tipo
de alma para explicar a vida, ele reduziu as explicações biológicas ao estudo da matéria e suas
forças. Todos os fenômenos observados nos animais e vegetais devem assim ser explicados por

291
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

julga que o sistema nervoso é responsável pela produção dos movimentos musculares,
das sensações, das emoções e do intelecto, o que denota a atualidade de seu
pensamento.
Charles Darwin acompanhou Lamarck na assunção genérica de que não
precisamos recorrer ao sobrenatural para explicar as faculdades psíquicas humanas.
Compreendemos o porquê quando vislumbramos que o impacto causado com a
publicação d’A Origem das Espécies reverbera até hoje em áreas que transbordam os
limites da Biologia, como é o caso da Filosofia da Mente. Um dos objetivos principais
de Darwin (2018) nesse livro é refutar a tese de que as espécies biológicas foram criadas
separadamente por Deus; para argumentar contra essa assertiva, o naturalista inglês
postula que a seleção natural é o principal agente transformador dos organismos ao
longo do tempo geológico devido à sua capacidade de conservar as variações
promissoras e suprimir as deletérias5. Ele conjecturou que o crescimento numérico dos
organismos seria exponencial se estivessem em condições ideais, mas isso não ocorre
porque a limitação de recursos torna estáveis as populações naturais por gerar uma
competição ferrenha entre os indivíduos – luta pela existência –, na qual somente alguns
sobrevivem.
Se observarmos atentamente, veremos que os indivíduos de uma população são
diferentes no que se refere a muitas características anatômicas, fisiológicas e/ou
comportamentais, e muito dessa variabilidade é transmitida dos progenitores aos seus
descendentes. Isso significa que aqueles que possuírem características favoráveis serão
beneficiados na luta pela existência (elevada probabilidade de sobrevivência), terão
maior chance de procriar (sucesso reprodutivo) e, portanto, de passar tais atributos a
seus descendentes. A sobrevivência desigual dos indivíduos por seleção natural ao
longo de numerosas gerações acarretará a mudança contínua e gradual das populações,
isto é, sua evolução biológica. Podemos representar esse duradouro e paulatino processo
ao imaginarmos uma imensa e frondosa árvore na qual os ramos terminais
correspondem às espécies que já desapareceram (galhos mortos) e às atuais (galhos
vivos), não esquecendo que muitas espécies perecerão (extinção) e que ainda brotarão
novas ramificações (especiação).

causas naturais, sem assumir a existência de entes imateriais. A rejeição de almas (ou do
espírito) torna sua teoria monística”.
5 Utilizamos aqui algumas ideias que foram apresentadas em Lima Filho (2015b e 2017a).

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Isso posto, devemos ressaltar que A Origem das Espécies só menciona


timidamente nossa espécie em seu desfecho, o que levou alguns leitores a concluírem
que a seleção natural não atua sobre a humanidade. No entanto, será que o próprio autor
do livro concordaria com tal chave de leitura? A resposta é negativa, pois a convicção
de Darwin (2000, p. 113) de que estamos sujeitos à seleção natural antecede em mais de
duas décadas a sua obra magna: “Logo que me convenci, no ano de 1837 ou 1838, de
que as espécies eram mutáveis, não pude evitar a crença em que o homem devia estar
sujeito a essa mesma lei”. Portanto, a afirmação de que a seleção natural lançaria luz
sobre a origem humana significava tão somente que o surgimento do Homo sapiens na
Terra não difere em essência do aparecimento dos demais seres vivos.
Devido à sua personalidade cautelosa, o naturalista inglês sentiu necessidade de
compilar por anos a fio dados sobre a nossa espécie para publicar em 1871 A Origem do
Homem e a Seleção Sexual, livro que tem como principal finalidade analisar a
descendência humana a partir de uma forma ancestral. Darwin (2004, p. 10) repudia
veementemente aqueles que consideram tal questão como insolúvel, porque tal
posicionamento resultaria na paralisação do avanço científico:

Escutamos frequentemente a afirmação taxativa de que jamais


chegaremos a desvendar a origem do homem. Cabe lembrar, porém,
que, com frequência maior do que o efetivo conhecimento dos fatos, a
ignorância costuma gerar conclusões definitivas. São os que menos
sabem, e não aqueles que sabem muito, que afirmam, cheios de
convicção, que este ou aquele problema jamais será solucionado pela
Ciência.

Sua posição é que as “características mais marcantes do homem” – que diferem


em grau, mas não quanto ao tipo em relação às demais espécies que possuem faculdades
mentais – devem ser explicadas naturalisticamente por meio da seleção natural. Assim
sendo, por mais acentuados que sejam os nossos poderes mentais, isso não deve
obliterar o fato de que pertencemos ao continuum da natureza, razão pela qual Darwin
(2004, p. 126) criticou abertamente os que pretenderam nos isolar taxonomicamente dos
outros seres biológicos:

Alguns naturalistas, por serem profundamente impressionados com a


capacidade mental e espiritual do homem, dividem o mundo orgânico
em três reinos, o Humano, o Animal e o Vegetal, reservando-nos um
domínio especial. Os poderes espirituais não podem ser comparados
ou classificados pelos naturalistas, mas eles podem empenhar-se em
mostrar, como eu próprio o fiz, que as faculdades mentais do homem e

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dos animais inferiores não divergem em gênero6, embora difiram em


grau, e enormemente.

Especificamente, as faculdades mentais são constitutivamente relacionadas ao


cérebro, motivo pelo qual ele seria “o mais importante dos órgãos”. Se a hipótese de
Darwin (2004, p. 99) estiver correta, esperaríamos encontrar uma correlação positiva
entre cérebros avantajados e faculdades mentais proeminentes, e é precisamente esse
tipo de interdependência que observamos nos primatas:

Enquanto as várias faculdades mentais se iam desenvolvendo, é quase


certo que o cérebro deveria estar-se tornando maior. Creio não haver
quem duvide de que o grande tamanho relativo do cérebro humano,
em relação ao que se observa no gorila e no orangotango, possui
correlação íntima com a superioridade de suas faculdades mentais.

Ora, caso a evolução do mais relevante dos órgãos se deva à mesma “lei” geral
que opera na natureza e o cérebro seja o responsável pelos “poderes mentais
superiores”, a singularidade humana não apenas é compatível, mas também explanável
pela descendência com modificação a partir de formas ancestrais. Em boa medida, são
as faculdades mentais que desvendam o porquê de os seres humanos se distribuírem
pelos mais variados habitat, bem como explicam as modificações que impomos ao

6 Para Ernst Mayr, a rápida evolução do sistema nervoso humano possibilitou o surgimento da
linguagem, da transmissão cultural e incrementou o cuidado parental. Mayr (2008, p. 318)
assevera ainda que a linguagem é exclusivamente humana: “A linguagem não existe entre os
animais. Claro, muitas espécies têm sistemas elaborados de comunicação vocal, mas estes
consistem num intercâmbio de sinais; não há sintaxe sem gramática. Quando se dispõe apenas
de sinais, não é possível relatar a história de acontecimentos passados ou fazer planos
detalhados para o futuro”. O linguista Noam Chomsky concorda com o biólogo alemão no que
diz respeito a esse diferencial humano; ele fundamenta sua teoria da gramática gerativa na
Biologia ao traçar paralelos entre o “órgão da linguagem” e os demais órgãos do corpo,
afirmando que eles são reflexos da expressão genética e consistem em partes de um sistema
corpóreo mais complexo. De acordo com o linguista estadunidense, um cientista marciano que
visitasse nosso planeta teria a impressão, por conta da gramática universal da linguagem, que
todos os humanos se comunicam pela mesma língua, a despeito das variações de “sotaque”
observadas aqui e ali. Não obstante esse caráter biologicizante, Chomsky (1998, p. 17) é
partidário da tese de que a recente evolução da linguagem humana a torna funcionalmente
isolada dos outros sistemas biológicos de comunicação, como os dos insetos e das aves: “A
faculdade humana de linguagem parece ser uma verdadeira ‘propriedade da espécie’, variando
pouco entre as pessoas e sem um correlato significativo em qualquer outra parte”. As biólogas
Eva Jablonka e Marion Lamb (2010, p. 233) seguem o filósofo Ernst Cassirer para defender que
a singularidade humana reside em nosso sistema de herança simbólico, o qual é responsável
pela organização, transferência e aquisição de informações: “Assim como Cassirer, nós
escolhemos os símbolos como traço diagnóstico dos seres humanos, porque a racionalidade, a
capacidade linguística, a habilidade artística e a religiosidade são todas facetas do pensamento e
da comunicação simbólicos”.

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ambiente e o domínio que exercemos sobre outras formas de vida. Darwin (2004, p. 94)
assegura que provêm dessas faculdades as estratégias que nos permitem viver em
ambientes tão inóspitos como o gélido Polo Ártico ou o escaldante Deserto do Saara,
que nos capacitam a domesticar plantas e animais e nos possibilitam subjugar espécies
fisicamente superiores:

Mesmo quando ainda não havia alcançado o seu estado evolutivo


atual, o homem já se havia tornado o animal mais poderoso da Terra.
De lá para cá, vem se espalhando pelo globo mais amplamente do que
qualquer outra forma de vida organizada, dominando a natureza onde
quer que habite. Deve obviamente essa supremacia a suas faculdades
intelectuais, aos seus costumes sociais que o guiam em ajuda e defesa
de seus companheiros, bem como a sua estrutura física. A suprema
importância desses caracteres foi provada pela sua vitória na luta pela
existência.

A Biologia Evolutiva muito progrediu nos séculos XX e XXI, sobretudo com o


auxílio de conhecimentos provindos da Genética, da Bioquímica, da Biologia do
Desenvolvimento e da Ecologia. A despeito desse avanço epistemológico, não
estaríamos longe da verdade se disséssemos que essa área científica, grosso modo,
seguiu os passos naturalistas que permeiam obras como a Filosofia Zoológica, A
Origem das Espécies e A Origem do Homem, mesmo sabendo dos equívocos que já
foram corrigidos e dos novos fatos elucidados a partir de conceitos, de instrumentos e
de experimentos posteriores a Lamarck e a Darwin. De modo sintético, a visão
evolutiva padrão sustenta que devemos explicar naturalisticamente o Homo sapiens7
porque ele integra um contínuo biológico, atitude metodológica essa que se aplica à
mentalidade e, além do mais, explica a razão de ela conferir tantas vantagens biológicas
à nossa espécie. A concepção de Searle8 se apoia nessa mesma linha de argumentação

7 Blanc (1994, p. 15) sustenta que todas as contendas neodarwinistas orbitam ao redor dessa
averiguação: “[A] partir do momento em que admitimos que a espécie humana é uma espécie
entre muitas outras, originadas de animais que a precederam, as leis científicas da evolução e da
origem das espécies estabelecidas para estes últimos devem necessariamente se aplicar à
primeira”. No tocante à transmutação das espécies e à evolução das faculdades mentais, Searle é
um herdeiro longínquo de Lamarck e de Darwin; nesse quesito, o naturalismo biológico é
conceitualmente mais próximo da Teoria Sintética da Evolução, cuja um dos arquitetos foi Ernst
Mayr.
8 Apesar de não ser o nosso foco neste artigo, salientamos que Searle (2012, p. 18) também
sustenta uma visão naturalista acerca da linguagem: “Como seria tratar a linguagem
naturalisticamente, no meu sentido? O primeiro passo seria o que muitos filósofos têm resistido
a dar, isto é, ver a significação linguística – a significação de sentenças e de atos de fala – como
uma extensão de formas de intencionalidade biologicamente mais fundamentais que as que
temos nas crenças, desejos, lembranças e intenções, e ver essas coisas, por sua vez, como

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para negar a existência de almas imateriais, assim como para defender que a consciência
tem um significado evolutivo, é causalmente eficaz e se encontra distribuída em várias
espécies animais.
Searle (2000) considera como posições-padrão filosóficas a existência de um
mundo externo independente, ao qual temos acesso direto através dos nossos sentidos e
sobre o qual podemos fazer afirmações verdadeiras sobre ele, desde que correspondam
aos fatos mundanos. Em realidade, essas pressuposições não são simples “pontos de
vista” e devem antes ser consideradas como o “Pano de Fundo” do pensamento e da
linguagem, pois questioná-las conduziria inevitavelmente ao absurdo. Para Searle
(2000, p. 38-9), as tarefas filosófica e científica só fazem sentido se existir um Universo
“real” que de nós independa e que por nós possa ser conhecido. Como esse mundo
preexiste e é condição de possibilidade para as teorias filosóficas e científicas, seria um
equívoco considerar o próprio realismo externo como sendo uma teoria:

[O] realismo externo não é uma teoria. O fato de existir um mundo lá


fora não é uma opinião que tenho. Pelo contrário, trata-se da estrutura
necessária para que seja até possível defender opiniões ou teorias
sobre coisas como os movimentos planetários. […] O realismo
externo não é uma reivindicação da existência deste ou daquele
objeto, mas sim uma pressuposição da maneira como entendemos tais
reivindicações. […] [O] realismo não é sequer uma teoria, mas sim a
estrutura dentro da qual é possível ter teorias.

Nesse sentido, as teorias científicas pretenderiam descrever verdadeira e


objetivamente o mundo, o qual é de natureza puramente física. Uma característica
compartilhada por diversos naturalistas é a de construir suas concepções filosóficas
tendo como base as atuais teorias científicas. Em certo sentido, Aristóteles9 é um

desenvolvimentos de formas de intencionalidade ainda mais fundamentais, especialmente a


percepção e ação intencional”.
9 Contudo, é necessário sermos bastante cautelosos para não incorrermos em uma interpretação
anacrônica da filosofia aristotélica, como nos previne Everson (2009, p. 225): “Vasculhar os
escritos psicológicos de Aristóteles em busca de uma teoria da mente é correr um risco óbvio de
anacronismo. Embora eles contenham discussões de muitos tópicos capitais da filosofia da
mente contemporânea – como percepção, memória, crença, pensamento e vontade –, há ainda
razão para ter cuidado. O assunto de que ele trata no De Anima e na compilação de obras mais
curtas conhecidas sob o título coletivo de Parva Naturalia é a natureza da psuchê [...] e suas
capacidades – e assim, embora em certo sentido técnico de ‘psicológico’ possa-se dizer que elas
contêm sua teoria psicológica, não é óbvio que elas também articulem sua teoria da mente”.
Portanto, há uma enorme distância conceitual e metodológica que separa Aristóteles dos atuais
filósofos da mente e neurocientistas. Apesar disso, concordamos com Rabello (2014) quando
afirma que a análise aristotélica do processo intelectual tem a vantagem de valorizar o âmbito
material sem abraçar o reducionismo explicativo. A respeito de uma possível relação entre o
Estagirita e o naturalismo biológico, ver Code (1991) e Searle (1991).

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precursor de Searle como realista, como defensor da teoria correspondentista da verdade


e como filósofo naturalista que se fundamenta na Biologia para explicar o problema
mente-corpo. Diferentemente do filósofo estadunidense, contudo, ele advogou o fixismo
das espécies – as quais estariam dispostas, conforme o grau de perfeição, em uma
“Grande Cadeia do Ser” – e adotou uma abordagem cardiocêntrica10. Searle (2006), por
seu turno, é um adepto do cerebrocentrismo – concepção que surgiu com Alcméon de
Crotona11 e se desenvolveu bastante com Willis12 – e da Biologia Evolutiva – que, após
seu início com Lamarck e Darwin, desembocou na Teoria Sintética da Evolução e na

10 A posição aristotélica de que o coração sedie as percepções e as emoções não implica que o
órgão cardíaco também seja a sede do pensamento; supondo hipoteticamente que o fosse (“algo
que Aristóteles nunca disse”), Boeri (2010, p. LXXV- LXXVI) faz a seguinte observação: “a
decadência ou a destruição do coração explana por que não podemos continuar pensando, mas
isso não explica que o pensamento ou a intelecção sejam simplesmente destruídos. A única
coisa que isso ilustra é que o aniquilamento do meio pelo qual se manifesta o pensamento
resulta na perda e, finalmente, no desaparecimento do pensar ou, em outras palavras, o coração
seria a condição necessária dos estados anímicos, mas não pode a eles identificar-se”.
11 Historicamente, o surgimento da concepção que explica a mente a partir do cérebro se deu
com Alcméon, autor de um Tratado da Natureza e responsável pelo desenvolvimento da Escola
Médica Pitagórica. Para Teofrasto, ele foi o primeiro investigador a escudar que a consciência é
uma característica exclusivamente humana e que os demais animais dispõem apenas de
sensações. Desbravador na prática da dissecação e primeiro a esposar uma concepção
cerebrocêntrica, defendeu que o órgão cefálico recebe as informações sensoriais e é tomado por
sede da alma imortal. Como realça Jacquemard (2007), não devemos esquecer que é no interior
da visão pitagórica mais abrangente que se encontra essa concepção metafísico-fisiológica na
qual a alma seria uma vibração da Harmonia que rege todo o Universo. Rooney (2018, p. 11)
assim descreve seu pioneirismo teórico-prático: “O cérebro foi promovido pela primeira vez à
sede do intelecto pelo antigo filósofo grego Alcmeão de Crotona, no século V a.C. Ele foi a
primeira pessoa conhecida a realizar dissecações com a intenção de descobrir como o corpo
funciona. Dissecou o nervo óptico e escreveu sobre o cérebro como centro do processamento
das sensações e da composição do pensamento”.
12 Foi na Inglaterra do século XVII, com as pesquisas de Thomas Willis – médico de Oxford
influenciado pelos ensinos de Hipócrates, Aristóteles, Galeno, Paracelso e Van Helmont – que a
abordagem cerebrocêntrica se consolidou. A vida desse estudioso transcorreu durante um
período atravessado por transformações políticas, guerra civil e avanços científicos que
atingiram, entre outros locais, a região de sua Universidade. Foi exatamente nessa conturbada
época que talentosos filósofos naturais dessa instituição – exemplificados por Robert Boyle,
Christopher Wren, John Wilkins e Thomas Willis – uniram forças para formar o Oxford Club e
a Royal Society. Na opinião de Zimmer (2004), a agitação social, acompanhada da excitação
intelectual, fizera com que o jovem médico se autodecretasse a tarefa de dissecar a alma
humana. Como a investigação anímica não pode prescindir de sua contraparte corpórea, Willis
foi antes de tudo um anatomista que investigou minuciosamente o cérebro. Ele próprio cunhou o
termo Neurologia e é devido às suas relevantes contribuições que não raramente encontramos
nos manuais seu nome associado à origem da Neurociência moderna. Ele chegou à conclusão –
após conduzir acurados estudos com numerosas espécies, inclusive a humana – de que o cérebro
se associa funcionalmente à medula e aos nervos para formar o sistema nervoso, sendo enfática
sua defesa da centralidade do órgão cerebral tanto para o corpo quanto para a alma. Segundo
Monducci (2010), ele descreveu o ser humano como o único animal a possuir duas almas – uma
animalesca (ou corpórea) e outra, racional (que para ele é sinônimo de mente) – no seu livro De
Anima Brutorum Quae Hominis Vitalis ac Sensitiva Est.

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Síntese Estendida nos séculos XX e XXI. Por ser um emergentista, o autor d’A
Redescoberta da Mente considera que tanto a Neurociência quanto a Biologia Evolutiva
se assentam necessariamente no nível mais básico, ou seja, na Teoria Atômica. Sendo
assim, por mais que as teorias atômica, evolutiva e neurocientífica possam ser refutadas
no futuro, já estão estabelecidas o suficiente para figurarem como pano de fundo
científico no estudo da consciência.
O que Searle chama de Teoria Atômica é a convicção genérica de que o
Universo é composto de matéria que se agrupa em níveis cada vez mais complexos
formando sistemas, os quais podem ser subsistemas de sistemas mais complexos.
Destarte, existe o patamar mais elementar constituído por “partículas” subatômicas, as
quais formam átomos, e estes formam micromoléculas, que se estruturam em
macromoléculas etc. Consequentemente, a constituição e a explicação causal dos
sistemas complexos se dão por referência aos subsistemas no sentido de que o
comportamento do micronível elucida o macrofenômeno em questão.
No tocante às outras duas teorias utilizadas pelo filósofo estadunidense, a
distinção proposta pelo biólogo Ernst Mayr13 (1998; 2006 e 2008) entre Biologia
Evolutiva14 (ou Histórica) e Biologia Funcional15 (ou Mecanicista) clarifica o duplo
papel explicativo que as Ciências Biológicas fornecem ao estudo científico da

13 Em Lima Filho (2017b e 2017c), expusemos essa diferenciação antes de discorrermos sobre
a abordagem ontogenética da mente no naturalismo biológico.
14 Essa discriminação também foi feita pelo Prêmio Nobel François Jacob em seu livro A
Lógica da Vida, publicado originalmente em 1970. Jacob (1983, p. 14) descreve a “atitute
integrista” ou “evolucionista” com as seguintes palavras: “Para ela, não somente o organismo
não é dissociável em seus elementos constituintes, como há frequentemente interesse em vê-lo
como elemento de um sistema de ordem superior, grupo, espécie, população, família ecológica.
Essa biologia se interessa pelas coletividades, pelos comportamentos, pelas relações que os
organismos mantêm entre si e com o seu meio. Procura nos fósseis o indício da emergência das
formas que vivem atualmente. Impressionada com a incrível diversidade dos seres, analisa a
estrutura do mundo vivo, procura a causa dos caracteres existentes, descreve o mecanismo das
adaptações. Seu objetivo é especificar as forças e os caminhos que conduziram os sistemas
vivos à fauna e à flora atual”.
15 A “atitute tomista” ou “reducionista” é assim caracterizada por Jacob (1983, p. 14-5):
“Segundo ela, o organismo é sem dúvida um todo, mas deve ser explicado apenas pelas
propriedades das partes. Ela se interessa pelo órgão, pelos tecidos, pela célula, pelas moléculas.
A biologia tomista procura dar conta das funções unicamente pelas estruturas. Sensível à
unidade de composição e de funcionamento que observa atrás da diversidade dos seres vivos, vê
nos desempenhos do organismo a expressão de suas reações químicas. [...] Variando as
condições, repetindo as experiências, especificando cada parâmetro, tenta controlar o sistema e
eliminar suas variáveis. Sua esperança é decompor o mais possível a complexidade, para
analisar os elementos com o ideal de pureza e certeza representado pelas experiências da física e
da química. [...] Certamente não se trata de negar os fenômenos de integração e de emergência.
Sem dúvida, o todo pode ter propriedades que não existem em seus elementos constituintes.
Mas estas propriedades resultam da própria estrutura destes componentes e de sua articulação”.

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consciência no naturalismo biológico. A Biologia Evolutiva geralmente faz perguntas


do tipo “por quê?” na busca das causas distantes que atuaram em populações de
organismos, tendo como intuito elucidar historicamente a existência das características
dos seres vivos; já a Biologia Funcional usualmente empreende questionamentos do tipo
“como?” e se restringe às causas próximas para explicar o desenvolvimento e o
funcionamento das estruturas corporais do organismo individual, como detalha Mayr
(1998, p. 88-9):

As causas próximas dizem respeito às funções de um organismo e às


suas partes, bem como ao seu desenvolvimento, desde a morfologia
funcional até a bioquímica. Por outro lado, as causas evolutivas
históricas, ou causas últimas, procuram explicar por que um
organismo é do jeito que é. Os organismos, em contraste com os
objetos inanimados, têm dois grupos diferentes de causas, pois os
organismos possuem um programa genético. As causas próximas
tratam da decodificação do programa de um indivíduo determinado; as
causas evolutivas tratam das mudanças dos programas genéticos ao
longo do tempo, e das razões dessa mudança.

Sendo assim, podemos vislumbrar dois significados na declaração de Searle de


que a consciência é um fenômeno biológico: enquanto o sentido remoto diz respeito à
evolução da consciência em determinadas espécies biológicas, a noção de causa
próxima se relaciona aos processos embriológicos e fisiológicos que explicam o
funcionamento da consciência no indivíduo. No primeiro caso, estamos diante da
abordagem evolutiva (ou filogenética) da consciência por almejarmos detectar que tipo
de vantagem a atividade consciente confere a uma espécie; já a segunda acepção
caracteriza a abordagem físio-embriológica (ou ontogenética) da consciência por
estarmos interessados em saber como o desenvolvimento embriológico e o
funcionamento do sistema nervoso causam e sustentam a nossa vida mental. Antes de
expormos a abordagem filogenética, convém explicitar o conceito de consciência
adotado no naturalismo biológico.
O filósofo estadunidense afirma que ainda não dispomos de uma definição de
consciência no molde aristotélico de gênero comum e diferença específica16. Porém,

16 Greimann (2015, p. 5) exemplifica a definição aristotélica utilizando o triângulo: figura plana


(genus proximum) com três lados fechados por retas (differentia specifica). Searle (2010a, p. 1)
afirma que “‘consciência’ não admite definição em razão de gênero e diferença ou condições
necessárias e suficientes”. Todavia, Claudio Costa (2006, p. 95) diverge do filósofo
estadunidense ao propor esta definição de padrão aristotélico: “(Df. C): Consciência = produto
experiencial [gênero próximo/condição necessária] verídico [diferença específica/condição
suficiente]”. Como não há consciência sem experiência, esta é necessária àquela, mas não

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Searle (2010c, p. 55) sustenta que seria equivocado paralisar a investigação por conta
disso porque a ausência de uma definição apurada não o impede de propor a seguinte
definição de senso comum:

[A] consciência consiste em estados e processos de sensibilidade ou


ciência [awareness], internos, qualitativos e subjetivos. De acordo
com essa definição, a consciência começa quando o indivíduo
desperta de manhã de um sono sem sonhos e continua até que
adormeça de novo, morra, entre em coma ou fique, de alguma outra
maneira, “inconsciente”.

Dessa maneira, os fenômenos conscientes abarcam os estados e os processos


relacionados à leitura, à sensação tátil, à ansiedade, à memória e à capacidade de
demonstrar um teorema matemático – só para citar alguns exemplos. Contudo, a
consciência também se estende à atividade onírica, isto é, os sonhos também são
fenômenos mentais. Feita essa caracterização da mentalidade, retornaremos ao pano de
fundo científico sobre o qual se edifica o naturalismo biológico.
De acordo com a Biologia Evolutiva, as várias espécies de organismos foram se
originando e se modificando no decorrer do tempo geológico por processos evolutivos
que envolvem, entre outros, o mecanismo de seleção natural. Em uma dessas grandes
linhagens, a dos animais, houve uma tendência à cefalização, na qual alguns organismos
desenvolveram sistemas nervosos complexos o suficiente para causar e sustentar
estados e processos mentais conscientes. Segundo Searle (2006, p. 133), podemos
afirmar categoricamente isso devido à continuidade biológica do ser humano em relação
à natureza, mesmo que atualmente os cientistas desconheçam os detalhes de como os
processos neurobiológicos causam a atividade mental e tampouco saibam afirmar quais
espécies de animais não humanos são conscientes17:

suficiente, haja vista que não estaríamos conscientes quando sonhamos por conta do caráter não
verídico das experiências oníricas. Como defende Costa (2005, p. 10), é importante que as
experiências verídicas se integrem umas às outras, pois “para ser do que realmente é o caso, a
experiência precisa vir coerentemente unificada, integrada a outras”.
17 Searle (2006, p. 133) aceita como fato que animais como golfinhos, babuínos e cães são
conscientes, mas é cauteloso quando afirma que “não sabemos, atualmente, até onde a
consciência se estende para baixo na escala evolutiva”. Aliás, a linguagem por ele utilizada pode
nos levar ao equívoco de que estamos diante de uma “escada” – e não de uma “árvore” –
evolutiva. Searle (2010d, p. 95) se mostra indignado com aqueles que negam de modo
contraintuitivo que animais não humanos – como o seu cachorro Ludwig, por exemplo –
possuam consciência, intencionalidade e pensamento: “chego à minha casa vindo do trabalho e
Ludwig corre para me receber. Ele pula para lá e para cá e balança o rabo. Tenho certeza de
que: (a) ele está consciente; (b) ele está ciente de minha presença (intencionalidade); e (c) essa
percepção produz nele um estado de prazer (processo de pensamento)”.

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A ideia de que seres humanos e outros animais superiores são parte da


ordem biológica como quaisquer outros organismos é básica para
nossa visão de mundo. Os seres humanos são contínuos com o resto
da natureza. Mas, sendo assim, as características biologicamente
específicas desses animais – como o fato de possuírem um rico
sistema de consciência, bem como sua maior inteligência, sua aptidão
para a linguagem, sua aptidão para discriminações de percepções
extremamente sutis, sua aptidão para pensamento racional etc. – são
fenômenos biológicos como quaisquer outros fenômenos biológicos.
Além disso, essas características são todas fenótipos. São o resultado
da evolução biológica tanto quanto qualquer outro fenótipo.

Ao adotar esse pensamento, o filósofo estadunidense defende a tese de que a


consciência evoluiu gradualmente por meio de um longo processo evolutivo em grupos
de organismos com sistema nervoso desenvolvido, o que atesta a nossa continuidade
com a natureza e parece apontar para um viés naturalista de sua proposta. É por conta
disso que Searle (2006, p. 133) afirma que a consciência surgiu evolutivamente e é uma
característica biológica que emerge da atividade de sistemas nervosos complexos como
os de seres humanos, chimpanzés, golfinhos, cães e gatos:

Consciência, em resumo, é uma característica biológica de cérebros de seres


humanos e determinados animais. É causada por processos neurobiológicos,
e é tanto uma parte da ordem biológica natural quanto quaisquer outras
características biológicas, como a fotossíntese, a digestão e a mitose.

Nesse ponto, ele diverge tanto da psykhé aristotélica – que é coextensiva ao


biológico – quanto da posição cartesiana de que os animais não humanos são complexos
autômatos dotados de res extensa (corpo), mas não de res cogitans (alma ou mente): a
história biológica restringiu a consciência a alguns grupos de animais com sistema
nervoso bem desenvolvido. Para Searle (2010d, p. 96), a dicotomia traçada por
Aristóteles entre o vivo e o não vivo deu lugar a uma distinção mais essencial entre os
seres dotados de mente e os que não a possuem, o que teria acabado por desembocar em
um problema de ordem teológica, pois as almas dos animais conscientes também
deveriam – assim como a humana – sobreviver à morte do corpo18:

Mas, se animais têm consciência, segue-se que eles possuem almas


imortais, e a vida futura ficará, no mínimo, superpovoada. Pior ainda:

18 Consoante Reale (1997, p. 81), Aristóteles afirmava que somente o intelecto humano é que
“vem de fora” e é “divino”: “[E]mbora provindo do ‘exterior’, o intelecto permanece na alma
[...] durante toda a vida do homem. Que o intelecto ‘provenha do exterior’ significa, pois, a sua
transcendência no sentido de diferença de natureza; ou seja, significa alteridade de essência
relativamente ao corpo; significa a proclamação da dimensão meta-empírica, supra-sensível e
espiritual que em nós existe. É realidade divina presente em nós”.

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se a consciência estende-se até os mais baixos degraus da escala


filogenética, então a população da vida futura virá a incluir grande
número de almas de pulgas, lesmas, formigas e assim por diante.

Para Searle (2010d, p. 96), também é inadequada a saída cartesiana que


considera como autômatos desprovidos de alma todos os animais não humanos; isso nos
impediria até mesmo de sentir compaixão por um cachorro atropelado, haja vista que o
seu aparente sofrimento não passaria de um comportamento mecânico desencadeado por
suas engrenagens corporais:

[O]s cartesianos forneceram uma solução igualmente implausível: na


sua concepção, eles [os animais] simplesmente não têm mente. São
autômatos inconscientes e, apesar de sentirmos pena de um cachorro
esmagado pela roda de um carro, nossa pena é descabida. É como se
um computador tivesse sido atropelado.

Sendo assim, o número de espécies dotadas de mente para o naturalismo


biológico nem é tão grande quanto a totalidade dos seres anímicos da concepção
aristotélica e nem se restringe unicamente à nossa espécie, como o queria Descartes.
Mais do que isso, diferentemente dos filósofos macedônio e francês, ao defender que a
mente é um produto evolutivo contingente, Searle (2006, p. 39) está cônscio das
limitações epistemológicas que podem decorrer desse processo, ou seja, não seria
estranho se, dado o contexto no qual evoluiu a linhagem hominídea, fôssemos incapazes
de compreender certos aspectos da realidade19:

Ora, ninguém supõe, por exemplo, que os cães possam ser levados a
compreender a mecânica quântica; o cérebro do cão simplesmente não
é desenvolvido àquele grau. E é fácil imaginar um ser que, ao longo
da mesma progressão evolutiva, seja mais desenvolvido do que nós,
que esteja para nós aproximadamente como estamos para os cães. Da
mesma forma como achamos que os cães não podem compreender
mecânica quântica, assim este produto evolutivo imaginário concluiria
que, embora os seres humanos possam entender mecânica quântica, há
muita coisa que o cérebro humano não pode compreender.

19 Chomsky (2005, p. 143) segue a linha de raciocíno de que somos parte do mundo natural
para advogar que certas questões podem ser refratárias à nossa capacidade biológica e, além
disso, para defender que a investigação científica resulta de uma correlação contingente entre
mente e mundo: “Precisamos ser cuidadosos para não sucumbir a ilusões sobre evolução e seus
milagres adaptativos. Não há nada na teoria da evolução que sugira que devemos ser capazes de
responder a questões que podemos formular, mesmo em princípio, mesmo que tenham
respostas, ou que devemos ser capazes de formular questões corretas. Na medida em que
podemos, temos ciência empírica, um tipo de propriedades de convergência fortuitas da mente e
propriedades do mundo extramental”.

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No entanto, se descendemos de ancestrais caçadores-coletores que possuíam um


patrimônio genético bastante semelhante ao do atual Homo sapiens, parece igualmente
verdadeiro que as pressões ambientais selecionaram um órgão incrivelmente complexo,
capaz de coordenar não apenas os comportamentos que asseguram a sobrevida do
organismo, mas também de realizar funções que dependem da projeção no futuro. Nas
palavras de Searle (2006, p. 39):

Felizmente (ou infelizmente), a natureza é pródiga, e exatamente


como cada macho produz esperma suficiente para repovoar a Terra,
assim também temos muito mais neurônios do que precisamos para
uma existência de caça e extrativismo. Acredito que o fenômeno de
excesso de neurônios – em oposição, digamos, ao dos polegares
opostos – é a chave para compreender como saímos da caça-
extrativismo e produzimos filosofia, ciência, tecnologia, neuroses,
publicidade etc.

Dessa maneira, por mais impressionantes que sejam os feitos da Religião, da


Filosofia, da Arte, da Ciência e da Tecnologia, devemos ser sempre humildes ao
lembrarmos de que tais realizações não garantem que nossos cérebros sejam
epistemologicamente onipotentes. No entanto, essa atitude de humildade antropológica
não pode constituir, logo de saída, um empecilho para o avanço do conhecimento. É por
isso que Searle (2006, p. 39-40) advoga a utilidade heurística de agirmos como se a tudo
pudéssemos conhecer:

Mas não deveríamos nunca esquecer quem somos; e, por sermos como
somos, é um erro admitir que tudo o que existe é compreensível aos
nossos cérebros. É claro que metodologicamente temos de agir como
se pudéssemos entender tudo, porque não há nenhuma maneira de
conhecer o que não podemos: para saber os limites do conhecimento,
teríamos de conhecer os dois lados do limite. Dessa forma, a
onisciência potencial é aceitável como um artifício heurístico, mas
seria auto-enganação supô-la um fato.

Vale ressaltar que a evolução de sistemas nervosos complexos também é


compatível com a visão de que os estados mentais são subprodutos causalmente
ineficazes do funcionamento neurofisiológico, ou seja, que o aumento de complexidade
do cérebro teria desembocado em uma mentalidade epifenomênica ou mesmo na
ausência de consciência fenomênica. Segundo o argumento do zumbi20, é logicamente
possível a existência de um ser fisicamente idêntico a mim, molécula por molécula, e,

20 Em Lima Filho (2015a), logo após mostrarmos o papel desempenhado pela Teoria Atômica
no naturalismo biológico, abordamos o experimento de pensamento do zumbi filosófico.

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mesmo assim, desprovido de quaisquer estados mentais qualitativos (qualia). Nesse


experimento de pensamento, portanto, teríamos uma duplicata física com
comportamento observável idêntico, mas sem possuir consciência fenomênica.
Esse hipotético zumbi responderia que a capital do Brasil é Brasília e a luz
vermelha do semáforo o faria parar o carro (identidade comportamental), mas,
diferentemente de nós, o nosso clone físico não teria nenhuma representação
fenomênica de Brasília nem qualquer sensação de como é ver vermelho (ausência
consciente). O argumento do zumbi geralmente é utilizado como crítica às posições
reducionistas ao mostrar que a base física é insuficiente para a consciência fenomênica
porque seria possível duplicar a estrutura material sem se produzir a atividade
consciente; isso também realçaria a inadequação de se atribuir mentalidade ao outro
(problema de outras mentes) tendo por fundamento tão somente seu comportamento21.
À primeira vista, esse argumento parece se opor à origem e à vantagem
evolutiva da consciência pressupostas pelo naturalismo biológico22, pois se um zumbi
sem consciência fenomênica fosse capaz de agir de modo similar ao nosso, seria
desabonada a tese de que a consciência é evolutivamente vantajosa. Searle (2006, p.
157) responde assim a esse questionamento:

[A] consciência serve para organizar um determinado conjunto de


relações tanto entre o organismo e seu ambiente quanto entre o
organismo e seus próprios estados. E, novamente falando em termos
muito gerais, a forma de organização podia ser descrita como
“representação”.

Em síntese, Searle (2006, p. 158) afirma que a experiência sensorial consciente


permitiria que o organismo enxergasse, escutasse e percebesse cheiros de potenciais

21 O argumento do zumbi pressupõe que a conceptibilidade é um guia seguro para a


possibilidade. Seguindo essa linha de pensamento, seria possível que a água fosse quimicamente
distinta de H20 por assim ser concebível. Os partidários do essencialismo científico alegam, no
entanto, que o líquido incolor, insípido e inodoro que se encontra nas nuvens, nos rios e nos
seres vivos é essencialmente H20, como aponta Leclerc (2007, p. 395-6): “A tarefa da ciência
[...] é identificar as espécies naturais e descobrir as essências ou propriedades essenciais que
determinam as leis da natureza. Se ‘água’ e ‘H20’ são designadores rígidos, então a identidade
científica ‘água = H20’ expressa uma proposição necessária e a posteriori, pois desde Naming
and necessity, a necessidade não é mais do domínio exclusivo do a priori”.
22 Ressaltamos que Searle (2006, p. 156) não defende que toda característica biológica seja
adaptativa: “Ao responder à pergunta sobre o papel evolutivo da consciência, quero rejeitar o
pressuposto implícito de que cada traço biologicamente herdado tenha que proporcionar alguma
vantagem evolutiva ao organismo. Isto me parece um darwinismo excessivamente grosseiro, e
hoje temos todo tipo de boas razões para abandoná-lo”.

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predadores, rivais ou parceiros sexuais (obtenção de informações sobre o mundo), e


estas experiências sensoriais, por sua vez, trariam uma óbvia vantagem em termos de
ação, tais como correr do predador, caçar a presa, lutar com o rival ou cortejar e copular
com a fêmea (ações sobre o mundo):

[N]a percepção consciente o organismo tem representações causadas


por estados de coisas no mundo, e, no caso de ações intencionais, o
organismo provoca estados de coisas no mundo através de suas
representações conscientes.

Daí a conclusão de Searle (2006, p. 160 e 2013a, p. 10347-8 [2013b, p. 25]) de


que os procedimentos inconscientes são muito menos intrincados e aguçados quando
comparados à discriminação perceptual e à flexibilidade comportamental asseguradas
pela consciência, o que atestaria – a despeito do elevado custo metabólico23 – a sua
vantagem evolutiva:

A hipótese que estou propondo, então, é que uma das vantagens


evolutivas conferidas a nós pela consciência é a flexibilidade,
sensibilidade e criatividade muito maiores que derivamos do fato de
sermos conscientes.

[N]ão expressei adequadamente o enorme poder que nos confere a


consciência. O organismo é capaz de coordenar um enorme número de
estímulos simultâneos dentro de um único campo consciente e
também é capaz de coordenar seu comportamento à luz dos influxos
sensoriais, de suas metas e dos meios possíveis para alcançá-las.
Coordena tudo isso de maneira que simultaneamente representa o
passado na forma de memória de curto e de longo prazo, e antecipa o
futuro a partir de seus planos, suas metas e suas intenções. No caso
dos seres humanos, a consciência também nos fornece a capacidade
para cooperar com nossos semelhantes, e a forma específica que toma
a cooperação humana é o uso consciente da linguagem. A utilização
da linguagem nos proporciona as características distintivas da
civilização humana: dinheiro, propriedade, governo, organizações
sociais etc., todos eles resultados da aplicação consciente das
representações linguísticas.

Em decorrência disso, Searle (2000, p. 61) argumenta que esse grande


investimento metabólico depõe contra o epifenomenalismo – apesar de não o refutar –,
porque frequentemente somos capazes de detectar alguma vantagem adaptativa nos
fenótipos selecionados no decorrer do processo evolutivo:

23 Greco (2006, p. 11) faz a seguinte especificação: “Essa incrível máquina [o cérebro] pesa
pouco, somente 1,5 quilo – menos de 3% do peso de uma pessoa de 75 quilos. Mas é uma voraz
consumidora do oxigênio que entra em nossos pulmões a cada segundo: 25% dele, para ser mais
exato”.

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[S]eria milagroso, inédito na história biológica, se algo


biologicamente tão complexo, rico e estruturado como a consciência
humana e animal não tivesse importância causal no mundo. De acordo
com o que sabemos sobre a evolução, é pouco provável que o
epifenomenismo possa estar certo.

O filósofo estadunidense também critica o ataque à vantagem evolutiva e à


eficácia causal da consciência baseada na imaginação de seres fisicamente idênticos que
não a possuem. Para explicar esse quesito, ele traça um paralelo com os membros
anteriores das aves. Mesmo sabendo que nem todas aves voam, afirmamos que as asas
são favoráveis por conta do voo, função essa que as permite fugir de predadores e caçar
presas (sobrevivência), buscar parceiros sexuais (sucesso reprodutivo) e alimentar a
prole (cuidado parental). Poder-se-ia questionar essa função adaptativa por ser
logicamente possível a existência de aves24 com propulsores de foguetes que
sobrevivem, reproduzem-se e cuidam dos filhos sem necessitar de membros alados para
desempenhar esses comportamentos. Ora, se tal experimento de pensamento nos
pareceria despropositado em relação às asas, por que alguém o levaria a sério quando
aplicado à consciência? Desse modo, Searle (2010b, p. 39-40) critica os fundamentos e
as regras envolvidos nesse tipo de experiência de pensamento:

Ao analisar as funções evolutivas das asas, ninguém pensaria ser


admissível afirmar que elas são inúteis porque podemos imaginar os
pássaros voando sem asas. Por que se supõe, então, ser possível
afirmar que a consciência é inútil porque podemos imaginar seres
humanos e animais se comportando como o fazem, mas sem
consciência?

24 Em realidade, o argumento do zumbi se compromete com a premissa de um mundo possível


que compartilhe com nosso mundo atual todas as propriedades físicas e, mesmo assim, seja
desprovido de consciência. Diferentemente desse argumento, o cenário supracitado substitui
asas por propulsores e isso é suficiente para vislumbrarmos que não estamos diante de uma
duplicata física de nosso Universo. Em sua resenha do livro de David Chalmers (1996), The
Conscious Mind, Searle (1998) diz que a possibilidade de um mundo microestruturalmente
idêntico ao nosso ser povoado por porcos voadores e pedras vivas não nos autoriza a concluir
que o voar e o viver não sejam físicos; com isso, ele pretende atacar o argumento do zumbi: a
ausência de consciência em um mundo estruturalmene idêntico ao nosso não significa que ela
seja não física. A partir disso, Chalmers (1998, p. 179-80) aponta dois erros nesse modo de
raciocinar: “Para mostrar que o ato de voar é não físico, precisaríamos mostrar que a estrutura
física do mundo é consistente com a ‘ausência’ do ato de voar. O fato de se poder acrescentar
porcos voadores ao mundo não diz nada. Segundo, o cenário que ele descreve não é consistente.
Um mundo com porcos voadores teria, por exemplo, muita matéria extra flutuando a metros
acima da terra, de onde se segue que sua estrutura física não poderia ser idêntica à presente em
nosso mundo”.

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É nesse ponto que convergem realismo externo, naturalismo e Biologia


Evolutiva na teoria de Searle: obviamente, não somos vedados a pensar em aves com
propulsores, humanos sem consciência e organismos constituídos de ferro fundido,
contanto que não esquecêssemos que tais devaneios pertenceriam ao campo da ficção
científica25. Dito de outro modo, essas elucubrações seriam até eficazes para exercitar a
imaginação e produzir obras divertidas, mas não descreveriam o mundo real, que aí está
independentemente do que imaginemos; esse mundo, por sua vez, é descrito pelas
teorias científicas, dentre as quais, a bem estabelecida Biologia Evolutiva. Essa teoria
estuda os seres físicos compostos principalmente por hidrogênio, oxigênio, carbono e
nitrogênio, e nos aponta as vantagens adaptativas das asas e da consciência, por
exemplo. Para Searle (2010b, p. 40), a pergunta específica pela vantagem adaptativa da
consciência assemelha-se ao questionamento mais genérico acerca da função evolutiva
de se estar vivo, só podendo ser corretamente colocada se antes nos desvencilharmos da
onipresente influência cartesiana:

No caso da consciência, a pergunta “qual é a vantagem evolutiva da


consciência?” é feita num tom que revela um equívoco cartesiano.
Concebemos a consciência não como parte do mundo físico comum
onde ocorrem as asas e a água, mas como um fenômeno misterioso,
não físico, que está fora do mundo da realidade biológica ordinária.

Dessa maneira, devemos deixar de lado a perspectiva dualista que trata a


consciência como se fosse um fantasma acoplado à máquina-corpo. Destarte, se a
consciência é causalmente eficiente e constitui a noção central de nossa mentalidade de
natureza biológica – como Searle (2010b, p. 40) apregoa –, uma correta explicação de
sua função evolutiva englobaria não somente nossos comportamentos de sobrevivência,
reprodução e cuidado parental, mas também os de escrever poesia, compor músicas,
fazer origamis, praticar capoeira e rezar para uma divindade:

25 Obviamente, poder-se-ia levantar uma objeção semelhante ao experimento de pensamento do


quarto chinês de Searle (1980a), como foi feito pelo físico Frank Tipler ao afirmar que ninguém
seria rápido o suficiente para fornecer as respostas em tempo hábil para conversar com o
interlocutor chinês. Nesse quesito, James Trefil (1999, p. 131-2) – colega de profissão de Tipler
– partiu em defesa de Searle ao reiterar que a Física também se utiliza de experimentos de
pensamento para especular sobre o Cosmo: “Há experiências que não podem ser realizadas
efetivamente, mas cujos resultados podem levá-lo a conclusões importantes. Por exemplo,
supõe-se que Albert Einstein teve a ideia da teoria da relatividade enquanto viajava em um
bonde em Berna e examinava o relógio da torre. Ele percebeu que se o bonde se afastasse da
torre do relógio à velocidade da luz, ele veria o relógio parado. A partir disso ele concluiu que
era razoável pesquisar a ideia de que o tempo pudesse depender do estado de movimento do
observador e foi dessa conclusão que finalmente surgiu a teoria da relatividade”.

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Se concebermos a consciência biologicamente e tentarmos levar a


pergunta a sério, a questão “qual é a função evolutiva da
consciência?” se reduzirá, por exemplo, a “qual é a função evolutiva
da capacidade de andar, correr, sentar, comer, pensar, ver, ouvir, falar
uma língua, reproduzir-se, criar filhos, organizar grupos sociais,
procurar comida, evitar o perigo, cultivar plantações e construir
abrigos?”, porque, para os seres humanos, todas essas atividades,
assim como inúmeras outras essenciais para nossa sobrevivência, são
atividades conscientes.

Sendo assim, o erro consistiria em querer apartar os fenômenos conscientes dos


demais aspectos vitais, o que é impossível, pois a consciência é o guia condutor das
mais variadas atividades desempenhadas pelos animais que possuem um sistema
nervoso desenvolvido o suficiente para produzi-la e sustentá-la.
Para concluir, gostaríamos de reforçar que, no tocante à transmutação das
espécies e à evolução das faculdades mentais, Searle é um herdeiro longínquo de
Lamarck e de Darwin, apesar de ser conceitualmente mais próximo da Teoria Sintética
da Evolução, cuja um dos arquitetos foi Ernst Mayr. O biólogo alemão propôs a divisão
das Ciências Biológicas em Biologia Evolutiva e Biologia Funcional, a qual utilizamos
para esmiuçar a tese sustentada por Searle de que os fenômenos mentais são fenômenos
biológicos: a abordagem filogenética diz respeito à busca pela vantagem evolutiva da
consciência, enquanto a abordagem ontogenética se relaciona à investigação dos
correlatos neurais da consciência no naturalismo biológico.
Sublinhamos também que Searle se distancia do cardiocentrismo aristotélico ao
advogar um modelo neurobiológico da consciência, cujas raízes históricas se encontram
em Alcméon de Crotona, Thomas Willis e Ramón y Cajal. Para o filósofo
estadunidense, o cérebro causa e realiza a mente no sentido de que os fenômenos
mentais são características de nível superior do sistema nervoso. A alegação de que o
mental é físico porque o mental é biológico visa a se desvencilhar do arcabouço
conceitual cartesiano, o qual, segundo Searle26, perpassa as distintas teorias da Filosofia
da Mente. Embora este artigo constitua um esforço inicial para apresentar a abordagem
filogenética da mente no naturalismo biológico, futuramente pretendemos desenvolver a
presente pesquisa no sentido de contrapor a concepção de Searle a outras propostas
evolutivas atuais.

26 Expusemos as críticas que Searle tece às principais correntes da Filosofia da Mente em Lima
Filho (2019).

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ZIMMER, C. A fantástica história do cérebro: o funcionamento do cérebro humano.
Trad. Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

312
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

313
UM ITINERÁRIO DE REFLEXÃO SOBRE O MENTAL

Resenha de: LECLERC, André. Uma introdução à filosofia da mente.


Curitiba: Appris Editora, 2018.

Marcus José Alves de Souza


Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

O que caracteriza um bom texto de introdução a um tema filosófico? Esta é uma


questão polêmica, uma vez que os filósofos (pesquisadores) fazem textos com tipos
diferentes de organização e abordagem. Neste sentido, o artigo indefinido no título do
texto de Leclerc dá a compreensão desta dimensão, pretende ser ‘uma” introdução à
filosofia da mente. O livro Uma Introdução à Filosofia da Mente (Curitiba: Appris
Editora, 2018) entra no circuito das introduções optando por duas características que, no
meu entender, são muito importantes para uma boa introdução: a) tem um tratamento
temático norteador e b) mantém um nível de problematização bastante instigante e
aprofundado, sem deixar insatisfeito tanto o especialista quanto o iniciante em filosofia
da mente. Além dessas características, percebe-se o estilo do autor, suas preocupações
filosóficas. Seu estilo leve, com muitas exemplificações e explicações simples e corretas
das tematizações da filosofia da mente, mostra a experiência de um pesquisador
tarimbado, que, dado ao cabedal adquirido, transita como guia tranquilo em vários
temas e teorias da contemporânea filosofia da mente. É claro que, como pesquisador,
Leclerc aponta caminhos de respostas, fruto de sua trajetória intelectual, mas mantendo
a problematização viva, mostrando contrapontos possíveis para convencidos e não
convencidos das propostas, como uma introdução filosófica deve ser.
A estrutura do texto é simples e expressa o que apontávamos no início como
caracterização: tematização e problematização. Apresenta uma primeira parte dedicada
à tematização do que é o mental, em que merece destaque a lista sobre o domínio do
mental; segue com uma reflexão sobre a constituição da disciplina filosófica no séc. XX
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

e uma apreciação de temas caros à tradição filosófica como intencionalidade e


consciência. Na segunda parte, Leclerc apresenta, de modo didático e problematizador,
as principais teorias da mente: os dualismos (de substância e propriedades), os
behaviorismos, as teorias da identidade, os funcionalismos, o materialismo
eliminativista, o monismo anômalo, o naturalismo biológico e os fisicalismos
(reducionista e não reducionista). Com o tratamento didático e crítico, Leclerc vai
apresentando com segurança as características básicas das teorias, ao mesmo tempo que
levanta problemas variados às mesmas. Este procedimento mostra um aspecto
importante de uma introdução: as teorias, como respostas às questões, devem ser vistas
como oportunidades de problematização e aprofundamento conceituais, iniciando o
leitor na complexidade da área de estudo. As teorias são programas de pesquisa abertos
a críticas e refutações, não um conjunto de temas com respostas feitas e “pasteurizadas”
para a absorção do público iniciante. O tratamento de Leclerc mostra a dinâmica, a
heterogeneidade e a problematicidade envolvida nesta relativamente nova área de
investigação filosófica. Esta parte é seguida de uma conclusão, em que os temas
tratados na primeira e na segunda parte são retomados qualitativamente através do
percurso percorrido.
Destaca-se na discussão temática, especialmente na definição do que caracteriza
o mental, o tema da intencionalidade. A tese de Brentano é apresentada de modo a ser
discutida com ferramentas conceituais levantadas pelo autor – o que caracteriza o
mental/consciência é ser acerca de..., ou que atos, eventos e estados mentais devem
“...ter um objeto, conterem um objeto representado (existente ou não), ou de serem
acerca de algo, ou ainda de serem orientados para um objeto (estado de coisas ou fato)”
(p. 33). Do mesmo modo, a discussão da intencionalidade ser intrínseca ou derivada. Se
intrínseca, a capacidade de representação/ser acerca de... não pode depender da
capacidade de outras representações, deve haver algo intrínseco na intencionalidade. Tal
discussão coloca à baila dois outros temas de destaque na reflexão do livro, o tema do
posicionamento internalismo x externalismo em filosofia da mente e o problema da
causação mental, que serão retomados na conclusão.
A ideia de intencionalidade intrínseca pode evitar um regresso ao infinito na
determinação do mental, ou seja, na resposta de onde vem a capacidade dos estados
mentais de representar, de serem acerca de... estariam nos próprios atos mentais ou na
sua base física. Se formos fisicalistas e afirmarmos que esta capacidade vem das
atividades eletroquímicas do cérebro, como explicar que as relações intrinsecamente

316
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

físicas podem causar o mental? Se o físico pode causar o mental, tal causalidade
depende apenas da atividade interna do cérebro.
A questão da causação mental é um tema recorrente no texto e tem como ponto
alto a reflexão de Jaegwon Kim, apresentada no final da segunda parte, com seu
Argumento da Superveniência, que solapa a tese de um possível fisicalismo não
reducionista e torna ininteligível um ideia da causação mental. Admitir um fisicalismo
redutivo, em que toda causalidade é determinada por propriedades físicas de nível
inferior (subatômico), coloca em dificuldade as explicações de senso comum
(psicológico), na consideração do autor, fundamentais para nossa compreensão do
domínio do mental. Nesta discussão, Leclerc busca mostrar o preço alto a se pagar por
romper com as convicções de senso comum, especialmente na explicação do
comportamento e de nossas ações.
No final do texto, André Leclerc tenta mostrar que as propriedades semânticas
de uma palavra são extrínsecas à representação gráfica ou acústica da palavra (cores,
traços, sons...), ou seja, elas dependem dos usos e hábitos linguísticos de uma
comunidade. Se se pode comparar a estrutura das frases e a estrutura do conteúdo
mental de nossas crenças, intenções etc., então “propriedades semânticas de nossos
conteúdos mentais também são relacionais e extrínsecas” (p. 146). Aqui os temas do
externalismo x internalismo e da causação mental voltam de modo requalificado e
colocam dificuldades para o fisicalismo redutivo, especialmente o de Kim. A rápida
retomada do experimento da Terra Gêmea de Putnam incrementa a dificuldade
reducionista, a mente não está presa ao cérebro, existem elementos extrínsecos, não
intrínsecos ao cérebro, ou às reações eletroquímicas de nível básico.
Merece destaque as referências do livro, além de numerosas, atualizadas e
abrangentes, dão importantes indicações das opções teóricas do autor, mas são,
sobretudo, bons guias de pesquisa para iniciantes e pesquisadores.
Sem dúvida, é um livro a ser lido pelos interessados na problemática da mente
(iniciantes ou não). O texto é uma contribuição muito boa para o entendimento do
debate filosófico atual sobre a mente, cumprindo um papel importante no contexto dos
textos de introdução ao tema em língua portuguesa.

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ENFRENTANDO O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA1
David J. Chalmers
Australian National University/ New York University

Tradução: Pedro H. G. Muniz


Universidade Estadual do Ceará

RESUMO: Para progredir no problema da consciência, temos que confrontá-lo diretamente.


Neste artigo, primeiro isolo a parte realmente difícil do problema, separando-a das partes mais
tratáveis e esclarecendo por que é tão difícil explicá-la. Faço uma crítica de trabalhos recentes
que usam métodos redutivos para tratar da consciência, e argumento que inevitavelmente esses
métodos falham em lidar com a parte mais difícil do problema. Uma vez que essa falha é
reconhecida, a porta para um subsequente progresso é aberta. Na segunda parte do artigo,
argumento que se passarmos para um novo tipo de explicação não redutiva, podemos fornecer
uma descrição naturalista da consciência. Apresento minha própria candidata para tal descrição:
uma teoria não redutiva baseada em princípios de coerência estrutural e invariância
organizacional e em uma visão de duplo aspecto da informação.

PALAVRAS-CHAVE: Consciência. Dualismo. Experiência. Explicação. Funcionalismo.


Problema difícil. Informação. Materialismo. Qualia. Redução.

ABSTRACT: To make progress on the problem of consciousness, we have to confront it


directly. In this paper, I first isolate the truly hard part of the problem, separating it from more
tractable parts and giving an account of why it is so difficult to explain. I critique some recent
work that uses reductive methods to address consciousness, and argue that such methods
inevitably fail to come to grips with the hardest part of the problem. Once this failure is
recognized, the door to further progress is opened. In the second half of the paper, I argue that if
we move to a new kind of nonreductive explanation, a naturalistic account of consciousness can
be given. I put forward my own candidate for such an account: a nonreductive theory based on
principles of structural coherence and organizational invariance, and a double-aspect theory of
information.

KEYWORDS: Consciousness. Dualism. Experience. Explanation. Functionalism. Hard


problem. Information. Materialism. Qualia. reduction.

1
Artigo publicado originalmente no Journal of Consciousness Studies, 2 (3), p. 200-19, 1995.
Agradeço a Francis Crick, Peggy DesAutels, Matthew Elton, Liane Gabora, Christof Koch, Paul
Rhodes, Gregg Rosenberg e Sharon Wahl por seus comentários.
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

1. Introdução

A consciência impõe os mais desconcertantes problemas à ciência da mente.


Não há nada que conheçamos mais intimamente do que a experiência consciente, mas
não há nada que seja mais difícil de explicar. Vários tipos de fenômenos mentais se
submeteram à investigação científica nos últimos anos, mas a consciência resistiu
obstinadamente. Muitos tentaram explicá-la, mas as explicações sempre ficam aquém
do objetivo. Alguns foram levados a supor que o problema é intratável, e que nenhuma
boa explicação pode ser dada.
Para progredir no problema da consciência, temos que confrontá-lo diretamente.
Neste artigo, primeiro isolo a parte realmente difícil do problema, separando-a das
partes mais tratáveis e esclarecendo por que é tão difícil explicá-la. Faço uma crítica de
trabalhos recentes que usam métodos redutivos para tratar da consciência e argumento
que inevitavelmente esses métodos falham em lidar com a parte mais difícil do
problema. Uma vez que essa falha é reconhecida, a porta para um subsequente
progresso é aberta. Na segunda parte do artigo, argumento que se passarmos para um
novo tipo de explicação não redutiva, podemos fornecer uma descrição naturalista da
consciência. Apresento minha própria candidata para tal descrição: uma teoria não
redutiva baseada em princípios de coerência estrutural e invariância organizacional e em
uma visão de duplo aspecto da informação.

2. Os problemas fáceis e o problema difícil

Não há apenas um problema da consciência. “Consciência” é um termo ambíguo,


que se refere a muitos fenômenos diferentes. Cada um desses fenômenos precisa ser
explicado, mas alguns são mais fáceis de explicar que outros. No começo, é útil dividir
os problemas associados da consciência em problemas “difíceis” e “fáceis”. Os
problemas da consciência fáceis são os que parecem diretamente suscetíveis aos
métodos padrão da ciência cognitiva, através dos quais um fenômeno é explicado em
temos de mecanismos computacionais ou neurais. Os problemas difíceis são os que
parecem resistir a tais métodos.
Os problemas da consciência fáceis incluem os de se explicar os seguintes
fenômenos:

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 A habilidade de discriminar, categorizar e reagir a estímulos do


ambiente;
 A integração de informações por um sistema cognitivo;
 A relatabilidade de estados mentais (the reportability of mental states)2;
 A habilidade de um sistema de acessar seus próprios estados internos;
 O foco da atenção;
 O controle deliberado do comportamento;
 A diferença entre vigília e sono.
Todos esses fenômenos estão associados à noção de consciência. Por exemplo,
às vezes dizemos que um estado mental é consciente quando ele é verbalmente relatável
(reportable), ou quando é acessível internamente. Às vezes se diz que um sistema está
consciente de alguma informação quando ele tem a habilidade de reagir com base nessa
informação ou, de maneira mais forte, quando ele lida com essa informação, ou quando
pode integrar essa informação e explorá-la no sofisticado controle do comportamento.
Às vezes dizemos que uma ação é consciente precisamente quando ela é deliberada.
Com frequência dizemos que um organismo está consciente como outro jeito de dizer
que ele está acordado.
Não existe um real problema no que diz respeito a se esses fenômenos podem
ser explicados cientificamente. Todos eles são diretamente vulneráveis a uma
explicação em termos de mecanismos computacionais ou neurais. Para se explicar o
acesso e a relatabilidade, por exemplo, precisamos apenas especificar o mecanismo
através do qual a informação sobre estados internos é recuperada e disponibilizada para
um relato verbal. Para se explicar a integração de informações, precisamos apenas exibir
os mecanismos pelos quais as informações são reunidas e exploradas por processos
posteriores. Para uma descrição do sono e da vigília, uma descrição neurofisiológica

2 A noção de reportability tem difícil tradução para o português. Seu equivalente direto é
“relatabilidade”, embora esta não seja uma palavra muito usual. O termo está relacionado a
report, que pode ser traduzido como “relato” ou, em certos contextos, “relatório”. O verbo “to
report” equivale em português a “relatar”. Quando falamos de reportability em filosofia da
mente, referimo-nos à habilidade que seres conscientes têm de relatar ou comunicar seus
próprios estados mentais ou, mais especificamente, do fato de que estados mentais são passíveis
de serem relatados por tais seres. Ainda que a palavra “relatabilidade” possa causar
estranhamento, preferimos utilizá-la aqui por dois motivos principais. Primeiro, trata-se de um
termo técnico recorrente em investigações sobre a consciência. Mas também porque, ao usar
uma única palavra em vez de uma expressão como “habilidade de relatar” ou algo similar, não
nos vemos obrigados a impor adaptações demasiadamente extensas ao discurso original do
autor (Nota do Tradutor [N. do T.]).

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

apropriada dos processos responsáveis pelo comportamento contrastante do organismo


nesses estados é suficiente. Em cada caso, um modelo cognitivo ou neurofisiológico
apropriado pode claramente realizar o trabalho explicativo.
Se a consciência se resumisse a esses fenômenos, ela não seria um problema
muito grande. Embora ainda não tenhamos nada próximo a uma explicação completa
desses fenômenos, temos uma ideia clara de como poderíamos proceder para explicá-los.
É por isso que eu os chamo de problemas fáceis. É claro, “fácil” é um termo relativo.
Obter os detalhes de maneira correta provavelmente vai levar um século ou dois de um
trabalho empírico difícil. Ainda assim, sobram motivos para se acreditar que os métodos
da ciência cognitiva e da neurociência serão bem-sucedidos.
O problema da consciência, que é realmente difícil, é o problema da experiência.
Quando pensamos e percebemos, há um trabalho de processamento de informação, mas
também há um aspecto subjetivo. Como formulou Nagel (1974), há algo que é como ser
um organismo consciente. Esse aspecto subjetivo é a experiência. Quando vemos, por
exemplo, experienciamos sensações visuais: a qualidade sentida da vermelhidão, a
experiência de escuro e brilhante, a qualidade de profundidade em um campo visual.
Outras experiências acompanham a percepção em diferentes modalidades: o som de um
clarinete, o cheiro de bolinhas de naftalina. Há também sensações corporais, variando
de dores a orgasmos; imagens mentais que são conjuradas internamente; a qualidade
sentida da emoção e a experiência de um fluxo de pensamento consciente. O que unifica
todos esses estados é que há algo que é como estar neles. Todos eles são estados de
experiência.
É inegável que alguns organismos são sujeitos de experiência. Mas a questão de
como esses sistemas são objetos de experiência é desconcertante. Por que é que, quando
nossos sistemas cognitivos se envolvem no processamento visual e auditivo de
informações, temos experiência visual ou auditiva (a qualidade do azul profundo, a
sensação do dó médio)? Como podemos explicar por que há algo que é como ter uma
imagem mental ou ter a experiência de uma emoção? É amplamente aceito que a
experiência surge a partir de uma base física, mas não temos uma boa explicação de
porquê e como ela surge assim. Por que o processamento físico deveria dar origem a
uma rica vida interior? Objetivamente, parece irracional que ele deva fazer isso e,
mesmo assim, ele o faz.
Se algum problema se qualifica como o problema da consciência, é esse. Nesse
sentido central de “consciência”, um organismo é consciente se há algo que é como ser

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

esse organismo, e um estado mental é consciente se há algo que é estar nesse estado. Às
vezes, termos como “consciência fenomênica” e “qualia” também são usados aqui, mas
acho mais natural falar em “experiência consciente” ou simplesmente “experiência”.
Outra maneira útil de evitar confusão (usada, por exemplo, por Newell 1990; Chalmers
1996) é reservar o termo “consciência” para os fenômenos da experiência, usando o
termo menos carregado “estado de ciência” (awareness) 3 para os fenômenos mais
diretos descritos anteriormente. Se tal convenção fosse amplamente adotada, a
comunicação seria muito mais fácil. Como as coisas estão hoje, frequentemente, aqueles
que falam sobre “consciência” estão conversando sem se entender.
A ambiguidade do termo “consciência” é frequentemente explorada tanto por
filósofos quanto por cientistas que escrevem sobre o assunto. É comum vermos um
artigo sobre consciência começar com uma invocação do mistério da consciência,
notando a estranha intangibilidade e inefabilidade da subjetividade e preocupando-se
que até então não tenhamos nenhuma teoria do fenômeno. Aqui, o tópico é claramente o
problema difícil – o problema da experiência. Na segunda metade do artigo, o tom se
torna mais otimista, e a teoria da consciência do próprio autor é delineada. Ao examiná-
la, essa teoria acaba sendo uma teoria de um dos fenômenos mais diretos – o da
relatabilidade, do acesso introspectivo, ou qualquer outro. No fim das contas, o autor
declara que a consciência acabou se revelando tratável, mas, ao leitor, resta o
sentimento de ter sido vítima de uma propaganda enganosa (bait-and-switch). O
problema difícil permanece intocado.

3. Explicação funcional

Por que os problemas fáceis são fáceis, e por que o problema difícil é difícil? Os
problemas fáceis são fáceis precisamente porque eles concernem à explicação de
habilidades cognitivas e funções. Para explicar uma função cognitiva, precisamos
apenas especificar um mecanismo que pode desempenhar a função. Os métodos da

3 Em português, é comum traduzir ambos os termos “consciousness” e “awareness” como


“consciência”. No entanto, em alguns contextos, como no presente texto, a palavra “awareness”
é usada com o sentido de “estado de ciência”, assim como poderíamos usar “aware” para dizer
que alguém está ciente de algo, sendo este algo, geralmente, algum tipo de informação (muitas
vezes, de natureza fenomenológica) que pode ser usada para guiar o comportamento. Chalmers
faz uso da distinção entre consciousness e awareness e desse sentido específico de “estado de
ciência” em outros escritos seus, como em seu livro The counscious mind: in search of a
fundamental theory. Philosophy of Mind Series. Oxford University Press, 1996 (N. do T.).

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

ciência cognitiva são bem adequados para esse tipo de explicação e, assim, são bem
adequados para os problemas fáceis da consciência. Em contraste, o problema difícil é
difícil precisamente porque não é um problema sobre o desempenho de funções. O
problema persiste mesmo quando o desempenho de todas as funções relevantes é
explicado. (Aqui “função” não é usada no sentido teleológico estreito de algo que um
sistema é projetado para fazer, mas no sentido mais amplo de qualquer papel causal que
um sistema pode desempenhar na produção de comportamento).
Explicar a relatabilidade, por exemplo, é apenas explicar como um sistema
poderia executar a função de produzir relatos sobre estados internos. Para explicar o
acesso interno, precisamos explicar como um sistema poderia ser afetado de maneira
apropriada por seus estados internos e usar a informação sobre esses estados no
direcionamento de processos posteriores. Para explicar a integração e o controle,
precisamos explicar como os processos centrais de um sistema podem reunir os
conteúdos de informação e usá-los na facilitação de vários comportamentos. Todos
esses são problemas que dizem respeito à explicação de funções.
Como explicamos o desempenho de uma função? Especificando um mecanismo
que desempenha a função. Aqui, modelagens neurofisiológicas e cognitivas são
perfeitas para a tarefa. Se quisermos uma explicação detalhada de baixo nível, podemos
especificar o mecanismo neural que é responsável pela função. Se quisermos uma
explicação mais abstrata, podemos especificar um mecanismo em termos
computacionais. De uma forma ou de outra, o resultado será uma explicação completa e
satisfatória. Uma vez que tenhamos especificado o mecanismo neural ou computacional
que desempenha a função do relato verbal, por exemplo, a maior parte do nosso trabalho
de explicação da relatabilidade chega ao fim.
De certa forma, o ponto é trivial. É um fato conceitual sobre esses fenômenos
que sua explicação envolve apenas a explicação de várias funções, uma vez que os
fenômenos são definíveis funcionalmente. A relatabilidade estar instanciada em um
sistema significa apenas que o sistema é capaz de gerar relatos verbais de informações
internas. Um sistema estar acordado significa apenas que ele está adequadamente
receptivo a informações do ambiente e que é capaz de usá-las para guiar o
comportamento de maneira apropriada. Para entender que esse tipo de coisa é um fato
conceitual, note que alguém que diz “você explicou o desempenho da função do relato
verbal, mas não explicou a relatabilidade” está cometendo um erro conceitual trivial
sobre a relatabilidade. Para explicar a relatabilidade, a única coisa possivelmente

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

necessária é uma explicação de como a função relevante é executada. O mesmo vale


para os outros fenômenos em questão.
Nas ciências de nível mais alto, as explicações redutivas funcionam exatamente
dessa maneira. Para explicar o gene, por exemplo, foi preciso especificar o mecanismo
que armazena e transmite informações hereditárias de uma geração para a outra.
Acontece que o DNA desempenha essa função, e uma vez que explicamos como a
função é desempenhada, explicamos o gene. Para explicar a vida, precisamos, em última
instância, explicar como um sistema pode se reproduzir, adaptar-se ao seu ambiente,
metabolizar e assim por diante. Todas essas são questões sobre o desempenho de
funções e, portanto, são adequadas para explicações redutivas. O mesmo vale para a
maioria dos problemas na ciência cognitiva. Para explicar o aprendizado, precisamos
explicar como as capacidades comportamentais de um sistema são modificadas à luz de
informações do ambiente, e como novas informações podem ser usadas para adaptar as
ações de um sistema a seu ambiente. Se mostrarmos como um mecanismo neural ou
computacional faz esse trabalho, explicamos o aprendizado. Podemos dizer o mesmo
para outros fenômenos cognitivos, como a percepção, a memória e a linguagem. Às
vezes as funções relevantes precisam ser caracterizadas de maneira bastante sutil, mas é
claro que, na medida em que a ciência cognitiva explica esses fenômenos, ela o faz
explicando o desempenho de funções.
Quando se trata de experiência consciente, esse tipo de explicação falha. O que
faz com que o problema difícil seja difícil e quase único é que ele está para além dos
problemas relacionados ao desempenho de funções. Para entender isso, observe que
mesmo que tenhamos explicado o desempenho de todas as funções cognitivas e
comportamentais próximas à experiência (a discriminação perceptiva, a categorização, o
acesso interno, o relato verbal), ainda pode restar uma questão adicional não respondida:
Por que o desempenho dessas funções é acompanhado da experiência? Uma simples
explicação das funções deixa essa questão em aberto.
Não existe uma pergunta adicional análoga na explicação dos genes, da vida ou
do aprendizado. Se alguém diz: “Estou vendo que você explicou como o DNA
armazena e transmite informações hereditárias de uma geração à outra, mas você não
explicou como é um gene”, essa pessoa está cometendo um erro conceitual. Ser um
gene significa apenas ser uma entidade que desempenha a função relevante de
armazenamento e transmissão. Mas se uma pessoa disser “Estou vendo que você
explicou como informações são discriminadas, integradas e relatadas, mas você não

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explicou como elas são experienciadas”, ela não está cometendo um erro conceitual.
Essa é uma questão adicional não trivial.
Essa questão adicional é a questão chave no problema da consciência. Por que
todo esse processamento de informações não ocorre “no escuro”, livre de qualquer
sensação interior? Por que acontece que, quando formas de onda eletromagnéticas
colidem com uma retina e são discriminadas e categorizadas por um sistema visual, essa
discriminação e categorização são experienciadas como uma sensação de vermelho
vivo? Sabemos que a experiência consciente realmente surge quando essas funções são
desempenhadas, mas o fato mesmo de ela surgir é o mistério central. Há uma lacuna
explicativa (um termo que devemos a Levine 1983) entre as funções e a experiência, e
precisamos de uma ponte explicativa para atravessá-la. Uma mera descrição das funções
permanece em um lado da lacuna, de forma que os materiais para a ponte devem ser
encontrados em outro lugar.
Isso não quer dizer que a experiência não tenha função. Talvez se revele que ela
desempenha um papel cognitivo importante. Mas para qualquer papel que ela possa
desempenhar, haverá mais na explicação da experiência do que uma simples explicação
da função. Talvez se revele mesmo que, ao longo da explicação de uma função, seremos
levados ao insight chave que nos permitirá explicar a experiência. No entanto, se isso
acontecer, a descoberta será uma recompensa explicativa extra. Não há nenhuma uma
função cognitiva tal que possamos dizer antecipadamente que a explicação dessa função
explicará automaticamente a experiência.
Para explicar a experiência precisamos de uma nova abordagem. Os métodos
explicativos usuais da ciência cognitiva e da neurociência não são suficientes. Esses
métodos foram desenvolvidos precisamente para explicar o desempenho de funções
cognitivas e eles são bons para isso. Mas, na forma em que eles são, são equipados
apenas para explicar o desempenho de funções. Quando se trata do problema difícil, a
abordagem padrão não tem nada a dizer.

4. Alguns estudos de caso

Nos últimos anos, vários trabalhos abordaram os problemas da consciência no


âmbito da ciência cognitiva e da neurociência. Isso pode sugerir que a análise acima é
falha. Na verdade, porém, um exame atento do trabalho relevante só lhe dá mais suporte.
Quando investigamos exatamente em quais aspectos da consciência esses estudos se

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focam e quais aspectos eles acabam explicando, descobrimos que o alvo final da
explicação é sempre um dos problemas fáceis. Vou ilustrar isso com dois exemplos
representativos.
O primeiro é o da “teoria neurobiológica da consciência”, esboçado por Crick e
Koch (1990; ver também Crick, 1994). Essa teoria está centrada em certas oscilações
neurais de 35 a 75 hertz no córtex cerebral. Crick e Koch levantam a hipótese de que
essas oscilações são a base da consciência. Isso ocorre em parte porque as oscilações
parecem estar correlacionadas com o estado de ciência (awareness) em várias
modalidades diferentes (nos sistemas visual e olfativo, por exemplo) e também porque
elas sugerem um mecanismo pelo qual a ligação (binding) de conteúdos de informação
pode ser alcançada. A ligação é o processo pelo qual parcelas de informação sobre uma
única entidade representadas separadamente são reunidas para serem usadas em um
processamento posterior, como quando informações sobre a cor e a forma de um objeto
percebido são integradas a partir de rotas visuais separadas. Seguindo outros (por
exemplo, Eckhorn et al., 1988), Crick e Koch levantam a hipótese de que a ligação pode
ser alcançada pelas oscilações sincronizadas de grupos neuronais que representam o
conteúdo relevante. Quando duas informações devem ser unidas, os grupos neurais
relevantes oscilam com a mesma frequência e fase.
Os detalhes de como essa ligação pode ser alcançada ainda são pouco
compreendidos, mas suponha que eles possam ser resolvidos. O que a teoria resultante
poderia explicar? Claramente, ela poderia explicar a ligação dos conteúdos de
informação e poderia, talvez, gerar uma descrição mais geral da integração da
informação no cérebro. Crick e Koch também sugerem que essas oscilações ativam os
mecanismos da memória de trabalho, de forma que no futuro pode haver uma descrição
dessa e, talvez, de outras formas de memória. Em algum momento, a teoria poderia
levar a uma descrição geral de como a informação percebida é vinculada e armazenada
na memória para uso em processamento posterior.
Essa teoria seria valiosa, mas não nos diria nada sobre por que os conteúdos
relevantes são experienciados. Crick e Koch sugerem que essas oscilações são os
correlatos neurais da experiência. Essa afirmação é discutível – a ligação também não
ocorre no processamento inconsciente de informação? Mas mesmo que ela seja aceita, a
questão explicativa permanece: por que as oscilações dão origem à experiência? A única
base para uma conexão explicativa é o papel que eles desempenham na ligação e no
armazenamento, mas a questão de por que a ligação e o armazenamento devem eles

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próprios ser acompanhados pela experiência nunca é abordada. Se não soubermos por
que a ligação e o armazenamento devem dar origem à experiência, contar uma história
sobre as oscilações não pode nos ajudar. Por outro lado, se soubéssemos por que a
ligação e o armazenamento deram origem à experiência, os detalhes neurofisiológicos
seriam apenas a cereja do bolo. A teoria de Crick e Koch ganha seu terreno assumindo
uma conexão entre a ligação e a experiência e, portanto, não pode fazer nada para
explicar esse link.
Não creio que, em última instância, Crick e Koch estejam abordando o problema
difícil, embora alguns tenham lhes interpretado como afirmando isso. Uma entrevista
publicada com Koch fornece uma declaração clara das limitações das ambições da
teoria.

Bem, esqueçamos primeiro os aspectos realmente difíceis, como


sentimentos subjetivos, pois eles podem não ter uma solução científica.
O estado subjetivo de brincar, da dor, do prazer, de ver azul, de
cheirar uma rosa – parece haver um grande salto entre o nível
materialista, de explicar moléculas e neurônios, e o nível subjetivo.
Concentremo-nos em coisas que são mais fáceis de estudar, como o
estado de ciência visual (visual awareness). Você está falando comigo
agora, mas não está olhando para mim, está olhando para o
cappuccino e, portanto, está ciente dele. Você pode dizer: “É um copo
e há um pouco de líquido nele”. Se eu o der a você, você vai mover
seu braço e pegá-lo – você vai responder de uma maneira significativa.
É isso que eu chamo de estado de ciência (awareness) (What is
Consciousness, Discover, novembro de 1992, p. 96).

O segundo exemplo é uma abordagem no nível da psicologia cognitiva. Trata-se


da teoria da consciência do espaço de trabalho global de Bernard Baars, apresentada em
seu livro A cognitive theory of consciousness. De acordo com essa teoria, os conteúdos
da consciência estão contidos em um espaço de trabalho global, um processador central
usado para mediar a comunicação entre uma série de processadores não conscientes
especializados. Quando esses processadores especializados precisam transmitir
informação para o resto do sistema, eles o fazem enviando essa informação para o
espaço de trabalho, que atua como uma espécie de quadro-negro comum para o resto do
sistema, acessível a todos os outros processadores.
Baars usa esse modelo para abordar muitos aspectos da cognição humana e
explicar diversos contrastes entre o funcionamento cognitivo consciente e inconsciente.
Contudo, em última análise, trata-se de uma teoria da acessibilidade cognitiva,
explicando como certos conteúdos de informação são amplamente acessíveis dentro de

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um sistema, bem como uma teoria da integração informacional e da relatabilidade. A


teoria se mostra promissora como uma teoria do estado de ciência (awareness), o
correlato funcional da experiência consciente, mas ela não oferece uma explicação da
experiência em si.
Pode-se supor que, de acordo com essa teoria, os conteúdos da experiência
sejam precisamente os conteúdos do espaço de trabalho. Mas mesmo que seja assim,
nada interno à teoria explica por que as informações no espaço de trabalho global são
experienciadas. O melhor que a teoria pode fazer é dizer que a informação é
experienciada porque é acessível globalmente. Mas agora a questão surge de uma forma
diferente: por que a acessibilidade global deveria dar origem à experiência consciente?
Como sempre, essa questão de ponte não é respondida.
Quase todos os trabalhos que adotam uma abordagem cognitiva ou
neurocientífica da consciência nos últimos anos poderiam ser submetidos a uma crítica
semelhante. O modelo do “Darwinismo Neural” de Edelman (1989), por exemplo,
aborda questões sobre o estado de ciência perceptual (perceptual awareness) e o
autoconceito (self-concept), mas não diz nada sobre por que também deveria haver
experiência. O modelo dos “esboços múltiplos” de Dennett (1991) é amplamente
orientado a uma explicação da relatabilidade de certos conteúdos mentais. A teoria do
“nível intermediário” de Jackendoff (1988) fornece uma descrição de alguns processos
computacionais subjacentes à consciência, mas Jackendoff enfatiza que a questão de
como eles “se projetam” na experiência consciente permanece misteriosa.
Pesquisadores que usam esses métodos geralmente não são explícitos sobre suas
atitudes em relação ao problema da experiência consciente, embora às vezes eles
adotem uma posição clara. Mesmo entre os que são claros, as atitudes diferem
amplamente. Ao posicionar esse tipo de trabalho em relação ao problema da experiência,
várias estratégias diferentes estão disponíveis. Seria útil se essas escolhas estratégicas
fossem explicitadas com mais frequência.
A primeira estratégia é simplesmente explicar outra coisa. Alguns pesquisadores
são explícitos ao dizer que o problema da experiência é difícil demais no momento e
que talvez esteja até mesmo fora do domínio da ciência. Esses pesquisadores escolhem
abordar um dos problemas mais tratáveis, tais como o da relatabilidade ou o do
autoconceito. Embora eu tenha chamado esses problemas de os problemas “fáceis”, eles
estão entre os mais interessantes problemas não resolvidos na ciência cognitiva, de
forma que esse trabalho certamente vale a pena. O pior que se pode dizer dessa escolha

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

é que, no contexto da pesquisa sobre a consciência, ela é relativamente pouco ambiciosa


e, às vezes, o trabalho pode ser mal interpretado.
A segunda escolha é seguir uma linha mais difícil e negar o fenômeno.
(Variações dessa abordagem são empregadas por Allport, 1988; Dennett 1991; Wilkes,
1988.) De acordo com essa linha, uma vez que tenhamos explicado funções como a
acessibilidade, a relatabilidade e outras, não há mais nenhum fenômeno chamado
“experiência” para explicar. Alguns negam explicitamente o fenômeno, defendendo, por
exemplo, que o que não é verificável externamente não pode ser real. Outros alcançam o
mesmo efeito admitindo que a experiência existe, mas somente se equipararmos
“experiência” a algo como a capacidade de discriminar e de relatar. Essas abordagens
levam a uma teoria mais simples, mas, em última instância, são insatisfatórias. A
experiência é o aspecto mais central e manifesto de nossas vidas mentais e, de fato,
talvez seja o explanandum chave na ciência da mente. Por causa desse status de
explanandum, a experiência não pode ser descartada como o espírito vital quando surge
uma nova teoria. Antes, é o fato central que qualquer teoria da consciência deve explicar.
Uma teoria que nega o fenômeno “resolve” o problema se esquivando da questão.
Em uma terceira opção, alguns pesquisadores afirmam estar explicando a
experiência no sentido pleno. Estes pesquisadores (diferentemente dos anteriores)
desejam levar a experiência muito a sério: eles expõem sua teoria ou seu modelo
funcional e afirmam que ele explica toda a qualidade subjetiva da experiência (e.g.,
Flohr, 1992; Humphrey, 1992). Contudo, geralmente se passa depressa pela etapa
relevante na explicação e, frequentemente, ela acaba parecendo mágica. Depois que
alguns detalhes sobre o processamento de informações são dados, a experiência entra
em cena de repente, mas continua obscuro como esses processos devem, de repente, dar
origem à experiência. Talvez simplesmente se tome como certo que eles dão, mas então
temos uma explicação incompleta e uma versão da quinta estratégia abaixo.
Uma quarta abordagem mais promissora apela a esses métodos para explicar a
estrutura da experiência. Por exemplo, pode-se argumentar que uma descrição das
discriminações feitas pelo sistema visual pode explicar as relações estruturais entre
diferentes experiências de cores, bem como a estrutura geométrica do campo visual
(veja, por exemplo, Clark 1992; Hardin 1992). Em geral, certos fatos sobre estruturas
encontradas no processamento correspondem e, pode-se argumentar, explicam fatos
sobre a estrutura da experiência. Essa estratégia é plausível, mas limitada. Na melhor
das hipóteses, ela toma como certa a existência da experiência e esclarece alguns fatos

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

sobre sua estrutura, fornecendo uma espécie de explicação não redutiva de seus aspectos
estruturais (falarei mais sobre isso adiante). Isso é útil para muitos propósitos, mas não
nos diz nada sobre por que, antes de mais nada, a experiência deve existir.
Uma quinta estratégia que é razoável é isolar o substrato da experiência. Afinal,
quase todo mundo admite que a experiência surge de um modo ou de outro a partir dos
processos cerebrais, e faz sentido identificar o tipo de processo do qual ela surge. Crick
e Koch apresentam seu trabalho como isolando o correlato neural da consciência, por
exemplo, e Edelman (1989) e Jackendoff (1988) fornecem argumentos relacionados. A
justificação desses argumentos requer uma análise teórica cuidadosa, especialmente
porque a experiência não é diretamente observável em contextos experimentais, mas,
quando aplicada criteriosamente, essa estratégia pode lançar uma luz indireta sobre o
problema da experiência. Ainda assim, a estratégia é claramente incompleta. Para uma
teoria satisfatória, precisamos saber mais do que quais processos geram a experiência:
precisamos de uma descrição do porquê e do como. Uma teoria da consciência completa
deve construir uma ponte explicativa.

5. O ingrediente extra

Vimos que existem razões sistemáticas de por que os métodos usuais da ciência
cognitiva e da neurociência falham em explicar a experiência consciente. Eles são
simplesmente o tipo errado de método: nada do que eles nos dão pode produzir uma
explicação. Para explicar a experiência consciente, precisamos de um ingrediente extra
na explicação. Isso cria um desafio para aqueles que levam a sério o problema difícil da
consciência: qual é o seu ingrediente extra e por que isso deveria explicar a experiência
consciente?
Não faltam ingredientes extras. Alguns propõem uma injeção de caos e dinâmica
não linear. Alguns acham que a chave está no processamento não-algorítmico. Alguns
apelam para futuras descobertas em neurofisiologia. Alguns supõem que a chave para o
mistério estará no nível da mecânica quântica. É fácil entender por que todas essas
sugestões são apresentadas. Nenhum dos antigos métodos funciona, então a solução
deve estar em algo novo. Infelizmente, todas essas sugestões sofrem dos mesmos
antigos problemas.
O processamento não-algorítmico, por exemplo, é apresentado por Penrose
(1989; 1994) por causa do papel que pode desempenhar no processo de insight

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matemático consciente. Os argumentos sobre a matemática são controversos, mas,


mesmo que eles sejam bem-sucedidos e que uma explicação do processamento não-
algorítmico no cérebro humano seja apresentada, ela ainda será apenas uma descrição
das funções envolvidas no raciocínio matemático e outros similares. A questão é
deixada sem resposta tanto para um processo não-algorítmico quanto para um processo
algorítmico: por que esse processo deve dar origem à experiência? Ao responder a essa
pergunta, não há nenhum papel especial para o processamento não-algorítmico.
O mesmo vale para a dinâmica não-linear e caótica. Elas podem fornecer uma
nova explicação da dinâmica do funcionamento cognitivo, bem diferente da que é dada
pelos métodos padrão na ciência cognitiva. Mas da dinâmica só se obtém mais dinâmica.
A questão sobre a experiência aqui continua misteriosa como sempre. O ponto é ainda
mais claro para novas descobertas na neurofisiologia. Essas novas descobertas podem
nos ajudar a progredir significativamente em nossa compreensão do funcionamento
cerebral, mas para qualquer processo neural que isolarmos, surgirá sempre a mesma
questão. É difícil imaginar o que um proponente da nova neurofisiologia espera que
aconteça além da explicação de mais funções cognitivas. Não é como se de repente
fôssemos descobrir um brilho fenomênico dentro de um neurônio!
Talvez o “ingrediente extra” mais popular de todos seja a mecânica quântica
(e.g., Hameroff, 1994). A atratividade das teorias quânticas da consciência pode ter
origem em uma Lei de Minimização do Mistério: a consciência é misteriosa e a
mecânica quântica é misteriosa, então talvez os dois mistérios tenham uma fonte
comum. No entanto, as teorias quânticas da consciência sofrem das mesmas
dificuldades que as teorias neurais ou computacionais. Fenômenos quânticos têm
propriedades funcionais notáveis, tais como o não-determinismo e a não-localidade. É
natural especular que essas propriedades possam desempenhar algum papel na
explicação de funções cognitivas, tais como a escolha aleatória e a integração de
informações, e essa hipótese não pode ser descartada a priori. Mas quando se trata da
explicação da experiência, os processos quânticos estão no mesmo barco que quaisquer
outros. A questão de por que esses processos deveriam dar origem à experiência
permanece completamente sem resposta.
(Um atrativo especial das teorias quânticas é o fato de que, em algumas
interpretações da mecânica quântica, a consciência desempenha um papel ativo no
“colapso” da função de onda quântica. Tais interpretações são controversas, mas, de
qualquer forma, elas não oferecem nenhuma esperança de explicar a consciência em

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termos de processos quânticos. Antes, essas teorias assumem a existência da consciência


e a utilizam na explicação dos processos quânticos. Na melhor das hipóteses, essas
teorias nos dizem algo sobre um papel físico que a consciência pode desempenhar. Elas
não nos dizem nada sobre como ela surge).
Em última análise, a mesma crítica se aplica a qualquer explicação puramente
física da consciência. Para qualquer processo físico que especificarmos, haverá uma
pergunta sem resposta: Por que esse processo deveria dar origem à experiência? Dado
qualquer processo como ele, é conceitualmente coerente que ele poderia ser instanciado
na ausência da experiência. Segue-se que uma mera explicação do processo físico não
nos dirá por que a experiência surge. A emergência da experiência vai para além do que
pode ser derivado de uma teoria física.
Uma explicação puramente física é adequada para explicar estruturas físicas,
explicando estruturas macroscópicas em termos de constituintes microestruturais
detalhados. E ela fornece uma explicação satisfatória do desempenho de funções,
descrevendo-as em termos dos mecanismos físicos que as desempenham. Isso acontece
porque uma descrição física pode implicar (entail) os fatos sobre estruturas e funções:
uma vez que os detalhes internos da descrição física são dados, as propriedades
estruturais e funcionais se seguem como uma consequência automática. Mas a estrutura
e a dinâmica dos processos físicos produzem apenas mais estrutura e dinâmica, então
não podemos esperar que esses processos expliquem algo mais do que estruturas e
funções. Os fatos sobre a experiência não podem ser uma consequência automática de
nenhuma descrição física, já que é conceitualmente coerente que qualquer processo
possa existir sem experiência. A experiência pode surgir do físico, mas não é implicada
do físico (is not entailed by the physical).
A moral de tudo isso é que você não pode explicar a experiência consciente de
uma maneira econômica. É um fato notável que métodos redutivos (métodos que
explicam um fenômeno de alto nível inteiramente em termos de processos físicos mais
básicos) funcionam bem em muitos domínios. Em certo sentido, nós podemos explicar a
maioria dos fenômenos biológicos e cognitivos de uma maneira econômica, na medida
em que esses fenômenos são vistos como consequências automáticas de processos mais
fundamentais. Seria maravilhoso se métodos redutivos também pudessem explicar a
experiência – por um longo tempo eu esperei que eles pudessem. Infelizmente, há
razões sistemáticas de por que esses métodos falham. Métodos redutivos são bem-
sucedidos na maioria dos domínios porque o que precisa ser explicado neles são

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

estruturas e funções, e esse é o tipo de coisa que uma descrição física pode implicar.
Quando se trata de um problema que está para além da explicação de estruturas e
funções, esses métodos são impotentes.
Isso pode parecer remanescente do argumento vitalista de que nenhuma
descrição física poderia explicar a vida, mas os casos não são análogos. O que motivou
o ceticismo vitalista foi a dúvida de que os mecanismos físicos pudessem desempenhar
as muitas funções notáveis associadas à vida, tais como o comportamento adaptativo
complexo e a reprodução. O argumento conceitual de que a explicação de funções é o
que é preciso foi aceito implicitamente. Mas por carecerem de um conhecimento
detalhado sobre os mecanismos bioquímicos, os vitalistas duvidaram que algum
processo físico pudesse desempenhar as funções relevantes e apresentaram a hipótese
do espírito vital como uma explicação alternativa. Depois que se revelou que os
processos físicos podiam desempenhar esse papel, as dúvidas dos vitalistas
desapareceram.
Com a experiência, por outro lado, a explicação física das funções não vem ao
caso. Em vez disso, a chave aqui é a questão conceitual de que a explicação das funções
não é suficiente para a explicação da experiência. Essa questão conceitual básica não é
algo que uma investigação neurocientífica adicional afetará. De maneira semelhante, a
experiência não é análoga ao élan vital. O espírito vital foi apresentado como um
postulado explicativo para explicar as funções relevantes e, portanto, poderia ser
descartado quando essas funções fossem explicadas sem ele. A experiência não é um
postulado explicativo, mas sim um explanandum por si só, e, portanto, não é um
candidato a esse tipo de eliminação.
É tentador notar que vários tipos de fenômenos intrigantes acabaram se
mostrando explicáveis em termos físicos. Mas todos eles eram problemas sobre o
comportamento observável de objetos físicos, os quais se resumiam a problemas na
explicação de estruturas e funções. Por esse motivo, esses fenômenos sempre foram o
tipo de coisa que uma descrição física poderia explicar, mesmo que em alguns
momentos houvesse boas razões para suspeitar que essa explicação não se concretizaria.
A indução tentadora a partir desses casos falha no caso da consciência, a qual não é um
problema sobre estruturas físicas e funções. O problema da consciência é desconcertante
de uma maneira totalmente diferente. Uma análise do problema nos mostra que a
experiência consciente não é exatamente o tipo de coisa que uma descrição totalmente
redutiva poderia explicar de forma bem-sucedida.

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6. Explicação não redutiva

Neste ponto, alguns se sentem tentados a desistir, defendendo que nunca teremos
uma teoria da experiência consciente. McGinn (1989), por exemplo, argumenta que o
problema é difícil demais para nossas mentes limitadas: somos “cognitivamente
fechados” no que diz respeito ao fenômeno. Outros argumentaram que a experiência
consciente se encontra totalmente fora do domínio da teoria científica.
Eu acho que esse pessimismo é prematuro. Este não é o momento de desistir, é o
momento no qual as coisas ficam interessantes. Quando métodos de explicação simples
são descartados, precisamos investigar as alternativas. Uma vez que a explicação
redutiva falha, a explicação não redutiva é a escolha natural.
Embora um número considerável de fenômenos tenha se mostrado inteiramente
explicável em termos de entidades mais simples que eles próprios, isso não é universal.
Na física, por vezes acontece que uma entidade deve ser considerada como fundamental.
Entidades fundamentais não são explicadas em termos de nada mais simples. Em vez
disso, elas são consideradas básicas, e é apresentada uma teoria de como elas se
relacionam com tudo o que resta no mundo. Por exemplo, no século XIX, descobriu-se
que processos eletromagnéticos não podiam ser totalmente explicados em termos dos
processos inteiramente mecânicos aos quais as teorias físicas anteriores apelavam, então
Maxwell e outros introduziram a carga eletromagnética e as forças eletromagnéticas
como novos componentes fundamentais de uma teoria física. Para explicar o
eletromagnetismo, a ontologia da física precisou ser expandida. Novas propriedades e
leis básicas foram necessárias para fornecer uma descrição satisfatória dos fenômenos.
Outros elementos que a teoria física considera como fundamentais incluem a
massa e o espaço-tempo. Não se fez tentativa nenhuma de explicar esses elementos em
termos de algo mais simples. Mas isso não exclui a possibilidade de uma teoria da
massa ou do espaço-tempo. Existe uma teoria complexa de como esses elementos se
inter-relacionam e das leis básicas nas quais eles se inserem. Esses princípios básicos
são usados para explicar muitos fenômenos familiares que concernem a massa, o espaço
e o tempo em um nível superior.
Eu sugiro que uma teoria da consciência deva considerar a experiência como
fundamental. Nós sabemos que uma teoria da consciência requer a adição de algo
fundamental à nossa ontologia, uma vez que tudo na teoria física é compatível com a

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ausência de consciência. Podemos adicionar um elemento não-físico inteiramente novo,


do qual a experiência pode ser derivada, mas é difícil entender como esse elemento seria.
É mais provável que consideremos a própria experiência como um elemento
fundamental do mundo, ao lado da massa, da carga e do espaço-tempo. Se
considerarmos a experiência como fundamental, podemos começar o trabalho de
construir uma teoria da experiência.
Onde existe uma propriedade fundamental, existem leis fundamentais. Uma
teoria não redutiva da experiência acrescentará novos princípios ao mobiliário das leis
básicas da natureza. Em última análise, esses princípios básicos sustentarão a carga
explicativa em uma teoria da consciência. Assim como explicamos fenômenos de alto
nível familiares que envolvem massa em termos de princípios mais básicos envolvendo
massa e outras entidades, também podemos explicar fenômenos familiares que
envolvem a experiência em termos de princípios mais básicos que envolvem a
experiência e outras entidades.
Em particular, uma teoria não redutiva da experiência especificará princípios
básicos que nos dizem como a experiência depende de elementos físicos do mundo.
Esses princípios psicofísicos não interferem nas leis físicas, uma vez que parece que as
leis físicas já formam um sistema fechado. Antes, eles serão um complemento para uma
teoria física. Uma teoria física fornece uma teoria de processos físicos, e uma teoria
psicofísica nos diz como esses processos dão origem à experiência. Sabemos que a
experiência depende de processos físicos, mas também sabemos que essa dependência
não pode ser derivada unicamente de leis físicas. Os novos princípios básicos
postulados por uma teoria não redutiva nos dão o ingrediente extra do qual precisamos
para construir uma ponte explicativa.
É claro que, ao considerar a experiência como fundamental, há um sentido em
que essa abordagem não nos diz por que, antes de mais nada, existe experiência. Mas
acontece o mesmo com qualquer teoria fundamental. Nada na física nos diz por que,
antes de mais nada, existe matéria. Mas não levamos isso em consideração contra
teorias da matéria. Certos elementos do mundo precisam ser considerados fundamentais
por qualquer teoria científica. Uma teoria da matéria ainda pode explicar vários tipos de
fatos sobre a matéria, mostrando como eles são consequências das leis básicas. O
mesmo vale para uma teoria da experiência.
Essa posição é qualificada como um tipo de dualismo, já que postula
propriedades básicas que estão para além das propriedades evocadas pela física. Mas é

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uma versão inocente do dualismo, inteiramente compatível com a visão científica do


mundo. Nada nessa abordagem contradiz o que quer que seja na teoria física:
precisamos somente adicionar mais princípios que fazem a ponte (bridging principles)
para explicar como a experiência surge a partir de processos físicos. Não há nada de
particularmente espiritual ou místico nessa teoria – sua forma geral é semelhante à de
uma teoria física, com algumas poucas entidades fundamentais conectadas por leis
fundamentais. Ela expande um pouco a ontologia, é claro, mas Maxwell fez a mesma
coisa. De fato, a estrutura geral dessa posição é inteiramente naturalista, defendendo que,
em última análise, o universo se reduz a uma rede de entidades básicas que obedecem a
leis simples, e defendendo que, em última análise, pode haver uma teoria da consciência
construída em termos de tais leis. Se essa posição deve ter um nome, uma boa escolha
poderia ser dualismo naturalista.
Se essa visão estiver correta, então, de certa forma, uma teoria da consciência
terá mais em comum com uma teoria na física do que com uma teoria na biologia. As
teorias biológicas não envolvem princípios que sejam fundamentais dessa maneira. Por
isso, a teoria biológica tem em si uma certa complexidade e desordem. Mas, na física,
na medida em que as teorias lidam com princípios fundamentais, elas aspiram à
simplicidade e à elegância. As leis fundamentais da natureza fazem parte do mobiliário
básico do mundo, e as teorias físicas nos dizem que esse mobiliário básico é
notavelmente simples. Se uma teoria da consciência também envolve princípios
fundamentais, então devemos esperar o mesmo. Os princípios de simplicidade,
elegância e até beleza que impulsionam a busca dos físicos por uma teoria fundamental
também se aplicarão a uma teoria da consciência.
(Uma nota técnica: alguns filósofos argumentam que, embora haja uma lacuna
conceitual entre processos físicos e a experiência, não é preciso que haja uma lacuna
metafísica, de modo que, em certo sentido, a experiência ainda pode ser física (e.g., Hill,
1991, Levine, 1983, Loar, 1990). Geralmente essa linha de argumentação é apoiada por
um apelo à noção de necessidade a posteriori (Kripke, 1980). Contudo, eu acho que
essa posição se apoia em uma má compreensão da necessidade a posteriori, ou então
requer uma forma inteiramente nova de necessidade na qual não temos motivo algum
para crer. Veja Chalmers (1996) (também Jackson, 1994 e Lewis, 1994) para detalhes.
De qualquer forma, essa posição ainda admite uma lacuna explicativa entre processos
físicos e a experiência. Por exemplo, os princípios que conectam o físico e o
experiencial não são derivados das leis da física, de forma que tais princípios devem ser

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considerados explicativamente fundamentais. Dessa forma, mesmo nesse tipo de


posicionamento, a estrutura explicativa de uma teoria da consciência será, em muitos
aspectos, similar à que eu descrevi).

7. Contornos de uma teoria da consciência

Não é cedo demais para começar a trabalhar em uma teoria. Já estamos em


condições de entender certos fatos chave sobre a relação entre processos físicos e a
experiência, bem como sobre as regularidades que os conectam. Uma vez que a
explicação redutiva é posta de lado, podemos colocar esses fatos na mesa para que eles
possam desempenhar seu devido papel de peças iniciais em uma teoria não redutiva da
consciência, bem como de restrições das leis básicas que constituem uma teoria final.
Há um problema óbvio que afeta o desenvolvimento de uma teoria da
consciência, que é a escassez de dados objetivos. A experiência consciente não é
diretamente observável em um contexto experimental, de forma que não podemos gerar
dados sobre a relação entre processos físicos e experiência à vontade. Ainda assim,
todos nós temos acesso a uma rica fonte de dados em nossos próprios casos. Muitas
regularidades importantes entre experiência e processamento podem ser inferidas a
partir de considerações sobre a própria experiência de cada um. Também há boas fontes
indiretas de dados de casos observáveis, como quando nos baseamos no relato verbal de
um sujeito como uma indicação de experiência. Esses métodos têm suas limitações, mas
temos dados mais do que suficientes para começar a fazer uma teoria deslanchar.
Uma análise filosófica também é útil para fazer um bom negócio com os dados
que temos. Esse tipo de análise pode fornecer diversos princípios relacionando a
consciência e a cognição, impondo, assim, uma forte restrição à forma de uma teoria
final. Como veremos, o método de se utilizar experimentos de pensamento também
pode fornecer recompensas significativas. Finalmente, o fato de estarmos procurando
por uma teoria fundamental significa que podemos apelar a restrições não empíricas tais
como simplicidade, homogeneidade e assim por diante no desenvolvimento de uma
teoria. Devemos procurar sistematizar as informações que temos, estendê-las o máximo
possível através de uma análise cuidadosa e, em seguida, inferir a teoria mais simples
possível que explique os dados e continue sendo uma candidata plausível para fazer
parte do mobiliário fundamental do mundo.

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Tais teorias sempre guardarão um elemento de especulação que não está


presente em outras teorias científicas, devido à impossibilidade de testes experimentais
intersubjetivos conclusivos. Ainda assim, certamente, podemos construir teorias que
sejam compatíveis com os dados que temos, bem como avaliá-las comparando-as umas
com as outras. Mesmo na ausência de observação intersubjetiva, existem inúmeros
critérios disponíveis para a avaliação de tais teorias: simplicidade, coerência interna,
coerência com teorias em outros domínios, capacidade de reproduzir as propriedades da
experiência que são familiares do nosso próprio caso e até uma acomodação geral aos
ditames do senso comum. Talvez restem indeterminações significativas mesmo quando
todas essas restrições forem aplicadas, mas podemos pelo menos desenvolver
candidatos plausíveis. Só seremos capazes de avaliar as teorias candidatas, quando elas
forem desenvolvidas.
Uma teoria não redutiva da consciência consistirá em diversos princípios
psicofísicos – princípios conectando as propriedades dos processos físicos às
propriedades da experiência. Podemos pensar nesses princípios como encapsulando a
maneira pela qual a experiência surge do físico. Em última instância, eles deveriam nos
dizer que tipo de sistema físico terá experiências associadas e, para os sistemas que as
têm, eles deveriam nos dizer que tipo de propriedades físicas são relevantes para a
emergência da experiência, bem como, para qualquer sistema físico, exatamente que
tipo de experiência deveríamos esperar que ele produza. Essa é uma tarefa difícil, mas
não há razão para não começarmos.
A seguir, apresento meus próprios candidatos aos princípios psicofísicos que
poderiam entrar em uma teoria da consciência. Os dois primeiros são princípios não
básicos – conexões sistemáticas entre processamento e experiência em um nível
relativamente alto. Esses princípios podem desempenhar um papel significativo no
desenvolvimento e restrição de uma teoria da consciência, mas não são introduzidos em
um nível suficientemente fundamental para se qualificarem como leis verdadeiramente
básicas. O último princípio é o meu candidato a um princípio básico que poderia formar
a pedra angular de uma teoria da consciência fundamental. Esse último princípio é
particularmente especulativo, mas é o tipo de especulação que é necessária para que um
dia tenhamos uma teoria da consciência satisfatória. Só posso apresentar esses
princípios aqui de maneira breve. Argumento a favor deles muito mais longamente em
Chalmers (1996).

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1. O princípio da coerência estrutural

Este é um princípio de coerência entre a estrutura da consciência e a estrutura


do estado de ciência. Lembre-se de que “estado de ciência” (awareness) foi usado
anteriormente para se referir aos vários fenômenos funcionais que estão associados à
consciência. Agora estou usando-o para me referir a um processo um pouco mais
específico nos fundamentos cognitivos da experiência. Em particular, os conteúdos do
estado de ciência devem ser entendidos como aqueles conteúdos de informação que são
acessíveis aos sistemas centrais e que são mobilizados de maneira generalizada no
controle do comportamento. Em resumo, podemos pensar sobre o estado de ciência
como disponibilidade direta para o controle global. Para uma primeira aproximação, os
conteúdos do estado de ciência são os conteúdos que são diretamente acessíveis e
potencialmente relatáveis, pelo menos em um sistema que usa linguagem.
O estado de ciência é uma noção puramente funcional, mas, ainda assim, está
intimamente ligada à experiência consciente. Em casos familiares, onde quer que
encontremos consciência, encontramos estado de ciência. Onde quer que haja
experiência consciente, há alguma informação correspondente no sistema cognitivo que
está disponível no controle do comportamento e disponível para um relato verbal.
Inversamente, parece que sempre que há uma informação disponível para um relato e
para o controle global, há uma experiência consciente correspondente. Assim, há uma
correspondência direta entre consciência e estado de ciência.
A correspondência pode ser levada mais longe. É um fato central sobre a
experiência que ela tem uma estrutura complexa. O campo visual tem uma geometria
complexa, por exemplo. Há também relações de semelhança e de diferença entre
experiências, bem como relações em coisas como intensidade relativa. A experiência de
todo sujeito pode ser caracterizada e decomposta pelo menos parcialmente em termos
dessas propriedades estruturais: relações de similaridade e diferença, localização
percebida, intensidade relativa, estrutura geométrica e assim por diante. Também é um
fato central que, para cada um desses elementos estruturais, há um elemento
correspondente na estrutura de processamento de informação do estado de ciência.
Tomemos as sensações de cor como exemplo. Para cada distinção entre
experiências de cor, há uma distinção correspondente no processamento. As diferentes
cores fenomênicas que experienciamos formam um espaço tridimensional complexo
que varia em matiz, saturação e intensidade. As propriedades desse espaço podem ser

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recuperadas a partir de considerações do processamento de informações: o exame dos


sistemas visuais mostra que as formas de onda da luz são discriminadas e analisadas em
três eixos diferentes, e é essa informação tridimensional que é relevante para o
processamento posterior. Portanto, a estrutura tridimensional do espaço fenomênico de
cores corresponde diretamente à estrutura tridimensional do estado de ciência visual
(visual awareness). Isso é exatamente o que esperaríamos. Afinal, toda distinção de
cores corresponde a alguma informação relatável e, portanto, a uma distinção que é
representada na estrutura do processamento.
De uma maneira mais direta, a estrutura geométrica do campo visual é
diretamente refletida em uma estrutura que pode ser recuperada a partir do
processamento visual. Todas as relações geométricas correspondem a algo que pode ser
relatado e, portanto, são representadas cognitivamente. Se contássemos apenas a história
do processamento de informações no sistema visual e cognitivo de um agente, não
poderíamos observar diretamente as experiências visuais desse agente. Ainda assim,
poderíamos inferir as propriedades estruturais dessas experiências.
Em geral, qualquer informação que seja experienciada conscientemente também
será representada cognitivamente. A estrutura de granularidade fina (fine-grained) do
campo visual corresponderá a alguma estrutura de granularidade fina no processamento
visual. O mesmo vale para experiências em outras modalidades e até para experiências
não sensoriais. Imagens mentais internas têm propriedades geométricas que são
representadas no processamento. Até emoções têm propriedades estruturais, tais como
intensidade relativa, que correspondem diretamente a uma propriedade estrutural do
processamento – onde há maior intensidade, encontramos um efeito maior em processos
posteriores. Em geral, justamente porque as propriedades estruturais da experiência são
acessíveis e relatáveis, elas serão representadas diretamente na estrutura do estado de
ciência (awareness).
É esse isomorfismo entre as estruturas da consciência e do estado de ciência que
constitui o princípio da coerência estrutural. Esse princípio reflete o fato central de que,
embora os processos cognitivos não impliquem conceitualmente fatos sobre a
experiência consciente, a consciência e a cognição não flutuam livres uma da outra, mas
coexistem de maneira íntima.
Esse princípio tem seus limites. Ele nos permite recuperar propriedades
estruturais da experiência a partir das propriedades do processamento de informações,
mas nem todas as propriedades da experiência são propriedades estruturais. Existem

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

propriedades da experiência, tais como a natureza intrínseca de uma sensação de


vermelho, que não podem ser completamente capturadas em uma descrição estrutural. A
própria inteligibilidade dos cenários de espectro invertido, nos quais as experiências de
vermelho e verde são invertidas, mas todas as propriedades estruturais permanecem as
mesmas, mostram que as propriedades estruturais restringem a experiência sem esgotá-
la. Ainda assim, o próprio fato de que nos sentimos compelidos a deixar as propriedades
estruturais inalteradas quando imaginamos experiências invertidas entre sistemas
funcionalmente idênticos mostra o quão central é o princípio da coerência estrutural
para a nossa concepção de nossas vidas mentais. Ele não é um princípio logicamente
necessário, já que, afinal, podemos imaginar todo o processamento de informações
ocorrendo sem nenhuma experiência. Ainda assim, é uma restrição forte e familiar à
conexão psicofísica.
O princípio da coerência estrutural permite um tipo muito útil de explicação
indireta da experiência em termos de processos físicos. Por exemplo, podemos usar
fatos sobre o processamento neural de informações visuais para explicar indiretamente a
estrutura do espaço de cores. Os fatos sobre o processamento neural podem implicar e
explicar a estrutura do estado de ciência. Se tomarmos o princípio da coerência como
certo, a estrutura da experiência também será explicada. A investigação empírica pode
até nos levar a entender melhor a estrutura do estado de ciência de um morcego,
esclarecendo indiretamente a incômoda questão de Nagel de como é ser um morcego.
Esse princípio fornece uma interpretação natural de grande parte do trabalho existente
sobre a explicação da consciência (por exemplo, Clark, 1992 e Hardin, 1992, sobre
cores; e Akins, 1993, sobre morcegos), embora com frequência se apele a ele de
maneira não explícita. Ele é tão familiar, que é tomado como certo por quase todos, e é
uma base central na explicação cognitiva da consciência.
A coerência entre consciência e estado de ciência também permite uma
interpretação natural do que tem sido feito na neurociência com o objetivo de isolar o
substrato (ou correlato neural) da consciência. Várias hipóteses específicas já foram
apresentadas. Crick e Koch (1990), por exemplo, sugerem que oscilações de 40 Hz
podem ser o correlato neural da consciência, enquanto Libet (1993) sugere que a
atividade neural estendida temporalmente é central. Se aceitarmos o princípio da
coerência, o correlato físico mais direto da consciência é o estado de ciência: o processo
pelo qual a informação é diretamente disponibilizada para o controle global. As
diferentes hipóteses específicas podem ser interpretadas como sugestões empíricas

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sobre como se pode alcançar o estado de ciência. Por exemplo, Crick e Koch sugerem
que as oscilações de 40 Hz são a porta de acesso (gateway) pela qual as informações são
integradas na memória de trabalho e, assim, disponibilizadas para processos posteriores.
Da mesma forma, é natural supor que a atividade estendida temporalmente de Libet seja
relevante precisamente porque somente esse tipo de atividade atinge a disponibilidade
global. O mesmo se aplica a outros correlatos sugeridos, como o “espaço de trabalho
global” de Baars (1988), as “representações de alta qualidade” de Farah (1994) e as
“entradas seletoras (selector inputs) para os sistemas de ação” de Shallice (1972). Todos
eles podem ser vistos como hipóteses sobre os mecanismos do estado de ciência: os
mecanismos que desempenham a função de disponibilizar a informação de maneira
direta para o controle global.
Dada a coerência entre consciência e estado de ciência, segue-se que um
mecanismo do estado de ciência será ele próprio um correlato da experiência consciente.
A questão de exatamente quais mecanismos no cérebro governam a disponibilidade
global é empírica – talvez haja muitos desses mecanismos. Mas se aceitarmos o
princípio da coerência, temos motivos para acreditar que os processos que explicam o
estado de ciência serão ao mesmo tempo parte da base da consciência.

2. O princípio da invariância organizacional

Este princípio afirma que quaisquer dois sistemas com a mesma organização
funcional de baixa granularidade terão experiências qualitativamente idênticas. Se os
padrões causais da organização neural fossem duplicados no silício, por exemplo, com
um chip de silício para cada neurônio e os mesmos padrões de interação, então as
mesmas experiências surgiriam. De acordo com esse princípio, o que importa para a
emergência da experiência não é a composição física específica de um sistema, mas o
padrão abstrato de interação causal entre seus componentes. Este princípio é
controverso, é claro. Na opinião de alguns (e.g., Searle, 1980), a consciência está ligada
a uma biologia específica, de modo que um isomorfo de um humano feito de silício não
é necessariamente consciente. Contudo, acredito que o princípio possa receber um apoio
significativo da análise de experimentos mentais.
Muito brevemente: suponha (a fins de uma reductio ad absurdum) que o
princípio seja falso e que pudesse haver dois sistemas funcionalmente isomórficos com
experiências diferentes. Talvez apenas um dos sistemas seja consciente, ou talvez

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ambos o sejam, mas possuem experiências diferentes. Para fins de ilustração, digamos
que um sistema é feito de neurônios e o outro de silício, e que um experiencia vermelho,
enquanto o outro experiencia azul. Os dois sistemas têm a mesma organização, então
podemos imaginar que um se transforme gradualmente no outro, talvez substituindo-se
os neurônios, um por um, por chips de silício com a mesma função local. Assim,
adquirimos um espectro de casos intermediários, cada um com a mesma organização,
mas com uma composição física ligeiramente diferente e com experiências ligeiramente
diferentes. Nesse espectro, deve haver dois sistemas, A e B, entre os quais substituímos
menos de um décimo do sistema, mas cujas experiências diferem. Esses dois sistemas
são fisicamente idênticos, com a exceção de que um pequeno circuito neural em A foi
substituído por um circuito de silício em B.
O passo chave no experimento mental é identificar o circuito neural relevante
em A e instalar ao lado dele um circuito de silício causalmente isomórfico, com um
interruptor entre os dois. O que acontece quando ligamos o interruptor? Por hipótese, as
experiências conscientes do sistema mudarão – digamos, para fins de ilustração, que do
vermelho para o azul. Isso decorre do fato de que o sistema após a mudança é
essencialmente uma versão de B, enquanto antes da mudança é apenas A.
Mas considerando as suposições, não há como o sistema perceber as mudanças!
Sua organização causal permanece constante, de forma que todos os seus estados
funcionais e disposições comportamentais permanecem fixos. Até onde ele sabe, nada
de anormal aconteceu. Não há espaço para o pensamento: “Hum! Algo estranho acabou
de acontecer!” De maneira geral, a estrutura de qualquer pensamento desse tipo deve ser
refletida no processamento, mas aqui a estrutura do processamento permanece constante.
Se houvesse tal pensamento, ele deveria flutuar totalmente livre do sistema e seria
totalmente incapaz de afetar o processamento posterior. (Se ele afetasse o
processamento posterior, os sistemas seriam funcionalmente distintos, ao contrário da
hipótese). Podemos até ligar e desligar o interruptor várias vezes, de forma que as
experiências de vermelho e de azul dancem em alternância diante do “olho interno” do
sistema. Segundo a hipótese, o sistema nunca pode perceber esses “qualia dançantes”.
Considero que essa é uma reductio da suposição original. É um fato central
sobre a experiência, muito familiar do nosso próprio caso, que sempre que as
experiências mudam significativamente e estamos prestando atenção, podemos perceber
a mudança. Se não fosse esse o caso, seríamos levados à possibilidade cética de que
nossas experiências estão dançando diante dos nossos olhos o tempo todo. Essa hipótese

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tem o mesmo status da possibilidade de o mundo ter sido criado há cinco minutos:
talvez seja logicamente coerente, mas não é plausível. Dada a suposição extremamente
plausível de que mudanças na experiência correspondem a mudanças no processamento,
somos levados à conclusão de que a hipótese original é impossível e que quaisquer dois
sistemas funcionalmente isomórficos devem ter o mesmo tipo de experiências. Para
colocar em termos técnicos, as hipóteses filosóficas dos “qualia ausentes” e dos “qualia
invertidos”, embora logicamente possíveis, são empírica e nomologicamente
impossíveis.
(Alguns podem desconfiar que um isomorfo de silício de um sistema neural
possa ser impossível por razões técnicas. Essa questão está aberta. O princípio da
invariância diz apenas que se um isomorfo for possível, então ele terá o mesmo tipo de
experiência consciente).
Há mais a ser dito aqui, mas isso já dá um primeiro sabor da ideia. Mais uma vez,
esse experimento mental se baseia em fatos familiares sobre a coerência entre a
consciência e o processamento cognitivo para chegar a uma conclusão forte sobre a
relação entre a estrutura física e a experiência. Se o argumento vingar, sabemos que as
únicas propriedades físicas diretamente relevantes para o surgimento da experiência são
as propriedades organizacionais. Isso atua como mais uma forte restrição a uma teoria
da consciência.

3. A teoria do duplo aspecto da informação

Os dois princípios precedentes eram princípios não básicos. Elas envolvem


noções de alto nível, tais como “estado de ciência” e “organização” e, portanto, estão no
nível errado para constituir as leis fundamentais em uma teoria da consciência. Ainda
assim, eles agem como fortes restrições. O que ainda é preciso são princípios básicos
que se ajustam a essas restrições e, em última análise, podem explicá-las.
O princípio básico que eu sugiro envolve de maneira central a noção de
informação. Entendo informação mais ou menos no sentido de Shannon (1948). Onde
há informação, há estados de informação integrados a um espaço de informação. Um
espaço de informação possui uma estrutura básica de relações de diferença entre seus
elementos, caracterizando as formas em que diferentes elementos em um espaço são
similares ou diferentes, possivelmente de maneiras complexas. Um espaço de
informação é um objeto abstrato, mas seguindo Shannon, podemos ver as informações

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

como fisicamente incorporadas quando há um espaço de estados físicos distintos, cujas


diferenças podem ser transmitidas por alguma rota causal. Os próprios estados
transmitidos podem ser vistos como constituindo um espaço de informação. Retomando
uma frase de Bateson (1972), informação física é uma diferença que faz a diferença.
O princípio do duplo aspecto tem origem na observação de que há um
isomorfismo direto entre certos espaços de informação fisicamente incorporados e
certos espaços de informação fenomênicos (ou experienciais). A partir do mesmo tipo
de observação que entrou no princípio da coerência estrutural, podemos notar que as
diferenças entre estados fenomênicos têm uma estrutura que corresponde diretamente às
diferenças integradas a processos físicos, particularmente às diferenças que fazem a
diferença em certas rotas causais envolvidas no controle e disponibilidade global. Ou
seja, podemos encontrar o mesmo espaço de informação abstrato integrado ao
processamento físico e à experiência consciente.
Isso leva a uma hipótese natural: que a informação (ou, pelo menos, algumas
informações) possui dois aspectos básicos: um aspecto físico e um aspecto fenomênico.
Essa hipótese tem o status de um princípio básico que pode subjazer a e explicar a
emergência da experiência a partir do físico. A experiência surge em virtude de seu
status como um aspecto da informação, quando o outro aspecto se encontra incorporado
no processamento físico.
Esse princípio é apoiado por várias considerações, as quais eu só posso esboçar
brevemente aqui. Primeiro, a consideração do tipo de mudanças físicas que corresponde
a mudanças na experiência consciente sugere que tais mudanças são sempre relevantes
em virtude de seu papel na constituição de mudanças informacionais – diferenças
dentro de um espaço abstrato de estados que são divididos precisamente de acordo com
suas diferenças causais ao longo de certas rotas causais. Segundo, se o princípio da
invariância organizacional é válido, então precisamos encontrar alguma propriedade
organizacional fundamental à qual a experiência esteja ligada, e a informação é uma
propriedade organizacional par excellence. Terceiro, esse princípio nos dá esperança de
explicar o princípio da coerência estrutural em termos da estrutura presente dentro dos
espaços de informação. Quarto, a análise da explicação cognitiva de nossos juízos e
afirmações sobre a experiência consciente (juízos que são funcionalmente explicáveis,
mas, ainda assim, profundamente ligados à própria experiência) sugere que a explicação
envolve de maneira central os estados de informação integrados ao processamento
cognitivo. Segue-se que uma teoria baseada na informação permite uma coerência

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

profunda entre a explicação da experiência e a explicação de nossos juízos e afirmações


sobre ela.
Wheeler (1990) sugeriu que a informação é fundamental para a física do
universo. De acordo com essa doutrina “it from bit” 4 , as leis da física podem ser
construídas em termos de informação, postulando estados diferentes que dão origem a
efeitos diferentes sem realmente dizer o que são esses estados. É apenas a posição deles
em um espaço de informação que conta. Se for assim, então a informação é uma
candidata natural a também desempenhar um papel em uma teoria fundamental da
consciência. Somos levados a uma concepção do mundo na qual a informação é
verdadeiramente fundamental e na qual ela tem dois aspectos básicos, correspondendo
às características físicas e fenomênicas do mundo.
É claro, o princípio do duplo aspecto é extremamente especulativo e também é
subdeterminado, deixando várias questões-chave sem resposta. Uma questão óbvia é se
toda informação tem um aspecto fenomênico. Uma possibilidade é que precisemos de
uma restrição a mais à teoria fundamental, indicando exatamente que tipo de
informação tem um aspecto fenomênico. A outra possibilidade é que não haja tal
restrição. Se não houver, a experiência é muito mais difundida do que poderíamos ter
pensado, já que a informação está em toda parte. A princípio isso é contraintuitivo, mas,
ao refletir a respeito, acho que a posição ganha uma certa plausibilidade e elegância.
Onde existe processamento simples de informações, existe experiência simples, e onde
existe processamento complexo de informações, existe experiência complexa. Um rato
tem uma estrutura de processamento de informações mais simples que um humano e
possui uma experiência correspondentemente mais simples. Talvez um termostato, uma
estrutura de processamento de informações maximamente simples, possa ter uma
experiência maximamente simples? De fato, se a experiência é realmente uma
propriedade fundamental, seria surpreendente que ela surgisse apenas de vez em
quando: a maior parte das propriedades fundamentais são distribuídas de maneira mais
uniforme. De qualquer forma, essa é realmente uma questão aberta, mas acredito que a
posição não seja tão implausível quanto frequentemente se pensa.
Quando um elo fundamental entre informação e experiência é colocado sobre a
mesa, abre-se a porta a uma especulação metafísica mais grandiosa a respeito da

4 Termo de difícil tradução para o português, em geral “it from bit” aparece em textos
especializados no original, em inglês. Em tradução livre, “coisas a partir de bits” (N. do T.).

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natureza do mundo. Por exemplo, é comum notar que a física caracteriza suas entidades
básicas apenas extrinsecamente, em termos de suas relações com outras entidades, que
são elas próprias caracterizadas extrinsecamente, e assim por diante. A natureza
intrínseca das entidades físicas é deixada de lado. Alguns argumentam que tais
propriedades intrínsecas não existem, mas então nos resta um mundo que é puro fluxo
causal (um puro fluxo de informações), sem propriedades com as quais a causalidade
pode se relacionar. Se admitirmos que existam propriedades intrínsecas, uma
especulação natural, dado o que foi dito acima, é que as propriedades intrínsecas do
físico (as propriedades com as quais, em última instância, a causalidade se relaciona)
são elas próprias propriedades fenomênicas. Podemos dizer que propriedades
fenomênicas são o aspecto interno da informação. Isso poderia responder uma
preocupação com relação à relevância causal da experiência – uma preocupação natural,
dada uma teoria na qual o domínio físico é causalmente fechado e na qual a experiência
é suplementar à física. A visão informacional nos permite entender como a experiência
pode ter um tipo sutil de relevância causal em virtude de seu status como a natureza
intrínseca do físico. Provavelmente, é melhor ignorar essa especulação metafísica
quando o propósito é de desenvolver uma teoria científica. Mas ao abordar algumas
questões filosóficas, ela é bastante sugestiva.

8. Conclusão

A teoria que apresentei é especulativa, mas é uma candidata. Suspeito que os


princípios de coerência estrutural e invariância organizacional sejam bases de qualquer
teoria satisfatória da consciência. O status da teoria do duplo aspecto da informação é
menos certo. De fato, agora ela é mais uma ideia do que uma teoria. Para que se tenha
esperança de um eventual sucesso explicativo, ela deverá ser especificada de maneira
mais completa e desenvolvida em uma forma mais robusta. Ainda assim, a reflexão
sobre o que é plausível e implausível, sobre onde ela funciona e onde ela falha, só pode
levar a uma teoria melhor.
A maioria das teorias da consciência existentes ou nega o fenômeno, ou explica
outra coisa, ou eleva o problema a um mistério eterno. Espero ter demonstrado que é
possível progredir no problema, até mesmo quando o levamos a sério. Para avançar
ainda mais, precisaremos de mais investigação, teorias mais refinadas e análises mais

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cuidadosas. O problema difícil é um problema difícil, mas não há razão para acreditar
que ele permanecerá perpetuamente sem solução.

Leitura adicional

Os problemas da consciência foram amplamente discutidos na literatura


filosófica recente. Para um esclarecimento conceitual dos vários problemas da
consciência, veja Block (1995), Nelkin (1993) e Tye (1995). Os que deram ênfase nas
dificuldades de explicar a experiência em termos físicos incluem Hodgson (1988),
Jackson (1982), Levine (1983), Lockwood (1989), McGinn (1989), Nagel (1974),
Seager (1991), Searle (1991), Strawson (1994) e Velmans (1991), dentre outros. Os que
adotam uma abordagem reducionista incluem Churchland (1995), Clark (1992), Dennett
(1991), Dretske (1995), Kirk (1994), Rosenthal (1996) e Tye (1995). Não houve muitas
tentativas de construir teorias não reducionistas detalhadas na literatura, mas veja
Hodgson (1988) e Lockwood (1989) para algumas ideias nessa direção. Duas excelentes
coleções de artigos recentes sobre a consciência são Block, Flanagan e Güzeldere
(1996) e Metzinger (1995).

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352
COMO PODEMOS CONSTRUIR UMA CIÊNCIA DA
CONSCIÊNCIA?1
David J. Chalmers
Australian National University/ New York University

Tradução: Marco Aurélio S. Alves2 e João César Ramos3

RESUMO: Nos últimos anos, houve uma explosão de trabalhos científicos sobre a consciência
na neurociência cognitiva, na psicologia e em outros campos. Tornou-se possível pensar que
estamos nos movendo em direção a um conhecimento científico genuíno da experiência
consciente. Mas, afinal, o que é a ciência da consciência, e que forma deveria tal ciência assumir?
Oferecemos aqui um panorama geral dessa agenda.

PALAVRAS-CHAVE: Ciência da consciência. Experiência consciente. Dados de primeira


pessoa. Dados de terceira pessoa.

ABSTRACT: In recent years there has been an explosion of scientific work on consciousness
in cognitive neuroscience, psychology, and other fields. It has become possible to think that we
are moving toward a genuine scientific understanding of conscious experience. But what is the
science of consciousness all about, and what form should such a science take? This paper gives
an overview of the agenda.

KEYWORDS: Science of consciousness. Conscious experience. First-person data. Third-


person data.

1 Publicado originalmente em M. Gazzaniga (Ed.). The Cognitive Neurosciences III. MIT Press,
2004.
2 DFIME - UFSJ; PPGFIL - UFSJ; POSDEFIL - UFOP.
3 PPGFIL - UFSJ.
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1. Dados de primeira pessoa e dados de terceira pessoa

A tarefa da ciência da consciência, como eu a enxergo, é integrar


sistematicamente duas classes cruciais de dados em uma estrutura científica: dados de
terceira pessoa, ou dados sobre comportamentos e processos cerebrais, e dados de
primeira pessoa, ou dados sobre a experiência subjetiva. Quando um sistema consciente
é observado do ponto de vista de terceira pessoa, uma gama de comportamentos e
fenômenos neurais específicos se manifesta. Quando um sistema consciente é observado
do ponto de vista de primeira pessoa, uma gama de fenômenos subjetivos específicos se
manifesta. Ambos os tipos de fenômenos possuem o estatuto de dados para a ciência da
consciência.
Os dados de terceira pessoa dizem respeito ao comportamento e aos processos
cerebrais de sistemas conscientes. Esses dados comportamentais e neurofisiológicos
fornecem o material que tradicionalmente interessa à psicologia cognitiva e à
neurociência cognitiva. No que tange à ciência da consciência, alguns dos dados de
terceira pessoa que são particularmente relevantes giram em torno dos temas a seguir:
 Discriminação perceptiva de estímulos externos;
 Integração de informação através de modalidades sensórias;
 Ações voluntárias e automáticas;
 Níveis de acesso a informações internamente representada;
 Reportabilidade de estados internos;
 Diferenças entre sono e vigília.
Os dados de primeira pessoa dizem respeito às experiências subjetivas de
sistemas conscientes. É um dado para cada um de nós que tais experiências existem: nós
podemos coletar informações sobre elas tanto prestando atenção a nossas próprias
experiências, quanto monitorando relatos verbais subjetivos sobre as experiências de
outros. Esses dados fenomenológicos fornecem o objeto distintivo para a ciência da
consciência. Alguns dos tipos centrais de dados de primeira pessoa estão relacionados
com os temas a seguir:
 Experiências visuais (a experiência de cor e de profundidade, por exemplo);
 Outras experiências perceptuais (experiências auditivas e táteis, por exemplo);
 Experiências corporais (dor e fome, por exemplo);

354
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

 Imaginação imagética (lembrança de imagens visuais, por exemplo);


 Experiências emocionais (felicidade e raiva, por exemplo);
 Pensamento ocorrente (a experiência de refletir e decidir, por exemplo).
Tanto os dados de terceira pessoa quanto os dados de primeira pessoa precisam
de explicação. O caso do processamento musical fornece um bom exemplo. Se
observarmos alguém ouvindo música, dados relevantes de terceira pessoa incluem
coisas tais como a natureza do estímulo auditivo, seus efeitos no ouvido e no córtex
auditivo do sujeito, várias respostas comportamentais do sujeito e qualquer relato verbal
que o sujeito venha a produzir. Todos esses dados de terceira pessoa precisam de
explicação, mas eles não são tudo que há para ser explicado. Como todo mundo que já
ouviu música sabe bem, também há uma qualidade distintiva de experiência subjetiva
associada ao ato de ouvir música. Uma ciência da música que explicasse os vários dados
de terceira pessoa listados acima, mas que não explicasse os dados de primeira pessoa
da experiência musical, seria uma ciência da música profundamente incompleta. Uma
ciência da experiência musical precisa explicar ambos os tipos de fenômenos, de
preferência através de uma estrutura integrada.

2. Explicando os dados

Os problemas relacionados à explicação dos dados de terceira pessoa associados


à consciência são, às vezes, chamados de problemas “fáceis” da consciência. O
problema relativo à explicação dos dados de primeira pessoa associados à consciência é,
às vezes, chamado de problema “difícil” da consciência. Isso não significa que os
problemas associados aos dados de terceira pessoa sejam, em algum sentido, triviais,
mas sim que já possuímos um modelo claro de como podemos produzir tais explicações.
Para explicar os dados de terceira pessoa, precisamos explicar o funcionamento
objetivo de um sistema. Por exemplo, para explicar a discriminação perceptiva
precisamos explicar como um processo cognitivo consegue executar a função objetiva
de distinguir vários estímulos diferentes e de produzir respostas apropriadas. Para
explicar uma função objetiva desse tipo, nós especificamos o mecanismo que executa a
função. Nas ciências da mente, esse mecanismo geralmente é neural ou computacional.
No caso da discriminação perceptiva, por exemplo, nós especificamos o mecanismo
neural ou computacional responsável por distinguir os estímulos relevantes. Em muitos
casos, ainda não sabemos exatamente quais são esses mecanismos, mas aparentemente

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

não há, em princípio, nenhum obstáculo para encontrá-los e o mesmo vale, portanto,
para a explicação dos dados relevantes de terceira pessoa.
Esse tipo de explicação é comum em muitas áreas diferentes da ciência. Por
exemplo, na explicação dos fenômenos genéticos o que precisava ser explicado era a
função objetiva de transmissão de características hereditárias através da reprodução.
Watson e Crick isolaram um mecanismo potencialmente capaz de executar essa função:
a molécula de DNA, através da replicação dos filamentos de dupla hélice. À medida que
passamos a entender como a molécula de DNA executa essa função, os fenômenos
genéticos passaram a ser gradualmente explicados. O resultado é uma espécie de
explicação redutiva: explicamos os fenômenos de nível superior (fenômenos genéticos)
em termos de processos de nível inferior (biologia molecular). Seria plausível esperar
que o mesmo tipo de modelo se aplicasse às ciências da mente, ao menos no que
concerne a explicação do funcionamento objetivo do sistema cognitivo em termos
neurofisiológicos.
Quando se trata de dados de primeira pessoa, entretanto, esse modelo deixa de
funcionar. A razão disso é que dados de primeira pessoa – os dados da experiência
subjetiva – não dizem respeito ao funcionamento objetivo. Uma maneira de ver isso é
notar que mesmo que se tivéssemos um levantamento completo de todas as funções
objetivas relacionadas à consciência – discriminação perceptiva, integração, relato
verbal e assim por diante – ainda pode haver uma questão a mais: por que todas essas
operações estão associadas à experiência subjetiva? E mais: por que cada operação está
associada ao tipo específico de experiência subjetiva ao qual está associada?
Simplesmente explicar as funções objetivas não responde essas questões.
A lição é que, enquanto dados, dados de primeira pessoa são irredutíveis a dados
de terceira pessoa e vice-versa. Ou seja, os dados de terceira pessoa, por si só, fornecem
um catálogo incompleto dos dados que precisam ser explicados: se explicarmos apenas
dados de terceira pessoa, ainda não explicamos tudo. Da mesma forma, os dados de
primeira pessoa, por si só, também são incompletos. Uma ciência da consciência
satisfatória precisa admitir ambos os tipos de dados e construir uma conexão
explanatória entre eles.
Que forma essa conexão poderia tomar? Uma posição intermediária sustenta que,
apesar de existirem dois tipos de dados, é possível explicar os dados de primeira pessoa
completamente em termos do material fornecido pelos dados de terceira pessoa. Muitos
pensam, por exemplo, que poderíamos explicar os fenômenos da experiência subjetiva

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

completamente em termos de processos cerebrais. Essa posição intermediária é muito


atraente, mas há boas razões para sermos céticos quanto a ela. Já discuti esse assunto de
forma mais detida anteriormente (CHALMERS, 1996). Apresento abaixo um
argumento simples que sintetiza algumas das razões para duvidarmos:
1. Dados de terceira pessoa são dados sobre a estrutura e a dinâmica objetivas de
sistemas físicos;
2. Estrutura e dinâmica (de nível inferior) explicam apenas fatos sobre estrutura
e dinâmica (de nível superior);
3. Explicar estrutura e dinâmica não basta para explicar dados de primeira
pessoa.
Portanto,
4. Dados de primeira pessoa não podem ser completamente explicados em
termos de dados de terceira pessoa.
A premissa 1 captura algo sobre o caráter dos dados de terceira pessoa: eles
sempre dizem respeito à dinâmica de certas estruturas físicas. A premissa 2 afirma que
explicações em termos de processos desse tipo explicam apenas mais processos do
mesmo tipo. Pode haver grande diferença entre os processos, como quando a estrutura e
dinâmica de nível inferior dão origem a uma estrutura e dinâmica de nível superior
extremamente complexas (como, por exemplo, na teoria de sistemas complexos), mas,
ainda assim, não há como escapar do círculo estrutura/dinâmica. A premissa 3 resume o
ponto, discutido anteriormente, de que explicar estrutura e dinâmica é apenas explicar
funções objetivas, e que explicar funções objetivas não basta para explicar dados de
primeira pessoa sobre a experiência subjetiva. Dessas premissas, segue a conclusão 4.
É claro que disso não se segue que dados de primeira pessoa e dados de terceira
pessoa não tenham nada a ver uns com os outros; há obviamente uma associação
sistemática entre eles. Há boas razões para acreditar que experiências subjetivas estão
sistematicamente correlacionadas a processos cerebrais e ao comportamento. Permanece
plausível que toda vez que alguém tenha um tipo apropriado de processos cerebrais, ele
ou ela tenha um tipo associado de experiência subjetiva. Precisamos apenas distinguir
correlação de explicação. Mesmo que os dados de primeira pessoa não possam ser
completamente explicados em termos de dados de terceira pessoa, os dois tipos de
dados permanecem fortemente correlacionados.
Segue-se daí que uma ciência da consciência permanece inteiramente possível. É
de se esperar, apenas, que essa ciência tome uma forma não-redutiva. Uma ciência da

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

consciência não reduzirá os dados de primeira pessoa a dados de terceira pessoa, mas
articulará as conexões sistemáticas entre esses dados. Onde há covariação sistemática
entre dois tipos de dados, espera-se que haja princípios sistemáticos que subjazam e
expliquem a covariação. No caso da consciência, podemos esperar princípios-ponte
[bridging principles] sistemáticos que subjazam e expliquem a covariação entre dados
de terceira e de primeira pessoa. Uma teoria da consciência seria, em última instância,
uma teoria desses princípios.
Cabe destacar que essas questões fundacionais são controversas e existem várias
concepções alternativas. Uma classe de concepções (e.g., DENNETT, 1991) sustenta
que os únicos fenômenos que precisam de explicação são aqueles que dizem respeito ao
funcionamento objetivo. A versão mais extrema dessa concepção diz que nem mesmo
existem os tais dados de primeira pessoa sobre a experiência. Uma versão menos radical
dessa concepção diz que todos os dados de primeira pessoa são equivalentes a dados de
terceira pessoa (tais como, por exemplo, dados sobre relatos verbais), de forma que uma
explicação sobre dados de terceira pessoa seria capaz de explicar tudo. Outra classe de
concepções (e.g., CHURCHLAND, 1997) aceita que os dados de primeira pessoa
precisam de uma explicação adicional, mas defende que tais dados poderão ser
explicados redutivamente pela neurociência do futuro. Uma versão dessa concepção
defende que a neurociência futura poderá ir além de estrutura e dinâmica de maneiras
que não podemos sequer imaginar atualmente. Outra versão defende que se pudermos
encontrar correlações suficientes entre estados cerebrais e consciência, isso valeria
como uma explicação reducionista.
Já argumentei contra essas concepções em outras oportunidades (CHALMERS,
2002). No que se segue, entretanto, pretendo me concentrar em projetos construtivos
para uma ciência da consciência. Durante a discussão, o raciocínio esboçado acima será
algumas vezes pressuposto, mas muito do que será dito poderá ter aplicações mesmo
para concepções alternativas.

3. Projetos para uma ciência da consciência

Se o que disse anteriormente está correto, então a ciência da consciência deve


tomar com seriedade os dados de primeira pessoa e deve proceder estudando a
associação entre dados de primeira e de terceira pessoa, sem tentar uma redução. Na
verdade, isso é exatamente o que observamos na prática. O trabalho central na ciência

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

da consciência sempre levou os dados de primeira pessoa a sério. Boa parte dos
trabalhos principais em psicofísica e em psicologia da percepção, por exemplo, se ocupa
de dados de primeira pessoa sobre a experiência perceptiva subjetiva. Na pesquisa sobre
percepção inconsciente, a distinção de primeira pessoa entre presença e ausência de
experiência subjetiva é crucial. Mais recentemente, um número crescente de pesquisas
tem se concentrado nas correlações entre dados de primeira pessoa sobre a experiência
subjetiva e dados de terceira pessoa sobre processos cerebrais e comportamento.
Articularei a seguir o que julgo serem alguns dos projetos mais importantes para
uma ciência da consciência, com exemplos fornecidos por pesquisas existentes.

Projeto 1: Explicar os dados de terceira pessoa

Um projeto importante para uma ciência da consciência consiste em explicar os


dados de terceira pessoa na vizinhança: explicar, por exemplo, a diferença entre o
funcionamento durante sono e vigília e explicar o controle voluntário do
comportamento. Esse tipo de projeto não precisa se engajar nas questões difíceis
relacionadas aos dados de primeira pessoa, ainda assim pode fornecer um componente
importante de uma teoria final.
Um exemplo desse tipo de projeto é a explicação do binding em termos de
sincronia neural (e.g., CRICK e KOCH, 1991). O binding é o fenômeno através do qual
peças distintas de informação (sobre a cor e a forma de um objeto, por exemplo), que
são representadas em diferentes áreas do cérebro, são reunidas para o controle integrado
do comportamento. Alguns pesquisadores teorizam que um papel crucial nesse processo
é desempenhado pelo disparo sincronizado de neurônios: pode ser que informações
sobre um único objeto sejam representadas por neurônios de diferentes áreas do cérebro,
que são disparados em sincronia, permitindo a subsequente integração. Não está claro se
essa hipótese está correta, mas, se estiver, ela fornecerá um componente importante para
explicar a integração da informação perceptiva, que, por sua vez, está intimamente
ligada a questões sobre a consciência. É claro que apenas explicar o binding não é
suficiente para explicar os dados de primeira pessoa sobre a consciência, mas talvez a
compreensão dos processos cerebrais associados nos ajude.
Pesquisas sobre a hipótese de um “espaço global de trabalho” [global workspace]
também entram nessa categoria. Baars (1998) postulou o espaço de trabalho como o
mecanismo pelo qual informações compartilhadas podem ser disponibilizadas para

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

vários processos cognitivos diferentes. Mais recentemente, outros pesquisadores (e.g.,


DEHAENE e CHANGEAUX, 2004) investigaram a possível base neural desse
mecanismo, postulando um espaço de trabalho global neuronal. Se essa hipótese estiver
correta, ela contribuirá para explicar dados de terceira pessoa que dizem respeito ao
acesso à informação no sistema cognitivo, bem como para explicar dados sobre a
informação que é adquirida através de relatos verbais. Mais uma vez, explicar esses
processos não irá, por si só, explicar os dados de primeira pessoa da consciência, mas
pode muito bem contribuir para o projeto (o projeto 4 a seguir) de encontrar os
correlatos neurais da consciência.

Projeto 2: Contrastar processos conscientes e inconscientes

Muitas capacidades cognitivas podem ser exercidas tanto conscientemente


quanto inconscientemente, isso é, na presença ou ausência de experiência subjetiva
associada. Os tipos mais familiares de processamento perceptivo, por exemplo, são
conscientes, mas também há fortes evidências de processamento perceptivo
inconsciente (MERIKLE e DANEMAN, 2000). Um contraste similar é encontrado no
caso da memória, no qual a distinção, que se tornou comum, entre memória explícita e
implícita (SCHACTER e CURRAN, 2000) pode igualmente ser vista como uma
distinção entre memória consciente e inconsciente. A memória explícita é
essencialmente a memória associada a uma experiência subjetiva da informação
relembrada; já a memória implícita é essencialmente memória na ausência de tal
experiência subjetiva. O mesmo vale para a distinção entre aprendizado explícito e
implícito (REBER, 1996), que é, no fundo, uma distinção entre aprendizado na presença
ou na ausência da experiência subjetiva relevante.
Processos conscientes e inconscientes fornecem pares de processos que são
similares, em alguns aspectos, do ponto de vista de terceira pessoa (ambos envolvem,
por exemplo, registro de estímulo perceptivo), mas que diferem do ponto de vista de
primeira pessoa (por exemplo, um envolve experiência subjetiva do estímulo, enquanto
o outro não). É claro que também há diferenças do ponto de vista de terceira pessoa. De
início, a evidência disponível para o pesquisador sobre processos conscientes
normalmente envolve o relato verbal da experiência relevante, e a evidência sobre
processos inconscientes normalmente envolve o relato verbal da ausência da experiência
relevante. Há também, ao mesmo tempo, diferenças menos óbvias entre as capacidades

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

comportamentais que acompanham os processos conscientes e inconscientes, bem como


entre os processos neurais associados. Essas diferenças contribuem para o início de um
vínculo entre os domínios de primeira e de terceira pessoa.
Evidências sugerem, por exemplo, que enquanto a percepção inconsciente de
estímulos linguísticos visualmente apresentados é possível, o processamento semântico
desses estímulos parece limitado ao nível de uma única palavra, em vez de expressões
complexas (GREENWALD, 1992). Em contraste, a percepção consciente permite o
processamento de expressões bastante complexas. Nesse ponto, esses resultados
experimentais sugerem uma forte associação entre a presença ou ausência de
experiência subjetiva e a presença ou ausência de uma capacidade funcional associada –
ou seja, um vínculo sistemático entre dados de primeira e de terceira pessoa. Muitas
relações do mesmo tipo podem ser encontrados na literatura sobre percepção
inconsciente, memória implícita e aprendizagem implícita.
Da mesma forma, há evidências que sugerem bases neurais distintas para
processos perceptivos conscientes e inconscientes. Fazendo uso de um amplo conjunto
de pesquisas sobre o processamento visuomotor, Milner e Goodale (1995; ver também
GOODALE, 2004) formularam a hipótese de que a via ventral do processamento visual
contribui para a percepção consciente de estímulos visuais com o propósito de
identificação cognitiva dos estímulos, enquanto a via dorsal contribui para processos
inconscientes envolvidos em capacidades motoras finas. Se essa hipótese estiver correta,
será possível, novamente, traçar um vínculo sistemático entre uma distinção em dados
de primeira pessoa (presença ou ausência de percepção consciente) e uma distinção em
dados de terceira pessoa (processamento visual nas vias ventral ou dorsal). Muitas
propostas semelhantes foram feitas em pesquisas sobre a memória e a aprendizagem.

Projeto 3: Investigar os conteúdos da consciência

A consciência não é simplesmente um interruptor liga/desliga. Experiências


conscientes possuem uma estrutura complexa, com conteúdos representacionais
complexos. Um sujeito consciente usualmente tem uma gama de experiências
perceptivas, sensações corporais, experiências emocionais e uma corrente de
pensamentos conscientes, dentre outras coisas. Cada um desses elementos pode ele
mesmo ser bastante complexo. Por exemplo, uma experiência visual típica tem uma
estrutura interna que representa objetos com diversas cores e formas, em graus variados

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

de detalhe. Podemos pensar em toda essa complexidade como abrangendo os conteúdos


da consciência.
Os conteúdos da consciência têm sido estudados ao longo da história da
psicologia. Os trabalhos pioneiro de Weber e Fechner em psicofísica se concentravam
em aspectos específicos desses conteúdos, como o brilho subjetivo associado à
experiência visual, que correlacionaram a propriedades do estímulo associado. Isso
forneceu um vínculo básico entre dados de primeira pessoa sobre experiência sensorial e
dados de terceira pessoa sobre o estímulo. Trabalhos posteriores em psicofísica e
psicologia gestalt adotaram uma abordagem similar, investigando características
específicas da experiência perceptiva e analisando como essas características covariam
com propriedades do estímulo.
Essa tradição continua viva num grande número de pesquisas contemporâneas.
Pesquisas sobre ilusões visuais, por exemplo, normalmente usam relatos de primeira
pessoa de sujeitos (e até mesmo experiências de primeira pessoa dos cientistas) para
caracterizarem a estrutura das experiências perceptivas. Pesquisas sobre atenção
(MACK e ROCK, 1998; TREISMAN, 2003) almejam caracterizar a estrutura da
experiência perceptiva dentro e fora do foco de atenção. Outros pesquisadores
investigam os conteúdos da consciência nos domínios das imagens mentais (BAARS,
1996), experiências emocionais (KASZNIAK, 1998) e da corrente de pensamentos
conscientes (POPE, 1978; HURLBURT, 1990).
Uma linha importante de pesquisa investiga os conteúdos da consciência em
sujeitos “anormais”. Sujeitos com sinestesia, por exemplo, têm experiências sensoriais
atipicamente ricas. No caso mais comum, letras e números desencadeiam relatos de
experiências cromáticas adicionais, para além da cor padrão percebida através do
estímulo. Pesquisas recentes sugerem fortemente que esses relatos refletem as
experiências perceptivas dos sujeitos, e não apenas associações cognitivas.
Ramachandran e Hubbard (2001), por exemplo, observaram que certos padrões visuais
produzem um efeito perceptivo de destacamento [pop-out] em sujeitos sinestésicos,
efeito este que não é observado em sujeitos normais. Quando dados de primeira pessoa
sobre experiências de sujeitos anormais são combinados com dados de terceira pessoa
sobre anormalidades cerebrais nesses indivíduos, produz-se uma nova fonte de
informação sobre a associação entre cérebro e experiência consciente.

Projeto 4: Achar os correlatos neurais da consciência

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Isso nos leva ao que talvez seja o projeto principal da pesquisa científica atual
sobre a consciência: a busca pelos correlatos neurais da consciência (METZINGER,
2000; CRICK e KOCH, 2004). Um correlato neural da consciência (CNC) pode ser
caracterizado como o sistema neural mínimo que está diretamente associado a estados
de consciência. Presumivelmente, o cérebro como um todo é um sistema neural
associado a estados de consciência, mas nem toda parte do cérebro está igualmente
associada à consciência. O projeto dos CNCs almeja isolar partes relativamente
limitadas do cérebro (ou características relativamente específicas do processamento
neural) que estão diretamente correlacionadas à experiência subjetiva.
Pode ser que haja muitos CNCs diferentes para diferentes aspectos da
experiência consciente. Talvez haja, por exemplo, um sistema neural associado ao
estado de estar consciente, em oposição ao estado estar inconsciente (talvez no tálamo,
ou no tronco encefálico; ver SCHIFF, 2004), e haja outro sistema neural associado a
conteúdos específicos da consciência visual (talvez em alguma parte do córtex visual), e
ainda outros sistemas associados aos conteúdos da consciência em diferentes
modalidades sensórias. Qualquer proposta do tipo, entretanto, pode ser vista como uma
articulação de um vínculo entre dados de terceira pessoa sobre processos cerebrais e
dados de primeira pessoa sobre experiência subjetiva.
Nos últimos anos, o progresso mais notável, de longe, coube ao estudo dos
CNCs da consciência visual. Os trabalhos de Milner e Goodale (citados acima) sobre a
via ventral fornecem um exemplo desse tipo de pesquisa. Outro exemplo é a pesquisa de
Nikos Logothetis e colegas sobre a rivalidade binocular em macacos (e.g.,
LOGOTHETIS, 1998; LEOPOLD, MAIER e LOGOTHETIS, 2003). Quando estímulos
discrepantes são apresentados ao olho esquerdo e ao direito, os participantes do
experimento usualmente têm experiências subjetivas alternadas. Logothetis treinou
macacos para sinalizarem tais mudanças em suas experiências visuais e correlacionou
essas mudanças a mudanças nos processos neurais subjacentes. Os resultados indicaram
que mudanças na experiência visual estão correlacionadas apenas de maneira fraca a
mudanças nos padrões de disparo neural no córtex visual primário: nessa área, o disparo
neural estava mais fortemente correlacionado ao estímulo do que à experiência. No
entanto, mudanças na experiência visual estavam fortemente correlacionadas a
mudanças em padrões de disparo neural nas áreas visuais posteriores, como o córtex
temporal inferior. Esses resultados parecem sugerir que o córtex temporal inferior é um

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candidato melhor do que o córtex visual primário para ser o CNC da consciência visual.
É claro que nenhum resultado experimental isolado poderá oferecer evidências
conclusivas quanto à localização de um CNC, mas uma ampla quantidade de evidências
quanto à localização dos CNCs da visão tem se acumulado nos últimos anos (KOCH,
2004), e é de se esperar que muito mais esteja a caminho. Se bem sucedido, esse projeto
estabelecerá conexões altamente específicas entre processos cerebrais e experiências
conscientes.

Projeto 5: Sistematizar a conexão

Até o momento, as conexões entre dados de primeira pessoa e de terceira pessoa


têm sido estudados de uma maneira um tanto fragmentada. Os pesquisadores isolam
correlações entre aspectos específicos da experiência subjetiva e certos processos
cerebrais ou capacidades comportamentais específicas de uma forma relativamente
assistemática. Isso era de se esperar no estágio atual de desenvolvimento. Mas é
razoável supor que, à medida que a ciência se desenvolva, conexões mais sistemáticas
apareçam. É de se esperar, em particular, o desenvolvimento de princípios de crescente
generalidade que vinculem uma ampla gama de dados de primeira pessoa a uma ampla
gama de dados de terceira pessoa correspondentes. É possível, por exemplo, que
eventualmente tenhamos uma abordagem dos correlatos neurais da consciência visual
que não apenas nos dirá quais sistemas neurais estão associados à consciência visual,
mas também nos fornecerá princípios sistemáticos que digam como o conteúdo
específico da consciência visual covaria com o caráter dos processos neurais nesses
sistemas.
Poucos princípios desse tipo foram propostos até o momento e em domínios
restritos. Hobson (1997), por exemplo, sugeriu um princípio geral que relaciona certos
níveis de atividade neuroquímica com diferentes estados de consciência durante a
vigília, o sono e o sonho. É provável que qualquer proposta desse tipo seja amplamente
revisada à medida que novas evidências apareçam, mas é de se esperar que, nas
próximas décadas, vejamos princípios cada vez mais bem sustentados desse tipo. A
possibilidade de tais princípios enseja a perspectiva tentadora de que eventualmente
possamos usá-los para predizer características da experiência subjetiva de um
organismo com base no conhecimento de sua neurofisiologia.

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Projeto 6: Inferir princípios fundamentais

Se o projeto previamente descrito for bem-sucedido, teremos princípios gerais


conectando dados de terceira pessoa com dados de primeira pessoa. Mas esses
princípios gerais ainda não serão princípios fundamentais. Os princípios podem ainda
ser bastante complexos, limitados a aspectos específicos da consciência e restritos a
espécies específicas. Uma ciência da consciência que consista em princípios
radicalmente diferentes para diferentes aspectos da consciência e para diferentes
espécies não seria plenamente satisfatória. É razoável supor que, eventualmente, alguma
unidade venha a ser descoberta por trás dessa diversidade. Devemos ao menos buscar a
maximização da generalidade e da simplicidade dos princípios relevantes, sempre que
possível. Numa situação ideal, poderíamos almejar princípios que fossem maximamente
gerais em seus escopos, podendo ser aplicados a todo e qualquer sistema consciente e a
todos os aspectos da experiência consciente. Poderíamos também almejar princípios que
fossem relativamente simples em sua forma, assim como as leis básicas da física
parecem simples.
Não é de se esperar que venhamos a descobrir princípios desse tipo tão cedo, se
é que um dia seremos capazes de descobri-los. No momento, mal sabemos que forma
tais princípios poderiam assumir; Chalmers (1996) especula que eles talvez envolvam a
noção de informação. Mas se nós conseguirmos descobri-los, princípios desse tipo
seriam candidatos a princípios fundamentais: seriam a base de uma teoria fundamental
da consciência. Se o que disse anteriormente estiver correto, então algo sobre a conexão
entre dados de primeira pessoa e dados de terceira pessoa deve ser tomado como
primitivo, da mesma forma como tomamos princípios fundamentais em teorias físicas
como primitivos. Podemos ao menos esperar que o elemento primitivo das nossas
teorias seja o mais simples e geral possível. Se pudermos eventualmente formular
princípios simples e gerais desse tipo, baseados em uma inferência a partir de dados
acumulados de primeira e terceira pessoa, então acredito que poderemos dizer que
temos uma teoria científica adequada da consciência.
O que tudo isso implicaria para a relação entre processos físicos e consciência?
A existência de tais princípios é compatível com diferentes perspectivas filosóficas.
Alguém poderia tomar tais princípios como leis que conectam dois domínios
fundamentalmente distintos da realidade (DESCARTES, 1641/1996; POPPER e
ECCLES, 1977). Outro poderia tomá-los como leis que conectam dois aspectos de uma

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mesma coisa (LOCKWOOD, 1989; CHALMERS, 1996). Outro ainda poderia tomá-los
como constituindo a base da identificação entre propriedades da consciência e
propriedades físicas (SMART, 1959; PAPINEAU, 2002). Tais princípios poderiam
também ser combinados com diferentes concepções da relação causal entre processos
físicos e a consciência (ver CHALMERS, 2002). Para muitos propósitos, entretanto, a
ciência da consciência pode permanecer neutra acerca dessas questões filosóficas.
Podemos simplesmente tomar tais princípios como princípios de correlação, enquanto
nos mantemos neutros acerca de sua natureza causal subjacente e seu estatuto
ontológico. Isso possibilita uma ciência da consciência robusta, ainda que não tenhamos
uma solução amplamente aceita para o problema filosófico mente/corpo.

4. Obstáculos para uma ciência da consciência

O desenvolvimento de uma ciência da consciência que apresentei até aqui pode


parecer incrivelmente linear. Coletamos, simultaneamente, dados de primeira pessoa
sobre a experiência subjetiva e dados de terceira pessoa sobre comportamento e
processos cerebrais; isolamos correlações específicas entre esses dados; formulamos
princípios gerais que governam essas correlações; e inferimos as leis fundamentais
subjacentes. Mas é claro que não é tão simples assim na prática. Essa agenda de
pesquisa enfrenta uma série de obstáculos sérios. Os obstáculos mais sérios concernem
a disponibilidade dos dados relevantes, tanto nos domínios de primeira pessoa quanto de
terceira pessoa. Discutirei a seguir alguns desses obstáculos.

Obstáculos que envolvem dados de terceira pessoa

Os dados de terceira pessoa relevantes para a ciência da consciência incluem


tanto dados comportamentais quanto neurais. Os dados comportamentais são
razoavelmente de mais fácil acesso: aqui, as únicas restrições são a inventividade do
experimentador e as limitações dos contextos experimentais. Na prática, aliás, os
pesquisadores já acumularam um vasto corpo de dados comportamentais relevantes para
a consciência. Já a disponibilidade de dados neurais é muito mais circunscrita pelas
limitações tecnológicas, e o corpo de dados neurais acumulado até o momento é,
correspondentemente, muito mais limitado.
Os dados neurofisiológicos mais relevantes vêm de duas ou três fontes:

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imageamento cerebral através de imagem por ressonância magnética funcional (fMRI) e


da tecnologia de tomografia por emissão de positrões (PET); registro de células
individuais por meio de inserção de eletrodos, e mapeamento da superfície através da
eletroencefalografia (EEG) e da magnetoencefalografia (MEG). Todas essas tecnologias
são úteis, mas todas são também seriamente limitadas para a ciência da consciência. A
EEG e a MEG possuem limitações bem conhecidas no que concerne à localização
espacial. O imageamento cerebral, através de fMRI e PET, tem melhor desempenho
nesse aspecto, mas esses métodos ainda não conseguem uma localização espacial fina.
O registro de células individuais tem uma localização espacial fina, mas é, em grande
medida, limitado à experimentação em animais não-humanos.
Essas limitações se aplicam a todas as áreas da neurociência cognitiva, mas são
particularmente prementes para a ciência da consciência, porque a ciência da
consciência depende da coleta simultânea de dados de primeira e de terceira pessoa. O
método mais simples para dados de primeira pessoa é, de longe, o relato verbal; mas o
relato verbal é limitado a sujeitos humanos. Os dados de terceira pessoa mais úteis são,
de longe, os dados no nível de neurônios individuais, onde é possível monitorar o
conteúdo representacional que se correlaciona ao conteúdo da consciência (como
quando monitoramos um neurônio com um campo receptivo específico), mas esses
experimentos são bastante limitados a sujeitos não-humanos. Consequentemente, é
extremamente difícil descobrir associações fortes entre os dados de primeira pessoa e os
dados neurais correspondentes com as técnicas atuais.
Existem várias tentativas engenhosas de contornar tais limitações. As mais
conhecidas incluem os experimentos de Logothetis com macacos, nos quais eles são
treinados cuidadosamente para fornecerem um substituto do relato verbal da consciência
visual através do ato de pressionar uma barra. As pesquisas de Cowey e Stoerig (1995)
sobre a visão cega [blindsight] em macacos operam de maneira similar. O fato mesmo
de os pesquisadores precisarem de tantos estratagemas para coletarem os dados neurais
relevantes já ilustra bem, no entanto, o problema em questão. Outros pesquisadores
fizeram medidas a nível neuronal em pacientes humanos de cirurgias (e.g., KREIMAN,
FRIED e KOCH, 2002), mas existem limitações práticas óbvias nesses casos. Muitos
outros (e.g., RESS, 2004) tentaram conseguir o máximo de informação relevante
possível através dos recursos limitados de imageamento cerebral e mapeamento de
superfície; entretanto, menos correlações fortes surgiram desse tipo de trabalho do que
dos estudos a nível neuronal.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

É razoável supor que se trata de uma limitação temporária imposta pela


tecnologia de que dispomos hoje. Se eventualmente surgir uma tecnologia que nos
permita monitorar de forma não invasiva processos a nível neuronal em sujeitos
humanos, é de se esperar que surja uma era de ouro para a ciência da consciência.

Obstáculos que envolvem dados de primeira pessoa

No que concerne à disponibilidade de dados de primeira pessoa, existem vários


obstáculos bem complicados. Discutirei três deles aqui.

1. Privacidade

O obstáculo mais óbvio para a coleta de dados de primeira pessoa diz respeito à
privacidade de tais dados. Na maioria das áreas da ciência, os dados são
intersubjetivamente disponíveis: eles são igualmente acessíveis a um amplo grupo de
observadores. No caso da consciência, entretanto, os dados de primeira pessoa acerca
das experiências subjetivas são diretamente disponíveis apenas para o sujeito dessas
experiências. Para outros, tais dados de primeira pessoa são disponíveis apenas
indiretamente, mediados pela observação do comportamento do sujeito ou de seus
processos cerebrais. As coisas seriam mais simples se houvesse um “conscienciômetro”
que pudesse ser apontado para um sujeito qualquer e fosse capaz de revelar para todo
mundo as suas experiências subjetivas. Mas na ausência de uma teoria da consciência,
não há tal conscienciômetro à disposição. Isso impõe uma profunda limitação à ciência
da consciência, mas não uma limitação paralisante. Para início de conversa, qualquer
sujeito tem acesso direto aos dados de primeira pessoa de suas próprias experiências. É
de se imaginar que mesmo Robson Crusoé, em sua ilha deserta (e equipado com a
tecnologia mais moderna de imageamento cerebral), seria capaz de avançar
consideravelmente em direção a uma ciência da consciência a partir de observações de
primeira pessoa. Em termos mais práticos, cada um tem acesso indireto aos dados de
primeira pessoa das experiências dos outros através de indicadores comportamentais
desses dados.
Na prática, o modo mais comum de coletar dados sobre as experiências
conscientes de outros se dá através de seus relatos verbais. Nesse caso, os relatos
verbais não são tratados simplesmente como dados de terceira pessoa (como faria um

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behaviorista, ao limitar o dado ao fato de que um determinado sujeito faz um certo


barulho). Ao invés disso, tratamos o relato como sendo um relato de dados de primeira
pessoa que estão disponíveis para o sujeito. Da mesma forma que um cientista pode
acumular dados de terceira pessoa ao aceitar os relatos de dados de terceira pessoa
coletados por outros (em vez de simplesmente tratar tais relatos como meros barulhos),
ele pode também coletar dados de primeira pessoa ao aceitar os relatos de dados de
primeira pessoa coletados por outros. Essa é a atitude que pesquisadores tipicamente
adotam em relação a participantes de experimentos. Se houver um motivo para acreditar
que o relato de um participante não é confiável, então o pesquisador deve suspender seu
juízo. Mas na ausência de uma razão desse tipo, os pesquisadores tomarão o relato da
experiência consciente de um sujeito como sendo uma boa razão para acreditar que o
sujeito teve uma experiência consciente do tipo relatado.
Dessa maneira, os pesquisadores têm acesso a um valioso repositório de dados
de primeira pessoa que se faz disponível intersubjetivamente. É claro que o acesso a
esses dados depende de algumas pressuposições: em particular, a pressuposição de que
os outros estão realmente tendo experiências conscientes e que, em grande medida, seus
relatos refletem essas experiências conscientes. Não temos como testar diretamente essa
suposição; ao invés disso, ela funciona como um tipo de pressuposto de fundo para as
pesquisas desse campo. Mas essa situação é comum a outras áreas da ciência. Quando
os físicos usam a percepção para coletar dados sobre o mundo externo, por exemplo,
eles confiam no pressuposto de que o mundo externo existe e de que a percepção reflete
o estado do mundo externo. Eles não têm como testar essa suposição diretamente; em
vez disso, ela serve como um tipo de pressuposto de fundo para todo o campo. Ainda
assim, essa parece uma suposição razoável a ser feita e faz a ciência da física possível.
O mesmo vale para nossas suposições sobre as experiências conscientes e os relatos
verbais dos outros. Essas parecem ser suposições razoáveis e fazem a ciência da
consciência possível.
É claro que o relato verbal possui seus limites. Alguns aspectos da experiência
consciente (e.g., a experiência da música, ou de emoções) são muito difíceis de
descrever. Nesses casos, talvez seja preciso desenvolver uma linguagem mais refinada.
Além disso, relatos verbais não podem ser usados com sujeitos sem linguagem, tais
como bebês e animais não-humanos. Nesses casos, é preciso contar com outros
indicadores comportamentais, tal como Logothetis fez ao colocar os macacos para
pressionarem uma barra. Tais indicadores exigem pressupostos adicionais. O trabalho

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de Logothetis, por exemplo, requer que se pressuponha que os macacos são conscientes
e que os estímulos visuais que os macacos podem explorar no controle voluntário do
comportamento são percebidos conscientemente.
Essas pressuposições parecem razoáveis para a maioria das pessoas, mas elas
vão além das exigidas no caso do relato verbal. Quanto mais nos distanciamos do caso
humano, mais questionáveis se tornam as pressuposições necessárias. Por exemplo,
seria bastante difícil tirar conclusões sobre a consciência a partir de experimentos com
insetos. De qualquer forma, relatos verbais de humanos, combinados com indicadores
comportamentais de primatas, dão aos pesquisadores o acesso a dados de primeira
pessoa suficientes para engendrar um bom número das pesquisas em andamento.

2. Metodologias

Um segundo obstáculo é imposto pelo fato de nossos métodos de coleta dos


dados de primeira pessoa serem bem primitivos em comparação aos nossos métodos de
coleta dos dados de terceira pessoa. Estes últimos têm sido refinados ao longo de anos
de prática científica, enquanto os métodos para coletar dados de primeira pessoa não
receberam tanta atenção. Quando se trata de dados de primeira pessoa simples, esse
problema não é tão premente: normalmente, não há grande dificuldade em determinar se
alguém está tendo uma experiência de uma certa cor no centro do seu campo visual, por
exemplo. Mas quando aspectos mais sutis da experiência subjetiva são os objetos a
serem analisados, o problema surge rapidamente.
Mesmo num fenômeno tão tangível quanto a experiência visual, o problema
surge de formas variadas. De forma geral, experiências visuais usualmente possuem
uma estrutura rica e detalhada. Mas como os sujeitos poderiam investigar e caracterizar
esses detalhes? A maioria das pessoas tem enorme dificuldade para se examinar
introspectivamente e depois relatar esses detalhes para além da superficialidade.
Dificuldades específicas surgem ao investigar o caráter da consciência fora do foco da
atenção. Para analisar introspectivamente e relatar essa estrutura, parece ser necessário
dirigir a atenção para o tipo relevante de experiência, o que, por sua vez, pode mudar o
caráter da experiência.
Quanto a isso, esperamos que ao menos algum progresso possa ser feito no
desenvolvimento de melhores métodos de coleta de dados de primeira pessoa. Talvez
seja o caso de prestarmos atenção nas tradições que se dedicaram ao estudo detalhado

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

das experiências. Tais tradições incluem a fenomenologia ocidental, a psicologia


introspectiva e até mesmo tradições de meditação orientais. Ainda que sejamos céticos
quanto às teorias defendidas pelos proponentes dessas tradições, é possível nos
beneficiarmos de seus métodos de coleta de dados de primeira pessoa. Essa estratégia de
pesquisa tem sido seguida, de forma mais notável, na “neurofenomenologia” de
Francisco Varela e colegas (VARELA, 1995; LUTZ et al., 2002), na qual a investigação
neurofisiológica é combinada com a investigação fenomenológica da tradição de
Husserl. Muitas outras tentativas de refinar os métodos de primeira pessoa são
discutidas nos artigos selecionados em Varela e Shear (2001).
É claro que todo método tem suas limitações. Os julgamentos das pessoas sobre
suas próprias experiências subjetivas não são infalíveis, e, ainda que um treinamento
possa ajudar, ele pode também introduzir o risco de as observações serem corrompidas
pela teoria. O programa introspectivo da psicologia experimental no século XIX
sabidamente entrou em colapso quando as diferentes escolas passaram a discordar sobre
os dados introspectivos (BORING, 1929). Ainda assim, nossas ambições não precisam
ser tão grandes quanto as dos introspectivistas. Por hora, não almejamos uma
caracterização perfeita da estrutura da consciência, mas simplesmente uma
caracterização melhor. Além disso, estamos em uma posição na qual podemos usar
dados de terceira pessoa como uma confirmação da investigação de primeira pessoa.
Investigações experimentais têm nos ajudado a distinguir as circunstâncias nas quais
relatos de primeira pessoa são confiáveis das circunstâncias nas quais não são
(SCHOOLER e FIORE, 1997), e há espaço para muitas outras investigações desse tipo
no futuro. Portanto, é razoável supor que haverá ao menos um modesto refinamento dos
métodos visando uma investigação confiável dos dados de primeira pessoa.

3. Formalismos

Um obstáculo final é imposto pela ausência de formalismos gerais nos quais os


dados de primeira pessoa possam ser expressos. Formalismos são importantes para dois
propósitos. Primeiramente, eles são necessários para a coleta de dados: não basta
simplesmente sabermos o que alguém está experienciando, precisamos também registrar
isso. Em segundo lugar, eles são necessários para a construção teórica: para
formularmos princípios de conexão entre dados de primeira pessoa e de terceira pessoa,
precisamos representar esses dados de tal forma que os princípios possam se valer deles.

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Os principais formalismos existentes para representar dados de primeira pessoa


são bastante primitivos. Os pesquisadores tipicamente se valem de caracterizações
qualitativas simplórias dos dados (tal como em ‘uma experiência de vermelho no centro
do campo visual’), ou fazem uso de parametrizações simples dos dados (como quando
as experiências das cores são parametrizadas por matiz, saturação e brilho). Esses
formalismos simples bastam para certos propósitos, mas dificilmente serão suficientes
para a formulação de teorias sistemáticas.
A forma que um formalismo adequado para a expressão de dados de primeira
pessoa sobre a consciência deve ter ainda não é nada clara. Os candidatos incluem: (1)
formalismos paramétricos, nos quais várias características específicas da experiência
consciente são isoladas e parametrizadas (como no caso da experiência cromática
acima); (2) formalismos geométricos e topológicos, nos quais a estrutura geral de uma
experiência (tal como a experiência visual) é formalizada em termos geométricos ou
topológicos; (3) formalismos informacionais, nos quais se caracteriza a estrutura
informacional de uma experiência, especificando-a como um tipo de estado bit-por-bit
que se encaixa num espaço mais amplo de estados informacionais; e (4) formalismos
representacionais, nos quais se caracteriza uma experiência por meio do uso de termos
para os estados do mundo que a experiência representa (pode-se caracterizar uma
experiência como uma experiência de um copo amarelo, por exemplo). Cada um desses
formalismos pode ter suas próprias limitações, então um estudo detalhado dos vários
formalismos alternativos deve trazer grandes benefícios.

5. Conclusão

De forma geral, as perspectivas para a ciência da consciência são razoavelmente


promissoras. Há numerosos projetos claros para uma ciência da consciência que levam
os dados de primeira pessoa a sério. É possível reconhecer os problemas particulares
que a consciência impõe e ainda assim fazer ciência. É claro que há muitos obstáculos, e
não sabemos o quão longe conseguiremos chegar. Mas tivemos muitos avanços nos
últimos 10 anos e teremos muitos outros nos próximos 50. Por ora, é razoável supor que
eventualmente teremos uma teoria dos princípios fundamentais que conecte processos
físicos com a experiência consciente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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375
UMA EXPLICAÇÃO NATURAL DA CONSCIÊNCIA
FENOMÊNICA1
Max Velmans
Goldsmiths, University of London

Tradução: Pedro H. G. Muniz


Universidade Estadual do Ceará

RESUMO: Fisicalistas comumente argumentam que experiências conscientes não são nada
mais do que estados do cérebro, e que qualia conscientes são propriedades físicas do mundo
externo, independentes de um observador. Embora isso pressuponha o ‘manto da ciência’,
normalmente ignora as descobertas científicas: na fisiologia sensorial, na percepção, na
psicofísica, na neuropsicologia e na psicologia comparativa, por exemplo. Consequentemente,
embora o fisicalismo busque naturalizar a consciência, ele dá uma explicação antinatural da
mesma. É possível, entretanto, desenvolver um modelo reflexivo, não redutivo e natural de
como a consciência se relaciona com o cérebro e com o mundo físico. Este artigo introduz tal
modelo, e como ele interpreta a natureza da experiência consciente. Dentro deste modelo, o
mundo físico tal como é percebido (o mundo fenomênico) é entendido como parte da
experiência consciente e não como separado dela. Enquanto em nosso dia a dia tratamos este
mundo fenomênico como se ele fosse o “mundo físico”, na verdade ele é apenas uma
representação biologicamente útil de como é o mundo, e tal representação pode diferir em
muitos aspectos do mundo descrito pela física. A forma como o mundo percebido se relaciona
com o mundo descrito pela física pode ser investigada pela ciência normal (p. ex., através do
estudo da fisiologia sensorial, da psicofísica e assim por diante). Esse modelo de consciência
parece ser consistente tanto com a evidência de terceira pessoa de como o cérebro funciona
quanto com a evidência de primeira pessoa de como é ter uma determinada experiência. De
acordo com o modelo reflexivo, experiências conscientes são realmente como elas parecem ser.

PALAVRAS-CHAVE: Consciência fenomênica, consciência, modelo reflexivo, qualia,


neuropsicologia.

ABSTRACT: Physicalists commonly argue that conscious experiences are nothing more than
states of the brain, and that conscious qualia are observer-independent, physical properties of
the external world. Although this assumes the ‘mantle of science’, it routinely ignores the
findings of science, for example in sensory physiology, perception, psychophysics,
neuropsychology and comparative psychology. Consequently, although physicalism aims to
naturalise consciousness, it gives na unnatural account of it. It is possible, however, to develop a
natural, nonreductive, reflexive model of how consciousness relates to the brain and the
physical world. This paper introduces such a model and how it construes the nature of conscious

1
Artigo publicado originalmente em NeuroQuantology, 3, p. 164-179, 2005.
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

experience. Within this model the physical world as perceived (the fenomenal world) is viewed
as part of conscious experience not apart from it. While in everyday life we treat this
phenomenal world as if it is the "physical world", it is really just one biologically useful
representation of what the world is like that may differ in many respects from the world
described by physics. How the world as perceived relates to the world as described by physics
can be investigated by normal science (e.g. through the study of sensory physiology,
psychophysics and so on). This model of consciousness appears to be consistent with both third-
person evidence of how the brain works and with first-person evidence of what it is like to have
a given experience. According to the reflexive model, conscious experiences are really how they
seem.

KEYWORDS: Phenomenal consciousness, consciousness, reflexive model, qualia,


neuropsychology.

Definindo a consciência

Há muitas diferenças de opiniões sobre como definir a consciência. Essa


incerteza sobre como defini-la é parcialmente provocada pela maneira como teorias
globais sobre a consciência (ou até mesmo sobre a natureza do universo) interferiram
nas definições. Por exemplo, “dualistas de substância” como Platão, Descartes e Eccles,
acreditam que o universo é constituído por dois tipos fundamentais de substância, a
substância material e a substância da consciência (uma substância associada com a
nossa alma ou o nosso espírito). “Dualistas de propriedade”, tais como Sperry e Libet,
entendem a consciência como sendo um tipo especial de propriedade que, em si, não é
física, mas que emerge de sistemas físicos como o cérebro uma vez que eles atinjam
certo nível de complexidade. Em contraste, “reducionistas” como Crick (1994) e
Dennett (1991), acreditam que a consciência não é nada mais do que um estado ou
função do cérebro. Dentro da psicologia cognitiva, há muitas propostas que identificam
a consciência com algum aspecto do processamento de informações humano, por
exemplo, com a memória de trabalho2, a atenção focal, um executivo central3 e assim
por diante.

2
O termo “memória de trabalho” (em inglês “working memory”) se refere a um conceito central
na psicologia cognitiva e na neurociência, e pode ser definida como um sistema que armazena
ativamente informações na mente para que seja possível executar tarefas verbais ou não verbais,
tais como o raciocínio matemático ou a compreensão de algo, e para deixar a informação
disponível para outros processos informacionais. Nota do tradutor (N. do T.).
3
O termo “executivo central” (em inglês “central executive”) se refere grosso modo a um tipo
de sistema responsável pela supervisão da integração da informação processada pelo sistema da
memória de trabalho, e também pela coordenação dos sistemas a ele subordinados, os quais, por
sua vez, são responsáveis pela manutenção de curto prazo da informação. O conceito de

378
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Felizmente definições não precisam ser definitivas para que a pesquisa tenha
início. É suficiente que, para determinados objetivos de pesquisa, definições sejam
similares o bastante para que diferentes pesquisadores possam concordar que estão
investigando a mesma coisa. Na medida em que a ciência começa a desemaranhar as
causas da consciência, as funções da consciência, como a consciência se relaciona com
processos não conscientes no cérebro e assim por diante, nossa compreensão do que é a
consciência se aprofundará – pois tais relações formam parte do significado do termo
(seu significado conotativo, ou seu sentido). Esse foco de atenção mútuo seguido pela
investigação da natureza daquilo para que se dirige a atenção (e como isso se relaciona
com outras coisas) é fundamental para como os fenômenos vêm a ser entendidos de uma
forma socialmente compartilhada. Nesse sentido, vir a entender a natureza da
consciência não é diferente de vir a conhecer a natureza de qualquer outra coisa.
Todavia, antes que qualquer investigação possa começar, deve-se “apontar” ou
“destacar” os fenômenos aos quais o termo se refere e, consequentemente, o que fica de
fora. Na vida cotidiana, há duas situações contrastantes que formam nossa compreensão
do termo “consciência”. Temos conhecimento de como é estarmos conscientes (quando
estamos acordados) por oposição a não estarmos conscientes (quando estamos em um
sono sem sonhos). Também compreendemos como é estarmos conscientes de algo
(quando estamos acordados ou sonhando) por oposição a não estarmos conscientes
desse algo. Essa compreensão cotidiana nos fornece uma posição simples para começar.
Uma pessoa ou outra entidade está consciente se ela experiencia algo; inversamente, se
uma pessoa ou entidade não experiencia nada, ela não está consciente. Elaborando um
pouco, podemos dizer que quando há consciência, há conteúdo fenomênico.
Inversamente, quando não há conteúdo fenomênico, não há consciência. Isso está bem
perto do uso cotidiano e, para este artigo, é tudo o que precisamos. Para minimizar a
confusão, também permanecerei tão perto quanto possível do uso cotidiano da
linguagem natural para termos relacionados. No uso comum, o termo “consciência” é
frequentemente sinônimo de “estado de ciência” [awareness] ou “estado de ciência

executivo central se insere em um modelo dentro da teoria da memória de trabalho comumente


conhecido como “modelo multicomponente da memória de trabalho” (multicomponent model of
working memory). N. do T.

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consciente” [conscious awareness].4 Assim, usarei os termos de forma intercambiável.


Os “conteúdos da consciência” englobam tudo aquilo de que estamos conscientes,
aquilo de que estamos cientes, ou aquilo que experienciamos. Esses conteúdos incluem
não apenas as experiências que normalmente associamos a nós mesmos, tais como
pensamentos, sentimentos, imagens, sonhos, sensações corporais e assim por diante,
mas também o mundo tridimensional que experienciamos (o mundo fenomênico) além
da superfície corporal.
É claro que para vir a saber o que algo é, é útil na instância inicial saber onde esse
algo está, para que se possa apontar para ele – permitindo que a atenção de diferentes
pesquisadores seja focada nele. Mas para onde se aponta quando se está apontando para
consciência fenomênica?

Onde dualistas e reducionistas pensam estar a consciência

De acordo com Descartes, o mundo material é composto de res extensa, uma


substância que tem tanto localização quanto extensão no espaço. A consciência é
formada de res cogitans, uma substância que pensa, mas que não tem nem localização
nem extensão no espaço. Se isto estiver correto, então não se pode apontar para a

4
O termo “awareness” está entre os diversos termos e expressões de origem inglesa com difícil
tradução para o português. Em contextos triviais, as palavras “consciousness” e “awareness”
podem ser ambas traduzidas como “consciência”. No entanto, “awareness” também pode ser
utilizada para expressar algo próximo à “ciência”, no sentido de “estar ciente de algo” ou “ter
conhecimento de algo”. Em seu livro The counscious mind, David Chalmers escreve que a
awareness é uma propriedade psicológica associada à consciência fenomênica, e pode ser
analisada de forma geral como um estado no qual temos acesso a alguma informação e podemos
usá-la no controle de nosso comportamento. Ele escreve ainda que uma pessoa pode estar ciente
(aware) de um objeto no ambiente, de um estado de seu corpo, de um estado mental, dentre
outras coisas. A ciência (awareness) de uma informação traz consigo a habilidade de
intencionalmente direcionar um comportamento dependendo daquela informação. Ainda
segundo Chalmers, isso faz da noção de “estar ciente de” uma noção funcional. Segundo ele,
muitas noções psicológicas da consciência podem ser resumidas em algum tipo de ciência de
algo, ou “awareness de algo”. Por exemplo, a atenção pode ser analisada como um grau
particularmente alto de awareness de um objeto ou evento. Cf. CHALMERS, David. The
counscious mind: in search of a fundamental theory. Philosophy of Mind Series. Oxford
University Press, 1996, p. 28 em diante. A distinção entre consciousness e awareness é
retomada em outros escritos de Chalmers, como em CHALMERS, David. “Facing up to the
problem of consciousness”, Journal of Consciousness Studies, 2 (3), p. 200-219, 1995, para
citar apenas mais um exemplo. (N. do T).

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consciência, já que ela não tem localização. Na melhor das hipóteses, pode-se apontar
para o local no qual a consciência faz contato com o mundo material. De acordo com
Descartes, esse local é a glândula pineal, localizada no centro do cérebro. Filósofos
fisicalistas e funcionalistas (p. ex., Searle, 1992; Dennett, 1991) argumentam que a
consciência não é nada mais do que um estado ou função do cérebro. Pode ser difícil
apontar com precisão para tais estados ou funções, já que provavelmente elas são
propriedades distribuídas de grandes populações neuronais (cf. Dennett e Kinsbourne,
1992). No entanto, caso tivéssemos que apontar, apontaríamos para o cérebro. Em
resumo, dualistas clássicos e reducionistas discordam veementemente sobre o que é a
consciência, mas concordam (aproximadamente) sobre onde ela está. Na medida em que
a consciência pode ser de alguma forma localizada, essa localização é em algum lugar
no cérebro.

Uma visão da fenomenologia consciente a partir do senso comum

Em Velmans (1990, 2000), eu argumentei que essa visão atualmente popular não
tem base nem na ciência nem na experiência cotidiana. Para se decidir onde a
consciência está (ou se ela tem alguma localização), deve-se prestar atenção em sua
verdadeira fenomenologia. É verdade que existem algumas experiências que, de modo
superficial, parecem estar localizadas no espaço, ou, no máximo, em algum lugar na
cabeça ou no cérebro, exatamente como dualistas e reducionistas afirmam. Exemplos
incluem pensamentos e sentimentos vagos, tais como os pensamentos verbais, os
sentimentos de entendimento e outros semelhantes que acompanham a leitura deste
texto. Entretanto, a maioria das experiências tem uma fenomenologia muito diferente,
por exemplo, as experiências do corpo ou do mundo externo.
Deixe-me ilustrar com um exemplo bem simples. Suponha que você espete um
alfinete no seu dedo e experiencie uma dor aguda. Dentro da filosofia da mente, a dor é
geralmente considerada um caso paradigmático de um evento mental consciente. Mas
onde está a dor? Tolhidos por suas pressuposições teóricas, dualistas e reducionistas
consideram que esta é uma questão bastante difícil. Entretanto, se forçados a apontar,
eles apontariam (vagamente) na direção do cérebro (veja os comentários de Nagel,
Harnad, Searle, Marcel e Dennett, seguindo Velmans, 1993). Eu entendo esta questão
como sendo bastante fácil: a dor que se experiencia está no dedo. Caso fosse necessário

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

apontar para ela, deveríamos apontar para onde o alfinete entrou. Qualquer leitor que
tenha dúvidas sobre essa questão pode tentar o experimento.
Deixe-me esclarecer que essa marcante diferença de opinião é sobre a dor que se
experiencia, não sobre as causas físicas antecedentes (a deformação e dano à pele
causado pelo alfinete) ou sobre as causas e correlatos neurais da dor. As causas e
correlatos neurais proximais da dor estão indiscutivelmente localizados no cérebro. Mas
as causas e correlatos neurais de uma determinada experiência não são eles mesmos
essa experiência. Na ciência, causas e correlatos não são identidades ontológicas. Eu fiz
uma análise detalhada de como causas e correlatos se relacionam com identidades
ontológicas em Velmans (1998, 2000), por isso não vou trabalhar a questão aqui.
Essa localização subjetiva de dores em partes do corpo em vez de “em lugar
nenhum” ou “no cérebro” exemplifica um princípio geral que nos conduz para longe
tanto do dualismo quanto do reducionismo e na direção de um modelo “reflexivo” de
como a consciência se relaciona ao cérebro e ao mundo físico (cf. Velmans, 1990). Em
muitos aspectos, não há diferença entre essas posições teóricas. Por exemplo, o
dualismo, o reducionismo e o modelo reflexivo concordam que existem causas e
correlatos físicos e neurofisiológicos de uma determinada experiência dentro do cérebro
– e que podemos deixar que a ciência descubra quais são. Mas elas discordam sobre a
natureza e a localização dos efeitos (as experiências resultantes). Dualistas afirmam que,
sendo construídas de res cogitans, experiências não têm localização ou extensão no
espaço (embora elas se comuniquem com o cérebro). Reducionistas afirmam que, sendo
estados ou funções do cérebro, todas as experiências devem estar no cérebro (a despeito
de como elas pareçam). De acordo com o modelo reflexivo, a única evidência da
fenomenologia consciente vem de fontes de primeira pessoa. Consequentemente, as
propriedades dessa fenomenologia só podem ser determinadas a partir de fontes de
primeira pessoa. Para aparências conscientes, a aparência é a realidade (Searle, 1992).
Consequentemente, se uma dor parece estar no dedo, então é lá onde a dor está. O dano
produzido por um alfinete no dedo, uma vez que é processado pelo cérebro, acaba como
uma dor fenomênica no dedo, localizada mais ou menos onde o alfinete entrou. É por
isso que o processo todo é chamado de “reflexivo”.
Note que se alguém cravar um alfinete em seu dedo e prestar atenção na
consequente fenomenologia da dor, não terá uma experiência adicional de dor nem no
cérebro nem “em lugar nenhum”. Tampouco pode uma dor fenomênica no cérebro ou

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

“em lugar nenhum” ser observada por um observador externo (de uma perspectiva de
terceira pessoa apenas suas causas e correlatos neurais podem ser observados). Dado
que não há evidência nem de primeira nem de terceira pessoa para a dor fenomênica no
cérebro ou “em lugar nenhum”, eu sugiro que esta é uma ficção teórica, introduzida por
pensadores dualistas e reducionistas com o objetivo de fazer seus modelos funcionarem.
Apenas o modelo reflexivo é consistente com a evidência do senso comum.
Para apresentar o princípio básico de uma forma mais geral: as experiências
estão onde temos a experiência de que elas estão. A figura 1, por exemplo, ilustra um
processo similar com um gato fenomênico. Como antes, uma entidade ou evento inerva
órgãos sensoriais e inicia o processo perceptivo, embora nesse caso a entidade
iniciadora esteja localizada além da superfície corporal, no mundo externo. Como antes,
neurônios aferentes e áreas de projeção corticais são ativados, junto com áreas de
associação, traços de memória de longo prazo e assim por diante, e representações
neurais do evento iniciador são finalmente formadas dentro do cérebro – nesse caso,
representações neurais de um gato. Mas a sequência causal completa não termina aqui.
O sujeito S também tem uma experiência visual de um gato e, como antes, podemos
perguntar como é essa experiência. Nesse caso, a pergunta apropriada a se fazer é “O
que você vê?”. De acordo com o dualismo, S tem uma experiência visual de um gato
“em sua mente”. De acordo com os reducionistas, parece haver um gato fenomênico “na
mente de S”, mas isso não é nada mais do que um estado de seu cérebro. De acordo com
o modelo reflexivo, enquanto S está contemplando o gato, sua única experiência visual
do gato é o gato que ele vê no mundo lá fora. Se lhe fosse pedido que apontasse para
esse gato fenomênico (sua “experiência do gato”), ele deveria apontar não para o seu
cérebro, mas para o gato como-percebido, no espaço lá fora, além da superfície
corporal. Nisso S não é diferente de um observador externo E. O gato como percebido
por S é o mesmo como percebido por E (ainda que visto da perspectiva de S em vez de
visto da perspectiva de E). Isto é, uma entidade no mundo é reflexivamente
experienciada como sendo uma entidade no mundo.
É claro que nem todas as entidades e eventos que experienciamos têm uma
localização e extensão tão claras no espaço fenomênico tridimensional. Também temos
experiências “internas” tais como pensamentos verbais, imagens, sentimentos de saber
de algo, desejos experienciados e assim por diante. Tais experiências interiores
realmente parecem ter uma fenomenologia do tipo que caracteriza a res cogitans de

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Descartes. Pode-se argumentar que pensamentos verbais têm uma localização


aproximada, na medida em que eles parecem estar “na cabeça” (na forma de discursos
interiores), em vez de no pé de alguém, ou flutuando livres no espaço, mas eles não são
claramente localizados, à maneira de dores e gatos. Entretanto, o processo reflexivo é o
mesmo. Os processos cognitivos que ocasionam pensamentos, sentimentos de saber
algo e assim por diante têm origem na mente/cérebro, embora seja improvável que tais
processos tenham uma localização precisa, na medida em que eles envolvem a ação em
massa de grandes populações neuronais distribuídas. Consequentemente, na medida em
que esses processos são experienciados, eles são experienciados reflexivamente como
estando aproximadamente onde eles estão (na cabeça ou no cérebro).
Há muito mais a ser dito sobre a fenomenologia consciente e sua relação com o
cérebro e o mundo físico. Mas se estou certo até agora, até mesmo um exame apressado
do que de fato experienciamos impõe um desafio fundamental às pressuposições
dualistas e reducionistas no que concerne o que eles precisam explicar. Tanto o
dualismo quanto o reducionismo supõem que experiências são bastante diferentes do
corpo percebido e do mundo externo percebido (corpos e mundos percebidos estão lá-
fora no espaço, enquanto experiências de corpos e mundos estão “em lugar nenhum” ou
no cérebro). Mas o modelo reflexivo sugere que em termos de fenomenologia não há
separação real entre o corpo percebido e experiências do corpo ou entre o mundo
externo percebido e experiências desse mundo. É óbvio que quando alguém tem um
pensamento consciente não há uma experiência adicional de um pensamento “na
mente”. Mas tampouco há uma dor fenomênica “na mente” (sem localização ou
extensão) em adição à dor que alguém experiencia no dedo se essa pessoa o espeta com
um alfinete. E não há um gato fenomênico “na mente” em adição ao gato que alguém vê
no mundo lá fora. O modelo reflexivo se livra deles aplicando a navalha de Occam.

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Figura 1: Um modelo reflexivo da percepção

Mas o modelo reflexivo não se livra da fenomenologia consciente. Experiencia-


se pensamentos, dores e gatos fenomênicos como possuindo “qualia” muito diferentes

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(junto com localizações e extensões diferentes), mas, mesmo assim, eles são aspectos
daquilo que experienciamos. Juntas, tais experiências internas, sensações corporais, e
entidades e eventos externos experienciados formam os conteúdos de nossa consciência
– os quais não são nada mais do que nosso mundo fenomênico cotidiano.

Quem mais diz isso?

Para aqueles imersos em formas de pensamento dualistas ou reducionistas, essa


proposta de expansão dos conteúdos da consciência para incluir todo o mundo
fenomênico pode parecer radical, e a noção de que muitas experiências têm localização
e extensão precisas pode parecer estranha. Mas, até o momento, essa proposta não é
nova. De uma forma ou de outra, ela aparece no trabalho de George Berkeley,
Immanuel Kant, C. H. Lewes, W. K. Clifford, Ernst Mach, Morton Prince, William
James, A. N. Whitehead, Charles Sherrington, Bertrand Russell, R. Brain, Wolfgang
Köhler e Karl Pribram. Análises similares de como a consciência parece ser também
foram dadas por Antti Revonsuo e Michael Tye.
William James (1904), por exemplo, sugere que, para se convencer de onde
estão as experiências, o observador precisa apenas:

(...) começar com uma experiência perceptual, a assim chamada


‘apresentação’ de um objeto físico, seu campo de visão atual, o
quarto onde ele está sentado, com o livro que ele está lendo
como seu centro, e deixá-lo por enquanto tratar esse objeto
complexo à maneira do senso comum como sendo ‘realmente’ o
que ele parece ser, a saber, uma coleção de coisas físicas
recortada de um mundo circundante de outras coisas físicas com
as quais estas coisas físicas têm relações reais ou potenciais.
Agora, ao mesmo tempo, são somente aquelas coisas em si
mesmas que sua mente, como dizemos, percebe, e toda a
filosofia da percepção desde o tempo de Demócrito tem sido tão
somente uma longa discussão sobre o paradoxo de que o que é
evidentemente uma realidade deveria estar em dois lugares ao
mesmo tempo, tanto no espaço exterior quanto na mente de uma
pessoa. Teorias ‘representativas’ da percepção evitam o
paradoxo lógico, mas, por outro lado, violam o sentido de vida
do leitor, que não conhece nenhuma imagem mental
interveniente, mas parece ver o quarto e o livro imediatamente,
simplesmente como eles existem fisicamente.

Um insight, é claro, não faz uma teoria. Enquanto os filósofos e cientistas


mencionados acima concordam que algumas experiências parecem ter localização e

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extensão espaciais, há uma discordância difundida a respeito do que isso implica para a
natureza da consciência e sua relação com o mundo físico. Berkeley, por exemplo, é um
idealista, James um monista neutro, Whitehead um teórico processual e Tye um
fisicalista. Em Velmans (2000), eu desenvolvo o monismo reflexivo, uma análise do
que está acontecendo que não é nenhuma dessas (embora incorpore elementos de muitas
posições).
Em um curto artigo para uma publicação de filosofia, só é possível introduzir
umas poucas consequências do modelo reflexivo e como este se traduz no monismo
reflexivo (uma abrangente posição filosófica). Então, como uma introdução, vou me
focar aqui em apenas uma questão fundamental: como o modelo compreende a
intencionalidade consciente (que consciência é consciência de algo). Para colocar a
teoria em um contexto filosófico também contrastarei a análise que desenvolvo com as
de Armstrong (1968), Block (1997) e Tye (1995).

O que as experiências representam?

No dualismo e no reducionismo, é fácil ver o que as experiências do mundo


externo representam. Perceptos de objetos “na mente” ou “no cérebro” representam os
objetos que vemos no mundo lá fora. Mas, à primeira vista, a intencionalidade das
experiências conscientes pareceria ser um problema para o modelo reflexivo. Se, como
foi argumentado acima, experiências de objetos e de objetos como-percebidos são
fenomenologicamente idênticas, então o que as experiências de objetos representam?
Poderíamos fazer a mesma pergunta sobre o corpo experienciado e sobre as
experiências “internas”.
E há uma questão relacionada. De acordo com o modelo reflexivo, aquilo a que
normalmente nos referimos como o “mundo físico” é justamente o mundo que
experienciamos. No entanto, claramente este mundo continua sendo muito diferente do
mundo descrito pela física moderna (o mundo da mecânica quântica, da teoria da
relatividade, da grande teoria unificada e assim por diante). Então como o “mundo
físico” fenomenal se relaciona com o mundo descrito pela física?

Um modelo reflexivo de como a consciência se relaciona ao cérebro e ao mundo


físico

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O modelo reflexivo apresentado na Figura 1 sugere que todas as experiências


resultam de uma interação reflexiva de um observador com um observado. A fim de
ilustrar como essa interação funciona para produzir diferentes tipos de experiência, estas
podem ser subdivididas em três categorias:
1. Experiências do mundo externo (que parecem ter localização e
extensão);
2. Experiências do corpo (que parecem ter localização e extensão);
3. Experiências “internas” (pensamentos, imagens, sentimentos de
saber algo e assim por diante) que não têm localização e extensão claras no
espaço fenomênico, embora seja possível dizer aproximadamente que elas
estão “na cabeça ou no cérebro”.
A Figura 1 ilustra um exemplo de uma interação reflexiva resultando em uma
experiência (um percepto visual) de um gato fenomênico. Nesse caso, o estímulo
iniciante (o observado) é uma entidade localizada no espaço além da superfície corporal
que interage com o sistema visual do observador para produzir uma entidade
experienciada no espaço lá fora, além da superfície corporal. Como apontado acima,
uma interação reflexiva similar acontece quando o estímulo iniciante está na superfície
do (ou dentro do) corpo, ou dentro do próprio cérebro, para produzir entidades e eventos
experienciados na superfície do (ou dentro do) corpo, ou na própria cabeça ou cérebro.
O que está acontecendo? Seguindo as convenções atuais da psicologia da
percepção, eu suponho que o cérebro constrói uma “representação” ou “modelo mental”
do que está acontecendo, baseado na entrada (input) de um estímulo iniciante, em
expectativas, em traços de estímulos anteriores relacionados que foram armazenados na
memória de longo prazo e assim por diante (cf. Rock, 1997). Tais modelos mentais
codificam a informação sobre as entidades e eventos que eles representam em formatos
determinados pela modalidade sensorial que eles empregam. Representações visuais de
um gato, por exemplo, incluem codificações para a forma, localização e extensão,
movimento, textura da superfície, cor e assim por diante. Além disso, sugiro que a
maneira na qual a informação (em um determinado modelo mental) parece ser
formatada depende dos arranjos observacionais. A informação aparece de diferentes
formas para o sujeito (S) e para um observador externo (E), porque os meios disponíveis

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

para S e para E para acessarem a informação naquele modelo mental diferem (cf.
Velmans, 1991).
Um observador externo, inspecionando o cérebro de um sujeito, precisa confiar
em seus próprios sistemas exteroceptivos (normalmente a visão)5, auxiliados por
equipamentos físicos (exames de tomografia por emissão pósitrons, imagens de
ressonância magnética funcional etc.). Visto dessa maneira (dessa perspectiva de
terceira pessoa), um modelo mental visual no cérebro do sujeito pode aparecer na forma
de uma ativação neural em uma série de mapas de características relativamente distintos
distribuídos por todo o sistema visual do sujeito. Não sabemos com precisão o que é
necessário para tornar conscientes tais representações neurais. No entanto, dada a
natureza integrada das experiências visuais, é razoável supor que, quando tais atividades
neurais distribuídas de fato se tornam conscientes, elas devem estar ligadas umas às
outras de alguma forma, talvez através de oscilações sincrônicas de 40 Hz. Também
podemos esperar que haja influências (físicas) observáveis no padrão de atividade
corporificado no modelo mental a partir de fragmentos de memória existentes
(correspondendo aos efeitos da expectativa, do conhecimento armazenado etc.). A
despeito de como o mais sutil detalhe venha a ser, vista da perspectiva de E, a
informação (sobre o gato) no modelo mental de S provavelmente tomará uma forma
neural, ou outra forma física. Em termos do que E pode observar diretamente do modelo
mental de S, esse é o ponto final na parte científica da história.
Entretanto, o arranjo observacional pelo qual o sujeito acessa a informação em
seu próprio modelo mental é inteiramente diferente. Como, no caso de E, a informação
em seu próprio modelo mental é traduzida em algo que ele pode observar ou
experienciar – mas tudo aquilo que ele experiencia é um gato fenomênico no mundo lá
fora. Enquanto ele foca sua atenção no gato, ele não se torna consciente de ter um
“modelo mental de um gato” na forma de estados neurais. Ele tampouco tem uma
experiência de um gato “em sua cabeça ou cérebro”. Em vez disso, ele se torna
consciente do que os estados neurais representam – uma entidade no mundo externo lá
fora. Em resumo, a informação codificada no modelo mental de S (sobre a entidade no

5
Em biologia, “sistemas exteroceptivos” são sistemas de um determinado organismo
responsáveis pela percepção de estímulos vindos de fora que agem sobre aquele organismo (por
exemplo: estímulos visuais, táteis ou olfativos). (N. do T).

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mundo) é idêntica seja vista por S ou por E, mas a maneira na qual a informação parece
ser formatada depende da perspectiva a partir da qual ela é vista.
Deixe-me ilustrar com uma simples analogia. Vamos supor que a informação
codificada no cérebro do sujeito é formada em um tipo de “holograma de projeção”
neural. Um holograma de projeção tem uma propriedade interessante: a imagem
tridimensional que ele codifica é percebida como estando no espaço lá fora, em frente a
sua superfície bidimensional, contanto que seja vista de uma perspectiva apropriada
(frontal) e que seja iluminada por uma fonte de luz apropriada (frontal). Visto a partir de
qualquer outra perspectiva (pelo lado ou por trás), a única informação que se pode
detectar sobre o objeto está nos complexos padrões de interferência codificados na placa
holográfica. De modo análogo, a informação no “holograma de projeção” neural é
exibida como um objeto visual, tridimensional, no espaço lá fora apenas quando é visto
a partir da perspectiva apropriada de primeira pessoa do sujeito que percebe. E isso
acontece apenas quando as condições necessárias e suficientes para a consciência são
satisfeitas (quando há “iluminação por uma fonte de luz apropriada”). Vista de qualquer
outra perspectiva externa, a informação no holograma de S parece ser nada mais do que
representações neurais no cérebro (padrões de interferência na placa).
O “holograma de projeção” é apenas uma analogia, é claro – mas é uma analogia
útil na medida em que partilha de algumas das características aparentemente intrigantes
das experiências conscientes. A informação exibida na imagem holográfica
tridimensional é codificada em padrões bidimensionais sobre uma placa, mas não há
nenhum sentido no qual a imagem tridimensional está ela própria “na placa”. Da mesma
forma, não há nenhum sentido no qual o gato fenomênico observado por S está “em sua
cabeça ou seu cérebro”. De fato, a imagem holográfica em 3D sequer existe (como uma
imagem) sem um observador apropriadamente localizado e uma fonte de luz apropriada.
De forma semelhante, a existência do gato fenomênico requer a participação de S, o
agente que experiencia, e todas as condições exigidas para a experiência consciente (em
sua mente/cérebro) têm que ser satisfeitas. Finalmente, uma determinada imagem
holográfica só existe para um determinado observador, e só pode se dizer que ela tem
extensão e está localizada onde tal observador percebe que ela esteja! De forma similar,
o gato fenomênico de S é privado e subjetivo. Se S o percebe como estando no espaço
fenomênico lá fora, para além da superfície corporal, então, a partir de sua perspectiva,
ele está no espaço fenomênico lá fora, para além da superfície corporal.

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Projeção perceptual

Processos inconscientes da mente/cérebro constroem realidades experienciadas


nas quais nossas cabeças fenomênicas parecem estar inseridas dentro de mundos
fenomênicos tridimensionais, não o contrário. Mas os modelos mentais que codificam a
informação sobre essas realidades experienciadas em 3D estão “na cabeça ou no
cérebro”. Diante disso, como gatos fenomênicos e outros objetos fenomênicos que são
percebidos como tendo extensão e localização no espaço conseguem estar lá fora? É
evidente que nada físico é projetado pelo cérebro. Não existem, por exemplo, raios de
luz projetados através dos olhos para iluminar o mundo, ao contrário do que
acreditavam antigos pensadores gregos, como Empédocles (cf. Zajonc, 1993). Em vez
disso, a “projeção perceptual” é um efeito psicológico produzido pelo processamento
perceptual inconsciente. O holograma de projeção tem uma série de características que
podem ser utilmente incorporadas em uma explicação causal de tais efeitos, mas o
holograma não se destina a ser uma teoria literal do que está acontecendo na
mente/cérebro. Até este momento, simplesmente não sabemos como a projeção
perceptual acontece. É claro que não compreender plenamente como ela acontece não
altera o fato de que ela acontece – e as evidências clínicas e experimentais para a
projeção perceptual são consideráveis. Já comentei isso em outro lugar (em Velmans,
1990, 2000) e não vou repetir meu comentário aqui. Exemplos clínicos e experimentais
incluem membros fantasmas, alucinações e realidades virtuais. Um exemplo
particularmente impressionante é relatado pelo neurologista Peter Brugger (1994), em
uma história do caso clínico de um homem de 17 anos de idade que sofria de epilepsia
causada por uma lesão em seu lóbulo temporal esquerdo. Ele estava sendo tratado com
medicamentos anticonvulsivos para controlar sua doença e tinha cirurgia marcada
quando sofreu um episódio “heautoscópico” (uma alucinação visual de seu corpo
combinada com uma experiência fora do corpo) que foi extremamente perturbador:

O episódio heautoscópico, que é de especial interesse para o


assunto deste relatório, ocorreu pouco antes da admissão. O
paciente parou sua medicação de fenitoína, bebeu vários copos
de cerveja, ficou na cama durante todo o dia seguinte e, à noite,
foi encontrado balbuciando e confuso embaixo de um arbusto
grande e quase completamente destruído, logo abaixo da janela
do seu quarto no terceiro piso. No hospital local, notaram-se

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

contusões torácicas e pélvicas. O paciente deu o seguinte relato


do episódio: na respectiva manhã, ele se levantou com uma
sensação de tontura. Ao virar-se, encontrou a si mesmo ainda
deitado na cama. Ficou irritado com “esse cara que eu sabia que
era eu mesmo e que não iria se levantar e, assim, arriscava se
atrasar para o trabalho”. Ele tentou acordar o corpo na cama
primeiro gritando com ele, depois tentando sacudi-lo e então
pulando repetidamente em cima de seu alter ego na cama. O
corpo deitado não mostrou nenhuma reação. Só então o
paciente começou a ficar intrigado com sua dupla existência e
ficou mais e mais assustado com fato de que já não podia dizer
qual dos dois ele realmente era. Várias vezes, a sua consciência
corporal alternava do indivíduo de pé para aquele ainda deitado
na cama. E quando no modo deitado na cama, sentia-se bastante
desperto, mas completamente paralisado e assustado com a
figura de si mesmo curvando-se e batendo nele. Sua única
intenção era se tornar uma única pessoa novamente e, olhando
para fora da janela (de onde ele ainda podia ver seu corpo
deitado na cama), repentinamente, decidiu pular, “de forma a
acabar com o sentimento insuportável de estar dividido em
dois”. Ao mesmo tempo, ele esperava que “essa ação tão
desesperada amedrontasse o indivíduo na cama, impelindo-o,
assim, a se fundir comigo de novo”. A próxima coisa da qual se
recorda é de acordar no hospital sentindo dores (Brugger, 1994,
p. 838-839).

Em suma, esse paciente erroneamente julgou que o corpo visto por alucinação na
cama era seu corpo real, e tentou livrar-se de seu corpo real (que julgava ser a
alucinação), a fim de tornar-se unificado novamente – um poderoso exemplo da
natureza projetada e construída do corpo como-experienciado. Mas não precisamos
realmente de tais exemplos marcantes para demonstrar que há algo interessante
acontecendo que precisa de explicação. O simples fato de esta PALAVRA parecer estar
aqui fora nesta página (em vez de no seu cérebro) ilustra que o fenômeno é ubíquo e
real.
O mundo como-percebido é parte dos conteúdos da consciência. Alguns
princípios iniciais que se seguem a partir da análise acima devem agora estar claros.
Dentro do modelo reflexivo o mundo físico como-percebido é parte dos conteúdos da
consciência. Os conteúdos da consciência não estão em algum lugar ou espaço separado
“na mente ou no cérebro”. Isto é, em termos da fenomenologia não existe nenhuma
separação clara entre o que nós normalmente pensamos como sendo o “mundo físico”, o
“mundo fenomênico” e “o mundo como-percebido”. Dito isso, o mundo físico cotidiano
como-percebido realmente tem que ser distinguido do mundo mais abstrato descrito
pela física (e por outras ciências). De acordo com o modelo reflexivo, o mundo físico

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como-percebido é apenas uma representação biologicamente útil do mundo que a


ciência pode descrever de muitas maneiras alternativas. Mas, com os nossos olhos
abertos, o que normalmente chamamos de “mundo físico” é apenas aquele que
experienciamos. Não existe experiência adicional do mundo “na mente ou no cérebro”.

Como o “mundo físico” fenomênico se relaciona ao mundo descrito pela física?

Em Velmans (2000, cap. 7), faço uma análise detalhada de como o sistema
mente/cérebro traduz as energias descritas pela física em um mundo-como-
experienciado. Não vou repetir essa análise aqui. Basta dizer que os dados da física, da
fisiologia sensorial, da percepção e da psicofísica deixam claro que o mundo percebido
“modela” apenas uma seleção dos eventos e energias que a física descreve. Há energias
eletromagnéticas de vários tipos, que permeiam o espaço e até mesmo penetram nossos
corpos, para as quais os nossos olhos (e outros órgãos dos sentidos) são cegos. Há sinais
produzidos por animais e insetos para os quais nossos ouvidos são surdos. Cada sistema
sensorial tem seus próprios limites de resolução. Mudanças na intensidade da luz de
menos de aproximadamente 5% ou do som de menos de aproximadamente 20% não são
percebidas como mudanças. Uma mudança na frequência de som de 1000 Hz para 1005
Hz produz uma elevação apenas perceptível no tom, mas não uma mudança de 4000 Hz
para 4005 Hz. Uma mudança de comprimento de onda eletromagnética de 480 para 481
nanômetros produzirá uma mudança perceptível no matiz, mas não uma mudança de
550 para 551 nanômetros. O nosso sentido do olfato e do gosto monitora, mas nos diz
pouco sobre a química das substâncias que inalamos e ingerimos. A sensação e a
percepção estão limitadas em sua resolução espacial para detectar eventos de tamanho e
distância que sejam relevantes para ações humanas normais e para nossa sobrevivência
– para além disso, precisamos de microscópios e telescópios. Nossos sistemas sensoriais
são também estruturados para detectar eventos de certa duração. Por exemplo, lâmpadas
elétricas na verdade piscam 50 vezes por segundo (a frequência da rede elétrica).
Entretanto, essa “frequência de oscilação” é mais rápida do que o sistema visual pode
determinar, o que faz a luz parecer contínua. Em contraste, o movimento de uma flor
saindo da terra é muito lento para ser visto, então é preciso uma reprodução em câmera
rápida para “ver” o movimento.

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Os dados da psicologia comparativa e da zoologia sugerem também que a


“realidade física” percebida por seres humanos é apenas uma das muitas possíveis
realidades percebidas. A combinação precisa de capacidades cognitivas, sensoriais,
perceptivas e sociais de cada espécie é única. Sistemas sensoriais e perceptivos
humanos desempenham funções largamente semelhantes aos dos outros animais. Mas a
sensibilidade dos órgãos dos sentidos, a gama de energias aos quais eles estão
sintonizados, e a maneira como a informação detectada pelos sensores está sujeita a um
processamento perceptual variam consideravelmente de espécie para espécie.
Consequentemente, a “realidade física” que percebemos é, na verdade, um mundo
peculiarmente humano.

Explicações fisicalistas sobre a localização dos qualia

Até onde posso julgar, a explicação acima de como fenômenos percebidos e


dependentes de um observador representam uma “realidade” que existe de maneira
independente, a qual a ciência pode descrever de outras formas, é uma explicação
consistente tanto com a ciência quanto com o senso comum. Entretanto, a dependência
de um observador de qualia tais como cor, cheiro, sabor e assim por diante, tem sido
fortemente combatida por alguns filósofos da mente fisicalistas. Sua resistência é uma
consequência de seu compromisso com o fisicalismo. Se qualia tais como
“vermelhidão” são, em sua essência, experiências dependentes de um observador, então
não é fácil reduzir tais qualia a estados “objetivos” do cérebro, não importando como os
estados do cérebro sejam interpretados. Armstrong (1968), por exemplo, reconhece que,
a menos que se possam excluir da percepção propriedades tais como “vermelhidão”, ele
teria que abandonar todo o seu programa reducionista, o qual afirma que a percepção
não é nada mais que a capacidade de fazer certas discriminações. Mas a “vermelhidão”
inegavelmente existe, portanto, Armstrong é forçado à visão de que a vermelhidão é
uma propriedade física de certos objetos físicos a qual é independente de um
observador. (Depois de excluir tais qualia da percepção, não há outro lugar para eles
irem!).
De acordo com o modelo reflexivo, a cor só aparece uma vez que as ondas de
luz (na faixa de onda visível) tenham sido traduzidas em experiências de cor pelo
sistema visual. Ou seja, os objetos só são vermelhos se: (a) eles refletirem a luz com

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comprimentos de onda adequados (em torno de 700 nm) e (b) o sistema visual traduzir
essa energia eletromagnética em uma experiência de cor vermelha. Dessas duas
condições, (b) é a mais importante. Isto é, o sistema visual pode produzir uma
experiência de cor sem ser inervado por luz na região de 700 nm (por exemplo, em
sonhos, imagens vívidas e alucinações). Mas sem sistemas visuais do tipo apropriado, as
ondas de luz de 700 nm não têm absolutamente cor alguma (a cor, como tal, não é uma
propriedade eletromagnética). Em contraste, Armstrong afirma que os objetos são
“vermelhos” havendo ou não alguém para percebê-los. Como van der Heijden et al.
(1997) notam (no comentário deles sobre uma posição semelhante adotada por Block,
1995), tal ponto de vista simplesmente não leva a sério as ciências naturais.

Que há cores no mundo externo é uma ideia ingênua, sem apoio da


física, da biologia ou da psicologia. Em última análise, essa ideia
pressupõe que a representação (a cor percebida) seja representada
(como uma cor percebida). Um sistema de percepção realiza sua
função apropriada quando distingue as coisas relevantes no mundo
exterior. Para a visão, a informação acerca dessas coisas relevantes
está contida na estrutura e composição da luz refletida pelo mundo
exterior que adentra os olhos. Para distinguir as coisas relevantes no
mundo externo, uma representação única e consistente das distinções
correspondentes na luz é tudo o que é necessário (Van der Heijden et
al., 1997, p. 158).

Entretanto, de acordo com Block (1997), van der Heijden et al. estão

(...) extrema e incrivelmente errados. Eles dizem que devemos


desistir da ideia de que uma rosa ou qualquer outra coisa é em
algum momento vermelha. A única vermelhidão, dizem eles, é
a vermelhidão mental. Mas por que não defender ao invés disso
que as rosas são vermelhas... rejeitando cores na mente? Por
que não interpretar a fala acerca do vermelho na mente como
uma forma enganosa de expressar o fato de que estados
conscientes-P representam o mundo como sendo vermelho? E
uma representação de vermelho não precisa ser ela mesma
vermelha (como as ocorrências da palavra “vermelho” aqui) (p.
165).

É claro que Block está certo em apontar que as representações neurais de rosas
vermelhas não precisam elas mesmas ser coloridas. Mas ninguém está defendendo que
elas sejam. O que é defendido é que, uma vez que um sistema visual humano normal
seja ativado de uma forma adequada, isso resultará em uma experiência visual de uma
cor vermelha, independentemente de se a cor corresponder a uma propriedade física no

395
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mundo lá fora. Penfield & Rasmussen (1950), por exemplo, demonstraram que a
estimulação direta por microeletrodos do sistema visual resultou em experiências
visuais, bem como a estimulação do lobo temporal em experiências auditivas, e a
estimulação do sistema somatossensorial em experiências táteis, e assim por diante.
Tendo em conta que tais qualia visuais, auditivos e táteis podem existir na ausência de
propriedades físicas que eles normalmente representam, não é tão fácil ver como eles
podem ser reduzidos a tais propriedades físicas.
Uma defesa da opinião de que o “vermelho” e outros qualia são propriedades do
mundo independentes de um observador em vez de propriedades da experiência também
foi recentemente formulada por Tye (1995). Tye argumenta (como eu faço em Velmans,
1990) que todos os “qualia” são representacionais. Ele também concorda que qualia tais
como a “vermelhidão” não parecem estar “na mente ou no cérebro”, mas parecem estar
firmemente ligados a objetos no mundo. Mas ele tem uma explicação completamente
diferente de por que os qualia parecem estar lá fora. De acordo com Tye, isso resulta do
fato de experiências perceptivas serem transparentes:

Por que é que as experiências perceptivas são transparentes? Quando


você dirige o seu olhar para dentro e tenta focar a sua atenção nas
características intrínsecas dessas experiências, por que você sempre
parece acabar prestando atenção àquilo do que as experiências são?
Suponha que você tenha uma experiência visual de um punhal
brilhante, encharcado de sangue. Se, como Macbeth, você está tendo
alucinações, ou se você está vendo um punhal de verdade, você tem a
experiência da vermelhidão e do brilho como estando fora de você,
como cobrindo a superfície de um punhal. Agora tente se tornar ciente
de sua experiência em si mesma, dentro de você, separada de seus
objetos. Tente concentrar sua atenção em alguma característica
intrínseca da experiência que a distingue de outras experiências, algo
diferente daquilo do que ela é uma experiência. A tarefa parece
impossível: o estar ciente parece sempre escorregar através da
experiência para a vermelhidão e o brilho, como instanciados juntos
externamente. Ao dirigir a mente para dentro para prestar atenção na
experiência, aparentemente, acaba-se analisando características ou
propriedades externas (p. 135).

Para resumir, tanto o fisicalismo quanto o modelo reflexivo postulam a


existência de um mundo físico independente de um observador, mas eles assumem uma
visão diferente sobre como isso se relaciona com o mundo fenomênico (o mundo físico
percebido). Eu trato o “mundo físico” percebido como parte do que experienciamos e
sugiro que essa experiência seja uma representação biologicamente útil do que

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realmente existe lá. Essas representações podem ou não corresponder bem ao mundo
descrito pela física. Por exemplo, a distância percebida dos eventos experienciados
representa bastante bem a distância mensurada para eventos próximos, mas falha
completamente para grandes distâncias (p. ex., a distância percebida do sol nos dá pouca
indicação de sua distância mensurada). A localização percebida e a distância resultam
de processos mentais pré-conscientes de modelagem que envolvem a “projeção
perceptual”.
De acordo com Tye, no entanto, os estados representacionais internos são
“transparentes”. Ou seja, nós “vemos através de” nossas representações de cor, cheiro e
assim por diante, as cores e cheiros como eles realmente são no mundo lá fora. Tye
baseia seu argumento, em parte, em como as coisas parecem para nós e, em parte, na
evidência de que qualia percebidos realmente correspondem muito bem às propriedades
medidas pela física.
Como observa Tye,

Certamente, não experienciamos as cores como relativas àquele que


percebe. Quando, por exemplo, um tomate maduro parece vermelho
para mim, eu experiencio a vermelhidão em toda a superfície que
reveste o tomate. Cada parte perceptível da superfície parece vermelha
para mim. Ao parecerem vermelhas, nenhuma dessas partes me parece
ter uma propriedade relativa àquele que percebe. Eu não experiencio
nenhuma parte da superfície como produzindo certo tipo de resposta
em mim ou em qualquer outra pessoa. Pelo contrário, certamente
experiencio a vermelhidão como algo intrínseco àquela parte, assim
como experiencio a forma da superfície como intrínseca a ela (p. 145).

Dado que nós experienciamos tais cores como não sendo relativas àquele que
percebe, ele considera a ideia de que elas são relativas àquele que percebe como
“simplesmente inverossímil” (p. 145).
Dado que o fisicalismo rotineiramente nega a credibilidade das aparências como
um guia para como as experiências realmente são, Tye apoia seu argumento em um
terreno instável. Há muitos contraexemplos óbvios. As cores das superfícies podem
parecer ser independentes de um observador, mas as cores das pós-imagens não
parecem. Se alguém fixa a vista em uma mancha vermelha durante alguns minutos, por
exemplo, tal pessoa experienciará uma pós-imagem verde que se projeta em qualquer
superfície na qual o olho se fixa. O tamanho aparente da pós-imagem também aumenta
conforme aumenta a distância estimada da superfície. Então, se a aparente dependência

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de um observador deve ser o critério daquilo que é “mental”, pós-imagens são


certamente mentais. A dependência de um observador das cores ligadas às superfícies
no mundo também se torna evidente uma vez que o sistema visual já não funciona da
maneira normal. Em casos de daltonismo vermelho-verde, por exemplo, o vermelho já
não pode ser distinguido do verde – e em casos de acromatopsia, o mundo inteiro
aparece em tons de cinza! De forma mais fundamental, a razão pela qual as superfícies
apenas parecem ser coloridas (sem qualquer contribuição consciente de nossa parte) é
devido ao fato de que o processamento visual opera pré-conscientemente. Isto é, uma
vez que cenas visuais aparecem na experiência consciente, a ligação entre cor, forma,
movimento e assim por diante já aconteceu! Finalmente, é importante notar que as
variações na forma como as coisas são experienciadas não podem ser usadas para
decidir se as coisas são experienciadas ou não!
O segundo principal argumento de Tye se baseia em evidências de que em
algumas circunstâncias a correspondência qualia/propriedades físicas pode ser
relativamente invariante. As cores permanecem razoavelmente similares, por exemplo,
quando vistas ao ar livre, em ambiente fechado (iluminados por lâmpadas
incandescentes), ou através de óculos escuros. Tye questiona,

Por que deveria ser assim? Certamente a resposta mais direta é que o
sistema visual humano tem, como uma de suas funções, a de detectar
as cores reais e objetivas das superfícies. De alguma forma, o sistema
visual consegue determinar que cores os objetos realmente têm, muito
embora a única informação imediatamente disponível a ele seja
concernente a comprimentos de onda (p. 146).

Depois de uma revisão de algumas das evidências relevantes, Tye conclui que

Cores são características físicas objetivas de objetos e superfícies.


Nosso sistema visual evoluiu para detectar uma série dessas
características, mas aquelas às quais somos particularmente sensíveis
são indiretamente dependentes de fatos sobre nós. Em particular, há
três tipos de receptores na retina, cada um dos quais responde a uma
faixa de onda de luz particular, e as refletâncias espectrais das
superfícies nessas faixas de ondas (isto é, o seu arranjo para refletir
uma certa porcentagem de luz incidente em cada uma das três faixas),
juntas determinam as cores que vemos. Assim, as cores em si podem
ser identificadas com triplas ordenadas de refletâncias espectrais. Uma
explicação desse mesmo tipo geral pode ser dada para cheiros,
sabores, sons, e assim por diante (Tye, 1995, p. 150).

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Tye está certo em apontar que a maneira como a cor percebida é mapeada em
certos padrões de refletância de luz pode ser mais invariante do que às vezes se pensa.
Afinal, do ponto de vista evolutivo, faz sentido que nossos sistemas de percepção
identifiquem invariâncias físicas quando elas ocorrem, traduzindo-as em experiências
relativamente invariantes. No entanto, mesmo uma correlação perfeita entre qualia
percebidos e eventos descritos pela física não estabeleceria sua identidade ontológica
(causação e correlação não estabelecem identidade – veja acima). De fato, as descrições
físicas como tais não contribuem em nada para explicar por que um padrão de
refletâncias de luz deve ser percebido como “vermelho” e outro como “verde”,
enquanto um padrão de refletâncias de luz na região do ultravioleta é visto como
absolutamente nada (a menos que aconteça de se ser uma abelha). Nem descrições
físicas explicam a forma bastante arbitrária na qual o sistema visual traduz energias
eletromagnéticas com comprimentos de onda ordenados em uma escala de proporção
em categorias de cor ordenados em uma escala nominal. Se nossas experiências
simplesmente “espelhassem” o mundo, nós esperaríamos que as relações entre as
propriedades descritas pela física fossem mais fielmente preservadas na forma em que
tais relações são experimentadas. A isso se deve acrescentar as muitas diferenças na
forma como determinadas propriedades físicas podem ser experimentadas tanto dentro
de quanto entre espécies (ver Velmans, 2000, cap. 7, para uma revisão). Como van der
Heijden et al. (1997) observam, a opinião segundo a qual qualia percebidos existem no
mundo de uma forma que é livre de tais influências biológicas simplesmente não leva a
sério as ciências naturais.

Conclusão

O fisicalismo redutivo rejeita as evidências de primeira pessoa, argumentando


que experiências conscientes não são nada mais do que estados do cérebro, a despeito
do que elas possam parecer. Tendo reduzido estados da consciência a estados do
cérebro, geralmente eles tentam exteriorizar seus “qualia”, alegando que estes são
propriedades físicas do mundo externo independentes do observador. Embora o
fisicalismo redutivo se cubra com o ‘manto da ciência’, ele, frequentemente, ignora as
descobertas da ciência. Por exemplo, ele ignora as evidências para a natureza altamente
especializada dos órgãos dos sentidos humanos (fisiologia sensorial), a natureza

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construtiva da percepção, a complexa relação entre os qualia que experienciamos e as


energias descritas pela física (psicofísica), a capacidade do cérebro de gerar
experiências na ausência das energias físicas que essas experiências normalmente
representariam (neuropsicologia) e as muitas maneiras nas quais a percepção humana
difere daquela de outros animais (psicologia comparativa). Em suma, o fisicalismo
redutivo ignora tanto a evidência fenomenológica de primeira pessoa no que diz respeito
à natureza da consciência, quanto a evidência de terceira pessoa sobre como a
consciência se relaciona ao mundo descrito pela física. É irônico que uma filosofia da
mente que tem a intenção naturalizar a consciência dê uma explicação tão antinatural
dela.
Entretanto, é possível desenvolver um modelo reflexivo de como a consciência
se relaciona ao cérebro e ao mundo físico que é consistente tanto com a evidência de
terceira pessoa de como o cérebro funciona quanto com a evidência de primeira pessoa
de como é ter uma dada experiência. Dentro desse modelo, o mundo físico como é
percebido (o mundo fenomênico) é visto como parte da experiência consciente, não
como separado dela. Enquanto no dia a dia tratamos esse mundo fenomênico como se
ele fosse o “mundo físico”, ele é, na verdade, apenas uma representação biologicamente
útil de como é o mundo, e tal representação pode diferir em muitos aspectos do mundo
descrito pela física. De que forma o mundo como percebido se relaciona ao mundo
como descrito pela física é algo que pode ser investigado pela ciência normal (p. ex.
através do estudo da fisiologia sensorial, da psicofísica e assim por diante). Conquanto
esta seja uma explicação completamente “natural” da consciência, ela é não redutiva.
Isto é, experiências conscientes são realmente como elas parecem ser.

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THE ROLE OF WEALTH AND THE VALUE OF POVERTY
IN SOCRATIC LITERATURE:
A READING OF AESCHINES’ CALLIAS AND TELAUGES

Francesca Pentassuglio
“Sapienza” University of Rome

ABSTRACT: The paper focuses on Socrates’ views on wealth and poverty in Aeschines’
Callias and Telauges. Given the fragmentary status of both works, I will examine the scanty
surviving testimonies in relation to some parallel passages by other Socratics, in order to enrich
the understanding of Aeschines’ lost dialogues.
The first part of the paper addresses the theme of wealth from a ‘biographical’ perspective,
by dealing with a set of sources attesting to Aeschines’ life of poverty. In the second part of the
paper the analysis focuses on the philosophical discussion regarding the problem of wealth, by
tackling the peculiar view of the relationship between πενία and πλοῦτος and the related non-
material conception of wealth expounded in the Callias and the Telauges. In the concluding
section I will briefly examine the parallel accounts in Xenophon’s Oeconomicus and
Memorabilia, so as to reconstruct the wider debate about the problem of wealth raised within
the logoi Sokratikoi.

KEYWORDS: Aeschines of Sphettus, Callias, Telauges, Socrates, wealth, poverty.


PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

For all those first-generation philosophers ‘for whom Socrates was a hero’ –
wrote Schaps – ‘money and wealth, and the equation of wealth with money, were
problematic’1. This apparently vague utterance makes a crucial point, as we will see,
about the problem of wealth in Socratic literature. It can thus be taken as a starting point
for my analysis, which aims to explore this issue by focusing on Socrates’ views on
wealth and poverty in Aeschines’ dialogues – namely, in the Callias and the Telauges.
Given the fragmentary status of both works, I will examine the scanty surviving
testimonies in relation to some parallel passages by other Socratics, so as to enrich the
understanding of Aeschines’ lost dialogues and to reconstruct, at least in part, the wider
debate about the problem of wealth raised within the logoi Sokratikoi.
The paper first addresses the theme of wealth from a ‘biographical’ perspective,
by dealing with a trait that all sources ascribe to Aeschines, and which proves to be
connected to his relationship with Socrates: his life of poverty. The close analysis of a
set of texts dealing with a certain ‘Aeschines son of Sellus’ – who, though poor,
presented himself as a rich man – will pave the way for the examination of some
fundamental accounts of Socrates’ attitude towards wealth, which represents a sort of
topos in the Socratic dialogues.
This will allow me to shift, in the second part of the paper, from the biographical
level to a philosophical discussion regarding the problem of wealth. Socrates’ ‘boasting’
about his poverty – and his peculiar view of the relationship between πενία and πλοῦτος
– is based on a specific, non-material conception of wealth that is expounded in some of
Aeschines’ dialogues, particularly the Callias and the Telauges.
The arguments presented by Aeschines’ Socrates bear a close resemblance to
those found in other Socratic dialogues, particularly Xenophon’s account in the
Oeconomicus and the Memorabilia. In the concluding section I will briefly examine
these different accounts for the purpose of reconstructing the wider debate on the
problem of wealth in which Aeschines’ dialogues are to be placed.

1
See David M. Schaps, ‘Socrates and the Socratics: When Wealth Became a Problem’, The Classical
World 96/2 (2003), 142.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

I. Aeschines the ‘pauper auditor’


Aeschines’ poverty and his destitute way of life are emphasised by the majority
of biographical sources. This aspect is mentioned especially by those testimonies
dealing with Aeschines’ visit to Sicily2: Diogenes Laertius (3.36; 2.61), Hesychius of
Miletus (De vir. illustr. 3) and the Suidas (s.v. σύστασις) report that he went to see
Dionysius ‘because of his poverty’ (δι’ ἀπορίαν: frr. 6, 20, 28–9 P. = VI A 3–4 SSR)3;
similarly, according to Philostratus (Vit. Apoll. 1.35, 1), ‛monetary reasons’ made him
go to Syracuse (ὑπὲρ χρηµάτων: fr. 26 P. = VI A 14 SSR). Moreover, we read in the
Codex Vaticanus graecus 96 (fol. 62v) that Aeschines, ‘burdened with poverty’
(ἐπιέζετο ύπὸ πενίας), borrowed some food from Socrates (fr. 17 P. = VI A 9 SSR), an
episode also reported by Diogenes Laertius (2.62 = fr. 20 P. = VI A 9 SSR); again,
Athenaeus (11.507c) describes him as a πένης (Αἰσχίνου τε πένητος ὄντος: fr. 18 P. =
VI A 21 SSR) and Seneca (De benef. 1.8, 1–2) as a pauper auditor (fr. 12 P. = VI A 6
SSR).
Besides these sources, whose references to Aeschines of Sphettus are
undisputed, it is worth considering a set of texts mentioning a certain Αἰσχίνης Σελλοῦ,
which include a few verses from Aristophanes’ Wasps and Birds, a scholium to the
Birds, and the entry σεσέλλισαι from some Byzantine lexica. It falls beyond the scope
of this paper to discuss in depth the difficulties raised by their attribution to the Socratic
philosopher, a matter that I have addressed elsewhere4. However, it is necessary here to
take greater account of certain chronological problems, particularly those pertaining to
Aristophanic comedies.
Aristophanes, indeed, repeatedly taunts a poor man named Aeschines, who
boasts about his wealth despite his extreme destitution, but the interpretation of these
2
See Karl F. Hermann, De Aeschinis Socratici reliquiis (Göttingen, 1850), 6–7 and note 9. The issue of
poverty is also linked to another fundamental aspect of Aeschines’ life, which cannot be tackled within
the confines of this paper: the teaching of rhetoric, a topic particularly dealt with by Diogenes Laertius (2.
20; 2.62 = frr. 19–20 P. = VI A 7; 13 SSR). Aeschines’ destitute conditions and all the debts he incurred
(see Athen. 13.611d–612f = fr. 35 P. = VI A 16 SSR) may indeed explain his need for the µισθός obtained
from rhetoric lessons. On this issue see Domingo Plàcido, ‘Esquines de Esfeto: las contradicciones del
socratismo’, in Livio Rossetti and Alessandro Stavru, eds, Socratica 2005: studi sulla letteratura
socratica antica presentati alle Giornate di studio di Senigallia (Bari: Levante, 2008), 125–30. Moreover,
the fact that in 2.20 Diogenes mentions the Epicurean Idomeneus of Lampsacus as his source, and that in
the same passage Aeschines is associated with Socrates in relation to this activity, suggests a connection
between this tradition and anti-Socratic Epicurean polemics, on which see at least Anna Angeli, ‘I
frammenti di Idomeneo di Lampsaco’, Cronache Ercolanesi 11 (1981), 41–101.
3
Henceforth, the numbering of the testimonies on Aeschines will follow the edition Eschine di Sfetto.
Tutte le testimonianze (Turnhout: Brepols, 2017). The corresponding number of the source in the
collection Socratis and Socraticorum Reliquiae (Napoli: Bibliopolis, 1990) is also reported when present.
4
See Francesca Pentassuglio, ‘Eschine di Sfetto: alcune nuove testimonianze’, Méthexis 29 (2017), 64–
71, and Eschine di Sfetto. Tutte le testimonianze, 26–9; 31 ff.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

testimonies is highly controversial. A first complication is due to the fact that the
Aeschines presented here is called the ‘son of Sellus’ and that this appellation is not
attested elsewhere. As we learn from Vesp. 1243–7, this Αἰσχίνης ὁ Σέλλου5 was a
‘well-trained and clever musician’ (ἀνὴρ σοφὸς καὶ µουσικός), and a character
explicitly associated with wealth (χρήµατα καὶ βίαν / Κλειταγόρᾳ τε κἀµοὶ / µετὰ
Θετταλῶν). Along with the Wasps, (probably) the same Aeschines is mentioned in the
Birds, where he is presented again as a man of great means: ‘I suppose
Cloudcuckooland must be the place where the wealth (τὰ πολλὰ χρήµατα) Theogenes
boasts about is hidden, and Aischines’ money too’ (Aristoph. Av. 821 ss.; transl. by S.
Halliwell).
Now, as I already had the chance to show6, it is possible to argue that ὁ Σέλλου
is not a patronymic in Aristophanes, and thus that these verses would not be attesting to
a (third)7 different tradition about the name of Aeschines’ father. First, it is noteworthy
that, in the Wasps (1267), Aristophanes applies the appellation ὁ Σέλλου also to
Amynias (ἀλλ᾽ Ἀµυνίας ὁ Σέλλου µᾶλλον οὑκ τῶν Κρωβύλων, κτλ.), who is often
ridiculed for his poverty and boastfulness. Yet, we know from the same comedy that
this Amynias was the son of Pronapus (74: Ἀµυνίας µὲν ὁ Προνάπους), and thus the
genitive Σέλλου certainly does not indicate the name of his father. Therefore, one might
argue that also in the case of Aeschines the appellation ὁ Σέλλου is not used as a
patronymic, but as a nickname or a pseudo-patronymic, with further examples being
found in Aristophanes8, and a parallel in Hipponattes9.
It is also worth focusing briefly on the origin of the appellation, and hence on
the sense of the comic invective. We know from the Iliad that the Σελλοί were Zeus’
priests in Dodona and that they lived in extreme poverty:

5
Aeschines is given the same patronymic in Vesp. 323–6, while in 459 he is presented as ὁ Σελλαρτίου.
The latter is to be understood, according to Meister, in the sense of Σελλοῖς ἄρτιος (‘zu Sellen passend,
Sellengenosse’): see Richard Meister, ‘Αἰσχίνης ὁ Σελλοῦ’, Jahrbücher für classische Philologie 141
(1890), 675. For a different interpretation see Douglas M. MacDowell, Aristophanes. Wasps (Oxford:
Clarendon Press, 1971), 195–6. Other comic distortions of proper names can be found, in the same
comedy, in verses 342, 466, 592, and 836.
6
See Pentassuglio, Eschine di Sfetto. Tutte le testimonianze, 27–9.
7
The majority of sources present Aeschines as the son of Lysanias: see Suid. s.v. Σωκράτης (fr. 7 P.);
Plat. Apol. 33e (fr. 9 P. = VI A 5 SSR); Ael. Aristid. De rhet. 1.66 (fr. 23 P. = VI A 10 SSR); Philostrat.
Vit. Apoll. 1.35, 1 (fr. 26 P. = VI A 14 SSR); Phrinicus ap. Phot. Biblioth. cod. 61 (fr. 50 P. = VI A 33
SSR). Both the Suida (s.v. Αἰσχίνης = fr. 39 P. = VI A 25 SSR) and Diogenes Laertius (2.60 = fr. 5 P. = VI
A 3 SSR) attest to a second tradition according to which Aeschines is the son of Charinus.
8
Cf. Aristoph. Vesp. 1267 (τῶν Κρωβύλου) and Ach. 1131 (Λάµαχον τὸν Γοργάσου).
9
Fr. 32.34 West (42a–b. 43 Degani): Έρµῆ, φίλ’ Έρµῆ, Μαιαδεῦ, Κυλλήνιε.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Ζεῦ ἄνα Δωδωναῖε Πελασγικὲ τηλόθι ναίων, / Δωδώνης µεδέων


δυσχειµέρου, ἀµφὶ δὲ Σελλοὶ / σοὶ ναίουσ᾽ ὑποφῆται ἀνιπτόποδες
χαµαιεῦναι (Il. 16.234).

Zeus, lord, Dodonaean, Pelasgian, who dwell afar, ruling over wintry
Dodona – and about you live the Selli, your interpreters, men with
unwashed feet who sleep on the ground (transl. by A. T. Murray and
W. F. Wyat ).

We may conclude that when Aeschines is given the appellation ὁ Σέλλου, this is
probably to be understood in the sense that he has the same nature and way of life as a
‘Sellus’10. Nonetheless, while accepting this interpretation, the problem of the
identification of the character remains open, and it must be acknowledged that only
Meister argued in favour of the identification of this Aeschines son of Sellus with the
Socratic philosopher11. The only other association between the two figures can be found
in the Socratis and Socraticorum Reliquiae, but it is quite indirect: the section of
Giannantoni’s collection devoted to Aeschines Socraticus (VI A) includes the above-
mentioned scholium to Aristophanes’ Birds (823a = VI A 6 SSR), which – according to
an edition12 posterior to that consulted by Giannantoni13 – mentions an Αἰσχίνης
Σελλοῦ, while also reporting the same information about his poverty and boastfulness.
Regardless of this, the main argument against the identification remains the
chronology of Aristophanes’ comedies, and particularly of the Wasps14. This proves,
indeed, incompatible with the little we know about Aeschines’ life: if we hold, on the
basis of the biographical sources at our disposal, that Aeschines’ birth is to be placed
around 435 BCE15, then he was certainly too young to be defined as an ἀνὴρ σοφὸς καὶ
µουσικός in 422 BCE, when Aristophanes’ Wasps was first staged. Unless we re-assess

10
See MacDowell, Aristophanes. Wasps, 178; Giuseppe Mastromarco and Piero Totano, eds, Commedie
di Aristofane, vol. 2 (Torino: Utet, 2006), 204, note 177. In this regard, Meister argued that the genitive ὁ
Σέλλου is used here as an equivalent of the adjective Σέλλιος (‘der Sellische’) and hence that it is to be
interpreted as a ‘quasi patronimisches Genitiv’, just like ‘son of heros’ (‘Heldensohn’) is employed in
place of ‘heroic’ (‘heldenhaft’): see Meister, ‘Αἰσχίνης ὁ Σελλοῦ’, 675.
11
Meister, ‘Αἰσχίνης ὁ Σελλοῦ’, 676.
12
Scholia in Aristophanem, sumptus suppeditante Instituto Batavo scientiae purae (N.W.O.), pars II:
Scholia in Vespas; Pacem; Aves et Lysistratam, fasc. III: Scholia vetera et recentiora in Aristophanis
Aves, edidit D. Holwerda (Groningen: Egbert Forsten, 1991).
13
Scholia graeca in Aristophanem cum prolegomenis grammaticorum, varietate lectionum optimorum
codicum integra, ceterorum selecta annotatione criticorum item selecta, cui sua quadam inseruit Fr.
Dübner (Parisiis: A. Firmin Didot, 1877). The edition is flawed and presents a much shorter version of the
scholium.
14
In this regard, I am indebted to Michele Corradi for his valuable observations during the discussions at
the conference, and for his extremely helpful comments on the earlier version of the paper. They made me
tackle the chronological problem more seriously and re-think the issue of the identification of Aeschines
‘son of Sellus’ with the Socratic philosopher. Also the following interpretation of the scholium and of the
testimonies provided by the Byzantine lexica depends on this re-assessment of the question.
15
See Pentassuglio, Eschine di Sfetto. Tutte le testimonianze, 24–5.

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PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

the fundamental dates of Aeschines’ biography, these chronological considerations


undeniably militate against the identification of Aeschines ‘son of Sellus’ with the pupil
of Socrates16.
Now, despite all this, we can still draw some useful information about the
problem of wealth both from the scholium to the Birds and from the Byzantine lexica.
These sources are worth quoting at length:

Schol. in Aristoph. Av. 823a α (fr. 15 P. = VI A 6 SSR): τά τ’ Αἰσχίνου


γε ἅπαντα: καὶ οὗτος πένης, θρυπτόµενος καὶ αὐτὸς ἐπὶ πλούτῳ, καὶ
λέγων ἑαυτὸν πλούσιον. ἦν δὲ Αἰσχίνης Σελλοῦ. ἔλεγον δὲ ἐκ
µεταφορᾶς τοὺς τοιούτους Σελλούς, καὶ τὸ ἀλαζονεύεσθαι δὲ
σελλίζειν.
823a. β: ὅτι καὶ ὁ Αἰσχίνης οὗτος πένης ἦν θρυπτόµενος καὶ λέγων
ἑαυτὸν πλούσιον. ἦν δὲ καὶ Αἰσχίνης ὁ Σελλοῦ, ὃς ἦν ἀλαζών. ἔλεγον
δὲ ἐκ µεταφορᾶς τούτου καὶ τὸ ἀλαζονεύεσθαι σελλίζειν.

823a. α: All the wealth of Aeschines: he was poor too, even though he
showed reluctance when it came to wealth and claimed he was rich.
And Aeschines was the ‘son of Sellus’. By extension, people like him
were called ‘Selloi’ and the act of boasting ‘styling oneself a Sellus’.
823a. β: because this Aeschines was poor too, even though he rejected
(wealth) and claimed he was rich. And Aeschines was the ‘son of
Sellus’, who was a boaster. By extension, the act of boasting was also
defined as ‘styling oneself a Sellus’ (my translation).

Suid. s.v. σεσέλλισαι (fr. 16 P.): µάτην ἐπῆρσαι. ἀπὸ Αἰσχίνου τοῦ
Σελλοῦ, ὀς ἦν κοµπαστὴς καὶ ἀλαζὼν ἐν τε τῷ διαλέγεσθαι καὶ ἐν τῷ
προσποιεῖσθαι πλουτεῖν. Λυκόφρων δ’ ἀπέδωκε τὸ σελλίζεσθαι ἀντὶ
τοῦ ψελλίζεσθαι. ὁ γὰρ Αἰσχίνης πένης ὢν ἐθρύπτετο ἐπὶ πλούτῳ,
λέγων ἑαυτὸν πλούσιον. ἦν δὲ Αἰσχίνης Σελλοῦ. ἐκ µεταφορᾶς δὲ
ἔλεγον τοὺς τοιούτους Σελλούς καὶ τὸ ἀλαζονεύεσθαι σελλίζειν17.

‘To style oneself a Sellus’: to exalt oneself vainly. This comes from
Aeschines ‘son of Sellus’, who was a charlatan and a boaster in
discussions and in pretending to be rich. Lycophron used the
expression ‘styling oneself a Sellus’ instead of ‘speaking vaguely’.
Indeed, Aeschines, though poor, claimed that he was rich. And
Aeschines was the ‘son of Sellus’. By extension, people like him were
called ‘Selloi’ and the act of boasting ‘styling oneself a Sellus’ (my
translation)18.

16
As far as the Aeschines mentioned in the Birds is concerned, we do not run into the same chronological
difficulties. Nonetheless, the character is generally identified with the Aeschines ‘son of Sellus’ of the
Wasps: see Mastromarco and Totano, Commedie di Aristofane, 204; Zachary P. Biles, and S. Douglas
Olson, eds, Aristophanes. Wasps (Oxford: Oxford University Press, 2015), 193: ‘cf. Av. 823, where what
must be the same Aeschines is ridiculed for being poorer than he claims’.
17
Cfr. Phot. s.v. σεσέλλισαι: µάτην ἐπῆρσαι. ἀπ’Αἰσχίνου τοῦ Σελλοῦ, ὃς ἦν κοµπαστὴς καὶ ἀλαζὼν ἐν τε
τῷ διαλέγεσθαι καὶ ἐν τῷ προσποιεῖσθαι πλοῦτειν. Λυκόφρων δ’ ἀπέδωκε τὸ σελλίζεσθαι ἀντὶ τοῦ
ψελλίζεσθαι.
18
Cf. Hesych. Alex. s.v. σεσέλλισαι: ‘Styling oneself a Sellus’: there is a certain Aeschines, called ‘son of
Sellus’, a boaster in discussions and in pretending to be rich; extremely poor, so that anyone else like him

408
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In all likelihood, scholiasts knew nothing about this character, and thus the
alleged information about Aeschines ‘son of Sellus’ may be of autoschediastic origin.
Nonetheless, we cannot exclude that what lies at the root of the story invented by the
scholiasts is a conflation between the Aristophanic character and Aeschines of Sphettus,
who – as we will see – in his dialogues had extensively dealt with the issues of wealth
and poverty, in terms that are not far from the scholium.
Interestingly, on the basis of the name ‘Sellus’ Phrynicus coined the verb
σεσέλλισαι, again in relation to Aeschines, who boasted about his wealth despite being
extremely poor (fr. 10.1: ἄγαµαι, Διονῦ, σοῦ στόµατος, ὡς σεσέλλισαι). This is exactly
the idea that we find in the explanation of the verb by the Byzantine lexicographer. If
we combine the testimony of the scholium with the information provided by the entry
σεσέλλισαι of the Suidas, Photius and Hesychius of Alexandria, it is possible to obtain a
coherent portrait of the character these sources refer to: Aeschines the ‘son of Sellus’
was someone extremely poor (Hesych. Alex. s.v. σεσέλλισαι: πενόµενος δὲ καθ’
ὑπερβολήν) who in discussions boasted (ibid.: ἀλαζὼν καὶ ἐν τῷ διαλέγεσθαι) and
claimed that he was rich (Schol. in Aristoph. Av. 823: λέγων ἑαυτὸν πλούσιον).
Although we cannot rely on explicit textual evidence (the scholia never mention
the name of Aeschines of Sphettus), it may be supposed that the erudite tradition has
erroneously identified the Aristophanic Aeschines with the Socratic philosopher, and
that the scholiasts used some Socratic material (particularly from Aeschines) in order to
explain Aristophanes’ verses. This was probably due to a certain resemblance with the
conception of wealth expounded in Aeschines’ works. Indeed, besides the information
about Aeschines’ poverty, these testimonies introduce a crucial element: the ‘son of
Sellus’, though poor, presented himself as a rich man (as we read in the scholium to the
Birds) or even ‘pretended to be rich’ (as the Suidas and Hesychius report). More
significantly, according to the same scholium, he showed a certain reluctance towards
wealth (θρυπτόµενος καὶ αὐτὸς ἐπὶ πλούτῳ).
Now, this peculiar view of the relationship between wealth and poverty seems to
underlie a non-material conception of πλοῦτος that leads us to Aeschines’s dialogues,
and that represents the core of the following investigation. The apparent paradox of
presenting oneself as a rich man although living in poverty may be properly understood

is said to <style himself a Sellus> (Αἰσχίνης τις ὑπῆρχε Σελλοῦ καλούµενος, ἀλαζὼν καὶ ἐν τῷ
διαλέγεσθαι καὶ ἐν τῷ προσποιεῖσθαι πλοῦτειν, πενόµενος δὲ καθ’ ὑπερβολήν, ὡς τοὺς παραπλησίους
τούτῳ καλεῖσθαι <σεσέλλισαι>).

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in the light of a peculiar conception of wealth that is not only expounded by Socrates in
the Callias and the Telauges (see section II), but also recalls the figure of Socrates –
particularly as described in Xenophon’s Socratic writings.
It is important, in this regard, to mention some anecdotal evidence showing that
Aeschines’ poverty became a specific topic of conversation between Socrates and his
‘pupil’. According to an anecdote reported for the first time by Seneca, while other
pupils used to offer Socrates gifts, Aeschines – pauper auditor – claimed that he could
not find anything to give him, and that in this respect only he felt poor. Therefore, he
decided to present Socrates with the only ‘thing’ he had: himself (itaque dono tibi, quod
unum habeo, me ipsum). With this offer – Seneca finally observes – ‘Aeschines outdid
Alcibiades […] and the generous gifts of all the wealthy young men’ (De benef. 1.8, 1-2
= fr. 12 P. = VI A 6 SSR; transl. by M. Griffin and B. Inwood)19.
Now, Socrates’ attitude towards wealth is a recurring theme in Socratic writings.
As is well known, Plato’s Socrates invokes his poverty in front of the judges as
evidence that he has devoted his life to practising διαλέγεσθαι, without charging any
money for wisdom (Apol. 23b–c; 31c; 38b; cf. Resp. 1.338b). Equally renowned is
Aristophanes’ account in the Clouds, where Socrates and his companions are defined by
Phidippides as ‘the quacks, the pale-faced wretches, the bare-footed fellows’ (vv. 102–
3: τοὺς ἀλαζόνας τοὺς ὠχριῶντας τοὺς ἀνυποδήτους)20. Moreover, in Xenophon’s
Oeconomicus Socrates himself tells Ischomachus: πένης καλοῦµαι (11.3), and – even
more explicitly – in Memorabilia 1.2, 58–9 the philosopher places himself among the
πένητες. What seems particularly relevant here, beyond Socrates’ economic status21, is
how he conceives the problem of wealth, and thus the reason why (according to some
sources) he knowingly chose poverty.
The most telling testimony in this sense is that provided by Xenophon’s Socratic
writings, which may be read in parallel with the sources on Aeschines as the ‘son of
Sellus’ just examined. Indeed, the same paradox of presenting oneself as a rich man
while having no resources applies to Socrates both in book 2 of the Oeconomicus and in
several passages of the Memorabilia. In the Oeconomicus, Socrates is asked to provide

19
The same anecdote can be found in Diogenes Laertius (2.34), who reports a shorter version of the story:
‘Aeschines said to him, ‘I am a poor man and have nothing else to give, but I offer you myself’ (πένης
εἰµὶ καὶ ἄλλο µὲν οὐδὲν ἔχω, δίδωµι δέ σοι ἐµαυτόν), and Socrates answered, ‘Nay, do you not see that
you are offering me the greatest gift of all?’’ (fr. 13 P. = VI A 6 SSR; transl. by R. D. Hicks).
20
Even more strikingly, in the Birds Aristophanes coins a new verb from the name of Socrates
(ἐσωκράτουν) to label those who had long hair and ‘went dirty like Socrates’ (1280–3).
21
On this topic see Schaps, ‘Socrates and the Socratics: When Wealth Became a Problem’, 141.

410
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advice on how to increase one’s belongings, and replies to Critobulus: ‘I certainly think
I have no need of more money and am rich enough (οὐδέν µοι δοκῶ προσδεῖσθαι
χρηµάτων, ἀλλ᾽ ἱκανῶς πλουτεῖν). But you seem to me to be quite poor, Critobulus, and
at times, I assure you, I feel quite sorry for you’ (2.2; transl. by O. J. Todd). The
paradoxical character of Socrates’ statement clearly emerges in what follows: when
Critobulus asks how much his property would fetch at a sale, he answers it ‘might
readily sell for five minae’ (2.3). Therefore, the wealth Socrates boasts about is not of a
material kind: as he further clarifies, ‘my property is sufficient to satisfy my wants, but I
don’t think you would have enough to keep up the style you are living in and to support
your reputation, even if your fortune were three times what it is’ (2.4).
A peculiar view of wealth begins here to emerge. In particular, it follows from
the idea of the ‘inner’ nature of true wealth: a) the actual poverty of the so-said ‘rich’,
who are constantly unsatisfied and, conversely, b) the actual wealth of those who never
lack what is necessary to meet their needs, despite having little or no resources.
Therefore, men are truly ‘rich’ when they don’t feel the need for what they don’t
possess and are capable of limiting their needs and hence of satisfying them with
minimal material resources. This is the same conception underpinning some assertions
Socrates makes in the Memorabilia (1.2, 1; 1.3, 5–8; 1.6, 2–10)22, and also the same
theory expounded – according to the scanty testimonies at our disposal – in Aeschines’
Callias and Telauges.

II. Aeschines
II.1. The Callias
Closer attention should now be paid to the Callias, and in particular to the
discussion about πλοῦτος that is supposed to represent the core of the dialogue. The
starting point to reconstruct the content of the work is the testimony provided by the
pseudo-Socratic epistle VI (fr. 114 P. = VI A 74 SSR) and by Plutarch’s Life of Aristides
(25.4–9 = fr. 115 P. = VI A 75 SSR). The epistle gives a detailed account of a Socratic
discussion about the problem of wealth, which already Hirzel had traced back to
Aeschines’ Callias23. In particular, the reference to a dispute between a father and a son
who squanders all his money (in paragraphs 7–8) may be connected to the διαφορά

22
Cf. Mem. 1.2, 5; 14; 1.5, 6 and Cyr. 1.5, 12; 1.6, 17.
23
See Rudolf Hirzel, Der Dialog. Ein literarhistorischer Versuch (Leipzig: S. Hirzel, 1895), 135.

411
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(‘quarrel’ or ‘contrast’)24 between Callias and his father Hipponicus mentioned by


Athenaeus (5. 220b–c = fr. 113 = VI A 73 SSR).
The focus of our investigation is the discussion on the theme of wealth led by
Socrates, who expounds a view based on the paradoxical equivalence between πενία
and πλοῦτος and on the idea of the inner nature of true wealth.
He establishes an opposition between the ‘rich’ who are never satisfied with
what they have, and whose condition leads to an incessant increase of their needs, and
those ‘true rich’ whose limited resources suffice to fulfil their necessities (2–3).
Throughout the text, Socrates pursues the ideal of freely chosen ‘poverty’, thereby
objecting to those who identify εὐδαιµονία with wealth. This is why Socrates claims
later on (5 ff.) that he will not bequeath his sons any riches and yet they will not lack
what is necessary. Sure enough, he left them a παράδειγµα παιδεύσεως, by showing that
being wise is the sole source of happiness (µίαν ἀρχὴν εὐδαιµονίας ἐγὼ νοµίζω φρονεῖν
εὖ; 5) and so that only the ἀγαθός may live happily.
As for the content of the Callias, we can infer from the epistle that the following
view was held in the dialogue: true εὐδαιµονία is solely based on εὐ φρονεῖν, and such a
goal is more easily attainable by a πένης like Socrates than by a rich man, who always
risks misusing his wealth. Put differently, while a poor man can easily achieve ἀρετή
and thus become ἀγαθός, a rich man is hindered – for example – by κόλακες, who are
‘dangerous to be around’ (ὁµιλῆσαι δεινοί; 6). Therefore, the starting point of the
dialogue might have been the issue of the foundation of, and conditions for, true
εὐδαιµονία, perhaps – as in the case of Xenophon’s Memorabilia – in relation to the
apparent paradox that a man like Socrates, while appearing to be a διδάσκαλος
κακοδαιµονίας to Antiphon, claims to have reached εὐδαιµονία (Mem. 1.6, 2 ff.).
A similar discussion is echoed in Plutarch’s account on the trial against Callias25,
who was accused of having exploited his cousin Aristides on several occasions, by
taking advantage of his own authority, and of having then left him living in poverty, in a
ratty cloak and with no resources (despite being the πλουσιώτατος Ἀθηναίων: 25.4).

24
There is no agreement among scholars about how the term should be interpreted: see Friedrich G.
Welcker, ‘Unächtheit der Rede des Lisias gegen den Sokratiker Aischines’, Rheinisches Museum 2
(1834), 422; Hermann, De Aeschinis Socratici reliquiis, 14; Hirzel, Der Dialog. Ein literarhistorischer
Versuch, 135, note 2; Heinrich Krauss, Aeschinis Socratici Reliquiae (Leipzig: B. G. Teubner, 1911), 91,
note 163.
25
Even though the author does not expressly cite Aeschines, already Welcker and Hermann argued that
Plutarch’s account preserved a portion of the Callias; see Welcker, ‘Unächtheit der Rede des Lisias gegen
den Sokratiker Aischines’, 427 and note 29, and Hermann, De Aeschinis Socratici reliquiis, 12.

412
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To respond to this charge, Callias claims he often proffered aid to Aristides, who
always refused to accept it by replying that ‘it more became him to be proud of his
poverty than Callias of his wealth’ (25.5; transl. by B. Perrin). In Aristides’ following
words we find an explicit reference to the issue of ὀρθὴ χρῆσις: while it is easy to find
those ‘who use wealth well or ill’ (εὖ τε καὶ κακῶς χρωµένους) – states Arsitides – it is
rare ‘to find a man who endured poverty with a noble spirit’ (ibid.).
By combining Plutarch’s account with the epistle, it may be argued that the
discussion about the value of wealth was inserted in a wider debate on the issue of ὀρθὴ
χρῆσις, just as in Xenophon’s Oeconomicus (1.7 ff.; 13 ff.). It can therefore be supposed
that a more general question lies in the background of the dialogue, such as: under what
circumstances is something to be considered ‘good’, and hence to bring benefits? More
particularly, we may imagine a discussion on the ὀρθὴ χρῆσις of wealth and on the issue
of whether wealth could make one happy.
It should be noted, however, that this topic is dealt with from different
perspectives in the two sources: while the pseudo-Socratic epistle stresses the risks and
the pernicious consequences of a misuse of wealth (making the way of life of a πένης
like Socrates preferable), Plutarch’s passage suggests the idea that, while anyone can
make good or bad use of wealth, only a few people succeed in bearing poverty ‘in a
noble way’ (γενναίως), especially among those who cannot be ‘otherwise than poor’
and are ashamed of the fact (πενίαν αἰσχύνεσθαι). That is not, however, the case of
Socrates, nor that of Aristides who, like a ‘second’ Socrates, has chosen to live in
poverty and proudly proclaims his way of life.
Ultimately, it may be argued that Aeschines meant to represent various types of
poverty, through a comparison between as many figures of ‘poor’ people which, as we
will see, finds clearer expression in the Telauges. At any rate, we only know the
conclusion of such a (possible) discussion on the issue of ὀρθὴ χρῆσις: neither poverty
nor wealth in themselves make one happy, as it all depends on the use one makes of
both.

II.2. The Telauges


The issues addressed in the Callias partly overlap with the content of the
Telauges, which seems to focus on a complementary topic: that of πενία.
We are informed about the figure of Telauges and the other characters of the
dialogue by Proclus and Herodicus (apud Athenaeus). In particular, Proclus (In Plat.

413
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Cratyl. 21 p. 8, 26–8 = fr. 125 P. = VI A 83 SSR) refers that Hermogenes was mocked
by Aeschines ‘for being dominated by money’ (ὡς χρηµάτων ἥττων); moreover, he did
not take care of his companion Telauges and let him be ‘unkempt’ (ἀθεράπευτον)26.
Secondly, we know from Athenaeus (5.220a = fr. 126 P. = VI A 84 SSR) that in the
same dialogue Aeschines ridiculed Critobulus because of his ignorance and coarseness,
and that he also attacked ‘Telauges himself for paying a fuller half an obol per day to
rent the robe he wore, and for wrapping himself in a sheepskin, fastening his shoes with
rotten rope’ (transl. by S. D. Olson).
It is not possible within the limits of this paper to examine in depth all the
characters who are mentioned here along with Telauges, and who engage in
conversation with Socrates also in Plato’s and Xenophon’s works27. What we may argue
is that the issue of Hermogenes’ poverty triggered a wider discussion about the way of
life and unkemptness of the so-called ‘Pythagorists’28. The sources clearly seem to
indicate that Aeschines portrayed Telauges as a ‘unkempt’ man (ἀθεράπευτος) who –
according to Athenaeus – fastened his sandals with worn laces and regularly wore a
κῴδιον, or fleece29. With regard to this item of clothing, it is worth mentioning an
anecdote reported by Marcus Aurelius, where Socrates himself is presented as a
κωδιοφόρος (11.28) who wears a coarse fleece as a garment (that is to say, as a
ἱµάτιον), just like the κωδιοφόρος Telauges depicted by Aeschines. The sense of this
mockery may lie in the fact that the reason behind this mode of dress differs in the two
cases: Socrates, according to Marcus Aurelius’ account, made use of a κῴδιον because
of his poverty and because he did not care about ‘exterior’ things such as clothing;
Telauges, on the contrary, used it to show off his ideal of self-sufficiency. Now,

26
According to Dittmar this scene is to be placed at the beginning of the dialogue, when Hermogenes
introduces his friend Telauges to Socrates. His function, therefore, would be simply to introduce the main
character of the dialogue, and then participate in the following conversation with a minor role: see
Heinrich Dittmar, Aischines von Sphettos. Studien zur Literaturgeschichte der Sokratiker (Berlin:
Weidmann, 1912), 227. Mársico believes instead that the scanty testimonies do not allow us to determine
what kind of role Hermogenes played in the Telauges: see Claudia Mársico, Los filósofos socráticos,
Testimonios y fragmentos, vol. 2: Antístenes, Fedón, Esquines y Simón (Buenos Aires: Editorial Losada,
2014), 421, note 105.
27
For a wider analysis of the characters, I will refer to Pentassuglio, Eschine di Sfetto. Tutte le
testimonianze, 207–11.
28
This hypothesis had already been put forward by Dittmar, Aischines von Sphettos. Studien zur
Literaturgeschichte der Sokratiker, 229.
29
Socrates’ mocking is to be understood in the light of the specific use of the κῴδιον provided for by
Athenian customs, which limited the use of fleeces to the domestic sphere: see Pollux Onomast. 7.16;
Hesych. Alex., Etym. Magn. and Suid. s.v. κῴδιον,; Aristoph. Ran. 1478; Plut. 166; Eq. 400; Schol. in
Aristoph. Eq. 400; Plutarch. Vit. dec. orat. 842c (cf. Vit. Ages. 12); Plat. Prot. 315d; Diog. Laert. 2.139;
Iambl. Vit. Phyt. 216.

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precisely a certain ‘fanaticism’ of the ‘Pythagorists’ might be the target of Socrates’


criticism in the dialogue.
The testimonies at our disposal suggest that Aeschines aimed to represent
different kinds of πενία through Telauges and Hermogenes: on the one hand, the
‘Pythagorist’ who voluntarily chooses to live in poverty (presumably flaunting his
lifestyle); on the other hand, someone who is poor in spite of himself. Within this
context, the figure of Critobulus was somehow inserted, a man who lives in a condition
of ῥυπαρότης, despite his outer beauty30. It is plausible that this figure of a rich man
who lacks the real κάλλος, and hence finds himself in a condition of moral poverty (the
opposite of Socrates), was introduced in the dialogue as a third ‘type’ along with
Hermogenes and Telauges.
In this framework, the main rival of Socrates was probably Telauges himself,
with his ideal of Bedürfnislosigkeit being expressed through the display of a poverty he
had deliberately chosen. Against this view, Socrates may have expounded a different
idea of self-sufficiency and freedom from want, which could be close to that stated in
the Callias and also to that expressed by Xenophon’s Socrates. Such an opposition
seems at least to be echoed in a passage by Marcus Aurelius (7.66 = fr. 128 P. = VI A
87 SSR) that raises the problem of the criterion for determining whether Telauges was
morally better than Socrates. This might suggest that Aeschines compared the two
different views of self-sufficiency embodied by Socrates and Telauges, with one of the
two characters (i.e. Socrates) criticising the other.
The same context is reflected by the two brief fragments preserved by Priscian
within his explanation of the verb ἀπολαύω (Institut. grammat. 18.189 = fr. 129 P. = VI
A 88 SSR). The reference to the notions of διάνοια and σπουδαιότης indeed seems to fit
well with the debate just outlined: Socrates, in particular, may have affirmed, against
Telauges, the idea that διάνοια and σπουδαιότης are the only requirements for being a
καλὸς κἀγαθός; and that one’s external way of life does not factor into the equation,
even when it is marked by poverty. It is not poverty in itself, or a flaunted disdain for
outward appearance, which guarantees that a life is morally ‘good’. Again, as in the
Callias, we may argue that the case of Telauges offers Socrates a good starting point for
a wider discussion on ὀρθὴ χρῆσις (similar to that conducted in Plato’s Euthydemus:

30
For a parallel, see the words Socrates addresses to Critobulus in Xenophon’s Oeconomicus (6.16):
ἐνίους ἐδόκουν καταµανθάνειν τῶν καλῶν τὰς µορφὰς πάνυ µοχθηροὺς ὄντας τὰς ψυχάς.

415
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277e; 280e–282b); in other words, the other side of the ‘correct use’ of wealth turns out
to be the ‘correct use’ of poverty. Particularly telling in this respect is an anecdote about
Socrates reported by Diogenes Laertius (2.36): ‘When Antisthenes turned his cloak so
that the tear in it came into view, ‘I see’, said he, ‘your vanity through your cloak’ (διὰ
τοῦ τρίβωνος τὴν κενοδοξίαν)’ (transl. by R. D. Hicks).
It may be concluded that Aeschines focused the Telauges on the issue of poverty
in all its various facets; by featuring a wide-ranging discussion about πενία, the dialogue
presents a thematic overlap with the Callias. More particularly, we might imagine that
in the dialogue Aeschines presented a sort of ‘ladder’ leading to the Socratic ideal –
embodied only by Socrates himself – via a series of ‘steps’ represented by the positions
of the other characters, from the farthest (Critobulus) to the closest (Hermogenes).

III. Parallels
The debate on the problem of wealth, which in some respects also involves
Democritus (B 77 D.–K.), represents a topos in Socratic literature, especially in
Xenophon’s works on Socrates. The Oeconomicus, in particular, allows us to draw a
close comparison as regards for the general conception of wealth expounded by
Socrates and the issue of ὀρθὴ χρῆσις31.
At the beginning of the work, Socrates leads Critobulus to admit that not
everything a person owns can be defined as κτήµατα, and Socrates’ interlocutor finally
concedes that only ‘things that are beneficial to a person’ can be called ‘property’ (1.7).
In this reply, Critobulus changes the term used by Socrates (κτήµατα) to χρήµατα,
‘possession’ or ‘money’, a slight fudge which is unlikely to be accidental: for it allows
Socrates to play on the etymology of the term χρήµατα (from χράοµαι) so as to argue
that nothing, not even money (ἀργύριον: 1.12–13), is χρήµατα for a person who does
not know how to use it; conversely, even enemies may be of benefit to those who know
how to take advantage of them (1.14).
This position can be read in parallel with Socrates’ argument in the Memorabilia
(1.2, 1; 1.3, 5; 1.6, 1–10): Socrates’ reluctance to value πλοῦτος is based on the
principle that wealth is not actually a matter of money at all, but a matter of knowledge
and especially of self-control. In this respect, I shall make a quick reference to a famous
passage of the work (1.6, 1–10) where Socrates identifies εὐδαιµονία with µηδενὸς

31
For an in-depth investigation of Socrates’ position on wealth in the Oeconomicus, see Schaps, ‘Socrates
and the Socratics: When Wealth Became a Problem’, 142 ff., which I closely follow here.

416
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δεῖσθαι. After saying that ‘he was so frugal that it is hardly possible to imagine a man
doing so little work as not to earn enough to satisfy the needs of Socrates’ (1.3, 5), in
book 1 Xenophon has the philosopher put forward a line of argument similar to that of
the Oeconomicus. In a conversation with Antiphon, who considered him a ‘teacher of
unhappiness’ (κακοδαιµονίας διδάσκαλος) living ‘worse than a slave’, Socrates
highlights the benefits of his moneyless way of life (1.6, 1–8).
It should then be pointed out that further parallels can be drawn with
Antisthenes’ argument in Xenophon’s Symposium, with special regard to the
provocative praise of wealth pronounced in chapter 4 (34–44). Here I can only touch
upon Antisthenes’ λόγος, which immediately follows Charmides’ speech and carries the
view conveyed there to the extreme: while the previous speech was aimed at describing
the freedom recovered after the loss of riches (4.29–32), Antisthenes goes so far as to
state not only that a person who owns nothing is not to be considered poor (as
Charmides argued), but also that such a person shall esteem him- or herself as the
richest. It is worth mentioning Huss’ opinion that the fundamental opposition between
Antisthenes’ and Charmides’ speeches (‘being proud of one’s own wealth’ vs. ‘being
proud of one’s own poverty’) may have been drawn from Aeschines’ Callias32.
The end point of the speech is, once more, τὸ µηδενὸς προσδεῖσθαι, that ‘having
no needs’ that Niceratus wishes to borrow from Antisthenes (4.41)33. Moreover, the
arguments Antisthenes puts forward to assert the ‘inner’ nature of true wealth bear a
close resemblance to the position upheld by Socrates in book 2 of the Oeconomicus.
Indeed, here Critobulus seems to be in the same condition as Charmides before his fall
into poverty (Symp. 4.30), and Socrates opposes his view by endorsing the kind of
wealth that Antisthenes is proud of: he shows that someone is to be judged rich not on
the basis of his possessions but on the basis of his ability to make correct use of them.
The two speeches on wealth, therefore, show some close similarities, also from a
linguistic point of view34; to some extent, they overlap: in both cases ‘inner’ wealth is

32
See Bernhard Huss, Xenophons Symposion. Ein Kommentar (Stuttgart-Leipzig: B. G. Teubner, 1999),
22.
33
From a similar perspective, Antisthenes feels compassion (οἰκτίρω: 4.37) for those rich citizens who
consider themselves so poor that they strive to have more, just like Socrates feels compassion (οἰκτίρεις:
2.4; οἰκτίρω: 2.7) for Critobulus, who seems to embody precisely that kind of Athenian citizen
Antisthenes takes pity on.
34
Furthermore, Brancacci places Antisthenes’ χρῆσις τῶν ὀνοµάτων, which concerns the ‘correct use’ of
things, names and judgements, within the wider debate on ὀρθὴ χρῆσις: see Aldo Brancacci, Oikeios
logos. La filosofia del linguaggio in Antistene (Bibliopolis: Napoli, 1990), 75. I will leave aside here any
comparison with the pseudo-Platonic Eryxias, on which see at least Georg Gartmann, Der

417
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associated with moral freedom and social freedom, the former being the precondition
and the latter the goal.
Sure enough, Xenophon was not the only author to address these issues. In
Plato’s Euthydemus Socrates argues that no good can be truly such without knowledge
(278e–282d), and that wealth, strength, honor, etc. are even pernicious to the ignorant
(218c–d). A further, well-known parallel can be found in Socrates’ argument in the
Lysis (207d–210d, particularly 208e). Nonetheless, it should be noted that only in
Xenophon is the notion of ὀρθὴ χρῆσις explicitly (and exclusively) bound to the
problem of wealth.
What emerges is a complex network of references connecting several logoi
Sokratikoi with regard to the topic of πλοῦτος, which turns out to be connected to the
fundamental issues of self-sufficiency and freedom from want35. The parallels between
Aeschines’ Callias and Xenophon’s Socratic writings, in particular, are so many and of
such kind that we may suppose, following Dittmar, that the Callias was a crucial source
for the composition of Xenophon’s Symposium, and that to some extent it also inspired
the first two chapters of the Oeconomicus and Memorabilia 1.6 (which Dittmar
considered to be the source of the pseudo-Socratic epistle VI, together with the
Callias)36.

To conclude, the sources suggest that the view of wealth expounded in


Aeschines’ dialogues may be traced back to Socrates’ teaching and heritage, both from
a biographical point of view and from a ‘doctrinal’ one, namely with respect to the
philosophical position that this choice of poverty implies.
As Schaps has pointed out, Socrates’ attitude represented a radical departure
from previous ideas about wealth, and the following generation of philosophers was the
first to conceive wealth as a ‘problem’37. While previously the judgement of ancient
authors about wealth had been ‘fundamentally unequivocal and uncomplicated’38, by

pseudoplatonische Dialog Eryxias (Diss. Bonn, 1949), and Renato Laurenti, ed., Pseudo Platone. Erissia
(Bari: Laterza, 1969), particularly 62–3.
35
See Rainer Nickel, ‘Das Verhältnis von Bedüfnis und Brauchbarkeit in seiner Bedeutung für das
kynostoische Ideal der Bedürfnislosigkeit’, Hermes 100 (1972), 42–6.
36
Dittmar, Aischines von Sphettos. Studien zur Literaturgeschichte der Sokratiker, 209.
37
See Schaps, ‘Socrates and the Socratics: When Wealth Became a Problem’, particularly 131; 133; 140–
4.
38
See Moses I. Finley, L’economia degli antichi e dei moderni (Roma-Bari: Laterza, 2008), 35–6. This
was true, according to Schaps, both for the archaic age in general and for the dramatists: see Schaps,
‘Socrates and the Socratics: When Wealth Became a Problem’, 134–9 and 139–40. What prevailed was
the idea that material wealth was both necessary and good.

418
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the end of the fifth century it was being replaced by a more skeptical view of wealth.
The problem ‘is it good to be rich?’ was posed in a new way, and the first generation of
Socratics had to integrate this idea of wealth into their views and philosophical theories.
This is why – to go back to the opening question of our analysis – for all of them, for
the first time, money and wealth, and even the very equation of wealth with money,
became problematic.

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421
CICERO'S CRITICISM OF STOIC RHETORIC

Diogo da Luz
PhD Student - PUCRS

ABSTRACT: My goal with this article is to present the elements involved in Cicero's criticism
of Stoic rhetoric. First, I will present the rhetoric of the Stoics based on the testimonies we have
left on these philosophers. Soon after, I will expose Cicero's criticisms of the Stoics. Next, I will
argue that Cicero's criticisms arise because his proposal with rhetoric is different from the
Stoics' proposal. Due to this difference, it is necessary to understand that the Stoics, on the other
hand, also had motives to defend their vision of rhetoric in face of Ciceronian criticism.

KEYWORDS: Cicero. Rhetoric. Stoics.

RESUMO: Meu objetivo neste artigo é apresentar os elementos envolvidos na crítica de Cícero
à retórica estoica. Inicialmente apresentarei a retórica dos estoicos baseado nos testemunhos que
nos restaram sobre esses filósofos. Logo depois, exporei as críticas assinaladas por Cícero aos
estoicos. Em seguida, argumentarei que as críticas de Cícero surgem em consequência de que
sua proposta com a retórica é diferente da proposta estoica. Em função dessa diferença, é
preciso compreender que os estoicos, em contrapartida, também tinham motivos para defender
sua visão de retórica perante as críticas ciceronianas.

PALAVRAS-CHAVE: Cícero. Retórica. Estoicos.


PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Initial considerations

The philosopher, orator, and lawyer Marco Tullius Cicero is one of the main
references to understand the philosophy of the Hellenistic period. Much of what is
known today of the Skeptical, Epicurean, and Stoic schools is due to his books. With
expository and critical texts, the Roman analyzes several details of these schools at the
same time as he presents his opinions, giving his work an intellectual insight worthy of
note. Therefore, Cicero often serves as a reference for those who want to know the
philosophy of the time. Given the scarcity of material left from this period, testimonies
such as those of Cicero often guide the interpretation of what the philosophical
approaches of his time would be.
On the other hand, despite the great relevance of Ciceronian expositions, it is
neither necessary nor advisable to analyze the issues of the schools cited only by
Cicero's testimonies. Although he is cautious and shows great intellectual honesty, he
often elaborates criticisms that have no proper counterpoint. In our view, this seems to
be the case with our subject, namely, the Stoic rhetoric. While Cicero contextualizes the
rhetoric of Stoics with some information and examples, he does not address certain
details that can be found in other works and testimonies. In this case, we aim, with this
article, to explore Cicero's criticism of Stoics in the light of a greater understanding of
what Stoic rhetoric is and what its purpose is.

The Stoic rhetoric

According to Atherton (1988, p. 424), the roots of Stoic rhetoric can be found in
Plato's works. Inspired by the dialogues, Stoics defend an orator with knowledge, who
is just and who wants only to improve his fellow citizens. In this case, it makes no sense
for Stoics to seek ways of persuasion in rhetorical strategies that appeal to something
other than good judgment on the issue1. Their purpose is for the orator to speak well,

1
It is not my objective, in this text, to deal with rhetorical elements used by later Stoics. It is known, for
example, that Seneca reveals his rhetorical education in his texts. For more on Seneca, see REALE, 1994,
p. lxxiii-lxxv.
424
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always in view of something correct and just, using rhetoric to adjust speech so as to
speak with precision (QUINTILIAN. Inst. Orat., I 15, 34)2 and to show the truth. Thus,
although there is a Stoic rhetoric, and it is considered a science (epistéme) (DIOGENES
LAERTIUS, VII, 42), its aim is not to achieve the mere convincing of the public, but to
make good use of lógos - this being understood as discourse and reason - in order to
encompass all that is necessary to good argumentation.
Stoics do not use discursive adornments in their rhetoric, preferring a cleaner and
more frank discourse. To them, there are five virtues in every speech: pure Greek
(hellenismós), clarity (saphéneia), conciseness (syntomía), propriety or adaptation to the
theme (prépon) and distinction (kataskeué). Stoics also establish two types of vices,
barbarism (barbarismós) and solecism (soloikismós). Diogenes Laertius describes the
meaning of each of them:

Pure Greek is diction that is flawless grammatically and free of vulgar


usage. Clarity is a style that presents what is thought in an intelligible
way; conciseness a style that encompasses precisely what is necessary
for elucidating the subject matter. Propriety lies in a style appropriate
to the content; distinction is a style that avoids banality. Among vices
of style, barbarism is speech that violates the common usage of
distinguished Greeks, while in a solecism what is signified is
incongruous (DIOGENES LAERTIUS, VII, 59 [P. Mensch]).

As González observes, pure Greek, clarity and distinction are virtues proper to what
classical rhetoric describes as simple or flat style. According to Cicero, the simple style
does not involve speaking things to please the audience or to manipulate their passions,
but is a sober speech aimed at establishing a good instructive argumentation
(GONZÁLEZ, 2011, p. 172-175). The other two virtues, propriety (or adequacy) and
conciseness are characteristically Stoic. Propriety refers to what is appropriate to speech,
which is the subject or object in question: it is the subject that establishes what must be
said and the way it is to be said (CICERO. De finibus, III, 19), not the auditorium and
its circumstances. In this, the Stoics differ from classical rhetoric, since the latter
characterizes propriety as adequacy to the public, which in Cicero is linked to the idea
of decorum (decorum): “Ciceronian decorum undoubtedly has much to do with the

2
CRISIPO DE SOLOS, fr. 385.
425
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Sophist concern for kairos: the sense of opportunity that makes the orator know what
things to say, how to say them, to whom to say them and at what precise moment
(GONZÁLEZ, 2011, p. 176).
Conciseness, in turn, is probably the most evident virtue of Stoic discourse.
Through conciseness, Stoics reject what others would place as a virtue of speech:
ornament (CICERO. De Oratore, 24, 79). Concise speech is transparent, without
adornment, only adhering to what is necessary. Furthermore, conciseness seems to
agree with Zeno's emphasis on brevity in the argument (ATHERTON, 1988, p. 412). In
this case, it is worth quoting M. Schofield's interpretation on that brevity3:

(...) if you want an argument to be as safe and strong as possible, then


you must keep it as short as possible. Safeness and strength are at least
characteristically the sorts of argumentative virtues looked for by
philosophers keen to make their arguments probative (SCHOFIELD,
1983, p. 56).

Therefore, Stoics do not consider good speeches that tend to flourishes and
digressions that make it long and excessive. They seek to express what is important for
the understanding of facts, distancing themselves from strategies that appeal to
pompous or argumentative subterfuge.
According to Diogenes Laertius (VII, 42), Stoic rhetoric is established in three
formats: deliberative (political), forensic, and encomiastic (solemn speech). This
classification is conservative, as Gourinat (2000, p. 45) noted, as is the division of
rhetorical speech into invention/discovery (heúresis), enunciation (phrásis),
organization or arrangement (táxis), and representation (hypókrisis). Still regarding
rhetorical speech, equally traditional is the division into preface (prooímion), exposition
(diégesis), refutation of the opposing parties (pròs toùs antidíkous) and epilogue
(epílogos) (DIOGENES LAERTIUS, VII, 43).
According to Cicero, Stoics not only consider rhetoric a science, but also a virtue
(De Oratore, III, XVIII, 65). This last aspect is important because they hold that the
virtues are all united, being impossible to possess some virtues and not others

3
Atherton also quotes this passage in his article (cited above). Indeed this seems to show very well what
the Stoics had in mind.
426
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(STOBAEUS. Eclogae, II, 63, 6-25)4. Therefore, they consider that the achievement of
good rhetoric is tied to other virtues (QUINTILIAN. Inst. Orat., I, 15, 34)5. In this case,
not only the study of the forms, distinctions and details of speech is enough, but it is
also necessary that the people themselves be virtuous in the other areas of life in order
for their rhetoric to be excellent. To understand this, we can rescue the example of the
Stoic Cato, whose striking rhetoric is allied to his famous righteousness of intentions
and conduct (PLUTARCO. Vidas Paralelas, Catão, o Jovem).
Stoicism is a philosophical current that adheres to the improvement of the
individual as a whole, which considers the most diverse facets of the human being to be
holistically connected (GILL, 2006, p. 33-34). In view of this, they do not see any
purpose in a methodology that deals exclusively with the science of rhetoric and ignores
improvement in other aspects. Moreover, Chrysippus, for example, does not see clarity
and pure Greek as necessarily indispensable to good rhetoric, because they are often of
diminished importance in detriment of the good intentions of the orator (PLUTARCH.
De Stoic. Rep., 1047A-B)6. Besides, the correct appropriation of the subject, namely, its
knowledge, provides conditions for a more natural and direct expression. As Cato
said,”seize the subject, the words will follow" (IULIUS VICTOR. Ars Rhetorica, I, 17).

Cicero's criticism of Stoics

In De Oratore (II, 157-160), Cicero criticizes the Stoic style, defining it as obscure,
scarce, and without spirit. He does not consider that Stoics can be of any help to those
who want to speak well, because they attribute great importance to dialectics which,
according to Cicero, does not contribute to the discovery of the truth, but only to test it.
By believing in dialectics, Stoics get lost in logical details and even stick themselves in
their own splinters, creating difficulties for themselves.
Because they prefer substance over form, Stoics were considered to be less
persuasive in assemblies. Cicero combats Stoic austerity and brevity even though, on

4
SVF III, 280.
5
CRISIPO DE SOLOS, fr. 385.
6
CRISIPO DE SOLOS, fr. 40.
427
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the other hand, they are attractive to a Roman cultural elite for representing a natural
and direct type of expression (STROUP, 2007, p. 27).
Cicero, in turn, bets on a more ornate rhetoric, appealing to methodical strategies of
persuasion, emotional manipulation, and care for the ethos of his listeners. An example
of this is the difference between Cicero and Chrysippus when it comes to the final part
of the speech, the epilogue: whereas to Chrysippus - as to Plato - the function of the
epilogue is to "summarize each aspect in the end to remind those who listen to you of
what has been said" (SPENGEL, Ars Rhetorica I, 454)7, to Cicero (De Inventione, I, 98,
52-53), recapitulation is only one of the three parts of the epilogue, being included also
indignation (indignatio) and compassion. In the last two aspects, absent from the Stoic
proposal, occurs, respectively, aggression against the adversary and praise for oneself.
In addition, the conclusion is carried out energetically, so as to stir the emotions of the
auditorium.
In relation to the invention of arguments, Cicero says that Stoics do not teach how
to find out what to say, on the contrary, they even prevent it. Cicero says:

In this connexion then that eminent Stoic is of no help to us, since he


does not teach me how to discover what to say; and he actually hinders
me, by finding many difficulties which he pronounces quite insoluble,
and by introducing a kind of diction that is not lucid, copious and
flowing, but meagre, spiritless, cramped and paltry; and, if any man
commends this style, it will only be with the qualification that it is
unsuitable to an orator. For this oratory of ours must be adapted to the
ears of the multitude, for charming or urging their minds to approve of
proposals, which are weighed in no goldsmith's balance, but in what I
may call common scales (CICERO. De Oratore, II, 159 [Sutton].

To discover what to say in a rhetorical speech, Cicero follows the path trodden by
Aristotle, whom he praises, by carrying out a study of every rhetorical tópos (locus),
which is nothing more than the thirst for arguments (argumentorum sedes) and the
topica being the art of finding arguments. The Roman criticizes Stoics in this matter,
stating that they have abandoned this art, since they have restricted themselves only to
the science of judgment, which they call dialectics. For Cicero, the topica is more

7
SVF II, 286.
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important than the analysis of judgment, and should be placed first, being also called
the “art of invention” (inventio) (CICERO. Topica, 6-8).
As Nuñez points out, inventio is the “study of the various types of causes and the
arguments that must be used on each occasion” (NUÑEZ, 1997, p. 14), “it is the
obtaining and preparation of the appropriate arguments to the different types of causes”
(NUÑEZ, 1997, p. 24). The cause, in this sense, refers to the constitutio (or status) of
the question under discussion, to the situation in dispute, which in Greek translates as
stasis8. For this reason, inventio is the art of finding arguments in the various types of
questions, it is what enables the orator to identify the status of a cause and extract
arguments from appropriate “places” (loci). For example: a controversy concerning a
murder presents a conjectural status, as it refers to a fact (CICERO. De Inventione, I,
10-11), and an argument for the defense of the accused of committing such a crime can
be found in the locus of enumeration. As Cicero exemplifies:

The accused must have committed murder by enmity, by fear, by hope,


or by favoring some friend; if not for any of these reasons, he was not
the murderer, for a crime is not committed without reason. If it is true
that there was no enmity between them, nor anything to fear, nor hope
to gain any benefit from his death, nor did this death interest any of
his friends, we must conclude, therefore, that the accused did not kill
him (CICERO. De Inventione, I, 45).

As for eloquence, according to Cicero, it comes from other rhetorical strategies,


such as the use of arguments at the right moments, in the right parts of speech, etc. In
this case, the Roman distances himself from Cato's Stoic proposal of being more
concerned with the mastery of the subject, with substance over form.
On the other hand, even if Cicero is concerned with the form of speech, it cannot be
said that he leaves aside the relevance of the content. The Roman does not criticize
Stoics for this aspect, because he recognizes in them a depth of spirit caused by
philosophical competence. In fact, what he seeks is precisely the union of two worlds:
that of oratory and that of philosophy. Unlike Plato, Cicero considers the combination

8
As Atherton says: “The stasis (or status [or constitutio]) of a case, roughly speaking, is the 'issue' on
which it turns the point which if decided will determine the outcome of the whole case”. (ATHERTON,
1988, p. 393 [note 4]). Or as Cicero reports: "constitutio is the first conflict that arises when rejecting the
accusation. For example: ‘you did this’, ‘you did not do it’ or ‘I was entitled to do it'” (De Inventione I,
10).
429
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of philosophy and rhetoric to be relevant, because in this way it is possible for orators to
contribute to the qualification of public affairs, opening space for the insertion of
philosophy in political and legal debates as well as other fields relevant to citizenship9.
Furthermore, philosophy also serves to give content and good training to orators. In
doing so, Cicero attaches great importance to the figure of the orator for the formation
of the Roman public man (NUÑEZ, 1997, p. 25-26), an attribution that has become
famous and certainly remarkable for the history of Rome.
Philosophy (sapientia), as noted, is an important component for the formation of
the orator, since it contributes greatly to eloquence. In this sense, Cicero proposes an
end to the dispute between rhetoricians and philosophers, presenting as a solution for
the orator the union between these two worlds. This split between rhetoric and
philosophy, which became famous with Plato (PINTO, 2010, p. 81-82), is criticized by
Cicero, since, according to the Roman, this gives less power of persuasion to the
philosophical content itself. In view of this, Cicero brings Greek philosophy to the
Roman way of life (AUVRAY-ASSAYAS, 2018, p. 58-62), more accustomed to the
pursuit of political eloquence by means of imposing and solemn speeches.
On the other hand, although Cicero considered the Stoic speech not very eloquent,
preferring and praising the Aristotelian contribution, it is important to note that the
Roman went beyond Aristotle's proposal: although the Stagirite occupied himself with
the theme of passions in his Rhetoric, his emphasis still remained on the structure of
arguments. Cicero, for his part, preferred to do the opposite: he devoted himself more to
what derives from the self-representation of the orator and the passions aroused in the
public than to the proofs derived from arguments (FREITAS, 2017, p. 113-114).

Back to Stoics

For Cicero (De Oratore, I, LIII 228-LV 233), an emblematic case that highlights
the problem of Stoa rhetoric was the condemnation of the Stoic Publius Rutilius Rufus.
Rufus refused to make passionate appeals and gave up any ornament in his defense

9
“(...) the interest of the city is not to separate philosophy and eloquence, but to unite both (CICERO. De
Inventione, I, 1, 1 e 4,5).
430
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speech, restricting himself to the pure truth that the subject allowed. This case is
interesting because it bears similarities to the way Socrates performed his defense, as
described by Plato in his Apology. Socrates did not make an ingenious or beautiful
speech, but asked the judges to ignore the way in which he would express himself and
dwell only on the analysis of the matter (MAY, 2002, p. 64). The Athenian rejected the
strategies of conventional oratory and demonstrated great dialectical skill.
Just as Socrates was not persuasive enough in his defense, it can be said that the
same was true for Rutilius Rufus. To Cicero (De Oratore. I, 230), Rufus was a great
human being, but unfortunately he did not obtain absolution precisely because of his
Stoic insistence not to worry about abundance in speech and not to appeal to strategies
of emotional manipulation. In affirming this, Cicero wanted to demonstrate that Stoic
rhetoric has little power of persuasion to the public.
According to Atherton (1988, p. 34-36), Socratic dialectics is not oriented to
political speeches or to a large audience, but to one-on-one philosophical encounters.
Stoics, on the other hand, seek to provide a model of discourse that embraces both the
public and the private spheres, since the Stoic philosopher does not have a public and a
private language. In view of this, Atherton maintains, Stoic rhetoric, subsidized by the
analysis of judgments of its dialectics, may even prove more precise, but less
convincing to a plural audience. Moreover, and not least important, Atherton argues that
because Stoics regard rhetoric as a virtue, they end up disregarding the public success of
speeches, since virtue is a matter of private success. By seeing virtue in good speech,
Stoics eliminate the public criteria of success and failure.
On the other hand, it is known, as has already been seen, that it is not the case that
Stoics bring only elements of dialectics for the elaboration of rhetorical speech. Despite
Socratic influence, there is also, in Stoicism, a specific study of rhetoric. It cannot be
said that Stoics simply ignore methods of organizing speech in a way that is better
understood by the public. What they do, in fact, is to devote themselves not to the
particularities of their audience, but to what is common between the orator and any
public: reason. Taking into account the human condition of dealing with judgments,
Stoics establish a clear rhetoric in order to make the issues evident. To Stoicism, as to
Socrates, evil is only done by mistake, since no one chooses evil because they want to,
but because they have made a mistake. Even passions (which are negative emotions for
431
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Stoics) occur through judgments, because they are the fruit of opinions, of a view of the
world, of things, or of people (DIOGENES LAERTIUS, VII, 110-116). For this reason,
it is also not the case that they disregard the emotional reaction of the public through
speech: in fact, Stoics know that they can arouse various emotional reactions, because
they are tied to the opinions that the listeners possess. As the speech develops, the
judgments of the listeners are put to the test and may trigger particular passionate
reactions, according to each person. Thus, it is not the case to claim that the sobriety of
Stoic rhetoric necessarily implies cold speeches or, as Sarah C. Stroup mentions (2007,
p. 27), more adequate for a library. The core of the matter is that Stoics try to make an
exposition in the best possible way through speech: it is the challenge of speaking
veraciously, and the main goal is not simply to win a legal or political dispute.
Commitment to the truth requires much more than commitment to advocate in a judicial
or ideological cause.
What Cicero criticizes in Stoicism is precisely what caused Stoic innovation in the
field of rhetoric: the incorporation of dialectical questions (GOURINAT, 2000, p. 41).
Stoic accuracy of speech provided by the dialectical resource indicates a greater concern
than the persuasion of a particular audience with a particular culture. Although Cicero
criticized the position of Stoá philosophers, considering it unfit for political oratory10, it
is important to note that Stoics understand the political ideal of harmony (homónoia) by
a broader view, since they refer to the cosmic dimension of the human being, a
dimension that underpins cosmopolitanism, the universal citizenship based on a
community of rational beings. In view of this, communion by lógos is the most
important thing for Stoics, since, for them, reason is what underpins politics beyond the
different kinds of ethos of peoples (MARCUS AURELIUS, Meditations, IV, 4).
A more specific example of how dialectics adheres to rhetoric can be found in the
thought of the Stoic Posidonius. Thanks to Quintilian's testimony, we know that
Posidonius makes an analysis of the status of rhetoric in the light of dialectics. In
Institutio Oratoria, Quintilian states that the Stoic divides status (stásis) into two genres,
having each genre subdivisions. These genres are (I) vox (language) and (ii) res

10
Criticism that philosophy found no place in the conciliation of a broader audience is also noted by
Philodemus in SUDHAUS, Philodemi Volumina Retórica II, col. XVIII, 9-20, p. 223 (Fr. 388 - Crisipo
de Solos).
432
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(thing/fact), and are directly associated with the division of Stoic dialectics into phoné
(significant) e prágmata (signifieds) (KIDD, 2004, p. 687). As Quintilian states, these
genres are subdivided as follows:

Under language he thinks come the questions: 'Does this have any
meaning?'; 'What is its meaning?'; 'How many meanings has it?'; 'And
how?' Under fact he classifies 'conjecture', which he says depends on
sense-perception; 'quality', that is definition of the fact, which
Posidonius names as conceptual; and 'relation'. A result of this
classification is another division into 'written' [law] and 'unwritten'
(QUINTILIAN. Institutio Oratoria, III, 6, 37-8)11.

As seen in the above section, it is not possible to characterize Stoic rhetoric as


shallow or poorly elaborated. What can be noticed is that the Stoics devoted themselves
to it in a different way than Cicero. Given the specificity of the Stoic philosophical
paradigm, it must be understood that their idea of rhetoric is not the same as Cicero's. In
view of this, it is necessary to contextualize Cicero's criticism of Stoics, knowing the
different speech proposals and the different objectives pursued by both.

REFERENCES

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New Series, Vol. 38, No. 2, p. 392-427, 1988.
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11
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433
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

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434
CIÊNCIA E METAFÍSICA1

Sergio Hugo Menna


Professor do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de Sergipe
(DFL/UFS).
Pesquisador Fapitec.
Grupo de Estudos Conhecimento e
Ciência (GE2C).
Doutor em Filosofia.
sermenn@hotmail.com

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar –do ponto de vista histórico e conceitual– a
relação entre metafísica e ciência.

PALAVRAS-CHAVE: Metafísica. Ciência. Pesquisa científica.

ABSTRACT: The goal of this work is to analyze –from a historical and conceptual point of
view– the relationship between metaphysics and science.
KEYWORDS: Metaphysics. Science. Scientific research.

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior –CAPES, Brasil; código de Financiamento 001, AUXPE (1898/2016).
Pesquisador Fapitec.
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

Somos todos metafísicos, saibamos ou não, e


gostemos ou não disso.
Lowe, 2002: 4

1. Considerações iniciais

A metafísica e a ciência compartilham um mesmo objetivo: descrever a


natureza, a estrutura e o funcionamento da realidade. Algumas concepções metafísicas
clássicas são, por exemplo, a suposição atomista ‘a matéria está conformada por
pequenos átomos indivisíveis’ (cf., por exemplo, Popper, “Epílogo metafísico”, apud
Lakatos [1978]: 126), ou a suposição galileana ‘o Livro da Natureza está escrito em
caracteres matemáticos’ (cf., por exemplo, Hatfield 1990: 93).
Os problemas filosóficos –na relação metafísica/ ciência– se apresentam quando
se tenta traçar uma linha demarcatória entre a metafísica e a ciência. Tanto os
cientistas como os filósofos (sejam filósofos da ciência, sejam especialistas em
metafísica) têm pontos de vista muito diferentes sobre essa questão. Por exemplo, o
enfoque da realidade que um cientista como Einstein denomina ‘ciência’, um cientista
como Bohr o denomina ‘metafísica’ (cf. Blackmore 1983). Algo análogo acontece com
os filósofos. Wartofsky (1967), por exemplo, defende que o atomismo do século XVII é
um programa metafísico; em contraposição, Ruth Putnam (1967) o interpreta como um
programa científico e Kuhn ([1962]: IV) como um programa em parte metafísico e em
parte científico. Em decorrência dessa falta de consenso, vários autores (por exemplo,
Faraday) acreditam que é impossível distinguir ciência de metafísica (cf. Blackmore
1983). “A metafísica de um homem” –afirma a esse respeito Wartofsky (1967: 148)– “é
a ciência de outro”.
Além dos problemas que se apresentam quando se tenta traçar uma linha
demarcatória entre a metafísica e a ciência, devemos contabilizar os problemas
filosóficos que surgem quando se pretende indagar a natureza da relação entre a
metafísica e a ciência.
O principal objetivo desta apresentação é, precisamente, analisar a relação
entre metafísica e ciência. Tendo em vista a mencionada dificuldade existente em
distinguir o domínio da ciência do da metafísica, começarei com uma caracterização ‘de
436
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

trabalho’ dos conceitos ‘ciência’ e ‘metafísica’ (§2). A seguir, apresentarei as principais


interpretações rivais sobre as relações e oposições entre ciência e metafísica (§3).
Posteriormente, analisarei em detalhe a interpretação dominante nas últimas décadas: a
que entende que a metafísica exerce influência sobre a ciência, já que oferece marcos
estruturais e conceituais que guiam a construção e a escolha de teorias científicas (§4),
e a versão mais radical dessa linha interpretativa, que sustenta que a metafísica e a
ciência exercem influência mútua e estão constantemente relacionadas (§5). A última
seção será dedicada às Consideraçoes finais (§6).
2. Ciência e metafísica: estabelecendo uma distinção
Podemos começar com a distinção entre ciência e metafísica. Como já indiquei,
não existe consenso –nem sequer entre os metafísicos– sobre qual é a natureza precisa
da metafísica (cf., por exemplo, Simons 2009). De fato, a natureza da metafísica é um
dos problemas clássicos de qualquer Compêndio de metafísica, assim como a natureza
da ciência é um dos problemas clássicos de todo Compêndio de ciência.
Como podemos, então, definir ‘metafísica’? Collingwood, em seu Ensaio de
Metafísica ([1940]), dá uma caracterização que nos é útil neste ponto: a metafísica –diz
Collingwood– compreende os pressupostos “abstratos, especulativos e absolutamente
não-empíricos” de um pensador ou de uma época.
Em síntese, ele destaca três características. Comecemos pela primeira: a
metafísica tem caráter abstrato –em outras palavras, estuda a estrutura fundamental da
realidade em geral2. Essa concepção está presente, claramente, em Aristóteles, que
denomina sua pesquisa de ‘estudo do Ser enquanto Ser’ (Aristóteles, Metafísica, IV.1).
Ou seja, o estudo geral do Ser em si, não de suas divisões em ciências particulares:
Física, Biologia, Psicologia etc. Aristóteles considera o Ser de uma forma tão geral e
abstrata que o estudo vai além do particular.
Afirmar que uma disciplina é ‘abstrata’, na Filosofia clássica, também
significava dizer que essa disciplina é ‘pura’, em oposição a ‘aplicada’ (Morganti 2013:
I). Outra característica relacionada é a concepção crítica de que a metafísica é
‘inconclusiva’. De fato, algumas das críticas de Carnap à metafísica se centram nesses
aspectos. Em sua Autobiografia, por exemplo, Carnap afirma que “pela imprecisão dos
conceitos gerais que utiliza, e pela natureza inconclusiva de seus argumentos”, quando

437
PROMETHEUS – N. 33 – May – August 2020 - E-ISSN: 2176-5960

comparada com a ciência empírica a metafísica parece “estéril e inútil” ([1963]: 44-5;
grifo meu).
Outra característica distintiva da metafísica, segundo Collingwood, é o fato de
ser especulativa. A expressão ‘metafísica especulativa’ e os termos ‘especulação’,
‘suposição’ ou ‘conjetura’ foram usados como sinônimos pelos próprios metafísicos
(Agassi [1964]: 194). Com esses termos, eles queriam indicar que as doutrinas
metafísicas são reflexivas, intelectuais, a priori da experiência.
As críticas dos filósofos modernos aos escolásticos ou ‘metafísicos’ se
centraram, principalmente, no caráter especulativo de suas teorias. Na tradição
empirista, de fato, o termo ‘abstração’ adquiriu uma conotação pejorativa. Para os
empiristas, as teorias metafísicas, por especulativas, eram dogmáticas e autoritárias, pois
não se submetiam à crítica a partir da experiência. Francis Bacon, por exemplo,
diferencia dois procedimentos de construção de teorias: o ‘de indução’ e o ‘de
especulação’. A indução é, para Bacon, o método da ciência, e está baseado na
observação e na experimentação. A especulação, segundo ele, tem sua origem nas
“fábulas” e “fantasias [especulativas] da metafísica” (cf. Bacon, [1620], I: 44, 61; II:
15). Segundo destaca Bacon, indução e especulação são procedimentos opostos e
irreconciliáveis.
Outro exemplo paradigmático da tradição indutivista é Newton. Com o dictum
‘não faço hipóteses’ (hypotheses non fingo’), Newton pretendia, precisamente, demarcar
a metafísica especulativa da ciência empírica. Para Newton, não se deve especular ou
conjeturar ou pressupor nada quando se faz ciência. A ciência, para ele, só admite
enunciados construídos a partir da experiência.
As posições de Bacon e de Newton são úteis para exemplificar a observação
inicial de que aquilo que para alguns autores é metafísica, para outros é ciência. Bacon
entende que é possível fazer inferências ampliativas da experiência a inobserváveis. É
bem conhecida sua pesquisa sobre a natureza do calor, em que ele infere que o calor dos
corpos macroscópicos se deve ao movimento imperceptível de corpúsculos
microscópicos (cf. [1620]: II.20). Em contraposição, para alguns intérpretes, o ‘não
fazer hipóteses’ de Newton restringe a pesquisa científica só a enunciados legaliformes
–que podem ser descobertos por “indução horizontal”, i.e., generalizando–, eliminando

2
Metafísica: “Estudo da estrutura fundamental da realidade em geral, da natureza final de tudo o que
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a pesquisa sobre enunciados teóricos –que podem ser descobertos por “indução
vertical”, i.e., inferindo inobserváveis como a melhor explicação disponível (cf. Psillos
& Curd 2008: xxi).
A terceira característica que Collingwood destaca é que a metafísica é não-
empírica. Ou seja, que suas afirmações não têm sua origem, nem sua justificação, na
observação ou na experimentação (cf. Mumford 2008). Essa característica –o fato de as
teorias metafísicas serem supra-empíricas– se apresenta em contraste com as teorias da
ciência, que pretendem ser empíricas.
As críticas de Reichenbach à metafísica se centram nessa oposição: “A ciência
moderna”, afirma, “não reconhece a autoridade do [metafísico] que afirma conhecer a
verdade por intuição, a partir de um insight no mundo das ideias, ou [...] nos princípios
do ser, ou a partir de qualquer fonte supra-empírica” (1949: 310, apud Callender 2011:
37).
Podemos mencionar, como uma quarta característica, que metafísica e ciência
utilizam diferentes conceitos e categorias. A metafísica utiliza conceitos gerais como
‘substância’, ‘universal’, ‘propriedade’ etc., que são diferentes dos conceitos das
ciências particulares (Morganti 2013: 9).
Desde a segunda metade do século XIX, a ciência e a metafísica foram
distinguidas, precisamente, a partir das características mencionadas. William Whewell,
que introduziu o termo ‘cientista’, definiu a quem faz ciência como aquele que
‘pesquisa com método’, em oposição a quem toma decisões cognitivas ‘por intuição a
priori’ –ou seja, com pressupostos metafísicos.
O importante aqui é observar que as características mencionadas, apesar de
serem recorrentes nas definições do termo ‘metafísica’, não conseguem demarcar com
precisão a ciência da metafísica. Com relação à afirmação de que a metafísica é
abstrata, pensemos, por exemplo, na cosmologia. A cosmologia é uma disciplina
abstrata, mas é considerada ‘científica’. E com relação à afirmação ‘a metafísica é
especulativa’? Essa característica, como vimos, servia de demarcação para os empiristas
clássicos, que entendiam que é possível ascender indutivamente a partir da experiência,
e que esse procedimento inferencial era epistemicamente melhor do que a especulação.
Hoje, entretanto, o principal objetivo da ciência já não é fazer generalizações, mas

existe” (Morganti 2013: 9).


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construir hipóteses teóricas –ou seja, hipóteses que costumam postular entidades e
processos inobserváveis. Por isso, muitos filósofos da ciência entendem que as teorias
têm elementos conjeturais ou especulativos. Os mesmos problemas surgem com o
critério de que a metafísica é supra-empírica. A ‘tese da subdeterminação’ nos mostra
que as hipóteses teóricas estão subdeterminadas pela evidência –isto é, que a lógica e a
experiência, por si sós, não podem determinar a aceitação de uma teoria científica.
Além disso, como mostrarei daqui a pouco, muitos princípios metafísicos não estão
divorciados da realidade –ou seja, não são supra-empíricos.
Ainda que as características ponderadas –ter pressupostos abstratos,
especulativos e absolutamente não-empíricos– não consigam definir o termo
‘metafísica’ com precisão, são as mesmas que estão por trás da maioria dos debates
sobre o assunto. Por exemplo: quando Carnap classifica Heidegger como ‘metafísico’ e
qualifica como ‘metafísicas’ frases heideggerianas como “a angústia revela o Nada” ou
“o próprio Nada nadifica”, se baseia nessas características (cf. Carnap 1969). As
características distintivas do conceito de metafísica não conseguem separar claramente a
metafísica da ciência. De qualquer forma, tanto os leitores ocasionais como os
participantes do debate entendem qual é o referente que Carnap tem em mente quando
usa o termo ‘metafísica’. Por isso, essas características, apesar de suas limitações, são
suficientes para a presente exposição.
3. Relações e oposições entre ciência e metafísica
Podemos passar agora a analisar as principais interpretações sobre a relação
entre metafísica e ciência.
Identifiquei quatro interpretações, mas não são todas necessariamente
incompatíveis entre si.
(1) A primeira é a relação de oposição. Essa relação está implícita na distinção
apresentada, no ponto anterior, sobre as características específicas da metafísica e da
ciência.
Os grandes críticos da metafísica são, é claro, os empiristas. Dado que o
princípio fundamental de seu programa está relacionado com o objetivo de construir o
conhecimento exclusivamente a partir da experiência, eles, em conseqüência, se opõem
a qualquer forma de especulação a priori, abstrata e não-empírica –i.e., metafísica.

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Ainda que o programa de cada filósofo empirista tenha sua peculiaridade,


destacam, a esse respeito, as interpretações de Bacon que já mencionei, as de Hume e as
dos empiristas lógicos. A posição de Hume sobre o assunto é radical: para ele, os livros
de “metafísica escolástica” não contêm raciocínios de lógica e matemática, nem
tampouco nenhum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de
existência. São “ficções da imaginação”, “sofismas e ilusão”, afirma Hume, “e,
portanto, devem ser lançados ao fogo” ([1739]: 144). Por fim, os empiristas lógicos
usam o termo ‘metafísica’ em um sentido pejorativo, se referindo a declarações gerais
sem sentido cognitivo, como as de Heidegger, declarações que não podem ser decididas
com base empírica. Muitos deles, tais como Ayer e Carnap, propõem a ‘eliminação da
metafísica’ (cf. Carnap 1969). Como bem observou Einstein (1954: 24), “um fatídico
‘medo da metafísica’ tem sido a doença do filosofar empirista contemporâneo”.
(2) Outra forma de relação pode ser denominada de independência. A ‘Lei dos
três estados’ de Comte é uma interpretação dessa classe. Comte entende que a
metafísica é um estado pré-científico “só destinado a servir de transição” para alcançar
um novo estado independente: o científico (cf. Atencia 1990). Para Comte, na busca de
explicações existe uma etapa de explicações abstratas, que é posteriormente superada
por explicações positivas ou científicas, baseadas na observação e na experimentação. O
estado metafísico e o estado científico, diz Comte, “se excluem mutuamente”. Em
outras palavras: metafísica e ciência são independentes, ainda que a metafísica seja
hierarquicamente superior.
Existe outra interpretação semelhante, mas que –diferentemente da de Comte–,
não é valorativa. Ou seja: metafísica e ciência são independentes, mas não existe
hierarquia disciplinar. Segundo essa interpretação, quando uma área de investigação
metafísica atinge um ponto em que uma teoria chega a ser dominante e se desenvolve
uma metodologia de crítica e avaliação eficiente, a teoria e a metodologia se separam
da árvore da filosofia e conformam uma disciplina científica independente. Cornman,
um dos autores que defende essa interpretação, afirma: “é uma peculiaridade da
metafísica que, quando a argumentação filosófica conduz à aceitação de uma teoria e de
uma metodologia adequadas, a teoria e a metodologia se separam da metafísica e
passam a ser consideradas parte de outra disciplina –uma disciplina científica”
(Cornman et al. 1982: 1-3). É por isso que na ‘árvore do conhecimento’ da antiguidade

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se colocava a filosofia natural como o tronco (com a metafísica como suas raízes), e nos
ramos as demais ciências: medicina, mecânica, física, moral etc. (cf. Hubner 1988 e
Cornman et al. 1982: 1-3).
Pensemos, como exemplo, nas teorias metafísicas sobre a natureza da matéria
dos atomistas gregos. Essas teorias foram posteriormente desenvolvidas pelos filósofos
da natureza do século XVII, e deram origem às ciências da física e da química (cf.
Clericuzio 2000: III). Observemos, como indiquei nas Considerações iniciais, que a
transição de uma pesquisa metafísica a uma pesquisa científica é contínua, e por isso
nem sempre existe acordo sobre onde finaliza a metafísica e onde começa a ciência. Isso
explica os desacordos que mencionei no começo, em que Wartofsky interpreta que o
atomismo do século XVII é um programa metafísico, Ruth Putnam que é um programa
científico e Kuhn que é um programa em parte metafísico e em parte científico. Essas
duas interpretações, como vimos, ainda que vinculem a metafísica e a ciência do ponto
de vista genético, as consideram áreas independentes.
(3) Existe uma terceira forma de relação, que entende que a metafísica exerce
influência sobre a ciência, já que orienta heuristicamente a pesquisa científica.
(4) Existe, também, uma quarta forma de relação, que é o complemento da
anterior: consiste na afirmação de que a atividade científica também exerce influência
sobre a metafísica. Segundo esta concepção o sucesso de uma teoria científica leva à
consolidação dos pressupostos metafísicos nos quais a teoria está baseada; o fracasso, à
revisão ou eliminação desses pressupostos.
4. A metafísica influencia a ciência
Todos somos metafísicos; a ciência deriva historicamente da metafísica.
Karl Popper, apud Rowbottom, 2004: 3

Eu estou interessado nessas duas últimas interpretações, que vêem a metafísica e


a ciência como áreas fortemente inter-relacionadas.
A relação ciência/ metafísica e a distinção contexto de descoberta/ contexto de
justificação.
Um bom ponto de partida para compreender a origem dessa relação entre ciência
e metafísica é a distinção entre um contexto de descoberta e um contexto de

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justificação. Essa distinção foi formulada em 1938 por Hans Reichenbach, mas está
implícita ao longo de toda a história da Filosofia da ciência.
Na primira metade do século XX essa distinção é defendida tanto por
empiristas lógicos como Carnap como por racionalistas críticos como Popper.
Basicamente, a distinção indica que para estudar a atividade científica devemos fazer
uma distinção entre dois ‘contextos’ de análise, o ‘de descoberta’ e o ‘de justificação’.
O ‘contexto de descoberta’ está relacionado com as atividades de descoberta ou
invenção de teorias, atividades supostamente subjetivas, privadas, a-racionais ou
irracionais. É o lugar da ‘imaginação’, da ‘intuição’, do instinto, dos sonhos –e, o que é
relevante para nosso tema– da metafísica. O ‘contexto de justificação’ está relacionado
com as atividades em que se avaliam as hipóteses com método, “com lógica e
experimento”, e se determina se estas hipóteses podem ser aceitas enquanto hipóteses
científicas. O contexto de justificação, segundo os defensores desta concepção, é o
único contexto em que se decidem questões de racionalidade, objetividade e
cientificidade. É, portanto, o único de interesse filosófico. Desse modo, a metafísica é
eliminada da Filosofia da ciência.
Ainda que a distinção entre contextos foi sistematicamente questionada nas
últimas décadas, é importante para esta exposição, pois, como destaca Seager, continua
sendo “uma importante muralha contra a metafísica” (2000: 289).
Hempel, em seu livro Filosofia da ciência natural, exemplifica muito bem essa
oposição entre contextos –que se superpõe à distinção entre metafísica e ciência. Ele
diz: “Ao estudar o movimento planetário, Kepler foi inspirado por seu interesse numa
doutrina mística sobre os números”. Aqui Hempel faz referência ao projeto de Kepler,
desenvolvido em seu Mysterium Cosmographicum, de construir um modelo de
movimento planetário baseado nos cinco sólidos perfeitos de Pitágoras. Em outras
palavras: em pressupostos metafísicos. “Mas isso não impede que a objetividade
científica fique salvaguardada” –acrescenta Hempel. E ele especifica: “Pois as hipóteses
podem ser livremente inventadas e propostas, mas só podem ser aceitas e incorporadas
ao corpus do conhecimento científico se resistirem ao escrutínio crítico, especialmente,
contrastando suas implicações mediante observação e experimentação” ([1966]: II).
Essa passagem esclarece praticamente todas as questões implícitas no debate
metafísica e ciência: para a concepção clássica, a filosofia só deve ocupar-se da análise

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e justificação dos resultados da atividade científica. As considerações metafísicas


podem ajudar na construção de teorias do ponto de vista psicológico, mas seu estudo
está definitivamente fora do âmbito da filosofia.
A relação metafísica/ ciência e a crítica à distinção descoberta/ justificação
A relação metafísica/ ciência teve uma virada importante a partir da década de
1960 do século passado. A maioria dos denominados ‘novos filósofos da ciência’
revisaram a distinção entre contextos. Basicamente, a qualificaram como uma distinção
“esquizofrênica” que divide, erroneamente, a empresa científica em dois estágios
artificiais –o contexto de descoberta e o contexto de justificação (cf. Velasco Gómez
2000). Essa divisão opõe radicalmente as categorias analíticas ‘irracionalidade/
racionalidade’, ‘subjetividade/ objetividade’, ‘metafísica/ ciência’ etc. Mas, observaram,
existe racionalidade no contexto de descoberta e irracionalidade no contexto de
justificação, assim como também existe ciência no contexto de descoberta e metafísica
no contexto de justificação.
A partir dessas críticas, a nova Filosofia da ciência e a nova História da ciência
dão lugar à metafísica em seus esquemas teóricos. Autores como Hanson e Margenau,
por exemplo, afirmam que as teorias e demais construções científicas são aceitas, enquanto
científicas, se satisfizerem requisitos empíricos e requisitos metafísicos. Em outras
palavras: se além da contrastação empírica as teorias cumprirem com critérios metafísicos
como fertilidade, simplicidade, elegância, amplitude, analogia etc.
Nessa mesma linha, vários autores (por exemplo, Wartofsky, Gillies,
Kantorovich, Körner, Popper, Agassi etc.) entendem que “a metafísica é uma heurística
para a ciência” (Wartofsky 1967), pois fornece o marco indispensável dentro do qual as
teorias científicas podem ser construídas. O que querem dizer é que a metafísica
funciona como uma orientação geral na construção de teorias científicas3. Por esse
motivo, Agassi afirma que a história da ciência da segunda metade do século XX se
caracteriza “pela legitimação da história da metafísica como um componente da história
da pesquisa científica” (1996: 486; grifo meu).
Essa tarefa foi realizada por historiadores e filósofos da ciência e das ideias
como Burtt, Koyré, Crombie, Max Jammer, Bernard Cohen, Kuhn etc. Koyré, por
exemplo, afirmou que a história da ciência só pode ser compreendida se se compreende

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a função que os pressupostos metafísicos exercem. Para ele, as mudanças científicas


estão relacionadas com grandes revoluções metafísicas. É importante observar que
Koyré reconstrói o mesmo exemplo de Hempel –o da teoria do movimento planetário de
Kepler–, mas ele faz uma reconstrução racional muito diferente da de Hempel. Hempel
se limita a fazer uma reconstrução racional das relações lógicas de avaliação existentes
entre a teoria de Kepler e as evidências disponíveis. Koyré faz uma reconstrução
intelectual que capta a função de considerações metafísicas, como a “harmonia
matemática”, nas escolhas de Kepler (cf. Menna 2004).
Como dado histórico, é pertinente observar que a ideia de que a metafísica é
relevante para a ciência não é nova. Wartofsky, por exemplo, em um texto de 1967
observa que os filósofos da ciência estavam ‘redescobrindo’ “a relevância da metafísica
para a ciência” (1967: 123). E ele fala de ‘redescoberta’ –e não simplesmente de
‘descoberta’– porque a História da ciência mostra a presença constante da metafísica
nas atividades científicas. Assim, vários autores afirmam que a nova Filosofia da ciência
dá uma ‘virada’ histórica, psicológica, retórica, axiológica etc. É, também, uma “virada
metafísica” (Schumacher & Gartner 1999: 67). Talvez mais apropriadamente, poderia
dizer que, mais do que uma ‘virada’ (turn), esta nova concepção forma parte do
‘retorno’ (return) de ideias já presentes na história da filosofia.

5. “A metafísica é uma parte integral da ciência”


Os pressupostos metafísicos são imprescindíveis para a
ciência: se os cientistas não acreditassem que o mundo é
ordenado e racional, não existiria a pesquisa científica.
Hodgson, [1979]: 132
Podemos agora passar ao estágio final de integração entre metafísica e ciência.
Muitos autores defendem que a metafísica não só influencia a ciência (como
opinam autores como Popper, Agassi ou Watkins). Para eles, “a metafísica é uma parte
integral da ciência” (por exemplo, Lakatos [1978]: 142 n2). De fato, a história
intelectual mostra que em todas as épocas os cientistas acreditaram –consciente ou
inconscientemente– em pressupostos metafísicos. Podemos atestar essa afirmação com
alguns exemplos de pressupostos metafísicos presentes na história intelectual. Estes são:

3
Como toda orientação heurística, os pressupostos metafísicos são falíveis (cf. Gillies 1993: 201). Mas essa questão
nos leva para longe de nosso tema.
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a crença de que a Natureza é ordenada e racional (pressuposto que, tecnicamente, é


formulado como o ‘princípio de uniformidade’); a crença de que as leis científicas se
cumprem igualmente em todas as partes do universo (o ‘princípio de universalidade’); a
crença de que nada surge do nada (antiga formulação do chamado ‘princípio de
conservação’); a crença de que nada acontece sem uma causa (o ‘princípio de
causalidade’) etc.
Todas estas crenças metafísicas orientam e regulam a atividade científica (cf.
Wartofsky). Muitos autores, inclusive, defendem que os pressupostos metafísicos são
imprescindíveis para a ciência. Peter Hodgson, por exemplo, com relação ao princípio
de uniformidade, destaca: “Se os cientistas não acreditassem que o mundo é ordenado e
racional, não existiria a pesquisa científica” ([1979]: 132).
Se procurarmos caracterizar melhor as cosmovisões metafísicas –i.e., os
conjuntos de pressupostos metafísicos compartilhados por uma época ou por uma
comunidade de pesquisa–, podemos dizer que são entidades complexas, que abarcam
diferentes classes de suposições: (i) um conjunto de afirmações gerais sobre a natureza e
a estrutura da realidade, e (ii) um conjunto de orientações gerais que estipula quais
afirmações empíricas devem/ podem ser aceitas e quais devem/ podem ser recusadas.
Os pressupostos metafísicos, como observa, por exemplo, Gillies, fornecem uma
concepção da estrutura da realidade e um marco indispensável (ainda que falível) dentro
do qual as teorias científicas podem ser comparadas com a experiência (cf. 1993: 201).
Podemos ilustrar esses supostos ontológicos e metodológicos utilizando como
exemplo o atomismo do século XVII. Os filósofos utilizaram diferentes denominações
para fazer referência aos (conjuntos de) pressupostos metafísicos: ‘concepções
metafísicas de mundo’, ‘cosmovisões’, ‘imagens de natureza’, ‘sistemas intelectuais’
etc. (cf. Burtt, Koyré, McAllister, Lakatos, Wartofsky etc.). O atomismo afirma (a) que
a realidade é constituída de vazio e de pequenas partículas indivisíveis –denominadas
átomos e (b) que o movimento se deve ao contato e impacto direto entre os átomos. A
partir desse ponto de partida, os atomistas do século XVII prescreveram que todos os
fenômenos macroscópicos deviam ser explicados em termos de forma, tamanho,
movimento e interação entre átomos.
Observemos que, para os atomistas, esse pressuposto –a ideia de que ‘a causa do
movimento é o contato direto entre os átomos’– implicava recusar pressupostos

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metafísicos rivais tais como o que afirma que ‘existe ação a distância’, ou que ‘existem
causas incorpóreas’, ou que ‘existem causas finais’. Por isso alguns autores, que
destacam o papel do atomismo na constituição do pensamento científico na
modernidade, entendem que “A Revolução científica foi básica e essencialmente sobre
metafísica” (Griffin 1996 apud Dilworth 2006: 260).
Da metafísica à ciência, da ciência à metafísica
Observemos que a relação metafísica/ ciência não se dá só no sentido de que as
crenças metafísicas orientam e regulam a atividade científica. A atividade científica
também exerce influência sobre a metafísica: o sucesso de uma teoria científica leva à
consolidação dos pressupostos metafísicos nos quais está baseada; o fracasso, à revisão
ou eliminação desses pressupostos (cf. McAllister 1996 e Wartofsky 1967). Dito de
outro modo: assim como a metafísica pode condicionar e orientar a pesquisa científica,
também a própria dinâmica científica pode ter um impacto sobre a metafísica. Em
outras palavras: a relação é mais do que de integração: existe uma inter-relação
dinâmica entre as duas disciplinas.
Como indiquei antes, os pressupostos metafísicos são considerados ‘metafísicos’
porque não podem ser confrontados diretamente com a experiência. Mas, nesse
contexto, devemos enfatizar o termo ‘diretamente’: o fato de os pressupostos
‘metafísicos’ não poderem ser diretamente confrontados com a experiência não implica
que não tenham nenhuma relação com a experiência.

6. Considerações finais: as profundas águas metafísicas


Antes da Segunda Guerra, a maioria dos filósofos da ciência tinha
considerado a metafísica carente de significado [...]. Mas, a fim de
abordar uma série de questões-chave, com o passar do tempo os
filósofos da ciência tiveram que nadar em profundas águas
metafísicas.
Psillos & Curd, 2008: xxv
No meio do “oceano para o qual não temos nem barco nem velas”,
a humanidade se estabeleceu na ciência. A ciência é um iceberg
flutuante.
É sólido, dizem os homens práticos, batendo com o pé; e, de
fato, é sólido, e se solidifica e amplia mais a cada dia. Mas em
todos os seus lados se encontra água; e se você mergulhar mais em
qualquer parte, encontrará água; e se você analisar qualquer
parte do próprio iceberg, verá que é feito da mesma água do
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oceano para o qual não há nem barco nem velas. A ciência é


metafísica solidificada. Carlos Vaz Ferreira, 1938: 121-2

Neste trabalho analisei várias interpretações rivais sobre a relação entre


metafísica e ciência: (i) a visão de que a metafísica é um absurdo sem sentido e não tem
relação com a ciência e (ii) a concepção que as vê como áreas independentes (ainda que
geneticamente conectadas). Também, e principalmente, (iii) a versão que entende que a
metafísica exerce influência sobre a ciência, e (iv) a versão mais radical desta, que
sustenta que a metafísica e a ciência exercem influência mútua e estão constantemente
relacionadas.
Acho que a partir dos tópicos apresentados podemos concluir que esta última
concepção, que vê a metafísica como intrinsecamente relacionada à ciência, é a que
está mais perto de captar as reais relações entre metafísica e ciência: por um lado, a
metafísica oferece marcos estruturais e conceituais que guiam a pesquisa científica; por
outro, a própria dinâmica científica tem impacto sobre a metafísica...
Vaz Ferreira –um filósofo da primeira metade do século passado– faz um
expressivo paralelismo entre a relação metafísica/ ciência e a relação água/ iceberg,
paralelismo que impõe uma imagem poderosa. “A ciência” –afirma ele– “é metafísica
solidificada”. Como um iceberg, a ciência é sólida, e amplia mais seus domínios a cada
dia, mas é constituída da mesma água do oceano da metafísica, “oceano para o qual não
há nem barco nem velas” (1938: 122). Para fazer Filosofia da ciência, portanto, os
filósofos da ciência terão, inevitavelmente, “que nadar em profundas águas
metafísicas”.

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