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APOSTILA.
Belo Horizonte
2013
Dedico este trabalho aos discentes do Curso de Pós-
Graduação em Psicodrama do Instituto Mineiro de Psicodrama
Jacob Levy Moreno (IMPSI).
Que todos possam desfrutar ao máximo destes escritos
sobre a vida, a história e a obra de Jacob Levy Moreno, o “Pai
do Psicodrama”.
Existem palavras sábias, mas a sabedoria não é
suficiente, falta ação (Jacob Levy Moreno).
SUMÁRIO
1 PROGRAMA DA DISCIPLINA............................................................................................. 6
1.1 Ementa .................................................................................................................................. 6
1.2 Carga horária total ................................................................................................................ 6
1.3 Objetivos............................................................................................................................... 6
1.4 Conteúdo programático ........................................................................................................ 6
1.5 Metodologia .......................................................................................................................... 6
1.6 Critérios de avaliação ........................................................................................................... 6
1.7/1.7.1 Bibliografia Recomendada ....................................................................................... 7/8
2 TEXTOS PARA ESTUDO ................................................................................................... 10
2.1 Jacob Levy Moreno: nascimento, desenvolvimento, criações e obras ............................... 10
2.2 Breve histórico do Psicodrama no Brasil ........................................................................... 13
2.3 A História da Associação Internacional de Psicoterapia de Grupo: Moreno e a IAGP ..... 14
3 TEMPO PARA O TEMPO DE MORENO ........................................................................... 20
4 BERÇO DO PSICODRAMA ................................................................................................ 69
5 METODOLOGIA PSICODRAMÁTICA ............................................................................. 73
5.1 Os Cinco Instrumentos ....................................................................................................... 73
5.2 Os três contextos................................................................................................................. 74
5.3 As quatro etapas ................................................................................................................. 74
6 O SISTEMA SOCIOMÉTRICO ........................................................................................... 76
6.1 Conceito de Socionomia ..................................................................................................... 76
6.2 Divisão da Socionomia ....................................................................................................... 76
6.3 Tricotomia Social – o Universo Social e suas três dimensões ........................................... 77
6.4 Objetivo do Psicodrama...................................................................................................... 78
6.5 Objetivo do Sociodrama ..................................................................................................... 78
7 PSICODRAMA: FOCO SÓCIO EDUCACIONAL, ORGANIZACIONAL E
PSICOTERAPÊUTICO ........................................................................................................... 79
8 O SUJEITO MORENIANO E A SUA DINÂMICA VINCULAR: TEORIA DO
DESENVOLVIMENTO........................................................................................................... 81
8.1 Matriz de Identidade ........................................................................................................... 81
8.2 Teoria do Papel ................................................................................................................... 87
8.3 Cachos de Papéis – Cluster ................................................................................................ 88
8.3.1 Primeiro Cluster .............................................................................................................. 88
8.3.2 Segundo Cluster .............................................................................................................. 88
8.3.3 Terceiro Cluster ............................................................................................................... 89
8.4 Átomo Social ..................................................................................................................... 90
8.5 Tele ..................................................................................................................................... 93
9 TÉCNICAS BÁSICAS DO PSICODRAMA ........................................................................ 94
9.1 Teoria da Ação.................................................................................................................... 96
9.1.1 Catarse de integração-Ab-reação ..................................................................................... 96
9.1.2 Espontaneidade – Criatividade – Conserva ..................................................................... 98
10 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ................................................................. 104
11 UMA HISTÓRIA PSICODRAMÁTICA 106
12 AXIOLOGIA ..................................................................................................................... 107
12.1 Axiologia: os valores ...................................................................................................... 107
13 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 109
14 OUTRAS REFERÊNCIAS ............................................................................................... 110
15 RESUMO DO CURRÍCULO DA AUTORA DESTE TRABALHO ............................... 110
LISTA DE FIGURAS
Figura 8 – Foto da casa alugada por Moreno em 1919, atual ‘Morenos Museum’..................48
Figura 10 – Fotografia de J. L. Moreno, sua esposa, Florence Bridge e Regina Moreno, filha
do casal..................................................................................................................................... 58
6
1 PROGRAMA DA DISCIPLINA
1.1 Ementa
60 horas/aula.
1.3 Objetivos
- Espontaneidade
- Criatividade
Estudo dos conceitos fundantes do
- Conserva Cultural
Psicodrama na obra de Jacob Levy
- Matriz de Identidade
Moreno; visão de outros autores e suas
- Teoria de Papéis
contribuições frente a estes conceitos
- Tele
- Transferência
- Átomo Social
Estudo dos conceitos Sociométricos - Rede
fundamentais da Socionomia - Vínculos
-Teste Sociométrico
1.5 Metodologia
ANETE, Roese. Apostila As Palavras do Pai Moreno. Belo Horizonte: do autor. 2013.
MORENO, Jacob Levy, Psicoterapia de grupo e psicodrama. São Paulo: Mestre Jou, 1974.
7
1.7.1 Leitura obrigatória para o curso de Pós Graduação em Psicodrama- Modulo
Básico
• CUKIER, Rosa. Psicodrama Bipessoal: Sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. ed.
São Paulo: Ágora. 1992.
8
Figura 1 – Fotografia de J. L. Moreno.
9
2 TEXTOS PARA ESTUDO
Nascimento de Jacob Levy Moreno em 18 de Maio de 1889. Mais tarde Ele irá criar a lenda sobre
1889
o seu nascimento.
1891 Victoria*.
1892 William*.
1893 Charlotte*.
“Garoto Distinto”, excelente aluno. Por sugestão do pai escolhe ser Médico. Viagem com o pai
1900 para Istambul. Conhece o harém de um tio avô. Fica noivo de uma “criança” de nove meses de
idade. Pergunta ao pai o que deveria dar como presente ao nenê. A “noiva” recebeu um pedaço de
a
bolo, um vestido... Promessa não cumprida. OBS: Em 1923 foi abolido o casamento entre crianças
1904 no harém. Viagem ao “redor do mundo” com o tio Jancu – Viajaram de trem e navio. Conhece Pia
– Primeira Musa.
- A família muda de Berlim para Chemnitz, em seguida ele retorna a Viena (dissolução da
família),
- Professor de aulas particulares – Elizabeth Bergner – Sucesso,
- Nasce o “Profeta” O Homem da Capa Verde,
- Jardins de Viena – Jogos com as Crianças,
- Entra na Faculdade de Filosofia e conhece seu amigo Chaim Kellmer. Eles e mais três amigos
fundam a Casa do Encontro. Para imigrantes e refugiados. Gênese da Psicoterapia de Grupo in
situ. Publica o Convite ao Encontro. (1914),
- Freqüenta Júris e faz representação dos mesmos,
- Ingressa na faculdade de Medicina,
1904 - Teatro para Crianças de Viena. Os feitos de Zaratustra. Trabalho com Prostitutas: Um
criminoso, após ter cumprido sua pena é, novamente um Homem livre. Estas mulheres, porém,
a
seriam eternamente perdidas, não tinham direitos... Cria uma Equipe multidisciplinar: Dr.
1917 Wilhelm Gruen, venerologista e Carl Colbert editor do Jornal - Der Morgen de Viena,
- Tem como meta indivíduos mais livre, questiona valores e age em prol da sua crença – Nota - se
que os primeiros trabalhos são de Axiodrama,
- Aprovado no 1º exame de medicina,
- Encontro com Freud sobre a Psicanálise,
- Início da Primeira Guerra Mundial incorpora às entidades de ajuda aos Refugiados da Guerra
do Tirol e da Hungria,
- Teatro do Conflito – Axiodrama,
- 2º Exame de Medicina,
- 3º exame. Obtém o título de médico em cinco de fevereiro de 1917.
10
Transferiu-se para Bad Vöslau, onde assumiu o posto na condição de administrador de saúde
pública. Prestou serviços às pessoas da cidade sem cobrar pelas consultas, onde criou fama de
1919
fazer milagres e título de O médico Maravilhoso. Teatro Recíproco. Conhece Marianne Lörnitzo
– Segunda Musa.
Nasce o Teatro Terapêutico a partir do Teatro da Espontaneidade com o caso Bárbara e George.
1923
Publica e assume a autoria - O Testamento do Pai - As Palavras do Pai.
Teatro Espontâneo entra em declínio, os atores optaram pelo Teatro Clássico- Valorização da
Estética do Perfeito. Escolhe o Teatro Terapêutico – Onde não há exigência da Estética
1925 Perfeita. Caso Bárbara e George. Suicídio de dois pacientes George e Robert. Após separação dos
seus casamentos. Cria o Radio Film- em colaboração com Frans Lörnitzo- irmão de Mariane.
Moreno emigra para os EUA. Deixa Marianne em Bad Vöslau. Morre seu Pai.
Inicia seu trabalho no Hospital Infantil Monte Sinai- Sob a proteção do Dr. Bela Schick. Aprovado
1927
no segundo exame de medicina nos EUA.
1930 O Psicodrama é introduzido no Brasil, com uso de técnicas parciais, por Helena Antipoff, em
Belo Horizonte. Moreno rompe definitivamente com Marianne Lörnitzo.
Moreno trabalha com o Teatro de Repertório Cívico de Nova York. Inaugura o Teatro do
1931 Improviso. Dirige a Revista Impromptu. Expõe suas idéias sobre Psicoterapia de Grupo na
American Psychiatric Association.
Moreno apresenta suas idéias na Filadélfia. Lança as bases da Sociometria a partir de estudos
1932 feitos com jovens delinqüentes da comunidade de Hudson e na Prisão de Sing Sing. Aplicação
prática da Sociometria.
Divórcio com Beatrice. Edita o Livro. Who Shall Survive? Com a força propulsora de Helen
Jennings. Considerada por ele como uma grande Cientista Social. Helen o apresenta ao seu mentor
1934 e supervisor da sua tese de Doutorado- Gardner Murphy, que leva Moreno a relacionar com
pessoas expressivas e a ter conexões com Psicólogos Sociais, Sociólogos, Grupos de Artistas e
Intelectuais.
Conheceu Florence Bridge na Universidade da Columbia Florence foi de suma importância para
1935
seus estudos sobre a Teoria da Espontaneidade e do Desenvolvimento Infantil. (Pedagoga)
Moreno constrói em Beacon, Nova York, um Sanatório com o Primeiro Teatro Psicodrama.
1936 Onde funcionou até 1982 o Centro de formação de profissionais em psicodrama. Conduzia sessões
semanais de Psicodrama Público.
11
Moreno funda a Revista Sociometry. Liga-se a Universidade de Columbia e Nova York.
1937
Desenvolvimento das Relações Interpessoais.
Moreno conhece Zerka Toeman, que foi em seu consultório tratar de sua irmã.
1941
Mais tarde Zerka começa a trabalhar em Beacon como Ego – Auxiliar.
Cria o The American Society of Group Psychotherapy and Psychodrama. E o Moreno Institute.
Seu irmão William era “seu arrimo incondicional” sempre estiveram juntos “sabiam como usar a
1942 força um do outro para minimizar a própria fraqueza”. Estiveram juntos esses anos todos. William
havia chegado antes aos Estados Unidos. Ajudou Moreno a fundar o Instituto de Sociometria em
a
Nova York- contribuindo com tempo e dinheiro. Ele era hábil financeiramente. Livro
1946 Psicodrama, Volume l foi dedicado ao seu irmão. Psicodrama com Crianças chega à França,
através do Centro Claude Bernard, a cargo de Jean Delay, Fouquet e Mireile Monod, que tem
como colaborador André Berge, Henri Buchene, Françoise Dolto e Serge Lebovinci
Moreno casa-se com Zerka Toeman- Terceira Musa e 3° Esposa- A única Musa com quem se
casou. Teatro de Psicodrama no Laboratório de Harvard. Apresentado por Dr. Murray: Há dois
tipos de cientistas, os poetas e os não-poetas e aqui há dois poetas.
O Sociólogo Guerreiro Ramos entra em contato com Moreno. Dirige no Rio de Janeiro - O
Primeiro Seminário de Psicodrama.
1949 Em 1950, na França, o Psicodrama se bifurca, dando origem ao Psicodrama Triádico e ao
a Psicodrama Analítico. Anne Ancelin Schuztemberg (Psicodrama Triádico – Moreno Kurt Lewin e
Freud) e Didier Anzieu (Psicodrama Analítico). O Diretor trabalha com um Ego auxiliar atuando
1950 como “casal parental”, analisam a transferência as eventuais resistências e a dinâmica do grupo. O
Psicodrama acontece na maneira de processar a prática psicoterapêutica, as histórias são
encenadas, seguindo as etapas e as técnicas psicodramáticas. Etapas: Aquecimento, Dramatização
e Compartilhamento. Técnicas: Duplo Espelho e Inversão de Papéis.
Ambos se tornam representantes do Psicodrama em Paris. Considerando a representação
dramática como uma estrutura, fazendo-a intervir no campo do Imaginário. Não adotam o modelo
teórico proposto por Jacob Levy Moreno, apenas o seu setting Terapêutico
1951
Cria a sessão de Psicoterapia de Grupo na American Psychiatric Association.
a
Nasce Jonathan – filho de Zerka e Moreno.
1952
Pierre Weil inicia suas primeiras experiências com o Psicodrama – Treinamento no SENAC – Rio
1955 de Janeiro. Formou em Psicodrama na França, com Anne-Ancelin Schutzenberg - formada no
Instituto de Nova York por MORENO.
1958 Zerka teve que amputar o braço direito inteiro, em conseqüência de um tumor maligno no ombro.
1965 Os Drs. Soeiro, Azevedo M. Rosário iniciam o psicodrama na clínica psiquiatra em São Paulo.
12
Pierre Weil e Anne Ancelin-Schützenberger realizam seminários de Psicodrama Triádico na
1966 Fazenda do Rosário – Minas Gerais. Abrindo um Núcleo de formação em Psicodrama.
II Congresso Internacional de Psicodrama e Sociodrama na cidade de Barcelona, na Espanha.
Século XVI: os escravos africanos trazem o Candomblé para o Brasil; certos rituais
têm muita semelhança com o psicodrama.
1930 – na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte as professoras –
alunas fazem com o teatro de bonecos o espelho de suas professoras, visando a
“reeducá-las”, sob orientação de Helena Antipoff.
1949 – o Dr. Guerreiro Ramos conduz um seminário de Psicoterapia de Grupo,
Sociodrama e Psicodrama no Instituto nacional do Negro, no Rio de Janeiro, junto ao
Departamento de Pesquisas do Teatro Experimental do Negro; está ele em
comunicação com o Dr. Moreno (informação obtida diretamente do Dr. J. L.
Moreno, de Nova Iorque).
1950 – a professora Heloísa Marinho, no Colégio Bennet, do rio, tenta ajudar suas
alunas a se livrarem de seus defeitos e manias através do teatro de fantoches.
______________
1
SHUTZENBERGER, Anne A. Psicodrama Triádico: Belo Horizonte: Interlivros, 1977, p. 157-158.
13
A professora Ofélia Boisson Cardoso usa o teatro de bonecos para o tratamento de
distúrbios de comportamento infantil, no Rio de Janeiro.
1953 – O Dr. Blay Neto realiza com pacientes do Hospital J. Franco da Rocha, em São
Paulo, peça teatral sobre a própria história dos pacientes, com resultados terapêuticos
bastante interessantes.
1954 – a professora Maria Junqueira Schmidt introduz técnicas dramáticas no
movimento de escolas de Pais.
1955 – o professor Pierre Weil realiza as suas primeiras experiências de psicodrama
aplicado ao treinamento, no Departamento Nacional do SENAC, no Rio de Janeiro.
1960 – a Dra. Norma Jatobá inicia psicodrama na sua clínica em São Paulo.
1963 – o Dr. Flávio d Andrea Fortes publica o primeiro artigo sobre psicodrama na
Revista Paulista de Medicina.
1965 – os Drs. Azevedo, A. Soeiro e M. Rosário iniciam o psicodrama em Psiquiatria
na sua clínica particular em São Paulo, convidando mais tarde o Dr. Rojas
Bermudez, de Buenos Aires, para iniciar a sua formação; deste movimento partiu o
último Congresso Internacional de Psicodrama, realizado em São Paulo.
O Dr. Luiz Cerqueira publica um trabalho em que assinala uma experiência de
psicodrama no Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil, com os Drs.
Manoel Lopes Pontes e Solange Luz.
1966 – a Dra. Ancelin-Schutzenberger e Pierre Weil realizam seminários de
Psicodrama Triádico na Fazenda do Rosário, em Belo Horizonte.
1967 – Pierre Weil publica o primeiro livro sobre psicodrama em português, com
prefácio do Dr. J. L. Moreno.
1970 – Primeiro Congresso Nacional e IV Internacional de psicodrama em São Paulo,
sob a presidência do Dr. A. Soeiro.
1971 – criação da Sociedade Brasileira de Psicoterapia, Dinâmica de Grupo e
Psicodrama.
1973 – criação da SÍNTESE (Sociedade de Integração Transpessoal, Energética,
Social e estrutural).
1977 – criação da FEBRAP (Federação Brasileira de Psicodrama).
Anne Ancelin-Schutzenberger introduz a videoterapia no Brasil, em seminário
realizado em Belo Horizonte, no Retiro das Pedras.
José Fonseca
______________
2
Texto traduzido do original em inglês (FONSECA, 1997) por Heloísa Cunha Bueno, revisado pelo autor.
Agradeço as providências de Içami Tiba para sua publicação. Dr. Jose Fonseca. Médico, doutor em Psiquiatria
pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), fundador do Daimon – Centro de Estudos
do Relacionamento. Psicodramatista Psicoterapeuta Didata Supervisor pela FEBRAP. Sendo um dos pioneiros
na sua organização. Entre vários artigos publicados, destacamos os livros: Psicodrama da Loucura – (Livro
originado da sua tese de Doutorado). Psicoterapia da Relação. Contemporary Psychodrama – New approaches
to theory and Technique (Nova York/Londres, Brunner-Routledge, 2004. Foi editor do International Fórum of
Group Psychotherapy.
14
providenciaram um lugar na grade do congresso. Conseguido o espaço, eu necessitava do
conteúdo. No entanto, eu sabia muito pouco sobre a história da IAGP. Na reunião do
Conselho, comuniquei ao secretário e ao presidente que havia encontrado um espaço
importante para promover a instituição no Brasil e que necessitava de dados a respeito de sua
história. Responderam que havia alguma informação em nosso folder.
Argumentei que precisava de mais dados. O presidente disse então que eu talvez fosse a
pessoa indicada para obtê-los e organizá-los. Aceitei a tarefa e dessa forma passei a integrar a
Comissão de História da IAGP (Archives Committee). Este texto é o resultado inicial desse
levantamento histórico.
Comecei a pesquisa lendo alguns textos sobre os primórdios da IAGP nas poucas fontes
disponíveis. Escrevi para algumas pessoas que, de alguma maneira, participaram da criação da
organização. A maioria não respondeu; outras só responderam após o texto ser publicado em
inglês, e algumas (ver Referências) deram depoimentos importantes.
Anne Ancelin Schützenberger3 comenta que “é uma pena que os arquivos da IAGP não
sejam transferidos de um presidente a outro”, o que dificulta a pesquisa de dados históricos.
De qualquer modo, os futuros pesquisadores terão à disposição, além dos arquivos de Moreno
na Universidade de Harvard, os arquivos pessoais e a biblioteca da própria Anne, que estão
sendo organizados por René Marineau, na Universidade Trois Rivières (Canadá).
Moreno criou em seu percurso profissional uma série de associações: a Sociedade de
Psicodrama e Psicoterapia de Grupo, em 1942, renomeada em 1951, Sociedade Americana de
Psicoterapia de Grupo e Psicodrama (American Society of Group Psychotherapy and
Psychodrama), que realiza no ano 2000 sua 58ª reunião anual; a Associação Sociométrica
Americana, em 1945; e, o que interessa particularmente neste artigo: o Comitê Internacional
de Psicoterapia de Grupo, em Paris, em 1951; o Conselho Internacional de Psicoterapia de
Grupo, em Milão, em 1963; e finalmente a incorporação internacional da IAGP, em Zurique,
em 1973.
Moreno intuía a necessidade de organizar o nascente movimento das psicoterapias
grupais. Em seus últimos anos de vida, ele reconheceu que mais importante que suas
contendas, primeiro com a psicanálise e depois com S. R. Slavson, a respeito do pioneirismo
na psicoterapia de grupo, seria utilizar sua liderança no sentido de criar uma organização em
que todas as tendências da psicoterapia grupal estivessem representadas.
O fim da Segunda Guerra Mundial propiciou a retomada dos encontros científicos
internacionais. O Primeiro Congresso Mundial de Psiquiatria aconteceu em Paris, em 1950.
Após este evento, os psicoterapeutas também se sentiram animados para organizar seu próprio
congresso. De fato, na mesma cidade, Paris, em abril de 1951, no Congresso Internacional de
Psicoterapia, Moreno fundou o Comitê Internacional de Psicoterapia de Grupo. Os objetivos
eram simples: (1) Definir padrões profissionais da psicoterapia de grupo e trabalhar na busca
de um consenso quanto à terminologia e procedimentos; (2) Preparar congressos
Internacionais; (3) Patrocinar um arquivo histórico da psicoterapia de grupo.
Além de Moreno, outros líderes do movimento da psicoterapia de grupo participaram
desse primeiro conselho diretor: Foulkes (Inglaterra), Bierer (Inglaterra), Favez- Boutonier
(França), Snowden (Inglaterra), Senft (Inglaterra), Delay (França), Heuyer (França), Lazelle
(Estados Unidos), Montassut (França), Porcher (França) e Pratt (Estados Unidos).
O Comitê Internacional de Psicoterapia de Grupo foi organizado em abril de 1951 por J.
L. Moreno, durante sua viagem a Paris e Londres [...] O objetivo era uma federação mundial
de sociedades interessadas em psicoterapia de grupo e assuntos afins. Graças aos esforços
combinados de: Dr. W. Hulse, Dr. W. Warner, Dr. J. L. Moreno e Dr. S. R. Slavson, o Comitê
______________
3
Correspondência Pessoal.
15
Internacional de Psicoterapia de Grupo adotou seu formato atual, representando 24 países
(1954, p. 91).
O resultado da formação desse Comitê foi o I Congresso Internacional de Psicoterapia
de Grupo em Toronto, Canadá, em agosto de 1954. Coincidentemente, foi também em
Toronto, 23 anos antes (1931), que J. L. Moreno “oficializou” a psicoterapia de grupo no
contexto psiquiátrico, em um encontro da Associação Americana de Psiquiatria. Nesse
congresso e em outro subsequente, realizado na Filadélfia, em maio de 1932, Moreno define
pela primeira vez os termos “terapia de grupo” e “psicoterapia de grupo”.
O Comitê Internacional se reuniu durante o II Congresso Internacional de Psicoterapia
de Grupo, em Zurique, em 1957, e chegou a importantes decisões: constituir uma junta
provisória visando a uma futura associação internacional; ampliar o número de associados
com a finalidade de tornar a futura associação mais representativa; organizar a eleição de uma
nova comissão executiva através de voto postal. A ela caberia redigir os estatutos da nova
organização.
Em Milão, em julho de 1963, durante o III Congresso Internacional de Psicoterapia de
Grupo (organizado por Enzo Spaltro), foi fundado o Conselho Internacional de Psicoterapia
de Grupo e, como Anne Ancelin Schützenberger4 observou, “analistas de grupo e
psicodramatistas estavam finalmente juntos”.
A posse dos novos dirigentes aconteceu durante o congresso: Moreno tornou-se
presidente, S. H. Foulkes (Inglaterra) e Serge Lebovici (França) vice-presidentes, Berthold
Stokvis (Holanda) secretário e A. Friedmann (Suíça) tesoureiro. No International Handbook
of Group Psychotherapy (Moreno, 1966, p. 727), consta da ata do Congresso de Milão (1963)
o seguinte relato:
Na reunião do conselho estiveram presentes mais de cem representantes. A discussão
girou principalmente em torno do estatuto proposto para a Associação Internacional de
Psicoterapia de Grupo. O Dr. J. L. Moreno abriu as discussões e assinalou que as decisões
finais somente poderão ser tomadas através de voto postal secreto dos associados. A discussão
trouxe valiosas sugestões relativas à redação dos estatutos da Associação Internacional.
O IV Congresso Internacional de Psicoterapia de Grupo, em Viena, em 1968, foi o
último congresso antes da incorporação internacional. O evento permitiu um animado debate
político a respeito da nascente associação e de seus futuros estatutos. De acordo com J. L.
Moreno, “a gama de opiniões foi ampla e muito construtiva” (1968, p. 89). Ele acrescentou,
enquanto presidente do Conselho Internacional, que a tarefa deveria ser completada e o
material divulgado. De fato, a incorporação final, cinco anos depois, foi o resultado de mais
de dez anos de muitos encontros e contínua correspondência. O processo completo de
fundação levou mais de vinte anos, de 1951 a 1973.
Finalmente, no V Congresso Internacional de Psicoterapia de Grupo, em Zurique, de 19
a 24 de agosto de 1973, o tão esperado evento ocorreu. O congresso foi organizado por R.
Battegay (que depois se tornou o segundo presidente da IAGP), A. Friedmann e A.
Uchtenhagen, e os anais receberam o título Group Therapy and Social Environment (A.
Uchtenhagen, R. Battegay, A. e Friedemann, 1975).
Na ocasião, Moreno estava com 84 anos e vinha apresentando pequenas hemorragias
cerebrais. Não era a melhor condição para uma pessoa idosa viajar, mas ele insistiu em ir a
Zurique. Seria sua última viagem internacional. Como diz Zerka Moreno5: “Sim, foi a última
viagem de J. L. ao exterior; ele morreu nove meses depois. Portanto, a bem dizer, a IAGP foi
seu último filho”. Algumas semanas antes da viagem, Moreno ligou para sua aluna, tradutora
e amiga, Grete Leutz, na Alemanha, e pediu-lhe, em um tom de voz forte e não afetado pela
______________
4
Correspondência Pessoal.
5
Idem.
16
doença, que arrumasse uma pessoa para ajudá-lo a movimentar-se pelo hotel enquanto Zerka
estivesse participando do congresso.
No dia da fundação havia um clima de antecipação no ar. Os arranjos políticos tinham
chegado a bom termo. Fora decidido que devesse haver um equilíbrio político entre analistas
de grupo e psicodramatistas. Os nomes para o primeiro comitê executivo foram discutidos.
Samuel Hadden (Estados Unidos) foi indicado pelos analistas de grupo para ser o primeiro
presidente. Moreno teria preferido Adolf Friedemann (Suíça), mas este declinou o convite
devido a problemas circulatórios. Moreno havia tido algumas dificuldades com Hadden no
passado. Ele era seguidor de S. R. Slavson, com quem Moreno travara uma polêmica acerca
do pioneirismo da psicoterapia de grupo.
Apesar disso, segundo Zerka Moreno, considerando que Sam Hadden era um dos
oponentes menos agressivos, e como um gesto conciliatório em relação àquela velha questão,
Moreno concordou e Hadden foi designado. Malcolm Pines6 (que depois se tornou o terceiro
presidente da IAGP), que estava lá como representante de S. H. Foulkes comenta que Sam
Hadden “foi uma boa escolha porque era consciencioso e honrado” e recorda que “ele
costumava levar um livro de bolso sobre procedimentos parlamentares, de modo que todas as
decisões tinham base legal”.
Adolf Friedemann (Suíça) tornou-se secretário-tesoureiro. Anne Ancelin
Schützenberger (França) passou a ser secretária internacional e, mais tarde, co-secretária
internacional junto com Raymond Battegay (Suíça). Anneliese Heigl-Evers (Alemanha) ficou
como vice-presidente. Os procedimentos para o registro da instituição, de acordo com as leis
suíças, foram preparados por Adolf Friedemann e Raymond Battegay.
A primeira reunião da incorporação internacional da IAGP ocorreu no Grande Hotel
Dolder Berg, em Zurique, no final de agosto de 1979. Grete Leutz7 descreve poeticamente:
Moreno, sentado à cabeceira de uma longa mesa, presidiu a sessão. Pelo menos doze
pessoas estavam sentadas ao seu lado. Olhando o sol da tarde, ele não falava muito, mas sorria
com benevolência. Estava muito presente e transparecia satisfação. À noite, absteve-se de
participar da segunda sessão. Jantou com o Dr. Raoul Schindler (Áustria), a esposa, a filha e
eu. O Dr. Schindler tinha desempenhado um papel importante na fundação da IAGP.
Inspirado pelos sotaques vienenses das senhoras austríacos, ele ficou muito animado e, de
modo espirituoso, contou histórias sobre seu tempo nos círculos literários de Viena... Pessoas
importantes da psicoterapia de grupo e do psicodrama mundial estavam presentes. Algumas
delas se tornaram representantes da IAGP nos anos seguintes, incluindo os quatro presidentes
subseqüentes, Raymond Battegay (Suíça), Malcolm Pines (Inglaterra), Jay Fidler (Estados
Unidos), Grete Leutz (Alemanha) e dois futuros vice-presidentes: Anne Ancelin
Schützenberger e Zerka Moreno. Acrescente-se também Heika Straub (Alemanha) e Joshua
Bierer (Inglaterra). Bierer, que estava sentado ao lado de Zerka Moreno, disse-lhe que ela
deveria ter sido indicada presidente. Zerka8 respondeu que teria sido um erro, porque “eles
obviamente queriam um homem e um psiquiatra na cabeça”. De fato, entre os dez presidentes
eleitos até agora (2000), só houve três mulheres (Grete Leutz, Fern Cramer Azima e Sabar
Rustomjee) e dois psicólogos (Fern Cramer Azima e Earl Hopper). Logo após a posse, o novo
presidente, Samuel B. Hadden publicou o seguinte comunicado: Formação da Associação
Internacional de Psicoterapia de Grupo. Durante o V Congresso Internacional de Psicoterapia
de Grupo, em Zurique, Agosto de 1973. Foi formada uma nova organização, a Associação
Internacional de Psicoterapia de Grupo. Os estatutos foram aprovados e eleitos interinamente
um Conselho de Diretores. Os estatutos viabilizam aos sócios individuais e às organizações
______________
6
Correspondência Pessoal.
7
Idem.
8
Idem..
17
nacionais participarem do planejamento de futuros congressos e colaborarem no
desenvolvimento das várias formas da psicoterapia de grupo. Devido ao interesse
demonstrado, convido-os a preencherem a inscrição e juntarem-se a nós (1974, p. 240). Como
vimos J. L. e Zerka Moreno desempenharam um papel ativo em todos os primeiros
congressos internacionais de psicoterapia de grupo e psicodrama até 1973 e, obviamente, na
fundação da IAGP. Algumas vezes chegaram a financiar os eventos, como aconteceu em
relação aos três primeiros congressos internacionais de psicoterapia de grupo (Toronto,
Zurique e Milão).
A publicação do The International Handbook of Group Psychotherapy, em 1966, co-
editado por Battegay e Friedmann, também saiu de seus bolsos. Como Grete Leutz8 assinala:
“Em todos esses eventos, Moreno foi o motor mais poderoso, o spiritus rector, e Zerka esteve
totalmente envolvida em todos esses passos”. Outros pioneiros também participaram do
financiamento dos primeiros congressos de psicoterapia de grupo e psicodrama. Anne Ancelin
Schützenberger, por exemplo, cobriu o prejuízo do Congresso de Psicodrama de 1968, que foi
deslocado de Praga para Baden-Baden, quando os soviéticos invadiram a Tchecoslováquia.
Alguns fatos coincidiram em agosto de 1973, em Zurique. Como se disse, foi a última viagem
internacional de Moreno e, provavelmente, sua última apresentação pública. Ao retornar a
Beacon (Estados Unidos), ele escreveu uma carta aberta que talvez tenha sido o seu último
texto publicado. Ele morreu poucos meses depois, em maio de 1974. Estava passando o
bastão, consciente da missão cumprida. Podemos interpretar suas últimas palavras como uma
despedida e um apelo à continuidade de seu trabalho junto à comunidade internacional de
trabalhadores grupais. Gostaria de terminar este esboço transcrevendo sua carta, pois ela é
atual e cheia de relevância histórica:
Caros amigos:
18
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Correspondência com Raymond Battegay, Juan Campos, Grete Leutz, Zerka Moreno, Malcolm Pines
e Anne Ancelin Schützenberger.
FONSECA, J. The beginnings of IAGP. In: historical approach. The International FORUM of
Group Psychotherapy. vol. 6, no 1, 1997.
_____. Open letter to the members of the International Council of Group Psychotherapy. Group
Psychotherapy, vol. XXI, (2-3), June-September, p. 89, 1968.
_____. Open Letter from J. L. Moreno on Behalf of the International Association of Group
Psychotherapy. Group Psychotherapy and Psychodrama, vol. XXVI, (3-4), 131, 1973.
OUTRAS FONTES
CAMPOS, J. Interview with Zerka Moreno. The International FORUM of Group Psychotherapy,
vol. 7, n° 1, 1999.
MORENO, Z. T. Evolution and Dynamics of the Group Psychotherapy Movement. In: The
International Handbook of Group Psychotherapy, Nova York, Philosophical Library, p. 27-125,
1966.
José Fonseca: Rua Havaí 78, 01259-000, São Paulo-SP. Tel.: (11) 3862 1169 Fax: (11) 262 0846. E-
mail: jfonseca@nw.com.br.
19
3 TEMPO PARA O TEMPO DE MORENO
______________
9
Judeus Árabes. Originários da Península Ibérica, na região da Espanha, donos de uma linguagem própria
chamada “ladina” (do latim).
20
Em seu leito de morte, meu pai não estava como Moisés, sozinho na
montanha, mas sim como um pioneiro rodeado por seus mais devotados
companheiros. Ele não aguardou a morte, pois colocou o processo em
andamento ao recusar a comer. A morte de Moreno foi o que Nietzsche
chamou de uma “morte livre”, que chegou na hora certa e dessa forma
confirmou a vida que tanto amava. No leito de morte, ele voltou a falar
alemão; talvez estivesse se lembrando das crianças nos jardins de Viena que
lhe ensinaram o role playing (jogos de papéis), ou do pequeno profeta que
ele descobrira em Bucareste10 oitenta anos antes. Quando Moreno foi para
Deus, o fez como um velho amigo.11
- Ao se dar um passeio sobre a vida e o contexto vividos por Moreno, faz-se necessário
o máximo de cuidado. Ele próprio mostrou-se avesso quando foi convidado a falar do já então
falecido Abraham Lincoln. Episódio por ele relatado no capítulo introdutório do livro: Quem
Sobreviverá?, proferindo uma crítica severa, ao afirmar “[...] não ser justo psicanalisar alguém
sem o seu consentimento” (MORENO, 1992, p. 48-49).
- Não quero confusão e aborrecê-lo, afinal, sua presença entre nós acontece na forma de
energia e como a energia é sutil, ele não pode se defender. Podemos imaginar a sua ira, as
suas atitudes temperamentais. Creio que também não fica bem ir contra o dono da nossa
história. Já se passaram 121 anos do seu nascimento e 99 anos que ele realizou pela primeira
vez um teatro diferente: o Teatro para Crianças logo após aquela algazarra nos Jardins de
Augarten e muitas outras antes desta e depois desta. Não pretendo fazer comentários que
possam deixá-lo irritado. O convite é para um passeio na época em ele viveu. É para viver um
momento cultural com o tempo de Moreno. Sabe essas “coisas” de psicodramatista? Vamos
entrar nelas? Vamos nos aquecer! Caminhe comigo.
- Viena! Ah Viena! Cidade dos Sonhos, dos Bosques, das Valsas, intimamente ligada à
música, considerada capital da música na Europa. Cidade edificada entre os Alpes, as
margens do Rio Danúbio, o Rio Azul. Sua área começou a ser urbanizada antes de Cristo.
Sua origem é Celta e seu nome significa Rio na Floresta. Os Celtas eram um povo antigo e
misterioso. Reuniam-se em lugares abertos, entre as pedra e florestas, sob a orientação de um
ou mais druida. A natureza era a companhia, o abrigo e o alimento dos homens “naqueles
tempos” e por isso, reverenciada, louvada. Para os celtas as árvores eram a maior divindade
da natureza, representavam o Universo. A Floresta com suas “Vozes” simulava a ponte mítica
entre o mundo de Deus e do Homem. Suas raízes habitam o solo, o conhecimento profundo da
Terra, o tronco une as raízes ao Céu, trazendo esse conhecimento à luz.
- As mulheres desta civilização, ocupavam um lugar significativo na sociedade. Por
isso, os druidas poderiam ser sacerdotes ou sacerdotisas. Muitos os denominaram
bruxas/bruxos, outros deuses/deusas. Na realidade eles buscavam a compreensão da
divindade, viam a vida como um círculo em espiral, cujo equilíbrio encontrava sua fonte
espiritual, sua divindade, junto à natureza. Foram povos de grande prestigio cultural e com
eles os jovens romanos aprenderam Astronomia e Ocultismo. Por milhares de anos eles
dominaram a Europa Central e Ocidental. Sua ascensão durou até o advento do cristianismo.
- Assim se inicia a história dessa magnífica Capital, a área mais antiga é de origem
medieval cercada por uma muralha com uma faixa no entorno e a área militar ao redor. A
faixa isola, separa o Povo da Aristocracia. Com essa arquitetura a corte se protege de qualquer
avanço revolucionário popular. O povo habita além do cinturão, isolado pelas fortificações e
pela área militar, em direção aos subúrbios.
______________
10
Cidade onde Moreno nasceu.
Introdução de Jonathan D. Moreno – Filho de Moreno e Zerka no Livro Autobiografia de J. L. Moreno-Org.
11
- Continuando a nossa caminhada, imagine uma extensa planície, rodeada por florestas,
cujas entranhas são serpenteadas por um Rio Azul que caminha em direção ao Mar Negro.
Rio que floresceu e floresce a vida de tantos povos, que mereceu uma Valsa, considerada a
obra prima Johann Strauss II. Rio que sofreu no século XXI, especificamente no dia
07/10/2010, a maior catástrofe de todos os tempos, foi invadido por uma maré de lama
vermelha tóxica, que vazou de uma fábrica de alumínio no oeste da Hungria. Os especialistas
aguardam que o volume de água reduza o impacto da substância tóxica. A lama provocou a
morte de quatro pessoas e deixou cento e vinte feridos. Mais uma narrativa que o velho
Danúbio tem para nos contar; ouça o seu murmúrio ecoando junto às vozes da floresta,
contando a sua história, seus achados arqueológicos, seus mitos e suas lendas. Não importa. O
que importa é que os mitos e as lendas guardam os frutos de uma cultura, cuja mensagem é
traduzir os aspectos e os valores de uma civilização. Observe que em tudo há uma gênese, um
status nascendi, o lugar do nascimento, que estimula a vida. Contar estórias e histórias são
elementos pertinentes aos Homens. Não é atoa que foi por meio das estórias e das histórias
que as tribos primitivas realizaram os processos de transmissão do saber e da cultura para o
seu povo.
- Os anos se passaram e as civilizações se alteraram.
- Na segunda metade do século XIX, Viena se adapta a mais uma transformação; os
liberais tomam o poder e exigem o direito da autogestão municipal. A Cidade Medieval se
expande por todos os lados, agregando várias nacionalidades: Tchecos, Eslovacos, Poloneses.
Romenos, Croatas, Bósnios entre outros. De um lado, dezenas de grupos etnolinguísticos, e
do outro a fragmentação das populações da língua alemã, em mais de trinta territórios
autônomos. Ao alvorecer do século XX a muralha é demolida. A parte mais antiga, com o seu
estilo gótico medieval, torna-se o coração da cidade12. Viena concebe o centro da vida
econômica e cultural da Áustria, tornando-se dona de uma nova cultura efervescente. O
crescimento acelerado induz a necessidade de se efetuar reformas na estrutura urbana de toda
a cidade. É feita uma revitalização nas áreas adjacentes, criando-se os jardins, os palacetes, os
monumentos e os edifícios imponentes. A reforma partiu da classe burguesa, baseada nos
próprios interesses e não houve preocupação em melhorar as condições das áreas periféricas.
Max, no Manifesto Comunista, depois de apontar o papel histórico da burguesia como fonte
efetiva e verdadeira de transformação política, econômica e social na Europa nos séculos
XVIII e XIX, disse:
______________
12
O Centro Histórico de Viena foi classificado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade em 2001.
22
Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e
veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações
se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo que é sólido
desmancha no ar, tudo que é sagrado é profano, e os homens finalmente são
levados a enfrentar [...] as verdadeiras condições de suas vidas e suas
relações com seus companheiros humanos (MARX apud BERMAN, 1998,
p. 20).
______________
13
Anel Rodoviário, construído em torno de Viena no lugar das Fortalezas e da Muralha. O anel foi construído
durante o Império Austro-Húngaro, pelo Imperador Francisco José.
23
suspensos, tropas foram convocadas para restaurar a ordem. A disputa pelo mercado
consumidor aumenta os conflitos de interesses entre as nações. Os países se empenham numa
rápida corrida armamentista, tanto como uma maneira de se protegerem ou de se atacarem no
futuro próximo. A corrida bélica suscita um clima de muita apreensão e medo entre os povos.
Eles ficam se espreitando e tentando se armar cada um mais que o outro. Aos poucos as
pequenas manobras de “tapa buraco”, com seus pequenos ajustes, não poderão atender à nova
dinâmica social e econômica deste fausto império, governado pelo interesse de meros
soberanos, com seus eventuais desejos expansionistas.
- O Imperador segue com o seu fausto e o seu fiel séquio, incluindo as carruagens.
Obedecendo ao protocolo real, casa-se com a mais bela de todas as mulheres daquele vasto
mundo: A Imperatriz Sissi da Áustria e da Hungria.
- Nos salões ainda há valsas. Tudo tão bonito! Enquanto isso... A política das massas
cresce. O Imperador permanece com sua ambição desmedida, desvinculado das preocupações
práticas do dia a dia, aprisionado e acorrentado a pensamentos estreitos. Os nacionalistas
pedem ao Império Austro-Húngaro uma nova ordem, uma nova resposta. As atitudes
conservadas não satisfazem o arrabalde da cidade, a população movimenta , fala, reage.
- O Imperador? Ah! O Imperador! Rodopia o seu manto de “gentil-homem” lá no seu
belo castelo, dentro da sua imensa torre, olha para baixo para a vastidão do seu extenso e
grandioso império. A torre é muito alta, uma verdadeira “Torre de Marfim”14. O Imperador
não ouve, não escuta, encontra-se muito distante dos clamores entediantes daquele povinho.
- A riqueza, a beleza e as novidades continuam aquilatando Viena. Várias pessoas
circulam por suas ruas que parece um formigueiro. Quantas coisas acontecendo! Quantas
etnias! Por ali estão os vanguardistas, cheios de ideias, insatisfeitos com os padrões vigentes.
O movimento de vanguarda inicialmente era identificado com a promoção do progresso
social, do indivíduo ou do grupo. Com o tempo, o termo passou a ser usado também para
referir-se aos artistas mais preocupados com a experimentação estética. Mas de qualquer
forma, a ideia foi sempre unir o movimento artístico como um movimento político (composto
por manifestos, militância).
- Mais à frente, um automóvel! Foi lançado recentemente; há que se ter cuidado com
esta máquina, ela pode deslocar o cérebro; nenhum organismo foi feito para tamanha
velocidade.
- Outro grupo surge: são os Psicanalistas, eles são os representantes do “sujeito oculto”,
de algo impossível. São muito estudiosos e descobriram o inconsciente.
- Você está acompanhando o nosso passeio?
- ‘Inco’ o quê?
- O inconsciente: ele é uma “enorme bolsa” que serve para guardar os objetos antigos,
do tempo que já passou e que às vezes ninguém lembra mais. Descobriram que há dentro
dessa “bolsa” um sumidouro e quando um objeto some... A confusão é grande. É um “Deus
nos acuda”, as pessoas ficam de lá para cá e de cá para lá, repetindo o mesmo caminho.
Quando não o encontram, o tempo fica feio. “Deus sabe lá, o que há de acontecer...” Eles
também fizeram um estudo sobre as mulheres, resumindo:
1° - Ser inexistente de desejo,
______________
14
Expressão judaica-cristã: Torre de Marfim é um símbolo de nobre pureza. Originou-se no Cântico dos
Cânticos - Salomão (7:4). Simbolicamente, a torre evoca Babel, Porta do Céu, fixada na Terra com o fim de
restabelecer o elo primordial com Deus; embora construída com o propósito de elevar o homem à divindade, ela
acaba por perverter-se no seu contrário, símbolo do orgulho humano. Saint-Beuve (1804-1869), crítico literário e
escritor francês, fez o primeiro uso moderno da expressão em um poema de 1837, referindo-se aos poetas
sonhadores, em contraste com os engajados socialmente. A expressão Torre de Marfim designa um mundo ou
atmosfera onde intelectuais e professores acadêmicos se envolvem em questionamentos desvinculados das
preocupações práticas do dia a dia.
24
2° - Desejam um pênis para si,
3° - Meros objetos de desejo... Só lhes restam vestir com feminilidade, assim elas
conseguem entrar no meio social.
- Dizem também que a natureza foi madrasta com elas, pois não tem a capacidade de
simbolizar como os homens.
- O machismo assola Viena e paralelo a ele nasce também uma nova cultura. Gustav
Klimt15, o grande pintor da época, foi acusado de “perverter a juventude” com as suas pinturas
sensuais, como os quadros: O Beijo, Masturbação Feminina e inúmeras obras. As pinturas de
Klimt denunciavam e expunham o patriarcado, mostravam a sua concepção de futuro e da
cultura feminina.
- O Beijo, de Gustav Klimt – foi um dos quadros mais representativos da época. Hoje é
considerado uma obra prima de Klint , entre tantos.
______________
15
Pintor Simbolista Austríaco – O uso da Intuição prevalece ao da Razão ou da Lógica.
16
Cronos é o tempo cronológico, linear, seqüencial, que dita o ritmo de nossas vidas. Kairos é o aspecto
qualitativo do tempo. Expressa o momento certo. Refere-se ao instante, ocasião ou movimento.
17
Samba do Crioulo Doido: música de Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) – 1968 – é uma Sátira da história do
Brasil.
25
século XX. Um ponto puxa o outro, que puxa o outro, contextos surgem de maneira atemporal
e vão construindo o inter e o intra psíquico.
- Olha lá, os cientistas-filósofos; os filósofos-cientistas! Aqui em Viena é assim, seja lá
qual for à formação universitária estuda-se filosofia e matemática.
- Pobres cientistas-filósofos! Há anos que estão andando em círculo, ficam “por aí”
circulando toda Viena! Estão procurando “a coisa em si”, pois é... Desde que a matéria deixou
de ser absoluta... Que a Torre caiu, ela ficou muita assustada e sumiu. Também, com aqueles
ares de “eu me basto”, estava a cada dia mais grandiosa. Ninguém suportava mais!
- Eles circularam tanto, rodopiaram tanto, que inventaram O Círculo de Viena! Isso
começou em 1922, nas duas primeiras décadas do século XX, de maneira informal à volta do
judeu Moritz Schlick (1882-1936). Moritz era físico e filósofo, estudou com Max Planck,
aquele fisico alemão que foi o primeiro a anuciar a derrubada da Torre. Com aquela história
da “Incerteza Quântica”. Bom, mas o fato é que Moritz gostou de ter pessoas à sua volta. Para
mantê-las, criou uma corrente de pensamento que se transformou no sistema filosófico,
conhecido como Positivismo Lógico. Uma reação à filosofia idealista e especulativa que
prevalecia nas universidades alemãs. Em 1924, reuniram-se na Universidade de Viena:
filósofo, cientistas, economista, juristas de inspiração empirista, para debaterem os critérios da
verdade e da pesquisa mais compatíveis com as novas descobertas científicas. A proposta era
a de se realizar encontros regulares para discutir ciência, filosofia e a fundamentação de
conhecimentos verdadeiros.
- O Círculo ocupava-se principalmente com a lógica e a ciência, considerando a
filosofia como a disciplina incumbida de distinguir entre o que é ciências e o que não é. A
filosofia é também encarregada da elaboração de uma linguagem comum a todas as ciências.
Este movimento teve forte influência sobre o ‘trio britânico de filósofos’: John Locke, George
Berkeley e David Hume.
- Pelo Positivismo Lógico, uma hipótese só pode ser considerada adequada se suas
presciências passassem por um teste empírico, ou seja, se suas previsões pudessem ser
observadas ou experimentadas pelos órgãos dos sentidos. Uma nova metodologia é ressaltada:
Toda teoria é apropriada até que se comprove a sua adversidade e a ciência passa a ser
quantificada de forma probabilística. Moritz Schlick também foi o primeiro a incluir a ética
como um ramo viável da filosofia, fato que surpreendeu alguns dos seus colegas do Círculo.
- Tudo isso durou até junho de 1936, quando Moritz Schlick foi assassinado por um
estudante universitário nazista. Foi morto ao subir as escadas da Universidade, ao ser
interpelado por um dos seus ex-alunos sobre um dos seus ensaios, Schlick argumentou; o
estudante, com uma pistola, atirou em seu peito. Julgado e sentensiado tornou-se um héroi
para os racistas, sendo retratado como um ‘Ariano Heróico’, aquele que se levantara contra a
“Filosofia Judia sem Alma” do Círculo. Pouco depois, este estudante foi imcorporado ao
nazismo. Com o falecimento de Schlick e o fortalecimento do nazismo, com o seu clima de
hostilidade, o grupo do Círculo se dispersou. O palco do Positivismo Lógico migrou para os
Estados Unidos e Inglaterra.
- O nosso protagonista, mais tarde, também partirá para os EUA; nas terras americanas a
sua teoria ganhará e um novo formato na busca de comtemplar o método cientifico: Teste
Sociométrico18, a medida, o metrum.
- Os avanços científicos continuam! Com a história da matéria, de ser tudo e não ser
nada! Os filósofos encontram-se exaustos, cambaleantes de tanto circular. A cada dia
aprofundam mais nas questões atômicas. Essa história é bastante remota, vem dando o que
falar desde antes de Cristo e passou por várias versões.
______________
18 Questionário de Medidas das Relações Sociais.
26
- O primeiro atomista foi Leucipo e passava horas conversando com Demócrito.
Ficavam horas discutindo o sexo dos anjos, sentados na bela praia olhando e falando. Um dia
o mestre falou: A matéria é feita de partículas muito pequenas, observe os grãos de areia:
olhados de longe formam uma massa continua, mas ao se chegar perto, percebe-se que aquela
imensidão é feita de inúmeros e pequeninos grãos descontínuos. Demócrito, maravilhado,
olhou para aquele pequenino grão de areia e toda a sua extensão, duvidou do mestre, apontou
para o mar e disse: A água é igual aqui e lá. O mestre respondeu: “conhecer é olhar com
mente”. Demócrito, emocionado, acreditou e desenvolveu o primeiro conceito teórico sobre
este postulado e batizou a partícula com o nome de Átomo – O indivisível. Para ele, o átomo
era “um monte de bolinhas” que geravam as grandes variedades de materiais na natureza, por
meio de movimentos constantes. Os átomos seriam qualitativamente iguais, diferindo-se
apenas na forma, no tamanho e na massa. Os diferentes tipos de átomos se chocavam e
formavam conjuntos maiores, gerando diferentes corpos, com características próprias. Depois
de um tempo chega Epicuro dizendo que havia um limite para o tamanho dos átomos,
justificando assim a razão de serem invisíveis. O primeiro modelo, a primeira história do
átomo, é filosófica, depois com o Círculo de Viena, com a junção dos cientistas e filósofos,
as experiências atômicas ‘bombaram’ na tentativa de explicar esses fenômenos através de
testes empíricos.
- Há uma lista de cientistas: Ludwig Boltzmann, John Dalton, Joseph John Thompson,
Ernest Rutherford, Niels Bohr, Max Planck, com a Teoria Quântica. Joseph John Thompson
procurou tanto, que quase virou um gourmet. Desenvolveu a receita do “pudim de ameixas”.
Graças ao “pudim”, a carga elétrica neutra, a primeira partícula, foi descoberta: era o Elétron.
Ainda neste período, começa-se admitir a divisibilidade do átomo e a natureza elétrica da
matéria. Niels Bohr acoplou a estrutura atômica à física quântica, desenvolveu a mecânica
quântica e estudou o núcleo atômico em forma de “gota de água”, o que foi a “gota d’água”
para o caminho da energia nuclear. Albert Einstein revolucionou o mundo com sua Teoria da
Relatividade. Os conceitos de tempo e espaço deixaram de ser uma realidade estática, os
átomos quando entrelaçados passam a compartilhar das mesmas propriedades, e mais, eles se
comunicam a distância – átomos assombrados – os átomos podem “sentir”, mesmo
distanciados, as alterações um do outro; quando a propriedade de um é alterada, o outro reage
instantaneamente (Esse conceito assemelha ao conceito de Tele). Demócrito e o seu mestre
Leucipo jamais poderiam conceber o que gerou de bom e ruim daquela bela conversa
filosófica na praia. Aquela “particulazinha indivisível” iria tornar-se a Bomba Atômica no ano
de 1941, através do Projeto Manhattan, desenvolvido pelos americanos.
- Mas lá estão os cientistas indo para o Edifício de Olbrich. A casa da “Secessão”.19
______________
20
World Trade Center – As Torre Gêmeas – Localizdas em Manhattan, Nova Iorque/Estados Unidos, atacadas
por terroristas e destruídas no dia 11 de Setembro de 2001.
28
conhecem “amigos ou inimigos”, discutem suas obras uns com os outros. Os Cafés agregam
os mais diversos movimentos de Viena.
- Faz parte da longa tradição cultural da Universidade de Viena, o envolvimento de
todos com as questões da filosofia e da matemática. Sejam comparecendo aos cursos na
Universidade, sejam participando de grupos de discussão. Nos cafés eles estão falando dos
novos ideais sociais. São crédulos, ateus, agnósticos, cientistas, filósofos, artistas, gente do
povo. Enfim, todos!
- São muitas correntes de pensamento surgindo: os positivistas, os existencialistas, todos
preocupados com a espiritualidade.
- Adiante se encontra o grupo do Dr. Freud. Ele raramente frequenta os cafés, as poucas
vezes que aparece é no Café Landtmann. É precursor de muita coisa que se refere à psique
humana; foi o primeiro que abordou, escreveu e falou sobre a sexualidade infantil.
Atualmente vem sofrendo com toda a repercussão nacionalista. Possui um grupo, que também
chamou de Círculo, muito bem frequentado. Por volta de 1906, o grupo cresceu: Wilhelm
Fliess, William Stekel, Alfred Adler, Otto Rank, Abraham Brill, Eugen Bleuler, Carl Jung,
Sándor Ferenczi e Ernest Jones. Recebe várias visitas, entre elas a dos poetas e escritores,
Rainer Maria Rilke (1875-1926) e André Breton. Durante a guerra Dr. Freud irá passar por
maus pedaços. Todos os seus livros serão queimados em praça pública. Ele dirá algo mais ou
menos assim: Na Idade Média, eu é que seria queimado!
- Há outros tipos rondando os cafés. Aquele ali é o Hitler vendendo os seus cartões com
desenhos e pinturas executadas por ele mesmo. Ao que consta, o futuro Führer não gosta
muito de cafés nem de cervejarias. É um “duro”, sem dinheiro, vive pobremente em um
albergue para homens solteiros de relativo luxo, com banho quente e luz elétrica. Ele é
sombrio, vende as suas pinturas aos clientes do Café Central, ninguém presta muita atenção.
Sua raiva cresce a cada dia junto com o estilo anti-burguês e anti-semita, suas ideologias
baseadas nos princípios do racismo e do poder estão fortalecendo e desabrochando lentamente
para criar o nazismo. O exterminador de judeus, ciganos, deficientes, opositores políticos,
cultiva o seu germe, um dia após o outro. Anos mais tarde, depois do seu genocídio, essas
“cartelazinhas” passarão a ter valor. O sanguinário Stalin também esteve por aqui solvendo
uns goles de café. São os maiores carniceiros do século XX.
- Nossa, que coisa horrível! O que é?
- São os restos da Primeira Guerra Mundial... São os escombros das construções sólidas:
29
[...] quando descobri reduzida a cinzas a orgulhosa casa do Homem, na qual
havia trabalhado durante cerca de dez mil anos para conferir-lhe a solidez e o
esplendor da civilização ocidental, o único resíduo que detectei em meio às
ruínas, preenche de promessas, foi o “espontâneo criativo”. Via seu fogo
queimando a base de cada dimensão da natureza – cósmica, espiritual,
cultural, social, psicológica, biológica, sexual (MORENO, 1984, p. 17).
Viena foi o lugar onde muitos movimentos importantes foram tramados. [...]
O nazismo, o comunismo e o existencialismo entre os anos 1909 e 1913. Nos
anos da guerra, a maioria dos movimentos políticos e sociais diminuiu
subordinados aos esforços de guerra, para virem à tona entre 1919 e 1923.
[...] Os princípios dos três movimentos eram claros. Os nazistas propunham
a conquista do mundo, para os alemães assim poderem governá-lo. Os
comunistas queriam conquistar o mundo para a classe trabalhadora. Em
contraste, os primeiros existencialistas salientavam que a própria existência
era algo sagrado (CUSCHNIR, 1997, p. 61).
- Logo, logo, haverá outra guerra e eles vão tentar apurar a raça... Essa chamará a
Segunda Guerra Mundial. Torres... Torres... E Torres. Mas olhem lá mais adiante: são as
mulheres.
- As mulheres? Não diga isso. Veja só! Olhe para elas! Cortaram os cabelos e as
barras da saia. Será que elas vão começar a beber café para aprender simbolizar?
- Suas roupas mudaram. Não dava para entrar na guerra com espartilho, anáguas, mas
começou também a faltar pano e homens. Só assim elas puderam começar a sair às ruas. A 1ª
Guerra Mundial trouxe a escassez, a sobriedade, a austeridade e a tristeza. As mulheres estão
buscando um novo padrão de comportamento, estão mais audaciosas, procurando cada vez
mais sua emancipação, se vestem de homenzinho, buscando uma nova ordem para a
mulherzinha. Enfim, com a ausência dos homens, elas tiveram que assumir novos postos fora
30
de casa e aprender as funções do mercado de trabalho. São a “La Garçonne”, as melindrosas
mulheres de cabelo curto, vestem saias curtas, busto achatado, blusas folgadas, lábios bem
pintados. Nos lábios revelam o que desejam. A moda do cabelo cortado foi violenta e até
trágica, antes de ser aceita.
- Melindrosas? Pois, pois!?
- Novas condições se despontam, tornando possível que instâncias individuais e
coletivas possam emergir dentro do novo modelo existencial. Todos querem esquecer os anos
da repressão, da guerra e viver intensamente. Diante o cenário devastador, onde a esperança
parecia desvanecer, a Europa vive um período de intensa criatividade, inclusive no mundo da
moda. Muitos estilos revolucionários nasceram desse panorama crítico.
- É um Anarquismo. São muitos movimentos: Literatura, Política, Arte, Pedagogia,
Filosofia e Ciências. Este cenário é, de fato, borbulhante e instigante.
- Que Bela Época!
- Vamos para o parque, para os Bosques de Viena.
- Chegamos ao Parque.
- E aquele, quem é?
- É um jovem de “carne e osso”, um caminhante. Ele gosta de intrometer na vida,
brincar nos parques, contar histórias e muitas estórias, gosta de sonhar, acredita sempre na
alegria, confia nas pessoas. Adora sorrir, amar, trabalhar com prostitutas, com os refugiados
da guerra e com as crianças. Gosta dos cafés, de descer o Ringstraße. Construiu junto com
outros a Casa do Encontro; este rapaz gosta de uns encontros... Muitos amores, às vezes
nenhum... Depende da lua, algumas rupturas físicas e algumas familiares, mas é boa gente.
Acredita sempre na alegria, tem confiança nas pessoas, é por outras vezes meio briguento.
Fala também sozinho. Anda dizendo por aí que só a espontaneidade e a criatividade serão
capazes de reconstruir a humanidade. Diz também que só no século XXI as pessoas irão
entender melhor as suas propostas. É médico, mas trabalha com teatro, construindo palcos
reais e imaginários... Dizem que ele fez até uma máquina de gravar voz.
- Outro dia fez outra fuzarca. Convidou a todos para ir ao teatro. Colocou uma cadeira
no meio e começou a chamar as pessoas para serem o novo Rei. Isto foi ‘Dia 1º de Abril’...
- Mentira!?
- Não, é verdade! Eu vi, “com estes olhos que a terra há de comer”. Imaginem só! Foi o
maior bafafá, quase terminou em guerra... Ele agora está falando que vai embora... Sabem
como é... Eles vivem procurando a terra prometida... Ninguém sabe ao certo... Mas eu soube
de “fonte limpa”, que ele é judeu.
- Nossa! Quanta informação!
- É que ele andava com umas roupas... E uma barba... Parecia um Hippie... Mas deixe
para lá, isto também é para o futuro... Mais uma questão anacrônica. Sei que era impossível
não vê-lo!
- Ah! Um pequeno detalhe, ele quer ser anônimo.
- Não contem a ele que falei sobre isto.
- Onde estão os Reis? Os Salões? As Valsas?
- Isso é passado.
- O mundo move. O Império caiu. A guerra aconteceu. As Valsas valsaram! O presente
é uma porta aberta e o futuro é o que Virá. 21
- A música agora é Americana. Neste pós-guerra a grande novidade dos salões vem da
América do Norte, dos EUA. O negócio agora é o Charleston... O Jazz... Há outras novas
ondas no ar: o Teatro de Improviso, Espontâneo. Depois irá surgir o Teatro Recíproco, o
______________
21
Letra da Música de Luiz Gonzaga Filho (Gonzaguinha), ‘Com a Perna no Mundo’.
31
Terapêutico, o Psicodrama, o Sociodrama e a Teoria Socionômica. Situa, situa criatura! O
Império caiu! A guerra aconteceu!
- Situei! Agora quero saber mais sobre este cara. Você propôs esse tal de aquecimento e
apareço aqui em Viena, no início dos tempos. Começou a falar de um monte de coisas... De
Druidas... De café... De construções... Do Imperador... Daquele pintor... Do Círculo de
Viena... Da Guerra. Leva-me até este Jardim de Augarten e começa a fala: do fim dos
sonhos... Do início dos sonhos.
- A história do nosso ator principal começa assim:
- Era uma vez, um menino, primogênito de Morenu Nissim Levy e Paulina Iancu Wolf.
A família de Nissim era judaica Sefardista, isto quer dizer: Judeus árabes originários da
Península Ibérica, na região da Espanha, donos de uma linguagem própria, chamada “ladina”
(do latim). A família fugiu para a Romênia (Bucareste) no ano de 1492, durante a perseguição
da inquisição. Assim se inicia a história dos seus antepassados paternos. A mãe, Paulina, era
de descendência judia eslava. Embora judia, fora criada num orfanato católico, com várias
informações religiosas. Paulina tornou-se bastante eclética: supersticiosa, acreditava em
profecias, consultava ciganas, possuía dons de premonição e praticava quiromancia.
Conheceu Nissim em Bucareste e se casaram. Morenu Nissin Levy era, além de um
comerciante, perito em negócios de cereais e na indústria de petróleo. Viajava muito. Era
sério, amoroso, porém inconstante nos hábitos, namorador e profissionalmente instável.
Paulina, órfã dos genitores, criada pelos irmãos, foi aos quinze anos entregue a Nissin. Os
irmãos decidiram pelo casamento para impedi-la de tornar-se católica.
- Deste casamento nasce, no dia 18 de Maio de 1889, o nosso protagonista. Apresentou-
se já nas primeiras horas do seu nascimento, sem pátria, no meio do mar, em um navio que
singrava entre o Mar Negro, do Bósforo para Constantsa, na Romênia. Não havia bandeira no
navio, ele pertencia a todos os mundos. Como o navio não tinha bandeira, o menino tornou-se
anônimo. Ninguém sabia sua origem ao certo. Isso não é uma grande aventura? Um navio
“que singrava”. Que maravilha! Qual criança não gostaria de nascer assim? Veja o mar com
sua imensidão. Nele, o navio, com suas imensas velas içadas, segue navegando e rompendo as
ondas. Neste balanço o menino ganha a vida, mais tarde seus olhos ávidos brilham ao contar
como veio ao mundo. Sua mãe era uma mulher fervorosa, cheia de ideias, sonhos, grande
contadora de histórias e versátil em idiomas. Ouvia as histórias do filho e às vezes
acrescentava novos dados: “Era uma noite de tempestade... Era madrugada do Sagrado
Shabat... Você estava viajando num navio, mas o navio era o meu corpo, que pariu você”
(CUSCHNIR, 1997, p. 22).
- A vida continua... Com as travessuras infantis:
Uma noite, levantou-se com o seu irmão William, criaram um universo da massa de
pão que sua mamãe havia preparado. Brincadeiras engenhosas! Ainda por esse tempo,
Piroshka, a criada Húngara, quando o levava ao banheiro que ficava fora de casa, lhe
apontava os eventos cósmicos, primitivos e o seu lugar no Universo: “[...] a urina vai para
água, para o rio, para o lago. As fezes vão para o solo, para dentro da terra, para as colinas em
redor (CUSCHNIR, 1997, p. 27).
Na mesma época ele foi apresentado à Bíblia – livro do Gênese: “No princípio Deus
criou o céu e a terra” (CUSCHNIR, 1997, p. 27).
Aos dois anos o menino começa a ficar fraco e raquítico. A mãe reúne todas as suas
forças e disponibilidade para salvar o filho primogênito. Ela era o grande ego auxiliar, a
primeira pessoa na vida do infante, aquela que iniciava a condução da criança e permitia a sua
sobrevivência. Certo dia, uma cigana aproximou e disse:
32
Vá buscar um pouco de areia fina22. Ao meio-dia, quando o sol estiver
escaldante, ponha a criança na areia. O sol curará a criança. Chegará um dia
que esta criança se tornará um grande homem. Chegará gente de todo o
mundo para vê-lo. Ele será um homem sábio e bondoso (CUSCHNIR, 1997,
p. 25).
______________
22
Antes de Cristo, na Grécia, já se falava das virtudes do sol contra o raquitismo. O sol tem ação calorífica em
consequência dos raios infravermelhos, que provocam dilatação dos vasos e penetram profundamente na pele,
promovendo a síntese da vitamina D, necessária para os ossos. A areia serviu para refletir os raios,
potencializando ainda mais os raios UV. O sol continua sendo fonte para fazer a síntese da Vitamina D.
Precisamos de nos responsabilizar pela Co – criação do planeta. Que tal uma mãozinha para ajudar na
preservação da natureza?
23
Música de Paulo Vanzolini - fez grande sucesso na voz da Gal Costa, nos anos 70.
33
- Constata anos mais tarde que todos precisam de ajuda de egos auxiliares, inclusive
Deus, para continuar sua obra. Sem ajuda nem Deus pode existir. É necessário ter ao nosso
redor pessoas para nos dar “uma mão” nos vários instantes da vida. Outros episódios também
marcaram as suas atitudes: todos da sua família o tratavam de forma especial. Antes de cursar
medicina já era chamado de Doutor. Bastou o pai sugerir o curso, que ele foi sendo
transformado no “Doutor”. O pai, muito amado, foi quem o sugeriu para ser médico. De tal
modo livraria o filho daquela vida de “caixeiro viajante”. Ele ficava continuamente do lado do
pai, contra a mãe e os tios. Ninguém podia falar “nadica” dele, que o menino saia em sua
defesa. Moreno Nissim Levy era O PAI. Sempre que era possível viajava com ele, ouvindo
com atenção suas estórias. Conheceu Constantinopla, lugar que os Levy tinham muito
parentes, visitou um harém, que pertencia a um dos seus tios. Ficou extasiado: as jovens nuas,
os banhos, as massagens, a arquitetura, os eunucos e o comércio de infinitas variedades. Era o
adolescente descobrindo o mundo guiado pelas mãos do pai. Aquele que tinha todas as ideias,
diria isso anos mais tarde, ao se referir ao pai.
- No início da sua adolescência, os pais mudaram para Berlim, mas ele permaneceu em
Viena, nunca mais tornaria a viver com os pais. Por volta desta mesma época, viaja com um
tio materno por toda Itália. Seu tio o chamava de “Doutor”, e preocupava-se com sua falta de
habilidade para o uso do dinheiro. Ele sorria! A parte mais importante e marcante desta
viagem foi conhecer a sua Primeira Musa: Pia. A inspiração para ir além de si mesmo. Ao
retornar para casa, encontra no trem um bando de estudantes com quem travou longos debates
filosóficos e existenciais. Outro grande marco. Ao chegar, estava triste e cheio de perguntas
quanto ao seu futuro. Foi buscar abrigo nos pais, encontrou-os em pleno caos, tentou
reaproximá-los e não conseguiu. O pai saiu de casa. O mundo desaba nos ombros jovens do
adolescente de 14 anos, um grito de revolta ecoou: “Por que você criou o Universo em
primeiro lugar? Poderia ter-nos poupado a todos de viver. [...] esse foi o início dessa miséria e
futilidade sem fim, a corrente que liga o nascimento com a morte (MARINEAU, 1992, p. 35).
- Revoltado, retorna para Viena. Não se preocupa com as lágrimas da mãe e conclui:
“Jesus Cristo, São Francisco de Assis fizeram o mesmo. O fato de eu precisar seguir o mesmo
curso foi um sinal [...] eu estava na trilha certa (CUSCHNIR, 1997, p. 42).
- Ele, um excelente aluno, inteligente, ávido para aprender idiomas, interessado pelas
coisas do mundo, preenchendo seus pais e professores de orgulho, abandona a escola, não
aceita ajuda dos pais, dos tios. Para sobreviver passa a dar aulas particulares. Suas leituras
cruzam entre os filósofos que falavam “sobre Deus” e ao essencialmente emblemático. A
Bíblia, o Zohar, a Cabala, Baal Shem Tov progenitor do Hassidismo24, filosofia religiosa que
consagra a proximidade com Deus, falar com Deus diretamente, sem intermediários. Baal
Shem Tov no século XVIII professava: O homem deve verdadeiramente apartar o ego do seu
corpo e atravessar por todos os mundos, tornando UM com Deus, até obscurecer-se
totalmente do mundo corpóreo.
______________
24
Hassidismo: movimento que surgiu no judaísmo no século XVIII e consiste numa forma de secularização da
vida religiosa mediante a difusão de sua prática em todos os momentos da existência humana (NUDEL, 1994, p.
43).
No início século do XX, a busca da existência como algo sagrado, volta a impressionar e influenciar outros
pensadores. Martin Buber (filosofo) (1878-1965) reuniu as histórias do Rabi Nakhman de Bratslav (Bisneto do
Baal Shem Tov) e fez dos ensinamentos dos mestres hassídicos as bases de um existencialismo religioso dos
mais originais, preservando os principais elementos dessas fabulações de ideias, que é a busca do espírito e da
condição humana. Segundo Martin Buber, a capacidade do Homem de desenvolvimelnto é inter-relacional,
acontece entre o Eu e o Tu, e denomina-se relacionamento Eu-Tu. A inter-relação envolve o diálogo, o encontro
e a responsabilidade entre dois sujeitos e/ou a relação que existe entre o sujeito e o objeto: o ser humano se torna
eu pela relação com o tu à medida em que me torno eu, digo tu. Todo viver real é encontro. Não há um Eu em Si.
Buber morava em Viena, eles estavam juntos no Jornal o Daimon.
34
- Outros autores que influenciaram sua adolescência: na Filosofia: Agostinho, Pascal,
Spinoza, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Bérgson, Kierkegaard, Dilthey, Unamuno, Vaihinger,
Heidegger, Pierce, Schopenhauer, Dewey. Na Pedagogia: Rousseau, Montessori, Fröebel. Na
Sociologia: Mead, Cooley, Comte, Smith, Allport. Na Psicologia: Freud, Pavlov, Lipps,
Jaspers, Watson, Jung, Scheler e também os autores: Dostoievski, Tolstoi, Goethe,
Shakespeare, Wall Whitman.
- As leituras místicas o fizeram ficar cada vez mais estranho. Até nu apareceu frente à
família onde morava. Muitos disseram que ele era doente mental. Após uma vida sexual
intensa entrou em abstinência. A parada foi quase total, foram dois anos de profunda dor,
busca e revolta com Deus e o mundo. Mas, com as leituras aprendeu que toda criação é uma
emanação da divindade e que a existência da alma é eterna. Dogma que foi atrelado ao livro
do Gênese da sua infância: No principio Deus Criou o céu e a terra. Desta junção nasceu: “O
Profeta”, o “Escolhido”. A barba ruiva cresce, expõe no seu rosto um aspecto paternal e sábio.
Apesar da pouca idade, os olhos azuis parecem ler a mente de seus interlocutores,
transmitindo ternura, altruísmo, bondade. Assim se fez conhecido pelas ruas de Viena. Sua
indumentária diária é uma capa verde-escuro que cai até os tornozelos. Um símbolo de
fidelidade ao seu papel de Profeta.
- Após ter vivido recluso com sua dor e desilusão, encontrava-se vestido de “Profeta”,
brincando mais uma vez de ser Deus; o espírito enconta abrigo na criação, vive estados de
iluminação e de aparição divina. Fenômenos acorridos com diversos personagens históricos,
com líderes religiosos, filósofos, cientistas, místicos, escritores, muitos descreveram momento
como esse. Como nada acontece de repente ou brota do vazio: “Não foi de repente que eu me
tornei um profeta. Foi um crescimento gradual, lento, cujos os determinantes poderiam ser
encontrados na minha infância (CUSCHNIR, 1997, p. 45). Nesse sentido, cita-se também o
seguinte:
- Desde quatro anos e meio, encenando as várias faces de Deus: Deus que cai, Deus que
divide, Deus da Raiva, Deus do puro Amor. Com tantos ensaios, algo tinha que borbulhar.
Isso é aquecer, buscar o que há dentro. É uma assunção humana; o Criador emerge
espontâneo e depois do esforço do vir a ser, o momento privilegiado da revelação, acontece e
"ilumina" a vida do protagonista.
- Para sobreviver continuava com as aulas particulares. Certo dia foi procurado por uma
mãe. Seu pedido era de socorro para a filha mentirosa e baderneira; chamava-se Elisabeth
Bergner; a menina pode ter-lhe representado um conforto; ela se parecia com ele, poderia ser
considerada com um “pedaço seu”, encaixava na sua órbita; incentiva a mãe da Elisabeth que
a coloque no teatro. Elizabeth cresceu e tornou-se uma grande atriz do teatro alemão. Depois
de moça ela disse mais ou menos assim:
35
Eu me divertia muito com ele, parecia um nazareno, devia ter 20 anos, mas
parecia ter 100. Usava barba, era alto, esbelto com grandes olhos azuis,
cabelos pretos sempre sorrindo, era dono de um sorriso fascinante. Era
indescritível... Ele me dava poemas para aprender. E não apenas “o ensino”
“o refém”. [...] Ah! Isso era um novo mundo![...] quando nós íamos ao
Prater, [...] onde há linda e grande campinas. Ele dizia: Mas você não precisa
de uma cordinha para pular. Vamos dá-la a uma criança pobre que nunca
teve uma. Outras vezes: Mas você não precisa de bola para jogar! Venha eu
jogo o sol para você, apanhe-o! Ai, eu me queimei; Venha, venha eu vou
fazer um curativo para refrescar a queimadura do sol. Encha a boca vamos
mastigar como é gostoso esse chocolate (CUSCHNIR, 1997, p. 46,47).
- Elisabeth passou a gostar da escola e a brincar com as outras crianças. Lógico que esse
método de ensino não deu certo com todas as crianças. Observa-se que como professor ele
incentivava a criatividade, a imaginação. Ensinar é um processo de motivação ativo,
socializante e criativo. A metodologia de ensino da sua admiração era o método socrático da
troca, brincava de ser o aluno e os alunos tornavam-se professores. Sócrates dizia que nada se
ensina, o papel do professor é de ajudar as pessoas alcançarem o conhecimento pelo diálogo, a
buscar a verdade dentro de si em acordo com a sua consciência. O professor é um orientador,
cabe a ele somente orientar, esclarecer as dúvidas, fazer emergir o discernimento interno, a
aprendizagem é um processo que vem de dentro. O Homem, para Sócrates, não seria capaz de
progredir somente pela administração do conhecimento. Educar é levar o aluno a pensar,
refletir os valores universais, os pré-conceitos e os pré-juízos. Além disso, Sócrates
argumentava que os valores universais teriam primazia às importâncias individualistas.
Aprender em Sócrates é um processo subjetivo de reflexão, é uma arte de fazer com que as
ideias se multipliquem, que nasçam e que sejam paridas pela alma, para em seguida serem
organizadas pelas próprias experiências e não por conclusões de construções já elaboradas.
Sócrates chamou essa metodologia de maiêutica (parir), nome escolhido para homengear sua
mãe que era parteira. Ouça o que ele diz de Socrates:
- A narrativa da Elizabeth lembra o dito popular: Assombração sabe para quem aparece
e com a teoria dos Átomos Assombrados que foi citada lá atrás (p. 9-10), essa coisa de
36
comunicação a distancia. O certo é que, neste ínterim, Einstein revolucionava o mundo com
mais uma descoberta sobre o átomo. Assim caminhava o século XX, com sua humanidade
fervilhante de ideias revolucionárias. Atento, curioso, ávido por leituras com amplas reflexões
criativas, sua imaginação transpõe os fatos, como Leucipo e Demócrito. Idealiza o indivíduo
como o núcleo; no seu entorno, cadeias de redes invisíveis que seriam as órbitas, de indivíduo
para indivíduo, com variados tamanhos, indo e vindo de um para o outro. Uma verdadeira
constelação! Olha para o Céu, para o Universo, depois para a terra com toda a sua expansão e
organização. Pensa que os seres da terra também se compunham em constelações de forças e
elas se organizam em acordo, em torno de uma órbita. Como posso religar as pessoas? Os
questionamentos do jovem ardem no seu coração.
- Neste tempo, retoma os estudos, entra na faculdade no ano de 1909. Matricula-se no
primeiro momento nos cursos de filosofia, matemática e assiste as práticas clínicas na
faculdade de medicina, andamento necessário para completar a carga horária e compensar o
tempo da “vagabundagem”. Após dois anos, faz os exames e ingressa na Universidade de
Medicina. Ele, caminhante, anônimo, silencioso com sua longa capa verde perambulando
pelas ruas, pela Universidade, ouvindo, circulando, chamando a atenção de todos. Certo dia,
um jovem judeu, com o nome de Chaim Kellmer, de tradição hassídica, estudante de filosofia,
aproximou-se dele e desta aproximação nasceu uma linda amizade. Chaim dizia: “Se você der
amor às pessoas, elas lhe retribuem. Assim nasceu a religião do encontro entre os anos de
1908 e 1014” (CUSCHNIR, 1997, p. 56).
- Este foi o amigo de maior afinidade neste período. Quiçá não tenha sido o Chaim que
o introduziu na prática hassídica. Outros jovens se aproximaram: Andras Petö, Hans Feda e
Hans Brauchbar. Formaram um grupo de cinco. Só o Chaim não estudava medicina. Grande
Chaim! Grande grupo. Conversavam sobre valores, crenças espirituais e sobre a volta de
Cristo.
- Durante todos estes anos manteve o hábito de frequentar os parques, principalmente o
Augarten, localizado nos Bosques de Viena. Abaixo de uma árvore frondosa, junto às
crianças, criou um “jardim Encantado”, o lugar das histórias narradas pelos pequenos; eles
eram convidados a brincar, jogar, criar um novo mundo; formavam círculos e círculos, muitos
círculos concêntrico; ele às vezes ficava no centro, outras vezes subia nas árvores. Parecia um
Druida, o céu era o limite (MORENO, 1984, p. 16). No ano de 1910, esta era a sua maior
dedicação:
37
Aos poucos, foi ficando claro para mim que deveria deixar o reino das
crianças e passar-me para o mundo, o vasto mundo [...] acompanhava-me a
decisão de que essa ideia fixa deveria permanecer como o meu guia.
Portanto, todas as vezes que eu entrava em uma nova dimensão da vida, as
formas que eu vislumbrava com os meus próprios olhos, naquele virginal
universo, erguiam-se à minha frente. [...] O paradoxo, o irreal tornando real
(MORENO, 1984, p. 14-16).
- Aliás, toda a sua vida será na busca de desenvolver uma teoria que permita quebrar,
renovar os papéis, as crenças endurecidas, uma passagem, um caminho para uma nova
resposta, um novo significado dentro da categoria do momento. Brincar, jogar, permitir viver,
reviver o mundo, apropriar-se dele, transpor uma nova realidade; sua estrela maior e
norteadora seria sempre os olhos das crianças sagazes diante do “como se”:
- Com dificuldade, saiu do mundo das crianças e partiu para o vasto mundo de Deus.
Paralelo aos Jogos nos Jardins de Augarten e às aulas particulares, organizou junto dos quatro
amigos a Casa do Encontro. A meta dos cinco era a ajuda recíproca (MORENO, 1974, p. 79).
- Com Chaim ele desenvolve a verdadeira compreensão do encontro e escreve: O
Convite ao Encontro, gênese da teoria das relações interpessoais, escrito em 1914 (MORENO,
1992, p. 36). Antes é necessário dizer que o Convite a um Encontro era uma brochura com
vários artigos, que depois vieram a ser publicados no Jornal Daimon, entre os anos de 1918 a
1919. Os artigos são escritos em forma de diálogos, têm caráter psicodramático e são hoje
precursores da chamada “Psicoterapia Existencial”. Os diálogos são: A Divindade como
autor, A Divindade como Orador, (Psicodrama de Deus, o Axiodrama) A Divindade como
Comediante (MORENO, 1974, p. 145).
______________
25
Hans Vaihing (1852-1933). Despertou para a importância do “como se”. Mostrou que esse jogo intuitivo
amplia a “estética da percepção” e que o imaginário através desta experiência passa por elaborações
significativas.
26
NING- Espaço virtual desenvolvido pela Comissão Organizadora do 17° Congresso Brasileiro de Psicodrama e
1° Latino-americano de Psicoterapia de Grupo e Processos Grupais. 2010.
38
- O dígito binário: Encontro de Dois Olhos é um convite emblemático, que irá delinear
as suas principais edificações. Como viver e como atingir as metas focadas? Como peregrino
da verdade, disponibiliza o seu viver para delinear suas principais construções teóricas. Viver
não tem regras fixas, é como pintar uma tela, buscando formas de relacionamento, de partilha,
sem medidas para aprender a arte do encontro. No poema a seguir, é possível verificar a sua
teoria: O Momento; O Valor do Criador; O Ato; A Inversão de Papéis; O Encontro; O Tele; A
Espontaneidade; A Criatividade; A Corresponsabilidade; A Ética. É possível sentir “na pele”,
conviver com o indeterminado, com o momento, o exato minuto do encontro das relações
interpessoais; não vale qualquer valor de compensação, pois, a sua dimensão encontra-se na
espontaneidade e na criatividade: No Criador. É um apelo à liberdade, ao encontro e a
responsabilidade do Homem, à sua existência sem pré-definição, em constante construção
feita à medida que se vive a vida e as relações.
Divisa
Mais importante do que a ciência é o seu resultado,
Uma resposta provoca uma centena de perguntas.
Mais importante do que a poesia é o seu resultado,
Um poema invoca uma centena de atos heroicos.
Mais importante do que o reconhecimento é o seu resultado,
O resultado é dor e culpa. Mais importante do que a procriação é a criança.
Mais importante do que a evolução da criação é a evolução do criador.
Em lugar de passos imperativos, o imperador.
Em lugar de passos criativos, o Criador.
Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face.
E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus;
E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus;
Então ver-te-ei com os teus olhos
E tu ver-me-ás com os meu.
Assim, até a coisa comum serve o silêncio
E nosso encontro permanece a meta sem cadeias:
Lugar indeterminado, num tempo indeterminado,
A palavra indeterminada para o Homem indeterminado.
(MORENO, 1984, p. 7).
- A vida segue misturando os fatos, as vivências, as teorias, de tal modo que o viver vai
se construindo e desconstruindo sem forma, sem paradeiro, em constate busca, não se fazendo
de rogado frente aos abalos, seguindo convicto em seu papel de Godplayer: “Precisamos
repartir a responsabilidade de cuidar do cosmo com Deus” (CUSCHNIR, 1997, p. 9).
Cristo estaria nu. [...] Ele não seria um exibicionista, mas um homem que
referenciasse o estado natural do corpo. [...] Ele estaria nas ruas, onde
houvesse gente. [...] Fomos assim ampliando as fantasias um do outro,
nenhuma fantasia era absurda ou louca demais. [...] Estávamos livres em
companhia uns dos outros para compartilhar nossos pensamentos mais
íntimos. [...] Cristo ouvia vozes. Nós todos ouvíamos vozes. Qualquer um
que não ouvisse não era normal (CUSCHNIR, 1997, p. 49).
41
Começaram a chegar a nossa casa pessoas da Rússia, Bulgária, Romênia e
Turquia, velhos e moços, muitas vezes trazendo jornais nas mãos. Havia
artigos a meu respeito, às vezes com foto. [...] Ainda hoje fico espantado
como tantas pessoas se amontoavam naquela casa, compartilhando uns com
os outros tudo o que tinham, sem brigas nem rancores. Tentávamos manter
as famílias juntas, mas havia pouca privacidade. Mesmo assim, muitas
crianças foram concebidas e nasceram durante a longa espera pelos passes
(CUSCHNIR, 1997, p. 42, 58).
Após meu amigo ter enfrentado o ator e o autor, subi ao palco e apresentei
minha filosofia radical. Clamei para derrubarem a instituição vigente do
teatro, a fim de criar um novo, que não seria apenas o “espelho do
sofrimento das coisas estrangeiras... mas atuaria no nosso próprio problema”
(CUSCHNIR1997, p. 91, destaque nosso).
- Nesse contexto, ele dizia que “O teatro das coisas últimas não é a repetição eterna do
mesmo, por necessidade eterna (Nietzsche), mas o oposto disso. É a repetição autogerada e
autocriada se si mesmo” (MORENO, 1984, p. 78).
- Clamava por um novo teatro, que representasse os problemas próprios do ator e do
público, que fosse de total imaginação e criatividade. Foi um escândalo, cuja consequência,
por sorte, foi apenas uma noite passada na prisão. Sua meta era debater contra os valores
vigentes, suas primeiras lutas foram axiodramática, cheias de intervenções aos valores
“caducos” moralistas.
- No segundo ano de medicina, fazia parte do currículo do curso assistir conferências.
As duas que mais o marcaram foram as seguintes: uma com Albert Einstein, no Instituto de
Física, em curta visita a Viena:
42
os encontro na rua, nas suas casas. Eu ensino as pessoas a representar Deus” (CUSCHNIR
1997, p. 70).
- Nas horas livres, comparecia a julgamentos e, ao voltar para casa, convidava as
pessoas para ajudá-lo a simular as situações. Representava os diversos papéis: Júri, juiz,
promotor, criminoso e formulava as sentenças, acertava bastante. Podemos considerar que
esses foram os prelúdios do treinamento de papéis, duplo, espelho e inversão. Já foi dito no
começo que a mãe é o primeiro ego auxiliar, assiste a criança de várias formas, uma delas é
traduzindo para o bebê o que ele sente, fazendo o seu duplo. Espelho é quando a criança
começa a brincar de ser o outro. Mais à frente iremos aprofundar um pouco mais.
- Os cinco saiam pelas ruas conversando com as pessoas, entravam em suas casas. Às
vezes todos frequentavam e acompanhavam as brincadeiras com as crianças em Augarten.
Uma tarde, em 1913, após uma sessão com as crianças, ele caminha só:
Depara com uma moça bonita sorrindo para ele [...] ela usava uma saia
vermelha berrante, uma blusa branca enfeitada com laços vermelhos que
combinava com a saia. Mal começaram conversar quando aconteceu um fato
inusitado [...] um guarda se colocou entre eles e a levou embora. A afronta e
o choque me levaram a seguir o par. Quando ela retornou indaguei o que
havia acontecido: - A polícia disse que não podíamos usar roupas tão
chamativas durante o dia porque poderíamos atrair fregueses. Somente ao
entardecer temos licença para isso.
[...].
Fiquei compadecido, com raiva e ressentido pelo abuso por parte dos
pequenos deuses da delegacia de polícia contra essas mulheres. [...] aqui se
achava uma classe inteira de gente segregada pelo resto da sociedade, não
por causa de sua religião ou caráter étnico, mas por seu trabalho. Elas eram
inaceitáveis para os burgueses, os marxistas, até mesmo para os criminosos.
Estes, após cumprirem as suas sentenças, são novamente pessoas livres. Mas
essas mulheres estavam perdidas para toda eternidade. Elas não tinham
nenhum direito civil. Não havia leis nem mecanismos sociais para proteger
seus interesses. As prostitutas haviam sido estigmatizadas como pecadoras
desprezíveis e pessoas indignas durante muito tempo em nossa civilização e
isso as fizeram aceitar esse fato como algo imutável (MORENO, 1992, p.
35).
- Após esta ocorrência, passa visitar as suas casas, sem desejo de reformá-las ou de
analisá-las. No começo elas ficaram desconfiadas, posteriormente, começaram a relaxar e
contar suas histórias. Formaram um grupo de discussão, para que elas pudessem se olhar
como seres humanos e lutar pelos seus direitos de cidadãs. Compõe uma equipe
multidisciplinar: um jornalista, um médico venerologista e mais tarde um advogado, para
representá-las no tribunal. Gradualmente elas vão reconhecendo os valores reais dos
encontros e passam a se instruir e a desenvolver saídas para aquela situação, até então
imutável. Começaram a cotizar fundos para as emergências das doenças, desemprego e
velhice.
- O nosso protagonista é estudioso e é também um homem de ação! Conectou a palavra
axiologia a ação e cunhou o termo Axiodrama. O lugar onde os valores não estivessem
somente no discurso, mas também na ação. Oportunizou o sentir, o viver as aspirações morais
do psiquismo individual e coletivo, como a justiça, injustiça, verdade, beleza, bondade,
complexos, perfeição, eternidade, paz, ética, inclusão, rejeição, paradigmas, imutabilidade.
Este movimento envolvia um sentido pleno, levando sempre em conta os valores e as
necessidades de uma sociedade e a sua luta por uma vida digna. Com essa perspectiva começa
a elaborar uma teoria e uma terapêutica diferenciada, onde os grupos e os indivíduos
43
pudessem sentir e discutir as condições necessárias para o desenvolvimento de suas
potencialidades, sua autonomia, tornando-se um ser social. Através deste incidente nasceu
verdadeiramente a Psicoterapia de Grupo:
- Tudo isso durou até o começo da guerra, quanto os cinco se separam: Chaim morreu,
acabou sucumbindo à tuberculose – o excesso de trabalho e as tensões dobraram e ele não
suportou: “Foi enterrado num cemitério campal. Ninguém sabe onde descansam os seus restos
mortais. Ele morreu assim como viveu, no anonimato (CUSCHNIR 1997, p. 60).
44
Feda voltou para Praga, Andreas Petö, para Budapeste, onde começou a
trabalhar com crianças com lesões cerebrais. Anos mais tarde, foi chamado
de “doutor milagre” pela forma que conseguia reabilitar tantos pacientes.
Existe uma clínica em Budapeste que traz seu nome [O Instituto Petö,
funciona até hoje]. Ficou famoso (CUSCHNIR, 1997, p. 79).
- Passa por mais um momento de retraimento, mas a reclusão dura pouco, afinal, os
últimos anos foram significativos para o encaminhamento de suas ações. Incorporou-se às
entidades de ajuda aos refugiados, inicialmente como estudante do último ano de medicina e
logo em seguida como recém formado. Trabalhou em dois campos de refugiados, um na
Áustria e o outro na Hungria (1915-1917). Veja como ele relata o fato na citação de Cuschnir:
Estudei uma colônia italiana com população de mais de dez mil pessoas,
durante a primeira guerra mundial, quando muitos camponeses, cidadãos
austríacos de ascendência italiana, foram removidos pelo governo austríaco
para o Campo de Mitterndorf, nas cercanias de Viena. A comunidade era
construída de cabanas simples, cada uma alojando várias famílias. No
comando de cada habitação havia “um capo di barraca”, homem que se
responsabilizava pelo bem estar daquele grupo. [...] O governo se preocupou
com três problemas durante o planejamento: segurança contra o inimigo,
saneamento e subsistência. O planejamento social e psicológico, porém, não
foi considerado, nem tão pouco concebido. Um grupo do qual participei foi
nomeado pelo governo para supervisionar a questão do saneamento da nova
comunidade. Neste cargo e, mais tarde como superintendente do hospital
infantil, tive a oportunidade de estudar a comunidade [...] (MORENO, 1992,
p.38).
- Nesta ocasião, observou as condições de vida daquelas pessoas, fez amizade com
Ferruccio Bannizone, psicólogo italiano, administrador do campo desde sua abertura em
1914. Ferruccio apoiou e contribuiu para que fosse iniciado um trabalho em que pudesse ser
levado em consideração as preferências das pessoas. Em 6 de Fevereiro de 1916, escreveu
45
uma carta ao ministro, recomendando uma nova ordem para organizar os grupos. A ordem
deveria ser a reciprocidade, ela os ajudava transpor as estações de grande dor e os
fortaleceriam para vencer as intempéries. Sobre este fato veja o relato:
- No campo ele desenvolveu uma vida comunitária completa. Experiência que germinou
a ideia do planejamento sociométrico das comunidades e a busca de parâmetros de
objetividade científica para as Ciências Sociais. Fez um estudo completo sobre a sociedade do
campo, usou critérios variados para os estudos das correntes psicológicas – observou que vilas
inteiras acostumadas com as montanhas do Tirol foram transportadas para área plana de
Viena, e jogadas sem seleção e sem conhecimento do meio ambiente, do sistema social, da
filosofia política, do seu sexo e da sua função comunitária. Ele considerou tais fatos como
fontes de desajustes à medida em que os atritos eram muitos e as pessoas estavam infelizes.
(MORENO, 1992, p. 38). Essa nova ordem de organização grupal é o cabeçalho da ciência
da sociometria, a ciência das redes interativas. Abraça mais que nunca os sinais do seu tempo,
com toda a sua tendência socializante contra os valores absolutistas. Nesse campo, Moreno se
envolve com o sofrimento das mulheres e das crianças em decorrência dos abusos sofridos, ou
seja, havia mergulhado nas suas vidas a tal ponto que, quando elas foram embora, uma parte
sua desejou partir junto. Participante ativo, fosse onde fosse, nos parques, nas ruas, nos
tribunais, nos campos de refugiados.
- Os anos anteriores haviam aprimorado o seu olhar versátil, astuto, aguçando a sua
percepção para novas habilidades. Conseguia mapear as constelações grupais com certa
clareza. A experiência com os jogos infantis dos jardins de Augarten contribuíram de maneira
significativa. Utilizava o “como se” e devagar ele foi percebendo as combinações grupais, as
afinidades, e foi agrupando as pessoas conforme seus interesses, em função da sua classe
social etc. Lentamente a comunidade tornou-se mais cooperativa. Suas instruções eram
simples: há um grupo ali fazendo tal “coisa”, quem deseja participar? A observação inicial
quanto à infelicidade da comunidade mudou de “prosa” e os frutos apareceram: eles, os
refugiados, se mostraram mais animados. Nesse contexto,
- Todos estes esforços nunca aliviaram a sua alma. Sempre que podia ir a Viena, à tarde
pensava: “Eu posso relaxar em um dos Cafés, mas para eles não há escapatória (CUSCHNIR,
1997, p. 82).
- Nesses passeios até Viena, conhece um novo grupo. Logo começa a pensar em
publicar um Jornal de Filosofia Existencialista, o nome do jornal deveria prestar uma
homenagem a um dos seus mestres: Sócrates. O Jornal se intitula Daimon – O Duplo Interior.
Corre o ano de 1918. O jornal é interessante é escrito por uma rede de quase todos os
intelectuais da Áustria. Eles estão tentando recuperar os destroços. Os jovens e os mais velhos
continuam se encontrando nos cafés, eles estão buscando alternativas para toda a
desintegração. Ele e um grupo encontram-se no Café Herrenhof ou no Café do Museum. A
46
turma do Café do Museum cria o Jornal Daimon. Eles são: Martin Buber, Paul Claudel,
(irmão de Camille Claudel), Nicholaus Cusanus, Otto, Stoessl, Georg Kaiser, Max Brod; tinha
um grupo de amigos literatos tchecos, entre eles, Robert Musil, Kafka, Otokar Brezina; eles
faziam parte do círculo maior em torno do Daimon. Franz Werfel era o mais íntimo dele, os
outros já estão mais velhos. O Jornal Daimon vai durar uns cinco anos.
- Neste ínterim, começa trabalhar em outro campo de refugiados. Foi para Sillein, um
campo na Hungria. Exerceu mais a prática médica, era assistente do Dr. Wragasy, “cirurgião
do cérebro”. Reagiu de forma imediata a essa técnica bárbara de “trepanação do crânio” e
aplicação de iodo no tecido exposto: “Nunca pude entender como o Dr. Wragasy chegara a
sua panacéia particular” (CUSCHNIR, 1997, p. 83).
- Ele era sádico. Os seus métodos serviram mais uma vez para abrir os seus olhos para a
natureza do poder. Em Sillein, o costume era colocar os refugiados recém-chegados em
rigorosa quarentena, como prevenção de doenças infecciosas. Ao examinar um grupo inteiro
de judeus ortodoxos, descobriu que eles estavam cheios de vermes. Foi dada uma ordem
estrita para que eles raspassem os cabelos e a barba. Os Judeus ortodoxos não queriam.
Mandou que os chamassem. Chegaram três idosos, o mais velho explicou que não poderiam
tirar a barba por questões religiosas. Um deles perguntou:
– Doutor o senhor usa barba e por que nós não podemos usá-la? Ou será que
sua barba é mais sagrada ante Deus que a nossa?
Bem, eu disse alisando a barba loura do meu queixo:
– Vocês estão enganados, não há barba no meu queixo. Abram os olhos.
Eles responderam: – Sim, Doutor.
- E com um enorme prazer os olhos dos velhinhos brilharam. Naquele dia, após longos
anos, chamou o barbeiro e cortou a sua barba. Na manhã seguinte pediu que os três voltassem.
Eles exclamaram:
- Pouco depois ele volta para Viena, sem barba e com dinheiro no bolso. Conclui o
curso de medicina e obtém o título no dia 5 de Fevereiro de 1917. Um dos últimos
certificados assinados pelo Imperador Francisco José. Sua mãe foi à cerimônia e “[...] voltou
para casa feliz e compensada por todos os anos de trabalho que ele havia dado” (CUSCHNIR,
1997, p. 84).
- A guerra chegou temporariamente ao fim. Os novos eventos fortaleceram ainda mais a
sua crença de nunca retirar da mente o reino encantado das crianças. O lugar do criador.
Inicia sua vida profissional em Bad Vöslau no ano de 1919. Aluga uma casa:
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Figura 8 – Foto da casa
alugada por Moreno em
1919; atual ‘Morenos
Museum’.
- Bad Vöslau fica a 40 quilômetros ao sul de Viena. Ganha dinheiro para executar os
seus projetos em Viena: ir aos cafés, ser redator do jornal e trabalhar com o Teatro
Espontâneo. Portanto, nos anos de 1919 a 1924, sua vida será dividida entre Vöslau e Viena.
Mantém os cabelos curtos e torna um médico tradicional, trabalhando na indústria têxtil,
ganha bem. Nas horas vagas exerce a medicina clínica e resolve não cobrar pelos serviços
prestados na cidade. Tornara-se avesso à psiquiatria tradicional, dois movimentos se
entrelaçavam fora e dentro dele: o expressionista e o existencialista, movimentos que
projetavam a visão de um mundo que pretendia compreender as necessidades singulares de
cada pessoa e não aceita as classificações sistemáticas na área de saúde mental. Escolhe ser
médico de família e do trabalho, sempre atento ao sentimento e ao corpo. Abraça o
subjetivismo e exige que a vida se apresente como é experimentada no aqui-agora. Sua
reputação cresce, passa a ser visto como um médico que se importava com os pacientes,
discutia os problemas com eles e as possíveis soluções, repetindo a experiência com as
prostitutas e a Casa do Encontro de Viena. Chamou essa nova forma de tratamento de Teatro
Recíproco: “Convocava a família, os membros próximos e os convidava para reapresentar de
novo situações que tinham inicialmente trazido o sofrimento” (MARINEAU, 1992, p. 78). Às
vezes, as pessoas começavam a rir ao ver suas representações: “Cada representação é
verdadeira, a segunda vez é uma libertação da primeira” (MORENO,1974, p.120).
- Segue em conexão com as suas propostas de sempre o Encontro, o Momento, o
Anonimato e aos poucos isso se transforma em um glamour para o povo. Tornou-se um
wunderdoktor. Um Doutor Maravilhoso. Situação que despertou e provocou ciúmes nos
outros médicos na cidade e falaram que ele era um charlatão. A Universidade de Viena
assegurou que ele era um Doutor em Medicina. Deu boas risadas e pensou no paradoxo:
“Quanto mais eu me ligo ao anonimato, mais conhecido eu fico. Meus esforços para tratar dos
pobres foram vãos” (CUSCHNIR, 1997, p. 107).
- Começa a ser procurado por pessoas de posses. Certo dia, uma filha e a esposa de um
burgomestre (prefeito), o procurou; estavam sem esperanças. Ao encontrá-lo, ficaram
espantadas pela jovialidade do Doutor.
- Percebendo o espanto de ambas, rapidamente Moreno diz:
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Sinto muito, mas meu pai não pode vir essa noite; está muito, mas muito
ocupado. Sou o seu filho, ele me deu todas as instruções e me disse o que eu
preciso fazer. As duas suspiraram aliviadas, entraram na bela carruagem e
foram até a Mödling. [...] A praça que ficava em frente a casa estava lotada.
A senhora informou: O Pai está muito, muito ocupado, mandou o filho. O
senhor sorriu! Foi examinado: Tinha pneumonia e problemas do coração.
Como ele recuperou, a fama cresceu. Agora falavam: existem dois, o pai e o
filho (CUSCHNIR, 1997, p. 108).
- Certa noite, outro burgomestre foi procurá-lo; bateram à sua porta. Frau Frank foi
chamá-lo. Vinha de uma cidade mais distante, Sankt Pölten. Era um “homenzarrão”, começou
a falar... Parou e disse:
– Eu não vim para vê-lo. Quero ver o próprio velho. Onde está o seu pai?
– Ele está muito ocupado o senhor terá que esperar muito tempo.
– Preciso vê-lo. Preciso. Onde é a sua sala?
– Talvez esteja em uma das salas em cima. Siga-me.
– Subiram todos os andares e procuram por todas as salas. Eram três andares.
Ele não estava lá! O senhor Prefeito olhou interrogativamente...
– Bem, esse é o ultimo andar. Ele pode ter ido ainda mais para o alto. Siga-
me.
– Foram até o topo, acima estava o céu de inverno coberto de estrelas. Olhou
bem dentro dos olhos do Senhor, apontou para o céu e falou:
– Talvez o seu consultório esteja lá.
– Emocionado tomou suas mãos:
– Compreendo. O Pai está muito ocupado (CUSCHNIR, 1997, p. 108-109).
- O prefeito queria se suicidar e em troca daria sua herança. Deixa claro que como
médico seu papel era o oposto. O prefeito ficou hospedado no hotel da cidade. Durante
semanas falaram sobre o seu plano de morte. O Senhor escrevia suas vontades e discutia
longamente as várias maneiras que queria morrer. Em seguida comia com apetite, pensando
que essa poderia ser sua última refeição. Atuava com o Senhor Prefeito em diferentes roteiros.
Esse foi o seu primeiro trabalho com um paciente internado; seguia um processo. Aos poucos
descobre mais um dado: o valor da atuação imaginária.
- Nas idas para Viena, começa a formar um novo grupo; um grupo de atores e atrizes
frequenta os cafés, o Edifício da Secessão e o Cabaret Fledermaus. Ainda tem o Jornal. A
verdade mesmo é que após intensa atividade sexual, durante a guerra, tornou-se novamente
celibatário. Vive um novo momento de Deus-encenado. Fica triste e constata: “A maioria das
mulheres não aceita o amante carnal junto com o Deus-encenado. [...] O Deus-encenado faz
dois pedidos à musa: que faça amor com ele fisicamente e que faça amor com ele
espiritualmente” (CUSCHNIR, 1997, 102).
- Aparece então Mariane Lörnitzo. Uma bela jovem de 18 ou 19 anos, muito loura,
olhos azuis, 1,70m, esbelta, muito segura e “sugestiva”: “Não toquei nela. Ela não tocou em
mim. Amei-a com os olhos, em meus sonhos. E imaginei que ela fazia o mesmo comigo”
(CUSCHNIR, 1997, p. 103).
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Figura 9 – Fotografia de Mariane Lörnitzo.
- Depois de Pia, na adolescência, Mariane foi a segunda mulher que tornou sua
existência maior, sua Segunda Musa. Inicialmente, atuou como secretária, depois passou a
acompanhá-lo nos atendimentos, ajudando, contracenando e atuando os pacientes nos seus
diversos roteiros. Mariane foi um grande ego auxiliar no caso do paciente suicida. Deu a ele a
possibilidade de expansão do Deus-encenado, a espontaneidade e a criatividade. Com ela,
pela primeira vez, Moreno confessa o seu íntimo, liberta a criança, o adolescente aprisionado.
Ela o acolhe e compartilha suas “vozes”, passam a viver uma “experiência interna mútua”.
Foi à plenitude total, finalmente chegou ao ápice da espontaneidade e criatividade e do
encontro. A maior epifania de todas. Era como se o universo estivesse em movimento num
número ilimitado de dimensões. Depois do Chaim, Mariane foi a primeira pessoa a quem ele
se revelou. Assim, nasce o livro: As Palavras do Pai. Toda a sua teoria, filosofia e os seus
conceitos futuros estão contidos nesse livro. Mais tarde iremos encontrá-lo no hospital de
Beacon EUA, permitindo que todos atuassem verdadeiramente no seu mundo e com os seus
papéis imaginários, com os seus egos auxiliares e o seu mundo auxiliar. Após um longo
período de conhecimento, iniciam a vida sexual e pensam em casar:
- O livro “arrebenta”, “sangra” toda a sua dor e questionamentos que batiam no seu
peito desde os 14 anos:
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AS PALAVRAS DO PAI
Cânticos:
Oxalá que todos os seres nasçam pelos menos uma vez! (PALAVRAS DO
PAI, 1992, p. 45).
Meu eu e o Teu Eu. Quantos eus somos nós? (PALAVRAS DO PAI, 1992,
p. 91).
Mariane foi uma parteira que liberou as palavras a serem ditas. Foi também
o outro significativo, através do qual ele pôde ser o criador de uma nova
“dinastia”. Não podia existir sem uma mulher... Eu era sem nome até que
falaste comigo (MARINEAU, 1992, p. 75).
- Até o final da faculdade, quando era necessário entrar no mundo real sair do
anonimato, ele assinava Jacob Levy. Quando criou o Daimon e foi para Vöslau, começou
assinar Jacob Moreno Levy. Lembra que o seu pai chamava Moreno Nissim Levy. “Moreno”
significa “professor” em hebraico. Lentamente, quando mais o pai se afastava, ele ganhava
51
em autonomia e criava sua própria dinastia. Ser “professor” era o lugar do jardim encantado.
Somou tudo e se batizou como Jacob Levy Moreno. O primeiro nome do Pai torna o nome da
sua descendência. A partir desse momento ele será Dr. Moreno ou simplesmente Moreno.
- Continua a frequentar Viena e com o Grupo de Atores principia um teatro diferente.
Sem script, sem ensaio, no improviso. Todas estas experiências abriram o caminho para a
primeira sessão oficial de psicodrama, num famoso teatro em Viena, em 1921. Na
apresentação, a tentativa era de expurgar a plateia de uma doença: o sentimento geral de
descontentamento e revolta que pairava em Viena do pós-guerra. Não há governantes. O
público era elenco e autor; a peça, sobre a situação.
- No dia 1° de Abril de 1921, convida a população para ir ao Kömödienhaus, entre as
7 e as 10 horas da noite. Ele está só. A plateia se compõe de mil pessoas:
Quando subiu a cortina, o palco estava vazio, exceto por uma poltrona de
veludo vermelho com moldura dourada e encosto alto, como um trono de um
Rei. Havia uma coroa dourada no assento da poltrona à espera de alguém
que o assumisse como um novo líder do mundo pós-guerra. Na plateia havia
curiosos, alguns apreciadores de escândalos, havia políticos, líderes
religiosos [...]. E, como outras nações da Terra, a Áustria estava inquieta, em
busca de uma nova alma (CUSCHNIR, 1997, p. 90).
- Ninguém foi aprovado, o mundo continuou sem líder. Mais tarde ele dirá: sempre
que se recordava daquela cena espantava-se com a sua ousadia, que custou a perda de alguns
amigos. A proposta sofreu severas críticas em Viena, tanto do público como dos jornais. O
jornal com a crítica mais favorável registrou no dia 2 de Abril:
- Uma das funções do “bufão do rei” é dizer a verdade através da ironia e das
metáforas. O palhaço na Corte do Rei era chamado de bufão, seu o papel era aconselhar ao rei
que, apesar do seu amplo domínio, era humano e não um deus. Certo dia, o bufão, exercendo
o seu papel, chamou a atenção do rei. O Rei mandou cortar a sua cabeça, passagem dolorosa,
que fez nascer uma lágrima no seu rosto. Palhaço não fala, não tem nome, é anônimo,
representa uma variedade de emoções que vão desde as lágrimas até o riso, está sempre
preparado para arriscar de novo e mostrar que o amor é o único ensejo de ser.
Este mito é longevo, dizem que ele existe desde o momento que Deus criou
o ser humano, mas o seu nascimento é um mistério. Os primeiros relatos
desse personagem vêm da Igreja Cristã Antiga. Na igreja dos primeiros
séculos, o palhaço participava na liturgia. Era ele quem despertava a atenção
das pessoas, interrompia os que não estavam atentos a Palavra de Deus,
inclusive o pastor, e questionava os membros da igreja. Seu nome era o
“Interruptor Divino”. Foi banido, por ser considerado incômodo às
consciências da época.
O papel inicial do palhaço era lembrar aos fiéis o zelo pela Liturgia pelas
Palavras de Deus, para o encontro com a Luz Divina. A palavra “Palhaço”
em algumas línguas quer dizer o “torrão de terra”. Sua figura serve para nos
fazer lembrar quem nós somos: mesmo que tenhamos o espírito de Deus
dentro de nós, um dia vamos morrer. A máscara branca é o símbolo da
52
morte, ao colocá-la ele morre e torna-se outro personagem. Representa o
trágico, a humilhação, o seu sorriso abriga um coração estilhaçado.27
[...] o que ligares na terra terá sido ligado nos céus: e o que desligares na
terra será desligado nós céus. Mateus 16.18-19.
- Não sei se o Jornalista ou ele mesmo sabia de tudo isso. Sendo assim, a matéria do
jornal é um super elogio. A estória da origem do palhaço encaixa exatamente com os
propósitos que ele desejava.
- Registrou: ninguém é profeta na sua própria casa. Ou seja: Santo de casa não faz
milagre. Logo após o ocorrido, encontra com o seu grupo de teatro no Café do Museum.
Acreditaram que apesar de tudo, aquele teatro era viável. Alugaram uma sala no topo de um
edifício residencial, onde cabia de 40 a 60 pessoas. Nascia O Teatro da Espontaneidade, uma
forma de arte viável e um local de encontro para artistas e intelectuais conhecidos. Pessoas de
fora faziam questão de frequentá-lo quando visitavam Viena. O material dramático era
sugerido pela plateia ou surgia da cabeça dos atores. Viajavam pela Alemanha fazendo
apresentações. Nasce O Teatro da Espontaneidade em 1921.
- O grupo de atores do teatro diferenciava do grupo da Casa do Encontro e do Jornal o
Daimon, que era só de homens. Havia mulheres no “bando”. A proposta era sempre
desafiante. Não havia perfeição estética. Quando a peça saia ruim provocava muitas vaias,
quando saia boa ninguém acreditava. Passaram a trabalhar com o jornal do dia. As pessoas da
plateia liam as matérias e escolhiam. As escolhas eram representadas pelos seus atores. O
nome: Jornal vivo:
- “O tom é terapêutico sociológico”. Antes de a peça ser encenada havia uma pesquisa
prévia e, ao final, os atores procuraram levar um tipo de “insight”, para plateia.
- Certo dia, um cara da plateia apaixonou por uma das atrizes. Seu nome era George e
o dela Bárbara. Bárbara era considerada a melhor atriz do Teatro, fazia com competência os
papéis de ingênua, romântica, feminina e pura. George, por sua vez, era um desconhecido e
atormentado poeta. Passado algum tempo eles se casaram. Preste atenção: ele apaixonou pela
atriz que no palco era sempre doce. Foi um fracasso!
- George procurou por ele, seus olhos estavam atormentados. Aquele ser suave,
angélico, não existia quando estavam a sós, agia como uma criatura endemoniada. Disse
George: “de doce ela não tem nada. Quando eu me zango ela responde com murros”. Quando
Bárbara subiu ao palco naquela noite, ele traçou uma nova estratégia. Bárbara passou de
mocinha para vilã. Naquele período, havia acontecido o assassinato de uma prostituta. Disse a
Bárbara: Você será a prostituta e Richard, um dos atores, será o bandido. Assim foi feito. A
atuação foi esplendorosa, o público ficou apavorado, achando que o fato poderia se repetir. O
público gritava: Pare! Pare! Este episódio e outros libertaram as suas amarras, Bárbara
começou a encarar e olhar a bruxa dentro dela. Foi sua libertação, o casal se separou. A
______________
27
Culto dos Palhaços. (Phyllis Reily e Ernesto C. Barros Juname em Lins/1979). Datas Especiais. Datas para
Celebrar. Disponível em: <http://www.bing.com/search?q=o+palha%c3%a7o+na+igreja+dos+primeiros+secul
os&FORM=WLETLB&PC=WLEM&MKT=pt-br>. Acesso em: 05 de maio de 2013.
53
Bárbara cresceu, George que era um tipo temperamental e provavelmente exigia maiores
cuidados, não foi visto, o foco desse enredo era Bárbara. Seus olhos não perceberam que
George merecia uma atenção especial.
- George se suicidou. Desta vez, o fato não ocorreu como a história do prefeito de
Vöslau. Nesta época ele não tinha o conhecimento suficiente sobre as correntes dinâmicas, e
as distorções da percepção entre as relações. Antes de Bárbara e George outro membro do
grupo também havia se suicidado. Estavam realizando “terapia dramática”, tudo parecia bem,
mas um dia Diora deixou Robert. Ele se suicidou no dia seguinte.
- Parece que Diora e Bárbara conseguiram desatar os seus “nós”, mas seus parceiros não
tiveram a mesma resposta. Mais tarde, ao aprofundar seus estudos sobre as patologias do
grupo, irá observar que há entre as relações uma “nuvem” complementar, uma medida
vincular desencadeante de cadeias eternas e recorrentes de um aprofundamento dos próprios
problemas. Assim, “Buscar a autodestruição, nestes casos, provoca a negação e a eliminação
da consciência, não do conflito. O conflito é eterno. O nó é cortado, ao invés de ser
desmanchado” (MORENO, 1984, p. 106).
- Se o nó é cortado e o outro mantém uma percepção destorcida da relação, o resultado
pode ser catastrófico. Há relações onde o nó serve para os indivíduos solucionar as suas
necessidades de amor. São as relações projetadas, que no contexto terapêutico ganham o
nome de transferência, isto é, atualizar as frustrações, o desejo do passado no presente. Neste
caso cabe ao Psicoterapeuta saber como manejar. Mas quando o nó ocorre no contexto da
relação familiar ou de casal, vários papéis podem ser desenvolvidos e representar várias
formas de se relacionar; uma delas é a relação da co-dependência. O papel do cuidador pede
o papel complementar do doente. Portanto, o cuidador passa a viver em função do “doente”,
praticando o cuidado através de um papel tutelar obsessivo, tornando a razão da vida do
cuidador. Os co-dependentes e seus dependentes parecem viver sobre um intenso sentimento
de culpa; buscando o reconhecimento do outro, cristalizam papéis e sentimentos que não
conseguem desvencilhar. Suas escolhas são ambivalentes e projetam sobre o mesmo
indivíduo, amor e ódio, atração e repulsão. As escolhas ambivalentes se baseiam em
percepções deformadas, e com grandes discordâncias entre as expectativas e os fatos. Nestas
circunstâncias é que um papel “doente” encontra o complementar desejado. A comunicação,
nestes relacionamentos, é escusa, as emoções não são expressas, criando expectativas
irrealistas. Há um pacto de silêncio mantenedor do equilíbrio caótico entre os pares. Bárbara
e Diora deixaram, ou não quiseram representar, o papel complementar que seus maridos
demandavam. É a hipótese mais cabível neste contexto.
- Para todo o papel existe um complementar saudável ou doente. O papel saudável é o
do Criador, o doente o da criatura. Só mais tarde é que ele irá descobrir que relacionar é uma
dança envolta por dimensões invisíveis, indo e vindo, de um para o outro. Dimensões que
podem ser sombrias, desajustadas levando a dança ao descompasso e ao ritmo frenético da
morte. No caso do George e Robert, eles encontraram a morte. O corte aconteceu antes de eles
aprenderem a se desligar ao se separar de suas parceiras. Também não cabia a elas
submeterem ao jugo da co-dependência de seus parceiros.
- Estas ocorrências deixaram marcas profundas. Novamente ele passa por um período de
intenso autoexame. Reflexões que o levaram a procurar soluções para aprimorar e elaborar
melhor o “lugar da cena”; inicia a criação de uma metodologia e averigua a importância do
aquecimento, a “cautela” nas intervenções e como explorar os papéis e suas relações. Novos
recursos terapêuticos começam a ser disponibilizados: Duplo, Inversão de Papéis, Solilóquio e
o Compartilhar, a plateia começa a ser incluída. Alarga sua produção e amplia ainda mais o
“Teatro Recíproco” nas casas com as famílias. Nasce do caso Barbara e George a
Psicoterapia de Casal e do Teatro Recíproco, a Psicoterapia de Família. Neste intervalo,
Moreno vive outro grande golpe junto a “trupe” do Teatro espontâneo: “A pior dificuldade
54
que tive foi ver os meus melhores alunos flertando com o clichê... [...] Em fase desse dilema
voltei ‘temporariamente’ para o teatro terapêutico” (CUSCHNIR, 1997, p. 94).
- Era muito difícil trabalhar só no improviso, aquilo não trazia a fama do Teatro
Tradicional. Era imperdoável um ator que não comungasse com a estética da conserva. Era
mais fácil defender 100% a espontaneidade num teatro terapêutico:
De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando,
a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido
antes de terminar. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada,
do sono uma ponte, da procura um encontro (SABINO, Fernando. O
encontro marcado. Editora Record, 1977, p. 145).
- Chegou a Nova York em Outubro de 1925. Um repórter perguntou a ele o que sabia da
vida da América. Falou-lhe sobre suas ideias e que talvez elas pudessem ser aceitas ali e
declarou: O mais notável sociologista e Godplayer americano de que posso me lembrar é
Walt Whitman. Outra figura marcante para Moreno nos EUA foi John Dewey, reconhecido
como um dos fundadores da escola filosófica do Pragmatismo. Realizou estudos (1910) sobre
a análise do pensamento em termos de adaptação. Ele foi o responsável pela aplicação do
pragmatismo à educação. Para ele, era necessário estudar a influência do grupo no indivíduo
para saber como educá-lo. Dizia Dewey que o sentido da vida é a ação e o valor da verdade
resulta do rendimento.
- Voltemos a Mariane. A América não foi como ele esperava. Os primeiros anos foram
anos difíceis. No começo eles se correspondiam, mas aos poucos... A nova vida foi tomando
conta. Ela ainda esperou por ele, mas depois casou-se, transformou-se; ao final, enviava para
55
ele todos os recortes de jornais de Viena que falava sobre suas conquistas, guardou suas
cartas. Morreu em 1984.
- Nas suas anotações ele escreveu:
- Ao chegar à América a luta no início foi grande. Sem muito sucesso com o gravador
ele tenta se restabelecer. Os primeiros cinco anos foram difíceis, separado de Marianne, sem
possibilidades de trabalho e com pouca perspectiva de recomeço; sofreu sérias dificuldades
econômicas. Esperou um bom tempo o reconhecimento de seu título de médico. Com
habilidade de adaptação e bons contatos com Dr. Bela Schick (o inventor do teste Schick para
imunização da difteria), inicia uma nova jornada, Bela interessou por seus trabalhos com as
crianças e por seu intermédio as portas começam abrir; realiza no Hospital Mt. Sinai o
primeiro role playing em uma instituição americana. Neste período, quase regressa para
Europa. Conhece a educadora Beatrice Beecher que, interessada pelos seus trabalhos sobre a
espontaneidade infantil, introduz o psicodrama com as crianças em Plymouth. Propõe-lhe em
casamento para ajudá-lo obter a condição de imigrante (legal) no país. Aceita a proposta e se
casaram em 1928, divorciando-se em 1939, como combinado, após a obtenção do visto. Em
22 de Setembro de 1927 seu diploma foi reconhecido. As coisas começaram a melhorar, volta
a atuar como médico, abre um consultório em Nova York e começa a dar conferências sobre
seus trabalhos de espontaneidade. Com carisma e determinação conseguiu ter ao seu lado
pessoas que se dispuseram em ajudá-lo. Outra foi Helen Jennings, considerada por ele como
uma grande Cientista Social. Helen o apresentou ao seu mentor e supervisor de sua tese de
Doutorado – Gardner Murphy. Através deste contato começa a se relacionar com pessoas
expressivas e a ter conexões com Psicólogos Sociais, Sociólogos, Grupos de Artistas e
intelectuais. Inicia um novo momento, consegue realizar alguns trabalhos, publicar algumas
obras e estabelecer importantes contatos com os psicólogos sociais americanos. Em 1927,
além de receber o certificado para exercer Medicina em Nova York, efetiva sua primeira
apresentação psicodramática, com o objetivo de difundir a espontaneidade e a criatividade.
Aprimora as técnicas do Teatro do Improviso, do Psicodrama do Jornal Vivo e da
Dramatização de Conflitos (axiodrama).
56
- Entre os anos de 1931 e 1932, Moreno desenvolve novas contribuições à comunidade
científica e introduz o termo Psicoterapia de Grupo ao participar de uma reunião da
Associação Psiquiátrica Americana; publica a revista Impromptu (a primeira do gênero sobre
o assunto). Trabalha com pesquisa sociométrica, analisando as relações interpessoais numa
prisão americana de Sing Sing (semelhante ao trabalho com os refugiados de Mittendorf).
Passa a ser diretor de pesquisa na escola de Reeducação de Jovens, localizada em Hudson.
Moreno inicia um trabalho utilizando a sociometria acrescida com as técnicas sócio-
dinâmicas, como o role-playing: treinamento de papéis. Moreno convidava as garotas para
representarem situações reais ou imaginárias, explorava os papéis que elas desempenhavam,
apresentava a analise de suas produções para que elas pudessem compreender o acontecido.
As meninas não eram repreendidas, experimentavam e reexperimentavam através das
dramatizações. A propósito dessa intenção terapêutica, Naffah Neto diz o seguinte:
- Nesta fase seus trabalhos estão direcionados para a investigação e mensuração das
relações interpessoais: a Sociometria. Era época de se fazer respeitar no meio científico;
renuncia novamente às suas ideias vanguardistas, preocupando-se em estruturar suas teorias.
Recebe apoio de Helen Jennings no mapeamento estatístico para o Livro “Quem
Sobreviverá?”, livro que reforça o ser criativo, critica as conservas e diz não ser preciso que a
Religião e Ciência estejam em oposição. Apresenta os resultados de sua pesquisa sobre
diagramas sociométricos com suas análises estatísticas na área da microssociologia. A
repercussão dessa obra foi tamanha que em 1937 é convidado a lecionar Sociometria na
Escola de Pesquisa Social de Nova York. Neste ínterim, acontece o famoso embate com o Dr.
A. A. Bril e a sua tese desenvolvida sobre Abraham Lincoln. O fato aconteceu numa sessão da
Associação Americana de Psicanálise. Nesta ocasião é possível ver que Moreno foi um
estudioso da psicanálise. O episódio encontra-se relatado no livro Quem Sobreviverá, nas
páginas 48 a 54 e no livro de René Marineau – Jacob Levy Moreno 1989-1974, nas páginas
133 a 136. Vale à pena ler. Essas são as indagações feitas por Moreno:
- Conhece Florence Bridge: casam-se em 1936 e ficam casados por 10 anos. Dessa
união nasce Regina Moreno. No entanto, seu casamento não lhe fazia feliz. Florence era
muito dedicada ao marido, mas não lhe proporcionava a parceria que precisava.
57
Figura 10 – Fotografia de J. L. Moreno, sua esposa,
Florence Bridge e Regina Moreno, filha do casal.
Ter meu próprio hospital foi uma espécie de libertação do sistema. Num
outro nível, foi análogo à minha experiência mais antiga de representar Deus
na idade de quatro anos. [...] Tive a brilhante ideia de voltar às fantasias de
minha infância. Naquele tempo, queria ensinar às crianças como se fazerem
de Deus. Agora, eu quis começar com os adultos, aqueles mais doentes
mentalmente, a fim de curá-los através do psicodrama. Ali, eu era Deus
usando o psicodrama como o remédio cósmico (MARINEAU, 1992, p. 142-
143).
- Durante todos esses anos esteve junto com o seu irmão, William. Seu irmão foi “seu
arrimo incondicional”; sempre estiveram juntos e “sabiam como usar a força um do outro para
minimizar as próprias fraquezas”. William havia chegado antes aos Estados Unidos. Ajudou
Moreno a fundar o Instituto de Sociometria em Nova York, contribuindo com tempo e
58
dinheiro. Ele era hábil financeiramente. O Livro Psicodrama, Volume I, foi dedicado ao seu
irmão.
- Em 1941 conhece Celine Zerka Toeman28, A Terceira Musa. Zerka chega ao
consultório de Moreno levando a irmã doente que fugia da Europa nazista. Um imediato
interesse e simpatia surgiram entre os dois. Gradativamente, tornou-se sua inspiradora, co-
terapeuta e parceira de pesquisas e de publicações subsequentes. Colaboradora notável e
insubstituível, tanto em sua vida quanto em sua obra. Nenhuma outra mulher havia entrado
tão profundamente na vida de Moreno. Ambos foram parceiros no amor e no trabalho. Zerka
foi mais que uma musa inspiradora, foi co-criadora, uma extensão dos seus pensamentos, seu
alterego em forma feminina. Em 1949 eles se casam. Zerka e Moreno tiveram um filho:
Jonathan Moreno.
- O sucesso chega. Viaja para dar conferências, aulas e atuar em Nova York. Em 1942
inaugurou os Institutos Sociométricos e Psicodramáticos em Nova York. Em Nova York,
mantinha dois consultórios: um em uma área pobre, atendendo as pessoas sem cobrar e o
outro em uma área rica, onde ganhava dinheiro. Nos anos 40 percebe a importância de criar
um fórum para os profissionais interessados em seus trabalhos. A vida impõe a Moreno
padrões e procedimentos de seleção para conceder diplomas no âmbito de sua organização.
Assim, o homem avesso às conservas culturais é obrigado a submetê-las para garantir sua
obra. Parece até que o modelo dos anos de Viena permaneceu... e cá está ele, cheio de várias
atividades...
- Começa ser solicitado cada vez mais em Nova York e a partir da década de 50, em
todo o mundo. Retorna à Europa (Paris) após de 25 ano; foi uma experiência comovente;
constrói pontes com alguns psicanalistas. No ano de 1955, Anne Ancelin Schützenberger
preside o Grupo Francês de Estudos de Sociometria, Dinâmica de Grupos e Psicodrama.
Realmente, ele agora entrava no vasto mundo. Anos mais tarde, em 1964, na abertura do
Primeiro Congresso Internacional de Psicodrama também em Paris, ele disse: “Se esse
congresso tem lugar em Paris é pelo que a França e o psicodrama representam para mim:
Liberdade, igualdade e fraternidade” (MARINEAU, 1992, p. 154).
- Nos anos de 1955 a 1958 tudo parecia bem: encontro com a musa, respeito da
comunidade e... acontece a maior dor de todas! Zerka teve que amputar o braço por causa de
um câncer. Zerka, que vinha sofrendo de dores no ombro desde 1955, após passar por vários
diagnósticos, o resultado conclusivo chega em maio de 1957: Condrosarcoma – uma
malignidade da cartilagem na junta do ombro. O médico sentenciou: “Não temos alternativa:
amputação ou a morte”. O tumor crescia a cada dia, a cirurgia deveria ser rápida para que o
câncer não atingisse o pulmão. A dor foi imensa, reflete: “A psiquiatria, o psicodrama, estão
fora desta questão. Não se pode conversar com os ossos...” No primeiro momento que soube
do diagnóstico, ele se afasta, retorna ao hospital às 17 horas para contar a Zerka a dolorosa
notícia. Ao se manifestar sobre este acontecimento, Moreno diz, segundo citação de
Cuschinir:
Durante os anos da doença de Zerka, fiquei cada vez mais atacado de artrite.
Sofri um primeiro ataque em Vöslau, quando era ainda jovem. Estava com
tal sentimento de desamparado e desesperado que era próximo ao ódio por
______________
28
Zerka continua a treinar e ensinar a teoria psicodramática desde a morte de Moreno. Zerka Moreno é
reconhecida como líder em trazer este método para a vida das comunidades em todo o mundo. Escreveu os
livros: Psicodrama de Criança, que foi publicado pela editora Petrópolis em 1975; Cantos de Amor à Vida,
publicado pela editora Psy II em 1995; A Realidade Suplementar e a Arte de Curar, que foi editado pela Ágora,
em 2001. Os seus muitos anos de pesquisa originaram o livro: A Quintessência de Zerka - São Artigos sobre
Psicodrama, Sociometria e Psicoterapia de Grupo – os dois últimos são Editados no Brasil pela Ágora.
59
mim mesmo. Meu conhecimento médico e meu Godplaying não valeram de
nada. Com a doença de Zerka acontece o reverso: O Deus da Humildade. O
Senhor me deu um braço direito e agora o tomou.
[...].
Nos quinze anos desde a sua operação Zerka tem assumido gradualmente
mais e mais os meus deveres, conforme minha artrite, (tem) aumentado de
gravidade. Ela se tornou uma administradora capaz, além de todas as outras
especialidades e qualidades pessoais que a tornaram uma psicodramatista
talentosa, pesquisadora sociométrica capaz, escritora, editora e professora.
Ela faz quase tudo o que fazia antes da operação, Ela dirige, costura, dança,
datilografa tudo, menos nadar (CUSCHNIR 1997, p. 148).
Figura 12 – Fotografias do Teatro (original) Bughton Place (USA) e de cenas diversas alusivas à
vida de Moreno e às suas atividades ligadas ao Psicodrama.
60
- Ei? Cadê você... Tá dormindo? Falei muito?
- Não, eu só estou de olhos fechados, curtindo a sombra da árvore. Tem mais?
Continuo achando que esse “cara” é “doido” consciente.
- Ele disse certa vez que sofria de megalomania normalis. Eu compreendo que ele quis
dizer: para ser grande na existência a coragem é essencial. Só ela é capaz de mobilizar o
coração e fazer todo o corpo entrar em movimento. Por isso a sua raiz advém da palavra
francesa coeur, cujo significado é coração.
- Bonito isso. Continua.
- Bom, vamos fazer agora um olhar mais retrospectivo, lá nas civilizações primitivas.
- Agora é arqueologia?
- É quase arqueologia do desenvolvimento social. Mas, o que importa? “O que importa
é alimentar gente, educar gente, empregar gente. História é gente. Descobrir e reinventar
gente são a grande obra da cultura”.
- Quem disse isso?
- Betinho. O Herbert José de Sousa, sociólogo. Irmão do cartunista Henfil e do músico
Chico Mário?
- Todos foram embora num rabo de foguete, né? “Meu Brasil que sonha com a volta do
irmão do Henfil / com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete / chora a nossa pátria”. Já
vieram e já foram... Até quem cantava já partiu. Vamos ficar quanto tempo mais em Viena?
V Calma. Aguenta a saudade do Brasil. Você está ficando boa nisso.
- Isso é interessante, a gente fala uma coisa e ela puxa outra e mais outra. Freud chamou
isso de “associação livre”?
- Sim! Tem muitos nomes além desse: ressonância, consonância, multiplicação
dramática, associação de cenas, contar “causo”. Mas, vamos voltar ao nosso Protagonista?
- Vamos. Esse menino de quatro anos e meio foi levado da “breca”. Cresceu, mas
manteve firme a proposta que fez neste jardim. Conservou a vontade e a coragem do olhar da
criança, sua estrela guia.
- Mas, isso não seria ingenuidade?
- Ingênuo? Nunca! Ele disse no livro “Quem sobreviverá?”, na página 90. Preste
atenção, é o seguinte:
- Com tudo isso, ele foi até ao final e batalhou durante os seus últimos 20 anos, para
construir o IAGP? Bom, acho que era o que faltava para ele também partir num rabo de
foguete. Deve estar agora fazendo a tal da Cosmoterapia.
- Como sabe disso? Essa parte do IAGP, não entrou aqui?
- Peguei-te... Mas cadê a arqueologia social, a ontologia, a deontologia, a psicologia, a
epistemologia, a sociologia? Foi por isso que o Betinho surgiu com toda a sua irmandade.
Aquilo que você ia dizer lá traz, cabe numa dessas “logias”. Afinal todas estudam o homem
na sua construção social, na construção do seu conhecimento, na construção da sua alma, na
evolução, nos seus valores e nos seus costumes. Cadê a retrospectiva?
- Posso falar? ‘Você agora tá com tudo e não tá prosa’. Queria dizer que nosso
Protagonista disse o seguinte:
62
- Corretíssima. Veja só uma amostra:
O seu berço em minha autobiografia pode projetar mais luz sobre o seu
nascimento. Esta exceção ao hábito intelectual de sobriedade pode ser
particularmente desculpável em virtude do modo como desenvolveu o
psicodrama. Não foi uma obra escrita que o introduziu (coisa que só
secundariamente aconteceu), nem um bando de escritores, colaboradores e
protagonista, mas as repetidas apresentações públicas. Comecei como
condutor de sessões para grupos maiores ou menores em diferentes lugares –
jardins, ruas, teatros, unidades militares, prisões e hospitais. Com efeito, um
impulso tão persistente no sentido de metas por mim próprio escolhidas,
apesar de uma opinião pública despreparada, deve ter profundas implicações
pessoais (p. 50).
É, portanto, 1931, o ano que a criança foi batizada. Que deve ser considerado
o verdadeiro início da psicoterapia de grupo científico (p. 28).
- Vamos voltar ao livro Psicodrama. Nesse livro ele fala que o psicodrama não tem
precedentes nos tempos históricos atuais, que devemos buscar sua origem no período pré-
histórico, nos ritos dramáticos primitivos.
- Espera, espera. Ele não vem do Teatro Grego?
- Não. Veja como ele diz no livro Psicodrama, na página 61: A palavra é uma
transliteração do Grego, isso significa uma forma de mapear um sistema, de transcrever a
escrita de um alfabeto em outro. Apesar de usar termos do teatro como: Papéis, protagonista,
catarse, sololóquio etc. Na realidade o Psicodrama nasce do improvisso, o mais próximo dele
63
talvez seja a Commedia dell’Arte Italiana. Mas a finalidade da commedia dell’Arte era
entretenimento e não terapêutica. Ha! Transliteração da palavra psicodrama quer dizer uma
“coisa feita à psique e com a psique − a psique em ação”. Entendeu?
- Muito interessante. A psique, a alma do sujeito para fora do corpo. Nossa, dá arrepios!
Já disse que parecia Ficção Científica, agora tá mais para filme de terror. Imagina a cena. Um
palco cheio de almas...
- Você disse tudo. Os povos pré-históricos utilizavam da dramatização para acalentar
seus medos, suas almas em conflito.
- Novamente, no livro Psicodrama, na página 62: Há alguns anos essa ideia foi
confirmada por um antropólogo.
- Já estou meio zonza de pular de livro para livro, de página para página. Mas enfim!
Antropólogo? Nossa! Esquecemos deste. Essa é a disciplina que investiga as origens, o
desenvolvimento as semelhanças das sociedades humanas, assim como as diferenças entre
elas. A palavra antropologia deriva de duas palavras gregas: anthropos, que significa
“homem” ou “humano”; e logos, que significa “pensamento” ou “razão”. Os antropólogos
comumente investigam as formas de desenvolvimento do comportamento humano,
objetivando e descrevendo integralmente os fenômenos sócio-culturais. Certo? Sabe, estou
achando que esse “cara” enquadra em tudo, até na Bioética. Será ele um gênio?
- SIM!
- Deixa-me terminar, o sol já vai se por! Bom, o antropólogo chamava-se Bernard W.
Aginsky. Ele, após ter assistido uma sessão de psicodrama, procurou pelo Dr. Moreno e
contou o seguinte fato: Acabara de regressar de uma expedição científica que o levou a uma
aldeia de Índios Pomos.
- O que são Índios Pomos?
- As tribos ou sociedades indígenas são classificadas através de afinidades linguísticas,
como Tupi, Macro-Jê, Aruak, Karib, Tukâno, Pomo, Guaykuru, formando, assim, tribos de
determinados grupos linguísticos, pertencentes ao mesmo tronco genealógico. Portanto, Pomo
é o nome de uma tribo de índios. O mesmo acontece com os civilizados: há os Europeus... Os
Asiáticos...
- O Bernard disse a Moreno, que nessa aldeia ele assistiu o seguinte procedimento:
- Muito bom! Esse Dr. Moreno é engraçado: briga com alguns e aparece aplaudindo
outros por realizar feitos iguais aos seus.
- Nota a diferença: uma coisa é ser furtado sem nunca vir à baila o seu nome, outra coisa
é encontrar as semelhanças. Nos Prelúdios dos Movimentos Sociométricos há um verdadeiro
desabafo sobre esses roubos de ideias.
- É uma música triste?
- Nossa! Agora você perdeu feio! Prelúdios quer dizer também prefácio. Têm momentos
muito tristes, mas tem alguns de dar risada.
- Conta um deles?
64
- Moreno disse que um dia estava passeando com um amigo e esse disse: Sabe qual a
diferença do psicodrama para psicanálise? Na psicanálise se morre por constipação e no
psicodrama por diarreia (MORENO, 1992, p. 34).
- Essa é ótima! Esse Prelúdio... Este texto está em qual livro, no Psicodrama ou no livro
Psicoterapia de Grupo e Psicodrama?
- Nenhum dos dois! Isso está no livro Quem Sobreviverá?, na página 34.
- Não! Mais um livro?
- Quero dizer mais uma coisa, sabe aquela do Bernard?
- O antropólogo?
- Sim. A dramatização que ele nos relatou é chamada no Psicodrama de Interpolação de
Resistência.
- Bom, nós sabemos o que um peru domesticado é capaz de fazer. Imagine...
- O que?
- Um peru selvagem? Ele pode arremessar agressivamente. Entretanto, o curandeiro fez
da sua dança frenética um ritual amoroso.
- O que tem isso?
- Ele subverteu a ordem. Será que os olhos perspicazes do doutor capturaram essa
mensagem? Afinal, sua vivacidade vem desde criança.
- Será que o cérebro dele era parecido com o do Einstein? Não era ele que dizia: “Que a
imaginação é mais importante que o conhecimento”?
- Pode ser.
- Nossa! Estava esquecendo um horrível detalhe.
- Qual?
- Você falou do Einstein e eu me lembrei da Segunda Guerra Mundial: agora é no livro
da Auto Biografia, nas páginas 151, 152 e153, Achou aí? Vou ler:
Ainda que essa guerra tenha sido a mais terrível da história por causa da
perfeição técnica do armamento, ela também foi a primeira guerra na história
que a psiquiatria se tornou um instrumento útil e importante no tratamento
dos feridos emocionais da segunda guerra. A psicoterapia de grupo tornou-se
o tratamento preferido nos hospitais do exército e também foi usada na
repartição dos prisioneiros de guerra. As pessoas ficam doentes num grupo;
elas também se recuperam melhor num grupo.
65
Figura 14 – Fotos: Memorial da Paz em Hiroshima e Marco Zero em Nagazaki, ambos no
Japão.
Quando Deus criou o mundo, começou por fazer de todo o ser uma
engrenagem. Fez com que uma peça movesse a outra e o universo inteiro
funcionaria como uma máquina. Isto parecia ser confortavel, seguro e
homogêneo. Foi quando ele repensou sua ideia inicial, sorriu e acrescentou
uma pitada de espontaneidade em cada uma das máquinas, causando
intermináveis problemas desde então − bem como intermináveis prazeres
(MORENO, 1992, p. 25).
- Após o término da Segunda Guerra, a disputa pela hegemonia mundial fica por conta
dos Estados Unidos e da Rússia comandando o Leste Europeu. É uma intensa guerra
econômica e tecnológica pela conquista das zonas de influência. O mundo encontra-se de
novo dividido em dois blocos com sistemas políticos e econômicos opostos: Capitalista e
Comunista. Essa nova Guerra Fria durará 40 anos e colocará o mundo sob a ameaça de uma
Guerra Nuclear. De um lado a Ditatura Militar do outro a Cortina de Ferro. O símbolo final
da Guerra Fria acontece no de 1989, com a queda do Muro de Berlim. Com ela a Alemanha é
reunificada e, aos poucos, dissolvem-se os regimes comunistas do Leste Europeu. Faz 21 anos
que o Muro caiu.
66
Oh! Tu
que nascestes,
todo o universo
é criado por ti
e com ele uma pequena partícula de vida
que se sabe que é
uma pessoa concreta: TU
Tudo isto nasceu contigo
tudo isto foi criado para ti
e agora pertence a ti. (PALAVRAS DO PAI, 1992, p. 101).
67
Carta Mágica29
Estou aqui para apresentar a “Carta Mágica do Psicodrama – Uma forma simples de
restaurar a harmonia e paz em um mundo de inquietação e tensão.
Proponho uma viagem para atingir o saudável, a vida afetiva, o suportar da doença, a
desgraça e a morte.
______________
29
A Carta Mágica – Livro: J. L. Moreno. O Psicodramaturgo – (1889-1989) Cem anos com J. L. Moreno. Ed.
Casa do Psicólogo – Revista Brasileira de Psicodrama (Vários autores).
68
4 BERÇO DO PSICODRAMA
Observação:
Interessante destacar as seguintes passagens sobre os feitos de J. L. Moreno:
“O axiodrama trata da ativação dos valores religiosos, éticos, e culturais na forma
espontânea dramática; o “conteúdo” original do Psicodrama é axiológico. Ao contrário das
afirmações encontradas em livros atuais, comecei o psicodrama de cima para baixo. Primeiro
foi o Axiodrama (1918), em segundo lugar veio o Sociodrama, (1921); o Psicodrama e, suas
aplicações nas doenças, foi o último estágio do desenvolvimento” (LIVRO PSICODRAMA,
p. 49).
O caminho mais curto para chegar à essência de uma ideia é explorar como foi
concebida e anunciada pela primeira vez: o Locus, o Status Nascendi e a Matriz.
Moreno procurou de forma incansável apreender as relações e seus efeitos. Nomeou a
Sociodinâmica como o estudo da interpretação profunda dos grupos isolados e unidos.
Consolidou teorias de desenvolvimento infantil, de grupo e concebeu uma metodologia de
tratamento com uma medida para as correntes emocionais (MORENO, 1992, p. 98, v. II). Em
Moreno há ininterruptamente um desejo intenso de pesquisar as relações sucessivamente
dentro de um sistema de rede, nunca excludente. O indivíduo só existe como um ser social,
como um membro de algum grupo social seguindo a estrada do desenvolvimento pessoal e
histórico. A composição e a estrutura de seus papéis revestem-se de um caráter intrapsíquico e
enterpsíquico dentro da evolução social. O escopo da sua ideação é compor toda a sociedade
através de pequenos grupos, formando uma rede de tratamento para toda a humanidade. O
ponto crucial é não separar o indivíduo da situação relacional iniciada antes do nascer,
incluindo todos os membros do grupo (família) como responsáveis por sua estrutura dinâmica,
atravessada pelas idealizações que tramitam em torno de cada indivíduo do grupo. Moreno
afirma, nesse sentido, sobre “Um indivíduo em relação ao outro. Um grupo em relação a
outros (MORENO, 1992, p. 109, v. II).
Não se analisa um indivíduo, mas o papel representado dentro do grupo, papéis
estreados, inaugurados dentro do núcleo familiar. No livro Psicoterapia da Relação, Fonseca,
junto com Maria Amália, dedicam um capítulo sobre o tema: Revisando a Terapia Familiar
69
(p. 289). Toda conglomeração teórica e metodológica de Moreno foi intencionalmente
desenvolvida para compreensão da organização psicológica desde a sua origem social
individual, tendo como meta a passagem da coesão grupal para coesão social. Os pequenos
grupos formariam redes, capacitando os indivíduos para grupos sociais mais saudáveis,
minimizando as disparidades sociais. Nesse contexto, nosso protagonista afirma que
“Qualquer que seja a ‘estrutura social’ é necessário determinar a ‘organização psicológica’.
As reações e respostas emocionais do grupo resultam em situação dinâmica, da ‘sua
organização psicológica’” (Moreno, 1992, p. 98, v. II) e acrescenta: “Um processo realmente
terapêutico não pode ter como objetivo toda a espécie humana” (MORENO, 1992, p. 117, v.
I).
A proposta é aproximar o homem psicológico do homem sociológico, cujo psiquismo é
a interação, a intersubjetividade, o Encontro das inter-relações. Com esse princípio
desenvolveu-se o conceito da Psicoterapia Interpessoal. No Psicodrama, a Ação, o Encontro,
o Momento e a Vivência de Papéis caminham juntos com a Palavra.
Ao se passar os grupos para os consultórios e instituições (Grupos Sintéticos) foi
necessário fazer algumas ampliações e adaptações. Os grupos passaram a ser formados por
pessoas estranhas. A meta era reunir uma miniatura da sociedade com todas as suas
representações das correntes emocionais dinâmicas: isolamentos, ambivalências, escolhas,
formação de pares, atitudes para angariar o carinho do grupo, figuras maternais, autoritárias,
minorias étnicas. Abarca nesta nova constelação o papel do psicoterapeuta/terapeuta com a
responsabilidade de desempenhar os dois papéis: Membro e Psicoterapeuta/Terapeuta do
grupo. Por conseguinte, duplicidade de papéis torna-se a pessoa mais vulnerável do grupo.
Como psicoterapeuta, transforma-se para os pacientes em um herói-terapeuta, representante
das figuras parentais e dos “protótipos” invisíveis. Protótipos (figuras coletivas atuantes em
todos os grupos), desencadeadoras do fator tele ou da transferência. Nesse sentido:
Psicodrama pode ser definido como o método que penetra a verdade da alma
através da ação. A catarse que ele provoca é por isso uma “catarse de ação”.
[...] Os problemas da sociedade humana, assim como o problema do
indivíduo − a representação de relacionamentos humanos − amor,
matrimônio, doença e morte, guerra e paz, que constituem a imagem do
mundo, podem agora, ser representados em miniatura, numa
“microrealidade”, dentro do grupo (MORENO, 1974, p. 106).
70
Constrói um tablado, um palco, para a produção do que há dentro de cada indivíduo e o
seu grupo, oficializa o mundo.
No começo era a existência, mas a existência não existe sem um ser ou uma
coisa existente. No começo era a palavra, a ideia, mas o ato era anterior. No
começo era o ato, mas um ato não é possível sem ator, sem um objeto, a
meta do ator, é um TU que ele encontre. No começo era o Encontro. E tu
estás comigo, [...] e então quer olhar-te com os teus olhos e tu me olharás
com os meus.
A palavra encontro abrange diferentes esferas da vida. Significa estar junto,
reunir-se, contato de dois corpos, ver e observar, tocar, sentir, participar e
amar, compreender, conhecer intuitivamente através do silêncio ou do
movimento, da palavra ou do gesto, beijo ou abraço, torna-se um só – una
cum uno. A palavra Encontro contém como raiz a palavra contra abrange,
portanto, não apenas as relações amáveis, mas também as relações hostis e
ameaçadoras... Encontro é um conceito em si, insubstituível. Move-se do EU
para o TU e do TU para o EU. Ele “é sentir a dois”, Tele.
O encontro de duas ou mais pessoas conduziu à formação de um pequeno
grupo, que se transformou no núcleo do “Nós” (MORENO, 1974, p. 78).
Significa mais do que uma vaga relação interpessoal. Significa que dois
atores se encontram não apenas para se defrontarem, porém para viverem e
experimentarem um ao outro, como atores por direito nato (MORENO,
1992, p. 170).
O sonho maior de Moreno era criar a “cosmoterapia”, o homem cósmico. Nesse sendo,
ela afirma que “O grupo terapêutico é, pois, não apenas um ramo da medicina e uma forma de
sociedade, mas, também, um primeiro passo no cosmo” (MORENO, 1974, p. 22).
Pierre Weil, (1924-2008), um dos precursores do Psicodrama no Brasil, diz que Moreno
falava que vivíamos numa “época espacial”: acontece, disse Pierre, que “Moreno falava e
escrevia sobre isto muito antes das primeiras viagens a lua”. No XIV Congresso Brasileiro de
Psicodrama em Belo Horizonte, realizado em 2004, Pierre, em conversa particular disse:
“Minhas últimas criações eu devo a Moreno. Demorei muito para compreender o que ele
queria dizer. Prestei ao Moreno uma homenagem quando criei o Cosmodrama”. Na
apresentação do livro Psicoterapia de Grupo e Psicodrama escrita por Pierre Weil,
encontram-se as seguintes citações de Moreno:
No Congresso de Barcelona afirmou textualmente:
Sei que tenho sido rotulado de paranoico por ter dito que sou Deus. Há nisto
um mal entendido; o que quero dizer é que Deus está em nós, em qualquer de
nós, inclusive em mim.
Em reunião particular, no Congresso de Internacional de Liège, na Bélgica, Moreno
afirmou que quando escreveu “Palavras do Pai, Convite a um Encontro”, ele o fez numa
noite em que recebeu uma “inspiração”. Tendo escrito a noite toda.
No livro A Coragem de Criar, de Rollo May, da Editora Nova Fronteira, na página
39, está escrito o seguinte:
O processo criativo deve ser estudado, não como o produto de uma doença,
mas como a representação do mais alto grau de saúde emocional. [...] a
criatividade, como define o Webster, é basicamente o processo de fazer, de
dar a vida. [...] O primeiro fator que notamos no ato criativo é a natureza de
“Encontro”.
72
5 METODOLOGIA PSICODRAMÁTICA
a) Diretor:
– é o agente terapêutico. Tem várias funções: dirigir e analisar a cena, ampliar e
incrementar a cena, focalizando a história do indivíduo ou grupo. Cabe salientar a importância
da formação teórica, metodológica e pessoal do Diretor, pois só assim ele poderá
N instrumentalizar recursos para a execução clara dos aspectos transferenciais e télicos:
b) Ego-auxiliar:
– Moreno traz esse conceito da experiência do primeiro cuidador: Mãe. Aquela que
auxilia e complementa as primeiras experiências da criança. A função dele no cenário do
psicodrama é ser o ator (coadjuvantes) que representa as pessoas ausentes ou mesmo o
protagonista, interagindo e executando a ação. Ele é o veículo que compõe o cenário.
Importante também ter a clareza de suas emoções para que não interfiram na história do
protagonista ou na direção. Nesse contexto, Moreno ressalta o seguinte:
73
c) Protagonista:
– é o ator central. Termo de origem Grega que significa aquele que se oferece a ação
em primeiro lugar; que se oferece para sofrer e morrer no lugar do outro. Segundo o
conceito de papéis e espontaneidade, essa metáfora é verdadeira. O protagonista apresenta,
“doa” o seu íntimo para o grupo;
d) Palco/Cenário:
– é o lugar da representação do mundo físico e do mundo intersubjetivo;
e) Plateia:
– são os componentes do grupo, beneficiados pela entrega do protagonista. A plateia
pode funcionar como caixa de ressonância e consonância. Na metodologia Sócio Educacional
e Organizacional o protagonista é a plateia, ou seja, o grupo como um todo é o protagonista,
– o Psicodrama, originalmente, era utilizado em um “setting” grupal. Com sua
evolução temos hoje: Psicodrama Bipessoal, Psicodrama Interno, Psicoterapia da Relação.
Além da modalidade Psicoterapêutica, o psicodrama possui vasta aplicabilidade no campo
pedagógico e empresarial, lugares onde o privado se torna coletivo, o protagonista não é o
indivíduo, mas o grupo. O foco da sua instrumentalização encontra-se no Treinamento de
Papéis (Role-playing), no Sociodrama, na Sociometria, no Axiodrama, e no Jogo Dramático,
aprimorando a aprendizagem e a estrutura criativa dos grupos, abrangendo toda organização
Empresarial e Escolar. Nesse contexto, recebe o nome de Psicodrama Foco Sócio
Educacional e Organizacional.
a) individual:
– é a concretização dramática de todo processo privado;
b) grupal:
– é a interação dramática do pequeno grupo com os desdobramentos latentes, seus
manifestos e seus “ruídos”;
c) social:
– visa a mobilizar as interações dos papéis sociais – diz respeito ao grupo como
sociedade.
a) aquecimento:
– é a primeira etapa de toda sessão de Psicodrama, como também de qualquer outro
procedimento da Sociatria: Sociodrama, Jogo dramático, Treinamento de papel, Teatro
Espontâneo etc. Warming up é a preparação para sessão e consiste no conjunto de
procedimentos que atua para estabelecer os canais de comunicação e maior aproximação entre
o diretor e o protagonista. O aquecimento é o agente canalizador das energias para a ação.
Possui duas subetapas:
• Inespecífico: inicia a sessão. O terreno. O primeiro momento do encontro. Seu
objetivo é diminuir a tensão, propiciar um ambiente de acolhimento,
74
• Específico: começa no momento da construção da cena, com o aquecimento do
personagem, privado ou público;
b) dramatização;
– é todo o processo da atuação; é o “como se”; a Realidade Suplementar: a
utilização das técnicas em concordância com a matriz do indivíduo ou do grupo; é o núcleo de
toda a Sociatria;
c) compartilhar:
– Sharing: trocas do protagonista, platéia e direção; ressonâncias, consonâncias, do
protagonista e da plateia; é uma catarse de integração, a interação dinâmica do corpo com os
pensamentos e emoções;
d) processamento:
– é a análise do processo: o diretor encaminha o grupo ou o indivíduo para a reflexão
cognitiva sobre os procedimentos e o prosseguimento para as aquisições de novos papéis. É
um momento pedagógico. É importante ouvir as opiniões dos elementos que atuaram na cena,
as opiniões dos que assistiram, e fazer uma reflexão sobre a ação e incrementar os
encaminhamentos necessários para as ações posteriores.
75
6 O SISTEMA SOCIOMÉTRICO30
a) Sociodinâmica:
– é a ciência da interpretação do estudo profundo dos grupos isolados e unidos e a
sua estrutura dinâmica. Estuda o funcionamento das relações, a interpretação de papéis, a
representação espontânea de papéis, o estudo da organização, compreensão e evolução dos
grupos; é um diagnóstico, uma técnica de aquecimento para a ação e dramatização. Os
principais instrumentos da Sociodinâmica são:
• A interpretação de papéis. Role playing – Treinamento e
adequação de papéis.
• Representação Espontânea de Papéis.
______________
30
Apesar de a Socionomia constituir o conceito geral, que compreende a “Sociometria”, como conceitos
secundários conservaram no título dessa parte a palavra “sociométrico”, como designante do sistema, uma vez
que, historicamente, a palavra “sociométrico” é a que mais se afirmou para todo este domínio científico (LIVRO
PSICOTERAPIA DE GRUPO E PSICODRAMA).
76
b) Sociometria:
– Metrein = medir = Medida das relações sociais com as suas estruturas espontâneas,
criativas ou conservadas dos grupos. Estuda a qualidade e a quantidade das correntes
emocionais, a qualidade e a quantidade dos vínculos com as forças de atração e repulsão. A
organização grupal com suas redes sociométricas, de comunicação e grupal. Permite conhecer
a posição dos indivíduos no grupo: as redes sociométricas do grupo, seu líder popular, líder
socioafetivo, membros isolados, rechaçados, com o seu status sociométrico (cotas de amor e
simpatia). Átomo Social (relacionamentos do sujeito e o grupo). A capacidade Télica –
transmissão, recepção e percepção de sentimentos das funções e dos papéis assumidos por
cada componente do grupo,
– o instrumento da Sociometria é o Teste Sociométrico, que consiste na análise
sociométrica, auxilia na investigação de processos complexos relacionados a escolhas,
aceitações, rejeições, mútuas ou não, que configuram uma realidade social não aparente e que
por muitas vezes estão em dissonância com a verdade oficial sobre as relações. A atuação
grupal e o seu co-inconsciente. Moreno afirma que em qualquer vínculo que se estabelece
existem entre os envolvidos, paralelamente, aspectos claros e conscientes e outros
inconscientes, que vão se acumulando durante as experiências compartilhadas. Pode se
entender por aspectos inconscientes, desde conflitos inter-relacionais, até momentos
traumáticos vivenciados e não elaborados;
c) Sociatria:
– Iatreia = terapêutica = Ciência dos tratamentos dos sistemas sociais. Para processar
o tratamento das estruturas inter-relacionais: o indivíduo e o grupo possuem diferentes
enquadre com objetivos terapêuticos ou psicoterapêuticos específicos. Seus instrumentos são:
• Psicoterapia de Grupo,
• Psicodrama,
• Sociodrama,
• Jogo Dramático,
• Psicodrama Individual,
• Psicodrama Bi-Pessoal,
• Psicodrama de Casal,
• Psicodrama Infantil,
• Sociodrama Público,
• Sociodrama Institucional,
• Sociodrama Educacional,
• Sociodrama Familiar,
,
O Universo Social possui três dimensões e caracterizam a Tricotomia Social. Estas três
dimensões são as seguintes:
77
Matriz Sociométrica – são as estruturas sociométricas invisíveis, mas que se
tornam visíveis através do processo sociométrico de análise da configuração
grupal, ou seja, como se dão as escolhas dentro do grupo, a existência de
subgrupos. A Matriz sociométrica consiste em várias constelações de átomos
interligados de correntes ou de redes interpessoais. É o que há de interno nas
relações.
Realidade Social – constitui-se na síntese dinâmica e na interpenetração da
Sociedade Externa e Interna e na Matriz Sociométrica, ou seja, a Realidade
Externa e Interna. Cada Indivíduo com o seu Átomo Social encontra com
outros indivíduos com seus Átomos Sociais e forma-se uma constelação de
Átomos Sociais que são as Redes Sociométricas (MORENO, 1992, p. 181-
182, v. I).
78
Moreno (1992, p. 188, v. I), seu objetivo é o “tratamento das Relações intergrupais e das
ideologias coletivas”. O seu Protagonista é o Grupo.
Após o que já foi exposto, fica fácil compreender porque o nome historicamente
conhecido é o Psicodrama. É respeitável salientar que o procedimento é o mesmo para toda
Sociatria. A diferenciação ocorrerá de acordo com o espaço estabelecido: Privado ou Público.
Moreno nos convida sempre a pensar em Metodologia e não em Técnicas. Metodologia é
um processo, um caminho para se alcançar a meta, o fim; técnica indica como realizar o
fim. É importante salientar que a teoria, a visão de homem em Moreno, é uma só, ou
seja, ele é um ser de relação.
Entretanto, a forma de conduzir o Psicodrama Sócio Educacional e Organizacional
difere do Psicoterapêutico.
No Foco Sócio Educacional e Organizacional não se remexe com o passado, com as
dores e as feridas individuais. Contudo, seu efeito terapêutico é imensurável. O objetivo é a
educação e não a psicoterapia; sua formação abrange um cenário maior de profissionais; os
protagonistas do contrato são os clientes, alunos, grupos sociais e não os pacientes.
O Psicodrama Sócio Educacional e Organizacional situa-se dentro de um amplo
esquema, enfatizando-se a necessidade de promover condições adequadas às manifestações
criativas nos diversos domínios sociais e pedagógicos. Há inúmeras formas de se realizar a
cura e o processo de aprendizagem dentro da visão moreniana.
Vale lembrar aqui, que o primeiro papel desempenhado por Moreno foi o de Educador,
com as Crianças nos Jardins de Augarten. Segundo o próprio autor, tudo começou com o
Axiodrama e o Teatro nas mais diferentes modalidades, mas sempre baseado no improviso e
na educação social, fosse onde fosse. O psicodrama como é conhecido hoje, para tratar a
“doença” enquanto estrutura psíquica, só aconteceu mais tarde. Em Moreno, a “doença” é um
fenômeno grupal e social, o que se pode observar através dos seus trabalhos desenvolvidos
primeiro em Viena e depois nos Estados Unidos. Nestes trabalhos, Moreno mostra como os
Grupos e os Indivíduos adoecem em função das “correntes interativas”, ou seja, do seu
sistema relacional Homem e Cosmos. Moreno descreve o mapeamento da comunidade no seu
trabalho com os refugiados do Tirol durante a Primeira Guerra Mundial. Portanto, há que se
pensar que em todo projeto científico moreniano existe sempre um Projeto Sócio Educacional,
uma abordagem metodológica ativa que produz aquisição de novos conhecimentos e
treinamentos de novos papéis, seja na escola, nas organizações, nas comunidades ou com os
indivíduos.
O Psicodrama traz ao homem o lugar de onde é possível vê-lo, sua mente e corpo com
toda sua abrangência emocional colocada para fora, no palco. Ao inserir uma metodologia que
privilegia a estética, o psicodrama expande a cognição, favorece a aprendizagem e a
construção ética à medida que sua atuação abrange todas as áreas da percepção do homem.
O Diretor e os egos auxiliares, na Sociatria, após estabelecerem conjuntura do grupo
(privado/público) que irá processar a metodologia psicodramática, seguirão aquecendo junto
ao protagonista (individual/grupo) o caminho para o desenvolvimento da montagem da cena e
sua dramatização.
Durante as etapas, vários recursos técnicos são utilizados e os mais importantes são:
Duplo, Espelho, Inversão de Papéis, conceitos desenvolvidos por Jacob Levy Moreno,
baseado nas Fases da Matriz de Identidade, consideradas como as Técnicas Básicas. Estas são
recursos que viabilizaram à terapêutica uma movimentação de papéis conservados para
79
aquisição de novos papéis, exigindo-se do Diretor um olhar sobre o protagonista como um ser
criativo, cujo fenômeno da espontaneidade é o seu componente principal.
80
[...] para que haja um real desenvolvimento é importante a experiência da
“totalidade” – o contato ativo com a coisa “em si”. (p. 200)
Experiência viva – [...] quando passamos a considerá-los não meramente
objetos... Mas como membros de uma grande família (p. 201).
Verifica-se que Moreno é extremamente cônscio no seu e indica a Socionomia como a
Ciência das Leis Sociais, pode-se ver todo o seu aspecto convergente e o seu formato
associativo: ciência, valores e construções éticas. No passado, ciência, filosofia e ética
estavam juntas, seguindo um caminho, mas a tecnociência desencadeou um caos, por
dissociar ciência e valores. Nesse rumo, Moreno (2006, p. 424) diz que “O homem se volta
mais e mais para uma função de conservas culturais e tecnológicas, premia a força e a
eficiência”.
Cada ciência, ao pretender transformar-se em recorte absoluto, exclui da rede os valores
e a ética, reduzindo o conceito de homem a coisa, ou a um simples número. Com o ser
humano contido, a lei passa a ser: os fins justificam os meios. Mas o homem em Moreno é
criador, possui espontaneidade e não um protocolo rígido. Todas as ciências são estruturadas
em parte com todos os seus absolutismos; se elas se propusessem estudar as interações sociais
obsecradas por Moreno, talvez fosse possível ter hoje um novo mundo. No passado as
ciências buscavam a harmonia com a natureza, mas assim que o homem deixou de ser o
centro da criação, o protagonismo humano começou a dissipar e foi sendo substituído por
uma “coisa humana” que é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Chegou-se ao que preconizada
Moreno. Há hoje uma grande necessidade de uma ética em todos os sentidos. A Bioética está
de volta. Mas vale aqui pensar nessa junção: Axiodrama e Bioética.
Se Moreno tivesse vivo diria: A grande questão é transformar as ideias em ação dentro
de um grupo. Ainda hoje, falar de métodos grupais é assustador para alguns. Em Psicoterapia
de Grupo um terror, uma verdadeira invasão da privacidade. Alguns acreditam que as
discussões entre pessoas provocam afastamento e que podem deixar sequelas graves, mas isto
só ocorre quando não se distingue as pessoas das ideias. Saber dar dignidade à pessoa humana
e conduzi-la com respeito é uma aprendizagem grupal e não individual.
Neste contexto, José Fonseca afirma:
Através deste pequeno enunciado, Moreno deixa claro que o ser humano é relacional,
um ser de vínculos, um ser interpsíquico. O intrapsíquico se formará através das relações
vinculares, dentro de um processo psicodinâmico, desenvolvido por uma longa série de
integrações vinculares, desde os primórdios da Matriz de Identidade. O conceito de Matriz é
um dos núcleos básicos do pensamento moreniano. É nela que se inicia a Rede de Relações,
com todo o seu Universo de Ações e Interações Fundantes de Encontros e Desencontros, que
levarão os indivíduos através da aprendizagem a Tomar, Desempenhar, Treinar e Criar Papéis
e a se constituírem de forma Evolutiva e Dinâmica dentro do Átomo Social. É necessário
compreender que a Matriz proposta por Moreno não ocorre de forma linear. Cada criança tem
seu próprio tempo e segue um contínuo desenvolvimento. A constituição do indivíduo se
estabelece por interações do organismo com os fatores socioculturais e sua força criativa e
construtiva. Portanto, para compreender a identidade humana em Moreno, há que se levar em
conta o conceito de Matriz, o Locus, o lugar do nascimento dos “acontecimentos básicos”:
O Conceito de Matriz de Identidade (MI) é o ponto de partida, nela inclui tudo o que há
a sua volta: clima psicológico, expectativas quanto ao papel do bebê, o lugar, o espaço que ele
vai situar no grupo:
A Matriz de Identidade irá dissolver de forma gradual, à medida que a criança cresce em
autonomia, diferenciando as “coisas reais” das “coisas imaginárias” e declina a sua
dependência dos egos-auxiliares. Os atos da realidade e os atos de fantasias começam a se
organizar mediante as Interpolações de Resistências, impostas pelo meio social, pelo tempo,
espaço etc. As derivas, as “pedras no meio do caminho”, tudo aquilo que frustra, que fere o
narcisismo e compele o indivíduo para uma nova conduta.
O Primeiro Universo é formado pelos Papéis Psicossomáticos; a fusão da realidade e
fantasia, a Fome de Atos, os papéis fundidos e indiferenciados da Identidade Total, com sua
vivência simbiótica, começam a decrescer gradativamente em intensidade, iniciando a
Brecha entre a Fantasia e a Realidade:
83
Não se trata de abandonar o universo do imaginário em favor do universo da
realidade [...] mas antes definir os meios pelos quais o indivíduo pode
adquirir um completo domínio de uma situação, vivendo nas duas vias e
capaz de passar de uma para a outra. A personalidade passa a estar
normalmente dividida. Formam-se dois conjuntos de aquecimento
preparatório – um de atos de realidade e outro de atos de fantasia. [...] Na
brecha ente a fantasia e a realidade começam a existir dois conjuntos de
papéis [...] a divisão de papéis reais e fictícios (MORENO, 1984, p. 123-
124).
Vale lembrar aqui, que o Primeiro Berço do psicodrama nasceu dessa divisão. Brincar
de Deus, jogar o Jogo de Deus é um momento da passagem da fantasia para a realidade.
Através dos jogos de papéis (brincadeiras) com figuras reais ou protótipos, a criança apropria
de maneira gradativa o lugar do “Eu” e do “Outro” no mundo. O declínio gradual dos
fenômenos fundidos, reais e fictícios, insere a criança dentro de um novo contexto, é o
estágio do SEGUNDO UNIVERSO. A criança começa estabelecer o que há nela para o seu
prazer imediato e o que há separado dela. A estreia da consciência da realidade e fantasia
contribui para uma transformação total na Sociodinâmica do Universo Infantil, acarretando o
surgimento de novas formas de representação; o TU começa a surgir na dinâmica evolutiva
dos papéis, na relação com as pessoas, as coisas e as metas. Inicia-se a fase da inversão, que
é a capacidade de transferir de um a outro o ser no mundo lançado em sua existência, através
de uma longa série de integrações. O EU se constrói a partir destas representações e das
integrações dos papéis relacionais. O papel é uma experiência interpessoal indivisível que
brota da relação vincular intersubjetiva do EU-TU.
A dança contínua entre fantasia e a realidade com toda a sua abrangência emocional-
social lançam o indivíduo para condição: o Criador – Co-responsável por todo o cosmos. O
ser de transcendência.
Desde o início o bebê irá ocupar um espaço de nascimento, seja de inclusão ou
exclusão, um espaço virtual, com toda gama de expectativas. Esse é o pontapé inicial de toda
organização psicológica. Aos poucos a criança irá reconhecer o outro e a si mesma; lado a
lado com o seu papel complementar. Para a composição de todo o espaço gestacional
interpessoal, Moreno define que a Matriz de Identidade representa as fases mais remotas do
desenvolvimento, seu lugar não é só da placenta biológica, mas é também o lugar da placenta
social, o lugar da comunicação familiar com toda sua rede de “mitos”. Desenvolve três
fatores que irão representar a importância do lugar como um todo: Locus, Status Nascendi,
Matriz. O terreno preparado, fertilizado, com tudo que há em sua volta, propiciará o
nascimento.
Moreno descreve cinco etapas da formação da Matriz, que depois resume em três:
a) fase da Indiferenciação: onde a criança, a mãe e o mundo são uma coisa só. O EU
e o mundo imediato é a mesma coisa. Isolamento Orgânico;
b) fase onde a criança concentra a atenção no outro, esquecendo-se de si mesma;
c) movimento inverso: a criança está atenta a si mesma, ignorando o outro;
d) fase onde a criança e o outro estão presentes de maneira concomitante; a criança já
se arrisca a tomar o papel do outro, embora não suporte o outro no seu papel;
e) fase na qual já se aceita a troca de papéis (inversão de papéis).
Depois ele agrupou as fases, dividindo-as em apenas três:
84
a) Fase do Duplo: fase da indiferenciação, onde a criança precisa sempre de alguém
que faça por ela aquilo que não consegue fazer por si própria, necessitando, portanto, de um
ego-auxiliar. Dependência total – Papel Psicossomático – Corpo – Isolamento Orgânico.
Papéis aglutinados;
b) Fase do Espelho: diferenciada; existem dois movimentos que se mesclam, o de
concentrar a atenção em si mesma, esquecendo-se do outro e o de concentrar a atenção no
outro, ignorando-se a si mesma (exemplo disso pode ser o de quando a criança olha a sua
própria imagem no espelho e não se identifica como ela mesma, ela só diz: olha o nenê.).
Percepção à distância – Tele – início da separação – Reconhecimento do TU – Brecha entre
Fantasia/Realidade – Papel Psicodramático;
c) Fase de Inversão: em primeiro lugar, existe a tomada do papel do outro para em
seguida haver a inversão concomitante dos papéis. Psicossocial – Papel Social:
85
Fases da Matriz de identidade
Desenvolvimento Evolutivo
*Onipotência
*Imaturidade Neurológica
1oUniverso *Aprendizagem através do corpo.
Vincular: *Registros Corporais
Matriz de Identidade
Matriz Materna * Fome de Atos. Condutas Básicas-
Total Indiferenciada
Placenta Ansiedade Básica. Egocentrismo-
Fase do Duplo
Biológica imediato.
Papel Psicossomático
*Vínculo-Mãe/Filho-Dependência/
Mãe (1o Cluster)
incorporação, sincretismo absoluto.
(Acolhedor)
Matriz de *Atos Fundantes - O Ato é anterior a
Identidade Palavra - Moreno.
Placenta Social *Adoção de Papéis. Papéis Reais e
Imaginários aglutinados.
*Início da distinção espacial: próximo-
longe. Interno-externo.
Relações
*Início do discernimento - sujeito-
Assimétricas
objeto-meio.
*Diferenciação do não-eu. Sonhos.
Matriz de Identidade
*Queda da Fome de Atos.
Total Diferenciada
*Início Separação- Brecha:
Fase do Espelho
Fantasia/Realidade
Papel Psicodramático e
*Início do Fator Tele - relação distância.
Papel Imaginário
*Papéis Fundantes - Desempenho no
Pai (2o Cluster)
mundo real/fantasia. Dimensão do EU
(Operativo)
Psicológico/ Psicodramático.
*Concentração em si - Reconhecimento
do Eu.
*Concentração no Tu - Reconhecimento
do outro (Papéis ativos).
*Consolidação da Brecha entre
fantasia/realidade - Percepção das
limitações, da Onipotência - Fome de
2oUniverso Relações Transformação. “O paraíso perdido se
Vincular simétricas transforma em terra prometida” -
Inversão de Papéis
Matriz Familiar Moreno.
*Preparação para o Papel
Átomo Social *Rede vincular vai se formando na
Social;
“Núcleo das interação dos Papéis originários.
Irmãos (3o Cluster)
relações se *Funções parentais-triangulação.
(Compartilhar)
forma em torno *Distância das “coisas” - nomeação com
do indivíduo” palavras.
Moreno *Tomada do papel do outro - seguida da
troca de papéis.
*Papéis Interativos: Passivos/Ativos.
Competir, rivalizar, ciúmes.
3o Universo * Papéis Sociais.
Vincular * Papéis Psicossomáticos.
Rede Relações Sociais *Papéis Imaginários.
Sociométrica *Papéis Psicodramáticos - nosso eu,
com todos os como qualificamos as coisas.
vínculos *O ser no mundo com toda sua
operacionais abrangência emocional - social - cultural
formados pelo onde os papéis acolher, operar,
Átomo Social compartilhar funcionam de forma
dinâmica.
86
8.2 Teoria do Papel
É o conceito original do Teatro Grego Clássico, onde as peças eram escritas em “roles”
(rolos); do Latim: rotula; do Inglês Medieval: “role” (papel).
Como foi visto alhures, os vínculos são formados na Matriz de Identidade –
Indiferenciada – Diferenciada – Social. O Papel é uma forma de funcionamento, um
desempenho que inicia nos vínculos originais no Primeiro Universo da Criança.
Gradualmente, à medida que a criança experimenta a realidade, novas adoções de papéis vão
surgindo, interagindo ao papel anterior e formando “cachos de papéis”. O processo de
desenvolvimento de um novo papel passa por três fases:
a) Role-tanking: tomada do papel – adoção por imitação;
b) Role-playing: jogar os papéis, exploração simbólica das representações;
c) Role-creating: criação e o desempenho de papéis novos.
Para Moreno (1984) “A habilidade em desempenhar papéis é essencial para a
comunicação adequada e para o desenvolvimento do eu social”. Portanto, o desempenho de
papel possibilita à pessoa reconhecer a si própria e ao outro. Assim, “Todo papel é fusão de
elementos particulares e coletivos; é composto de duas partes – seus denominadores coletivos
e seus diferenciais individuais (MORENO, 1992, p. 178).
Papel é uma unidade de condutas inter-relacional resultante de um processo evolutivo
ontogenético, singular, com grande força construtiva e plasticidade. É precursor do EU e sua
formação acontece através da inserção social do agente com sua atuação diante das situações
específicas em que estão envolvidos pessoas e objetos que atuam como contrapapéis. O
processo do desenvolvimento dos papéis iniciados na Matriz de Identidade, continuam por
toda a existência do indivíduo; não sendo assim, o Homem estaria fadado a uma estrutura
fixa, sem criatividade e espontaneidade. Para Moreno, a “doença mental” é vista dentro de um
Papel Patológico, isto é, quando a capacidade perceptiva e intuitiva do indivíduo encontra-se
desvirtuada, ou seja, o seu mundo interno não coaduna com o externo:
Como foi visto antes, os papéis não são isolados, eles tendem a se configurar em
clusters (agrupamento de papéis dentro da dinâmica relacional). Respostas do bebê frente à
ansiedade, aos impasses, as dores, aos cuidados, ao aconchego, a amamentação. E ao mesmo
tempo a resposta que ele acarretar aos seus cuidadores. Em Moreno há sempre uma mão dupla
nas relações Mãe ←→ Bebê; “[...] organismos individuais em interação” (MORENO, 1984,
p. 99). “[...] a relação entre mãe e filho é uma dupla relação que implica em uma ação
cooperativa, muito além de pautas individuais de condutas separadas entre si” (MORENO,
1984, p. 110).
O Efeito cluster é de extrema relevância para se perceber as respostas conservadas,
“pontos cristalizados”, em determinados contextos. Ex: medo das figuras de autoridade,
posturas autoritárias – Provavelmente estão vinculadas ao 2° cluster. Seres isolados,
dependentes podem estar relacionados ao 1° cluster.
Existem três clusters principais ou três dinâmicas essenciais para a existência do ser humano.
Os dois primeiros Clusters são assimétricos. O terceiro inicia as relações simétricas, a
socialização.
88
8.3.3 Terceiro Cluster
Pede-se ao paciente que se coloque no lugar de uma pessoa de seu grupo por
ele preferida e, como se fosse essa pessoa, escolha e avalie que sentimentos
têm as demais pessoas diante dele. Esse teste é baseado no fato de cada
indivíduo procura perceber, intuitivamente, que sentimentos têm por ele
pessoas imediatamente próximas. [...] uma grande discordância entre suas
expectativas e os fatos objetivos dão-nos importantes indicações sobre o seu
status e um conhecimento mais preciso de sua posição no sociograma do
grupo (MORENO, 1983, p. 24-26).
Assim foi feito, sucessivamente, com todas as “tarefas.” As técnicas: duplo, espelho,
solilóquio e inversão foram utilizadas.
89
As escolhas das “tarefas” foram sendo remanejadas. Algumas retiradas, outras
poderiam esperar um pouco. A cada movimentação de mudança da “tarefa” em relação ao
protagonista, era utilizada a técnica do espelho. Ao final solicitei que ela voltasse mais uma
vez para o centro, respirasse e sentisse como estava o seu mundo, dentro do centro e fora do
centro. (espelho): – Ufa!
Sentamos para compartilhar e a “nossa protagonista” disse: “Puxa vida! Eu escolhi
carregar tudo isso para compensar a falta do meu pai e ajudar minha mãe, agora está claro”.
O grupo passou a compartilhar sobre os papéis desempenhados e cristalizados.
Ao final foi escolhido um título que representasse a dramatização: “O Mundo que eu
Escolho”. O título traz a possibilidade de se fazer diferente, de se escolher um novo papel.
Na teoria Socionomica, se faz necessário uma visão flexível, criativa e espontânea do
indivíduo como um ser criador, um gênio capaz, co-criador e co-responsável pelo Universo.
Este é o ponto máximo da visão moreniana do homem: desempenho e aprendizagem de
papéis para a criação de um novo papel. Observa-se que quando existe representação de uma
determinada situação, a imaginação é desafiada pela busca de solução para problemas criados
pela vivência dos papéis assumidos. As situações imaginárias estimulam a inteligência e
desenvolvem a criatividade. A formação dos papéis com os seus estágios evolutivos dentro da
cadeia das constelações do átomo social se complementam de maneira bioantropológica,
articulação que insere o Homem dentro da natureza e essa dentro dele. Essa inclusão mostra
que o ser biopsicossocial se revela por meio de “múltiplos nascimentos”, ou seja, por meio de
várias relações cósmicas: pessoas, animais e natureza. Tudo que “toca” o indivíduo é capaz de
lançá-lo em novas dimensões, em novos papéis criativos.
Meu eu
e Teu Eu
Quantos eus somos nós?
Eu em mim e eu em Ti
são dois.
Tu em mim e Tu em Ti
são mais dois
Porém o meu Eu são dois
em cada Tu
e o teu Tu são dois em cada Eu
E assim
quão assombroso é descobrir
quantos eus existem em mim
e quantos estão em Ti!
(PALAVRAS DO PAI, 1992, p. 195).
90
Os papéis, à medida que vão sendo experenciados com sua constelação de forças
positivas e negativas, conquistam sua dinâmica relacional, possibilitando a formação das
diversas identidades e seus processos. A forma predominante de um papel ou outro explicita a
história de vida de cada um. Como se viu no exemplo citado antes e que foi nomeado de “O
Mundo que eu Escolho”. Para Moreno o “átomo social é fato” (1992, p. 158). Seu significado
conceitual só foi possível após os estudos da formação do sistema das constelações das redes
sociais. “Uma parte não existe sem a outra. É um contínuo” (MORENO, 1992, p. 259). Átomo
Social é conceito introduzido por Demócrito na linguagem científica (p. 9). Moreno recorre a
esse termo para definir o menor padrão de conduta relacional que gravita em torno do
indivíduo, iniciando já na primeira fase do desenvolvimento infantil:
Há que se lembrar, que o átomo social é um construto dinâmico que cresce, flui e
encolhe; consiste nas ligações interpessoais, compostas por papéis dentro de uma cadeia
relacional, uma rede sociométrica de tele (atrações, rejeições, mutualidades e incongruências)
em volta de cada indivíduo. O átomo social gera círculos de relacionamentos transmitidos de
gerações a gerações (questões atávicas): as cadeias dos mitos familiares que se expõe
atravessadamente ao sistema de vinculação do indivíduo (vínculos residuais e atuais). Essa
configuração social das relações interpessoais é um processo em mudança, à medida que a
imagem que se tem de si mesmo e do outro se modifica no decorrer da existência,
expandindo-se as conexões da rede sociométrica, ajuizando-se novos valores e qualidade aos
relacionamentos, desarticulando velhos padrões para obtenção de novos conhecimentos. No
decorrer do seu desenvolvimento, a criança interioriza as pessoas e as relações entre elas; essa
entronização irá revelar mais tarde como os papéis foram introjetados e como a sua
subjetividade, o seu grupo imaginário e o real foram construídos: como ela se vê e como ela
vê o outro em relação a si mesma (fase do espelho). O átomo social são constelações da
intersubjetividade das relações do interpsíquico e do intrapsíquico; são forças de atrações,
rejeições e indiferenças e cada pessoa desempenha um conjunto de papéis, e provoca no outro
outros papéis. Nessa dança intercambial Eu-Tu, de conjunções e sistemas abertos por
processos vinculares e seus complementares é que são geradas as construções individuais e
sociais. À medida que o indivíduo estabelece novas configurações sociais às constelações,
tende para expansão, aumentando a cadeia de átomos e formando uma complexa corrente de
sistema de inter-relação vincular, denominadas como Rede Sociométrica. A saúde social seria
a incorporação da alteridade, ou seja, o exercício da existência do diferente. Segundo Moreno,
essas redes têm uma importante função operacional na formação da sociedade, que é a
“Função de formar a tradição social e a opinião pública” (MORENO, 1992, p. 158, v. I).
Neste contexto, ele revela, ainda,
A partir dessas observações, Moreno passa a tecer considerações sobre os artefatos com
suas vidas mortas e que podem ser amados, destruídos em excesso e nunca realizando a troca
de forma a substituir os egos auxiliares. E afirma que “Deixar a criança sozinha com seus
bonecos é paralelo a deixar o bebê sozinho com a mamadeira, um objeto auxiliar”
(MORENO, 1984, p. 123).
Quando Moreno criou a Psicoterapia de Grupo, seu desejo primordial era de incluir os
seres isolados e execrados dentro de um contexto social. O grupo seria o agente transformador
para o acréscimo do Átomo Social e para o aprimoramento de novos acoplamentos
sociométricos. Ao criar a Teoria das Relações Interpessoais, Moreno evidencia a importância
da relação social com sua dinâmica vincular para aquisição da espontaneidade e criatividade e
para a compreensão das relações tele transferenciais. Ao propor esta mudança na visão de
homem, foi possível lançar o conceito de doença mental dentro de uma nova perspectiva.
Neste contexto, interessantes as afirmações que se seguem:
92
Graças a ela [mudança] tornou-se possível conceber as neuroses e as
doenças mentais não mais como “doenças” no sentido biofisiológico do
termo e não mais como fenômenos intrapsíquicos (como certas linhas
psicanalíticas as veem); foi o conceito de átomo social de Moreno, por mais
imperfeito que possa ser, que favoreceu às psicopatologias saírem de sua
toca individualista e solipsista para reencontrarem, na estrutura inconsciente
das relações sociais, seu motivo. Nesse sentido, não seria absurdo dizer que
Moreno foi o precursor da antipsiquiatria (NAFFAH NETO, 1997, p. 171-
172).
8.5 Tele
Moreno desenvolve a Teoria do Fator Tele como o núcleo das relações vinculares,
interpessoais. É através deste fator que os intercâmbios de papéis sociais e o Encontro se
promoverão. O tele organiza a capacidade de escolha e rejeições de um indivíduo, como
também a noção da continuidade, a distância, a aprendizagem relacional do outro separado e
existente. O encontro é a experiência essencial da relação télica.
Ao falar de Encontro, Moreno propunha aprender com o “contra” na relação EU-EU,
com o Outro e com o Mundo; isso acontece num sistema psicodinâmico aberto, num Universo
Aberto que tem lugar para o novo, para a criação. Moreno acreditava na possibilidade real do
Encontro – sem relação transferencial. Se a cada relação os membros conhecerem seus
direitos, obrigações e os respeitarem, o crescimento será possível. Quando isso não ocorre a
relação encontra-se sob a égide de um Papel Patológico e Transferencial. A visão do outro,
comprometida por Vínculos Regressivos e Vínculos Compensatórios é relação complementar,
93
que o indivíduo estabelece com as pessoas ou com as coisas, delegando às outras pessoas ou
coisas, funções psicológicas de cuidado, proteção e orientação dos seus primeiros anos de
vida. A transferência é uma relação projetada, na qual se transporta alguma coisa para o outro;
tele é a percepção verdadeira do outro, não afetada pelo inconsciente recalcado e regressivo.
A transferência é a patologia do tele; para Moreno ela é uma “excrescência psicopatológica”,
impedindo o indivíduo de se relacionar de forma verdadeira, nublando a percepção e a
comunicação, favorecendo as distorções e os equívocos, é uma contra espontaneidade
desencadeadora do embotamento das relações interpessoais, gerando sofrimento, o lugar do
desencontro, do patológico e das atuações irracionais. O Tele é a possibilidade da abertura, da
flexibilidade, onde a comunicação flui e as distorções diminuem.
No momento atual, estes conceitos foram unificados; para muitos psicodramatistas,
tele/transferência acontecem juntas. Sabe-se que a “percepção verdadeira” do outro se
encontra tingida de afetos e juízo de valores. Com a possibilidade do reconhecimento do
vínculo residual projetado, aumenta-se o fator tele. Zerka Moreno diz, que O TELE
desenvolve-se com o passar dos anos, à medida que o indivíduo aprende e expande o seu
átomo social através do constante aprendizado do amor. A constante aprendizagem do amor,
da saída das conservas, desenvolve a auto tele. Moreno preferia este termo ao conceito de
insight:
Auto tele tenta ir além. É poder estar em contato com o profundo mundo interior.
Poder estar consigo mesmo, como dentro de um fascinante caleidoscópio. Insight é
uma dimensão racional. Auto tele é emocional e racional. Significa ter uma boa
relação com essa magnífica e complexa diversidade que é ser humano em relação.
(BUSTOS - Perguntas e comentários feitos para Zerka no Congresso Processual
(Ning) 2010).31
São Consideradas Técnicas Básicas as que fazem parte das fases da Matriz de
Identidade. São elas:
O Duplo – no “estágio de identidade total” a relação mãe-bebê-mundo encontra-
se indiferenciada. Logo, a técnica embasada nesta fase é o duplo, na qual o
psicoterapeuta “dá voz” a algum conteúdo emocional-cognitivo que o paciente-
protagonista não consegue traduzir em palavras ou ações corporais. Em outros
termos, o psicoterapeuta tenta “intuir” o conjunto afetivo-cognitivo do paciente
em um determinado momento e, assim, expressar por ele o conteúdo em questão.
É utilizada quando o protagonista encontra-se em dificuldade de expressar. O ego
auxiliar se coloca ao lado do protagonista e assume a sua expressão, dando voz a
sua emoção. É uma linguagem interpretativa;
O Espelho – posteriormente ao estágio fusional, a relação mãe-bebê-mundo
começa a se diferenciar. Moreno (1986) nomeia esta fase de “estágio do
reconhecimento do eu”. O bebê dá continuidade ao surpreendente processo de
construção de sua identidade, exercitando sua crescente autonomia diante de
objetos exteriores, inclusive da mãe. Ao observar sua imagem no espelho, a
criança vai se dando conta de suas ações enquanto “atos voluntários”, o que a leva
a desdobrar em espirais crescentes suas habilidades cognitivo-emocionais e,
portanto, seus testes da realidade. O psicoterapeuta, ao espelhar o comportamento
linguístico e corporal do paciente, acaba por oferecer condições para que este
______________
31
NING - Espaço virtual desenvolvido pela Comissão Organizadora do 17° Congresso Brasileiro de Psicodrama
e 1° Latino-americano de Psicoterapia de Grupo e Processos Grupais. 2010.
94
obtenha uma “versão” exterior “fiel” de si. O Protagonista se torna o espectador
de si mesmo, como dizia Moreno. O ego auxiliar refaz todo o seu percurso e
movimento, contatando com o seu átomo social. É necessário ter habilidade para
que o protagonista não se sinta caricaturado. O paciente se senta no lugar do
espectador e vê uma cópia de si mesmo.
A Inversão de Papéis – no “estágio de reconhecimento do outro”, a criança já
detém, plenamente, a capacidade de simbolização. Ela já possui suficiente senso
de identidade para poder assumir o lugar do outro sem se perder. O
reconhecimento do outro pode ser exemplificado na corriqueira brincadeira de
“casinha”, onde uma dupla ou um grupo de crianças exercem papéis sociais dos
mais variados, como: mãe, pai, filho, irmão, tio, avó etc. A dinamicidade com que
os papéis podem ser invertidos entre elas é um fator relevante desta capacidade de
reconhecimento do outro e, consequentemente, de se colocar no lugar do outro.
Só é possível quando as pessoas em questão estão presentes.
Ex.: Marido e Mulher. Pai e filho. Esse seria de fato o verdadeiro trocar de olhos.
Usa-se hoje uma variação da técnica: o ego-auxiliar assume o lugar do
antagonista. O protagonista confronta com o seu imaginário. A técnica da
inversão de papéis oferece possibilidades ao paciente de tomar o papel de outro
membro do grupo e vice-versa. Em uma relação bi-pessoal, tal inversão poderá ser
exercitada entre o psicoterapeuta e o paciente. Importante ressaltar que os
indivíduos que se encontram nas fases anteriores da identidade não conseguem
fazer inversão.
a) Solilóquio:
– ele ajuda o protagonista a aquecer e permite que o ego-auxiliar conheça um
pouco do mundo interno do indivíduo. No popular, é “falar com os próprios botões”, “pensar
em voz alta”. Moreno, no livro Psicodrama, na página 245 diz o seguinte sobre esta técnica:
95
9.1 Teoria da Ação
96
O psicodrama coloca o paciente num palco onde ele pode exteriorizar os
seus problemas com a ajuda de alguns atores terapêuticos. É um método de
diagnóstico, assim como um tratamento. Um de seus traços característicos é
que a representação de papéis inclui-se organicamente no processo de
tratamento. Pode ser adaptado a todo e qualquer tipo de problema, pessoal
ou de grupo (MORENO, 1984, p. 231).
Para haver catarse é necessário que haja um momento emocional que é o próprio sentir,
o viver de novo, junto com o momento intelectual de esclarecimento dos papéis e dos
vínculos, que é o momento axiológico, o momento do nascimento de um novo valor. A
catarse na proposta do psicodrama integra a cognição, a estética e a ética. Esse é o grande
tripé metodológico de toda sociatria; a aprendizagem de novos papéis ocorre porque a ação
dramática permite através da estética o olhar em espelho e esse olhar abre o campo da
cognição e da ética do ser no mundo. Wilson Castelo de Almeida sistematiza as três formas
clínicas da catarse:
Protagonista Grupo
A cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são
demais de muitas e diferentes, e a gente têm de necessitar de aumentar a
cabeça para o total (Riboaldo, In: Grandes Sertões Veredas, de Guimarães
Rosa).
Espontaneidade deriva do latim – sua sponte “Livre Vontade” – “Ação Livre”. Moreno
sempre enfatizou esta característica – sua sponte – para reforçar a fonte livre dos atos
fundantes.
Atos fundantes são os emergentes que incitam à mimética, os atos corporais repetitivos
iniciadores da cadeia vincular; a primeira linguagem: o corpo, “o ato é anterior a palavra”, os
arranques físicos são as primeiras demonstrações da infância de conforto e desconforto, é no
intercâmbio dos atos corporais e na sua relação com o ego-auxiliar que a criança aprende a
discriminar o prazer e o desprazer. Os atos são registrados em cadeias de memória atual e
memória de evocação por meio do processo de prazer e desprazer vividos na relação com o
ego-auxiliar que as sensações subjetivas serão armazenadas, desenvolvendo o modelo interno
do mundo real, instalando os primeiros modelos de conserva cultural.
Em fases posteriores, esses modelos vivenciados e memorizados podem retornar para
uma nova elaboração, para libertação da vida. O nascimento com seus
arranques/atos/liberação/libertação é momento máximo de aquecimento para a
espontaneidade; é a mola propulsora da expressão operacional do ato de libertação. No
psicodrama o aquecimento irá favorecer a submersão, o vir à tona da subjetividade com toda a
sua expressão somática, psíquica e social. Ao romper os caminhos do não dito o aquecimento
libera o imaginário, com suas manifestações, favorecendo ações espontâneas, criativas e as
suas atualizações.
Há várias formas de aquecimento: físicos, mentais, psicoquímicos, econômicos, ou
mesmo a palavra. O importante é que o aquecimento favoreça e prepare a livre vontade para
fome de Atos, para criação, para a elevação e o desenvolvimento de papéis criativos e
renovadores. A Fome do momento do nascimento caminhará como o impulso básico, por toda
existência, e ressonará na Fome de Transformação, o limiar fundante da capacidade da
criação.
Criatividade deriva do latim creare, que significa criar dar existência, estabelecer
novas configurações ao universo das redes de relações interativas. Está associada a variáveis
diversas, envolvendo um processo dinâmico entre elementos relativos à pessoa, ao social, ao
ambiente, com os seus valores e normas, contemplando associações, combinações inovadoras
modelos, sentimentos, experiências, planos e fatos.
Conserva deriva do latim conservare, cujo significado quer dizer manter em lugar
seguro, preservar. Moreno usa conserva como substantivo seguido do adjetivo cultural.
Moreno em seu livro O Teatro da Espontaneidade, às paginas 126 e 127 destaca o
seguinte:
98
Atuar pelo improviso é: uma preparação para satisfazer as exigências da vida
com calma e elegância.
A vida real consiste de sequências intermináveis do inesperado e de
situações improvisadas, as quais não são escolhidas pelas pessoas; elas lhe
acontecem. Nessas situações, a pessoa ou segue um hábito cego e obedece
ao mecanismo estabelecido segundo experiências pregressas, ou então pode
agir espontaneamente, modificando radicalmente o mecanismo, sob o
estímulo de uma situação central, a urgência criativa.
Quanto menor for à solidificação de padrões, melhor o indivíduo reagirá aos
imprevistos.
A espontaneidade principia quando não se toma mais as coisas como certas, quando se
examina e passa a interrogar as conservas culturais. A livre vontade expande, nasce como um
“assombro”, como uma “surpresa” diante da vida. E o momento se inicia após a via de acesso
ser percorrida, é a chegada de um novo patamar. Momentos de maravilha e medo, como de
uma criança, maravilhada ou aterrorizada diante da realidade. A experiência da
espontaneidade causa impacto, terror, arrebatamento, maravilha, espanto e também
perplexidade, abrindo fendas, provocando rupturas, quebrando ao meio as conservas, à
medida que possibilita o surgimento de outros papéis, outros conceitos e valores. Inclui a
habilidade de tomar decisões, agir diante das divergências com adaptação, memória,
pensamento rápido, mostrando e equacionando soluções criativas.
Sob esse olhar pode-se dizer que espontaneidade, criatividade e conserva são
estrategicamente unidas. Categorias diferentes com interações relacionais que vão se
constituindo, não como realidade em si, mas como co-existência que se constroem na relação
com o Outro. A perspectiva é sempre interacionista e salienta a importância viva e ativa do
Outro para aquisição da espontaneidade, que só ocorrerá no interjogo vincular; intercâmbios
que são revelados pela ação que se completam no complexo sabor do encontro face a face,
propulsor das quebras narcísicas e da descoberta do amor, garantidos pela coragem de se olhar
num espelho e de se colocar no lugar do Outro para construção, transformação ou evolução de
novas cenas; o momento, a criação, o olhar que há de ser a cada instante novo, a alma que se
lança na busca dos sonhos, o encontro que é feito no trocar dos olhos, onde se aprende pela
experiência de relacionar o conhecimento de EU interagindo com o conhecimento do TU.
O vínculo com suas redes relacionais são fatores preponderantes nesse ponto de vista; é
pelo viés vincular que a responsabilidade, a ética, o respeito geram a inspiração para
construção de uma nova ação educativa. Pensar sobre si mesmo é pensar na sua relação com o
outro. O TU, na abordagem antropológica moreniana, é uma construção identitária, processo
pelo qual o indivíduo e seu grupo se contitue e constrói novos grupos de valores e
representações de sentidos, integrando os movimentos das sociedades humanas com o
universo. Eis o núcleo central da antropologia de Moreno: a coesão das redes relaçionais,
resultam na inter-dependência dos sistemas psicodinâmicos, sociodinâmicos e
cosmodinâmicos como sistemas abertos, revelando o Universo com criatividade infinita.
E. G. Martin, página 121 assevera o seguinte:
99
Gênio em potencial na concepção moreniana, não é o representante das supremacias
intelectual e dos QI elevados e sim os indivíduos espontâneos, com capacidade de responder
adequadamente.
No livro: Quem Sobreviverá, no capítulo Prelúdios do Movimento Sociométrico, na
página 67, está registrado:
100
inacabadas num estado de imperfeição. Essas ideias de perfeição são
associadas com a ideia de Deus [...], no entanto, a Sua função de espontâneo
criador, que é o conceito mais revolucionário sobre a função de DEUS, tem
sido quase sempre abandonada, [...]. É evidente que um processo de
criatividade espontânea é a matriz e o estágio de qualquer tesouro ou
conserva cultural – seja em forma de religião, obra de arte ou um invento
tecnológico. Isso põe em relevo a relação imediata entre o momento e a
ação, a espontaneidade e a criatividade, em contraste com o nexo tradicional
entre espontaneidade e a resposta automática. [...]. Beethoven é presente
condição de conserva cultural [...]. Enquanto ele caminhava pelo seu jardim
[...] Toda a sua personalidade já estava em comoção. Fazia uso de todo
estímulo físico ou mental que se pudesse evocar com a finalidade de colocar-
se na direção correta – constituíam o “background” indispensável, do qual
brotou a música Nona Sinfonia [...]. Somente apresenta-se, ali, o resultado
final. O fato da eliminação “background” da sua ideia atual [...] resulta de
uma armadilha intelectual que é jogada sobre nós pelos séculos
(PALAVRAS DO PAI, 1992, p. 135, 163).
102
A espontaneidade acontece num universo aberto, dentro da categoria do momento, sem
determinismos psicológicos, mas ela também não se enquadra nos atos contínuos que
acontecem a qualquer momento. A espontaneidade depende da harmonia entre a conserva
cultural e a criatividade, possibilitando um novo ato, a matriz criadora, o momento que algo
surge para a existência. Espontaneidade também não é algo que se encontra vinculado a ação,
a emoção ou a diminuição do controle. O comportamento desordenado e os emocionalismo
impulsivos estão dominados pela patologia da espontaneidade; são papéis dissociados,
distorcidos e dominados pela atuação irracional: “fazer o que der na telha”.
Ser espontâneo é ser criativo, oportuno e adequado; é expressar a existência, as emoções
mais profundas. A teoria proposta por Jacob Levy Moreno visa a treinar, ampliar o processo
da espontaneidade e da criatividade.
Digrama dos Campos de Operações Rotativas Entre E. C. CC. (MORENO, 1992, p. 153)
Operação Total
ator
Espontaneidade-criatividade-ato de aquecimento
conserva
Moreno diz que o indivíduo se dirige ao mundo, e se interessa por ele, por princípio de
organização ontológica, sendo certo que a sua existência ocorre no encontro.
Epistemologicamente, seu conhecimento ocorre na presença, na ação com o mundo. Conhecer
e existir são construções relacionais. A criteriosa e sistematizada separatividade não cabe na
“ciência” proposta por Moreno. Ela é inclusiva, permite a contradição, vislumbrada através do
universo das constelações dos átomos sociais e das redes sociométricas de escolhas, rejeições
e mutualidades.
Ao ler Moreno, pode-se observar a contrariedade perpassando toda sua obra, diante dos
núcleos duros, da cristalização do passado agarrado ao hábito milenar do pensamento
racional. Com sua visão cosmológica, ele fala do todo, das dobras circulares, da dinâmica
rede humana, apontando a existência como uma co-existência realizada num incessante
movimento espontâneo/criativo, convidando a todos para o desenvolvimento da genialidade,
da responsabilidade e da co-criação. Na sua ontologia com pretensões divinas, o gênio da
ação intui uma grande obra; cria a Religião do Encontro, volta ao Cosmo e engendra a poética
e apaixonada arte da relação. Eis o ponto de partida, a relação, a co-criação, o saber
acontecendo num estado de incessantes relacionamentos: não há como separar o ser PSICO-
SÓCIO-DRAMÁTICO. Nesta tríade, o indivíduo (psico) se constrói pelo encontro (sócios),
desenvolvido nas redes interativas vívidas e vividas, com suas mais variadas formas de ação
(drama). O indivíduo, seu grupo, as ideologias sociais, as relações intergrupais, a unidade na
diversidade, legitimam a visão do Homem em Moreno. É na sequência dos atos vinculares,
articulados no como se e na realidade suplementar, em processo contínuo de troca entre
Diretor, Protagonista e Ego auxiliar, que as cenas se integram. A ação dramática
compartilhada, re-significa e possibilita a saída das conservas culturais, promovendo um novo
papel. Ao fazer o convite para o treinamento da espontaneidade (um novo papel), Moreno
lança a mente para fora, integrada no tempo, espaço, realidade e cosmo; cria o PALCO DA
ALMA, o lugar das imagens. O palco oferecido por Moreno reflete a vida, a busca da
organização para uma nova produção, para uma nova resposta diante do inesperado que pode
surgir a qualquer momento diante das interações sociais; o EU-TU, como propulsor do
encontro, da espontaneidade e da ação criativa, revelador de um saber que se cria a cada
momento na complexidade e complementaridade da rede sociométrica. O centro de todo o
processo é o Encontro, realizado dentro da categoria do momento espontâneo criativo,
103
operando um processo de catarse de integração. A vida é atuada e atualizada no palco:
Presente, Passado e Futuro no mesmo espaço de tempo. O chamamento é a preparação para o
desempenho de papéis com mais eficácia: tomar, treinar, desempenhar e criar. Portas abertas
para o eterno processo de aprender e aprimorar as correntes psicológicas com o outro. Neste
contexto, destacam-se as palavras de Moreno:
Jogo Dramático: tem como objetivo permitir uma aproximação terapêutica do conflito
através do jogo. A cena dramática é aquela que expressa algum conflito; sem conflito não há
dramaticidade e a cena é vazia, segundo o teatro. Propicia ao indivíduo expressar livremente
as criações do seu mundo interno, realizando-as na forma de representação de um papel pela
produção mental de uma fantasia ou por uma determinada atividade corporal.
104
tempo, espaço, realidade, cosmos, inserida nas técnicas psicodramáticas: Moreno diz que uma
das técnicas de realidade suplementar é a inversão de papéis.
Ontologia: vem do grego, “ontos” e “logos”, ser e estudo; assim, é o estudo do ser em
sua essência. É a parte da filosofia que estuda o ser enquanto ser, ou seja, o ser concebido
como tendo uma natureza comum a todos e inerente a cada um dos seres. Para Miguel Reale,
a ontologia trata dos problemas ontológicos, enquanto entendida como metafísica, enquanto
que a ontologia em sentido estrito preocupa-se com os problemas ônticos, que são os relativos
ao ente.
105
11. UMA HISTÓRIA PSICODRAMÁTICA
Era uma vez um príncipe que mergulhou na ilusão de que era um galo. Despiu-se por
completo, postou-se debaixo da mesa e passou a comer apenas grãos ou migalhas. O rei
recorreu à ajuda de inúmeros médicos, mas nenhum deles conseguiu curar o príncipe. Até
que, um dia, um sábio apresentou-se ao rei e disse-lhe: “Acredito que eu possa curar o
príncipe”, e o rei deu-lhe permissão para tentar.
O sábio tirou suas roupas e, juntando-se ao príncipe embaixo da mesa, começou a ciscar
os grãos e a cacarejar como um galo. O príncipe olhou desconfiado e perguntou: “Quem é
você e o que faz aqui”? O sábio retrucou com a mesma pergunta. O príncipe respondeu: “Eu
sou um galo.” “Oh, é mesmo”?, disse o sábio. “Eu também sou!” E ficaram amigos.
Quando o sábio percebeu que o príncipe já se acostumara à sua presença, ele fez sinal
pedindo uma camisa e vestiu-a. O príncipe, então, questionou-o de modo hostil: “Você ficou
louco? Será que está esquecendo quem é você? Está tentando virar um homem?”. O sábio
respondeu: “Não me diga que você acredita que um galo que se veste de homem deixa de ser
galo”. O príncipe refletiu sobre isso e, em seguida, também vestiu uma camisa. Algum tempo
depois, o sábio fez um gesto pedindo que colocassem comida embaixo da mesa. “Droga! O
que você está fazendo?”, protestou o príncipe. “Será que agora você vai comer como eles?” O
sábio aplacou seus temores: “Não se aborreça. Ainda que um galo coma a mesma comida que
os seres humanos, continuará sendo um bom galo”. O príncipe refletiu alguns minutos sobre
essas palavras e, em seguida, começou a comer também.
Por fim o sábio disse: “Você acredita que um galo precisa sentar-se embaixo da mesa o
tempo todo? Se quiser pode levantar-se e passear por aí e ainda assim será um bom galo”. O
príncipe, então, seguiu o sábio que saiu debaixo da mesa e começou a andar. “Lembre-se”,
disse o sábio, “você pode fazer tudo com os homens, no mundo deles e, ainda assim,
permanecer o galo que você é”. O príncipe convenceu-se e retomou sua vida como pessoa.
106
12. AXIOLOGIA
A Axiologia iniciou-se com o filósofo Platão, com a sua teoria das formas: a forma do
Bem. Desenvolveu-se posteriormente com Aristóteles, com os Estóicos e os Epicuristas
quando investigavam o “Supremo Bem”. Na filosofia escolástica o Supremo Bem é Deus.
Axiologia: do Grego: axios = valor; logos = teoria.
O que leva o homem a se decidir quando ele se encontra entre duas ou mais realidades
de que gosta ou deseja? O que o move a fazer a sua escolha?
A primeira resposta poderia ser: o home decide porque é livre, e por ser livre, faz as
escolhas as quais são determinadas pelo valor que ele atribui àquilo que escolhe. Mas isso
ainda não é tudo. A decisão do homem se deve a algo que vai além da liberdade ou que dá
sentido à liberdade. Ele decide porque é capaz de determinar o valor das realidades com as
quais se relaciona, não se esquecendo de que a liberdade também é um valor que ele preza.
Quando se pergunta o que leva o homem a valorizar alguma coisa em detrimento de
outra, observar-se que além de livre e com capacidade de fazer escolhas, a partir dos valores
que desenvolve, o homem é capaz, também, de hierarquizar suas observações e suas relações.
Nesse sentido, ele se relaciona com as coisas e com as pessoas a partir de uma hierarquização
chamada de “valores”; neste ponto, ele perceberia que está diante de questões culturais.
Os valores que o homem desenvolve nascem da sua cultura. Essa é a razão pela qual,
povos diferentes valorizam realidades distintas. É a razão pela quais muitos elementos que são
valorizados por alguns grupos humanos não o são por outros. Os valores, portanto, não são
absolutos, mas condicionados pela cultura espaço-temporal. Nem todos os valores de
antigamente permanecem sendo valores atualmente; nem todos os valores para uns são
valores para outros.
Neste prisma, concorda-se com o professor Manuel Garcia Morente, em seu livro,
intitulado “Fundamentos de Filosofia: lições preliminares” (Editora Mestre Jou, 1967), que
às páginas 293-294 afirma que as relações do homem com as realidades se desenvolvem a
partir de significado que elas têm para ele, ou seja, as coisas não lhes são indiferentes: “Não
há coisa alguma diante da qual não adotemos uma posição positiva ou negativa, uma posição
de preferência [...] não há coisa alguma que não tenha valor. Umas serão boas, outras más,
umas úteis, outras prejudiciais; porém nenhuma absolutamente indiferente”. Assim, vê-se que
sempre o homem está emitindo juízos sobre as realidades, ou nos relacionando com elas a
partir da valoração que lhe atribui.
Note-se, também, que o conceito “valor” é empregado para diferentes realidades:
quando se fala em valores econômico-financeiros, refere-se à qualificação de coisas ou
serviços. Esses, no padrão sócio-cultural da pessoa considerada, são completamente distintos
dos valores sociais, humanos e morais. Enquanto os valores econômico-financeiros são
aplicados a coisas ou situações específicas e objetivas, os valores sociais, culturais, humanos e
morais demandam certa subjetividade e isto torna mais difícil a classificação de tais valores.
Há que se considerar, também, os elementos estéticos e religiosos. Nessa amálgama de
relações emerge o que se denomina de valor ético-moral.
Esse é o centro da reflexão que, de alguma forma, precede a discussão sobre ética e
moral: a capacidade humana de escolha se deve à maneira como se afirma, não à liberdade,
mas à capacidade de se formar juízos. Isso se dá em função da capacidade do homem em
estabelecer ou perceber os valores. Dessa forma, pode-se retomar as palavras do Professor
Morente:
107
A filosofia atual emprega muitas vezes a distinção entre juízos de existência
e juízos de valor; é esta uma distinção frequente na filosofia, e assim os
juízos de existência serão aqueles juízos que enunciam de uma coisa aquilo
que essa coisa é [...]. Em frente a estes juízos de existência, a filosofia
contemporânea põe ou contrapõe os juízos de valor. Os juízos de valor
enunciam acerca de uma coisa algo que não acrescenta nem tira nada do
cabedal existencial e essencial da coisa. Enunciam algo que não se confunde
nem com o ser enquanto existência nem com o ser enquanto essência de
coisa (MORENTE, 1967, p. 294).
O professor Espanhol mostra que algo é justo ou injusto quando nesse julgamento não
está à coisa em si, mas o seu significado para a pessoa que decide ou precisa desse algo; tudo
dependerá de como ela valorizará aquilo que se considera justo/injusto.
Em síntese, pode-se dizer que aquilo que leva uma pessoa a tomar decisões não é em
primeiro lugar à liberdade, mas o quadro de valores que ela considera. Este quadro, em grande
parte, é determinado pela cultura da pessoa em evidência. Além de se formar juízos sobre a
existência, (os juízos de fato), a partir da constatação da existência desses, caracterizada no
tempo e no espaço, formam-se também os juízos de valor, a partir de uma relação
intencionada com os elementos que foram absorvidos. A pessoa age assim ao escolher o que
lhe interessa e o que deve rejeitar, ou seja, o que não lhe interessa. Assim sendo, pode-se dizer
que viver é fazer escolhas e estas são feitas porque o homem atribui valores aos elementos e
às realidades que circundam sua vida.
Diante do que foi exposto antes, pode-se concluir com o professor espanhol, que o
“critério de valor não consiste no agrado ou desagrado que nos produzem as coisas, mas em
algo completamente distinto; porque uma coisa pode produzir-nos agrado, e, não obstante, ser
para nós considerada como má e poder produzir-nos desagrado, ou ser por nós consideradas
como boa”. Nesse contexto, vê-se que o bem pode não ser agradável, da mesma forma que o
mal pode não ser desagradável. Em ambos os casos, o que leva alguém a fazer o bem ou o mal
é a capacidade de escolha entre ambos (Neri de Paula Carneiro: Filósofo, Teólogo,
Historiador, Radialista e colaborador em Jornais da Região de Rolim de Moura/RO.
Texto com adaptações feitas pela Autora desta Apostila).
108
13. REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Wilson Castello de. Encontro existencial com as psicoterapias. São Paulo:
Ágora, 1991.
MARTÍN, Eugênio Garrido. J. L. Moreno: psicologia do encontro. São Paulo: Livraria Duas
Cidades LTDA, 1984. Tradução: Maria de Jesus A. Albuquerque.
MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Editora Cultrix, 1984. Tradução: Álvaro Cabral.
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COMTE, Sponville, Andre. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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MAY, Rollo. A coragem de criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Tradução: Aulyde Soares
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