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Psicanalista
(2000-2003)
leda.guimaraes@uol.com.br
Resumo
Abstract
The clinical case has been conceived in many ways throughout the history of
psychoanalysis, from a report to a case fragment, not resulting in a standard.
The psychoanalysis is a clinic, not only a theory, although it has a theoretical
body. But it is a clinic that does not exist without theoretical formalization. In the
same way, the theory of psychoanalysis is essentially a theory of the clinic.
Therefore the psychoanalysis consists of this intimate articulation between the
real experience and the theory related to this reality. This way the theory of
psychoanalysis instruments the analytical position so that the analyst operates
in his act.
No momento do ato analítico, o analista não pensa (Lacan, 1967-68), pois o ato
irrompe abruptamente. Se no ato o analista não pensa, isso não quer dizer que
ele seja da ordem do que poderíamos chamar de uma intuição do analista, pois
não convém que esse ato seja movido pelas singularidades da subjetividade do
analista; para isso, é indispensável a análise pessoal na formação psicanalítica.
Porém, mais além das condições subjetivas que permitem a sustentação da
posição analítica, é ainda fundamental que o analista esteja bem orientado em
seu ato. Orientado em quê? Aqui entra a articulação do ato analítico com a
teoria da psicanálise, não simplesmente o conhecimento do seu corpo teórico
em si mesmo, mas fundamentalmente a utilização da teoria enquanto
instrumento conceitual para definir a direção da cura caso a caso. Será a leitura
dos dados clínicos, do que ocorre a cada sessão de análise, utilizando os
instrumentos conceituais da psicanálise para efetivar esta leitura, que permitirá
ao analista um trabalho constante de formulação da direção da cura para cada
caso. Assim, a teoria da psicanálise instrumentaliza a posição analítica para
que o analista venha a operar em seu ato. Desse modo, a posição analítica
articulada à formalização teórica, constitui dois lastros indissociáveis para que
a clínica psicanalítica ocorra.
Tomarei agora o caso Karine para formular teoricamente alguns elementos que
já estão presentes nos dados clínicos de modo subjacente. Esses dados
podem ser referidos como norteadores para a construção desse caso clínico.
Norteadores que orientaram a seleção e a ordenação dos dados clínicos, os
quais agora nomearei de modo explicito, contando também com algumas
formalizações teóricas de Esthela Solano acerca desse caso clínico (Solano-
Suarez, 2007).
O que dizer desse modo de formular uma demanda ao analista? Que Karine
chega impondo uma restrição à maneira como a analista deverá operar com
ela. Esses dados indicam, desde a primeira entrevista, o modo sintomático da
relação dessa paciente com o Outro ao qual ela dirige uma demanda que pode
ser interpretada do seguinte modo: “Peço que você me responda, mas que
você responda como eu decido. Você tem que me permitir e aceitar que eu
domine, quer dizer, que eu possa controlá-la para que nada do que você disser
ou fizer seja imprevisível para mim. E, sobretudo, nada de surpresas”.
Karine diz: “vim porque sei que preciso muito fazer análise”, “sempre precisei”.
O que esse dado clínico nos indica? Podemos levantar uma hipótese de que,
para esse sujeito, a estabilização da sua estrutura não se mantinha numa
homeostase de gozo bem fixada. Mas em que ponto?
Encontramos, num dado clínico, o motivo que levou esse sujeito ao analista
anterior e a partir do qual verificamos que sua questão dirigida à análise foi
sobre o amor. Ainda que, nesse novo pedido de análise, Karine não se
ocupasse inicialmente em falar sobre essa questão, o modo como foi traçada a
direção da cura lhe permitiu retomá-la seriamente mais adiante. O que nos
permitirá verificar que o ponto de desestabilização da sua estrutura situava-se
no campo do amor.
O que quer demonstrar com essa estratégia? Por um lado, que ela tem. E por
outro, que ela pode preencher todas as faltas. Com relação a seus pais, ela
está sempre ocupada se dedicando a eles, principalmente, ajudando sua mãe
a tomar conta do pai doente, o que a obriga a viver sempre atarefada,
trabalhando em vários lugares ao mesmo tempo. Pode-se dizer que é um
sujeito que está permanentemente numa dinâmica de trabalhos forçados. E é
isso que sustenta seu eu.
Com esse modo de fazer sintomático, Karine tenta recobrir com o imaginário,
com o eu, todo o real. Pode-se dizer que, nesse caso, a consistência
imaginária do eu é o seu modo privilegiado de fazer aparecer o seu ser no
campo do Outro. Quer dizer, não encontramos aqui nessa suplência um
enlaçamento simbólico consistente que lhe forneça um S1 privilegiado,
identificatório, para se fazer amável ao Outro, mas fundamentalmente o Eu
ideal, narcísico.
Examinar o estatuto da suplência na estrutura consiste em interrogar a
consistência das identificações centrais nos três registros: Com que recursos
simbólicos, imaginários e fantasmáticos o sujeito conta para sustentar o seu ser
no campo do Outro, como o sujeito se faz ser para o Outro?
O que é que causava o insuportável para Karine quando não obtinha uma
resposta rápida? Podemos supor que a exigência de uma resposta rápida era
seu modo de defesa diante da angústia, já que não contava com recursos
simbólicos suficientes para fornecer um tecido que contornasse a fenda da qual
emergia a angústia. Ela não suportava que uma questão fosse mantida em
aberto. Portanto, não era sem razão que a resposta rápida, a significação
definitiva fosse o objeto que ela esperava do Outro, que ela demandava ao
Outro na transferência.
Nessas condições, pede dinheiro à sua mãe. Isso quer dizer que a mãe tem o
que falta a ela. Porém, dessa forma, ela entra no infernal circuito superegóico
da dívida. O que a dívida implica? Implica que, no bolso da mãe, falta o
dinheiro que ela deve, isto é, por meio da dívida ela introduz a falta na mãe.
Vejam que esse é um modo sintomático de introduzir uma falta no campo do
Outro. Isso também ocorre nas anorexias ditas contemporâneas, já que o Outro
da parceria sintomática desses sujeitos não se situa no campo do dom do
amor, de dar o que não se tem, portanto, trata-se de um Outro mais bem
situado no campo do escamoteamento da dimensão do amor.
Mas, diferentemente do que é produzido por essa estratégia nas anorexias, a
introdução forçada de uma falta no Outro não teve como efeito a emergência
da angústia no Outro. Com essa estratégia, a paciente obteve essencialmente
as recriminações e críticas da mãe, as quais incidiam na sua estrutura como
injúrias superegóicas, que Karine alimentava se mantendo em dívida. Em
outras palavras, a dívida teve por função sustentar a ferocidade sem limite do
supereu, no ponto onde fracassava a suplência em tentar recobrir o real. Pode-
se dizer que essa paciente não devorava, era devorada, devorada pelo Outro
em seu imperativo mortífero de gozo. O que nos faz considerar que sobre essa
base superegóica, de sujeição extrema aos imperativos de gozo, advém a sua
compulsão de comer, a sua insuportabilidade de esperar qualquer coisa que
tenha a fazer, saber, ou dizer.
Como foi introduzida, na direção da cura, uma leitura para esse seu gozo
superegóico? Foi estabelecida uma nova estratégia na transferência, a qual
consistiu em aceitar a dívida, aceitar que a falta se inscrevesse do lado da
analista, aceitando que Karine, conforme seus próprios ditos, num esforço de
não mais pedir empréstimos à sua mãe passasse a dever o pagamento das
sessões à analista.
O resultado dessa estratégia no campo dos afetos foi uma aflição de não poder
satisfazer a analista, mas a conseqüência maior foi o efeito de surpresa
produzido no sujeito, pois não recebeu recriminações nem exigências como
resposta. Reconhecendo a dívida, tolerando-a sem anulá-la, a analista aceitou
que o sujeito descompletasse o Outro, isto é, aceitou ser para o sujeito um
Outro incompleto, um Outro barrado.
Esse caso clínico nos ensina uma questão essencial acerca da incidência do
imperativo superegóico no campo transferencial. A demanda imperativa inicial
que esse sujeito impôs à analista situava Karine na posição de objeto do
próprio imperativo, exigindo controlar o modo como deveria ser tratada pela
analista. Ao fazer semblante de dócil, a analista se deixava incluir na economia
subjetiva da paciente como parceiro-sintoma. Em relação ao ponto insuportável
para a paciente de não obter respostas às suas questões, a analista atendeu a
essa demanda sem corresponder a ela inteiramente, visando a introduzir as
pontuações próprias a um tecido simbólico que começou a ser construído em
torno da fenda na estrutura. Entretanto, quanto à demanda de que a analista
encarnasse o imperativo de gozo do supereu, diante do qual o sujeito restaria
como objeto desse imperativo, só houve uma resposta por parte da analista:
não. Especifica-se, assim, nesse caso clínico, a natureza da demanda em
relação à qual o analista não tem nada a conceder: a demanda de avalizar o
imperativo de gozo superegóico. Seja no campo da transferência ou no campo
dos ditos do sujeito, a única resposta que cabe ao analista diante desse modo
de gozo é ‘não’.
Uma frase se destacou desde o início, servindo como uma peça fundamental
na direção da cura: “sou gorda, feia, nenhum homem vai me querer”. Frase
sempre repetida em bloco, imutável, à qual Karine estava identificada, como
uma significação fechada acerca do seu ser de mulher. Frase que sempre
advinha quando pensava em terminar a relação com o seu noivo, pois passou
a constatar que não sentia por ele nenhuma paixão, nem admiração, nem
desejo sexual.
Uma forte insistência da analista foi necessária para introduzir uma escuta que
permitisse romper a consistência de nó da defesa fundamental. Sempre que
Karine repetia em seus ditos “sou gorda, feia, nenhum homem vai me querer”,
a analista perguntava de modo insistente: “quem lhe disse isso?”. Introduzia,
desse modo, uma questão acerca da frase axiomática sem jamais enunciar o
nome de gozo, para que este não viesse a ser localizado como um dito do
Outro na transferência, de modo a não reafirmar esta fixação de gozo.
Introduzir essa pergunta implicava também enunciar, desde o lugar do Outro na
transferência, que não acreditava que era ela quem o dizia, retirando da frase o
verbo “sou”, deslocando para um outro o lugar da enunciação. Diante da
insistência da analista, as respostas de Karine passaram por várias
modulações:
Depois que o lugar da enunciação dessa voz imperativa pôde ser bem
localizado na mãe, a analista introduziu esse sujeito na dimensão da crença no
estatuto de verdade dos ditos da mãe: “Sempre acredito que tudo que minha
mãe diz é verdade”. Desse modo, abriu para o sujeito a oportunidade de passar
a questionar as razões dessa crença.
Dizer que o analista adotou aqui uma posição ativa, sustentada num desejo
férreo, consiste em um modo de formulação epistêmica, conforme enunciado
por Eric Laurent em A conversação de Arcachon (Miller et alli, 1977), a
propósito da direção da cura na psicose. Naquela ocasião, Laurent propôs que
o analista deve sustentar uma posição ativa para localizar os sinais mínimos de
amarração da estrutura, sustentando um desejo férreo de se fazer destinatário
desses sinais. Retomo aqui esses termos propostos por Eric Laurent para dizer
que, nesse caso de neurose, a analista adotou firmemente essa posição de
desejo para intervir decididamente na quebra da defesa que sustentava a
amarração da estrutura. Entretanto, adotou também de modo decidido a
direção de introduzir simultaneamente um novo elemento na amarração da
estrutura, um gozo mais vivificante, localizando ou fazendo aparecer na fala de
Karine os signos do amor ao pai. Esse trabalho de reenodamento é
fundamental para a amarração da estrutura, pois não convém que uma defesa
seja desmontada sem que o sujeito já tenha instalado os lastros firmes
sustentação num outro lugar mais apaziguador.
- funções de gozo: o pai, que se posiciona como macho, sexuado, que toma
uma mulher como objeto a causa do seu desejo, que transmite um traço
sintomático do seu gozo sexual. A mãe enquanto uma verdadeira mulher,
Medéia que, enlouquecida pelo seu gozo feminino, toma seus filhos como
objetos de sacrifício a esse gozo.
Quando, num relato de caso clínico, os pais são referidos em bloco – “meus
pais”, ou “os pais” – passamos muito longe das funções operativas que
interessam à psicanálise em cada caso. Quando o pai e a mãe permanecem
referidos por meio de semblantes imutáveis ao longo do caso, verifica-se que
não houve qualquer efeito analítico para aquele sujeito. Um tratamento requer
que o ato analítico tenha operado as mudanças de estatuto da mãe e do pai.
Tais mudanças vão sendo operadas em par, pois a modificação do estatuto de
um resulta diretamente na mudança do estatuto do outro na estrutura de um
sujeito.
- Pai que nunca a apoiava diante da sua mãe porque ele assim não o queria.
Pai suposto como pai ideal, que poderia abrigá-la de todo o mal, se assim o
quisesse.
- Pai covarde, decaído do ideal, que não tinha coragem de enfrentar a mãe
para não contrariá-la. Pai situado como homem sexuado no seu modo de fazer
parceria sexual com sua mulher. Pai do qual o sujeito pode extrair um uso,
operando uma identificação ao seu traço sintomático.
- Pai do amor, que apesar das suas falhas, a ama. Pai castrado porque ama
dando o que não tem. Pai da armadura histérica, pois introduz o sujeito Karine
num novo modo de discurso, passando a supor o estatuto de verdade no saber
inconsciente e não mais nos ditos da mãe.
Nesse sentido, tanto os norteadores aqui propostos como outros mais que
possam ser formulados só interessam para cada caso clínico como
ordenadores dos dados clínicos conforme o foco central epistêmico que foi
escolhido para formalizar o caso.
Nota
Referências Bibliográficas
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