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Corpo e invenção na clínica com crianças

Margaret Pires do Couto


Cartel: O corpo e seus diferentes estatutos na clínica contemporânea1
A discussão sobre ter ou ser um corpo esclarece como esse não tem uma existência
prévia e nem se reduz a seu suporte biológico. Isso exige, por parte do falasser, um
trabalho de construção do mesmo que se processa por meio de uma perda de gozo e da
amarração dos registros do Real, Simbólico e do Imaginário. Na clínica psicanalítica
com crianças evidencia-se de diferentes formas as perturbações ou os efeitos da
ausência do corpo. Diante disso, proponho investigar nesse cartel as invenções e
arranjos produzidos pelas crianças para fabricar um corpo possível de ser habitado.
Ter um corpo
O corpo, a princípio despedaçado e fragmentado pelas pulsões é, em um segundo
momento, unificado por uma imagem. Essa operação de unificação da imagem do corpo
exigirá tanto uma ligação simbólica com o Outro e, portanto, a ação da linguagem e do
significante quanto a operação da extração do objeto e sua consequente perda de gozo.
Essa perda, permitirá que corpo e gozo se separem e esse último se localize nas bordas
ou nas zonas erógenas. Desse modo, três elementos serão essenciais na construção do
corpo: o suporte significante, a consistência da imagem e a extração do objeto a.
Com o recurso do nó borromeano, Lacan torna ainda mais explícito o fato do corpo não
ser um dado natural, pois só poderá se constituir mediante a articulação do RSI. O corpo
passará então a ser caracterizado como um efeito da amarração destes três registros e
sua consistência produzida pelo véu constituído pelo imaginário e simbólico que
recobre o real. É a consistência do imaginário que faz com que possamos crer que temos
um corpo.
No seminário 23, Lacan nos dirá que “Ter relação com o próprio corpo como
estrangeiro é, certamente, uma possibilidade, expressa pelo fato de usarmos o verbo ter.
Tem-se seu corpo, não se é ele em hipótese nenhuma” (p.146). Nesse sentido, o homem
apreende seu corpo como uma forma, uma imagem que ele adora. Será por meio dessa
unidade corporal que ele poderá então se relacionar com o mundo e com o seus outros.
As invenções das crianças para fabricar um corpo
Para Oliveira (2008) há três dimensões a partir das quais o corpo se ordena: a
incorporação significante, o aparelhamento da libido e a função unificadora da imagem.
1
Cartel inscrito em maio de 2022 e composto por Margaret Pires do Couto (Mais-Um), Leda Clarice de
Souza Lima, Sthéfane Rayane Gomes Freitas, Luiza Rodrigues da Silva, Yolanda Luiza de Castro
Martins e Grazielle Baracho da Silva Jardim. 
A incorporação significante pressupõe a encarnação de um significante que permite dar
consistência ao corpo. Esta incorporação ou corporização define-se pelo efeito do
significante no corpo próprio, afetando o ser falante e promovendo alguma ordenação
corporal. Verificamos essa operação no caso Robert atendido por Rosine Lefort,
quando a incorporação se dá por meio da criação de significante novo: o lobo. A criação
deste significante e a imitação do mesmo por parte da criança demarcará os efeitos da
incorporação simbólica sobre Robert com importantes efeitos sobre seu corpo. Trata-se
de uma espécie de encarnação, corporização que permite que o significante lobo passe
de uma pura exterioridade a uma espécie de traço identificatório que permite a
constituição de um esboço de uma imagem corporal.
O aparelhamento da libido permite a constituição de uma imagem corporal ao contornar
e erotizar o corpo. A ausência desse aparelhamento faz com o que o corpo seja sentido
pelo sujeito como desmembrado, fragmentado ou por vezes localizado em algum órgão
específico. Diversas ações sobre o corpo realizadas pelos esquizofrênicos como as
mutilações, cortes, ou sensações de dor podem ser lidas como uma tentativa de
localização do gozo. Mais evidente nos casos de autismo, o desaparelhamento da libido,
pode encontrar na fabricação de um aparelho ou de uma máquina a solução que
funcione como um instrumento de sustentação simbólica do corpo, numa tentativa de
suplência. Desse modo, o sujeito pode ganhar uma animação libidinal operando e
fazendo-se de um semblante de máquina.
É a partir do olhar e das palavras do Outro que uma imagem corporal poderá se
constituir organizando e unificando essa imagem originariamente fragmentada. Na
ausência do recurso edípico e da constituição do espelho do Outro para organizar essa
imagem, o falasser poderá inventar outros recursos que tenham a função de organizar
essa imagem. Exemplos disso são o recurso à máscara desenvolvido por Recalcati
(2003), que fornece uma identidade na forma de uma compensação imaginária; e a
constituição das personalidades “como se” estudadas por Helene Deutsch (1968) ou
como diz Miller, a construção de um ser de puro semblante, uma espécie de máscara
social que cria para o sujeito uma distância com o gozo. Essas muletas imaginárias são
uma espécie de prótese imaginária que estabiliza o sujeito numa relação especular. Elas
têm como característica ser adesiva, integral, imediata, mimética, sem dialética a partir
da qual o sujeito, supõe um outro semelhante, totalmente idealizado.
Cazenave (2022) por sua vez propõe três vias de construção do corpo no ensino de
Lacan: a via da imagem, a via do objeto e a via do sintoma como acontecimento de
corpo Pela via da imagem, como dito anteriormente, se trata de construir um corpo
mediante a assunção de uma imagem como própria a partir de um processo de
identificação ou de um duplo real. O corpo imaginário como unidade não somente aloja
as representações como também constitui uma injeção de gozo de vida no corpo. A
imagem do corpo organiza e regula o gozo pulsional.
Ter um corpo pela via do objeto implica a tentativa de armar uma borda que supra a
ausência de bordas erógenas, quando o objeto não foi extraído. Operação muito presente
nos casos dos sujeitos autistas.
A terceira via que propõe Lacan para a construção do corpo em seu último ensino se dá
pela via do sintoma como acontecimento de corpo, como enodamento. Trata-se da
inscrição de uma letra que permite alojar as marcas iniciais das experiências de gozo
produzindo o acontecimento de corpo. A escritura dessa letra de gozo permite ter um
corpo sem depender do reconhecimento identificatório do Outro e sustentar a
consistência imaginária mais além do espelho. A consistência do corpo se revela não
pela armadura da imagem unificada mas sim, pelo aparecimento de um corpo afetado
pela dor e pelo prazer.
Na clínica com crianças, essas estratégias para regular o gozo e ordenar o corpo podem
ser rudimentares ou mais elaboradas. O importante é que ao acolhê-las o analista pode
fazer do espaço analítico um lugar privilegiado para realização da construção do corpo
sob transferência.
Referências:
GOLDBER, Suzana e STOISA, Etel (orgs.) Cómo habita el cuerpo un niño?:
Psicoanálisis con niños y adolescente 6. Olivos: Grama Ediciones, 2022.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. COMPLETAR
OLIVEIRA, Rosa Alba Sarno. A INVENÇÃO DO CORPO NAS PSICOSES: impasses
e soluções para o aparelhamento da libido e a construção da imagem corporal. Tese de
Doutorado. Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.

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