Cartel: O corpo e seus diferentes estatutos na clínica contemporânea1 A discussão sobre ter ou ser um corpo esclarece como esse não tem uma existência prévia e nem se reduz a seu suporte biológico. Isso exige, por parte do falasser, um trabalho de construção do mesmo que se processa por meio de uma perda de gozo e da amarração dos registros do Real, Simbólico e do Imaginário. Na clínica psicanalítica com crianças evidencia-se de diferentes formas as perturbações ou os efeitos da ausência do corpo. Diante disso, proponho investigar nesse cartel as invenções e arranjos produzidos pelas crianças para fabricar um corpo possível de ser habitado. Ter um corpo O corpo, a princípio despedaçado e fragmentado pelas pulsões é, em um segundo momento, unificado por uma imagem. Essa operação de unificação da imagem do corpo exigirá tanto uma ligação simbólica com o Outro e, portanto, a ação da linguagem e do significante quanto a operação da extração do objeto e sua consequente perda de gozo. Essa perda, permitirá que corpo e gozo se separem e esse último se localize nas bordas ou nas zonas erógenas. Desse modo, três elementos serão essenciais na construção do corpo: o suporte significante, a consistência da imagem e a extração do objeto a. Com o recurso do nó borromeano, Lacan torna ainda mais explícito o fato do corpo não ser um dado natural, pois só poderá se constituir mediante a articulação do RSI. O corpo passará então a ser caracterizado como um efeito da amarração destes três registros e sua consistência produzida pelo véu constituído pelo imaginário e simbólico que recobre o real. É a consistência do imaginário que faz com que possamos crer que temos um corpo. No seminário 23, Lacan nos dirá que “Ter relação com o próprio corpo como estrangeiro é, certamente, uma possibilidade, expressa pelo fato de usarmos o verbo ter. Tem-se seu corpo, não se é ele em hipótese nenhuma” (p.146). Nesse sentido, o homem apreende seu corpo como uma forma, uma imagem que ele adora. Será por meio dessa unidade corporal que ele poderá então se relacionar com o mundo e com o seus outros. As invenções das crianças para fabricar um corpo Para Oliveira (2008) há três dimensões a partir das quais o corpo se ordena: a incorporação significante, o aparelhamento da libido e a função unificadora da imagem. 1 Cartel inscrito em maio de 2022 e composto por Margaret Pires do Couto (Mais-Um), Leda Clarice de Souza Lima, Sthéfane Rayane Gomes Freitas, Luiza Rodrigues da Silva, Yolanda Luiza de Castro Martins e Grazielle Baracho da Silva Jardim. A incorporação significante pressupõe a encarnação de um significante que permite dar consistência ao corpo. Esta incorporação ou corporização define-se pelo efeito do significante no corpo próprio, afetando o ser falante e promovendo alguma ordenação corporal. Verificamos essa operação no caso Robert atendido por Rosine Lefort, quando a incorporação se dá por meio da criação de significante novo: o lobo. A criação deste significante e a imitação do mesmo por parte da criança demarcará os efeitos da incorporação simbólica sobre Robert com importantes efeitos sobre seu corpo. Trata-se de uma espécie de encarnação, corporização que permite que o significante lobo passe de uma pura exterioridade a uma espécie de traço identificatório que permite a constituição de um esboço de uma imagem corporal. O aparelhamento da libido permite a constituição de uma imagem corporal ao contornar e erotizar o corpo. A ausência desse aparelhamento faz com o que o corpo seja sentido pelo sujeito como desmembrado, fragmentado ou por vezes localizado em algum órgão específico. Diversas ações sobre o corpo realizadas pelos esquizofrênicos como as mutilações, cortes, ou sensações de dor podem ser lidas como uma tentativa de localização do gozo. Mais evidente nos casos de autismo, o desaparelhamento da libido, pode encontrar na fabricação de um aparelho ou de uma máquina a solução que funcione como um instrumento de sustentação simbólica do corpo, numa tentativa de suplência. Desse modo, o sujeito pode ganhar uma animação libidinal operando e fazendo-se de um semblante de máquina. É a partir do olhar e das palavras do Outro que uma imagem corporal poderá se constituir organizando e unificando essa imagem originariamente fragmentada. Na ausência do recurso edípico e da constituição do espelho do Outro para organizar essa imagem, o falasser poderá inventar outros recursos que tenham a função de organizar essa imagem. Exemplos disso são o recurso à máscara desenvolvido por Recalcati (2003), que fornece uma identidade na forma de uma compensação imaginária; e a constituição das personalidades “como se” estudadas por Helene Deutsch (1968) ou como diz Miller, a construção de um ser de puro semblante, uma espécie de máscara social que cria para o sujeito uma distância com o gozo. Essas muletas imaginárias são uma espécie de prótese imaginária que estabiliza o sujeito numa relação especular. Elas têm como característica ser adesiva, integral, imediata, mimética, sem dialética a partir da qual o sujeito, supõe um outro semelhante, totalmente idealizado. Cazenave (2022) por sua vez propõe três vias de construção do corpo no ensino de Lacan: a via da imagem, a via do objeto e a via do sintoma como acontecimento de corpo Pela via da imagem, como dito anteriormente, se trata de construir um corpo mediante a assunção de uma imagem como própria a partir de um processo de identificação ou de um duplo real. O corpo imaginário como unidade não somente aloja as representações como também constitui uma injeção de gozo de vida no corpo. A imagem do corpo organiza e regula o gozo pulsional. Ter um corpo pela via do objeto implica a tentativa de armar uma borda que supra a ausência de bordas erógenas, quando o objeto não foi extraído. Operação muito presente nos casos dos sujeitos autistas. A terceira via que propõe Lacan para a construção do corpo em seu último ensino se dá pela via do sintoma como acontecimento de corpo, como enodamento. Trata-se da inscrição de uma letra que permite alojar as marcas iniciais das experiências de gozo produzindo o acontecimento de corpo. A escritura dessa letra de gozo permite ter um corpo sem depender do reconhecimento identificatório do Outro e sustentar a consistência imaginária mais além do espelho. A consistência do corpo se revela não pela armadura da imagem unificada mas sim, pelo aparecimento de um corpo afetado pela dor e pelo prazer. Na clínica com crianças, essas estratégias para regular o gozo e ordenar o corpo podem ser rudimentares ou mais elaboradas. O importante é que ao acolhê-las o analista pode fazer do espaço analítico um lugar privilegiado para realização da construção do corpo sob transferência. Referências: GOLDBER, Suzana e STOISA, Etel (orgs.) Cómo habita el cuerpo un niño?: Psicoanálisis con niños y adolescente 6. Olivos: Grama Ediciones, 2022. LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. COMPLETAR OLIVEIRA, Rosa Alba Sarno. A INVENÇÃO DO CORPO NAS PSICOSES: impasses e soluções para o aparelhamento da libido e a construção da imagem corporal. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.