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Revista Nordestina de Ciências Biológicas (RncBIO), V. 02, N. 1, p.

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Revista Nordestina de
Ciências Biológicas
revnordestinacb.wixsite.com/rncbio
ISSN: 2595-3729

PORQUE FAZEMOS CIÊNCIA?


José Antônio FeitosaApolinário1

O presente exercício reflexivo tem como propósito ensaiar uma


¹Professorda Universidade Federal possibilidade de resposta às seguintes questões: porque afinal fazemos ciência?
Rural de Pernambuco (UFRPE), Que motivações internas nos levam a produzir conhecimento científico?
Unidade Acadêmica de Serra Talhada Tomando-as em consideração, pretendo aqui conceber possíveis direções,
(UAST). Avenida Gregório Ferraz
tentativas de apreciação de tais perguntas, à maneira de quem assume o risco de
Nogueira, S/N
Bairro: José Tomé de Souza Ramos pensar sem amparos, orientações declaradas ou tutelas, mas, ao mesmo tempo,
CEP: 56909-535 - Serra Talhada / PE admitindo os inevitáveis fantasmas que acompanham esse autor em função do
antonio.apolinario@ufrpe.br horizonte filosófico-acadêmico ao qual se encontra vinculado e que, vez por
tonyapolinario@gmail.com outra, poderão bem como deverão avizinhar-se ao argumento, sem, contudo,
colocar-lhe rédeas. Vamos à tentativa de argumentação.
Seres humanos foram e continuam sendo seres em cuja essência está em
Recebido: 06/02/2019
jogo a construção de narrativas no afã de explicar o mundo. Ser no mundo,
Aceito: 24/03/2019
existir nas circunstâncias desde as quais sempre nos compreendemos, constitui
Publicado: 11/062019
para nós a experiência de produzir sentido e criar interpretações com o objetivo,
entre outras perspectivas, de transpor o âmbito que vai do desconhecido ao
conhecido, do não-saber ao saber. Em épocas imemoriais demos significados ao
nosso entorno e a nós mesmos mediante a fabricação mitos. Narrativas
espetaculares recobriram com uma poética malha semântica a natureza e a
existência de tal maneira que sua força ainda mantém-se no modo como
diversas culturas organizam a vida e esquematizam o real.A nosso ver, esse
impulso plástico tipicamente humano está na origem dos relatos e revelações
fundadores de práticas e ritos religiosos, os quais, no limite, erguem-se como
costumes derivados dos modos de elucidação da realidade provenientes dos
mitos. No transcorrer histórico-cultural da efetivação de tal impulso, as formas
quase literárias, exageradas e sublimes da fala mítica sobre a natureza e nós
mesmos vão pouco a pouco dividindo espaço com o logos filosófico, noutras
palavras, com a visão de uma ordem ou inteligência inerente às próprias coisas
(ao ser humano, à natureza e ao mundo), havendo assim um cosmos que o
humano partilha com os outros seres e contempla por ser dotado de razão.
Desde então, com a filosofia, essa ‘ânsia por explicação’ ganha sua feição
propriamente lógica, e o real recebe uma outra configuração ao lado daquela
produzida pelos mitos e religiões 1.

1
Em torno dessa perspectiva veja-se REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. As origens gregas do pensamento ocidental.
In: História da filosofia. São Paulo: Paulus, 1990. v. 1, p. 11-28.
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O discurso filosófico, teórico, universalista, realidade pensada como multiplicidade de partes
totalizante, logicamente sistemático e puramente separadas, passíveis de serem investigadas
racional, edifica então uma maneira de posicionar o real isoladamente); a fragmentação do conhecimento
que fortalecerá a racionalidade enquanto forma científico (o fracionamento do saber científico em áreas
privilegiada de dizê-lo: o real abre-se para o humano ao que vão adquirindo especificidades quanto ao objeto de
ser iluminado pela razão. Não demorará muito para que pesquisa, aos procedimentos metodológicos e aos
do seio de tal discurso nasça uma concepção inicial de critérios de análise, isso em nítida correspondência com
ciência, esta entendida como episteme, conhecimento o primeiro pressuposto mencionado 3); a adoção do
verdadeiro dos fundamentos últimos e primeiros de raciocínio por indução (elaboração de juízos sobre
todas as coisas sobre as quais se debruça a reflexão objetos de estudo, que consistem em um movimento do
filosófica, noutros termos, domínio do saber humano raciocínio que vai do particular para o geral,
capaz de ultrapassar as contradições e carências do viabilizando processos de generalização, identificação
senso comum. Uma importante distinção que adentra a de leis gerais); e a verificação empírica como critério de
cultura ocidental para não mais abandoná-la tem sua distinção (utilização de procedimentos de testagem e
origem aqui: haveria um discurso verdadeiro porque comprovação empírica, repetição por meio de
considerado racional e provido de fundamento, que experimento, como componentes próprios do fazer
conseguiria alcançar o real em sua essência, ao qual se ciência, diferenciando-a, por sua vez, das demais formas
oporia um discurso falso, baseado em crenças, ilusões, de conhecimento humano).
aparências e verossimilhanças, destituído de Numa primeira apreciação, de fundo histórico-
fundamento e legitimidade. cultural, poderia afirmar que o surgimento da ciência,
Contudo, essa distinção vem à tona não sem do modo inclusive como predominantemente cabeças
originar uma série de questionamentos e problemas, ocidentais a entendem hoje, seria igualmente a
pois, à medida que surge essa compreensão de ciência, resultante de um longo processo em que nos pusemos a
simultaneamente nasce uma teoria do conhecimento que construir narrativas elucidativas acerca da realidade, de
lhe dá suporte, assim como uma gama de problemas uma peleja do humano para entender o seu entorno e a
filosóficos em seu encalço. si mesmo, junto a outros fatores co-determinantes
A antiga concepção de ciência enquanto (culturais, sociais, técnicos, econômicos, políticos etc.).
episteme perdurará na história ocidental até as Não me parece equivocado declarar que o
revoluções científicas da modernidade, para depois, e aspecto permanente – a meu ver, uma potência
em alguma medida, limitar-se cada vez mais à forma representativa da condição humana – seria exatamente o
própria como a filosofia constrói conhecimento. Isso se desejo de compreensão, o impulso por explicação, a
dá em função do amadurecimento e consolidação de um ‘necessidade’ de configuração de sentido. Por esse
novo modelo de explicação do real cuja relação com o ângulo, e em alguma medida, o discurso científico seria
discurso filosófico se mantém paradoxalmente próxima uma espécie de prolongamento do discurso filosófico e
na medida em que se distancia: trata-se da moderna este, por sua vez, um prolongamento da narrativa
concepção de ciência. Herdeira de um vasto terreno mítica. Isso significa dizer que, em termos de hipótese,
preparado por filósofos, e também matemáticos e há vínculos entre eles, porque há características que
astrônomos desde a Antiguidade (muitas vezes todas foram dialeticamente conservadas, componentes que
essas credenciais encontradas em um único ser embora vez por outra sejam negados ou tidos como ‘não
humano), o modelo moderno de ciência conserva fazendo parte’ de um ou de outro discurso, reaparecem
elementos típicos da filosofia (pensamento racional, silenciosos, sendo até mesmo omitidos nas fronteiras do
lógico e sistemático, preocupação metodológica), não dito.
porém, rompe com a mesma ao adotar a premissa da Muito além de dividirem a condição de ‘formas
empiria, da experiência sensorial sobre o particular, de discurso’ criadas pelo humano com o fito de explicar
desenvolvendo-se com um conjunto de pressupostos o mundo, a mitologia, a filosofia e a ciência, em
epistemológicos que lhe são constitutivos 2. conformidade com olhares mais cuidadosos, cultivam
Dentre esses pressupostos destacam-se, a meu elementos que um julgamento superficial dessas três
ver, entre outros, a compartimentação do real (a velhas senhoras é incapaz de perceber. Uma ilustração:
2
A esse respeito, o mais contundente exemplo na história do pensamento moderno reside na epistemologia de
Immanuel Kant (1724-1804). Nesse sentido, veja-se KANT, Immanuel. Crítica da razão pura.Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001.
3
Esses dois primeiros pressupostos encontram fundamento no pensamento do filósofo francês René Descartes (1596-
1650). Cf. DESCARTES, René. Discurso sobre o método. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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um capítulo importante da história da ciência a partir do Em boa medida, temos feito ciência com vistas
século XIX, e que acha certos ecos ainda em nosso a produzir esquematizações a fim de, por meio delas,
tempo, liga-se à narrativa do progresso científico, da edificar modos de organização da vida. Através da
ciência como única habilitada a garantir o progresso criação de esquemas aqui entendidos enquanto sistemas
humano e civilizacional, analisada por alguns de estruturação da realidade – o real como
pensadores enquanto remitologização, narrativa representações, estruturas, modelos explicativos –,
salvífica e messiânica, que já achava respaldo nalgumas planificamos maneiras de viver, concebemos programas
das linhas mestras do iluminismo 4 e, por conseguinte, na existenciais, introduzimos aplicações técnicas ao
quinta-essência da filosofia moderna (como, por cotidiano, produzimos e reproduzimos diferentes tipos
exemplo, na crença iluminista em relação à razão e sua relações sociais, afetivas, de trabalho, erguemos
capacidade de fundamentar a totalidade da experiência cidades, metrópoles, industrializamos produtos e o
humana, da ética à economia, da religião à arte). tempo, e mais um sem-número de outras derivações.
Outra ilustração consta do fato de a ciência E ainda, se levarmos em consideração o
positiva, também a partir do século XIX, pretender-se conhecimento em geral ou uma definição mais
dissociada de quaisquer elementos de natureza abrangente de ciência, e não uma perspectiva restrita,
metafísica, objetivando com isso distinguir-se acadêmica, formalmente planejada, metodologicamente
nomeadamente da filosofia, quando, à luz de diferentes rigorosa, financiada por órgãos de fomento e/ou
perspectivas interpretativas, ela continuaria na órbita corporações privadas, pode-se admitir que esse
daquilo que se pode considerar como pensamento fenômeno ocorre em todas as formas de organização
metafísico (mantendo-se, nesse sentido, fiel a uma humana, o que implica levar em conta o vasto e
concepção de verdade ligada à tradição essencialista contínuo leque entre vida (corpo, fisiologia, nutrição,...)
quando admite a verdade factual, a verdade puramente e cultura (valores, costumes, símbolos,...), fazendo aqui
objetiva). apenas uma simples diferenciação didática entre esses
Na contemporaneidade, a consciência quanto à dois âmbitos.
ausência de limites absolutos ou fronteiras de muros Outro propósito da ciência, em franca
intransponíveis entre os tipos de discursos aqui correspondência com o anterior, diz respeito à
pensados, parece-me válida na proporção em que amplia possibilidade de produzir condições de controle e
a necessidade de problematizar o que é mesmo ciência, segurança. Muito do prestígio obtido pelo
e buscar fundamentos pertinentes que assegurem a conhecimento científico nas modernas sociedades
demarcação de uma fronteira legítima, mas não industrializadas reside em sua muitas vezes alardeada
definitiva, entre os diversos tipos de conhecimento, capacidade de controlar ou mesmo dominar processos
inclusive aqueles alijados para longe da narrativa naturais e humanos, tendo por meta intrínseca o
historiográfica dominante (conhecimento popular, melhoramento ou aperfeiçoamento destes em relação
conhecimentos tradicionais de povos indígenas, saberes aos mais diversos intuitos: humanitários, econômicos,
não-teóricos etc.). Consensos mínimos a esse respeito políticos, sociais, e outros. Refiro-me ao domínio das
vêm sendo gerados, em torno dos quais a aventura aplicações técnicas que permitem a criação de um
humana de constituição de sentido via conhecimento ambiente de relativo conforto e tranquilidade na razão
continua: a compreensão segundo a qual não há um direta em que propicia a solução dos mais diversos
modelo unívoco de produzir ciência, de onde se segue problemas, muitos deles criados pela própria maneira de
que não há um único método científico, mas uma organização da vida adotada nas sociedades modernas:
pluralidade metodológica; o reconhecimento da doenças, escassez de água e alimentos, efeito estufa,
necessidade de interface, interconexão e colaboração dilemas jurídicos, violência urbana, questões
entre áreas de conhecimento na realização de pesquisas, ambientais, entre outros.
assumindo uma percepção menos fragmentária e mais A previsibilidade, o cálculo dos riscos, a
holística da realidade, são fortes indicadores disso. realização de diagnósticos e prognósticos, a
Com efeito, igualmente ao até agora discutido identificação de padrões repetíveis na natureza, a
afã explicativo e compreensivo do mundo, conforme invenção de dispositivos de prevenção, são alguns dos
entendo, surgem como possíveis respostas às elementos que sinalizam essa aspiração do saber
indagações iniciais que norteiam essa reflexão outras científico em ofertar garantias de administração, manejo
direções para o fato de construirmos conhecimento e monitoramento da vida, da natureza e de nós mesmos.
científico. Saliento em seguida duas dessas direções. Porém, certos processos protagonizados pelas ciências,
4
Acerca do problema das relações entre mito e ciência, cf. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A dialética do
esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
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bem como resultados e aplicações que a mesma vem acontecimentos científicos chegam quase
produzindo historicamente, têm sido motivo de cotidianamente aos ouvidos dos indivíduos na era
profunda repulsa e questionamentos éticos. Arrisco globalizada – poucos em realidade, uma vez que a
conjeturar que esses questionamentos movem-se em esmagadora maioria passa longe dos meios de
duas grandes linhas: uma que é propriamente filosófico- comunicação de massa. Em meio a resultados tidos
científica relacionada ao problema da técnica (e da conforme um velho jargão como ‘conquistas’ científicas
tecnologia), condizente à incontrolabilidade de seus e, por esse motivo, aparentemente indiscutíveis
efeitos; e outra referente ao enfrentamento de suas (sobretudo aqueles divulgados como avanços na
repercussões negativas no plano dos valores morais, medicina, na farmacologia, na biomedicina), há aqueles
religiosos e culturais, assim como no âmbito do direito. que apresentam pequeno grau de consensualidade,
A primeira linha deixa clara a falibilidade da outros que são motivo para risos, e outros que geram
ciência, não em um sentido que depõe contra a produção densas e complexas preocupações de ordem cultural,
de conhecimento científico, mas tão-somente mostra os religiosa, moral, política, jurídica, em diferentes níveis,
limites e a ausência de garantias quanto a um controle sendo, nalguns casos, considerados aberrações ou
total sobre possíveis consequências e desdobramentos afrontas à vida humana.
de seus procedimentos, resultados e aplicações. Nesse contexto, entre os vários
Elementos cujos cálculos são imponderáveis, variáveis desdobramentos condizentes aos questionamentos éticos
incontroláveis e previsões equivocadas, passam a ser em ciências, crescem estudos acerca dos impactos e
admitidos como parte aceitável das dinâmicas internas consequências de produtos técnicos desenvolvidos sob a
de produção científica. Significa dizer, em outras tutela de conhecimento científico, o que denominamos
palavras, que o aparato técnico condizente a e resultante ciência sobre a ciência; nascem movimentos e grupos
de pesquisas científicas não pode assegurar na de ativistas contrários à realização de determinados
totalidade e em definitivo o controle das dificuldades, experimentos científicos, sobretudo aqueles que
intercorrências e riscos que eles próprios podem vir a envolvem cobaias humanas e animais; passam a ser
gerar. instituídas formas de regulação por parte de órgãos
De certo modo, essa constatação surge em governamentais que buscam assegurar a adoção de
função da caracterização da ciência como transitória, critérios mínimos para realização de pesquisas
histórica, sistêmica, autorreferente, selada pela marca da científicas, trazendo à tona a necessidade de firmar
provisoriedade, nalgumas vezes comprometida com compromissos e fixar limites éticos para a produção de
determinados grupos de interesses, caracterização esta ciência.
típica de nossa época. Poder-se-ia então admitir a partir O surgimento dos comitês de ética em pesquisa
disso que é porque se reconhece limitada por diferentes com animais e seres humanos é precisamente uma
fatores, circunscrita a um tempo histórico e a um dessas formas. Seu trabalho consiste em efetivar a
conjunto de problemas próprios de um paradigma avaliação ética de protocolos de pesquisa que lhes são
vigente e passível de abandono, que a concepção de submetidos conforme um conjunto de princípios
ciência predominante no mundo contemporâneo carrega normatizados por uma comissão nacional instituída para
consigo simultânea e paradoxalmente um caráter falível este fim. A aprovação de tais protocolos de pesquisa
como seu parâmetro autocrítico e condição de vem sendo requerida por órgãos de fomento, revistas
possibilidade ou abertura a novos e alternativos científicas e programas de pós-graduação, como
desenvolvimentos. A falibilidade, a meu ver, condição para a execução ou publicação da mesma,
funcionaria enquanto limite epistemológico, admissão garantindo o acompanhamento do atendimento à ética
de um limiar cujo atravessamento é como um salto no da pesquisa em função do tipo de envolvimento e
escuro, sendo então uma das frentes daquilo que se participação a que seres humanos e animais são
poderia denominar ‘crítica da razão científica submetidos nos processos de investigação.
contemporânea’ 5. Nesse sentido, a velha narrativa da liberdade na
A segunda linha me parece aquela com a qual produção de conhecimento – enquanto defesa de uma
temos cada vez mais nos acostumado nas últimas ciência sem amarras –, recebe um conteúdo distinto de
décadas, em razão de seu maior apelo público e toda compreensão absolutizante: ela está garantida na
midiatização. As repercussões de determinados medida em que possa assegurar que não fere a
5
Nesse contexto, dois autores da filosofia da ciência são considerados indispensáveis à reflexão atual: Karl Popper e a
defesa da falseabilidade como critério de demarcação do que é ciência. Cf. POPPER, Karl Raimund.
A lógica da pesquisa científica. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2013. E Thomas Kuhn e seu conceito de paradigma. Cf.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2005.
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integridade ética do humano ou do animal (na condição manipulável. Segundo meu entendimento, essas três
de pesquisandos). Ademais, sabe-se que existem hipóteses estão intimamente ligadas, pois me parece
‘amarras’ que historicamente condicionaram e ainda claro que o fato de atribuirmos sentido ao mundo
condicionam a produção científica, como doutrinas permite-nos organizá-lo de acordo com este sentido
religiosas, convicções políticas e interesses de grupos atribuído, com a finalidade entre outras de controlá-lo,
econômicos, que fazem esfumar o discurso de uma pura administrá-lo, prevê-lo, e com isso obter um
liberdade científica e ao mesmo tempo promovem seu determinado gradiente de segurança, que se sabe, ao
incentivo como manobra ideológica. Quanto a isso, menos para os dotados de bom senso, efêmero,
sinalizo apenas que é preciso e até mesmo saudável para provisório e não absoluto, visto que se encontra
a própria ciência colocar em suspeita tanto a realização permanentemente passível de revisão,
quanto os resultados de determinadas pesquisas no que redimensionamento ou abandono.
diz respeito à produção de verdades – tema caro à No horizonte atual, principalmente levando em
filosofia da ciência. conta resultados recentes da genética e das
A título de síntese, a resposta aqui oferecida à biotecnologias, nos vemos desaguando em inquietações
pergunta porque afinal produzimos conhecimento sobre as quais pensávamos ter aparentemente chegado a
científico? obteve três direções hipotéticas. A primeira, firmar acordos ou que simplesmente ainda não nos eram
que considero de caráter existencial, diz respeito a uma reservadas, tais como que significa ser humano, se há ou
espécie de ‘ânsia por explicação’, ao impulso de ofertar não uma natureza humana, se nosso patrimônio genético
sentido ao mundo e a si próprio inerente ao humano, um deve ou não ser manipulado, por exemplo6. Essas e
dos motivos que o possibilitam ultrapassar a experiência outras inquietações repõem o mencionado impulso
do desconhecimento. A segunda refere-se à capacidade supra-histórico de significação do mundo, da realidade,
humana de produzir esquematizações, modelos da existência humana, da natureza, de nosso entorno,
explicativos, representações, estruturas de significação, das circunstâncias e conjunturas nas quais nos achamos
desde as quais se torna possível organizar modos de enredados, empurrando-nos a inventar novas maneiras
viver. A terceira e derradeira hipótese sobre que de organizar a vida, e, por conseguinte, de gerenciá-la.
possíveis razões nos levam a fazer ciência consiste na Trata-se do movimento humano desde o qual a própria
produção de condições de controle e segurança, ciência já consolidada, convoca-nos ela mesma a fazer
permitindo-nos assim, minimamente, identificar ciência.
padrões, criar técnicas de administração do real que em
certa medida o tornam calculável, previsível e

6
Sobre esses e outros problemas éticos que envolvem as biotecnologias veja-se FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro
pós-humano: consequências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.; HABERMAS, Jürgen. O
futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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