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EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS:

CONCEITO DE AMANUALIDADE E A DIALÉTICA DA FERRAMENTA EM ÁLVARO


VIEIRA PINTO
Aluno: Eduardo Ebbers Carneiro Leão
Professor: Marçal

Introdução.
O desenvolvimento da ciência não acontece autonomamente no plano intelectual das
abstrações, a edificação de sues alicerces conceituais e teóricos tem profunda relação com o
contexto social, político e econômico. Não há escapatória para esse circuito relacional, enquanto
projeto mental circunscrito em um paradigma e um método, a ciência, sobretudo as ciências
humanas, devem se manifestar na efetividade, no plano material e social, ou não passarão de mera
idealidade destituída de substancialidade. E ainda que haja um esforço dedicado por parte das
correntes intelectuais que coabitam com as classes sociais dominantes da faze histórica vigente em
destacar a ciência do plano social1, essas tentativas inevitavelmente ficam relegadas ao plano da
inefetividade quando postas a prova pelo fio da história, provando assim seu irremediável caráter
estritamente ideológico, foi assim com larga faixa de “pensadores” da consciência ingênua 2, termo a
qual o professor Álvaro Vieira Pinto se referia as escolas do pensamento que baseiam seus conceitos
teóricos a partir de uma acepção idealista, formal e extática da ciência, que não carrega em seu eixo
epistêmico a negação de sí mesma, e que por isso mesmo não leva em consideração os movimentos
constitutivos da consciência, caracterizados como “caricaturas do real” quando observa:

“Os pensadores, se não virem a relação fundamental que liga a prática ao esforço
produtivo, não descerão da esfera das generalidades. É neste sentido que nos parece justo
dizer que as filosofias da existência estão capacitadas a trazer uma contribuição ao
esclarecimento do tema. Cremos ser útil iluminar a noção do trabalho pela noção de
amanualidade, despojada esta da significação idealista que assume nos sistemas que a
introduziram. A associação desses dois conceitos poderá conduzir-nos a perceber o processo
de formação da consciência autêntica da realidade. Para consignar somente o resultado da
nossa reflexão, diremos que o caráter, necessariamente transfigurador, do trabalho é a via de
acesso à realidade. Por ele o mundo se abre à consciência, e isso tanto mais perfeitamente
quanto opera sobre partes cada vez mais amplas do real. De fato, não há outro modo de
captar o real senão introduzir-se na sua mobilidade, esposando-lhe a dinâmica: o meio único
de realizar a união do homem com o mundo é a ação. Supor que a consciência discerne num

1 Dentre as correntes do pensamento em alinhamento ideológico ao capital podemos citar a sociológia


2 VIEIRA PINTO, Álvaro. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), 1960. 2 v. (Coleção Textos Brasileiros de Filosofia, 1)
átimo a realidade exterior, é fazer dela um aparelho fotográfico, limitado a tomar imagens
que, como os instantâneos da arte fotográfica, reproduzem tudo, menos o essencial, o
movimento do objeto”3.

O conceito de amanualidade4 e a dialética da ferramenta5, a qual neste presente trabalho


tensionamos esforços na esperança de elucidar, criado pelo professor Álvaro Vieira Pinto leva em
conta essa máxima social-objetiva, buscando na materialidade do fato existencial do ser humano; o
trabalho, a capacidade de produção da espécie humana, a base estrutural de sua episteme.

O ser no tempo e espaço histórico-social.


Mas antes de mergulharmos no labirinto conceitual do professor Álvaro Vieira na tentativa
de desvendar a trilha espasmológica que nos levará ao núcleo do seu pensamento, temos que
analisar o contexto sócio-histórico a qual o próprio autor esteve inserido, visto que estamos tratando
de relações de reciprocidades, e da necessidade de estabelecer uma ciência amparada numa
objetividade histórico-social, ou seja, que esteja necessariamente alicerçada em um tempo e espaço.
Nas palavras do próprio autor: “A consciência filosófica só será legitima se explicar o estado do seu
meio, não por um reflexo passivo exterior, mesmo verídico, mas pela apreensão da essência do ser
social do qual o pensador é parte. 6” Reconhecido como homem de extensa cultura, o professor
Vieira Pinto é tido como um dos mais importantes filósofos brasileiros de todos os tempos. Médico,
professor, pesquisador, filósofo e tradutor, foi catedrático da Faculdade Nacional de Filosofia da
então Faculdade do Brasil, hoje UFRJ, e um dos fundadores do instituto Superior de Estudos
Brasileiros (Iseb), provavelmente a mais importante instituição envolvida no debate
desenvolvimentista nas décadas de 1950 e 1960, de onde disseminou seu pensamento influenciando
toda uma geração de intelectuais de sua época. Atuou como diretor do Iseb até 1964 quando foi
forçado a deixar o Brasil em virtude da perseguição pelo regime cívico-militar, se mudando para o
Chile em exílio onde trabalhou no Centro Latino Americano de Demografia (CELADE). O
educador Paulo Freire, aluno e pupilo do professor Vieira Pinto, referia-se ao mesmo como “meu
mestre”. Dentre suas obras de maior peso e importância destacamos Consciência e realidade social 7
de 1960 e O Conceito de Tecnologia8, publicado a partir das laudas do professor em 2005.
Ao examinar os textos de Vieira Pinto percebemos que sua obra obedeceu a uma lógica de
construção de um edifico argumentativo continuo e complementar, a qual vista de um ponto de vista

3 Ibden. P.61.
4 Ibden.
5 VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 1 v. P. 126
6 VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 1 v. P. 45
7 VIEIRA PINTO, Álvaro. Ciência e Existência: Problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e
Terra 1969. (Série Rumos da Cultura Moderna, 20)
8 VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 2 v.
ampliado, revela o paciente esforço dedicado à construção de um grande projeto: enunciar o alcance
antropológico e também antropomórfico do conceito de trabalho. Assim, estabelecendo o ponto de
partida de nossa analise da episteme do professor Vieira Pinto nos necessários alicerces histórico-
social a qual o autor estava inserido, passemos a analise mais específica de sua episteme enquanto
tal.
O ponto de partida para sua abordagem, o trabalho, já denuncia o engajamento de seu
pensamento em alicerces dialético materialista, com forte influência marxista, que é citado diversas
vezes em seus extensos escritos sobre a técnica. Entretanto também é perceptível como a
fenomenologia hegeliana influenciou o autor na construção de seus conceitos aqui analisados, tanto
o conceito de amanualidade, quanto da dialética da ferramenta, e um estatuto necessariamente
dialético nos movimentos de “mudança, supressão e sucessão” a conhecida esquemática da dialética
tripartida hegeliana da suprassunção. “Se alguma reflexão filosófica é permitido fazer com
fundamento nas criações humanas do presente, só terá probabilidade de alcançar a verdade aquele
cujo o núcleo central contiver o conteúdo da mudança, de supressão e sucessão. 9 O percebendo
enquanto movimento constitutivo e procedural enquanto processo de por a sí da consciência no
mundo. Assim Vieira Pinto mescla de maneira bem sucedida as estruturas do processo de
construção da realidade de sí com marca necessariamente técnica identificando assim a propriedade
exclusiva de agente produtor da própria realidade, em termos da dialética da suprassunção
hegeliana, enquanto estabelece os alicerces, o ponto de partida de seu projeto, do projeto de
produção de sí mesmo, na materialidade do ser, no arcabouço material, prático, tanto dos
maquinismos e objetos, quanto no corpo das teorias e conhecimento que possibilita a mudança da
realidade efetiva, ou seja que se inscreva quer nos domínios histórico-sociais material.
Outra clara influência que Vieira Pinto se apropria, com as devidas mudanças, são os
escritos da CEPAL10, sobretudo no pensamento de Raúl Prebich 11, quanto o corpo teórico quanto a
expansão econômica que se dá do centro para a periferia, no esforço dedicado de explicar a
problemática condição nacional específica de sua época, que ainda se mantém em nossa
contemporaneidade, da resolução para a seguinte questão: O que é trabalhar na periferia da
dominação econômica e cultural do centro? Tanto no “idioma cepalino” quanto nos escritos do
professor Vieira Pinto, a dicotomia centro- periferia oferece condições para o entendimento singular
da propagação do incremento tecnológico e da utilização da técnica para a substituição do trabalho
manual. No entendimento de Vieira Pinto o centro capturava um dos significados da tecnologia e
ideologicamente o proclamava como universal, reservando ao mundo da periferia a condição de

9 VIEIRA PINTO, Álvaro. Ciência e Existência: Problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e
Terra 1969. (Série Rumos da Cultura Moderna, 20)
10 CEPAL – Comição econômica para América latina e o Caribe.
11 Raúl Prebish, economista argentino, foi o mais destacado intelectual da CEPAL, tendo iniciado a linha estruturalista
do pensamento econômico.
“paciente receptor” das inovações técnicas quando na verdade, já se pronunciava uma “faze
histórica” na qual era possível atuar como “agente propulsor” do próprio desenvolvimento. Foi por
isso apelidado, tanto por seus louvadores quanto de seus detratores como “ideólogo do
desenvolvimento”.
Para o autor o homem trabalha, e quanto mais elaborada é sua capacidade de trabalhar mais
humanizado ele se torna. O fruto de seu trabalho é a fonte básica para o estudo antropológico de sua
existência uma vez que na relação entre homem e utensílio apresentasse o grau de domínio que o
sujeito tem sobre o objeto, ou inversamente, o grau de subordinação a que a situação lhe impõe, por
isso a chave da leitura antropomórfica da sociedade. Na construção do conceito de amanualidade
entendia que a realidade se apresenta ao homem enquanto campo possível de potencialidades, que
se revela mediante ação específica sobre os objetos dispostos a seu redor, aos quais podem ser
tomados como utensílios. Tal edifício assemelha-se a acepção conceitual do método luckacsiano, o
que lhe possibilita afirmar que estudar o trabalho e a tecnologia corresponde a investigar a cultura
daqueles que tem acesso a essa realidade.

Amanualidade
No pensamento do filósofo o conceito de amanualidade deriva da capacidade inerente do
único ser social do planeta de “manusear os objetos”, ou seja as variadas formas em que o homem,
homem aqui entendido na condição de ser genérico, possui de poder mexer, manejar, moldar,
manipular, os objetos. A capacidade de “manusear o mundo”, a ação ativa e intencional de se
relacionar com o mundo: “(…) A amanualidade não consiste no simples “estar aí” ao alcance da
mão, mas na capacidade, que só o processo nervoso chegado a determinado grau, o consciente,
adquire, de trabalhar sobre os objetos que circundam o indivíduo” 12. A referência ao manual da
amanualidade não se refere apenas a mão propriamente dita, mas ao ato de manusear o mundo pela
percepção sensível, com o corpo e com o pensamento que opera em unidade harmônica dos
contrários, relacionando a ideia de “preensão”, que faz referência tanto ao ato de pegar, agarrar, de
maneira grosseira, quanto a característica ortopédica de pinça da mão que possibilita movimentos
de sintonia fina e a criação e representação das obras mais sublimes de seu gênio, de apreender a
realidade, tanto a exterior quanto a sua própria, já que leva em consideração que o ser humano é
ativo perante sua realidade, ou seja no ato de manusear a realidade molda não apenas o objeto
exterior a seu ser, mas a sí mesmo no processo.
Isso ocorre justamente pelo fato de ao segurar o objeto o entende inicialmente como
separado de sí, como substâncias separadas. Mas pelo simples fato de segurar-lhe já lhe imbuí de
significado no sentido em que passa a ver o objeto não por ele mesmo, mas em como lhe pode ser
12 VIEIRA PINTO, Álvaro. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), 1960. 2 v. (Coleção Textos Brasileiros de Filosofia, 1)
útil, o objeto torna-se espelho de suas necessidades. ‘Objeto’ e ‘ser’, agora cosubstanciados pelo
contato inicial mas ainda ontologicamente separados, entretanto ao aplicar sua realidade ativamente
ao objeto, ao trabalhar sobre ele, imprimido-lhe seu modo de ser, ao mexer, amassar, apertar,
moldar, manipular, transfigurando-o de uma matéria amorfa e universal em matéria específica e
particular pois à cosubstancia a seu ser particular, ao imprimir-lhe sua técnica, tanto particular
quanto universal, eleva o objeto, e a sí mesmo, a outro grau de realidade, é dessa processualidade
dialética que a consciência põe a sí mesma em movimento constitutivo, diacrônico e sincrônico. É
um dos aspectos da dialética da ferramenta que veremos a seguir a qual a amanualidade é sua marca
de gradação qualitativa.
Ao utilizar a analogia da mão humana o professor Álvaro Vieira Pinto também nos revela o
caráter de mediação da qual o conceito de amanualidade é revestido, pois a mão humana é um
instrumento de mediação do corpo, é a partir dela, que manuseamos o mundo a nossa volta, que
extendemos os nossos sentidos, tocando, sentindo, tateando, segurando e soltando. A analogia com a
mão humana se mostra ainda mais conveniente quando pensamos no caráter dialético da
amanualidade como marca da relação entre a consciência – a imaterialidade abstrata do pensamento
que ocorre nos centros nervosos do sistema nervoso – e o membro humano per sí – a materialidade
mecânica do corpo que executa os parâmetros estabelecidos na insubstancialidade do sistema
nervoso, estando assim em unidade dialética, capaz de organizar e desorganizar, de produzir e
consumir, de criar e destruir. A amanualidade seria então a marca qualitativa da capacidade
demiúrgica do ser social de produzir em sí, para sí e a sí mesmo, que se procede pela lei da unidade
harmônica dos contrários ensejada no desdobramento do pensamento abstrato, onde o ato da
produção se incia no campo imaterial dos centros nervosos do ser social, e encerra seu ciclo na
mecânica corporal animada pelos parâmetros estabelecidos inicialmente na imaterialidade do
pensamento e efetivando-se no campo material pela mecânica do corpo. Tudo passa-se num ato só,
subdividido apenas para efeito de analise e exposição. Tal situação fica explicita na citação abaixo:

“O caráter de amanualidade implica a gradação nos tipos de manuseio e não se mostra,


conforme deixa crer a teoria, como propriedade unívoca. Mas, o que se esconde por trás desta
gradação do “amanual”? O trabalho. Uma coisa é mexer-se em um pouco de barro, outra é
segurar uma vasilha para beber, e outra ainda é tomá-la nas mãos para apreciar a beleza dos
desenhos e do colorido que lhe foi dado pela arte cerâmica. Nos três casos, imaginados como
exemplo, temos a mesma matéria, mas três graus distintos de manuseio, representando três
modalidades de ser, com tudo quanto de significado particular há para cada um; e o que
determina a diferenciação entre esses três modos é a operação do trabalhador, que imprime em
cada caso à substância bruta original propriedades que condicionam as diferentes possibilidades
de manuseio.”13

Entretanto devemos grifar que esse ciclo nunca se encerra em definitivo, visto que o
processo dialético no ato de sua efetivação já anuncia a necessidade premente de sua superação: “Se
alguma reflexão filosófica é permitido fazer com fundamento nas criações humanas do presente, só
terá probabilidade de alcançar a verdade aquele cujo o núcleo central contiver o conteúdo da
mudança, de supressão e sucessão14”. Como maraca qualitativa da consciência num sentido
instrumental, a amanualidade é consubstanciada a outro conceito que tentaremos explicitar no
presente trabalho, que é a dialética da ferramenta.
Assim amanualidade se põe como marca qualitativa da capacidade exclusiva da potência
criadora da espécie humana que pode, de acordo com o estágio específico da consciência
circunscrita em um tempo-espaço histórico-social, tanto socialmente como individualmente, tomar
formas diferenciadas. Assim quanto maior o grau de amanualidade maior também o grau de
hominização15, seja de uma sociedade ou de um indivíduo, pois quanto maior a capacidade de
apreensão do mundo, e dos “objetos” a seu redor, consequentemente maior a compreensão do
mundo e de sí mesmo. A dialética da ferramenta seria então o “modo de por a sí mesmo no mundo”
do homem a qual o nível de amanualidade é sua marca gradativa e qualitativa, seu nível de
humanização, e a técnica estigma de seu trabalho. A dialética da ferramenta é o aspecto modal da
qual a técnica, este modo de ser, se reveste para equacionar uma contradição entre o ser e o meio,
sendo assim modo de ser do homem, este modo de ser, a qual o trabalho é seu núcleo, é a técnica,
técnica aqui entendida como modo de ser existencial mais sublime do ser humano, o aspecto
diferenciador das demais espécies animais.

A capacidade de Projetar e o processo de hominização.


Para o professor Álvaro Vieira Pinto a faculdade de projetar é a capacidade mais sublime da
espécie humana, e para além do caráter elogioso quanto a faculdade exclusiva do único ser social
terrestre destaca que tal capacidade se encerra no modo de ser da própria espécie;

“A essência do projeto consiste no modo de ser do homem que se propõe a a criar novas
condições de existências para sí. Isso implica estabelecer outro sistema de relações sociais e

13 VIEIRA PINTO, Álvaro. Ciência e Existência: Problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e
Terra 1969. (Série Rumos da Cultura Moderna, 20)
14 VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 2 v.1. P.49
15 hominização
utilizar combinações originais as relações entre os corpos da natureza, de acordo com as
propriedades dele apreendidas pelo espírito e representadas em ideias. 16”

Como materialista que era, o professor Vieira Pinto antes de tudo posiciona a capacidade
projetista da espécie humana na materialidade do ser. Tanto em sua biologia, enquanto capacidade
abstrativa exclusiva do aparato eletroquímico do sistema nervoso do animal racional, quanto no fato
material existencial humano, o trabalho. Tal atitude denuncia já o caráter dialético da episteme do
professor Álvaro Pinto, ao identificar as relações de reciprocidade dialética entre a materialidade
biológica do homem e seus aspectos difusos e rarefeitos, o abstrato, o espírito, o pensamento. É
tanto o aparato material do sistema nervoso que possibilita a existência diferencial do ser humano
frente as demais espécies, ou seja a articulação de ideias gerais e a existência necessariamente social
do ser, enquanto por outro lado o aparato material é possibilitado, retroalimentado pelos dados,
informações do meio material/exterior para serem interpretados, e novamente objetivados agora de
maneira qualitativamente diferenciada e superior pois lida com um espectro do real cada vez mais
ampliado. Assim rejeita os aspectos existencialistas abstratos que ao destacar do plano material-
social-objetivo o modo de ser da espécie e confinando-o a um plano imaterial-particlar-abstrato
retiram todo o dinamismo do processo projetista humano, o arrancando-o dos domínios do
quimérico e rarefeito das idealidades, lhe enxertando a substancialidade material ao inscrevê-la em
seu estatuto material e não em uma pretensa “natureza humana” incognoscível e inalcançável; “O
homem projeta de fato seu ser, mas não pelo cultivo dessas especulações metafísicas e sim mediante
o trabalho efetivo de transformações da realidade material17”, definindo-o não enquanto substância,
mas enquanto ação, verbo, como modo de ser exclusivo do único ser social do planeta. “O projeto
não é um abstrato e irreal ‘constituir-se a sí mesmo’, ‘fazer-se na plenitude de sua liberdade
insondável’, e outras impalpáveis expressões poéticas equivalentes. Esses devaneios literários nada
tem haver com o sentido real do projeto enquanto forma de ser distintamente humana.18” Para Vieira
Pinto a capacidade de projetar no homem tomou forma de aspecto diferenciador definitivo das
demais espécies do planeta, o estigma definitivo de sua diferença; “o poder da ação do homem que
manifesta sobre a natureza distingue-se dos possuídos pelos demais seres vivos por se exercer em
consequência da capacidade de projetar.19” e encerra aspecto modal exclusivo de finalidade objetiva
universal da espécie de equacionar as contradições entre sí e o meio.
A capacidade de projetar, de refletir em noções gerais as propriedades das coisas, tanto
idealmente quanto objetivamente, foi a forma com a qual a natureza imbuiu o ser humano da
capacidade de solucionar as contradições da relação entre sí e o mundo físico e social, no sentido
16 VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 2 v.1. P.54
17 Ibden. P.55
18 Ibden. P.54
19 Ibden. P.55
sempre de aproveitar de maneira mais rendosa as características meterias apreendidas pelo espírito
pelo menor custo em energia. Nos animais irracionais o processo de solução das contradições se dá
através da adaptação biológica, extática e adaptativa, não carrega em sí negação de sí mesmo, não
há ato engajado, transformador. São seres puramente positivos no sentido de não terem consciência
de sí, assim se diz que os animais irracionais sobrevivem pela adaptação ao meio exterior, enquanto
seu homologo racional sobrevive adaptando o meio a sí. Assim a capacidade de projetar, que trata-
se de uma etapa do processo antropogênito da espécie humana; “(…) o projeto em sua origem é
pura e simplesmente a percepção mental das possibilidades de conexões entre as coisas 20”, é parte
do processo da dialética da ferramenta, da práxis fabricadora, etapa do modo de ser objetivo do
humano; o trabalho.

“No homem a capacidade do sistema nervoso superior de refletir em noções gerais as


propriedades das coisas segue duas linhas de desenvolvimento, que serão, em conjunto, dois
aspectos pelos quais se distinguirá este ser animal: (a) de um lado as ideias, enquanto sinais
das coisas, a linguagem, graças à qual, por força do convívio social na produção coletiva da
existência, o homem transfere de si a um semelhante a percepção de uma qualidade de algum
objeto ou estado do mundo circunstante; (b) e por outro lado, na própria esfera de
pensamento, estabelecem-se relações abstratas entre as propriedades percebidas nos corpos,
conduzindo ao surgimento, em estado ideal, do projeto de modificá-las.” 21

Assim estabelece-se o movimento constitutivo da práxis fabricadora da espécie humana em


seu fundamento; na materialidade do sistema nervoso do animal racional que engendra a sí mesmo
enquanto processo relacional entre o abstrato subjetivo do pensamento no relacionamento de ideias
gerais em contraposição a conceitos particulares, articulando o processo da ação humana
condicionada a uma finalidade produtiva, sempre com objetivo de equacionar uma contradição
efetiva estabelecida entre sí e o meio circundante de maneira mais rendosa e ao menor custo
energético possível, nesse processo não cria apenas objetos e coisas, mas sobretudo a sí mesmo, na
busca de solucionar problemas e limites a sua subsistência o homem se vale de seu modo de ser, o
producton modus, a qual a capacidade projetista é etapa de um processo mais abrangente a qual a
dialética da ferramente é a totalidade desse processo.

A dialética da Ferramenta.
O projeto, enquanto etapa mental, abstrata, é a faze primeira da práxis fabricadora humana,
pois enquanto projeto mental estabelece as finalidades e meios práticos para o equacionamento do

20 Ibden.
21
problema a qual o animal em via de hominização se propõe a solucionar. Assim não devemos julgar
que a evolução do sistema nervoso humano seja um processo autônomo, incondicionado, que deriva
espontaneamente da capacidade humana de produzir em situação de convivência social. São
processos simultâneos em inter-relação dialética. Desenvolve o sistema nervoso porque trabalha em
condições sociais com seus semelhantes, e só é capaz de trabalhar em conjunto e de estabelecer
relações sociais de produção porque dispõe dos órgãos nervosos capacitados a ato de produzir, a
realidade exterior e sua própria realidade por conseguinte.
Assim o processo da dialética da ferramente se engendra, aqui dividido em etapas para efeito
de compreensão, possibilitada pelo arcabouço biológico do sistema nervoso de relações, depara-se
com uma contradição a ser superada. A partir da reflexão desse problema percebido o ser então
debruça sua consciência sobre o problema ao projetar um meio prático para sua solução do
problema percebido. Inicia-se enquanto atividade mental, intelectual, a partir da captação das
imagens abstratas e das propriedades dos corpos entre as quais salienta-se aqueles que servem como
fonte de energia. Por ser dialético esse processo se encontra em estado dinâmico tanto quantitativo
quanto qualitativo. Cada ideia que o homem cria pela primeira vez constituí em nova função
cerebral que adquire, pois representa um diferente tipo de relacionamento de seu ser com o mundo,
seja por que o apreende de modo inédito, seja porque ganha com essa representação um
instrumento, até então inexistente, de ação sobre a realidade. Os indivíduos que a criam nos
domínios da subjetividade enquanto projeto mental particular da capacidade universal de projetar da
espécie, têm de obrigatoriamente de levá-la à efetividade, à prática. Dotá-la de substância ao fazer
“descer” dos domínios rarefeitos do pensamento até a materialidade bruta dos corpos, seja em
concepções teóricas sobre a realidade, seja na fabricação de dispositivos, montagens e mecanismos
totalmente originais. É por meio do acumulo de informações sobre o mundo, e sobre sí mesmo, que
a capacidade produtiva inerente ao homem expande a sí mesmo, estabelecendo uma relação entre
homem e natureza, onde o homem quem atua sobre a natureza, e não a natureza sobre o homem.
Assim a práxis fabricadora se estabelece na criação de uma nova realidade, mas sempre a
partir de uma mudança qualitativa em circuito de sucessão e supressão. As ideias representam em
seu mover continuo a emergência de funções inéditas do sistema nervoso que resultam da atividade
cujo a função geral é de pôr o homem em contato com o mundo. Assim na máquina, e parcialmente
em seus antecessor natural, o utensílio, a estrutura material e a aplicação de forças naturais deverão
ser multiplicadas pelo dispositivo. O tipo mecânico de máquina é o mais simples e surge em
primeiro lugar em virtude de uma característica típica do processo da dialética da ferramenta que é a
“delegação” da capacidade humana à máquina, ou seja, a capacidade de transferência das
capacidades orgânicas aos maquinismos que cria com finalidade efetivação das problemáticas a
qual seu ser se depara, se dá através da emulação na máquina do modo de ser do homem, emulação
das suas capacidades biológicas oriundas de seu sistema nervoso. Esse processo de delegação, ao
contrário do que o pensamento ingênuo afirma se dá apenas agora nas máquinas tidas “pensantes”,
aos computadores e tecnologias da informação, se dá a todas as máquinas, desde a mais primitiva
alavanca ao mais complexo acelerador de partículas. “Na genealogia das máquinas o primeiro
motor é o homem, e isso em duplo sentido: ideal, porque surgem do projeto que só a capacidade
cerebral do homem é capaz de engendrar; e material, porque a energia do corpo humano constituí a
primeira fonte de movimento a ser aplicada aos mais primitivos instrumentos e engenhos
mecânicos”22. Aqui também é importante salientar que a máquina não se destina a realização de um
indivíduo isolado, apenas no plano social, coletivo, tem seu significado efetivado.
Identificamos assim que o processo de delegação é imanente a máquina e a seu criador, o
homem. A razão desta delegação se dá a partir do desenvolvimento do sistema nervoso, que a partir
do acumulo gradual de informações em condições sociais, pois esta também condicionado ao
exercício social de seus efeitos, que acontece devido à extensão do primeiro sistema de sinais, que
comparam as propriedades imediatas da realidade a um segundo sistema, o qual simbolizando os
resultados do primeiro, permite a comunicação dos indivíduos uns com os outros por intermédio da
linguagem. Sem esta base ontológica não existiriam máquinas, pois seria impossível a reunião de
esforços individuais para a construção da mesma, ou da transmissão de instruções para sua
utilização por outros indivíduos das gerações sucessivas, mas fundamentalmente faltaria a condição
básica para estabelecer a necessidade da máquina; a poupança do esforço. São produzidas no curso
do processo social da produção do pensamento, ou seja da cultura, cujo grau de avanço, a qual
chamamos de grau de amanualidade como comentado nas seções acima, em cada momento
histórico medido na escala do conhecimento do mundo, determinando que tipos de maquinismos
são possíveis de realizar.
Todo engenho que capte uma força da natureza e a coloque a serviço dos homens é
considerada máquina. Na antiguidade as condições do conhecimento social, a episteme de um dado
tempo histórico, só permitiam a utilização e aproveitamento de forças simples; gravidade, pressão
das águas e corrente dos ventos para aproveitamento mecânico dos moinhos, além da tração animal,
sejam de bestas de carga ou mesmo de “bestas” humanas. Na origem mais remota da máquina se
confunde com o simples utensílio, convertido em ferramenta pelo qual se prolonga a ação dos
membros do ser humano. Seguindo o movimento aqui descrito da dialética da ferramenta, em que
no momento de efetivação já põe a necessidade premente de sua superação por outros maquinismos,
que mediante o recolhimento de dados, mediante a função reguladora do homem sobre a máquina.
Assim logo em seguida torna-se o utensílio, com sentido existêncial de ampliação das capacidades
humanas, seja na forma de extensão de um membro específico – uma vara para coletar frutos em

22 VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. 2 v.1. P.79.
uma arvore alta demais para seus membros orgânicos alcançarem – seja na multiplicação de sua
força motora – como no caso de uma clava para abater um animal. O efeito qualitativo segue seu
curso mediante as condições dialéticas a qual a prática do seu ser esta condicionado, assim o
utensílio ainda consubstanciado com o ser é usado para a criação de outros utensílios, ou seja o salto
qualitativo dialético do utensílio se dá na ferramenta, quando se produz com definitiva marca social,
outros utensílios. A pedra de sílex se conserva como utensílio nas mãos do homem em via de
hominização, com aplicação prática de seu modo ser aliado a uma finalidade específica de
equacionar uma contradição posta entre o ser e o meio, o projeto de torná-la afiada, se insere na
materialidade bruta da pedra de sílex a partir, primeiro da imagem idealizada do projeto na
abstração do pensamento projetista, posteriormente se desdobrado a partir da ação prática na
materialidade da rocha até torná-la o mais próxima possível de seu projeto, a faca de sílex. Essa
com capacidades qualitativamente diferentes de sua matéria bruta original, isso porque agora
imbuída da ação do homem, o trabalho, é dotada de significação diferenciada, torna-se ferramenta
enquanto capaz de produzir outros utensílios, ao cortar outras varas, outras clavas e afiar outras
pedras. Assim em caráter cada vez mais complexo, mas conservando sempre a mesma essência, o
modo de ser do único animal racional do planeta, chega as grandes máquinas mecânicas, industriais,
e assim que se dá a chegada desse tipo de máquina já se apresenta em seu horizonte existencial sua
superação na condição de máquinas qualitativamente diferenciadas na qual apontasse, já
parcialmente a separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual.
Assim o processo do desenvolvimento das máquinas tem sempre origem no homem
independente de sua faze histórica. Mas o papel que ela desempenha vai variando de acordo com a
marcha do desenvolvimento.

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