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INTRODUÇÃO
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Uma compulsão em repetir mascara um tipo de neurose i-
deológica, que foi mobilizada sempre que o social ameaçou invadir
o psicológico. Ou, para passar duma metáfora freudiana para uma
antropológica, o social representou, consistentemente, uma amea-
ça de poluição à pureza da psicologia científica.
Por que se mostrou tão difícil estabelecer uma psicologia so-
cial que incluísse tanto o social como o psicológico? Embora Mos-
covici sugerisse, na citação acima, que isso era uma questão para
historiadores, ele mesmo contribuiu, de algum modo, para escla-
recer esse enigma, como muitos dos textos aqui coletados teste-
munham (ver capítulos 1, 2, 3 e 7). Num ensaio histórico importan-
te, The Invention of Society, Moscovici (1988/1993) oferece mais
um conjunto de considerações que discutem a questão comple-
mentar de por que as explicações psicológicas foram vistas como
ilegítimas, na teoria sociológica. Durkheim formulou suas idéias
explicitamente em seu aforismo de que sempre que um fenôme-
no social é diretamente explicado por um fenômeno psicológico,
podemos estar seguros que a explicação é falsa (1895/1982: 129).
Mas, como mostra Moscovici, esse preceito contra a explicação
psicológica não apenas percorre, como um fio unificador, através
do trabalho dos escritores clássicos da teoria social moderna, mas
é também sub-repticiamente contradito por esses mesmos textos.
Pois, ao construir explicações sociais para fenômenos sociais, es-
tes sociólogos (Weber e Simmel são os exemplos analisados por
Moscovici, junto com Durkheim), necessitam também introduzir
alguma referência aos processos psicológicos para fornecer coe-
rência e integridade a suas análises. Em síntese, nesse trabalho
Moscovici é capaz de demonstrar, através de sua própria análise
destes textos fundantes da sociologia moderna, que o referencial
explanatório exigido para tornar os fenômenos sociais inteligíveis
deve incluir conceitos psicológicos, bem como sociológicos.
A questão, contudo, de por que foi tão difícil conseguir um re-
ferencial teórico estável, abrangendo tanto o psicológico como o
social, permanece obscura. Para dizer a verdade, a hostilidade da
parte dos psicólogos ao sociologismo foi tanta quanto a dos so-
ciólogos ao psicologismo . Ao dizer que a psicologia social, como
uma categoria mista, representa uma forma de poluição, ficamos
apenas nas palavras, enquanto nós não compreendermos por que
o social e o psicológico são considerados como categorias exclusi-
vas.
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Esse é o centro do enigma histórico que retém seu poder es-
pecifico até hoje. Embora fosse ingênuo pretender oferecer uma
explicação clara de sua origem, nós podemos vislumbrar algo de
sua história na oposição entre razão e cultura que, como discute
Gellner (1992), foi tão influente desde a formulação do racionalis-
mo de Descartes. Contra o relativismo da cultura, Descartes pro-
clamou a certeza que brota da razão. O argumento em favor do co-
gito introduziu um ceticismo sobre as influências da cultura e do
social que foi difícil de superar. Na verdade, se Gellner está corre to
ao constatar nesse argumento uma oposição entre cultura e razão,
então toda a ciência da cultura será uma ciência da não-razão. A
partir daqui, é um curto passo chegar-se a uma ciência desprovida
de razão, o que parece ser a reputação dada a toda tentativa de
combinar os conceitos sociológicos com os psicológicos numa
ciência mista . Mas foi justamente tal ciência desprovida de ra-
zão , que Moscovici procurou ressuscitar, através dum retorno ao
conceito de representação, como central a uma psicologia social
do conhecimento.
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A modernidade sempre se coloca em relação a algum passado
que é considerado como tradicional e embora seja errado (como
Bartlett, 1923, viu muito previdentemente) considerar as socieda-
des pré-modernas - ou tradicionais - como efetivamente homogê-
neas, o fio condutor central do argumento de Moscovici sobre a
transformação das formas de criação coletiva na transição para a
modernidade se relaciona à questão da legitimação. Nas socieda-
des pré-modernas (que, nesse contexto, são as sociedades feudais
na Europa, embora este ponto possa ser também relevante para
outras formas de sociedade pré-moderna), são as instituições cen-
tralizadas da Igreja e do Estado, do Bispo e do Rei, que estão no
ápice da hierarquia de poder e regulam a legitimação do conheci-
mento e das crenças. De fato, dentro da sociedade feudal, as pró-
prias desigualdades entre diferentes estratos, dentro dessa hierar-
quia, foram vistas como legitimas. A modernidade, em contraste,
se caracteriza por centros mais diversos de poder, que exigem au-
toridade e legitimação, de tal modo que a regulação do conheci-
mento e da crença não é mais exercida do mesmo modo. O fenô-
meno das representações sociais pode, neste sentido, ser visto
como a forma como a vida coletiva se adaptou a condições des-
centradas de legitimação. A ciência foi uma fonte importante de
surgimento de novas formas de conhecimento e crença no mundo
moderno, mas também o senso comum, como nos lembra Mosco-
vici. A legitimação não é mais garantida pela intervenção div ina,
mas se torna parte duma dinâmica social mais complexa e contes-
tada, em que as representações dos diferentes grupos na socieda-
de procuram estabelecer uma hegemonia.
A questão de uma teoria ser vaga pode ser vista como sendo,
em grande parte, um problema metodológico, pois ela se refere,
fundamentalmente, àquilo que diferentes perspectivas sociopsi-
cológicas tornam visível e inteligível. Com respeito a isso, diferentes
perspectivas em psicologia social operam com critérios e con-
dições diferentes. Armado com o aparato conceptual da psicologia
social tradicional, alguém irá lutar para não ver nada mais que
atitudes, do mesmo modo que a perspectiva discursiva irá revelar
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apenas os efeitos do discurso nos processos sociopsicológicos.
Cada um desses enfoques opera dentro dum universo teórico mais
ou menos hereticamente lacrado. Dentro de cada perspectiva,
há uma ordem conceptual que traz claridade e estabilidade á co-
municação dentro dela (cada perspectiva, podemos dizer, esta-
belece seu próprio código para intercâmbio social ). O que perma-
nece fora duma perspectiva particular mostra-se vago e o precur-
sor de desordem. Esse fato, na verdade, não é mais que uma ex-
pressão da permanente crise na disciplina da psicologia social que
continua a existir como um conjunto de paradigmas solitários . O
reconhecimento desse estado de coisas, por si mesmo, não confe re
status especial, ou privilegiado, à teoria das representações so -
ciais. O que dá ao trabalho de Moscovici seu particular interesse e a
razão pela qual ele continua a exigir atenção é que seu trabalho
em representações sociais forma parte dum empreendimento
mais amplo para estabelecer (ou re-estabelecer) os fundamentos
para uma disciplina que é tanto social, como psicológica.
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O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
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A psicologia social é, obviamente, uma manifestação do pen-
samento científico e, por isso, quando estuda o sistema co gnitivo
ela pressupõe que:
1. os indivíduos normais reagem a fenômenos, pessoas ou aco n-
tecimentos do mesmo modo que os cientistas ou os estatísti-
cos, e
2. compreender consiste em processar informações.
Em outras palavras, nós percebemos o mundo tal como é e to-
das nossas percepções, idéias e atribuições são respostas a estí-
mulos do ambiente físico ou quase-físico, em que nós vivemos. O
que nos distingue é a necessidade de avaliar seres e objetos corre-
tamente, de compreender a realidade completamente; e o que dis-
tingue o meio ambiente é sua autonomia, sua independência com
respeito a nós, ou mesmo, poder-se-ia dizer, sua indiferença com
respeito a nós e a nossas necessidades e desejos. O que era tido
como vieses cognitivos, distorções subjetivas, tendências afetivas
obviamente existem. Como nós, todos estamos cientes disso, mas
eles são concretamente vieses, distorções e tendências em rela-
ção a um modelo, a regras, tidas como norma.
Parece-me, contudo, que alguns fatos comuns contradizem
esses dois pressupostos:
a) Primeiro, a observação familiar de que nós não estamos
conscientes de algumas coisas bastante óbvias; de que nós não
conseguimos ver o que está diante de nossos olhos. É como se
nosso olhar ou nossa percepção estivessem eclipsados, de tal mo-
do que uma determinada classe de pessoas, seja devido a sua ida-
de - por exemplo, os velhos pelos novos e os novos pelos velhos -
ou devido a sua raça - p. ex. os negros por alguns brancos, etc. - se
tomam invisíveis quando, de fato, eles estão nos olhando de fren-
te . É assim que um arguto escritor negro descreve tal fenômeno:
Eu sou um homem invisível. Não, eu não sou um fantasma como
os que espantaram Edgar Allan Poe; nem sou eu um de vos-
sos ectoplasmas dos cinemas de Hollywood. Eu sou um ho-
mem concreto, de carne e osso, fibra e líquidos – e de mim
pode-se até dizer que tenho inteligência. Eu sou invisível,
entenda-se, simplesmente porque as pessoas recusam ver-
me. Como a cabeça sem corpo, que às vezes se vê em circos,
acontece como se eu estivesse cercado de espelhos de vidro
grossa e que distorcem a figura. Quando eles se aproximam
de mim, eles vêem apenas o que me cerca, se vêem eles
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mesmos, ou construções de sua imaginação – na realidade,
tudo, exceto eu mesmo (Ellison, 1965: 7).
1 Nota do editor: Moscovici está se referindo a um quadro de Magritte, que pode não ser tio
familiar aos leitores, O famoso quadro data de 1926 e mostra uma simples imagem de um c a-
chimbo com a inscriç~o )sso n~o é um cachimbo , embaicho da pintura. Em , ele pintou
outro quadro chamado Les deux mistéres (Os dois mistérios), em que o quadro de 1966 é mostra-
do em um cavalete, em uma sala vazia, com uma segunda imagem de um cachimbo flutuando no
ar, sobre ele. As questões sobre representação relacionadas a ambas as pinturas são extens a-
mente discutidas por Michel Foucault (1983).
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uma figura que está, ela mesma, dentro de uma figura e por isso um
pouco menos real que a outra, é totalmente ilusória. Uma vez que
se chegou a um acordo de entrar na moldura , nós já estamos com-
prometidos: temos de aceitar a imagem como realidade. Continua
contudo a realidade de uma pintura que, exposta em um museu e
definida como um objeto de arte, alimenta o pensamento, provoca
uma reação estética e contribui para nossa compreensão da arte
da pintura.
Como pessoas comuns, sem o benefício dos instrumentos ci-
entíficos, tendemos a considerar e analisar o mundo de uma ma-
neira semelhante; especialmente quando o mundo em que vive-
mos é totalmente social. Isso significa que nós nunca conseguimos
nenhuma informação que não tenha sido destorcida por re-
presentações superimpostas aos objetos e às pessoas que lhes
dão certa vaguidade e as fazem parcialmente inacessíveis. Quando
contemplamos esses indivíduos e objetos, nossa predisposição
genética herdada, as imagens e hábitos que nós já aprendemos, as
suas recordações que nós preservamos e nossas categorias cultu-
rais, tudo isso se junta para fazê-las tais como as vemos. Assim, em
última análise, elas são apenas um elemento de uma cadeia de rea-
ção de percepções, opiniões, noções e mesmo vidas, organizadas
em uma determinada seqüência É essencial relembrar tais lu gares
comuns quando nos aproximamos do domínio da vida mental na
psicologia social. Meu objetivo é reintroduzi-los aqui de uma ma-
neira que, espero, seja frutífera.
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comparação de mitos, lendas, tradições populares e lin-
guagens, como as representações sociais se atraem e se ex-
cluem, como elas se mesclam ou se distinguem etc. (Durkheim,
1895/1982: 41-42).
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Até o inicio do século, a linguagem verbal comum era um
meio tanto de comunicação, como de conhecimento; de idéias co-
letivas e de pesquisa abstrata, pois ela era igual tanto para o senso
comum, como para a ciência. Hoje em dia, a linguagem não-verbal
- matemática e lógica - que se apropriou da esfera da ciência, subs-
tituiu signos por palavras e equações por proposições. O mundo
de nossa experiência e de nossa realidade se rachou em dois e as
leis que governam nosso mundo cotidiano não possuem, agora,
relação direta com as leis que governam o mundo da ciência. Se
nós estamos, hoje, muito interessados em fenômenos lingüísticos,
isso se deve, em parte, ao fato de a linguagem estar em declínio, do
mesmo modo como estamos preocupados com as plantas, com a
natureza e os animais, porque eles estão ameaçados de extin-
ção. A linguagem, excluída da esfera da realidade material, re-
emerge na esfera da realidade histórica e convencional; e, se ela
perdeu sua relação com a teoria, ela conserva sua relação com a
representação, que é tudo o que ela deixou. Se o estudo da lin-
guagem, pois, é cada vez mais preocupação da psicologia social,
isso não é porque a psicologia social quer imitar o que aconteceu
com as outras disciplinas, ou porque quer acrescentar uma dimen-
são social a suas abstrações individuais, ou por qualquer outros
motivos filantrópicos. Isso está, simplesmente, ligado à mudança
que nós mencionamos há pouco e que a liga tão exclusivamente ao
nosso método normal, cotidiano, de compreender e intercam biar
nossas maneiras de ver as coisas.
b) Durkheim, fiel à tradição aristotélica e kantiana, possui uma
concepção bastante estática dessas representações - algo parecido
com a dos estóicos. Como conseqüência, representações, em sua
teoria, são como o adensamento da neblina, ou, em outras pa-
lavras, elas agem como suportes para muitas palavras ou idéias -
como as camadas de um ar estagnado na atmosfera da sociedade,
do qual se diz que pode ser cortado com uma faca. Embora isso
não seja inteiramente falso, o que é mais chocante ao observador
contemporâneo é seu caráter móvel e circulante; em suma, sua
plasticidade. Mais: nós as vemos como estruturas dinâmicas, ope-
rando em um conjunto de relações e de comportamentos que sur-
gem e desaparecem, junto com as representações. É o mesmo que
aconteceria com o desaparecimento, de nossos dicionários, da pa-
lavra neurótico , que iria, com isso, também banir certos senti-
mentos, certos tipos de relacionamento para com algumas pessoas
determinadas, uma maneira de julgá-las e, conseqüentemente, de
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nos julgarmos a nós mesmos.
Eu acentuo essas diferenças com uma finalidade especifica.
As representações sociais que me interessam não são nem as das
sociedades primitivas, nem as suas sobreviventes, no subsolo de
nossa cultura, dos tempos pré-históricos. Elas são as de nossa so-
ciedade atual, de nosso solo político, cientifico, humano, que nem
sempre têm tempo suficiente para se sedimentar completamente
para se tornarem tradições imutáveis. E sua importância continua
a crescer, em proporção direta com a heterogeneidade e a flutua-
ção dos sistemas unificadores - as ciências, religiões e ideologias
oficiais - e com as mudanças que elas devem sofrer para penetrar
a vida cotidiana e se tornar parte da realidade comum. Os meios
de comunicação de massa aceleraram essa tendência, multiplica-
ram tais mudanças e aumentaram a necessidade de um elo entre,
de uma parte, nossas ciências e crenças gerais puramente abstra-
tas e, de outra parte, nossas atividades concretas como indivíduos
sociais. Em outras palavras, existe uma necessidade continua de
re-constituir o senso comum ou a forma de compreensão que
cria o substrato das imagens e sentidos, sem a qual nenhuma cole-
tividade pode operar. Do mesmo modo, nossas coletividades hoje
não poderiam funcionar se não se criassem representações sociais
baseadas no tronco das teorias e ideologias que elas transformam
em realidades compartilhadas, relacionadas com as interações en-
tre pessoas que, então, passam a constituir uma categoria de fe-
nômenos à parte. E a característica especifica dessas representa-
ções é precisamente a de que elas corporificam idéias em expe-
riências coletivas e interações em comportamento, que podem,
com mais vantagem, ser comparadas a obras de arte do que a rea-
ções mecânicas. O escritor bíblico já estava consciente disso quan-
do afirmou que o verbo (a palavra) se fez carne; e o marxismo con-
firma isso quando afirma que as idéias, uma vez disseminadas en-
tre as massas, são e se comportam como forças materiais.
3. O familiar e o não-familiar
4.
Para se compreender o fenômeno das representações sociais,
contudo, nós temos de iniciar desde o começo e progredir passo a
passo. Até esse ponto, eu não fiz nada mais que sugerir certas re-
formas e tentar defendê-las. Eu não poderia deixar de enfatizar de-
terminadas idéias, caso quisesse defender o ponto de vista que eu
estava sustentando. Mas, ao fazer isso, demonstrei que:
a) as representações sociais devem ser vistas como
uma atmosfera , em relação ao indivíduo ou ao
grupo;
b) as representações são, sob certos aspectos, espe-
cíficas de nossa sociedade.
Por que criamos nós essas representações? Em nossas razões
de criá-las, o que explica suas propriedades cognitivas? Estas são
as questões que irei abordar em primeiro lugar. Nós poderíamos
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responder recorrendo a três hipóteses tradicionais: (1) a hipótese
da desiderabilidade, isto é, uma pessoa ou um grupo procura criar
imagens, construir sentenças que irão tanto revelar, como ocultar
sua ou suas intenções, sendo essas imagens e sentenças distor-
ções subjetivas de uma realidade objetiva; (2) a hipótese do dese-
quilíbrio, isto é, todas as ideologias, todas as concepções de mun-
do são meios para solucionar tensões psíquicas ou emocionais,
devidas a um fracasso ou a uma falta de integração social; são,
portanto, compensações imaginárias, que teriam a finalidade de
restaurar um grau de estabilidade interna; (3) a hipótese do co n-
trole, isto é, os grupos criam representações para filtrar a informa-
ção que provem do meio ambiente e dessa maneira controlam o
comportamento individual. Elas funcionam, pois, como uma espé-
cie de manipulação do pensamento e da estrutura da realidade,
semelhantes àqueles métodos de controle comportamental e de
propaganda que exercem uma coerção forçada em todos aqueles
a quem eles estão dirigidos.
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tais, ou as pessoas que pertencem a outras culturas, nos incomo-
dam, pois estas pessoas são como nós e contudo não são como
nós; assim nós podemos dizer que eles são sem cultura , bárba-
ros , irracionais etc. De fato, todas as coisas, tópicos ou pessoas,
banidas ou remotas, todos os que foram exilados das fronteira de
nosso universo possuem sempre características imaginárias; e pré-
ocupam e incomodam exatamente porque estão aqui, sem estar
aqui; eles são percebidos, sem ser percebidos; sua irrealidade se
torna aparente quando nós estamos em sua presença; quando sua
realidade é imposta sobre nós - é como se nos encontrássemos
face a face com um fantasma ou com um personagem fictício na
vida real; ou como a primeira vez que vemos um computador jo-
gando xadrez. Então, algo que nós pensamos como imaginação, se
torna realidade diante de nossos próprios olhos; nós podemos ver
e tocar algo que éramos proibidos.
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4. Ancoragem e objetivação, ou os dois processos
que geram representações sociais
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Pode-se dizer, contudo, que em sua grande maioria essas
classificações são feitas comparando as pessoas a um protótipo,
geralmente aceito como representante de uma classe e que o pri-
meiro é definido através da aproximação, ou da coincidência com o
última Desse modo, nós dizemos de certas personalidades - de
Gaulle, Maurice Chevalier, Churchill, Einstein, etc. - que eles são
representativos de uma nação, de políticos e de cientistas e nós
classificamos outros políticos ou cientistas em relação a eles. Se é
verdade que nós classificamos e julgamos as pessoas e coisas
comparando-os com um protótipo, então nós, inevitavelmente,
estamos inclinados a perceber e a selecionar aquelas caracterís-
ticas que são mais representativas desse protótipo, exatame n-
te como os aldeões de Denise Jodelet estavam mais claramente
conscientes da fala e do comportamento esquisito dos doentes
mentais, durante os dez ou vinte anos de sua estadia lá, do que da
gentileza, interesse e humanidade generalizados dessas desafor-
tunadas pessoas.
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• Objetivação - O físico inglês Maxwell disse, certa vez, que o
que parecia abstrato a uma geração se torna concreto para a se-
guinte. Surpreendentemente, teorias incomuns, que ninguém le-
vava a sério, passam a ser normais, criveis e explicadoras da reali-
dade, algum tempo depois. Como um fato tão improvável, como o
de um corpo físico produzindo uma reação á distância em um lu-
gar onde ele não está concretamente presente, pode transfor-
mar-se, menos de um século depois, em um fato comum, inques-
tionável - isso é ao menos tão misterioso, como sua descoberta, e
de conseqüências práticas muito maiores. Poderíamos mesmo ir
além da colocação de Maxwell, acrescentando que o que é inco-
mum e imperceptível para uma geração, torna-se familiar e óbvio
para a seguinte. Isso não se deve simplesmente a passagem do
tempo ou dos costumes, embora ambos sejam provavelmente ne-
cessários. Essa domesticação é o resultado da objetivação, que é
um processo muito mais atuante que a ancoragem e que nós va-
mos discutir agora.
Objetivação une a idéia de não-familiaridade com a de realida-
de, torna-se a verdadeira essência da realidade. Percebida primei-
ramente como um universo puramente intelectual e remoto, a ob-
jetivação aparece, então, diante de nossos olhos, física e acessí-
vel. Sob esse aspecto, estamos legitimados ao afirmar, com Lewin,
que toda representação torna real - realiza, no sentido próprio do
termo - um nível diferente da realidade. Esses níveis são criados e
mantidos pela coletividade e se esvaem com ela, não tendo exis-
tência por si mesmos; por exemplo, o nível sobrenatural, que em
certo tempo era quase onipresente, é agora praticamente inexis-
tente. Entre a ilusão total e a realidade total existe uma infinidade
de graduações que devem ser levadas em consideração, pois nós
as criamos, mas a ilusão e a realidade são conseguidas exatamen te
do mesmo modo.
A materialização de uma abstração é uma das características
mais misteriosas do pensamento e da fala. Autorida des políticas e
intelectuais, de toda espécie, a exploram com a fi nalidade de sub-
jugar as massas. Em outras palavras, tal autorida de está funda-
mentada na arte de transformar uma representação na realidade
da representação; transformar a palavra que substitui a coisa, na
coisa que substitui a palavra.
Para começar, objetivar é descobrir a qualidade icônica de
uma idéia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma
imagem. Comparar é já representar, encher o que está natural-
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mente vazio, com substância. Temos apenas de comparar Deus
com um pai e o que era invisível, instantaneamente se toma visível
em nossas mentes, como uma pessoa a quem nós podemos res-
ponder como tal. Um enorme estoque de palavras, que se referem
a objetos específicos, está em circulação em toda sociedade e nós
estamos sob constante pressão para provê-los com sentidos con-
cretos equivalentes. Desde que suponhamos que as palavras não
falam sobre nada , somos obrigados a ligá-las a algo, a encontrar
equivalentes não-verbais para elas. Assim como se acredita na
maioria dos boatos por causa do provérbio: Não há fumaça sem
fogo , assim uma coleção de imagens é criada por causa do pro-
vérbio: Ninguém fala sobre coisa alguma .
Mas é apenas o acaso que não pode responder pelo uso exten-
sivo que nós fazemos das particularidades da gramática, nem po-
de explicar sua eficiência.
Isso pode ser feito de uma maneira melhor, através da tenta-
tiva de objetivar a própria gramática, o que é conseguido muito
simplesmente colocando substantivos - que, por definição, se refe-
rem a substâncias, a seres - em lugar de adjetivos, advérbios, etc.
Desse modo, atributos ou relações são transformadas em coisas.
Na verdade, não existe tal coisa como uma repressão, pois ela se
refere a uma ação (reprimir a memória), ou um inconsciente, pois
ele é um atributo de algo diferente (os pensamentos e de sejos de
uma pessoa). Quando nós dizemos que alguém está dominado por
seu inconsciente ou sofre de uma repressão como se tivesse bócio
ou dor de garganta, o que nós realmente queremos dizer é que
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este indivíduo não está consciente do que faz ou pen sa; do mesmo
modo, quando nós dizemos que uma pessoa sofre de ansiedade,
nós queremos dizer que está ansiosa, ou se com porta de uma
maneira ansiosa.
Farr (1977) mostrou com acerto que existe uma relação en-
tre a maneira como nós concebemos algo para nós mesmos e a
maneira descrevemos aos outros. Vamos, pois, aceitar essa rela-
ção, embora notemos que o problema da causalidade foi sempre
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um problema crucial para as pessoas interessadas em representa-
ções sociais, como Fauconnet, Piaget e, mais modestamente, eu
mesmo. Nós enfocamos o problema, porém, de um ângulo muito
diverso do de nossos colegas americanos - americano é usado
aqui em um sentido puramente geográfico. O psicólogo social do
outro lado do Atlântico baseia suas investigações na teoria da atri-
buição e está interessado principalmente na maneira como nós
atribuímos causalidade as pessoas ou coisas que nos rodeiam.
Certamente não seria exagero dizer que suas teorias são baseadas
em um principio único - o ser humano pensa como um estatístico -
e que existe somente uma regra em seu método - estabelecer a
coerência da informação que nós recebemos do meio ambiente.
Nessas circunstâncias, grande número de idéias e imagens - na
realidade, todas as que a sociedade nos apresenta - devem ou en-
quadrar-se com o pensamento estatístico e assim consideradas
como sem valor, pois elas não podem se adequar a ele, ou então
ofuscar nossa percepção da realidade como de fato é. Elas são, por
isso, pura e simplesmente ignoradas.
2 Experimentos feitos por Tversky e Kabneman (1974) tiveram mui to sucesso ao prova r
que esse pressupos to é infundado e deve sua popularidade a um equívoco que s e bas eia em
principios artificiais
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explicações são totalmente opostas e obviamente provém de
representações sociais distintas. A primeira representação acena
responsabilidade individual e a energia pessoal — os problemas
sociais somente podem ser resolvidos por cada indivíduo. A se-
gunda representação acentua a responsabilidade social, denuncia:
a injustiça social e propõe soluções coletivas para problemas indivi-
duais. Shaver notou tais reações até mesmo nos Estados Unidos.
Atribuições pessoais sobre a razão para a assistência social
(wel-f are) levam a discursos sobre aproveitadores do assisten-
cialismo , a apelos para voltar aos tempos antigos, para a é-
tica protestante, ou para leis com a finalidade de tornar a
assistência financeira obrigatória mais difícil de ser conseguida. A-
tribuições situacionais, por outro lado, vão, mais provavelmente, su-
gerir que a expansão dos empregos, por parte do governo, a melhor
preparação para o trabalho e o aumento de oportunidade educa-
cional para todos, irão propiciar reduções mais duradouras
na assistência pública (Shaver, 1975: 133).
Conclusões
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Poderia ser útil apontar algumas distinções que devem ser le-
vadas em consideração. Algumas representações se referem a fa-
tos, outras a idéias. As primeiras transportam seu objeto de um
nível abstrato para um nível cognitivo concreto; as segundas, atra-
vés de uma mudança de perspectiva, tanto compõem, como de-
compõem seu objeto - elas podem, por exemplo, apresentar as bo-
las de bilhar como uma ilustração do átomo ou considerar uma
pessoa, psicanaliticamente falando, como dividida em um cons-
ciente e em um inconsciente. Ambas, contudo, criam quadros de
referência pré-estabelecidos e imediatos para opiniões e percep-
ções, dentro dos quais ocorrem automaticamente reconstruções
objetivas tanto de pessoas, como de situações e que subjazem à
experiência e ao pensamento subjetivos. O que é surpreendente e
que deve ser explicado não é tanto o fato de que tais reconstruções
são sociais e influenciam a todos, mas antes que a sociabilidade as
exige, expressa nelas sua tendência de posar como não-sociabili-
dade e como parte do mundo natural.
3 Nós discutiremos de novo representações socials depois que nós tivermos delineado as
criticas levantadas sobre o conceito de atitude que e, por definição, uma causa mediadora. Desse
modo, nós esperamos demonstrar a autonomia da psicologia social e inserir no contexto coletivo
uma teoria (isto é, a das atitudes), que se tomou muito individualística. O trabalho de Jaspers &
Fraser (1984) dá muito peso a esse ponto de vista
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rentes signos - olhos bem abertos, lábios distendidos, movimentos
da cabeça - que a incitam a ficar de pé, gritar, etc. Estas imagens e
paradigmas predizem o que surgirá como estimulo ou resposta ao
ator ou espectador: os braços da criança estendidos em direção ao
rosto sorridente da mãe, ou o rosto sorridente da mãe inclinado em
direção aos braços estendidos da criança.
Reações emocionais, percepções e racionalizações não são
respostas a um estimulo exterior como tal, mas à categoria na qual
nós classificamos tais imagens, aos nomes que nós damos a elas.
Nos reagimos a um estímulo à medida em que, ao menos parcial-
mente, nós o objetivamos e o re-criamos, no momento de sua
constituição. O objeto ao qual nós respondemos pode assumir di-
versos aspectos e o aspecto específico que ele realmente assume
depende da resposta que nós associamos a ele antes de defini-lo. A
mãe vê os braços da criança estendidos para ela e não para uma
outra pessoa, quando ela já está se preparando para sorrir e está
consciente de que seu sorriso é indispensável para a estabilidade
da criança.
Em outras palavras, representações sociais determinam tanto o
caráter do estimulo, como a resposta que ele incita, assim como, em
uma situação particular, eles determinam quem é quem. Conhecê-los e
explicar o que eles são e o que significam é o primeiro passo em toda
análise de uma situação ou de uma relação social e constitui-se em um
meio de predizer a evolução das interações grupais, por exemplo. Na
maioria dos nossos experimentos e observações sistemáticas nós, de
fato, manipulamos representações quando pensamos que estamos
manipulando motivações, inferências e percepções e é somente por-
que não as levamos em consideração, que estamos convencidos do
contrário. O laboratório mesmo, para onde uma pessoa se dirige para
ser objeto de um experimento, representa para ela e para nós o protó-
tipo de um universo reificado (cf. o capítulo de Farr). A presença do
aparato, a forma como o espaço é organizado, as instruções que ela
recebe, a natureza mesma do empreendimento, a relação artificial
entre o experimentador e o sujeito e o fato de que tudo isso ocorre no
contexto de uma instituição e sob a égide da ciência, tudo isso repro-
duz muitas características essenciais de um universo reificado. Está
muito claro que a situação determina tanto as questões que vamos
formular, como as respostas que elas vão fornecer.
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Figura 1.1 -Modelos de representação
Idéia corrente
Estimulo
Representação
Resposta
Idéia proposta
Estimulo
Representação
Resposta
Observações finais
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galáxia de investigações relacionadas. Percebo isto como uma
materialização concreta de uma observação de Vygotsky: O pro-
blema do pensamento e da linguagem extrapola os limites da ciên-
cia natural e se toma o problema central da sociologia histórica
humana, i.e. da psicologia social (Vygotsky, 1977). Esta seria a
ciência dos universos consensuais em evolução, uma cosmogonia
da existência física humana. Não ignoro as dificuldades de tal em-
preendimento, nem o fato de que ele pode ser impassível, como
também não ignoro a lacuna entre tal projeto e as nossas modes-
tas realizações até o dia de hoje. Mas não posso compreender que
isso seja razão suficiente para não empreendê-lo e não desenvol-
ve-lo, o mais claramente possível, na esperança que outros irão
compartilhar da minha fé nesse projeto.
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