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SUMÁRIO

Introdução - O poder das idéias, 7


1. O fenômeno das representações sociais, 29
2. Sociedade e teoria em psicologia social, 111
3. A história e a atualidade das representações sociais, 167
4. O conceito de themata, 215
5. Caso Dreyfus, Proust e a psicologia social, 251
6. Consciência social e sua história, 283
7. Idéias e seu desenvolvimento - Um diálogo entre Serge
Moscovici e Ivan Marková, 305
Referências bibliográficas, 389

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INTRODUÇÃO

O poder das idéias

1. Uma psicologia social do conhecimento


Imagine-se olhando para um mapa da Europa, sem nenhuma
indicação nele, com exceção da cidade de Viena, perto do centro, e
ao norte dela, a cidade de Berlim. Onde você localizaria as cidades
de Praga e Budapeste? Para a maioria das pessoas que nasceram
depois da II Guerra Mundial, ambas as cidades pertencem à divi-
são do Leste da Europa, enquanto Viena pertence ao Oeste e, co n-
seqüentemente, tanto Praga como Budapeste deveriam se lo-
calizar a Leste de Viena. Mas olhe agora para o mapa da Europa e
veja a localização real dessas duas cidades. Budapeste, com certe-
za, está afastada, ao Leste, bem abaixo de Viena, ao longo do Da-
núbio. Mas Praga está, na verdade, a Oeste de Viena.
Esse pequeno exemplo ilustra algo do fenômeno das repre-
sentações sociais. Nossa imagem da geografia da Europa foi re-
construída em termos da divisão política da Guerra Fria, em que as
definições ideológicas de Leste e Oeste substituíram as geográfi-
cas. Podemos também observar, nesse exemplo, como padrões de
comunicação, nos anos do pós-guerra, influenciaram esse proces-
so e fixaram uma imagem específica da Europa. E verdade que no
Oeste houve certo medo e ansiedade do Leste, que antecederam a
II Grande Guerra e que persistem mesmo até hoje, uma década
depois da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria. Mas
essa representação, duma Europa dividida nos anos do pós-guer-
ra, teve sua influência mais forte no eclipse da velha imagem da
Mitteleuropa, de uma Europa Central, abarca ndo as áreas centrais
do Império Austro-Húngaro, e estendendo-se ao norte, em dire-
ção a Berlim. Foi essa Europa Central, desmembrada pela Guerra
Fria, que reposicionou também ideologicamente Praga ao leste da
Viena ocidental . Hoje, a idéia da Mitteleuropa está sendo nova-
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mente discutida, mas talvez o sentido da outridade leste marcou
a imagem de Praga tão nitidamente, que poderemos necessitar de
muito tempo antes que esses novos padrões de comunicação re-
posicionem a cidade novamente a oeste de Viena.
Esse exemplo, além de ilustrar o papel e a influência da co-
municação no processo da representação social, ilustra também a
maneira como as representações se tomam senso comum. Elas en-
tram para o mundo comum e cotidiano em que nós habitamos e
discutimos com nossos amigos e colegas e circulam na mídia que
lemos e olhamos. Em síntese, as representações sustentadas pelas
influências sociais da comunicação constituem as realidades de
nossas vidas cotidianas e servem como o principal meio para esta-
belecer as associações com as quais nós nos ligamos uns aos o u-
tros.
Por mais de quatro décadas Serge Moscovici, juntamente com
seus colegas, fez avançar e desenvolver o estudo das representa-
ções sociais. Esta coleção reúne alguns dos ensaios principais, ex -
traídos de um corpo bem maior de trabalho, que apareceu nesses
anos. Alguns desses ensaios apareceram anteriormente em inglês,
enquanto outros são traduzidos aqui para o inglês pela primeira
vez. Juntos, eles ilustram a maneira como Moscovici elaborou e de-
fendeu a teoria das representações sociais, enquanto na entrevista
conclusiva com Ivana Marková, ele apresenta os elementos princi-
pais da história de seu itinerário intelectual. No coração deste proje-
to esteve a idéia de construção duma psicologia social do conheci-
mento e é dentro do contexto deste projeto mais vasto que seu tra-
balho sobre representações sociais deve ser visto.
Com que, então, uma psicologia social do conhecimento pode
se parecer? Que espaço ela procurará explorar e quais serão as ca-
racterísticas-chave desse espaço? O próprio Moscovici apresenta
este tema da seguinte maneira:
Há numerosas ciências que estudam a maneira como as pessoas tra-
tam, distribuem e representam o conhecimento. Mas o e s-
tudo de como, e por que, as pessoas partilham o conhecimento e des-
se modo constituem sua realidade comum, de como eles
transformam idéias em prática - numa palavra, o poder das idéi-
as - é o problema especifico da psicologia social (Moscovici, 1990a: 169).

Por conseguinte, da perspectiva da psicologia social, o conhe-


cimento nunca é uma simples descrição ou uma cópia do estado
de coisas. Ao contrário, o conhecimento é sempre produzido atra-
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vés da interação e comunicação e sua expressão está sempre liga-
da aos interesses humanos que estão nele implicados. O conheci-
mento emerge do mundo onde as pessoas se encontram e intera-
gem, do mundo onde os interesses humanos, necessidades e de-
sejos encontram expressão, satisfação ou frustração. Em síntese, o
conhecimento surge das paixões humanas e, como tal, nunca é
desinteressado; ao contrario, ele é sempre produto dum grupo es-
pecifico de pessoas que se encontram em circunstâncias especifi-
cas, nas quais elas estão engajadas em projetos definidos (cf. Bauer
& Gaskell, 1999). Uma psicologia social do conhecimento está in-
teressada nos processos através dos quais o conhecimento é gera-
do, transformado e projetado no mundo social.

2. A La recherche des concepts perdus (À procura dos conceitos


perdidos)

Moscovici introduziu o conceito de representação social


em seu estudo pioneiro das maneiras como a psicanálise penetrou
o pensamento popular na França. Contudo, o trabalho em que esse
estudo é relatado, la Psicanalyse: Son image et son public, primei-
ramente publicado na França em 1961 (com uma segunda edição,
bastante revisada, em 1976), permanece sem tradução para o in-
glês, uma circunstância que contribuiu para a problemática recep-
ção da teoria das representações sociais no mundo anglo-saxão. É
claro que uma tradução inglesa desse texto não iria, por si mesma,
resolver todas as diferenças entre as idéias de Moscovici e os pa-
drões dominantes do pensamento sociopsicológico na Inglaterra e
nos EE.UU., mas teria, ao menos, ajudado a reduzir o número de
maus entendimentos do trabalho de Moscovici, e adicionado uma
penumbra de confusão às discussões destas idéias em inglês.
Mais que isso, porém, a falta duma tradução significa que a cultura
anglo-saxã, predominantemente monolingüe, não teve acesso a
um texto, em que temas centrais e idéias sobre a teoria das re-
presentações sociais são apresentados e elaborados, no contexto
vital dum estudo especifico de pesquisa. Quando estas idéias são
colocadas em ação na estrutura dum projeto de pesquisa, na orde-
nação e no processo de tomar inteligível a massa de dados empíri-
cos que emergem, elas assumem também um sentido concreto,
que é apenas fracamente visível nos textos teóricos mais abstra-
tos, ou programáticos.
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Mas se o trabalho de Moscovici foi obscurecido no mundo an-
glo-saxão, o próprio conceito de representação social teve
uma história p roblemática den tro da psicologia social. Na
verdade, Moscovici intitula o capitulo inicial de La Psychanalyse
Representação social: um conceito perdido , e introduz seu traba-
lho nesses termos:
As representações sociais são entidades quase tangíveis.
Elas circulam, se entrecruzam e se cristalizam continua-
mente, através duma palavra, dum gesto, ou duma reunião,
em nosso mundo cotidiano- Elas impregnam a maioria de
nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzi-
mos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos.
Nós sabemos que elas co rrespondem, dum lado, à substân-
cia simbólica que entra na sua elaboração e, por outro lado,
à prática especifica que produz essa substância, do mesmo
modo como a ciência ou o mito correspondem a uma práti-
ca científica ou mítica.

Mas se a realidade das representações é fácil de ser compreen-


dida, o conceito não o é. Há muitas boas razões pelas quais
isso é assim. Na sua maioria, elas são históricas e é por isso
que nós devemos encarregar os historiadores da tarefa de
descobri-las. As razões não-históricas podem todas ser re-
duzidas a uma única: sua po sição mista , no cruzamento
entre uma série de conceitos sociológicos e uma série de
conceitos psicológicos. É nessa encruzilhada que nós temos
de nos situar. O caminho, certamente, pode representar algo
pedante quanto a isso, mas nós não podemos ver outra maneira
de libertar tal conceito de seu glo rioso passado, de revitali-
zá-lo e de compreender sua especificidade (1961/1976: 40-41).

O ponto de partida fundamental para essa jornada intelect u-


al, contudo, foi a insistência de Moscovici no reconhecimento da
existência de representações sociais como uma forma característi-
ca de conhecimento em nossa era, ou, como ele coloca, uma in-
sistência em considerar como um fenômeno, o que era antes con-
siderado como um conceito (capitulo 1).
Na verdade, desenvolver uma teoria das representações so-
ciais implica que o segundo passo da jornada deve ser começar a
teorizar esse fenômeno. Mas, antes de nos voltarmos para esse se-
gundo passo, gostaria de parar, por um momento, no primeiro
passo e perguntar o que significa considerar como um fenômeno
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o que era antes visto como um conceito, pois o que pode parecer
como um pequeno aperçu (apanhado), de fato, contém alguns
tropos especificamente moscovicianos. Antes de tudo, há certa
coragem nessa idéia, em não ter receio de afirmar uma generaliza-
ção conclusiva, uma generalização que tem ta mbém o efeito de
separar radicalmente a concepção de Moscovici, com respeito aos
objetivos e ao escopo da psicologia social, das formas predomi-
nantes dessa disciplina. Mais precisamente, Moscovici se filia aqui
à corrente de pensamento sociopsicológico que foi sempre uma
corrente minoritária, ou marginal, dentro duma disciplina domi-
nada, em nosso século, primeiro pelo comportamentalismo e, mais
recentemente, por um cognitivismo não menos reducionista e, du-
rante todo esse tempo, por um individualismo extremo. Mas, em
suas origens, a psicologia social se construiu ao redor dum con-
junto diferente de preocupações. Se Wilhelm Wundt é lembrado
hoje principalmente como o fundador da psicologia experimental,
ele é também, cada vez mais, reconhecido pela contribuição que
sua Völkerpsychologie trouxe ao estabelecimento da psicologia
social (Danziger, 1990; Farr, 1996; Jahoda, 1992).
Apesar de todas as suas falhas, a teoria de Wundt, contudo,
situou claramente a psicologia social na mesma encruzilhada, en-
tre os conceitos sociológicos e psicológicos indicados por Mosco -
vici. Longe de abrir uma linha produtiva de pesquisa e teoria, o tra-
balho de Wundt foi logo eclipsado pelas crescentes correntes de
pensamento psicológico que rejeitaram toda a associação com o
social , como se ele fosse comprometer o status científico da psi-
cologia. O que Danziger (1979) chamou de o repúdio positivista
de Wundt serviu para garantir a exclusão do social do campo de
ação da psicologia social emergente. Ao menos, esse foi o caso que
Farr (1996) chamou de sua forma psicológica , mas, como ele tam-
bém mostra, uma forma sociológica também persistiu, brotando
principalmente do trabalho de Mead, no qual a Völkerpsychologic de
Wundt teve uma grande influência (e devemos dizer que uma
preocupação com o social é também característica da psicologia de
Vygotsky; ver capítulos 3 e 6). Na verdade, Farr chegou a sugerir
que a separação radical, feita por Durkheim (1891/1974), de re-
presentações individuais e coletivas , contribuiu para a insti-
tucionalização duma crise na psicologia soc ial, que perdura
até hoje. Durante o século vinte, sempre que formas sociais de
psicologia surgiram, nós testemunhamos o mesmo drama de ex-
clusão, que marcou a recepção do trabalho de Wundt.

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Uma compulsão em repetir mascara um tipo de neurose i-
deológica, que foi mobilizada sempre que o social ameaçou invadir
o psicológico. Ou, para passar duma metáfora freudiana para uma
antropológica, o social representou, consistentemente, uma amea-
ça de poluição à pureza da psicologia científica.
Por que se mostrou tão difícil estabelecer uma psicologia so-
cial que incluísse tanto o social como o psicológico? Embora Mos-
covici sugerisse, na citação acima, que isso era uma questão para
historiadores, ele mesmo contribuiu, de algum modo, para escla-
recer esse enigma, como muitos dos textos aqui coletados teste-
munham (ver capítulos 1, 2, 3 e 7). Num ensaio histórico importan-
te, The Invention of Society, Moscovici (1988/1993) oferece mais
um conjunto de considerações que discutem a questão comple-
mentar de por que as explicações psicológicas foram vistas como
ilegítimas, na teoria sociológica. Durkheim formulou suas idéias
explicitamente em seu aforismo de que sempre que um fenôme-
no social é diretamente explicado por um fenômeno psicológico,
podemos estar seguros que a explicação é falsa (1895/1982: 129).
Mas, como mostra Moscovici, esse preceito contra a explicação
psicológica não apenas percorre, como um fio unificador, através
do trabalho dos escritores clássicos da teoria social moderna, mas
é também sub-repticiamente contradito por esses mesmos textos.
Pois, ao construir explicações sociais para fenômenos sociais, es-
tes sociólogos (Weber e Simmel são os exemplos analisados por
Moscovici, junto com Durkheim), necessitam também introduzir
alguma referência aos processos psicológicos para fornecer coe-
rência e integridade a suas análises. Em síntese, nesse trabalho
Moscovici é capaz de demonstrar, através de sua própria análise
destes textos fundantes da sociologia moderna, que o referencial
explanatório exigido para tornar os fenômenos sociais inteligíveis
deve incluir conceitos psicológicos, bem como sociológicos.
A questão, contudo, de por que foi tão difícil conseguir um re-
ferencial teórico estável, abrangendo tanto o psicológico como o
social, permanece obscura. Para dizer a verdade, a hostilidade da
parte dos psicólogos ao sociologismo foi tanta quanto a dos so-
ciólogos ao psicologismo . Ao dizer que a psicologia social, como
uma categoria mista, representa uma forma de poluição, ficamos
apenas nas palavras, enquanto nós não compreendermos por que
o social e o psicológico são considerados como categorias exclusi-
vas.
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Esse é o centro do enigma histórico que retém seu poder es-
pecifico até hoje. Embora fosse ingênuo pretender oferecer uma
explicação clara de sua origem, nós podemos vislumbrar algo de
sua história na oposição entre razão e cultura que, como discute
Gellner (1992), foi tão influente desde a formulação do racionalis-
mo de Descartes. Contra o relativismo da cultura, Descartes pro-
clamou a certeza que brota da razão. O argumento em favor do co-
gito introduziu um ceticismo sobre as influências da cultura e do
social que foi difícil de superar. Na verdade, se Gellner está corre to
ao constatar nesse argumento uma oposição entre cultura e razão,
então toda a ciência da cultura será uma ciência da não-razão. A
partir daqui, é um curto passo chegar-se a uma ciência desprovida
de razão, o que parece ser a reputação dada a toda tentativa de
combinar os conceitos sociológicos com os psicológicos numa
ciência mista . Mas foi justamente tal ciência desprovida de ra-
zão , que Moscovici procurou ressuscitar, através dum retorno ao
conceito de representação, como central a uma psicologia social
do conhecimento.

3. Durkheim, o ancestral ambíguo

Ao procurar estabelecer uma ciência mista , centrada no


conceito de representação, Moscovici reconheceu uma dívida du-
radoura ao trabalho de Durkheim. Como vimos acima, contudo, a
formulação feita por Durkheim do conceito de representações co -
letivas mostrou-se uma herança ambígua para a psicologia social.
O esforço para estabelecer a sociologia como uma ciência autôno-
ma levou Durkheim a defender uma separação radical entre repre-
sentações individuais e coletivas e a sugerir que as primeiras de-
veriam ser o campo da psicologia, enquanto as últimas formariam o
objeto da sociologia (interessante notar que em alguns de seus
escritos sobre esse tema Durkheim flertou com a idéia de chamar a
esta ciência de psicologia social , mas preferiu sociologia , a fim de
eliminar toda possível confusão com a psicologia (cf. Durkheim,
1895/1982). Não é apenas Farr quem mostrou as dificuldades que
a formulação de Durkheim trouxe para a psicologia social. Numa
discussão anterior, sobre a relação entre o trabalho de Durkheim e a
teoria das representações sociais, Irwin Deutscher (1984) tam-
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bém escreveu sobre a complexidade de tomar Durkheim como um
ancestral para uma teoria sociopsicológica. O próprio Moscovici
sugeriu que, ao preferir o termo social , queria enfatizar a quali-
dade dinâmica das representações contra o caráter mais fixo, ou
estático, que elas tinham na teoria de Durkheim (ver capítulo 1,
onde Moscovici ilustra a maneira como Durkheim usou os termos
social e coletivo de maneira intercambiável). Ao comentar este
ponto, depois na sua entrevista a Marková, no capitulo 7, Moscovi-
ci se refere à impossibilidade de manter qualquer distinção clara
entre o social e o coletivo . Esses dois termos não se referem a
ordens distintas na organização da sociedade humana, mas tam-
bém não é o caso de que os termos representação social e repre-
sentação coletiva apenas colocam uma distinção, sem estabelecer
uma diferença. Em outras palavras, a psicologia social de Moscovici
não pode simplesmente ser reduzida a uma variante da sociologia
durkheimiana. Como devemos, então, entender a relação das re-
presentações sociais com o conceito de Durkheim?
A partir duma perspectiva sociopsicológica, podemos ser ten-
tados a pensar que a resolução dessa ambigüidade pode ser bus-
cada através dum esclarecimento dos termos individual e cole-
tivo , como empregados na argumentação de Durkheim. Não é
absolutamente claro, contudo, que tal esforço possa conseguir,
com sucesso, algum espaço teórico para a psicologia social, parti-
cularmente porque, como mostra Farr (1998), a questão se tornou
problemática, devido ao reconhecimento do individualismo como
uma poderosa representação coletiva na sociedade moderna.

Um enfoque mais produtivo pode ser constatado atr avés


duma reflexão posterior sobre o próprio argumento de Durkheim.
Durkheim não estava simplesmente interessado em estabelecer o
caráter sui generis das representações coletivas como um elemen-
to de seu esforço para manter a sociologia como uma ciência autô-
noma. Toda sua sociologia é, ela própria, consistentemente orien-
tada àquilo que faz com que as sociedades se mantenham coesas,
isto é, às forças e estruturas que podem conservar, ou preservar, o
todo contra qualquer fragmentação ou desintegração. É dentro
desta perspectiva que as representações coletivas assumem sua
significância sociológica para Durkheim; seu poder de abrigar,
ajuda a integrar e a conservar a sociedade. De fato, é em parte essa
capacidade de manter e conservar o todo social que dá às repre-
sentações coletivas seu caráter sagrado na discussão que Durkheim
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faz em The Elementary Forms of Religious Life (1912/1995). A psi-
cologia social de Moscovici, por outro lado, foi consistentemente
orientada para questões de como as coisas mudam na sociedade,
isto é, para aqueles processos sociais, pelos quais a novidade e a
mudança, como a conservação e a preservação, se tornam parte
da vida social. Já aludi a esse seu interesse na transformação do
senso comum, em seu estudo das representações sociais da psi-
canálise. É no curso de tais transformações que a ancoragem e a
objetivação se tornam processos significantes (ver capítulo 1).
Uma afirmação mais clara desse enfoque do trabalho de Moscovici
pode ser encontrada em seu estudo sobre influência social (1976)
que, na verdade, tem o titulo de Influência Social e Mudança So-
cial. O ponto de partida para esse estudo foi a insatisfação com os
modelos de influência social, que apreenderam apenas a confor-
midade ou a submissão. Se esse fosse o único processo de influên-
cia social que tivesse existido, como seria possível qualquer mu-
dança social? Tais considerações levaram Moscovici a se interes -
sar pelo processo de influência da minoria, ou na inovação, um in-
teresse que ele levou adiante através de uma série de investiga-
ções experimentais. É esse interesse com a inovação e a mudança
social que levou também Moscovici a ver que, da perspectiva so -
ciopsicológica, as representações não podem ser tomadas como
algo dado nem podem elas servir simplesmente como variáveis
explicativas. Ao contrário, a partir dessa perspectiva, é a constru-
ção dessas representações que se torna a questão que deve ser
discutida, dai sua insistência, tanto em discutir como u m fenôme-
no que antes era visto como um conceito, como em enfatizar o ca-
ráter dinâmico das representações, contra seu caráter estático de
representações coletivas da formulação de Durkheim (uma dis-
cussão mais ampla desse ponto, feita por Moscovici, pode ser en-
contrada no capitulo 1).

Por conseguinte, enquanto Durkheim vê as representações co-


letivas como formas estáveis de compreensão coletiva, com o po-
der de obrigar que pode servir para integrar a sociedade como um
todo, Moscovici esteve mais interessado em explorar a variação e
a diversidade das idéias coletivas nas sociedades modernas. Essa
própria diversidade reflete a falta de homogeneidade dentro das
sociedades modernas, em que as diferenças refletem uma distribui-
ção desigual de poder e geram uma heterogeneidade de represen-
tações. Dentro de qualquer cultura há pontos de tensão, mesmo de
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fratura, e é ao redor desses pontos de clivagem no sistema repre-
sentacional duma cultura que novas representações emergem. Em
outras palavras, nestes pontos de clivagem há uma falta de sentido,
um ponto onde o não-familiar aparece. E, do mesmo modo que a
natureza detesta o vácuo, assim também a cultura detesta a ausên-
cia de sentido, colocando em ação algum tipo de trabalho represen-
tacional para familiarizar o não-familiar, e assim restabelecer um
sentido de estabilidade (veja-se a discussão de Moscovici sobre não-
familiaridade como uma fonte de representações sociais, no capítu-
lo 1). As divisões de sentido podem ocorrer de muitos modos. Po-
dem ser muito dramáticas, como todos nós vimos ao assistir à queda
do muro de Berlim e sentimos as estruturas de sentido que manti-
veram uma visão estabelecida do mundo, desde o fim da guerra,
evaporarem. Ou de novo, quando a aparição súbita dum fenômeno
ameaçador, tal como HIV/Aids, pode oferecer uma oportunidade
para um trabalho representacional. Mais freqüentemente, as re-
presentações sociais emergem a partir de pontos duradouros de
conflito, dentro das estruturas representacionais da própria cultu-
ra, por exemplo, na tensão entre o reconhecimento formal da uni-
versalidade dos direitos do homem , e sua negação a grupos espe-
cíficos dentro da sociedade. As lutas que tais fatos acarretaram
foram também lutas para novas formas de representações.

O fenômeno das representações está, por isso, ligado aos pro-


cessos sociais implicados com diferenças na sociedade. E é para
dar uma explicação dessa ligação que Moscovici sugeriu que as
representações sociais são a forma de criação coletiva, em condi-
ções de modernidade, uma formulação implicando que, sob outras
condições de vida social, a forma de criação coletiva pode também
ser diferente. Ao apresentar sua teoria de representações sociais,
Moscovici, muitas vezes, traçou esse contraste (ver capítulo 1), e
sugeriu, às vezes, que esta foi a razão principal de preferir o termo
social , ao termo coletivo de Durkheim. Existe aqui uma alusão a
uma complexa explicação histórica da emergência das repre-
sentações sociais que Moscovici apenas delineia muito de leve e,
sem querer apresentar uma explicação mais detalhada ou exten-
sa, será útil, para se poder compreender algo do caráter das repre-
sentações sociais, para chamar a atenção, nesse ponto, de dois as-
pectos relacionados dessa transformação histórica.

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A modernidade sempre se coloca em relação a algum passado
que é considerado como tradicional e embora seja errado (como
Bartlett, 1923, viu muito previdentemente) considerar as socieda-
des pré-modernas - ou tradicionais - como efetivamente homogê-
neas, o fio condutor central do argumento de Moscovici sobre a
transformação das formas de criação coletiva na transição para a
modernidade se relaciona à questão da legitimação. Nas socieda-
des pré-modernas (que, nesse contexto, são as sociedades feudais
na Europa, embora este ponto possa ser também relevante para
outras formas de sociedade pré-moderna), são as instituições cen-
tralizadas da Igreja e do Estado, do Bispo e do Rei, que estão no
ápice da hierarquia de poder e regulam a legitimação do conheci-
mento e das crenças. De fato, dentro da sociedade feudal, as pró-
prias desigualdades entre diferentes estratos, dentro dessa hierar-
quia, foram vistas como legitimas. A modernidade, em contraste,
se caracteriza por centros mais diversos de poder, que exigem au-
toridade e legitimação, de tal modo que a regulação do conheci-
mento e da crença não é mais exercida do mesmo modo. O fenô-
meno das representações sociais pode, neste sentido, ser visto
como a forma como a vida coletiva se adaptou a condições des-
centradas de legitimação. A ciência foi uma fonte importante de
surgimento de novas formas de conhecimento e crença no mundo
moderno, mas também o senso comum, como nos lembra Mosco-
vici. A legitimação não é mais garantida pela intervenção div ina,
mas se torna parte duma dinâmica social mais complexa e contes-
tada, em que as representações dos diferentes grupos na socieda-
de procuram estabelecer uma hegemonia.

A transição para a modernidade é também caracterizada pelo


papel central de novas formas de comunicação, que se originaram
com o desenvolvimento da imprensa e com a difusão da alfabeti-
zação. A emergência das novas formas de meios de comunicação
de massa (cf. Thompson, 1995) gerou tanto novas possibilidades
para a circulação de idéias, como também trouxe grupos sociais
mais amplos para o processo de produção psicossocial do conhe-
cimento. Esse tema é muito complexo para ser tratado adequada-
mente aqui, exceto para dizer que, em sua análise das diferentes
formas de representação da psicanálise nos meios de comunica-
ção da França, Moscovici (1961/1976) mostrou como a propaga-
ção, propaganda e difusão foram do modo que foram, porque os
diferentes grupos so ciais representam a psicanálise de diferentes
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modos e procuram estruturar diferentes tipos de comunicação
sobre esse objeto, através dessas diferentes formas. Cada uma
dessas formas procura estender sua influência na construção du-
ma representação especifica e cada uma delas também reivindica
sua própria legitimação para a representação que ela promove. É a
produção e circulação de idéias dentro dessas formas difusas de
comunicação que distinguem a era moderna da pré-moderna e
ajudam a distinguir as representações sociais como a forma de
criação coletiva, distinta das formas autocráticas e teocráticas da
sociedade feudal. As questões de legitimação e comunicação servem
para enfatizar o sentido da heterogeneidade da vida social moderna,
uma visão que ajudou a dará pesquisa sobre representações sociais
um foco distinto, na emergência de novas formas de representa-
ção.

4. Representações sociais e psicologia social

A recepção da teoria das representações sociais dentro duma


disciplina mais ampla da psicologia social foi tanto fragmentada,
como problemática. Se alguém olhar para trás, para a era domada
da psicologia social, pode ver certa afinidade entre o trabalho de
Moscovici e o de certos predecessores, como Kurt Lewin, Solomon
Asch, Fritz Heider ou, talvez o último representante desta era, Leon
Festinger — uma afinidade mais que uma similaridade, pois embora
o trabalho de Moscovici partilhe com esses predecessores uma pre-
ocupação comum na análise das relações entre processos sociais e
formas psicológicas, seu trabalho retém uma qualidade distintiva,
do mesmo modo como esses autores diferem entre si. Não é difícil,
contudo, imaginar a possibilidade dum diálogo produtivo baseado
nessa afinidade. Mas é difícil imaginar tal diálogo produtivo na dis-
ciplina de psicologia social como ela existe hoje, onde a predomi-
nância dos paradigmas de processamento da informação e a emer-
gência de variedades de formas pós-modernistas de psicologia
social aumentaram a segmentação do campo.
O próprio Moscovici (1984b) sugeriu que a psicologia social
contemporânea continua a exibir um tipo de desenvolvime nto
descontinuo de paradigmas que mudam e se substituem, para-
digmas solitários , como ele os descreve. Dentro deste fluxo, cada
paradigma aparece mais ou menos desconectado de seus prede-
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cessores e deixa pequenos traços em seus sucessores. Nesse co n-
texto, tem sido destino comum das intervenções teóricas, na psi-
cologia social, bruxulear brevemente, antes de passar para um tipo
de território de sombras, ás margens duma disciplina que trocou
seu centro para o próximo paradigma, deixando pouco tempo para
que as idéias fossem assimiladas e para um uso produtivo. Desse
ponto de vista, há algo de notável na persistência da teoria das re-
presentações sociais durante um período de quarenta anos. No
espírito de sua problemática relação com o terreno cambiante da
corrente em voga da disciplina, a teoria das representações sociais
sobreviveu e prosperou. Ela se tomou não apenas uma das contri-
buições teóricas mais duradouras na psicologia social, mas tam-
bém uma contribuição que é amplamente difundida por todo o
mundo.
Nessa discussão sobre os paradigmas em psicologia social,
Moscovici vai à frente afirmando que:
Conceitos que operam em grandes profundidades parecem
necessitar mais de cinqüenta anos para penetrar as camadas mais
baixas da comunidade cientifica. É por isso que muitos de nós es-
tamos apenas agora começando a perceber o sentido de
certas idéias que estiveram germinando na sociologia, psi-
cologia e antropologia, desde o limiar desse século (Mosco-
vici, 1984b: 941).

É essa constelação de idéias que forma o foco para alguns dos


ensaios dessa coleção (ver especialmente os capítulos 3 e 6 e a en-
trevista no capítulo 7), dentro dos quais a teoria das representa-
ções sociais tomou forma.
Para compreender a especificidade da contribuição de Mos-
covici é importante lembrar, em primeiro lugar, de tudo aquilo
contra o qual sua inovação psicossociológica reagiu. A revolução
cognitiva, na psicologia, iniciada na década de 1950, legitimou a
introdução de conceitos mentalistas, que tinham sido proscritos
pelas formas mais militantes do comportamentalismo, que domi-
nou a primeira metade do século vinte e, subseqüentemente, as
idéias de representações foram o elemento central na emergência
da ciência cognitiva, nas duas últimas décadas. Mas a partir desta
perspectiva, a representação foi geralmente vista num sentido
muito restrito, como uma construção mental dum objeto externo.
Embora isso tenha permitido o desenvolvimento dum cálculo in-
formacional, em que representações foram termos centrais, o ca-
ráter social, ou simbólico, das representações raramente figurou
19
em tais teorias. Para retornar, por um momento, ao exemplo do
mapa da Europa, embora formas contemporâneas de ciência cog-
nitiva possam reconhecer o deslocamento de Praga nas represen-
tações populares, elas não possuem conceitos com os quais pos-
sam compreender o significado desse deslocamento, nem as in-
fluências dos processos sociais que subjazem a ele. Na melhor das
hipóteses, tal deslocamento irá aparecer como uma das muitas
distorções do pensamento comum, que foram documentadas
em teorias de cognição social. Mas enquanto tais teorias em psi-
cologia social tenham discutido distorções como exemplos de
como o pensamento comum se afasta da lógica sistemática da ci-
ência, do ponto de vista das representações sociais elas são vistas
como formas de conhecimento produzidas e sustentadas por gru-
pos sociais específicos, numa determinada conjuntura históri ca
(cf. Farr, 1998).

Conseqüentemente, enquanto as formas clássicas de psico-


logia cognitiva (incluindo a cognição social, que se tomou a forma
contemporânea predominante de psicologia social) tratam a re-
presentação como um elemento estático da organização cogniti-
va, na teoria da representação social o próprio conceito de repre-
sentação possui um sentido mais dinâmico, referindo-se tanto ao
processo pelo qual as representações são elaboradas, como às es-
truturas de conhecimento que são estabelecidas. Na verdade, é
através dessa articulação da relação entre processo e estrutura, na
gênese e organização das representações, que a teoria oferece, na
psicologia social, uma perspectiva distinta daquela da cognição
social (cf. Jovchelovitch, 1996). Para Moscovici, a fonte dessa relação
está na função das próprias representações. Fazendo eco a formu-
lações anteriores de McDougal e Bartlett, Moscovici argu menta
que o propósito de todas as representações é tomar algo não-
familiar, ou a própria não-familiaridade, familiar (cf. capitulo 1). A
familiarização é sempre um processo construtivo de ancoragem e
objetivação (cf. capítulo 1), através do qual o não-familiar passa a
ocupar um lugar dentro de nosso mundo familiar. Mas a mesma
operação que constrói um objeto dessa maneira é também consti-
tutiva do sujeito (a construção correlativa do sujeito e objeto na
dialética do conhecimento foi também um traço característico da
psicologia genética de Jean Piaget e do estruturalismo genético de
Lucien Goldman). As representações sociais emergem, não
apenas como um modo de compreender um objeto particular, mas
20
também como uma forma em que o sujeito (indivíduo ou gru po)
adquire uma capacidade de definição, uma função de identidade,
que é uma das maneiras como as representações expressam um
valor simbólico (algo que também empresta à noção de famili-
arização de Moscovici uma inflexão que é distinta da de McDou gall
ou Bartlett). Nas palavras de Denise Jodelet, colega durante muito
tempo de Moscovici, a representação é uma forma de co-
nhecimento prático [savoir] conectando um sujeito a um objeto
(Jodelet, 1989: 43), e ela continua dizendo que quantificar esse
conhecimento como prático refere-se à experiência a partir da
qual ele é produzido, aos referenciais e condições em que ele é
produzido e, sobretudo, ao fato de que a representação é empre-
gada para agir no mundo e nos outros (Jodelet, 1989: 43-44).
As representações são sempre um produto da interação e co-
municação e elas tomam sua forma e configuração específicas a
qualquer momento, como uma conseqüência do equilíbrio especifico
desses processos de influência social. Há uma relação sutil, aqui, en-
tre representações e influências comunicativas, que Moscovici
identifica, quando ele define uma representação social como:
Um sistema de valores, idéias e práticas, com uma dupla
função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará
as pessoas orientar-se em seu mundo material e social e
controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunica-
ção seja possível entre os membros de uma comunidade, fo r-
necendo-lhes um código para nomear e classificar, sem a m-
bigüidade, os vários aspectos de seu mundo e da sua histó-
ria individual e social (1976: xiii).

A relação entre representação e comunicação pode bem ser o


aspecto mais controverso da teoria de Moscovici e em seu próprio
livro ela está expressa, de forma muito clara, na segunda parte de
seu estudo La Psychanalyse, a análise das representações na
mídia francesa, como mostrei acima (e esse é um ponto devido ao
qual uma compreensão da teoria das representações sociais foi di-
ficultada de maneira muito séria, pela falta duma tradução inglesa
do texto, como notou Willem Doise (1993); essa secção do livro ra-
ramente figurou nas discussões anglo-saxãs da teoria).
Em relação à psicologia cognitiva, não é difícil ver por que es-
sa concepção deva ser controversa, pois a força duradoura da i-
déia de psicologia como uma ciência natural, concentrada em pro-
21
cessos segregados da influência poluidora do social, tornou im-
pensável a idéia de que nossas crenças, ou ações, possam ser for-
madas fora de tais influências.
É claro que a psicologia de Moscovici não é a primeira a pro-
por tal tema. A psicanálise de Freud, por exemplo, procurou as
origens dos pensamentos nos processos libidinais, que, especial-
mente para a escola das relações objetais, refletem as primeiras
experiências da criança no mundo dos outros (Jovchelovìtch,
1996). Mead também pode ser considerado como tendo feito uma
argumentação semelhante, em sua análise do desenvolvimento do
self (ver Moscovici, 1990b). Mas o trabalho de Moscovici não enfoca
as origens libidinais de nossos pensa mentos (embora Lucien
Goldmann, 1996, tenha construído um paralelo sugestivo entre a
organização das construções psicanalíticas e as sociais), nem está
ele fundamentalmente interessado com as fontes interpessoais do
self seu foco principal foi argumentar não apenas que a criação
coletiva está organizada e estruturada em termos de representa-
ções, mas que essa organização e estrutura é tanto conformada
pelas influências comunicativas em ação na so ciedade, como, ao
mesmo tempo, serve para tornar a comunicação possível. As represen-
tações podem ser o produto da comunicação, mas também é verda-
de que, sem a representação, não haveria comuni cação. Precisa-
mente devido a essa interconexão, as representações podem tam-
bém mudar a estabilidade de sua organização e estrutura depende
da consistência e constância de tais padrões de comu nicação, que
as mantêm. A mudança dos interesses humanos pode gerar
novas formas de comunicação, resultando na inovação e na emer-
gência de novas representações. Representações, nesse sentido,
são estruturas que conseguiram uma estabilidade, através da
transformação duma estrutura anterior.
Se a perspectiva oferecida pela teoria das representações so -
ciais foi, em geral, contrastada muito acentuadamente com a cor-
rente em voga da disciplina, para que pudesse emergir daí um diá-
logo construtivo (embora um interesse nesse diálogo esteja come-
çando a emergir nos EE.UU. (cf. Deaux & Philogene, 2000), o que foi
tanto mais surpreendente, como mais decepcionante, foi a re-
cepção da teoria entre aquelas correntes de pensamento sociopsi-
cológico, que tinham sido suas vizinhas nessa terra de sombras
marginal. Com algumas exceções marcantes (por exemplo, Billig,
1988, 1993; Harré, 1984, 1998, que entraram num diálogo de enga-
jamento construtivo a partir das perspectivas retóricas e discursi-
22
vas), a maioria dos comentários, fora da corrente em voga, foram
contrários, ou mesmo hostis, à teoria das representações sociais
(ver, por exemplo, o catálogo de objeções, na recente contribuição
de Potter & Edwards, 1999). Não há espaço, aqui, para oferecer
uma relação sistemática de todas as criticas levantadas contra o
trabalho de Moscovici, mas um enfoque sobre alguns temas cen-
trais irá não apenas dar o tom das questões levantadas, mas tam-
bém elaborar um pouco mais algumas das características centrais
da própria teoria.
Em certo sentido, como mencionei anteriormente, o trabalho
de Moscovici foi parte da perspectiva européia em psicologia so -
cial, que emergiu nas décadas de 196O e 197O. Olhando para esse
trabalho agora, contudo, podem-se notar também as diferenças
dentro desse enfoque europeu . Por exemplo, a coleção editada
por Israel e Tajfel (1972, um trabalho muitas vezes citado como a
fonte central da visão européia, e para o qual o capitulo 2 dessa co-
leção foi uma contribuição de Moscovici), aparece agora como
sendo caracterizada mais pela diversidade de seus pontos de vista
do que por um espírito critico comum entre os colaboradores.
Algumas das criticas mais fortes à teoria das representações so -
ciais vieram de Gustav Jahoda (1988; ver também a resposta de
Moscovici, 1988), que pertence à mesma geração de psicólogos
sociais de Moscovici, e que apresentou sua própria contribuição á
tradição européia . Para Jahoda, longe de ajudar a iluminar os
problemas da psicologia social, a teoria das representações sociais -
serviu antes para obscurecê-los. De modo particular, ele acha a te-
oria vaga na construção de seus conceitos, uma acusação que foi
um tema importante nas discussões sobre representações sociais,
que veio à tona de novo recentemente num comentário mais sim-
pático de Jan Smedslund (1998; ver também Duveen, 1998).
O fato de uma teoria ser vaga é, na verdade, em grande parte,
uma questão de ponto de vista. Onde um escritor acha que uma
teoria necessita tanto de precisão, que não chega a apresentar
nada mais que uma série de quimeras. Para outros escritores, a
mesma teoria pode abrir novos caminhos para discutir antigos
problemas. Desse modo, Jahoda sugere que, desprovida de sua
retórica, a teoria das representações sociais pouco contribuiu,
além do que já está contido na psicologia social tradicional das ati-
tudes. Mas, como mostraram Jaspars e Fraser (1984), embora a
formulação original do conceito de atitudes sociais, na obra de
Thomas & Znaniecki (1918/1920), pudesse ter algumas similarida-
23
des importantes como conceito de representações sociais, o con-
ceito de atitude sofreu, ele próprio, uma transformação considerá-
vel nas teorias sociopsicológicas subseqüentes. Nessa transfor-
mação, a idéia de atitude foi despojada de seu conteúdo e de suas
origens sociais e simbólicas. Na psicologia social contemporânea,
as atitudes aparecem como disposições cognitivas ou motivacio-
nais, de tal modo que a idéia duma conexão inerente entre comu-
nicação e representação evaporou. Se a pesquisa em representa-
ções sociais continuou a empregar alguma tecnologia da mensu-
ração da atitude, ela procurou referenciar essas atitudes como
parte duma estrutura representacional maior (ver também a dis-
cussão das relações entre atitudes e representações na entrevista
no capitulo7).

A partir de outra perspectiva, as co rrentes mais radicais da


teoria do discurso, em psicologia social (por exemplo, Potter &
Edwards, 1999), objetaram contra a própria idéia de representa-
ção, como sendo um anexo tardio da psicologia cognitiva moder-
nista . Desse ponto de vista, todos os p rocessos sociopsicológicos
se explicam nos efeitos do discurso e nas realizações e reformula-
ções fugazes da identidade que ele sustenta. E apenas a atividade
do discurso que pode ser o objeto de estudo, nessa forma de psico-
logia social, e qualquer fala sobre estrutura e organização no nível
cognitivo se apresenta como uma concessão à hegemonia dos mo-
delos de processamento da informação (e pouco importa a es ses
críticos que a teoria das representações sociais tenha sempre in-
sistido no caráter simbólico da cognição; ver também os comen-
tários de Moscovici na entrevista do capitulo 7). Aqui, o fato de a
teoria das representações sociais ser vaga deve-se ao seu afasta-
mento insuficientemente radical dum discurso mentalista , mas,
como observou Jovchelovitch (1996), a pressa em evacuar o men-
tal do discurso da psicologia social está conduzindo a uma re-cria-
ção duma forma de comportamentalismo.

Apesar de tudo o que seus críticos possam sugerir, a teoria


das representações sociais se mostrou suficientemente clara e
precisa para apoiar e manter um crescente corpo de pesquisa,
através de diversas áreas da psicologia social. Na verdade, a partir
dum ponto de vista diverso, poder-se-ia argumentar que a pesqui-
sa em representações sociais contribuiu tanto quanto qualquer
24
outro trabalho em psicologia social, senão mais, para nossa com-
preensão dum amplo espectro de fenômenos sociais (tais como o
entendimento público da ciência, idéias populares sobre saúde e
doença, concepções de loucura, ou o desenvolvimento de identi-
dades de gênero, para nomear apenas alguns poucos). Contudo, a
insistência com que a acusação de ser vaga foi apresentada contra
a teoria merece alguma consideração a mais. Alguma compreen-
são do que se quer com essa caracterização da teoria pode ser
identificada considerando -se alguns dos estudos centrais de
pesquisa que ela inspirou. Além do próprio estudo de Moscovici
sobre as representações da psicanálise, o estudo de Denise Jodelet
(1989/1991; ver também capítulo 1) sobre as representações
sociais da loucura numa aldeia francesa oferece um segundo e-
xemplo paradigmático de pesquisa nesse campo. Metodologica-
mente, esses dois estudos adotam enfoques bastante diferentes
(mostrando a importância do que Moscovici chamou de signifi-
cância do politeísmo metodológico ). Moscovici empregou mé-
todos de levantamento e analise de conteúdo, enquanto o estudo
de Jodelet se baseou na etnografia e entrevistas. O que ambos os
estudos partilham, contudo, é uma estratégia de pesquisa similar,
em que o passo inicial é o estabelecimento duma distância critica
do mundo cotidiano do senso comum, em que as representa-
ções circulam. Se as representações sociais servem para familiari-
zar o não-familiar, então a primeira tarefa dum estudo cientifico
das representações é tornar o familiar não-familiar, a fim de que
elas possam ser compreendidas como fenômenos e descritas atra-
vés de toda técnica metodológica que possa ser adequada nas cir-
cunstâncias específicas. A descrição, é claro, nunca é indepen dente
da teorização dos fenômenos e, nesse sentido, a teoria das repre-
sentações sociais fornece o referencial interpretativo tanto para
tornar as representações visíveis, como para tomá-las inteligíveis
como formas de prática social.

A questão de uma teoria ser vaga pode ser vista como sendo,
em grande parte, um problema metodológico, pois ela se refere,
fundamentalmente, àquilo que diferentes perspectivas sociopsi-
cológicas tornam visível e inteligível. Com respeito a isso, diferentes
perspectivas em psicologia social operam com critérios e con-
dições diferentes. Armado com o aparato conceptual da psicologia
social tradicional, alguém irá lutar para não ver nada mais que
atitudes, do mesmo modo que a perspectiva discursiva irá revelar
25
apenas os efeitos do discurso nos processos sociopsicológicos.
Cada um desses enfoques opera dentro dum universo teórico mais
ou menos hereticamente lacrado. Dentro de cada perspectiva,
há uma ordem conceptual que traz claridade e estabilidade á co-
municação dentro dela (cada perspectiva, podemos dizer, esta-
belece seu próprio código para intercâmbio social ). O que perma-
nece fora duma perspectiva particular mostra-se vago e o precur-
sor de desordem. Esse fato, na verdade, não é mais que uma ex-
pressão da permanente crise na disciplina da psicologia social que
continua a existir como um conjunto de paradigmas solitários . O
reconhecimento desse estado de coisas, por si mesmo, não confe re
status especial, ou privilegiado, à teoria das representações so -
ciais. O que dá ao trabalho de Moscovici seu particular interesse e a
razão pela qual ele continua a exigir atenção é que seu trabalho
em representações sociais forma parte dum empreendimento
mais amplo para estabelecer (ou re-estabelecer) os fundamentos
para uma disciplina que é tanto social, como psicológica.

5. Para uma psicologia social genética

A partir desse ponto de vista, é importante situar os estudos


de Moscovici, sobre representações sociais, dentro do contexto de
seu trabalho como um todo, pois é como parte duma contribuição
mais ampla à psicologia social que esse trabalho permanece de
capital importância. Já aludi ao sentido como seu trabalho expres-
sou um espírito critico e inovador em relação á disciplina e nesse
sentido ele também contribuiu para uma reavaliação critica mais
ampla das formas dominantes de psicologia social, que começou
na década de 1960 e foi, por um tempo, associada a uma perspec-
tiva distintivamente européia da disciplina (algo desse espírito
critico é evidente em muitos dos capítulos dessa coleção, mas par-
ticularmente no capítulo 2 e na entrevista do capítulo 7). O que
marcou a contribuição de Moscovici como inovadora foi o fato de
que ela não se limitou a uma crítica negativa das fraquezas e limi-
tações das formas predominantes de psicologia social, mas sem-
pre procurou, em vez disso, elaborar uma alternativa positiva. A
esse respeito, é também importante reconhecer que, embora a
teoria das representações sociais tenha sido um ce ntro de seu
esforço teórico, o trabalho de Moscovici estendeu-se, numa ampli-
tude maior, através da psicologia social, abrangendo estudos de
26
psicologia da multidão, conspiração e decisões coletivas, bem co-
mo o trabalho sobre influência social. Em todas essas contribui-
ções encontra-se alguma inspiração em ação, uma forma parti-
cular do que pode ser descrito como a imaginação sociopsicológi-
ca . Se o trabalho de Moscovici pode ser visto como oferecendo
uma perspectiva distinta em psicologia social, ela é uma perspec-
tiva que é mais ampla que o que é conotado simplesmente pelo
termo representações sociais, embora esse termo tenha sido, mui-
tas vezes, tomado como emblemático dessa perspectiva.

O próprio Moscovici raramente aventurou -se em esforços


para articular as interconexões entre essas diferentes áreas de
trabalho (embora a entrevista no capitulo 7 ofereça alguns pen-
samentos importantes). Em parte, isso reflete o fato de que cada
uma dessas áreas de trabalho foi articulada através de procedi-
mentos metodológicos diferentes. Seus estudos de influência soci-
al e processos de grupo, por exemplo, foram rigorosamente expe-
rimentais, enquanto seu estudo sobre multidão se inspirou numa
análise crítica das primeiras conceptualizações da psicologia das
massas. Em parte, isso pode também refletir a razão pela qual
esses estudos enfocam diferentes níveis de análise, desde a intera-
ção face a face, até a comunicação de massa e a circulação de idé i-
as coletivas. Todos esses estudos, contudo, parecem estar grávi-
dos das idéias que foram articuladas ao redor do conceito de re-
presentações sociais, de tal modo que um focar sobre esse concei-
to pode indicar algo de sua perspectiva subjacente. Com respeito a
isso, o ensaio sobre Proust, no capitulo 5, oferece um estudo ilu-
minador das imbricações das relações entre influência e represen-
tação. Outro exempla é sua análise crítica da discussão de Weber
sobre a ética protestante em The Invention of Society (Moscovici,
1988/1993).O que é claro em ambos os ensaios é que a influên-
cia é sempre dirigida à sustentação, ou à mudança, das represen-
tações, enquanto, inversamente, representações especificas se
tornam estabilizadas através de um equilíbrio conseguido num
modelo particular de processos de influência. Aqui, como nos estu-
dos de tomada de decisão nos grupos, é a relação entre comunica-
ção e representação que é central.

Em seu livro sobre influência social, Moscovici (1976) identi-


ficou a perspectiva que ele descreveu como uma psicologia
27
socialgenética , para enfatizar o sentido em que os processos de
influência emergiram nos intercâmbios comunicativos entre as
pessoas. O emprego do termo genético faz ecoar o sentido que
lhe foi dado tanto por Jean Piaget, como por Lucien Goldmann. Em
todas essas instâncias, estruturas especificas somente podem ser
entendidas como as transformações de estruturas anteriores (ver o
ensaio sobre themata - temas 7 - capitulo 4 desta publicação). Na
psicologia social de Moscovici, é através dos intercâmbios comu-
nicativos que as representações sociais são estruturadas e trans-
formadas. É essa relação dialética entre comunicação e represen-
tação que está no cento da imaginação sociopsicológica de Mos-
covici e é a razão para se descrever essa perspectiva como uma
psicologia social genética (cf. Duveen & Lloyd, 1990). Em todos os
intercâmbios comunicativos, há um esforço para compreender o
mundo através de idéias especificas e de projetar essas idéias de
maneira a influenciar outros, a estabelecer certa manei ra de criar
sentido, de tal modo que as coisas são vistas desta ma neira, em
vez daquela. Sempre que um conhecimento é expres so, é por
determinada razão; ele nunca é desprovido de interes se. Quan-
do Praga é localizada a leste de Viena, certo sentido de mundo e
um conjunto particular de interesses humanos estão sendo
projetados. A procura de conhecimentos nos leva de volta ao tu-
multo da vida humana e da sociedade humana; é aqui que o co-
nhecimento toma aparência e forma através da comunicação e,
ao mesmo tempo, contribui para a configuração e formação
dos intercâmbios comunicativos. Através da comunicação, so-
mos capazes de nos ligar a outros ou de distanciar-nos deles.
Esse é o poder das idéias, e a teoria das representações sociais de
Moscovici procurou tanto reconhecer um fenômeno social especí-
fico, como fornecer os meios para torná-lo inteligível como um
processo sociopsicológico.
Gerard Duveen

28
O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

1. O pensamento considerado como ambiente

1.1 Pensamento primitivo, ciência e senso comum

A crença em que o pensamento primitivo - se tal termo é ain-


da aceitável - está baseado é uma crença no poder ilimitado da
mente em conformar a realidade, em penetrá-la e ativá-la e em
determinar o curso dos acontecimentos. A crença em que o pen-
samento científico moderno está baseado é exatamente o oposto,
isto é, um pensamento no poder ilimitado dos objetos de confor-
mar o pensamento, de determinar completamente sua evolução e
de ser interiorizado na e pela mente. No primeiro caso, o pensa-
mento é visto como agindo sobre a realidade; no segundo, como
uma reação à realidade; numa, o objeto emerge como uma réplica
do pensamento; na outra, o pensamento é uma réplica do objeto; e
se para o primeiro, nossos desejos se tornam realidade - ou wish--
ful thinking - então, para o segundo, pensar passa a ser transfor-
mar a realidade em nossos desejos, despersonalizá-los. Mas sendo
que as duas atitudes são simétricas, elas somente podem ter a
mesma causa e uma causa com a qual nós já estávamos familiari-
zados há muito tempo: o medo instintivo do homem de poderes
que ele não pode controlar e sua tentativa de poder compensar
essa impotência imaginativamente. Sendo esta a única diferença,
enquanto a mente primitiva se amedronta diante das forças da na-
tureza, a mente científica se amedronta diante do poder do pensa-
mento. Enquanto a primeira nos possibilitou sobreviver por mi-
lhões de anos e a segunda conseguiu isso em poucos séculos, de -
vemos aceitar que ambas, a seu modo, representam um aspecto
real da relação entre nossos mundos internos e externos; um as-
pecto, além disso, que vale a pena ser investigado.

29
A psicologia social é, obviamente, uma manifestação do pen-
samento científico e, por isso, quando estuda o sistema co gnitivo
ela pressupõe que:
1. os indivíduos normais reagem a fenômenos, pessoas ou aco n-
tecimentos do mesmo modo que os cientistas ou os estatísti-
cos, e
2. compreender consiste em processar informações.
Em outras palavras, nós percebemos o mundo tal como é e to-
das nossas percepções, idéias e atribuições são respostas a estí-
mulos do ambiente físico ou quase-físico, em que nós vivemos. O
que nos distingue é a necessidade de avaliar seres e objetos corre-
tamente, de compreender a realidade completamente; e o que dis-
tingue o meio ambiente é sua autonomia, sua independência com
respeito a nós, ou mesmo, poder-se-ia dizer, sua indiferença com
respeito a nós e a nossas necessidades e desejos. O que era tido
como vieses cognitivos, distorções subjetivas, tendências afetivas
obviamente existem. Como nós, todos estamos cientes disso, mas
eles são concretamente vieses, distorções e tendências em rela-
ção a um modelo, a regras, tidas como norma.
Parece-me, contudo, que alguns fatos comuns contradizem
esses dois pressupostos:
a) Primeiro, a observação familiar de que nós não estamos
conscientes de algumas coisas bastante óbvias; de que nós não
conseguimos ver o que está diante de nossos olhos. É como se
nosso olhar ou nossa percepção estivessem eclipsados, de tal mo-
do que uma determinada classe de pessoas, seja devido a sua ida-
de - por exemplo, os velhos pelos novos e os novos pelos velhos -
ou devido a sua raça - p. ex. os negros por alguns brancos, etc. - se
tomam invisíveis quando, de fato, eles estão nos olhando de fren-
te . É assim que um arguto escritor negro descreve tal fenômeno:
Eu sou um homem invisível. Não, eu não sou um fantasma como
os que espantaram Edgar Allan Poe; nem sou eu um de vos-
sos ectoplasmas dos cinemas de Hollywood. Eu sou um ho-
mem concreto, de carne e osso, fibra e líquidos – e de mim
pode-se até dizer que tenho inteligência. Eu sou invisível,
entenda-se, simplesmente porque as pessoas recusam ver-
me. Como a cabeça sem corpo, que às vezes se vê em circos,
acontece como se eu estivesse cercado de espelhos de vidro
grossa e que distorcem a figura. Quando eles se aproximam
de mim, eles vêem apenas o que me cerca, se vêem eles
30
mesmos, ou construções de sua imaginação – na realidade,
tudo, exceto eu mesmo (Ellison, 1965: 7).

Essa invisibilidade não se deve a nenhuma falta de informação


devida à visão de alguém, mas a uma fragmentação preestabeleci-
da da realidade, uma classificação das pessoas e coisas que a com-
preendem, que faz algumas delas visíveis e outras invisíveis.
b) Em segundo lugar, nós muitas vezes percebemos que
alguns fatos que nós aceitamos sem discussão, que são básicos a
nosso entendimento e comportamento, repentinamente trans-
formam-se em meras ilusões. Por milhares de anos os homens
estavam convencidos que o sol girava ao redor de uma terra pa-
rada. Desde Copérnico nós temos em nossas mentes a imagem
de um sistema planetário em que o sol permanece parado,
enquanto a terra gira a seu redor; contudo, nós ainda vemos o que
nossos antepassados viam. Distinguimos, pois, as aparências da
realidade das coisas, mas nós as distinguimos precisamente por-
que nós podemos passar da aparência à realidade através de al-
guma noção ou imagem.
c) Em terceiro lugar nossas reações aos acontecimentos, nos-
sas respostas aos estímulos, estão relacionadas a determinada de-
finição, comum a todos os membros de uma comunidade à qual
nós pertencemos. Se, ao dirigirmos pela estrada, nós encontramos
um carro tombado, uma pessoa ferida e um policial fazendo um
relatório, nós presumimos que houve um acidente. Nós lemos
diariamente sobre colisões e acidentes nos jornais a respeito dis-
so. Mas esses são apenas acidentes porque nós definimos assim
qualquer interrupção involuntária no andamento de um carro que
tem conseqüências mais ou menos trágicas. Sob outros aspectos,
não existe nada de acidental, quanto a um acidente de automóvel.
Sendo que os cálculos estatísticos nos possibilitam avaliar o nú-
mero de vítimas, de acordo com o dia da semana e da localidade,
os acidentes de carro não são mais casuais que a desintegração
dos átomos em uma aceleração sob alta pressão; eles estão direta-
mente relacionados a um grau de urbanização de uma dada socie-
dade, à velocidade e ao número dos seus carros particulares e à
inadequação do seu transporte público.

Em cada um desses casos, notamos a intervenção de repre-


sentações que tanto nos orientam em direção ao que é visível,
como àquilo a que nós temos de responder; ou que relacionam a
31
aparência á realidade; ou de novo aquilo que define essa realida-
de. Eu não quero dizer que tais representações não correspondem
a algo que nós chamamos o mundo externo. Eu simplesmente per-
cebo que, no que se refere á realidade, essas representações são
tudo o que nós temos, aquilo a que nossos sistemas perceptivos,
como cognitivos, estão ajustados. Bower escreve:
Nós geralmente usamos nosso sistema perceptivo para interpretar
representações de mundos que nós nunca podemos ver. No
mundo feito por mãos humanas em que vivemos, a percepção das re-
presentações é tão importante como a percepção dos obj e-
tos reais. Por representação eu quero dizer um conjunto de estímulos
feitos pelos homens, que têm a finalidade de servir como um
substituto a um sinal ou som que não pode ocorrer natu-
ralmente. Algumas representações funcionam como substitutos de
estímulos; elas produzem a mesma experiência que o mundo na-
tural produziria (Bower, 1977: 58).

De fato, nós somente experienciamos e percebemos um


mundo em que, em um extremo, nós estamos familiarizados com
coisas feitas pelos homens, representando outras coisas feitas pe-
los homens e, no outro extremo, com substitutos por estímulos
cujos originais, seus equivalentes naturais, tais como partículas ou
genes, nós nunca veremos. Assim que nos encontramos, por vezes,
em um dilema onde necessitamos um ou outro signo, que nos auxili-
ará a distinguir uma representação de outra, ou uma representa-
ção do que ela representa, isto é, um signo que nos dirá: Essa é
uma representação , ou Essa não é uma representação. O pintor
René Magritte ilustrou tal dilema com perfeição em um quadro em
que a figura de um cachimbo está contida dentro de uma figura que
também representa um cachimbo Nessa figura dentro da figura
podemos ler a mensagem: Esse é um cachimbo , que indica a dife-
rença entre os dois cachimbos. Nós nos voltamos então para o
cachimbo real flutuando no ar e percebemos que ele é real, en-
quanto o outro é apenas uma representação 1. Tal interpretação,
contudo, é incorreta, pois ambas as figuras estão pintadas na
mesma tela, diante de nossos olhos. A idéia de que uma delas é

1 Nota do editor: Moscovici está se referindo a um quadro de Magritte, que pode não ser tio
familiar aos leitores, O famoso quadro data de 1926 e mostra uma simples imagem de um c a-
chimbo com a inscriç~o )sso n~o é um cachimbo , embaicho da pintura. Em , ele pintou
outro quadro chamado Les deux mistéres (Os dois mistérios), em que o quadro de 1966 é mostra-
do em um cavalete, em uma sala vazia, com uma segunda imagem de um cachimbo flutuando no
ar, sobre ele. As questões sobre representação relacionadas a ambas as pinturas são extens a-
mente discutidas por Michel Foucault (1983).
32
uma figura que está, ela mesma, dentro de uma figura e por isso um
pouco menos real que a outra, é totalmente ilusória. Uma vez que
se chegou a um acordo de entrar na moldura , nós já estamos com-
prometidos: temos de aceitar a imagem como realidade. Continua
contudo a realidade de uma pintura que, exposta em um museu e
definida como um objeto de arte, alimenta o pensamento, provoca
uma reação estética e contribui para nossa compreensão da arte
da pintura.
Como pessoas comuns, sem o benefício dos instrumentos ci-
entíficos, tendemos a considerar e analisar o mundo de uma ma-
neira semelhante; especialmente quando o mundo em que vive-
mos é totalmente social. Isso significa que nós nunca conseguimos
nenhuma informação que não tenha sido destorcida por re-
presentações superimpostas aos objetos e às pessoas que lhes
dão certa vaguidade e as fazem parcialmente inacessíveis. Quando
contemplamos esses indivíduos e objetos, nossa predisposição
genética herdada, as imagens e hábitos que nós já aprendemos, as
suas recordações que nós preservamos e nossas categorias cultu-
rais, tudo isso se junta para fazê-las tais como as vemos. Assim, em
última análise, elas são apenas um elemento de uma cadeia de rea-
ção de percepções, opiniões, noções e mesmo vidas, organizadas
em uma determinada seqüência É essencial relembrar tais lu gares
comuns quando nos aproximamos do domínio da vida mental na
psicologia social. Meu objetivo é reintroduzi-los aqui de uma ma-
neira que, espero, seja frutífera.

1.2 A natureza convencional e prescritiva das representações

De que modo pode o pensamento ser considerado como um


ambiente (como atmosfera social e cultural)? Impressionistica-
mente, cada um de nós está obviamente cercado, tanto individu-
almente como coletivamente, por palavras, idéias e imagens que
penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossa mente, quer quei-
ramos quer não e que nos atingem, sem que o saibamos, do mesmo
modo que milhares de mensagens enviadas por ondas eletromag-
néticas circulam no ar sem que as vejamos e se tomam palavras em
um receptor de telefone, ouse tomam imagens na tela da televisão.
Tal metáfora, contudo, não é realmente adequada. Vejamos se po-
33
demos encontrar uma maneira melhor de descrever como as re-
presentações intervêm em nossa atividade cognitiva e até que pon-
to elas são independentes dela, ou, pode-se dizer, até que ponto a
determinam. Se nós aceitamos que sempre existe certa quantidade,
tanto de autonomia, como de condicionamento em cada ambiente,
seja natural ou social - e no nosso caso em ambos - digamos que as
representações possuem precisamente duas funções:
a) Em primeiro lugar, elas convencionalizam os objetos, pes-
soas ou acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma
definitiva, as localizam em uma determinada categoria e gradual-
mente as colocam como um modelo de determinado tipo, distinto e
partilhado por um grupo de pessoas. Todos os novos elementos se
juntam a esse modelo e se sintetizam nele. Assim, nós passamos a
afirmar que a terra é redonda, associamos comunismo com a cor
vermelha, inflação como decréscimo do valor do dinheiro. Mesmo
quando uma pessoa ou objeto não se adéquam exatamente ao mo-
delo, nós o forçamos a assumir determinada forma, entrar em deter-
minada categoria, na realidade, a se tornar idêntico aos outros, sob
pena de não ser nem compreendido, nem decodificado.
Bartlett conclui, a partir de seus estudos sobre percepção,
que:
Quando uma forma de representação co mum e já conven-
cional está em uso antes que o signo seja introduzido, exi s-
te uma forte tendência para características particulares d e-
saparecerem e para que todo o signo seja assimilado em uma forma
mais familiar. Assim o pisca-pisca quase sempre é identifi-
cado a uma forma comum e regular de ziguezague e quei-
xo perdeu seu ângulo bastante agudo, tornando-se mais
semelhante a representações convencionais dessa caracte-
rística (Bartlett, 1961: 106).

Essas convenções nos possibilitam conhecer o que represen-


ta o que: uma mudança de direção ou de cor indica movimento ou
temperatura, um determinado sintoma provém, ou não, de uma
doença; elas nos ajudam a resolver o problema geral de saber
quando interpretar uma mensagem como significante em relação
a outras e quando vê-la como um acontecimento fortuito ou casu-
al. E esse significado em relação a outros depende ainda de um
número de convenções preliminares, através das quais nós pode-
mos distinguir se um braço é levantado para chamar a atenção,
para saudar um amigo, ou para mostrar impaciência. Algumas ve-
zes é suficiente simplesmente transferir um objeto, ou pessoa, de
34
um contexto a outro, para que o vejamos sob nova luz e para sa-
bermos se eles são, realmente, os mesmos. O exemplo mais provo-
cante foi o apresentado por Marcel Duchamp que, a partir de 1912,
restringiu sua produção cientifica em assinar objetos já prontos e
que, com esse único gesto, promoveu objetos fabricados ao status
de objetos de arte. Um outro exemplo não menos chocante é o dos
criminosos de guerra que são responsáveis por atrocidades que não
serão facilmente esquecidas. Os que os conheceram, contudo, e que
tinham familiaridade com eles tanto durante como depois da guer-
ra, elogiaram sua humanidade e sua gentileza, assim como sua efi-
ciência tradicional, comparando-os aos milhares de indivíduos
tranqüilamente empregados em trabalhos burocráticos.
Esses exemplos mostram como cada experiência é somada a
uma realidade predeterminada por convenções, que claramente
define suas fronteiras, distingue mensagens significantes de men-
sagens não-significantes e que liga cada parte a um todo e coloca
cada pessoa em uma categoria distinta. Nenhuma mente está livre
dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos
por suas representações, linguagem ou cultura Nós pensamos atra-
vés de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de
acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas
representações, como por nossa cultura. Nós vemos apenas o que
as convenções subjacentes nos permitem ver e nós permanece-
mos inconscientes dessas convenções. A esse respeito, nossa po -
sição é muito semelhante à da tribo étnica africana, da qual Evans-
Pritchard escreveu:

Nessa rede de crenças, cada fio depende dos outros fios e


um Zande não pode deixar esse esquema, porque este é o única
mundo que ele conhece. A rede não é uma estrutura externa
em que ele esta preso. Ela é a textura de seu pensamento e
ele não pode pensar que seu pensamento esteja errado (Evans-
Pritchard, 1937: 199).

Podemos, através de um esforço, tornar-nos conscientes do


aspecto convencional da realidade e então escapar de algumas
exigências que ela impõe em nossas percepções e pensamentos.
Mas nós não podemos imaginar que podemos libertar-nos sempre
de todas as convenções, ou que possamos eliminar todos os pre-
conceitos. Melhor que tentar evitar todas as convenções, uma es-
35
tratégia melhor seria descobrir e explicitar uma única representa-
ção.
Então, em vez de negar as convenções e preconceitos, esta estra-
tégia nos possibilitará reconhecer que as representações constitu-
em, para nós, um tipo de realidade. Procuraremos isolar quais
representações são inerentes nas pessoas e objetos que nós en-
contramos e descobrir o que representam exatamente. Entre
elas estão as cidades em que habitamos, os badulaques que usa-
mos, os transeuntes nas ruas e mesmo a natureza pura, sem polui-
ção, que buscamos no campo, ou em nossos jardins.
Sei que é dada alguma atenção às representações na prática
de pesquisa atual, na tentativa de descrever mais claramente o
contexto em que a pessoa é levada a reagir a um estimulo particu-
lar e a explicar, mais acuradamente, suas respostas subseqüentes.
Afinal, o laboratório é uma realidade tal que representa uma outra,
exatamente como a figura de Magritte dentro de um quadro. Ele é
uma realidade em que é necessário indicar isso é um estimulo e
não simplesmente uma cor ou um som e isso é um sujeito e não
um estudante de direita ou de esquerda que quer ganhar algum
dinheiro para pagar seus estudos. Mas nós devemos tomar isso em
consideração em nossa teoria. Por isso, nós devemos levar ao cen-
tro do palco o que nós procuramos guardar nos bastidores laterais.
Isso poderia até mesmo ser o que Lewin tinha em mente quando
escreveu: A realidade é, para a pessoa, em grande parte, deter-
minada por aquilo que é socialmente aceito como realidade (Le-
win, 1948: 57).

b) Em segundo lugar, representações são prescritivas, isto é,


elas se impõem sobre nós com uma força irresistível. Essa força é
uma combinação de uma estrutura que es tá presente antes
mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que de-
creta o que deve ser pensado. Uma criança nascida hoje em qual-
quer país ocidental encontrará a estrutura da psicanálise, por
exemplo, nos gestos de sua mãe ou de seu médico, na afeição com
que ela será cercada para ajudá-la através das provas e tribula-
ções do conflito edípico, nas histórias em quadrinhos cômicas
que ela lerá, nos textos escolares, nas conversações com os co-
legas de aula, ou mesmo em uma análise psicanalítica, se tiver de
recorrer a isso, caso surjam problemas sociais ou educacionais.
Isso sem falar dos jornais que ela terá, dos discursos políticos que
36
terá de ouvir, dos filmes a que assistirá etc. Ela encontrará uma
resposta já pronta, em um jargão psicanalítico, a todas essas
questões e para todas as suas ações fracassadas ou bem-
sucedidas, uma explicação estará pronta, que a levará de volta a
sua primeira infância, ou a seus desejos sexuais. Nós menciona-
mos a psicanálise como uma representação. Poderíamos do mes-
mo modo mencionar a psicologia mecanicista, ou uma psicologia
que considera o homem como se fosse uma máquina, ou o para-
digma científico de uma comunidade específica.
Enquanto essas representações, que são partilhadas por
tantos, penetram e influenciam a mente de cada um, elas não são
pensadas por eles; melhor, para sermos mais precisos, elas são re-
pensadas, re-citadas e re-apresentadas.
Se alguém exclama: Ele é um louco , pára e, então, se corrige
dizendo: Não, eu quero dizer que ele é um gênio , nós imediata-
mente concluímos que ele cometeu um ato falho freudiano. Mas
essa conclusão não é resultado de um raciocínio, nem prova de
que nós temos uma capacidade de raciocínio abstrato, pois nós
apenas relembramos, sem pensar e sem pensar em nada mais, a
representação ou definição do que seja um ato falho freudiano. Po-
demos, na verdade, ter tal capacidade e perguntar-nos por que a
pessoa em questão usou uma palavra em vez de outra, sem chegar a
nenhuma resposta. É, pois, fácil ver por que a representação que
temos de algo não está diretamente relacionada à nossa maneira
de pensar e, contrariamente, por que nossa maneira de pensar e o
que pensamos depende de tais representações, isto é, no fato
de que nós temos, ou não temos, dada representação. Eu quero di-
zer que elas são impostas sobre nós, transmitidas e são o produto
de uma seqüência completa de elaborações e mudanças que ocor-
rem no decurso do tempo e são o resultado de sucessivas g era-
ções. Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas
as descrições que circulam dentro de uma sociedade, mesmo as
descrições científicas, implicam um elo de prévios sistemas e ima-
gens, uma estratificação na memória coletiva e uma reprodu ção
na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento an-
terior e que quebra as amarras da informação presente.
A atividade social e intelectual é, afinal, um ensaio, ou recital,
mas muitos psicólogos sociais a tratam, erradamente, como se ela
fizesse perder a memória. Nossas experiências e idéias passadas
não são experiências ou idéias mortas, mas continuam a ser ativas,
a mudar e a infiltrar nossa experiência e idéias atuais. Sob muitos
37
aspectos, o passado é mais real que o presente. O poder e a clari-
dade peculiares das representações - isto é, das representações
sociais - deriva do sucesso com que elas controlam a realida de de
hoje através da de ontem e da continuidade que isso pressupõe.
De fato, o próprio Jahoda as identificou como propriedades autô-
nomas que não são necessariamente identificáveis no pen-
samento de pessoas particulares (Jahoda, 1970: 42); uma nota a
que seu compatriota McDougall identificara e aceitara, meio sécu-
lo antes, na terminologia de seus dias: Pensar, com a ajuda de re-
presentações coletivas, possui suas leis próprias, bem distintas
das leis da lógica (McDougall, 192O: 74). Leis que, obviamente,
modificam as leis da lógica, tanto na prática, como nos resultados.
À luz da história e da antropologia, podemos afirmar que essas re-
presentações são entidades sociais, com uma vida própria, comu-
nicando-se entre elas, opondo-se mutuamente e mudando em
harmonia com o curso da vida; esvaindo-se, apenas para emergir
novamente sob novas aparências. Geralmente, em civilizações tão
divididas e mutáveis como a nossa, elas co-existem e circulam
através de várias esferas de atividade, onde uma delas terá pre-
cedência, como resposta à nossa necessidade de certa coerên cia,
quando nos referimos a pessoas ou coisas. Se ocorrer uma mu-
dança em sua hierarquia, porém, ou se uma determinada imagem-
idéia for ameaçada de extinção, todo nosso universo se pre-
judicará. Um acontecimento recente e os comentários que ele pro -
vocou podem servir para ilustrar esse ponto.
A American Psychiatric Association recentemente anunciou
sua intenção de descartar os termos neurose e neurótico para defi-
nir desordens especificas. Os comentários de um jornalista sobre
essa decisão em um artigo intitulado Goodbye Neurosis (Inter-
national Herald Tribune, 11 de set de 1978) são muito signifi-
cativos:
Se o dicionário das desordens ment ais não mais aceitar o
termo neurótico nós, leigos, somente podemos fazer o mes-
mo. Consideremos, contudo, a perda cultural: sempre que
alguém é chamado de neurótico , ou um neurótico , isso
envolve um ato implícito de perdão e compreensão: Oh, Mano
de tal é apenas um neurótico , significa Oh, fulano é excessi-
vamente nervoso. Ele realmente não quer atirar a louça na
tua cabeça. É apenas o seu leito . Ou então Fulano é apenas
um neurótico - significando ele não pode se controlar. Não
quer dizer que todas às vezes ele vai jogar a louça em sua ca-
beça .
38
Pelo fato de chamar alguém de neurótico, nós colocamos o
peso do ajustamento não em alguém, mas sobre nós me s-
mos. É um tipo de apelo à gentileza, a uma espécie de genero-
sidade social.

Seria também assim se os mentalmente perturbados atiras-


sem a louça? Pensamos que não. Desculpar Mano de tal pelo
fato de citar sua desordem mental - a categoria especifica
de sua desordem - é o mesmo que desculpar um carro por fal-
tar-lhe os freios - ele precisa ser consertado o mais rápido pos-
sível. O peso do desajustamento será colocado diretamente
no desajustamento do carro. Não se solicitará compaixão para
a sociedade em geral e naturalmente nenhuma será espera-
da.

Pensemos também na auto-estima do próprio neurótico,


que foi longamente confortado com o conhecimento que ele
é apenas um neurótico -apenas algumas linhas de segu-
rança abaixo de um psicótico, mas muitas acima da linha
normal das pessoas. Um neurótico é um excêntrico tocado
por Freud. A sociedade lhe concede um lugar honrado, muitas
vezes louvável. Conceder-se-ia o mesmo lugar para os que
sofrem de desordens somáticas ou desordens depressi-
vas mais graves , ou desordens dissociativas ? Provavel-
mente não.

Tais ganhos culturais e perdas, estão, obviamente, relaciona-


dos a fragmentos de representações sociais. Uma palavra e a defi-
nição de dicionário dessa palavra contêm um meio de classificar
indivíduos e ao mesmo tempo teorias implícitas com respeito à
sua constituição, ou com respeito às razões de se comportarem de
uma maneira ou de outra - uma como que imagem física de cada
pessoa, que corresponde a tais teorias. Uma vez difundido e aceito
este conteúdo, ele se constitui em uma parte integrante de nós
mesmos, de nossas inter-relações com outros, de nossa maneira
de julgá-los e de nos relacionarmos com eles; isso até mesmo define
nossa posição na hierarquia social e nossos valores. Se a palavra
neurose desaparecesse e fosse substituída pela palavra de-
sordem , tal acontecimento teria conseqüências muito além de
seu mero significado em uma sentença, ou na psiquiatria. São nos-
sas inter-relações e nosso pensamento coletivo que estão implica-
dos nisso e transformados.
Espero que eu tenha amplamente demonstrado como, por
um lado, ao se colocar um signo convencional na realidade, e por
outro lado, ao se prescrever, através da tradição e das estruturas
39
imemoriais, o que nós percebemos e imaginamos, essas criaturas
do pensamento, que são as representações, terminam por se cons-
tituir em um ambiente real, concreto.
Através de sua auto nomia e das pressões que elas exercem
(mesmo que nós estejamos perfeitamente conscientes que elas
não são nada mais que idéias ), elas são, contudo, como se fossem
realidades inquestionáveis que nós temos de confrontá-las. O peso
de sua história, costumes e conteúdo cumulativo nos confronta
com toda a resistência de um objeto material. Talvez seja uma
resistência ainda maior, pois o que é invisível é inevitavelmente
mais difícil de superar do que o que é visível.

1.3. A era da representação

Todas as interações humanas, surjam elas entre duas pessoas


ou entre dois grupos, pressupõem representações. Na realidade, é
isso que as caracteriza. O fato central sobre as interações huma-
nas, escreveu Asch, é que elas são acontecimentos, que elas estão
psicologicamente representadas em cada um dos participantes
(Asch, 1952: 142). Se esse fato é menosprezado, tudo o que sobra
são trocas, isto é, ações e reações, que são não-específicas e, ainda
mais, empobrecidas na troca. Sempre e em todo lugar, quando nós
encontramos pessoas ou coisas e nos familiarizamos com elas, tais
representações estão presentes. A informação que recebemos,
e a qual tentamos dar um significado, está sob seu controle e não
possui outro sentido para nós além do que elas dão a ele.
Para alargar um pouco o referencial, nós podemos afirmar que
o que é importante é a natureza da mudança, através da qual as
representações sociais se tornam capazes de influenciar o co m-
portamento do individuo participante de uma coletividade. É des-
sa maneira que elas são criadas, internamente, mentalmente, pois
é dessa maneira que o próprio processo coletivo penetra, como o
fator determinante, dentro do pensamento individual. Tais repre-
sentações aparecem, pois, para nós, quase como que objetos ma-
teriais, pois eles são o produto de nossas ações e comunicações.
Elas possuem, de fato, uma atividade profissional: Eu estou me re-
ferindo àqueles pedagogos, ideólogos, popularizadores da ciência
ou sacerdotes, isto é, os representantes da ciência, culturas ou re-
ligião, cuja tarefa é criá-las e transmiti-las, muitas vezes, infeliz-
40
mente, sem sabê-lo ou querê-lo. Na evolução geral da sociedade,
essas profissões estão destinadas a se multiplicar e sua tarefa se
tornará mais sistemática e mais explícita. Em parte, devido a isso e
em vista de tudo o que isso implica, essa era se tornará conhecida
como a era da representação, em cada sentido desse termo.
Isso não subverterá a autonomia das representações em rela-
ção tanto à consciência do indivíduo, ou à do grupo. Pessoas e
grupos criam representações no decurso da comunicação e da co -
operação. Representações, obviamente, não são criadas por um
individuo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem
uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem
e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, en-
quanto velhas representações morrem. Como conseqüência dis-
so, para se compreender e explicar uma representação, é necessá-
rio começar com aquela, ou aquelas, das quais ela nasceu. Não é
suficiente começar diretamente de tal ou tal aspecto, seja do com-
portamento, seja da estrutura social. Longe de refletir, seja o com-
portamento ou a estrutura social, uma representação muitas vezes
condiciona ou até mesmo responde a elas. Isso é assim, não por-
que ela possui uma origem coletiva, ou porque ela se refere a um
objeto coletivo, mas porque, como tal, sendo compartilhada por
todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma realidade social
sui generis. Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza
convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. O que é
ideal, gradualmente torna-se materializado. Cessa de ser efêmero,
mutável e mortal e torna-se, em vez disso, duradouro, perma-
nente, quase imortal. Ao criar representações, nós somos como o
artista, que se inclina diante da estátua que ele esculpiu e a adora
como se fosse um deus.

Na minha opinião, a tarefa principal da psicologia social é es-


tudar tais representações, suas propriedades, suas origens e seu
impacto. Nenhuma outra disciplina dedica-se a essa tarefa e ne-
nhuma está melhor equipada para isso. Foi, de fato, à psicologia
social que Durkheim confiou essa tarefa:
No que se refere às leis do pensamento coletivo, elas são to-
talmente desconhecidas. A psicologia social, cuja tarefa se-
ria defini-las, não é nada mais que uma palavra descrevendo
todo tipo de variadas generalizações, vagas, sem um objeto
definido como foco. O que é necessário é descobrir, pela

41
comparação de mitos, lendas, tradições populares e lin-
guagens, como as representações sociais se atraem e se ex-
cluem, como elas se mesclam ou se distinguem etc. (Durkheim,
1895/1982: 41-42).

Apesar de numerosos estudos posteriores, idéias fragmenta-


das e experimentos, nós não estamos mais avançados do que nós
estávamos há quase um século. Nosso conhecimento é como uma
maionese que azedou. Mas uma coisa é certa: As formas princi pais
de nosso meio ambiente físico e social estão fixas em repre-
sentações desse tipo e nós mesmos fomos moldados de acordo
com elas. Eu até mesmo iria ao ponto de afirmar que, quanto me-
nos nós pensamos nelas, quanto menos conscientes somos delas,
maior se torna sua influência. É o caso em que a mente coletiva
transforma tudo o que toca. Nisso reside a verdade da crença pri-
mitiva que dominou nossa mentalidade por milhões de anos.

2. O que é uma sociedade pensante?

Nós pensamos através de nossas bocas (Tristan Tzara).

2.1. Behaviorismo como o estudo das representações sociais


Vivemos em um mundo behaviorista, praticamos uma ciência
behaviorista e usamos metáforas behavioristas. Eu digo isso sem
orgulho ou vergonha. Pois eu não vou embarcar em uma critica do
que deveria, forçosamente, ser chamado de uma visão do ser hu-
mano contemporâneo, pois sua defesa, ou refutação, não é, en-
quanto eu posso perceber, interesse da ciência, mas da cultura.
Não se defende, nem se refuta, uma cultura. Dito isso, é óbvio que o
estudo das representações sociais deve ir além de tal visão e
deve fazer isso por uma razão específica. Ela vê o ser humano en-
quanto ele tenta conhecer e compreender as coisas que o circun-
dam e tenta resolver os enigmas centrais de seu próprio nasci-
mento, de sua existência corporal, suas humilhações, do céu que
está acima dele, dos estados da mente de seus vizinhos e dos po-
deres que o dominam: enigmas que o ocupam e preocupam desde
o berço e dos quais ele nunca pára de falar. Para ele, pensamentos
42
e palavras são reais - eles não são apenas epifenômenos do com-
portamento. Ele concorda com Frege, que escreveu:

A influência de uma pessoa sobre outra acontece princi-


palmente através do pensamento. Alguém comunica um pen-
samento- Como acontece isso? Alguém causa mudanças no
mundo externo normal que, percebidas por outra pessoa,
são consideradas como induzindo-a a apreender um pen-
samento e aceitá-lo como verdadeiro. Poderiam os grandes
acontecimentos do mundo terem se tornado realidade sem
a comunicação do pensamento? E apesar disso, estamos in-
clinados a considerar os pensamentos como irreais, porque
parecem não possuírem influência sobre os acontecimen-
tos, embora pensar, julgar, falar, compreender, são fatos da
vida humana. Como um martelo parece muito mais real que
um pensamento. Como é diferente o processo de usar um mar-
telo do de comunicar um pensamento (Frege, 1977: 38).

É isso que os livros e artigos estão continuamente martelando


sobre nossa cabeça: os martelos são mais reais que pensamentos;
preste atenção a martelos, não a pensamentos. Tudo, em última
análise, é comportamento, um problema de fixar estímulos para as
paredes de nosso organismo, como agulhas. Quando estudamos
representações sociais nós estudamos o ser humano, enquanto
ele faz perguntas e procura respostas ou pensa e não enquanto ele
processa informação, ou se comporta. Mais precisamente, en-
quanto seu objetivo não é comportar-se, mas compreender.
O que é uma sociedade pensante ? Essa é nossa questão e é
isso que nós queremos observar e compreender, através do estu-
do (a) das circunstâncias em que os grupos se comunicam, tomam
decisões e procuram tanto revelar, como esconder algo e (b) das
suas ações e suas crenças, isto é, das suas ideologias, ciências e
representações. Nem poderia ser diferente; o mistério é profundo,
mas a compreensão é a faculdade humana mais comum. Acredita-
va-se antigamente que esta faculdade fosse estimulada, primeira e
principalmente, pelo contato com o mundo externo. Mas aos poucos
nós nos fomos dando conta que ela na realidade brota da comuni-
cação social. Estudos recentes sobre crianças muito pequenas mo s-
traram que as origens e o desenvolvimento do sentido e do pen-
samento dependem das inter-relações sociais; como se uma crian-
ça chegasse ao mundo primariamente preparada para se relacio-
nar com outros: com sua mãe, seu pai e com todos os que a espe-
43
ram e se interessam por ela. O mundo dos objetos constitui apenas
um pano de fundo para as pessoas e suas interações sociais.
Ao fazermos a pergunta: o que é uma sociedade pensante?,
nós rejeitamos ao mesmo tempo a concepção que, creio eu, é pre-
dominante nas ciências humanas, de que uma sociedade não pen-
sa, ou, se pensa, esse não é um atributo essencial seu. O negar que
uma sociedade pense pode assumir duas formas diferentes:
a) afirmar que nossas mentes são pequenas caixas pretas,
dentro de uma caixa preta maior, que simplesmente recebe infor-
mação, palavras e pensamentos que são condicionados de fora, a
fim de transformá-los em gestos, juízos, opiniões, etc. De fato, nós
sabemos muito bem que nossas mentes não são caixas pretas,
mas, na pior das hipóteses, buracos pretos, que possuem uma
vida e atividade próprias, mesmo quando isso não é óbvio e quan-
do as pessoas não trocam nem energia nem informação com o
mundo externo. A loucura, esse buraco negro na racionalidade,
prova irrefutavelmente que é assim que as coisas são.
b) assegurar que grupos e pessoas estão sempre e completa-
mente sob controle de uma ideologia dominante, que é produzida
e imposta por sua classe social, pelo estado, igreja ou escola e que
o que eles pensam e dizem apenas reflete tal ideologia. Em outras
palavras, sustenta-se que eles, como regra, não pensam, ou pro-
duzem nada de original por si mesmos: eles reproduzem e, em
contrapartida, são reproduzidos. Apesar de sua natureza progres-
sista, esta concepção está essencialmente de acordo com a de Le
Bon, que afirma que as massas não pensam nem criam; e que são
apenas os indivíduos, a elite organizada, que pensa e cria. Desco -
brimos aqui, quer gostemos ou não, a metáfora da caixa preta,
com a diferença que agora ela está composta de idéias já prontas e
não apenas com objetos. Pode ser esse o caso, mas nós não o po-
demos garantir, pois, mesmo que as ideologias e seu impacto te-
nham sido amplamente discutidos, elas não foram extensivamen te
pesquisadas. E isso também foi reconhecido por Marx e Wood: Em
comparação, porém, com outras áreas, o estudo da ideologia foi
relativamente negligenciado pelos sociólogos, que em geral se
sentem em situação mais confortável estudando a estrutura social
e o comportamento, do que estudando crenças e símbolos (Marx &
Wood, 1975: 382).
O que estamos sugerindo, pois, é que pessoas e grupos, longe
de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, produzem e
44
comunicam incessantemente suas próprias e específicas repre-
sentações e soluções às questões que eles mesmos colocam. Nas
ruas, bares, escritórios, hospitais, laboratórios, etc. as pessoas ana-
lisam, comentam, formulam filosofias espontâneas, não oficiais,
que têm um impacto decisivo em suas relações sociais, em suas
escolhas, na maneira como eles educam seus filhos, como plane-
jam seu futuro, etc. Os acontecimentos, as ciências e as ideologias
apenas lhes fornecem o alimento para o pensamento .

2.2. Representações sociais


É óbvio que o conceito de representações sociais chegou até
nós vindo de Durkheim. Mas nós temos uma visão diferente dele -
ou, de qualquer modo, a psicologia social deve considerá-lo de um
ângulo diferente - de como o faz a sociologia. A sociologia vê, ou
melhor, viu as representações sociais como artifícios explanató-
rios, irredutíveis a qualquer análise posterior. Sua função teórica
era semelhante á do átomo na mecânica tradicional, ou à do genes
na genética tradicional; isto é, átomos e genes eram considerados
como existentes, mas ninguém se importava sobre o que faziam,
ou com o que se pareciam. Do mesmo modo, sabia-se que as re-
presentações sociais existiam nas sociedades, mas ninguém se
importava com sua estrutura ou com sua dinâmica interna. A psi-
cologia social, contudo, estaria e deveria estar pré-ocupada so-
mente com a estrutura e a dinâmica das representações. Para nós,
isso se explica na dificuldade de penetrar o interior para descobrir
os mecanismos internos e a vitalidade das representações sociais
o mais detalhadamente possível; isto é, em cindir as representa-
ções , exatamente como os átomos e os genes foram divididos. O
primeiro passo nessa direção foi dado por Piaget, quando ele estu-
dou a representação do mundo da criança e sua investigação per-
manece, até o dia de hoje, como um exemplo. Assim, o que eu pro-
ponho fazer é considerar como um fenômeno o que era antes visto
como um conceito.
Ainda mais: do ponto de vista de Durkheim, as representa-
ções coletivas abrangiam uma cadeia completa de formas intelec-
tuais que incluíam ciência, religião, mito, modalidades de tempo e
espaço, etc.

De fato, qualquer tipo de idéia, emoção ou crença, que ocor-


45
resse dentro de uma comunidade, estava incluído. Isso representa
um problema sério, pois pelo fato de querer incluir demais, inclui-
se muito pouco: querer compreender tudo é perder tudo. A intui-
ção, assim como a experiência, sugere que é impossível cobrir um
raio de conhecimento e crenças tão amplo. Conhecimento e crença
são, em primeiro lugar, demasiado heterogêneos e, além disso,
não podem ser definidos por algumas poucas características ge-
rais. Como conseqüência, nós estamos obrigados a acrescentar
duas qualificações significativas:

a) As representações sociais devem ser vistas como uma ma-


neira especifica de compreender e comunicar o que nós já sabe mos.
Elas ocupam, com efeito, uma posição curiosa, em algum ponto
entre conceitos, que têm como seu objetivo abstrair sentido do
mundo e introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o
mundo de uma forma significativa. Elas sempre possuem duas
faces, que são interdependentes, como duas faces de uma folha de
papel: a face icônica e a face simbólica. Nós sabemos que: repre-
sentação = imagem/significação; em outras palavras, a represen-
tação iguala toda imagem a uma idéia e toda idéia a uma imagem.
Dessa maneira, em nossa sociedade, um neurótico é uma idéia
associada com a psicanálise, com Freud, com o Complexo de Édipo
e, ao mesmo tempo, nós vemos o neurótico como um indivíduo
egocêntrico, patológico, cujos conflitos parentais não foram ainda
resolvidos. De outro lado, porém, a palavra evoca uma ciência, até
mesmo o nome de um herói clássico e um conceito, que, por ou-
tras, evoca um tipo definido, caracterizado por certos traços e uma
biografia facilmente imaginável. Os mecanismos mentais que são
mobilizados nesse exemplo e que constroem essa figura em nosso
universo e lhe dão um significado, uma interpretação, obviamente
diferem dos mecanismos cuja função é isolar uma percepção pre-
cisa de uma pessoa ou de uma coisa e de criar um sistema de con-
ceitos que as expliquem. A própria linguagem, quando ela carrega
representações, localiza-se a meio caminho entre o que é chama do
de a linguagem de observação e a linguagem da lógica; a primeira,
expressando puros fatos - se tais fatos existem - e a segunda, ex-
pressando símbolos abstratos. Este é, talvez, um dos mais marcan-
tes fenômenos de nosso tempo - a união da linguagem e da re-
presentação. Deixem-me explicar:

46
Até o inicio do século, a linguagem verbal comum era um
meio tanto de comunicação, como de conhecimento; de idéias co-
letivas e de pesquisa abstrata, pois ela era igual tanto para o senso
comum, como para a ciência. Hoje em dia, a linguagem não-verbal
- matemática e lógica - que se apropriou da esfera da ciência, subs-
tituiu signos por palavras e equações por proposições. O mundo
de nossa experiência e de nossa realidade se rachou em dois e as
leis que governam nosso mundo cotidiano não possuem, agora,
relação direta com as leis que governam o mundo da ciência. Se
nós estamos, hoje, muito interessados em fenômenos lingüísticos,
isso se deve, em parte, ao fato de a linguagem estar em declínio, do
mesmo modo como estamos preocupados com as plantas, com a
natureza e os animais, porque eles estão ameaçados de extin-
ção. A linguagem, excluída da esfera da realidade material, re-
emerge na esfera da realidade histórica e convencional; e, se ela
perdeu sua relação com a teoria, ela conserva sua relação com a
representação, que é tudo o que ela deixou. Se o estudo da lin-
guagem, pois, é cada vez mais preocupação da psicologia social,
isso não é porque a psicologia social quer imitar o que aconteceu
com as outras disciplinas, ou porque quer acrescentar uma dimen-
são social a suas abstrações individuais, ou por qualquer outros
motivos filantrópicos. Isso está, simplesmente, ligado à mudança
que nós mencionamos há pouco e que a liga tão exclusivamente ao
nosso método normal, cotidiano, de compreender e intercam biar
nossas maneiras de ver as coisas.
b) Durkheim, fiel à tradição aristotélica e kantiana, possui uma
concepção bastante estática dessas representações - algo parecido
com a dos estóicos. Como conseqüência, representações, em sua
teoria, são como o adensamento da neblina, ou, em outras pa-
lavras, elas agem como suportes para muitas palavras ou idéias -
como as camadas de um ar estagnado na atmosfera da sociedade,
do qual se diz que pode ser cortado com uma faca. Embora isso
não seja inteiramente falso, o que é mais chocante ao observador
contemporâneo é seu caráter móvel e circulante; em suma, sua
plasticidade. Mais: nós as vemos como estruturas dinâmicas, ope-
rando em um conjunto de relações e de comportamentos que sur-
gem e desaparecem, junto com as representações. É o mesmo que
aconteceria com o desaparecimento, de nossos dicionários, da pa-
lavra neurótico , que iria, com isso, também banir certos senti-
mentos, certos tipos de relacionamento para com algumas pessoas
determinadas, uma maneira de julgá-las e, conseqüentemente, de

47
nos julgarmos a nós mesmos.
Eu acentuo essas diferenças com uma finalidade especifica.
As representações sociais que me interessam não são nem as das
sociedades primitivas, nem as suas sobreviventes, no subsolo de
nossa cultura, dos tempos pré-históricos. Elas são as de nossa so-
ciedade atual, de nosso solo político, cientifico, humano, que nem
sempre têm tempo suficiente para se sedimentar completamente
para se tornarem tradições imutáveis. E sua importância continua
a crescer, em proporção direta com a heterogeneidade e a flutua-
ção dos sistemas unificadores - as ciências, religiões e ideologias
oficiais - e com as mudanças que elas devem sofrer para penetrar
a vida cotidiana e se tornar parte da realidade comum. Os meios
de comunicação de massa aceleraram essa tendência, multiplica-
ram tais mudanças e aumentaram a necessidade de um elo entre,
de uma parte, nossas ciências e crenças gerais puramente abstra-
tas e, de outra parte, nossas atividades concretas como indivíduos
sociais. Em outras palavras, existe uma necessidade continua de
re-constituir o senso comum ou a forma de compreensão que
cria o substrato das imagens e sentidos, sem a qual nenhuma cole-
tividade pode operar. Do mesmo modo, nossas coletividades hoje
não poderiam funcionar se não se criassem representações sociais
baseadas no tronco das teorias e ideologias que elas transformam
em realidades compartilhadas, relacionadas com as interações en-
tre pessoas que, então, passam a constituir uma categoria de fe-
nômenos à parte. E a característica especifica dessas representa-
ções é precisamente a de que elas corporificam idéias em expe-
riências coletivas e interações em comportamento, que podem,
com mais vantagem, ser comparadas a obras de arte do que a rea-
ções mecânicas. O escritor bíblico já estava consciente disso quan-
do afirmou que o verbo (a palavra) se fez carne; e o marxismo con-
firma isso quando afirma que as idéias, uma vez disseminadas en-
tre as massas, são e se comportam como forças materiais.

Nós não sabemos quase nada dessa alquimia que transforma


a base metálica de nossas idéias no ouro de nossa realidade. Como
transformar conceitos em objetos ou em pessoas é o enigma que
nos pré-ocupou por séculos e que é o verdadeiro objetivo de nossa
ciência, como distinto de outras ciências que, na realidade, inves-
tiga o processo inverso. Eu estou bastante consciente que uma
distância quase insuperável separa o problema de sua solução,
uma distância que bem poucos estão preparados para transpor.
48
Mas eu não deixarei de repetir que se a psicologia social não ten-
tar transpor esse valor, ela fracassará em sua tarefa e com isso não
somente não conseguirá progredir, mas cessará mesmo de exis-
tir.Para sintetizar: se, no sentido clássico, as representações cole-
tivas se constituem em um instrumento explanatório e se referem a
uma classe geral de idéias e crenças (ciência, mito, religião, etc.),
para nós, são fenômenos que necessitam ser descritos e explicados.
São fenômenos específicos que estão relacionados com um modo
particular de compreender e de se comunicar - um modo que aia
tanto a realidade como o senso comum. É para enfatizar essa distin-
ção que eu uso o termo social em vez de coletivo .

2.3. Ciências sagradas e profanas; universos consen-


suais e reificados

O que nos interessa aqui é o lugar que as representações ocu-


pam em uma sociedade pensante. Anteriormente, este lugar seria
- e até certo ponto o foi - determinado pela distinção entre uma
esfera sagrada - digna de respeito e veneração e desse modo man-
tida bastante longe de todas as atividades intencionais, humanas -
e uma esfera profana, em que são executadas atividades triviais e
utilitaristas. São esses mundos separados e opostos que, em di-
ferentes graus, determinam, dentro de cada cultura e de cada indi-
víduo, as esferas de suas forças próprias e alheias; o que nós pode-
mos mudar e o que nos muda; o que é obra nossa (opus proprium) e
o que é obra alheia (opus alienum). Todo conhecimento pressupõe
tal divisão da realidade e uma disciplina que estivesse interessada
em uma das esferas, era totalmente diferente de uma disciplina
que estivesse interessada na outra; as ciências sagradas não teri-
am nada em comum com as ciências profanas. Sem dúvida, era pos-
sível passar de uma para outra, mas isso somente ocorria quando
os conteúdos fossem obscuros.

Essa distinção foi agora abandonada. Foi substituída por outra


distinção, mais básica, entre universos consensuais e reificados.
No universo consensual, a sociedade é uma criação visível, conti-
nua, permeada com sentido e finalidade, possuindo uma voz hu-
49
mana, de acordo com a existência humana e agindo tanto como
reagindo, como um ser humano. Em outras palavras, o ser huma-
no é, aqui, a medida de todas as coisas. No universo reificado, a
sociedade é transformada em um sistema de entidades sólidas,
básicas, invariáveis, que são indiferentes à individualidade e não
possuem identidade. Esta sociedade ignora a si mesma e a suas
criações, que ela é somente como objetos isolados, tais como pes-
soas, idéias, ambientes e atividades. As várias ciências que es tão
interessadas em tais objetos podem, por assim dizer, impor sua
autoridade no pensamento e na experiência de cada individuo e
decidir, em cada caso particular, o que é verdadeiro e o que não o é.
Todas as coisas, quaisquer que sejam as circunstâncias, são,
aqui, a medida do ser humano.
Mesmo o uso dos pronomes nós e eles pode expressar
esse contraste, onde nós está em lugar do grupo de indivíduos
com os quais nós nos relacionamos e eles - os franceses, os pro-
fessores, os sistemas de estado etc. - está em lugar de um grupo
diferente, ao qual nós não pertencemos, mas podemos ser força-
dos a pertencer. A distância entre a primeira e a terceira pessoa do
plural expressa a distância que separa o lugar social, onde nos
sentimos incluídos, de um lugar dado, indeterminado ou, de qual-
quer modo, impessoal. Essa falta de identidade, que está na raiz
da angústia psíquica do homem moderno, é um sintoma dessa ne-
cessidade de nos vermos em te rmos de nós e eles ; de opor
nós a eles ; e, por conseguinte, da nossa impotência de ligar
um ao outro. Grupos de indivíduos tentam superar essa necessi-
dade tanto identificando-se como nós e dessa maneira fechando-
se em um mundo à parte, ou identificando-se com o eles e tor-
nando-se os robôs da burocracia e da administração.
Tais categorias de universos consensuais e reificados são
próprios de nossa cultura. Em um universo consensual, a sociedade
é vista como um grupo de pessoas que são iguais e livres, cada um
com possibilidade de falar em nome do grupo e sob seu auspício.
Dessa maneira, presume-se que nenhum membro possua compe-
tência exclusiva, mas cada qual pode adquirir toda competência
que seja requerida pelas circunstâncias. Sob este aspecto, cada
um age como um amador responsável, ou como um observador
curioso nas frases feitas e chavões do último século. Na maioria
dos locais públicos de encontro, esses políticos amadores, douto-
res, educadores, sociólogos, astrônomos, etc. podem ser encon-
trados expressando suas opiniões, revelando seus pontos de vista
50
e construindo a lei. Tal estado de coisas exige certa cumplicidade,
isto é, convenções lingüísticas, perguntas que não podem ser fei-
tas, tópicos que podem, ou não podem, ser ignorados. Esses mun-
dos são institucionalizados nos clubes, associações e bares de
hoje, como eles foram nos salões e academias do passado. O que
eles fazem prosperar é a arte declinante da conversação. E isso
que os mantém em andamento e que encoraja relações sociais
que, de outro modo, definhariam. Em longo prazo, a conversação
(os discursos) cria nós de estabilidade e recorrência, uma base co-
mum de significância entre seus praticantes. As regras dessa arte
mantêm todo um complexo de ambigüidades e convenções, sem o
qual a vida social não poderia existir. Elas capacitam as pessoas a
compartilharem um estoque implícito de imagens e de idéias
que são consideradas certas e mutuamente aceitas. O pensar é
feito em voz alta. Ele se torna uma atividade ruidosa, pública, que
satisfaz a necessidade de comunicação e com isso mantém e con-
solida o grupo, enquanto comunica a característica que cada mem-
bro exige dele. Se nós pensamos antes de falar e falamos para nos
ajudarmos a pensar, nós também falamos para fornecer uma reali-
dade sonora á pressão interior dessas conversações, através das
quais e nas quais nós nos ligamos aos outros. Beckett sintetizou
essa situação em Endgame:
Clov: O que há aí para me manter aqui?
Hamm: Conversação.

E o motivo é profundo. Toda pessoa que mantiver seus ouvidos


fixos nos lugares onde as pessoas conversam, toda pessoa que lê
entrevistas com alguma atenção, perceberá que a maioria das con-
versações se referem a profundos problemas metafísicos - nasci-
mento, morte, injustiça, etc. - e sobre leis éticas da sociedade. Por-
tanto, elas provêem um comentário permanente sobre os principais
acontecimentos e características nacionais, científicas ou urbanas
e são, por isso, o equivalente moderno do coro grego que, embora
não esteja mais no palco histórico, permanece nas sacadas.

Num universo reificado, a sociedade é vista como um sistema


de diferentes papéis e classes, cujos membros são desiguais. So -
mente a competência adquirida determina seu grau de participa-
ção de acordo com o mérito, seu direito de trabalhar como médi-
51
co , como psicólogo , como comerciante , ou de se abster desde
que eles não tenham competência na matéria .
Troca de papéis e a capacidade de ocupar o lugar de outro
são muitas maneiras de adquirir competência ou de se isolar, de
ser diferente. Nós nos confrontamos, pois, dentro do sistema, co-
mo organizações preestabelecidas, cada uma com suas regras e
regulamentos. Dai as compulsões que nós experienciamos e o sen-
timento de que nós não podemos transformá-las conforme nossa
vontade. Existe um comportamento adequado para cada circuns-
tância, uma fórmula lingüística para cada confrontação e, nem é
necessário dizer, a informação apropriada para um contexto de-
terminado. Nós estamos presos pelo que prende a organização e
pelo que corresponde a um tipo de acordo geral e não a alguma
compreensão recíproca, a alguma seqüência de prescrições, não a
uma seqüência de acordos. A história, a natureza, todas as coisas
que são responsáveis pelo sistema, são igualmente responsáveis
pela hierarquia de papéis e classes, para sua solidariedade. Cada
situação contém uma ambigüidade potencial, uma vagueza, duas
interpretações possíveis, mas suas conotações são negativas, elas
são obstáculos que nós devemos superar antes que qualquer coisa
se tome clara, precisa, totalmente sem ambigüidade. Isso é conse-
guido pelo processamento da informação, pela ausência de envol-
vimento do processador e pela existência de canais adequados. O
computador serve como o modelo para o tipo de relações que são,
então, estabelecidas e sua nacionalidade, podemos ao menos es-
perar, é a racionalidade do que é computado.

O contraste entre os dois universos possui um impacto psico-


lógico. Os limites entre eles dividem a realidade coletiva, e, de fato,
a realidade física, em duas. É facilmente constatável que as ciên-
cias são os meios pelos quais nós compreendemos o universo reifi-
cado, enquanto as representações sociais tratam com o uni verso
consensual. A finalidade do primeiro é estabelecer um mapa das
forças, dos objetos e acontecimentos que são independentes de
nossos desejos e fora de nossa consciência e aos quais nós de-
vemos reagir de modo imparcial e submisso. Pelo fato de ocultar
valores e vantagens, eles procuram encorajar precisão intelectual
e evidência empírica. As representações, por outro lado, restau-
ram a consciência coletiva e lhe dão forma, explicando os objetos e
acontecimentos de tal modo que eles se tornam acessíveis a qual-
quer um e coincidem com nossos interesses imediatos. Eles estão,
52
conforme William James, interessados em: a realidade prática,
realidade para nós mesmos; e para se conseguir isso, um objeto
deve não apenas aparecer, mas ele deve parecer tanto interessante
como importante. O mundo, cujos objetos não sejam nem interes-
santes, nem importantes, nós o tratamos apenas negativa mente,
nós o rotulamos como irreal (W. James, 1890/1980: 295).
O uso de uma linguagem de imagens e de palavras que se tor-
naram propriedade comum através da difusão de idéias existentes
dá vida e fecunda aqueles aspectos da sociedade e da natureza com
os quais nós estamos aqui interessados. Sem dúvida - e isso é o que
eu decidi mostrar - a natureza específica das representações ex-
pressa a natureza especifica do universo consensual, produto do
qual elas são e ao qual elas pertencem exclusivamente. Disso resulta
que a psicologia social seja a ciência de tais universos. Ao mesmo
tempo, nós vemos com mais clareza a natureza verdadeira das
ideologias, que é de facilitar a transição de um mundo a outro, isto
é, de transformar categorias consensuais em categorias reificadas e
de subordinar as primeiras às segundas. Por conseguinte, elas não
possuem uma estrutura especifica e podem ser percebidas tanto
como representações, como ciências. É assim que elas chegam a
interessar tanto à sociologia, como à história.

3. O familiar e o não-familiar
4.
Para se compreender o fenômeno das representações sociais,
contudo, nós temos de iniciar desde o começo e progredir passo a
passo. Até esse ponto, eu não fiz nada mais que sugerir certas re-
formas e tentar defendê-las. Eu não poderia deixar de enfatizar de-
terminadas idéias, caso quisesse defender o ponto de vista que eu
estava sustentando. Mas, ao fazer isso, demonstrei que:
 a) as representações sociais devem ser vistas como
uma atmosfera , em relação ao indivíduo ou ao
grupo;
 b) as representações são, sob certos aspectos, espe-
cíficas de nossa sociedade.
Por que criamos nós essas representações? Em nossas razões
de criá-las, o que explica suas propriedades cognitivas? Estas são
as questões que irei abordar em primeiro lugar. Nós poderíamos
53
responder recorrendo a três hipóteses tradicionais: (1) a hipótese
da desiderabilidade, isto é, uma pessoa ou um grupo procura criar
imagens, construir sentenças que irão tanto revelar, como ocultar
sua ou suas intenções, sendo essas imagens e sentenças distor-
ções subjetivas de uma realidade objetiva; (2) a hipótese do dese-
quilíbrio, isto é, todas as ideologias, todas as concepções de mun-
do são meios para solucionar tensões psíquicas ou emocionais,
devidas a um fracasso ou a uma falta de integração social; são,
portanto, compensações imaginárias, que teriam a finalidade de
restaurar um grau de estabilidade interna; (3) a hipótese do co n-
trole, isto é, os grupos criam representações para filtrar a informa-
ção que provem do meio ambiente e dessa maneira controlam o
comportamento individual. Elas funcionam, pois, como uma espé-
cie de manipulação do pensamento e da estrutura da realidade,
semelhantes àqueles métodos de controle comportamental e de
propaganda que exercem uma coerção forçada em todos aqueles
a quem eles estão dirigidos.

Tais hipóteses não estão totalmente desprovidas de verdade.


As representações sociais podem, na verdade, responder a deter-
minada necessidade; podem responder a um estado de desequilí-
brio; e podem, também, favorecer a dominação impopular, mas
impossível de erradicar, de uma parte da sociedade sobre outra.
Mas essas hipóteses têm, contudo, a fraqueza comum de serem
demasiado gerais; elas não explicam por que tais funções devem
ser satisfeitas por esse método de compreender e de comunicar e
não por algum outro, como pela ciência ou a religião, por exemplo.
Devemos, pois, procurar uma hipótese diferente, menos geral e
mais de acordo com o que os pesquisadores desse campo têm ob-
servado. Além do mais, por necessidade de espaço, eu não posso
nem elaborar mais longamente minhas reservas, nem justificar
minha teoria. Deverei expor, sem querer causar mais problemas,
uma intuição e um fato que eu creio que sejam verdadeiros, isto é,
que a finalidade de todas as representações é tomar familiar algo
não-familiar, ou a própria não-familiaridade.

O que eu quero dizer é que os universos consensuais são lo-


cais onde todos querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer ris-
co, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito ali, apenas confirma
as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora, mais do que
54
contradiz, a tradição. Espera-se que sempre aconteçam, sempre de
novo, as mesmas situações, gestos, idéias. A mudança como tal
somente é percebida e aceita desde que ela apresente um tipo
de vivência e evite o murchar do diálogo, sob o peso da repetição.
Em seu todo, a dinâmica das relações é uma dinâmica de familiari-
zação, onde os objetos, pessoas e acontecimentos são percebidos e
compreendidos em relação a prévios encontros e pa radigmas.
Como resultado disso, a memória prevalece sobre a dedução, o
passado sobre o presente, a resposta sobre o estímulo e as ima-
gens sobre a realidade . Aceitar e compreender o que é familiar,
crescer acostumado a isso e construir um hábito a partir disso, é
uma coisa; mas é outra coisa completamente diferente preferir
isso como um padrão de referência e medir tudo o que acontece e
tudo o que é percebido, em relação a isso. Pois, nesse caso, nós
simplesmente não registramos o que tipifica um parisi ense, uma
pessoa respeitável , uma mãe, um Complexo de Edipo etc., mas
essa consciência é usada também como um critério para avaliar o
que é incomum, anormal e assim por diante. Ou, em outras pala-
vras, o que é não-familiar.
Na verdade, para nosso amigo, o homem da rua (ameaçado
agora de extinção, junto com os passeios pelas calçadas, a ser em
breve substituído pelo homem diante da televisão), a maioria das
opiniões provindas da ciência, da arte e da economia, que se refe-
rem a universos reificados, diferem, de muitas maneiras, das opi-
niões familiares, práticas, que ele construiu a partir de traços e pe-
ças das tradições científicas, artísticas e econômicas e diferem da
experiência pessoal e dos boatos. Porque eles diferem, ele tende a
pensar neles como invisíveis, irreais - pois o mundo da realidade,
como o realismo na pintura, é basicamente resultado das limita-
ções e/ou de convenção. Ele, pois, pode experimentar esse senti do
de não-familiaridade quando as fronteiras e/ou as convenções
desaparecerem; quando as distinções entre o abstrato e o concre-
to se tomarem confusas; ou quando um objeto, que ele sempre
pensou ser abstrato, repentinamente emerge com toda sua con-
cretude etc. Isso pode acontecer quando ele se defronta com um
quadro da reconstrução física de tais entidades puramente nacio -
nais como os átomos e os robôs, ou, de fato, com qualquer com-
portamento, pessoa ou relação atípico, que poderá impedi-lo de
reagir como ele o faria diante de um padrão usual. Ele não encon-
tra o que esperava encontrar e é deixado com uma sensação de in-
completude e aleatoriedade. É desse modo que os doentes men-

55
tais, ou as pessoas que pertencem a outras culturas, nos incomo-
dam, pois estas pessoas são como nós e contudo não são como
nós; assim nós podemos dizer que eles são sem cultura , bárba-
ros , irracionais etc. De fato, todas as coisas, tópicos ou pessoas,
banidas ou remotas, todos os que foram exilados das fronteira de
nosso universo possuem sempre características imaginárias; e pré-
ocupam e incomodam exatamente porque estão aqui, sem estar
aqui; eles são percebidos, sem ser percebidos; sua irrealidade se
torna aparente quando nós estamos em sua presença; quando sua
realidade é imposta sobre nós - é como se nos encontrássemos
face a face com um fantasma ou com um personagem fictício na
vida real; ou como a primeira vez que vemos um computador jo-
gando xadrez. Então, algo que nós pensamos como imaginação, se
torna realidade diante de nossos próprios olhos; nós podemos ver
e tocar algo que éramos proibidos.

A presença real de algo ausente, a exatidão relativa de um


objeto é o que caracteriza a não-familiaridade. Algo parece ser visí-
vel sem o ser: ser semelhante, embora sendo diferente, ser acessí-
vel e no entanto ser inacessível. O não-familiar atrai e intriga as pes-
soas e comunidades enquanto, ao mesmo tempo, as alarma, as
obriga a tomar explícitos os pressupostos implícitos que são bási-
cos ao consenso. Essa exatidão relativa incomoda e ameaça, como
no caso de um robô que se comporta exatamente como uma criatura
viva, embora não possua vida em si mesmo, repentinamente se
torna um monstro Frankenstein, algo que ao mesmo tempo fascina
e aterroriza. O medo do que é estranho (ou dos estranhos) é pro-
fundamente arraigado. Foi observado em crianças dos seis aos
nove meses e certo número de jogos infantis são na verdade um
meio de superar esse medo, de controlar seu objeto. Fenômenos
de pânico, de multidões muitas vezes provêem da mesma causa e
são expressos nos mesmos movimentos dramáticos de fuga e mal-
estar. Isso se deve ao fato de que a ameaça de perder os marcos
referenciais, de perder contato como que propicia um sentido de
continuidade, de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável.
E quando a alteridade é jogada sobre nós na forma de algo que não
é exatamente como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos,
porque ela ameaça a ordem estabelecida.
O ato da re-apresentação é uni meio de transferir o que nos
perturba, o que ameaça nosso universo, do exterior para o interi-
or,do longínquo para o próximo. A transferência é efetivada pela
56
separação de conceitos e percepções normalmente interligados
e pela sua colocação em um contexto onde o incomum se torna co-
mum, onde o desconhecido pode ser incluído em uma categoria
conhecida. Por isso, algumas pessoas irão comparar a uma con-
fissão a tentativa de definir e tornar mais acessíveis as práticas do
psicanalista para com seu paciente - esse tratamento médico sem
remédio que parece eminentemente paradoxal a nossa cultura. O
conceito é então separado de seu contexto analítico e transporta-
do a um contexto de padres e penitentes, de sacerdotes confesso-
res e pecadores arrependidos. O método de livre associação é, en-
tão, ligado às regras da confissão. Dessa maneira, o que primeira-
mente parecia ofensivo e paradoxal, torna-se um processo comum e
normal. A psicanálise não é mais que uma forma de confissão. E
posteriormente, quando a psicanálise for aceita e se tomar uma re-
presentação social de pleno direito, a confissão é vista, mais ou
menos como uma forma de psicanálise. Uma vez que o método da
livre associação tenha sido separado de seu contexto teórico e te-
nha assumido conotações religiosas, ele cessa de causar surpresa
e mal-estar e toma, em contraposição, um caráter absolutamente
comum. E isso não é, como poderíamos ser tentados a crer, um
simples problema de analogia, mas uma junção real, socialmente
significante, uma mudança de valores e sentimentos.

Nesse caso, como também em outros que nós observamos, as


imagens, idéias e a linguagem compartilhadas por um determina-
do grupo sempre parecem ditar a direção e o expediente iniciais,
com os quais o grupo tenta se acertar com o não-familiar. O pensa-
mento social deve mais à convenção e à memória do que à razão;
deve mais às estruturas tradicionais do que às estruturas intelec-
tuais ou perceptivas correntes. Denise Jodelet (1989/1991) anali-
sou - em um trabalho infelizmente ainda não publicado - as rea-
ções dos habitantes de várias aldeias às pessoas mentalmente de-
ficientes que eram colocadas em seu meio. Esses pacientes, devi do
à sua aparência quase normal e apesar das instruções que os habi-
tantes da aldeia tinham recebido, continuaram a ser vistos como
estrangeiros, apesar de sua presença ter sido aceita por muitos e
durante muitos anos os pacientes tivessem compartilhado o dia-a-
dia e até as casas desses aldeões. Tornou-se então evidente que as
representações que eles provocaram derivavam de visões e noções
tradicionais e que eram essas representações que determinavam
as reações dos aldeões para com eles.
57
Contudo, embora nós tenhamos a capacidade de perceber tal
discrepância, ninguém pode livrar-se dela. A tensão básica entre o
familiar e o não-familiar está sempre estabelecida, em nossos uni-
versos consensuais, em favor do primeiro. No pensamento social, a
conclusão tem prioridade sobre a premissa e nas relações so -
ciais, conforme a fórmula adequada de Nelly Stephane, o veredicto
tem prioridade sobre o julgamento. Antes de ver e ouvir a pessoa,
nós já a julgamos; nós já a classificamos e criamos uma imagem
dela. Desse modo, toda pesquisa que fizermos e nossos esforços
para obter informações que empenharmos somente servirão para
confirmar essa imagem. Mais experimentos de laboratório corro-
boram essa observação:
Os erros usuais que os sujeitos cometem sugerem que exi s-
te um fator geral governando a ordem em que determin a-
das observações são feitas. As pessoas parecem estar inclinadas na
direção de confirmar uma conclusão, seja ela sua própria resposta
inicial, ou a que lhe seja dada pelo experimentador para ser
avaliada. Eles buscam determinar se as premissas podem
ser combinadas de tal forma que tornem a conclusão verdadei-
ra. Na verdade, isso apenas mostra que a conclusão e as premissas
são consistentes e não que a conclusão segue das premissas (Wa-
son & Johnson-Laird, 1972: 157).

Quando tudo é dito e feito, as representações que nós fabrica-


mos - duma teoria cientifica, de uma nação, de um objeto, etc. - são
sempre o resultado de um esforço constante de tornar comum e
real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos dá um senti-
mento de não-familiaridade. E através delas nós superamos o pro-
blema e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com
isso, enriquecido e transformado. Depois de uma série de ajusta-
mentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o
que parecia abstrato, torna -se concreto e quase normal. Ao
criá-los, porém, não estamos sempre mais ou menos conscientes
de nossas intenções, pois as imagens e idéias com as quais nós
compreendemos o não-usual (incomum) apenas trazem-nos de
volta ao que nós já conhecíamos e como qual nós já estávamos fa-
miliarizados há tempo e que, por isso, nos dá uma impressão se-
gura de algo já visto (déjà vu) e já conhecido (déjà connu). Bar-
tlett escreve: Como já foi apontado antes, sempre que o material
mostrado visualmente pretende ser representativo de algum obje-
to comum, mas contém características que são incomuns (não -fa-
58
miliares) á comunidade a quem o material é apresentado, essas
características invariavelmente sofrem transformação em direção
ao que é familiar (Bartlett, 1961: 178).
É como se, ao ocorrer uma brecha ou uma rachadura no que é
geralmente percebido como normal, nossas mentes curem a ferida
e consertem por dentro o que se deu por fora. Tal processo nos
confirma e nos conforta; restabelece um sentido de continuidade
no grupo ou no indivíduo ameaçado com descontinuidade e falta
de sentido. É por isso que, ao se estudar uma representação, nós
devemos sempre tentar descobrir a característica não-familiar que
a motivou, que esta absorveu. Mas é particularmente importante
que o desenvolvimento de tal característica seja observada no mo -
mento exato em que ela emerge na esfera social.
O contraste com a ciência é marcante. A ciência caminha pelo
lado oposto; da premissa para a conclusão, especialmente no
campo da lógica, assim como o objetivo da lei é assegurar a priori-
dade do julgamento sobre o veredicto. Mas a lei tem de se apoiar
em um sistema completo de lógica e provas a fim de proceder de
uma maneira que é completamente estranha ao processo e à fun-
ção natural do pensamento em um universo consensual ordinário.
Ela deve, além disso, colocar certas leis - não envolvimento, repe-
tição de experimentos, distância do objeto, independência da au-
toridade e tradição - que nunca são totalmente aplicadas.
Para tornar possível a troca de ambos os termos da argume n-
tação, ela cria um meio totalmente artificial, recorrendo ao que é
conhecido como a reconstrução racional dos fatos e idéias. Para
superar, pois, nossa tendência de confirmar o que é familiar, para
provar o que já é conhecido - o cientista deve falsificar, deve ten-
tar invalidar suas próprias teorias e confrontar a evidência com a
não-evidência. Mas essa não é toda a histó ria. A lei se tornou mo-
derna e rompeu com o senso comum, a ciência se ocupou com su-
cesso em demolir constantemente a maioria de nossas perce p-
ções e opiniões correntes, em provar que resultados impossíveis
são possíveis e em desmentir o conjunto central de nossas idéias e
experiências costumeiras. Em outras palavras, o objetivo da ciên-
cia é tomar o familiar não-familiar em suas equações matemáticas,
como em seus laboratórios. E dessa maneira a ciência prova, por
contraste, que o propósito das representações sociais é precisa-
mente o que eu já indiquei anteriormente.

59
4. Ancoragem e objetivação, ou os dois processos
que geram representações sociais

4.1. Ciência, senso comum e representações sociais

Ciência e representações sociais são tão diferentes entre si e


ao mesmo tempo tão complementares que nós temos de pensar e
falar em ambos os registros. O filósofo francês Bachelard observou
que o mundo em que nós vivemos e o mundo do pensamento não
são um só e o mesmo mundo. De fato, não podemos continuar
desejando um mundo singular e idêntico e lutando por consegui-
lo. Ao contrário do que se acreditava no século passado, longe de
serem um antídoto contra as representações e as ideologias, as
ciências na verdade geram, agora, tais representações. Nossos
mundos reificados aumentam com a proliferação das ciências. Na
medida em que as teorias, informações e acontecimentos se multi-
plicam, os mundos devem ser duplicados e reproduzidos a um
nível mais imediato e acessível, através da aquisição de uma forma
e energia próprias. Com outras palavras, são transferidos a um
mundo consensual, circunscrito e re-apresentado. A ciência era
antes baseada no senso comum e fazia o senso comum menos
comum; mas agora senso comum é a ciência tornada comum. Sem
dúvida, cada fato, cada lugar comum esconde dentro de sua própria
banalidade um mundo de conhecimento, determinada dose de
cultura e um mistério que o fa zem ao mesmo tempo compulsivo e
fascinante. Baudelaire pergunta: Pode algo ser mais encantador,
mais frutífero e mais positivamente excitante do que um lugar
comum? E, poderíamos acrescentar, mais coletivamente efetivo?
Não é fácil transformar palavras não-familiares, idéias ou seres, em
palavras usuais, próximas e atuais. É necessário, para dar-lhes uma
feição familiar, pôr em funcionamento os dois mecanismos de um
processo de pensamento baseado na memória e em conclusões
passadas.

O primeiro mecanismo tenta ancorar idéias estranhas, redu-


zi-las a categorias e a imagens comuns, colocá-las em um contexto
familiar. Assim, por exemplo, uma pessoa religiosa tenta relacionar
60
uma nova teoria, ou o comportamento de um estranho, a uma es-
cala religiosa de valores. O objetivo do segundo mecanismo é obje-
tivá-los, isto é, transformar algo abstrato em algo quase concreto,
transferir o que está na mente em algo que exista no mundo físico.
As coisas que o olho da mente percebe parecem estar diante de
nossos olhos físicos e um ente imaginário começa a assumir a rea-
lidade de algo visto, algo tangível. Esses mecanismos transformam
o não-familiar em familiar, primeiramente transferindo-o a nossa
própria esfera particular, onde nós somos capazes de com pará-lo
e interpretá-lo; e depois, reproduzindo-o entre as coisas que nós
podemos ver e tocar, e, conseqüentemente, controlar. Sendo que as
representações são criadas por esses dois mecanismos, é essencial
que nós compreendamos como funcionam.
• Ancoragem - Esse é um processo que transforma algo estra-
nho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de
categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que
nós pensamos ser apropriada. É quase como que ancorar um bote
perdido em um dos boxes (pontos sinalizadores) de nosso espaço
social. Assim, para os aldeões do estudo de Denise Jodelet, os do-
entes mentais colocados em seu meio pela associação médica fo-
ram imediatamente julgados por padrões convencionais e compa-
rados a idiotas, vagabundos, epilépticos, ou aos que, no dialeto lo-
cal, eram chamados de rogues (maloqueiro). No momento em que
determinado objeto ou idéia é comparado ao paradigma de uma
categoria, adquire características dessa categoria e é re-ajustado
para que se enquadre nela. Se a classificação, assim obtida, é geral-
mente aceita, então qualquer opinião que se relacione com a cate-
goria irá se relacionar também com o objeto ou com a idéia. Por
exemplo, a idéia dos aldeões mencionados acima sobre os idiotas,
vagabundos e epilépticos, foi transferida, sem modificação, aos
doentes mentais. Mesmo quando estamos conscientes de alguma
discrepância, da relatividade de nossa avaliação, nós nos fixamos
nessa transferência, mesmo que seja apenas para podermos garan-
tir um mínimo de coerência entre o desconhecido e o conhecida.

Ancorar é, pois, classificar e dar nome a alguma coisa. Coisas


que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas,
não existentes e ao mesmo tempo ameaçadoras. Nós experimenta-
mos uma resistência, um distanciamento, quando não somos ca-
pazes de avaliar algo, de descrevê-lo a nós mesmos ou a outras
pessoas, O primeiro passo para superar essa resistência, em dire-
61
ção à conciliação de um objeto ou pessoa, acontece quando nós
somos capazes de colocar esse objeto ou pessoa em uma determi-
nada categoria, de rotulá-lo com um nome conhecido. No momento
em que nós podemos falar sobre algo, avaliá-lo e então comunicá-lo
- mesmo vagamente, como quando nós dizemos de alguém que ele
é inibido - então nós podemos representar o não-usual em nosso
mundo familiar, reproduzi-lo como uma réplica de um modelo fami-
liar. Pela classificação do que é inclassificável, pelo fato de se dar
um nome ao que não tinha nome, nós somos capazes de imaginá-
lo, de representá-lo. De fato, representação é, fundamentalmente,
um sistema de classificação e de denotação, de alocação de ca -
tegorias e nomes. A neutralidade é proibida, pela lógica mesma do
sistema, onde cada objeto e ser devem possuir um valor positivo ou
negativo e assumir um determinado lugar em uma clara escala hie-
rárquica. Quando classificamos uma pessoa entre os neuróticos, os
judeus ou os pobres, nós obviamente não estamos apenas colocan-
do um fato, mas avaliando-a e rotulando-a E neste ato, nós revela-
mos nossa teoria da sociedade e da natureza humana.

Em minha opinião, esse é um fator vital na psicologia social,


que não recebeu toda atenção que merece; de fato, os estudos
existentes dos fenômenos de avaliação, classificação e categori-
zação (Eiser & Stroebe, 1972) e assim por diante, não conseguem
levar em consideração o substrato (os pressupostos) de tais fenô-
menos, ou dar-se conta de que eles pressupõem uma representa-
ção de seres, objetos e acontecimentos. Na verdade, o processo
de representação envolve a codificação, até mesmo dos estímu-
los físicos, em uma categoria especifica, como uma pesquisa sobre
a percepção das cores, em diferentes cultu ras, tem revelado. Na
verdade, os estudiosos admitem que as pessoas, quando se lhes
mostram diferentes cores, as percebem em relação a um pa-
radigma - embora tal paradigma possa ser-lhes totalmente des-
conhecido - e as classificam através de uma imagem mental (Ros-
ch,1977). De fato, uma das lições que a epistemologia con-
temporânea nos ensinou é que todo sistema de categorias pres-
supõe uma teoria que o defina e o especifique e especifique o seu
uso. Quando tal sistema desaparece, nós podemos presumir que
a teoria também desapareceu. Deixem-nos, porém, continuar sis-
tematicamente. Classificar algo significa que nós o confinamos a
um conjunto de comportamentos e regras que estipulam o que é,
ou não é, permitido, em relação a todos os indivíduos pertencentes
62
a essa classe. Quando classificamos uma pessoa como marxista,
diabo marinho ou leitor do The Times, nós o confinamos a um con-
junto de limites lingüísticos, espaciais e comportamentais e a cer-
tos hábitos. E se nós, então, chegamos ao ponto de deixá-lo saber o
que nós fizemos, nós levaremos nossa interferência ao ponto de
influenciá-lo, pelo fato de formularmos exigências especificas re-
lacionadas a nossas expectativas. A principal força de uma classe, o
que a torna tão fácil de suportar, é o fato de ela proporcionar um
modelo ou protótipo apropriado para representar a classe e uma
espécie de amostra de fotos de todas as pessoas que supostamen-
te pertençam a ela. Esse conjunto de fotos representa uma espécie
de caso-teste, que sintetiza as características comuns a um núme-
ro de casos relacionados, isto é, o conjunto é, de um lado, uma
síntese idealizada de pontos salientes e, de outro lado, uma matriz
icônica de pontos facilmente identificáveis. Muitos de nós, por
conseguinte, temos, como nossa representação visual de um cida-
dão francês, a imagem de uma pessoa de estatura abaixo do
normal, usando um boné e carregando uma grande peça de pão
francês.

Categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos


paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma rela-
ção positiva ou negativa com ele. Quando nós sintonizamos o rá-
dio no meio de um programa, sem conhecer que programa é, nós
supomos que é uma novela se é suficientemente parecido com
P, quando P corresponde ao paradigma de uma novela, isto é,
onde há diálogo, enredo, etc. A experiência mostra que é muito
mais fácil concordar com o que constitui um paradigma, do que
com o grau de semelhança de uma pessoa com esse paradigma. Da
pesquisa de Denise Jodelet se percebe que, embora os aldeões fos-
sem uniformes com respeito à classificação geral dos doentes
mentais que viviam na aldeia, eles se mostravam bem mais discor-
dantes em sua opinião no referente à semelhança de cada um dos
pacientes em relação ao caso teste , aceito em sua generalidade.
Quando se fazia alguma tentativa para definir este caso teste, inu-
meráveis discrepâncias vinham à luz, que não eram normalmente
óbvias, graças à cumplicidade de todos os interessados.

63
Pode-se dizer, contudo, que em sua grande maioria essas
classificações são feitas comparando as pessoas a um protótipo,
geralmente aceito como representante de uma classe e que o pri-
meiro é definido através da aproximação, ou da coincidência com o
última Desse modo, nós dizemos de certas personalidades - de
Gaulle, Maurice Chevalier, Churchill, Einstein, etc. - que eles são
representativos de uma nação, de políticos e de cientistas e nós
classificamos outros políticos ou cientistas em relação a eles. Se é
verdade que nós classificamos e julgamos as pessoas e coisas
comparando-os com um protótipo, então nós, inevitavelmente,
estamos inclinados a perceber e a selecionar aquelas caracterís-
ticas que são mais representativas desse protótipo, exatame n-
te como os aldeões de Denise Jodelet estavam mais claramente
conscientes da fala e do comportamento esquisito dos doentes
mentais, durante os dez ou vinte anos de sua estadia lá, do que da
gentileza, interesse e humanidade generalizados dessas desafor-
tunadas pessoas.

Na verdade, qualquer pessoa que tenha sido jornalista, sociólo-


go ou psicólogo clínico, sabe como a representação de tal ou qual
gesto, ocorrência ou palavra, pode confirmar uma noticia ou um
diagnóstico. A ascendência do caso teste deve-se, penso eu, a sua
concretude, a uma espécie de vitalidade que deixa uma marca tão
profunda em nossa memória, que somos capazes de usá-lo após
isso como um referencial contra o qual nós medimos casos indivi-
duais e qualquer imagem que se pareça com ele, mesmo de longe.
Por conseguinte, cada caso teste e cada imagem típica contêm o
abstrato no concreto, que os possibilita, posteriormente, a conse-
guir o objetivo fundamental da sociedade: criar classes a partir dos
indivíduos. Desse modo, nós não podemos nunca dizer que conhe-
cemos um indivíduo, nem que nós tentamos compreendê-lo, mas
somente que nós tentamos reconhecê-lo, isto é, descobrir que tipo
de pessoa ele é, a que categoria pertence e assim por diante. Isso
concretamente significa que ancorar implica também a prioridade
do veredicto sobre o julgamento e do predicado sobre o sujeito. O
protótipo é a quintessência de tal prioridade, pois favorece opiniões
já feitas e geralmente conduz a decisões super apressadas.

Tais decisões são geralmente conseguidas por uma dessas


duas maneiras: generalizando ou particularizando. Algumas ve zes,
64
uma opinião já feita vem imediatamente à mente e nós tentamos
descobrir a informação, ou o particular que se ajuste a ela; outras
vezes, nós temos determinado particular em mente e tenta mos
conseguir uma imagem precisa dele. Generalizando, nós re-
duzimos as distâncias. Nós selecionamos uma característica alea-
toriamente e a usamos como uma categoria: judeu, doente mental,
novela, nação agressiva, etc. A característica se torna, como se re-
almente fosse, co-extensiva a todos os membros dessa categoria.
Quando é positiva, nós registramos nossa aceitação; quando é ne-
gativa, nossa rejeição. Particularizando, nós mantemos a distância
e mantemos o objeto sob análise, como algo divergente do pro-
tótipo. Ao mesmo tempo, tentamos descobrir que característica,
motivação ou atitude o torna distinto. Ao estudar as representa-
ções sociais da psicanálise, eu tive possibilidade de observar como a
imagem básica do psicanalista podia, através da exageração de
uma característica específica - saúde, status, inflexibilidade -, ser
modificada e particularizada, até chegar a produzir a do psicana-
lista americano e que algumas vezes essas características eram
enfatizadas conjuntamente. De fato, a tendência para classificar,
seja pela generalização, ou pela particularização, não é, de nenhum
modo, uma escolha puramente intelectual, mas reflete uma atitude
específica para com o objeto, um desejo de defini -lo como normal
ou aberrante. É isso que está em jogo em todas as classificações de
coisas não-familiares - a necessidade de defini-las como con-
formes, ou divergentes, da norma. Ademais, quando nós falamos
sobre similaridade ou divergência, identidade ou diferença, nós
estamos já dizendo precis amente isso, mas de uma maneira
descomprometida, que está desprovida de conseqüências sociais.

Existe uma tendência, entre psicólogos sociais, de ver a clas-


sificação como uma operação analítica, envolvendo uma espécie
de catálogo de características separadas - cor da pele, tipo de ca-
belo, formato do crânio e do nariz, etc. se for uma questão de raça
- com as quais o indivíduo é comparado e depois incluído na cate-
goria da qual ele possui mais características em comum. Em outras
palavras, nós julgaremos sua especificidade, ou não-especificida-
de, sua similaridade ou diferença, de acordo com uma característi-
ca ou outra. E não nos admiremos que tal operação analítica tenha
sido assumida, pois somente exemplos de laboratório foram estu-
dados até agora e apenas sistemas de classificação que não pos-
suem relação com o substrato das representações sociais, como
65
por exemplo, a visão coletiva do que está sendo então classificado.
E devido a essa tendência que eu sinto que devo dizer algo mais
sobre minhas próprias observações sobre representações sociais,
que mostraram que, quando nós classificamos, nós sempre faze-
mos comparações com um protótipo, sempre nos perguntamos se
o objeto comparado é normal, ou anormal, em relação a ele e ten-
tamos responder á questão: É ele como deve ser, ou não?

Essa discrepância tem conseqüências práticas. Pois, se mi -


nhas observações estão corretas, então todos nossos preconcei-
tos , sejam nacionais, raciais, geracionais ou quaisquer que al-
guém tenha, somente podem ser superados pela mudança de nos-
sas representações sociais da cultura, da natureza humana e
assim por diante. Se, por outro lado, é a visão dominante que é a
correta, então a única coisa que precisamos fazer é persuadir os
grupos ou indivíduos contrários, que eles possuem uma quantida-
de enorme de características em comum, que eles são, de fato,
espantosamente semelhantes e com isso nós nos livramos de clas-
sificações profundas e rápidas e de estereótipos mútuos. O suces-
so bastante limitado desse projeto até essa data, contudo, pode su-
gerir que o outro é digno de ser tentado.
Por outro lado, é impossível classificar sem, ao mesmo tempo,
dar nomes. Na verdade, essas são duas atividades distintas. Em
nossa sociedade, nomear, colocar um nome em alguma coisa ou em
alguém, possui um significado muito especial, quase solene. Ao
nomear algo, nós o libertamos de um anonimato perturbador,
para dotá-lo de uma genealogia e para incluí-lo em um complexo
de palavras específicas, para localizá-lo, de fato, na matriz de iden-
tidade de nossa cultura.
De fato, o que é anônimo, o que não pode ser nomeado, não se
pode tornar uma imagem comunicável ou ser facilmente ligado a
outras imagens. É relegado ao mundo da confusão, incerteza e
inarticulação, mesmo quando nós somos capazes de classificá-lo
aproximadamente como normal ou anormal. Claudine Herzlich
(Herzlich, 1973), em um estudo sobre representações sociais da
saúde e da doença, analisou admiravelmente esse aspecto alusivo
dos sintomas, as tentativas muitas vezes fracassadas que todos
nós fazemos para prendê-los pela fala e a maneira como eles esca-
pam de nossas garras, como um peixe escapa das malhas largas
de uma rede. Dar nome, dizer que algo é isso ou aquilo - se neces-
66
sário, inventar palavras para esse fim - nos possibilita construir
uma malha que seja suficientemente pequena para impedir que o
peixe escape e desse modo nos dá a possibilidade de representar
essa realidade. O resultado é sempre algo arbitrário mas, desde
que um consenso seja estabelecido, a associação da palavra com a
coisa se torna comum e necessária.
De modo geral, minhas observações provam que dar nome a
uma pessoa ou coisa é precipitá-la (como uma solução química é
precipitada) e que as conseqüências daí resultantes são tríplices: a)
uma vez nomeada, a pessoa ou coisa pode ser descrita e adquire
certas características, tendências etc.; b) a pessoa, ou coisa, torna-
se distinta de outras pessoas ou objetos, através dessas caracterís-
ticas e tendências; c) a pessoa ou coisa toma-se o objeto de uma
convenção entre os que adotam e partilham a mesma convenção.
O estudo de Claudine Herzlich revela que o rótulo convencional
fadiga relaciona um conjunto de sintomas vagos a certos pa-
drões sociais e individuais, distingue-os dos conceitos de doença e
saúde e toma-os aceitáveis, quase justificáveis, á nossa socieda-
de. E, pois, permitido falar sobre nossa fadiga, dizer que estamos
sofrendo de cansaço e reclamar certos direitos que, normalmente,
em uma sociedade baseada no trabalho e bem-estar, seriam proi-
bidos. Em outras palavras, algo que era antes negado é agora ad-
mitido.

Fui capaz de fazer eu mesmo uma observação semelhante.


Percebi que termos psicanalíticos como neurose ou complexo
davam consistência e mesmo realidade a estados de tensão, desa-
justamento, de alienação mesmo, que costumavam ser vistos
como meio-caminho entre a loucura e a sanidade , mas nunca
eram levados muito a sério. Era óbvio que, na medida em que re-
cebiam um nome, eles paravam de incomodar. A psicanálise é
também responsável pela proliferação de termos derivados de um
modelo único, de tal modo que nós vemos um sintoma psíquico
rotulado complexo de timidez , complexo de gêmeos , com-
plexo de poder , complexo de Sardanápalo que, está claro, não
são termos psicanalíticos, mas palavras cunhadas para imitá-los.
Ao mesmo tempo, o vocabulário psicanalítico se ancora no voca-
bulário da linguagem do dia-a-dia e toma-se, assim, socializado.
Tudo o que era incômodo e enigmático sobre essas teorias está re-
lacionado a sintomas, ou a pessoas, que eram vistas como algo
67
que incomodava ou perturbava, com o objetivo de construir ima-
gens estáveis, dentro de um contexto organizado, que não tem ab-
solutamente nada de perturbador em si mesmo.
Na realidade, é dada uma identidade social ao que não estava
identificado- o conceito cientifico torna-se parte da linguagem
comum e os indivíduos ou sintomas não são mais que termos téc-
nicos familiares e científicos. E dado um sentido, ao que antes não
o tinha, no mundo consensual. Poderíamos quase dizer que essa
duplicação e proliferação de nomes corresponde a uma tendência
nominalística, a uma necessidade de identificar os seres e coisas,
ajustando-os em uma representação social predominante. Cha-
mamos antes a atenção à multiplicação de complexos que acom-
panhou a popularização da psicanálise e tomou o lugar de expres-
sões correntes, tais como timidez , autoridade , irmãos , etc.
Com isso, os que falam e os de quem se fala são forçados a entrar
em uma matriz de identidade que eles não escolheram e sobre a
qual eles não possuem controle.

Podemos até mesmo ir ao ponto de sugerir que essa é a ma-


neira como todas as manifestações normais e divergentes da exis-
tência social são rotuladas - indivíduos e grupos são estigmatiza-
dos, seja psicológica, seja politicamente. Por exemplo, quando
nós chamamos uma pessoa, cujas opiniões não estão de acordo
com a ideologia corrente, de um inimigo do povo , o termo que, de
acordo com aquela ideologia, sugere uma imagem definida, exclui
essa pessoa da sociedade à qual ela pertence. É pois evidente que
dar nome não é uma operação puramente intelectual, com o obje-
tivo de conseguir uma clareza ou coerência lógica. É uma operação
relacionada com uma atitude social. Tal observação é ditada pelo
senso comum e nunca deve ser ignorada, pois ela é válida para
todos os casos e não apenas para os casos excepcionais que eu dei
como exemplos.
Sintetizando, classificar e dar nomes são dois aspectos dessa
ancoragem das representações. Categorias e nomes partilham do
que o historiador de arte Gombrich chamou de sociedade de con-
ceitos . E não simplesmente em seu conteúdo, mas também em
suas relações. Não nego, de modo algum, o fato de que eles são
naturalmente lógicos e tendem a uma estabilidade e consistência,
como asseguram Heider e outros. Nem que tal ordem seja prova-
velmente exigente. Posso ajudar, contudo, a observar que essas
68
relações de estabilidade e consistência são altamente rarefeitas e
são abstrações rigorosas que não se relacionam, nem direta, nem
operacionalmente, com a criação de representações. Por outro
lado, relações diferentes, que são induzidas por padrões sociais e
produzem um caleidoscópio de imagens ou emoções, podem ser
vistas como presentes. A amizade parece desempenhar uma parte
importante na psicologia de Fritz Heider, quando ele analisa as re-
lações pessoais (veja o capitulo de Flement nesse volume). Sem
dúvida, ele chama isso pelo nome geral de estabilidade, mas deve
ficar claro para todos que, entre os exemplos possíveis de estabili-
dade, ele escolheu este como um protótipo para todos os outros.
A família é outra imagem muito popular para relações em ge-
ral. Assim, intelectuais e trabalhadores são descritos como irmãos;
complexos, como pais; e os neuróticos, como filhos ( o complexo é
o pai do neurótico , como disse alguém recentemente em uma
entrevista); e assim por diante. O conflito ocupa o lugar de outro
tipo de relação e está sempre implícito em toda descrição de pares
contrastantes: o que o termo normal implica e o que ele exclui; a
dimensão consciente e inconsciente do individuo; o que nós cha-
mamos saúde e o que nós chamamos doença. A hostilidade está
também sempre presente, como pano de fundo, quando nós com-
paramos raças, nações ou classes. E relações de força e fraqueza
freqüentemente definem preferências, onde a hierarquia abrange
as várias categorias e nomes. Eu cito aleatoriamente, mas valeria a
pena explorar, em detalhe, as maneiras em que a lógica da lingua-
gem expressa a relação entre os elementos de um sistema de clas-
sificação e o processo de dar nome. Padrões mais sugestivos do
que os com que nós estamos agora familiarizados podem emergir.

Nossos padrões atuais são, de qualquer modo, muito artifici-


ais de um ponto de vista psicológico e socialmente vazios de sen-
tido. O fato é que se nós tomamos a estabilidade como um tipo de
amizade, ou o conflito como uma hostilidade total, é simplesmente
porque os padrões são mais acessíveis e concretos em tais formas
e podem ser correlacionados com nossos pensamentos e emoções;
temos, pois, maiores possibilidades de expressá -los ou de
incluí-los em uma descrição que será facilmente inteligível a qual-
quer pessoa. É esse o resultado da rotinização -um processo que
nos possibilita pronunciar, ler ou escrever uma palavra ou noção
familiar no lugar de, ou preferencialmente, a uma palavra ou no-
ção menos familiar.
69
A esta altura, a teoria das representações traz duas conse-
qüências. Em primeiro lugar, ela exclui a idéia de pensamento ou
percepção que não possua ancoragem. Isso exclui a idéia do assim
chamado viés no pensamento ou percepção. Todo sistema de clas-
sificações e de relações entre sistemas pressupõe uma posição
especifica, um ponto de vista baseado no consenso. E impossível
ter um sistema geral, sem vieses, assim como é evidente que existe
um sentido primeiro para qualquer objeto especifico. Os vieses
que muitas vezes são descritos não expressam, como se diz, um
déficit ou limitação social ou cognitiva, mas uma diferença normal
de perspectiva, entre indivíduos ou grupos heterogêneos dentro
de uma sociedade. E não podem ser expressos pela simples razão
que seu oposto - a ausência de um déficit ou de uma limitação
social ou cognitiva - não tem sentido. Isso equivale a admitir a im-
possibilidade de uma psicologia social de um ponto de vista de
Sirius, como os que querem que as coisas sejam como pretendem
que sejam, isto é, se colocarem unicamente e ao mesmo tempo,
tanto dentro da sociedade, como observá-la de fora; que afirmavam
que uma das posições, dentro da sociedade, era normal e todas as
outras divergentes dela. Essa é uma posição totalmente insusten-
tável.
Em segundo lugar sistemas de classificação e de nomeação
(classificar e dar nomes) não são, simplesmente, meios de gradua r
e de rotular pessoas ou objetos considerados como entidades dis-
cretas. Seu objetivo principal é facilitar a interpretação de caracte-
rísticas, a compreensão de intenções e motivos subjacentes às
ações das pessoas, na realidade, formar opiniões. Na verdade
esta é uma preocupação fundamental. Grupos, assim como indiví-
duos, estão inclinados, sob certas condições, tais como super-
excitação ou perplexidade, ao que nós poderíamos chamar de ma-
nias de interpretação. Pois nós não podemos esquecer que inter-
pretar uma idéia ou um ser não-familiar sempre requer categori-
as, nomes, referências, de tal modo que a entidade nomeada possa
ser integrada na sociedade dos conceitos de Gombrich. Nós os
fabricamos com esta finalidade, na medida em que os sentidos
emergem; nós os tornamos tangíveis e visíveis e semelhantes i-
déias e seres que nós já integramos e com os quais nós estamos
familiarizados. Desse modo, representações preexistentes são de
certo modo modificadas e aquelas entidades que devem ser re-
presentadas são mudadas ainda mais, de tal modo que adqu i-
rem nova existência.

70
• Objetivação - O físico inglês Maxwell disse, certa vez, que o
que parecia abstrato a uma geração se torna concreto para a se-
guinte. Surpreendentemente, teorias incomuns, que ninguém le-
vava a sério, passam a ser normais, criveis e explicadoras da reali-
dade, algum tempo depois. Como um fato tão improvável, como o
de um corpo físico produzindo uma reação á distância em um lu-
gar onde ele não está concretamente presente, pode transfor-
mar-se, menos de um século depois, em um fato comum, inques-
tionável - isso é ao menos tão misterioso, como sua descoberta, e
de conseqüências práticas muito maiores. Poderíamos mesmo ir
além da colocação de Maxwell, acrescentando que o que é inco-
mum e imperceptível para uma geração, torna-se familiar e óbvio
para a seguinte. Isso não se deve simplesmente a passagem do
tempo ou dos costumes, embora ambos sejam provavelmente ne-
cessários. Essa domesticação é o resultado da objetivação, que é
um processo muito mais atuante que a ancoragem e que nós va-
mos discutir agora.
Objetivação une a idéia de não-familiaridade com a de realida-
de, torna-se a verdadeira essência da realidade. Percebida primei-
ramente como um universo puramente intelectual e remoto, a ob-
jetivação aparece, então, diante de nossos olhos, física e acessí-
vel. Sob esse aspecto, estamos legitimados ao afirmar, com Lewin,
que toda representação torna real - realiza, no sentido próprio do
termo - um nível diferente da realidade. Esses níveis são criados e
mantidos pela coletividade e se esvaem com ela, não tendo exis-
tência por si mesmos; por exemplo, o nível sobrenatural, que em
certo tempo era quase onipresente, é agora praticamente inexis-
tente. Entre a ilusão total e a realidade total existe uma infinidade
de graduações que devem ser levadas em consideração, pois nós
as criamos, mas a ilusão e a realidade são conseguidas exatamen te
do mesmo modo.
A materialização de uma abstração é uma das características
mais misteriosas do pensamento e da fala. Autorida des políticas e
intelectuais, de toda espécie, a exploram com a fi nalidade de sub-
jugar as massas. Em outras palavras, tal autorida de está funda-
mentada na arte de transformar uma representação na realidade
da representação; transformar a palavra que substitui a coisa, na
coisa que substitui a palavra.
Para começar, objetivar é descobrir a qualidade icônica de
uma idéia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma
imagem. Comparar é já representar, encher o que está natural-
71
mente vazio, com substância. Temos apenas de comparar Deus
com um pai e o que era invisível, instantaneamente se toma visível
em nossas mentes, como uma pessoa a quem nós podemos res-
ponder como tal. Um enorme estoque de palavras, que se referem
a objetos específicos, está em circulação em toda sociedade e nós
estamos sob constante pressão para provê-los com sentidos con-
cretos equivalentes. Desde que suponhamos que as palavras não
falam sobre nada , somos obrigados a ligá-las a algo, a encontrar
equivalentes não-verbais para elas. Assim como se acredita na
maioria dos boatos por causa do provérbio: Não há fumaça sem
fogo , assim uma coleção de imagens é criada por causa do pro-
vérbio: Ninguém fala sobre coisa alguma .

Mas nem todas as palavras, que constituem esse estoque, po-


dem ser ligadas a imagens, seja porque não existem imagens sufi-
cientes facilmente acessíveis, seja porque as imagens que são
lembradas são tabus. As imagens que foram selecionadas, devido a
sua capacidade de ser representadas, se mesclam, ou melhor,
são integradas no que eu chamei de um padrão de núcleo figurati-
vo, um complexo de imagens que reproduzem visivelmente um
complexo de idéias. Por exemplo, o padrão popular da psiquê her-
dado dos psicanalistas está dividido em dois, o inconsciente e o
consciente - reminiscente de dualidades mais comuns, tais como
involuntário-voluntário, alma-corpo, interno-externo - localizado,
no espaço um sobre o outro. Acontece, assim, que o mais alto, e-
xerce pressão sobre o que está abaixo e esta repressão é o que dá
origem aos complexos. Vale também a pena notar que os ter mos
representados são os que são mais conhecidos e mais comumente
empregados. A ausência, pois, de sexualidade, ou libido, é certa-
mente surpreendente, pois ela desempenha uma parte significati-
va na teoria e tem possibilidade de ser fortemente carregada de
um conjunto de imagens. Sendo, contudo, o objeto de um tabu, ela
permanece abstrata. Fui capaz, na verdade, de mostrar que nem
todos os conceitos psicanalíticos sofrem tal transformação, que
nem todos são igualmente favorecidos. Parece, então que a soci-
edade faz uma seleção daqueles aos quais ela concede poderes
figurativos, de acordo com suas crenças e como estão preexistente
de imagens. Por isso afirmei, há algum tempo: Embora um para-
digma seja aceito porque ele possui um forte referencial, sua
aceitação deve-se também à sua afinidade com pa radigmas mais
atuais. A concretude dos elementos desse sistema psíquico deriva
72
de sua capacidade de traduzir situações comuns (Moscovici,
1961/1976).
Isso não implica, de modo algum, que mudanças subseqüen-
tes não aconteçam. Mas tais mudanças acontecem durante a
transmissão de referenciais familiares, que respondem gradualmen-
te ao que foi recentemente aceito, do mesmo modo que o leito do
rio é gradualmente modificado pelas águas que correm entre as
margens.
Uma vez que uma sociedade tenha aceito tal paradigma, ou
núcleo figurativo, ela acha fácil falar sobre tudo o que se relacione
com esse paradigma e devido a essa facilidade as palavras que se
referem ao paradigma são usadas mais freqüentemente. Surgem,
então, fórmulas e clichês que o sintetizam e imagens, que eram
antes distintas, aglomeram-se ao seu redor. Não somente se fala
dele, mas ele passa a ser usado, em várias situações sociais, como
um meio de compreender outros e a si mesmo, de escolher e deci-
dir. Mostrei (Moscovici, 1961/1976) como a psicanálise, uma vez
popularizada, tornou-se uma chave que abria todos os cadeados
da existência privada, pública e política. Seu paradigma figurativo
foi separado de seu ambiente original através de uso contínuo e
adquiriu uma espécie de independência, do mesmo modo como
acontece com um provérbio bastante comum, que vai sendo gra-
dualmente separado da pessoa que o disse pela primeira vez e tor-
na-se um dito corriqueiro. Quando, pois, a imagem ligada à pala-
vra ou à idéia se torna separada e é deixada solta em uma socieda-
de, ela é aceita como uma realidade, uma realidade convencional,
clara, mas de qualquer modo uma realidade.

Embora nós todos saibamos que um complexo é uma noção


cujo equivalente objetivo é bastante vago, nós ainda pensamos e
nos comportamos, como se ele fosse algo que realmente existisse,
no momento em que nós julgamos uma pessoa e a relacionamos a
ele. Ele não simboliza simplesmente sua personalidade, ou sua
maneira de se comportar, mas na verdade o representa, é, passa a
constituir, sua personalidade complexada e sua maneira de se
comportar. Na verdade, pode-se dizer, sem equívocos, que em to-
dos os casos, uma vez conseguida a transfiguração, a idolatria co -
letiva é, então, uma possibilidade. Todas as imagens podem conter
realidade e eficiência em seus inícios e terminar sendo adora das.
Em nossos dias, o divã psicanalítico ou o progresso são exem-
73
plos flagrantes desse fato. Isso acontece na medida em que a dis-
tinção entre imagem e realidade são esquecidas. A imagem do
conceito deixa de ser um signo e torna-se a réplica da realidade,
um simulacro, no verdadeiro sentido da palavra. A noção, pois, ou a
entidade da qual ela proveio, perde seu caráter abstrato, arbitrá-
rio e adquire uma existência quase física, independente. Ela passa
a possuir a autoridade de um fenômeno natural para os que a
usam. Esse é precisamente o caso do complexo, ao qual tanta rea-
lidade é geralmente concedida, quanto a um átomo ou a um aceno
de mão. Esse é um exemplo de uma palavra que cria os meios.
O segundo estágio, no qual a imagem é totalmente assimilada
e o que é percebido substitui o que é concebido, é o resultado lógi-
co deste estado de coisas. Se existem imagens, se elas são essen-
ciais para a comunicação e para a compreensão social, isso é por-
que elas não existem sem realidade (e não podem permanecer
sem ela), do mesmo modo que não existe fumaça sem fogo. Se as
imagens devem ter uma realidade, nós encontramos uma para
elas, seja qual for. Então, como por uma espécie de imperativo ló -
gico, as imagens se tornam elementos da realidade, em vez de ele-
mentos do pensamento. A defasagem entre a representação e o
que ela representa é preenchida, as peculiaridades da réplica do
conceito tornam-se peculiaridades dos fenômenos, ou do ambien-
te ao qual eles se referem, tornam-se a referência real do conceito.
Todos podem, por isso, hoje em dia, perceber e distinguir as re-
pressões de uma pessoa, ou seus complexos , como se eles fos-
sem suas características físicas.
Nosso ambiente é fundamentalmente composto de tais ima-
gens e nós estamos continuamente acrescentando-lhe algo e mo-
dificando-o, descartando algumas imagens e adotando outras.
Mead escreve: Vimos precisamente que o conjunto de imagens
mentais que entra na formação da estrutura dos objetos e que re-
presenta o ajustamento do organismo a ambientes inexistentes
pode servir para a reconstrução do campo objetivo (Mead, 1934).
Quando isso acontece, as imagens não ocupam mais aquela posi-
ção especifica, em algum lugar entre palavras, que supo stamente
tenham um sentido e objetos reais, aos quais somente nós pode-
mos dar um sentido, mas passam a existir como objetos, são o que
significam.
A cultura - mas não a ciência- nos incita, hoje, a construir rea-
lidades a partir de idéias geralmente significantes. Existem razões
óbvias para isso, dentre as quais a mais óbvia, do ponto de vista da
74
sociedade, é apropriar-se e transformar em característica comum
o que originalmente pertencia a um campo ou esfera específica.
Os filósofos gastaram muito tempo tentando compreender o
processo de transferência de uma esfera a outra. Sem representa-
ções, sem a metamorfose das palavras em objetos, é absolutamen-
te impossível existir alguma transferência. O que afirmei a respeito
da psicanálise é confirmado pela pesquisa meticulosa:
Através da objetivação do conteúdo cientifico da psicanáli-
se, a sociedade não confronta mais a psicanálise ou o psic a-
nalista, mas um conjunto de fenômenos que ela tem a liberdade de
tratar como quer. A evidência de homens particulares tomou-se a e-
vidência de nossos sentidos, um universo desconhecido é
agora um território familiar, O indivíduo, em contato direto com
esse universo, sem a mediação de peritos ou de sua ciência,
passou de uma relação secundaria com seu objeto para uma rela-
ção primária e esse pressuposto indireto de poder é uma ação cultu-
ralmente produtiva (Moscovici, 1961/1976: 1O9).

Na verdade, nós encontramos, então, incorporados em nossa


fala, nossos sentidos e ambiente, de uma maneira anônima, ele-
mentos que são preservados e colocados como material comum
do dia-a-dia, cujas origens são obscuras ou esquecidas. Sua reali-
dade é um espaço vazio em nossa memória - mas não é toda reali-
dade uma só? Não objetivamos nós de tal modo que esquecemos
que a criação, que a construção material é o produto de nossa pró-
pria atividade, que alguma coisa é também alguém? Como afir-
mei: Em última análise, a psicanálise poderia estar morta e sepul-
tada, mas ainda assim, como a Física de Aristóteles, ela iria permear
nossa visão de mundo e seu jargão seria usado para descre ver o
comportamento psicológico (Moscovici, 1961/1976: 109).

O modelo de toda aprendizagem, em nossa sociedade, é a ci-


ência da física matemática, ou a ciência dos objetos quantificá veis,
mensuráveis. Desde que o conteúdo científico, mesmo de uma
ciência do homem ou da vida, pressuponha esse tipo de realidade,
todos os seres aos quais ela se refira são concebidos de acordo com
tal modelo. Sendo que a ciência se refere a órgãos físicos e a psicaná-
lise é uma ciência, então o inconsciente, por exemplo, ou um com-
plexo, serão vistos como órgãos do sistema físico. Desse modo, um
complexo poderá ser amputado, desenhado ou percebido. Como se
75
pode perceber, o que é vivo é assimilado ao que é inerte, o subjeti-
vo ao objetivo e o psicológico ao biológico. Cada cultura possui
seus próprios instrumentais para transformar suas representa-
ções em realidade. Algumas ve zes as pessoas, outras os animais,
serviram para tal propósito. Desde o começo da era mecânica, os
objetos dominaram e nós estamos obsessionados com um ani-
mismo às avessas, que povoa nosso mundo com má quinas, em vez
de criaturas vivas. Podemos, pois, dizer que no referente a comple-
xos, átomos e genes, nós não apenas imaginamos um objeto, mas
criamos, em geral, uma imagem com a ajuda do objeto com o qual
nós os identificamos.
Nenhuma cultura, contudo, possui um instrumento único, ex-
clusivo. E devido ao fato de que o nosso instrumento está relacio-
nado com os objetos, ele nos encoraja a objetivar tudo o que en-
contramos. Nós personificamos, indiscriminadamente, sentimen-
tos, classes sociais, os grandes poderes, e quando nós escrevemos,
nós personificamos a cultura, pois é a própria linguagem que nos
possibilita fazer isso. Gombrich escreve:
Acontece, pois, que as línguas indo-européias tendem em
direção a essa configuração particular, que nós chamamos
personificação, pois muitas delas dão aos nomes um gênero, que os
tornam inseparáveis dos nomes dados a espécies vivas.
Nomes abstratos em grego, em latim, quase sempre assu-
mem um gênero feminino e desse modo o caminho está a-
berto para que o mundo das idéias seja povoado por abs-
trações personificadas, tais como Vitória, Fortuna ou Justi-
ça (Gombrich, 1972).

Mas é apenas o acaso que não pode responder pelo uso exten-
sivo que nós fazemos das particularidades da gramática, nem po-
de explicar sua eficiência.
Isso pode ser feito de uma maneira melhor, através da tenta-
tiva de objetivar a própria gramática, o que é conseguido muito
simplesmente colocando substantivos - que, por definição, se refe-
rem a substâncias, a seres - em lugar de adjetivos, advérbios, etc.
Desse modo, atributos ou relações são transformadas em coisas.
Na verdade, não existe tal coisa como uma repressão, pois ela se
refere a uma ação (reprimir a memória), ou um inconsciente, pois
ele é um atributo de algo diferente (os pensamentos e de sejos de
uma pessoa). Quando nós dizemos que alguém está dominado por
seu inconsciente ou sofre de uma repressão como se tivesse bócio
ou dor de garganta, o que nós realmente queremos dizer é que
76
este indivíduo não está consciente do que faz ou pen sa; do mesmo
modo, quando nós dizemos que uma pessoa sofre de ansiedade,
nós queremos dizer que está ansiosa, ou se com porta de uma
maneira ansiosa.

Desde que nós escolhemos, porém, usar um substantivo para


descrever o estado de uma pessoa, dizer que está dominada pelo
seu inconsciente, ou sofre de ansiedade, em vez de dizer que seu
comportamento retrata determinada particularidade (que está in-
consciente ou ansioso), nós estamos, com isso, juntando um de-
terminado número de coisas a um determinado número de seres
vivos. A tendência, pois, de transformar verbos em substantivos,
ou o viés pelas categorias gramaticais de palavras com sentidos
semelhantes, é um sinal seguro de que a gramática está sendo ob-
jetivada, de que as palavras não apenas representam coisas, mas
as criam e as investem com suas próprias características. Nessas
circunstâncias, a linguagem é como um espelho que pode separar a
aparência da realidade, separar o que é visto do que realmente
existe e do que o representa sem mediação, na forma de uma apa-
rência visível de um objeto ou pessoa, ao mesmo tempo que nos
possibilita avaliar esse objeto ou pessoa, como se estes objetos
não fossem distintos da realidade, como se fossem coisas reais - e
particularmente avaliar o seu próprio eu, com algo com que nós
não temos outra maneira de nos relacionarmos. Os nomes, pois,
que inventamos e criamos para dar forma abstrata a substâncias
ou fenômenos complexos, tornam-se a substância ou o fenômeno e
é isso que nós nunca paramos de fazer. Toda verdade auto-evi-
dente, toda taxonomia, toda referência dentro do mundo, repre-
senta um conjunto cristalizado de significâncias e tacitamente
aceita nomes; seu silêncio é precisamente o que garante sua im-
portante função representativa: expressar primeiro a imagem e
depois o conceito, como realidade.
Para se ter uma compreensão mais clara das conseqüências
de nossa tendência em objetivar, poderíamos analisar fenômenos
sociais tão diferentes como a adoração de um herói, a personifica-
cão das nações, raças, classes, etc. Cada caso implica uma repre -
sentação social que transforma palavras em carne, idéias em po-
deres naturais, nações ou linguagens humanas em uma lingua-
gem de coisas. Acontecimentos recentes mostraram que o resul-
tado de tais transformações podem ser desastrosas e desencora-
jadoras ao extremo para aqueles de nós que gostariam que todas
77
as tragédias do mundo tivessem um final feliz e de ver o direito
triunfar. A derrota da racionalidade e o fato de a história ser tão
parca em seus finais felizes não nos devem desencorajar de exami-
nar esses fenômenos significativos e principalmente não devem
tirar a convicção de que os princípios implícitos são simples e não
diferentes dos que nós analisamos acima. Nossas representações,
pois, tornam o não-familiar em algo familiar. O que é uma maneira
diferente de dizer que elas dependem da memória. A solidez da
memória impede de sofrer modificações súbitas, de um lado e de
outro, fornece-lhes certa dose de independência dos acontec i-
mentos atuais - exatamente como uma riqueza acumulada nos
protege de uma situação de penúria.
É dessa soma de experiências e memórias comuns que nós
extraímos as imagens, linguagem e gestos necessários para supe-
rar o não-familiar, com suas conseqüentes ansiedades. As expe-
riências e memórias não são nem inertes, nem mortas. Elas são
dinâmicas e imortais. Ancoragem e objetivação são, pois, maneiras
de lidar com a memória. A primeira mantém a memória em movi-
mento e a memória é dirigida para dentro, está sempre colocando
e tirando objetos, pessoas e acontecimentos, que ela classifica de
acordo com um tipo e os rotula com um nome. A segunda, sendo
mais ou menos direcionada para fora (para outros), tira dai concei-
tos e imagens para juntá-los e reproduzi-los no mundo exterior,
para fazer as coisas conhecidas a partir do que já é conhecido. Seria
oportuno citar Mead aqui uma outra vez: A inteligência peculiar da
espécie humana reside nesse complexo controle, conseguido pelo
passado (Mead, 1934).

5. Causalidades de direita e de esquerda

5.1. Atribuições e representações sociais

Farr (1977) mostrou com acerto que existe uma relação en-
tre a maneira como nós concebemos algo para nós mesmos e a
maneira descrevemos aos outros. Vamos, pois, aceitar essa rela-
ção, embora notemos que o problema da causalidade foi sempre
78
um problema crucial para as pessoas interessadas em representa-
ções sociais, como Fauconnet, Piaget e, mais modestamente, eu
mesmo. Nós enfocamos o problema, porém, de um ângulo muito
diverso do de nossos colegas americanos - americano é usado
aqui em um sentido puramente geográfico. O psicólogo social do
outro lado do Atlântico baseia suas investigações na teoria da atri-
buição e está interessado principalmente na maneira como nós
atribuímos causalidade as pessoas ou coisas que nos rodeiam.
Certamente não seria exagero dizer que suas teorias são baseadas
em um principio único - o ser humano pensa como um estatístico -
e que existe somente uma regra em seu método - estabelecer a
coerência da informação que nós recebemos do meio ambiente.
Nessas circunstâncias, grande número de idéias e imagens - na
realidade, todas as que a sociedade nos apresenta - devem ou en-
quadrar-se com o pensamento estatístico e assim consideradas
como sem valor, pois elas não podem se adequar a ele, ou então
ofuscar nossa percepção da realidade como de fato é. Elas são, por
isso, pura e simplesmente ignoradas.

A teoria das representações sociais, por outro lado, toma,


como ponto de partida, a diversidade dos indivíduos, atitudes e fe-
nômenos, em toda sua estranheza e imprevisibilidade. Seu objeti-
vo é descobrir como os indivíduos e grupos podem construir um
mundo estável, previsível, a partir de tal diversidade. O cientista
que estuda o universo está convencido de que existe lá uma or-
dem oculta, sob o caos aparente, e a criança que nunca pára de
perguntar por quê? não está menos segura a esse respeito. Esse
é um fato: se, pois, nós procuramos uma resposta ao eterno por-
quê? , isso não se deve à força da informação que nós recebemos,
mas porque nós estamos convencidos de que cada ser e cada ob-
jeto no mundo é diferente da maneira como se apresenta. O objeti-
vo último da ciência é eliminar esse porquê? , embora as repre-
sentações sociais tenham grande dificuldade de fazê-lo sem ele.

As representações sociais se baseiam no dito: Não existe fu-


maça sem fogo . Quando nós ouvimos ou vemos algo nós, instinti-
vamente, supomos que isso não é casual, mas que este algo deve
ter uma causa e um efeito. Quando nós vemos fumaça, nós sabe-
mos que um fogo foi aceso em algum lugar e, para descobrir de
onde vem a fumaça, nós vamos em busca desse fogo. O dito, pois,
79
não é uma mera imagem, mas expressa um processo de pensa-
mento, um imperativo - a necessidade de decodificar todos os sig-
nos que existem em nosso ambiente social e que nós não podemos
deixar sós, até que seu sentido, o fogo escondido , não tenha
sido localizado. O pensamento social faz, pois, uso extensivo das
suspeições, que nos colocam na trilha da causalidade.
Poderia dar um grande número de exemplos. Os mais interes-
santes são aqueles julgamentos onde os acusados são apresenta-
dos como culpados, malfeitores e criminosos e o processo apenas
serve para confirmar um veredicto preestabelecido. Os cidadãos
alemães ou russos, que viram seus judeus ou compatriotas sub-
versivos serem enviados aos campos de concentração, ou embar-
cados para as Ilhas Gulag, certamente não pensavam que eles fos-
sem inocentes. Eles deviam ser culpados, pois foram presos. Boas
razões para serem presos foram atribuídas (a palavra é boa) a eles,
pois era impossível crer que eles tivessem sido acusados, maltra-
tados e torturados por absolutamente nenhuma razão.
Tais exemplos de manipulação, para não dizer de distorção
da causalidade, provam que a cortina de fumaça não tem se m-
pre como finalidade esconder astutamente medidas repressivas,
mas podem, na verdade, chamar nossa atenção para elas, de tal
modo que os espectadores sejam levados a supor que haveria,
certamente, boas razões para acender o fogo. Os tiranos são, ge-
ralmente, especialistas em psicologia e sabem que as pessoas irão
caminhar, automaticamente, da punição até ao criminoso e ao cri-
me, a fim de fazer essas estranhas e horríveis ocorrências, compa-
tíveis com as idéias de julgamento e justiça.

5.2. Explicações bi-causais e mono-causais

A teoria das representações sociais assume, baseada em inu-


meráveis observações, que nós, em geral, agimos sob dois conjun-
tos diferentes de motivações. Em outras palavras, que o pensa-
mento é bi-causal e não mono-causal e estabelece, simultanea-
mente, uma relação de causa e efeito e uma relação de fins e meios. É
aqui onde nossa teoria difere da teoria de atribuição e onde, nessa
dualidade, as representações sociais diferem da ciência.
Quando um fenômeno se repete, nós estabelecemos uma cor-
80
relação entre nós mesmos e ele, e então encontramos alguma ex-
plicação significativa que sugere a existência de uma regra ou lei,
ainda não descoberta. Nesse caso, a transição da correlação para a
explicação não é estimulada por nossa percepção da correlação,
ou pela repetição dos acontecimentos, mas por nossa percepção
de uma discrepância entre esta correlação e outras, entre o fenô-
meno que nós percebemos e o que nós temos que prever, entre um
caso específico e um protótipo, entre a exceção e a regra; na ver-
dade, para usar os termos que eu empreguei anteriormente, entre
o familiar e o não-familiar. Esse é, de fato, o fator decisivo. Para citar
Maclver: É a exceção, o desvio, a interferência, a anormalida de,
que estimula nossa curiosidade e parece exigir uma explicação. E
nós, muitas vezes, atribuímos a alguma causa especifica todo o
acontecimento que caracteriza a situação nova, ou não pre vista, ou
mudada (Maclver, 1992).
Nós vemos uma pessoa, ou coisa, que não se enquadra em
nossas representações, que não coincide com o protótipo (uma
mulher primeira-ministra), ou um vazio, uma ausência (uma cida-
de sem armazéns), ou nós encontramos um muçulmano em uma
comunidade católica, um médico ( phisician ) sem usar coi-
sas físicas ( physics ) (como um psicanalista, por exemplo), etc.
Em cada caso, nós somos provocados a encontrar uma explicação.
De um lado, existe uma falta de reconhecimento (recognition); de
outro lado, existe uma falta de conhecimento (cognition). De um lado,
uma falta de identidade; de outro, uma afirmação de não-identida-
de. Nessas circunstâncias, nós somos sempre obrigados a para r
e pensar e finalmente a admitir que nós não sabemos por que
essa pessoa se comporta desse modo, ou que esse objeto tenha
tal ou tal efeito.

Como podemos responder a esse desafio? Essa causalidade


primária, para a qual nós nos voltamos espontaneamente, depen-
de de finalidades. Sendo que a maioria de nossas relações se dão
com seres humanos, nós somos confrontados com intenções e
propósitos de outros que, por razões práticas, não podemos enten-
der. Mesmo quando nosso carro não funciona, ou o aparelho que
estamos usando no laboratório não funciona, de nada nos adianta
pensar que o carro não quer andar, que o aparelho irritado recu-
sa colaborar e desse modo não nos permite continuar com nosso
experimento. Tudo o que as pessoas fazem, ou dizem, cada con-
tratempo normal, parece ter um sentido, intenção ou propósito
81
ocultos, que nós tentamos descobrir. Do mesmo modo, nós temos
a tendência de interpretar as polêmicas ou controvérsias intelec-
tuais como conflitos pessoais e pensar qual seria a razão da animo-
sidade dos protagonistas, que motivos pessoais estão por detrás
destes antagonismos.

Em vez de dizer: Por que razão ele se comporta desse mo-


do? , nós dizemos: Com que propósito ele se comporta assim? e
a procura de uma causa se torna a procura de motivos e intenções.
Em outras palavras, nós interpretamos, procuramos animosidades
ocultas e motivos obscuros, tais como ódio, inveja ou ambição.
Nós estamos sempre convencidos que as pessoas não agem por
acaso , que tudo o que fazem corresponde a um plano prévio. Daqui
provém a tendência generalizada de personificar motivos e in-
centivos, de representar uma causa imaginariamente, como quan-
do nós dizemos de um dissidente político que ele é um traidor ,
um inimigo do povo , ou quando usamos o termo Complexo de
Édipo para descrever determinado tipo de comportamento, etc.
A noção torna-se quase que um agente físico, um ator que, em
certas circunstâncias, possui uma intenção precisa. E essa noção
termina por corporificar a própria coisa, em vez de ser vista como
uma representação de nossa percepção particular dessa coisa

Causalidade secundária, que não é espontânea, é uma causa-


lidade eficiente. É ditada por nossa educação, nossa linguagem,
nossa visão científica do mundo e tudo isso nos leva a desvestir as
ações, conversações e fenômenos do mundo exterior, de sua por-
ção de intencionalidade e responsabilidade considerá-los apenas
como dados experimentais, que devem ser vistos imparcialmente.
Tendemos, assim, a juntar toda a informação possível a respeito
destes dados, de tal modo que possamos classificá-los em uma
determinada categoria e desse modo identificar sua causa, expli-
cá-los. Tal é a atitude do historiador, do psicólogo, ou mesmo de
qualquer cientista. Por exemplo, nós inferimos do comportamento
de uma pessoa se ela pertence à classe média ou baixa, se é esqui-
zofrênica ou paranóica: explicamos, então, seu comportamento
atual. Indo do efeito para causa, na base da informação que coleta-
mos, nós relacionamos um ao outro, atribuímos efeitos a causas
específicas. Heider já mostrou, há muito tempo, que o comporta-
mento de uma pessoa provém de dois conjuntos diferentes de mo-
82
tivações internas e externas e que o conjunto das motivações ex -
ternas provém não da pessoa, mas de seu ambiente, de seu status
social e das pressões que outras pessoas exercem sobre ela. Desse
modo, a pessoa que vota em um partido político, faz isso por con-
vicção própria; mas em alguns países tal voto pode ser obrigatório e
votar em um partido diferente, ou abster-se de votar, implica ex-
pulsão ou prisão.

Assim, para sintetizar a maneira como o processo de atribui-


ção opera, podemos dizer que, primeiro e principalmente, existe
ali um protótipo que serve como uma barra de medição, para a-
contecimentos ou comportamentos que são considerados como
efeitos. Se o efeito se coaduna com o protótipo, assume-se que ele
possui uma causa exterior; se não se coaduna, assume-se que a
causa seja específica ou interna. Um homem usando um boné,
carregando uma longa peça de pão francês sob seus braços, é um
francês, pois tal é nossa representação desse tipo. Mas se aconte ce
que essa pessoa é um americano, ele não se adéqua mais a esse
modelo e nós supomos que seu comportamento é singular, ou
mesmo aberrante, pois não está de acordo com o tipo.
Obviamente, tudo isso é grosseiramente simplificado; o que
realmente acontece na cabeça não é tão facilmente deduzido. Mas
eu queria tornar esse ponto claro: nas representações sociais, as
duas causalidades agem conjuntamente, elas se misturam para
produzir características especificas e nós saltamos constantemen-
te de uma para outra. Por um lado, pelo fato de procurar uma or-
dem subjetiva, por detrás dos fenômenos aparentemente objeti-
vos, o resultado será uma inferência; por outro lado, pelo fato de
procurar uma ordem objetiva por detrás de fenômenos aparente-
mente subjetivos, o resultado será uma atribuição. Por um lado,
nós reconstruímos intenções ocultas para explicar o comporta-
mento da pessoa: essa é uma causalidade de primeira pessoa. Por
outro lado, nós procuramos fatores invisíveis para explicar o com-
portamento visível: essa é uma causalidade de terceira pessoa.

O contraste entre esses dois tipos de causalidade deve ser en-


fatizado, pois as circunstancias da existência social são, muitas ve-
zes, manipuladas com o propósito de ressaltar uma ou outra dessas
duas causalidades, como por exemplo, para fazer passar um fim,
como um efeito. Quando os nazistas, portanto, colocaram fogo no
83
Reichstag, fizeram isso para que suas perseguições parecessem
não a execução de um plano, mas um resultado, cuja causa seria,
supostamente, o incêndio colocado por seus inimigos e cuja fuma-
ça escondia um fogo muito diferente. Não é raro uma pessoa pro-
vocar, em uma escala menor, um incêndio desse tipo, para obter
promoção, por exemplo, ou para conseguir um divórcio. Além do mais,
esses exemplos nos possibilitam perceber que as atribuições sem-
pre envolvem uma relação entre fins, ou intenções e meios. Como,
disse Maclver: O porquê da motivação reside, muitas vezes de ma-
neira oculta, por trás do porquê do objetivo (Maclver, 1942).
As ciências biológicas e sociais tentam reverter a ordem psi-
cológica de duas perguntas e apresentar motivações como cau-
sas. Quando eles examinam um fenômeno, eles perguntam: A que
propósito ele corresponde? Que função ele desempenha? Uma vez
estabelecido o propósito, ou função, eles apresentam o propósito
ou função como uma causa impessoal e o resultado como o meca-
nismo que eles disparam. Do mesmo modo que Darwin, quando.
descobriu a seleção natural. O termo causalização seria adequada
nesse caso, sugerindo, como na realidade ele o faz, que os fins estão
disfarçados como causas, os meios como efeitos e as intenções
como resultados. Relações entre indivíduos, do mesmo modo que
as relações entre partidos ou grupos políticos de todo tipo, fazem
extenso uso desse procedimento, sempre que o comporta-1 mento
de outras pessoas deve ser interpretado. Sempre, contudo; a per-
gunta Por que? deve ser respondida. E a resposta dada; muitas
vezes, é suficiente para apaziguar as mentes a fim de preservar a
representação ou para convencer uma audiência, que jau estava
suficientemente preparada para ser convencida.

5.3. Causalidade social

Para sintetizar, uma teoria de causalidade social é uma teoria


das atribuições e inferências que os indivíduos fazem e também,
da transição de uma a outra. Evidentemente, tal transição é inse-
parável da teoria cientifica que lida com esse fenômeno. Os psicó-
logos, contudo, têm o hábito de estudar tanto as atribuições, como
as inferências e de ignorar a transição entre elas. Desse modo, eles
atribuem causas a um ambiente ou a um indivíduo, cada um visto
independentemente, o que é, evidentemente, tão ridículo como
84
estudar a relação de um efeito para com sua causa, sem primeiro,
formular uma teoria, ou definir um paradigma que dê conta dessa
relação. Essa atitude muito peculiar possui suas limitações, como
eu espero provar com o seguinte exemplo.
A teoria de atribuição apresenta certa quantidade de razões
para explicar por que um indivíduo atribui certos comportamentos
a outra pessoa e outros comportamentos ao ambiente - o fato de
Pedro ter habilidade para certos jogos, ou então o fato de ele morar
nas periferias, por exemplo. Como vimos antes, porém, isso está
baseado em um principio único: o ser humano é um estatístico e
seu cérebro funciona como um computador infalível2. A psicanáli-
se, por outro lado, tomaria tais comportamentos como a simples
racionalização de sentimentos hostis ou familiares, pois, para o
psicanalista, todas as avaliações estão baseadas em emoções.
Esse exemplo trivial ilustra com clareza o fato que toda explicação
depende primariamente da idéia que nós temos de realidade. É
uma idéia como essa que governa nossas percepções e as inferên-
cias que nós construímos a partir delas. E esta idéia governa, da
mesma maneira, nossas relações sociais. Podemos afirmar, pois,
que quando nós respondemos ã pergunta por que , nós começa-
mos de uma representação social ou de um contexto geral para o
qual nós fomos levados, a fim de dar essa resposta especifica.

Eis um exemplo concreto: o desemprego, nesse momento, é


geral e cada um de nós tem ao menos um homem ou uma mulher
desempregados entre nossos amigos mais íntimos. Por que esse
homem ou mulher não tem trabalho? A resposta a essa pergunta
irá variar de acordo com quem fala. Para alguns, os desemprega-
dos, na verdade, não se preocupam em procurar um trabalho, são
muito exigentes ou, no mínimo, não têm sorte. Para outros, eles
são vitimas de uma recessão econômica, ou de uma sobreposição
injustificada de empregos ou, mais comumente, de uma injustiça
inerente à economia capitalista. O primeiro, assim, atribui a causa
do desemprego ao indivíduo, a sua atitude social, enquanto o se-
gundo a atribui à situação econômica e política, a seu status so-
cial, a um ambiente que torna essa situação inevitável. As duas

2 Experimentos feitos por Tversky e Kabneman (1974) tiveram mui to sucesso ao prova r
que esse pressupos to é infundado e deve sua popularidade a um equívoco que s e bas eia em
principios artificiais
85
explicações são totalmente opostas e obviamente provém de
representações sociais distintas. A primeira representação acena
responsabilidade individual e a energia pessoal — os problemas
sociais somente podem ser resolvidos por cada indivíduo. A se-
gunda representação acentua a responsabilidade social, denuncia:
a injustiça social e propõe soluções coletivas para problemas indivi-
duais. Shaver notou tais reações até mesmo nos Estados Unidos.
Atribuições pessoais sobre a razão para a assistência social
(wel-f are) levam a discursos sobre aproveitadores do assisten-
cialismo , a apelos para voltar aos tempos antigos, para a é-
tica protestante, ou para leis com a finalidade de tornar a
assistência financeira obrigatória mais difícil de ser conseguida. A-
tribuições situacionais, por outro lado, vão, mais provavelmente, su-
gerir que a expansão dos empregos, por parte do governo, a melhor
preparação para o trabalho e o aumento de oportunidade educa-
cional para todos, irão propiciar reduções mais duradouras
na assistência pública (Shaver, 1975: 133).

Contudo, absolutamente não concordo com meu colega ame-


ricano. Eu mesmo reverteria a ordem dos fatores envolvidos, acen-
tuando a primazia das representações e dizendo que são elas, em
cada caso, as que ditam a atribuição, tanto para o indivíduo, quanto
para a sociedade. Ao fazer isso, eu obviamente não nego a idéia de
racionalidade e uma manipulação correta da informação rece bida,
mas simplesmente afirmo que o que é tomado em consideração, as
experiências que nós temos, isto é, as causas que nós sele-
cionamos, tudo isso é ditado, em cada caso, por um sistema de re-
presentações sociais.

Chego, então, ã seguinte proposição: nas sociedades em que


nós vivemos hoje, a causalidade pessoal é uma explicação de direita
e a causalidade situacional é uma explicação de esquerda. A psico-
logia social não pode ignorar o fato de que o mundo está es-
truturado e organizado de acordo com tal divisão e de que existe
uma divisão permanente. De fato, cada um de nós está necessa-
riamente obrigado a adotar um desses dois tipos de causalidade,
juntamente com a visão do outro que ele implica. As conseqüên-
cias que derivam de tal proposição não poderiam ser mais preci-
sas: os motivos de nossas ações são ditados e estão relacionados
com a realidade social, a realidade cujas categorias contrastantes
86
dividem o pensamento humano tão nitidamente como o fazem dua-
lidades tais como alto e baixo, homem e mulher, etc. Tinha-se a
impressão de que a motivação poderia ser atribuída a um simples
processo de pensamento e agora se vê que ela é determ inada por
influências ambientais, status social, relação de uma pessoa com
outras, suas opiniões pré-concebidas, cada uma das pessoas res-
pondendo por sua parte. Isso é de extrema importância e, uma vez
aceita, a pessoa passa a negar a existência de categorias suposta-
mente neutras de atribuição pessoal ou situacional e as substitui
por categorias de motivação claramente de direita ou de esquerda.
Mesmo que a substituição não se afirme em todos os casos, ela é,
em geral, constatável.
Experimentos feitos por certos psicólogos (Hewstone & Jas-
pars, 1982) confirmam a noção de tal substituição. Aqui está, por
exemplo, um caso típico: o psicólogo americano Lerner sugeriu
que nós explicamos o comportamento de alguém na premissa de
que as pessoas somente recebem o que merecem . Essa hipótese
chegou a ser conhecida como a hipótese do mundo justo . Ele vê
isso como uma maneira quase natural de pensar. Os psicólogos
canadenses Guimond e Simard tentaram concretizar essa teoria e
não se surpreenderam ao descobrir que tal atitude era principal-
mente a das pessoas pertencentes, em sua grande maioria, à clas se
dominante. Por outro lado, não existia nenhum traço dela entre os
que pertenciam às minorias ou classes desprivilegiadas. Falando
mais claramente, eles conseguiram mostrar que os canadenses de
fala inglesa tendiam a ver os canadenses franceses como res-
ponsáveis por sua situação e apresentavam explicações individu-
alísticas. Os canadenses de fala francesa, contudo, mostravam
que os responsáveis eram os canadenses ingleses e suas explica-
ções envolviam a própria estrutura da sociedade.
Se podemos tomar um experimento de laboratório como um
exemplo do que acontece na sociedade, temos a possibilidade de ir
mais adiante nessas descobertas. Classes dominantes e domi nadas
não possuem uma representação igual à do mundo que elas com-
partilham, mas o vêem com olhos diferentes, julgam-no de acordo
com critérios específicos e cada uma faz isso de acordo com suas
próprias categorias. Para as primeiras o indivíduo é que é respon-
sável por tudo o que lhe acontece e especialmente por seus fra-
cassos. Para as segundas, os fracassos se devem sempre às cir-
cunstâncias que a sociedade cria para o indivíduo. E nesse exato
sentido que a expressão causalidade de direita/de esquerda (uma
87
expressão que é tão objetiva e científica como as dualidades al-
to/baixo, pessoa/ambiente, etc.) pode ser aplicada a casos con-
cretos.

Conclusões

Pelo fato de se restringir a um indivíduo e a um quadro de refe-


rência indutivo, a teoria de atribuição se mostrou menos útil do
que poderia ter sido. Esse estado de coisas poderia ser melhorado
nos seguintes pontos: a) através da mudança da esfera individual
para a esfera coletiva; b) através do abandono da idéia de ser hu-
mano como um estatístico e da relação mecanicista entre o ser hu-
mano e o mundo; c) pela re-colocação das representações sociais
como mediadoras necessárias.
Algumas sugestões já foram dadas no sentido de melhorar a
teoria (Hewstone & Jaspars, 1982). Devemos, contudo, ter em
mente que a causalidade não existe por si mesma, mas somente
dentro de uma representação que a justifique. Nem devemos es-
quecer que quando nós consideramos duas causalidades, nós te-
mos também de considerar a relação entre elas. Em outras pala-
vras, nós devemos sempre procurar aquelas sobre causas que pos-
suem uma ação dual, tanto como causas agentes como causas efi-
cientes, que constituem essa relação. Todas nossas crenças, pro -
cessos de pensamento e concepções do mundo possuem uma
causa desse tipo à qual nós apelamos como último recurso. É nisso
que colocamos nossa confiança e é a ela que nós invocamos em
todas as circunstâncias. O que eu tenho em mente são palavras
tais como Deus , Progresso , Justiça , História . Estas pala-
vras se referem a uma entidade ou a um ser dotado com status so-
cial agindo tanto como causa e como fim. As palavras são impor-
tantes, pois respondem por tudo o que acontece em cada esfera
possível de realidade. Não há dificuldade em identificá-las, mas eu
penso que seria uma tarefa difícil explicar a parte que elas desem-
penham e seu extraordinário poder.

Estou convencido de que, cedo ou tarde, nós conseguiremos


uma idéia mais clara de causalidade. E eu consideraria nossas in-
vestigações atuais concluídas, mesmo que seu objetivo último
não fosse alcançado quando os psicólogos dominarem uma lin-
88
guagem comum que os possibilitasse estabelecer uma concor-
dância entre as formas de pensamento dos indivíduos e o conteú-
do social destes pensamentos.

6. Um levantamento das primeiras pesquisas realizadas


em representações sociais

61. Alguns temas metodológicos comuns e ligações com outras ciên-


cias sociais
O corpo de pesquisa em que essas teorias estão baseadas e de
onde elas surgiram é relativamente restrito. Mas isso é tudo o que
temos até agora. Seja qual tiver sido o objetivo especifico dessas
pesquisas, elas compartilharam, contudo, os quatro princípios
metodológicos seguintes:

a) Obter o material de amostras de conversações normalmente


usadas na sociedade. Algumas dessas partilhas tratam de tópicos
importantes, enquanto outras se referem a tópicos que podem ser
estranhos ao grupo - alguma ação, acontecimento ou personalida-
de, com que ou quem as pessoas se surpreendessem, exclaman-
do: Do que se trata, afinal? , Por que aconteceu isso? , Por
que ele fez isso? , Qual o propósito de tal ação? - mas tudo ten-
dendo a um acordo mútuo. Tarde (1910) foi o primeiro a afirmar
que opiniões e representações são criadas no curso de conver-
sações, como maneiras elementares de se relacionar e se comu-
nicar. Ele demonstrou como elas emergem em lugares especial-
mente reservados (tais como salões, cafés, etc.); como elas são de-
terminadas pelas dimensões físicas e psicológicas desses encon-
tros entre indivíduos (Moscovici, 1961/1967) e como elas mu-
dam como passar do tempo. Ele até elaborou um plano para a ci-
ência social do futuro, que seria um estudo comparativo de co n-
versações. Na verdade, as interações que ocorrem natural mente
no decurso das conversações possibilitam os indivíduos e os gru-
pos a se tornarem mais familiarizados com objetos e idéias in-
compatíveis e desse modo poder lidar com eles (Moscovici,
1976). Tais infra-comunicações e pensamento, baseados no
boato, constituem um tipo de camada intermediária entre a vida
pública e a privada e facilitam a passagem de uma para a outra.
Em outras palavras, a conversação está no centro de nossos uni-
versos consensuais, porque ela configura e anima as representa
89
sociais e desse modo lhes dá uma vida próp ria.

b) Considerar as representações sociais como meios de re-criar


a realidade. Através da comunicação, as pessoas e os grupos con-
cedem uma realidade física a idéias e imagens, a sistemas classifi-
cação e fornecimento de nomes. Os fenômenos e pessoas com que
nós lidamos no dia-a-dia não são, geralmente, um material bruto,
mas são os produtos, ou corporificações, de uma coletividade, de
uma instituição, etc. Toda a realidade é a realidade alguém, ou é
uma realidade para algo, mesmo que seja a de laboratório onde
nós fazemos nossos experimentos. Não seria lógico pensar esses
fenômenos de outro modo, tirando-os do contexto maioria dos
problemas que nós enfrentamos, no curso de nossa caminhada
social ou intelectual, não provém da dificuldade de presentear coi-
sas ou pessoas, mas do fato que elas são representações, isto é,
substitutos para outras coisas e outras pessoas. Antes de entrar,
pois, em um estudo especifico, devemos averiguar origens do o b-
jeto e considerá-lo como uma obra de arte e como matéria-prima.

Para ser preciso, contudo, deve-se dizer que se trata de re-


feito, re-construído e não de algo recém-criado, pois, por lado, a
única realidade disponível é a que foi estruturada pelas gerações
passadas ou por outro grupo e, por outro lado, nós a re-
produzimos no mundo exterior e por isso não podemos evitar a
distorção de nossas imagens e modelos internos. O que nós cria-
mos, verdade, é um referencial, uma entidade à qual nós nos refe-
rimos que é distinta de qualquer outra e corresponde a nossa re-
presentação dela. E sua repetição - seja durante uma conversação,
ou ambiente (por exemplo, um complexo , um sintoma, etc.) -
garante sua autonomia, diferentemente de um ditado que se toma
dependente da pessoa que o disse pela primeira vez depois que
repetido muitas vezes. O resultado mais importante dessa re -
construção de abstrações em realidades é que elas se tornam se-
paradas da subjetividade do grupo, das vicissitudes de suas intera-
ções e conseqüentemente, do tempo, e adquirem, portanto, per-
manência e estabilidade. Isoladas do fluxo de comunicações que as
deduziu, elas se tomam tão independentes delas como uma cons-
trução se torna independente do plano do arquiteto ou dos an-
daimes empregados em sua construção.

90
Poderia ser útil apontar algumas distinções que devem ser le-
vadas em consideração. Algumas representações se referem a fa-
tos, outras a idéias. As primeiras transportam seu objeto de um
nível abstrato para um nível cognitivo concreto; as segundas, atra-
vés de uma mudança de perspectiva, tanto compõem, como de-
compõem seu objeto - elas podem, por exemplo, apresentar as bo-
las de bilhar como uma ilustração do átomo ou considerar uma
pessoa, psicanaliticamente falando, como dividida em um cons-
ciente e em um inconsciente. Ambas, contudo, criam quadros de
referência pré-estabelecidos e imediatos para opiniões e percep-
ções, dentro dos quais ocorrem automaticamente reconstruções
objetivas tanto de pessoas, como de situações e que subjazem à
experiência e ao pensamento subjetivos. O que é surpreendente e
que deve ser explicado não é tanto o fato de que tais reconstruções
são sociais e influenciam a todos, mas antes que a sociabilidade as
exige, expressa nelas sua tendência de posar como não-sociabili-
dade e como parte do mundo natural.

c) Que o caráter das representações sociais é revelado especial-


mente em tempos de crise e insurreição, quando um grupo, ou suas
imagens, está passando por mudanças. As pessoas estão, então,
mais dispostas a falar, as imagens e expressões são mais vivas, as
memórias coletivas são excitadas e o comportamento se torna mais
espontâneo. Os indivíduos são motivados por seu desejo de enten-
der um mundo cada vez mais não-familiar e perturbado. As repre-
sentações sociais se mostram transparentes, pois as divisões e bar-
reiras entre mundos privado e público se tornaram confusas. Mas a
crise pior acontece quando as tensões entre universos reificados e
consensuais criam uma ruptura entre a linguagem dos conceitos e a
das representações, entre conhecimento científico e popular. É
como se a própria sociedade se rompesse e não houvesse mais
maneira de preencher o vazio entre os dois universos. Essas ten-
sões podem ser o resultado de novas descobertas, novas concep-
ções, sua popularização na linguagem do dia-a-dia e na consciência
coletiva - por exemplo, a aceitação, pela medicina tradicional, de
teorias modernas, tais como a psicanálise e a seleção natural. Es-
sas tensões podem ser seguidas por revoluções concretas no sen-
so comum, que não são menos importantes que as revoluções cien-
tíficas. A maneira como ocorrem e re-ligam um universo a outro
joga alguma luz sobre o processo de representações sociais e dá
significado excepcional a nossas investigações.
91
d) Que as pessoas que elaboram tais representações sejam vistas
como algo parecido a professores amadores e os grupos que for-
mam como equivalentes modernos daquelas sociedades de profess o-
res amadores que existiam há mais ou menos um século. Tal é na
natureza da maioria das reuniões não-oficiais, das discussões em
bares e clubes, ou reuniões políticas onde os modos de pensamento
e expressão refletem as curiosidades que são comentadas e os laços
sociais que são estabelecidos nessas ocasiões. Por outro lado, mui-
tas representações provém de trabalhos profissionais que se diri-
gem a esse público amador ; eu estou pensando; em certos peda-
gogos, em popularizadores da ciência e em determinado tipo de
jornalista (Moscovici, 1961/1976), cujos escritos tornam possível
a qualquer um considerar-se um sociólogo, economista, físico,
doutor ou psicólogo. Eu mesmo me vi na pele de um doutor de
Agatha Christie que observa: Tudo bem com a psicologia, se for
deixada para o psicólogo. O problema é que todas as pessoas são
psicólogos amadores hoje em dia. Meus pacientes me dizem exa-
tamente de que complexos e neuroses eles estão sofrendo, sem me
darem a chance de falar (Agatha Christie, 1957).

Ao final de contas, talvez esse trabalho chegue muito tarde.


Na verdade, certo número de teorias minhas concorrem com as de
várias escolas de sociologia e da sociologia do conhecimento em
países de fala inglesa. Farr (1978; 1981) se refere, em alguns arti-
gos, à relação entre as teorias discutidas acima e as teorias de atri-
buição, à construção social da realidade, à etnometodologia, etc.
De outro ponto de vista, contudo, esse trabalho parece chegar pre-
cisamente no momento exato, para uma re-avaliação do campo da
psicologia social em relação às disciplinas a ela relacionadas. (Não
de todo novo, mas novo para a psicologia social.)
Não se pode negar que o programa para uma sociologia do
conhecimento, embora muitas vezes discutido, ainda nem come-
çou a ser concretizado. Na verdade, obras como as de Berger e
Luckmann (1967) se referem a uma teoria das origens do senso
comum e da estrutura da realidade, mas eu creio que essa teoria,
ao contrário da minha, não foi testada. Quanto à etnometodologia,
ela se originou da distinção entre a racionalidade da ciência e a
racionalidade do senso comum, aplicadas à vida cotidiana. Ela
examinou essa distinção, separando, porém, deliberadamente, a
estrutura social e então, à luz de tentativas de restabelecer a uni-
dade do tecido, mostrando as normas e co nvenções sociais que
92
constituem sua continuidade e tessitura. Uma vez mais o resultado
é uma estrutura da realidade que brota de uma escolha de regras e
convenções partilhadas de maneira geral.
Quanto a mim, por outro lado, achei mais compensador tirar
proveito das rupturas que ocorrem naturalmente e que revelam
tanto a propensão dos indivíduos e dos grupos para intervir na se-
qüência normal dos acontecimentos e para modificar seu desen-
volvimento e quanto eles conseguem seu objetivo. Desse modo,
não são apenas as regras e convenções que vêm à luz, mas tam-
bém as teorias em que elas estão baseadas e as linguagens que
as expressam. Na minha opinião, isso é essencial — as regularida-
des e equilíbrios sociais aparecem em uma representação comum
e não podem ser compreendidos separadamente. Além do mais, o
trabalho de construção em que os sociólogos estão interessados
em nossas sociedades consiste principalmente em um processo
de transformação de um universo reificado para um universo con-
sensual, ao qual tudo o mais está subordinado.
Escolhi esses dois exemplos para enfatizar as afinidades, mas
outros poderiam ser acrescentados. O que eles todos têm em co-
mum é sua preocupação com as representações sociais e os inves-
tigadores fariam bem em lembrar-se do aviso de Durkheim: Sen-
do a observação reveladora da existência de um tipo de fenômeno
conhecido como representação, com características especificas
que o distinguem de outros fenômenos naturais, é inútil compor-
tar-se como se o fenômeno não existisse (Durkheim, 1895/1982).
Grande parte da imaginação sociológica está preocupada,
hoje, com universos consensuais, ao ponto, quase, de mais ou me-
nos se restringirem a eles. Tal atitude pode ser justificada pelo fato
de eles estarem preenchendo um vazio deixado pela psicologia so-
cial. Mas seria melhor se houvesse um reagrupamento de discipli-
nas ao redor desse tipo de fenômeno conhecido como represen-
tação , esclarecendo a tarefa da sociologia e dando a nossa disci-
plina a amplitude de visão de que ela urgentemente necessita.

6.2. Breve revisão de alguns dos principais campos de estudo

Numa publicação recente, tive a satisfação de mostrar que, fi-


nalmente, os psicólogos americanos estão preparados para reco-
93
nhecer, embora sem concretamente dar-lhes o nome, a importân-
cia das representações sociais. Tais teorias tácitas, globais, jun-
tamente com muitas teorias mais especificas, incluindo teorias
sobre indivíduos específicos ou classes de indivíduos, governam;
nossa compreensão ou comportamentos, nossa explicação causal
do comportamento passado e nossas predições de comportamen-
tos futuros (Nisbett & Ross, 1980).

Ou, podemos acrescentar, servem para ocultar, ignorar e subs-


tituir o comportamento. E sendo que Gedankenexperiments o Ge-
dankenbehaviours são pelo menos tão importantes na vida cotidia-
na, como o são na ciência, seria um erro ignorá-los, simplesmente
porque eles não explicam, nem predizem nada. Mas a falta de in-
teresse por tudo, exceto pelo que for escrito em inglês ou por
experimentos feitos em outro país - uma falta de interesse que, há
uma geração, teria desqualificado qualquer professor, seja nos
Estados Unidos ou em qualquer outro lugar - os levaria afirmar com
confiança total:
Houve, surpreendentemente, pouca pesquisa sobre crenças e teor nas
partilhadas pela massa da população, em nossas culturas.
Heider (1958) foi talvez o primeiro a enfatizar sua impor-
tância e Abelson (1968) foi o primeiro (e quase o único) investiga-
dor a tentar estudá-los empiricamente. O pouco de pesquisa realiza-
do sobre teorias das pessoas focalizou diferenças individuais na crença e
teorias (Nisbett & Ross, 1980).

Acontece, porém, que, exatamente por esse tempo, a pesquisa


sobre teorias das pessoas estava florescendo e produzindo resul-
tados amplamente apreciados. Não estou dizendo que tal pes quisa
era superior à pesquisa mencionada, ou mesmo excelente em si
mesma, mas estou dizendo que ela existia e não estava restrita ao
estudo das diferenças individuais . Se os pesquisadores em nosso
campo continuam a ver a totalidade da ciência repre sentada ape-
nas pela ciência de seu país, existirá sempre um Joe Bloggs ou um
Jacques Dupont para inventar tudo, do mesmo modo que o Ivan Po-
poff antes deles. Isso é algo que podemos perfeita mente dispen-
sar.
Como dissemos, é durante o processo de transformação que
os fenômenos são mais facilmente percebidos. Por isso nos con-
centramos na emergência das representações sociais, provenham
94
elas de teorias cientificas - seguindo suas metamorfoses dentro de
uma sociedade e a maneira como elas renovam o senso comum -
ou originem-se de acontecimentos correntes, experiências e co-
nhecimento objetivo , que um grupo tem de enfrentar a fim de
constituir e controlar seu próprio mundo.
Ambos os pontos de partida são igualmente válidos, pois, em
um caso, é uma questão de observar o efeito de uma mudança de
um nível intelectual e social para outro e no outro, de observar a
organização de um conjunto de objetos quase-materiais e de ocor-
rências ambientais que uma representação implícita normalmente
oculta. Os mecanismos envolvidos são, contudo, idênticos.
O senso comum está continuamente sendo criado e re-criado
em nossas sociedades, especialmente onde o conhecimento cien-
tífico e tecnológico está popularizado. Seu conteúdo, as imagens
simbólicas derivadas da ciência em que ele está baseado e que,
enraizadas no olho da mente, conformam a linguagem e o compor-
tamento usual, estão constantemente sendo retocadas. No proces-
so, a estocagem de representações sociais, sem a qual a sociedade
não pode se comunicar ou se relacionar e definir a realidade, é rea-
limentada. Ainda mais: essas representações adquirem uma auto-
ridade ainda maior, na medida em que recebemos mais e mais
material através de sua mediação - analogias, descrições implícitas
e explicações dos fenômenos, personalidades, a econo mia, etc.,
juntamente com as categorias necessárias para compre ender o
comportamento de uma criança, por exemplo, ou de um amigo.
Aquilo que, a longo prazo, adquire a validade de algo que nossos
sentidos ou nossa compreensão percebem diretamente, passa a
ser sempre um produto secundário e transformado de pesquisa
cientifica. Em outras palavras, o senso comum não circula mais de
baixo para cima, mas de cima para baixo; ele não é mais o ponto de
partida, mas o ponto de chegada. A continuidade, que os filósofos
estipulam entre senso comum e ciência, ainda existe, mas não é
o que costumava ser.
A difusão da psicanálise na França forneceu um exemplo prá-
tico para começar nossas investigações sobre a gênese do senso
comum. Como conseguiu a psicanálise penetrar as várias camadas
de nossa sociedade e influenciar sua cosmovisão e comporta-
mento? Que modificações sofreu ela a fim de conseguir isso? Nós
investigamos, metodicamente, as maneiras pelas quais suas teo-
rias se ancoraram e objetivaram, como um sistema de classifica-
ção e de nominalização de pessoas e comportamentos foi elabora-
95
do, como uma nova linguagem foi criada a partir de termos psi-
canalíticos e a tarefa desempenhada pela bi-causalidade no pensa-
mento normal. Além disso, explicamos como uma teoria passa de
um nível cognitivo a outro, tornando-se uma representação social.
Nós, naturalmente, levamos em consideração os fundamentos po-
líticos e religiosos, enfatizamos seu papel em tais transições. Fi-
nalmente, nossa investigação nos possibilitou especificar a ma-
neira como uma representação molda a realidade em que v ive-
mos, cria novos tipos sociais - o psicanalista, o neurótico, etc. - e
modifica o comportamento em relação a essa realidade.
Simultaneamente, estudamos o problema dos meios de co-
municação de massa e seu papel no estabelecimento do senso co -
mum. Nesse caso, o senso comum pode ser elevado à função de
uma ideologia dominante. Pois esse é o status da psicanálise na
França de hoje: comparável, em qualquer ponto, ao de um credo
oficial, tornou-se claro, ao menos no que se refere à evolução, que
a presença de uma representação social constitui um pressuposto
necessário para a aquisição de tal status. Ainda mais: pudemos
estabelecer, mais ou menos definitivamente, a ordem das três fa-
ses da evolução: a) a fase científica de sua elaboração, a partir de
uma teoria, por uma disciplina cientifica (economia, biologia,
etc.); b) a fase representativa , em que ela se difunde dentro de
uma sociedade e suas imagens, conceitos e vocabulário são difun-
didos e adaptados; c) a fase ideológica, em que a representação é
apropriada por um partido, uma escola de pensamento ou um ór-
gão do estado e é logicamente reconstruída, de tal modo que um
produto, criado pela sociedade como um todo, pode se legitimar
em nome da ciência. Toda ideologia possui, pois, esses dois ele-
mentos: um conteúdo, derivado da base e uma forma, que provém
de cima, que dá ao senso comum uma aura científica. Outras in-
vestigações se interessaram com teorias mais científicas (Acker-
mann & Zygouris, 1974; Barbichon & Moscovici, 1965) e nossos
achados contribuíram para a formulação de uma teoria mais geral
de popularização do conhecimento científico (Roqueplo, 1974).
Numa segunda série de estudos, nós examinamos mais espe-
cificamente a dinâmica das mudanças técnicas e teóricas. Em pou-
cas palavras, durante os anos de 1950 a 1960, uma grande difusão
de técnicas e teorias médicas surgiu na França, como resultado de
um crescimento no consumo médico. Juntamente com uma
nova relação médico-paciente, uma atitude totalmente nova com
respeito à saúde e ao corpo foi rapidamente transformando ima-
96
gens e teorias antigas. Uma das primeiras a estudar essa situação
foi Claudine Herzlich, em seu trabalho sobre as representações da
saúde e da doença. Seu objetivo era enfatizar o surgimento de um
sistema de classificação e interpretação de sintomas, como res-
posta ao que algum dia será reconhecido como uma revolução
cultural em nossas visões de saúde, doença e morte (Herzlich,
1973). Se alguém sente saudade pelo desaparecimento da morte
de nossa consciência e de nossos rituais, a causa disso remonta ao
tempo em que a confiança nos poderes científicos da medicina foi
estabelecida.

Um estudo posterior tratou das representações sociais do


corpo. Ele mostrou que nossas percepções e concepções do
corpo não eram mais adequadas à realidade que ia surgindo e que
uma revolução importante era inevitável. Analisamos, por isso,
essas representações; e no decorrer da caminhada, sob a influên-
cia dos movimentos de jovens, do movimento de libertação das
mulheres e a difusão da biodinâmica, etc., as maneiras de ver e ex-
perienciar o corpo foram transformadas radicalmente. Retomando
novamente nossa investigação depois que essa mudança profunda
de representações tinha ocorrido, pudemos tirar proveito de algo
parecido com um experimento natural. De fato, tendo acontecido
uma revolução cultural importante, nós estávamos em situação de
poder observar seus efeitos, passo a passo, e comparar o que nós
tínhamos observado anteriormente, com o que estava agora acon-
tecendo. Em outras palavras, nós começamos a perceber o proble-
ma da modificação nas representações sociais e sua evolução.
Isso constitui o centro do trabalho de Denise Jodelet (Jodelet &
Moscovici, 1975) no momento presente. Ela, porém, estava muito
bem preparada para tal investigação devido a seu estudo com do -
entes mentais, colocados entre os habitantes de várias aldeias
francesas. Pela observação desse projeto pelo período de dois anos,
Jodelet foi capaz de descrever, com grande detalhe, o desenvolvi-
mento das relações entre os aldeões e os pacientes e como Mosco-
vici, por sua própria natureza, deu chance a discriminações, quan-
do tentou situar , em um mundo familiar, os pacientes mentais
cuja presença era eminentemente perturbadora. Essas discrimi-
nações, além do mais, estavam baseadas em um vocabulário e em
representações sociais que tinham sido pormenorizadamente ela-
boradas pelas pequenas comunidades. Essas comunidades se sen-
tiram, de certo modo, ameaçadas pelos seres indefesos que tinham
97
sido colocados em seu meio, devido à própria infelicidade e à rotina
institucional.
Finalmente, um estudo totalmente original de René Kaes (1976),
sobre psicoterapia de grupo, mostra, de um lado, como tais grupos
produzem certos tipos de representação, relacionada com o que
constitui um grupo e como ele funciona; de outro lado, como tais
representações refletem a evolução do grupo. Não há dúvida que
eles têm uma significância cultural, se não cientifica, e é até certo
ponto surpreendente vê-los surgir em tais circunstâncias. Perma-
nece, contudo, o fato de que tais representações canalizam o fluxo
de emoções e de relações interpessoais flutuantes.
O trabalho de Denise Jodelet, em colaboração com Stanley
Milgram (Jodelet & Milgram, 1977; Milgram, 1984), sobre as ima-
gens sociais de Paris, mostra que o espaço urbano, ou a matéria-
prima do dia-a-dia, é totalmente determinado pelas represen-
tações e não é, de nenhum modo, tão artificial como estamos aco s-
tumados a crer. Além do mais, esse estudo confirma nossa afirma-
ção que o pensamento é uma atmosfera social e cultural, pois nada
pode estar mais grávido de idéias, do que uma cidade. As teorias
expressas nas primeiras quatro secções desse trabalho foram
comprovadas por esta primeira geração de investigações.! Outras,
inspirando-se na cultura (Kaes, 1968), em relações inter grupais
(Quaglino, 1979), em métodos educacionais (Gorin, 198O), etc. ela-
boraram alguns aspectos que nós omitimos, enquanto es tudos das
representações da criança enfatizaram a importância heurística
do sujeito como um todo (Chombart de Lauwe, 1971).

7. O status das representações: estímulos ou mediado-


res?

7.1. Representações sociais como variáveis independentes


J.A. Fodor escreve:
Um dos argumentos principais deste livro foi que, se você
quer saber que resposta um dado estimulo irá evocar, você
deve descobrir que representação interna o organismo irá
designar para o estímulo. Evidentemente, o caráter de tais de-
signações deve, por sua vez, depender de que tipo de sistema re-
98
presentacional está disponível, para medrar os processos cognitivos
do organismo (Fodor, 1975).

Uma preocupação saudável, tanto para com a teoria, como para


com o fato das representações, pode ser observada agora em qua-
se todos os lugares. Assim, o que acontece dentro de uma socieda-
de, tornou-se uma pré-ocupação importante, muito mais do que
simplesmente saber como ela cria e transforma a atmosfera. Mas,
apesar desta preocupação existir, é, não obstante, essencial para
proteger contra as tradicionais meias-medidas como as que su-
põem a injeção de um mínimo de subjetividade e pensamento na
caixa preta dos nossos cérebros ou simplesmente adicionam um
pouco mais de espírito ao nosso mundo desumanizado, mecaniza-
do.
De fato, se o texto de Fodor - que congrega uma extensa varie-
dade de escritos - é lido com certa atenção, o uso de duas palavras
acabam por assombrar: interna e medial . Estes termos impli-
cam que as representações substituem o fluxo de informações que
chegam até nós do mundo externo: que as representações são elos
mediadores entre a causa real (estímulo) e o efeito concreto (respos-
ta). Então, os elos são mediadores ou causas aleatórias. Este beha-
viorismo re-condicionado, ao qual nós sempre recosemos em tem-
pos difíceis, é um pedaço inteligente de remendo, mas é um remen-
do ad hoc por definição e não é muito convincente.
Devemos, aqui, sublinhar a posição firme que a teoria das re-
presentações tomou, com respeito a isso: no que concerne à psico-
logia social, representações sociais são variáveis independentes,
estímulos explanatórios. Isto não significa que, por exemplo, no que
concerne à sociologia ou à história, aquilo que para nós é explanató-
rio não seja, para elas, uma explicação 3. É Obvio porque isto deveria
ser assim. Todo estímulo é selecionado de uma grande variedade
de estímulos possíveis e pode produzir uma variedade infinita de
reações. São as imagens e paradigmas preestabelecidos que de-
terminam a escolha e restringem a gama de reações. Quando uma
criança vê o sorriso da sua mãe, ela percebe certo número de dife-

3 Nós discutiremos de novo representações socials depois que nós tivermos delineado as
criticas levantadas sobre o conceito de atitude que e, por definição, uma causa mediadora. Desse
modo, nós esperamos demonstrar a autonomia da psicologia social e inserir no contexto coletivo
uma teoria (isto é, a das atitudes), que se tomou muito individualística. O trabalho de Jaspers &
Fraser (1984) dá muito peso a esse ponto de vista
99
rentes signos - olhos bem abertos, lábios distendidos, movimentos
da cabeça - que a incitam a ficar de pé, gritar, etc. Estas imagens e
paradigmas predizem o que surgirá como estimulo ou resposta ao
ator ou espectador: os braços da criança estendidos em direção ao
rosto sorridente da mãe, ou o rosto sorridente da mãe inclinado em
direção aos braços estendidos da criança.
Reações emocionais, percepções e racionalizações não são
respostas a um estimulo exterior como tal, mas à categoria na qual
nós classificamos tais imagens, aos nomes que nós damos a elas.
Nos reagimos a um estímulo à medida em que, ao menos parcial-
mente, nós o objetivamos e o re-criamos, no momento de sua
constituição. O objeto ao qual nós respondemos pode assumir di-
versos aspectos e o aspecto específico que ele realmente assume
depende da resposta que nós associamos a ele antes de defini-lo. A
mãe vê os braços da criança estendidos para ela e não para uma
outra pessoa, quando ela já está se preparando para sorrir e está
consciente de que seu sorriso é indispensável para a estabilidade
da criança.
Em outras palavras, representações sociais determinam tanto o
caráter do estimulo, como a resposta que ele incita, assim como, em
uma situação particular, eles determinam quem é quem. Conhecê-los e
explicar o que eles são e o que significam é o primeiro passo em toda
análise de uma situação ou de uma relação social e constitui-se em um
meio de predizer a evolução das interações grupais, por exemplo. Na
maioria dos nossos experimentos e observações sistemáticas nós, de
fato, manipulamos representações quando pensamos que estamos
manipulando motivações, inferências e percepções e é somente por-
que não as levamos em consideração, que estamos convencidos do
contrário. O laboratório mesmo, para onde uma pessoa se dirige para
ser objeto de um experimento, representa para ela e para nós o protó-
tipo de um universo reificado (cf. o capítulo de Farr). A presença do
aparato, a forma como o espaço é organizado, as instruções que ela
recebe, a natureza mesma do empreendimento, a relação artificial
entre o experimentador e o sujeito e o fato de que tudo isso ocorre no
contexto de uma instituição e sob a égide da ciência, tudo isso repro-
duz muitas características essenciais de um universo reificado. Está
muito claro que a situação determina tanto as questões que vamos
formular, como as respostas que elas vão fornecer.

100
Figura 1.1 -Modelos de representação

Idéia corrente
Estimulo
Representação
Resposta

Idéia proposta
Estimulo

Representação

Resposta

7.2. Representações sociais em situações de laboratório


Algumas investigações buscaram restabelecer sentidos e re-
presentações em situações de laboratório e, tanto quanto possí-
vel, corroborar o postulado teórico da sua autonomia, sem o que o
experimento e a teoria perderiam muito do seu significado. Em
1968, Claude Faucheux e eu tentamos provar que representações
modelam nosso comportamento, no contexto de um jogo compe-
titivo. Nós baseamos nosso experimento em jogos familiares de
cartas. A única variante que nós introduzimos era que a alguns
dos sujeitos era dito que jogavam contra a natureza , enquanto
que a outros era dito que seu adversário era o acaso . O primeiro
termo evoca uma imagem do mundo mais tranqüilizadora, com-
preensível e controlável, enquanto a idéia de acaso, enfatizada
aqui pela presença de um baralho, lembra adversidade e inevoca-
bilidade. Como nós prevíamos, a escolha dos sujeitos e especial-
mente seus comportamentos diferiam de acordo com a represen-
tação do seu oponente. Assim, a maioria dos sujeitos confronta dos
com a natureza gastaram algum tempo estudando as regras e
montando algum tipo de estratégia; ao passo que aqueles sujeitos
que enfrentaram o acaso concentraram sua atenção no baralho,
tentando adivinhar qual carta seria jogada e não se preocuparam
101
com as regras do jogo. Os números falam por si só: 38 dos 4O que
jogavam contra a natureza foram capazes de racionalizar as re-
gras, enquanto somente 12 dos outros 4O foram capazes de
fazê-lo (Faucheux & Moscovici, 1968).

Desse modo, nossas representações internas, que herdamos


da sociedade, ou que nós mesmos fabricamos, podem mudar nos-
sa atitude em relação a algo fora de nós mesmos. Juntamente com
Abric e Plon (Abric et a1., 1967), nós realizamos outra variação
deste experimento. Aqui, um grupo era instruído para jogar contra
um computador e as escolhas que fariam seriam programadas. O
computador, assim como eles, tentaria acumular o máximo de
pontos. O objetivo do outro grupo era idêntico, mas, neste, eram
instruídos a jogar contra um outro estudante, igual a eles, cujas
escolhas lhes seriam comunicadas por telefone. Uma vez mais nós
observamos estratégias e racionalizações diferentes e até mesmo
contrastastes, de acordo com o grupo. Compreensivelmente, emer-
giu uma relação mais cooperativa como outro, do que com o com-
putador. Outros experimentos realizados por Codol (Codol, 1974)
relativos ao processo de ancoragem de várias representações do
self , do grupo e da tarefa a ser executada, lançaram uma luz pe-
culiar, na sua variedade e impacto, em uma situação competit i-
va. Abric (1976), em um experimento muito ambicioso e sistemá-
tico, dissecou cada uma dessas representações e mostrou por que
eles se comportaram da maneira que o fizeram. Um relato da ex-
tensa gama de resultados obtidos será publicado em breve.

Numa outra série de experimentos igualmente convincentes


e sem problemas, Flament, em colaboração com Codol e Rossig nol
(Codol & Flament, 1971; Rossignol & Flament, 1975; Rossig nol
& Houel, 1976), consideraram o mesmo problema em um outro
nível mais importante. De fato, a psicologia social está bas tante
preocupada com a descoberta dos assim chamados mecanismos
universais que, inscritos nos nossos cérebros ou nas nos sas glân-
dulas, supostamente determinam cada uma de nossas ações e
pensamentos. Eles ocorrem na sociedade, sem serem sociais. Mais
ainda, eles são mecanismos formais muito desconec tados de um
conteúdo individual ou coletivo de qualquer tipo, ou mesmo da
história responsável por tal conteúdo. Um desses mecanismos
supostamente único e universal é o da coerência e estabilidade.
102
Ele sugere que indivíduos tentam organizar suas cren ças em es-
truturas internamente coerentes. Conseqüentemente, nós pre-
feriríamos estruturas estáveis às instáveis. O postulado implícito
pode ser colocado assim: relações interpessoais positivas e nega-
tivas são determinadas pelo princípio da estabilidade. As duas
proposições que o sintetizam - Os amigos dos meus amigos são
meus amigos e Os inimigos dos meus inimigos são meus amigos
- servem como leis imutáveis, separadas de qual quer sentido im-
plícito e independentes de qualquer circunstância particular.
Em outras palavras, os dois ditos axiomatizados formam a base de
uma sintaxe de relações entre pessoas e determinam sua própria
semântica e pragmática.

Sem dúvida, já era óbvio antes de Flament que tais proposi-


ções aplicam-se somente a objetos que tenham um quadro de
referência comum, ou que estão situados ao longo de uma dimen-
são cognitiva (Jaspers, 1965). Mas o uso que Flament fez da teoria
das representações sociais lhe possibilitou ir mais longe e mais a
fundo. Para começar, ele mostrou que cada indivíduo que tivesse
que avaliar a relação entre vários outros indivíduos possui uma
gama de representações do grupo ao qual eles pertencem e do tipo
de elos que existem entre eles. Estas podem ser convencionais ou
até mesmo um pouco míticas (e.g. o grupo fraternal ou Rousseau-
niano, etc.). O princípio de estabilidade caracterizará tais relações
somente se a pessoa já tem em mente a noção de um grupo básico,
igualitário e amigável. Então, ela tentará formar uma opinião co e-
rente dos membros que o constituem. Em outras palavras, é so-
mente em um contexto social desse tipo que os amigos dos meus
amigos serão necessariamente meus amigos . Em tais casos, o
princípio da cognição e afetividade de Heider expressa so mente as
normas coletivas e os elos internos do grupo particular, mas não
uma tendência geral. De fato, Flament mostra com propriedade
que é a representação de tal princípio que dá proeminência parti-
cular a afabilidade e ao igualitarismo dos seus membros e não o
contrário. Nas representações de um tipo diferente de gru po, afa-
bilidade e igualitarismo não estão necessariamente ligados e não
têm a mesma significação. Por fim, parece que a função do princí-
pio de estabilidade consiste em criar um paradigma social de
relacionamentos interpessoais positivos e negativos e que a sua
significação depende deste paradigma. O que simplesmente quer
dizer que o principio do equilíbrio, longe de determinar, é ele
103
mesmo determinado pela forma como o contexto das relações
interpessoais foi representado. E não é realmente de se surpreen-
de que isto não tenha aparecido antes.
Muitos estudos contemporâneos em psicologia social tomam
como seu paradigma este grupo de pessoas de opinião igual, que
tendem a ter opiniões e gostos semelhantes e anseiam por evitar
conflitos e aceitar o status quo. Mas o que eles não percebem é
fato de que tal grupo é uma materialização da noção tradicional
mítica, de uma comunidade ideal. Neste caso, a tendência em rea-
ção à estabilidade e coerência pode bem ser vista como um fato -
determinante dos relacionamentos interpessoais. Mas se nós com-
pararmos esta representação social do grupo com outras, nós logo
nos daremos conta que estas tendências gerais são realmente
peculiares a ele, que nós trocamos o efeito pela causa. As indaga-
ções realizadas por Flament e a sua equipe de Aix-en-Proven nos
tornaram possível a reinterpretação das teorias de Heider, através
de uma reavaliação que leva em conta a dimensão social e histórica
das nossas percepções e opiniões dos outros.
Mas nos referimos somente a um número restrito de experi-
mentos. Mesmo assim, cada um deles prova, no seu campo espe-
cífico (competição, consciência de out ros, etc.), que o nosso pos-
tulado tem uma ampla significação. Mais do que motivações, as-
pirações, princípios cognitivos e os outros fatores que são habitu-
almente apresentados são as nossas representações que em últi-
ma instância determinam nossas reações e as suas significações
são, assim, as de uma causa real. Através delas, a sociedade se
comporta de certa forma como Marcel Duchamp; como esse pin tor
com os seus objetos já-feitos, ela põe a sua assinatura nos pro-
cessos feitos-pela-sociedade e assim modifica seu caráter. Nós es-
peramos ter demonstrado que, na verdade, todos os elementos do
campo psíquico são revertidos, uma vez que a assinatura social te-
nha sido colocada neles.
A lição a ser tirada do que foi dito acima é que a maneira atual
de proceder - que nós devemos a Sherif e que consiste em de-
monstrar como os mecanismos psíquicos se transformam em pro-
cessos sociais - deveria ser revertida. Pois tal é o processo da pró-
pria evolução e, seguindo-o, nós estaremos mais aptos a compre-
endê-lo. É apenas lógico pensar que os processos sociais e públi-
cos foram os primeiros a ocorrer e que eles foram gradualmente
interiorizados até se transformarem em processos psíqui-
cos.Assim, quando nós analisamos processos psicossociais, nós
104
descobrimos que eles são psicossociais. É como se a nossa psico-
logia contivesse a nossa sociologia de uma forma condensada. E
uma das tarefas mais urgentes da psicologia social é descobrir
uma dentro da outra e compreender esse processo de condensa-
ção.

Observações finais

Não posso concluir essa exposição sem mencionar algumas


das implicações mais gerais da teoria das representações sociais.
Em primeiro lugar, o estudo destas representações não deveria per-
manecer restrito a um mero salto do nível emocional para o intelec-
tual. Nelas não deveriam ser vistas como puramente pré- ou anti-
behavioristas. Se este fosse o caso, não haveria razão para insistir
nelas. Não, o que se requer é que examinemos o aspecto simbólico
dos nossos relacionamentos e dos universos consensuais em que
nós habitamos. Porque toda cognição , toda motivação e todo
comportamento somente existem e têm repercussões uma vez
que eles signifiquem algo e significar implica, por definição, que
pelo menos duas pessoas compartilhem uma linguagem comum,
valores comuns e memórias comuns. É isto que distingue o social
do individual, o cultural do físico e o histórico do estático. Ao dizer
que as representações são sociais nós estamos dizendo principal-
mente que elas são simbólicas e possuem tantos elementos percep-
tuais quanto os assim chamados cognitivos. E é por isso que nós
consideramos seu conteúdo tão importante e nos recusamos a dis-
tingui-las dos mecanismos psicológicos como tais.
Em outras palavras, nós verificamos, em várias ocasiões, que a
psicologia social tende a destacar um simples mecanismo, reti rá-
lo do seu contexto e atribuir um valor geral a ele - assim como os
instintos foram uma vez segregados, com uma finalidade seme-
lhante. Alguns destes são pseudomecanismos, tais como estabi-
lidade ou coerência , que parecem explicar o que eles realmente
definem. Uma vez que o pensamento tende naturalmente a substi-
tuir ordem pela desordem, simplicidade pela diversidade, etc.,
afirmar que o pensamento tende em direção á coerência, significa
pouco mais que dizer que o pensamento tende em direção ao pen-
samento.
Outros mecanismos como dissonância , atribuição , rea-
ção , etc. são vistos como universais e são aplicados a todos os
campos sociais, categorias ou conteúdos possíveis. Supõe-se que
105
eles processem determinadas informações e produzam informa-
ções diferentes, sejam quais forem. Ao avaliar a maioria dos estudos
realizados nestas bases, Simon concluiu: Quando os processos
subjacentes a esses fenômenos sociais são identificados; como
eles o são nos capítulos deste livro, particularmente os da segunda
e terceira parte, eles acabam sendo os mesmos processos de in-
formação que nós encontramos em cognições não-sociais (Carroll
& Paine, 1976).
Esta é uma coincidência perturbadora, pois ou o social tem
uma existência e significação que deve produzir certos efeitos, ou o
estudo desses processos de informação, como mecanismos isola-
dos, se constitui em um erro, que cria a ilusão de um contato pos-
sível e fácil com a essência da realidade.
Representações sociais, como teorias cientificas, religiões,
mitologias, são representações de alguma coisa ou de alguém.
Elas têm um conteúdo específico - implicando, esse especifico a-
lém do mais, que ele difere de uma esfera ou de uma sociedade
para outra. No entanto, estes processos são significantes, somente
na medida em que eles revelam o nascimento de tal conteúdo suas
variações. Afinal, como nós pensamos não é distinto daquilo que
pensamos. Assim, nós não podemos fazer uma distinção clara en-
tre as regularidades nas representações e nas dos processos
que as criam. De fato, se nós seguimos os passos da psicanálise e da
antropologia, nós deveríamos achar mais fácil entender o que as
representações e os mecanismos têm em comum.
A segunda implicação - e uma que poderia ter sido prevista
pode ser expressa em poucas palavras: o estudo das representa-
ções sociais requer que nós retornemos aos métodos de observa-
ção. Não tenho a intenção de criticar os métodos experimen tais
como tais. O seu valor é incontestável, para o estudo de fenôme-
nos simples, que possam ser recortados do seu contexto. Mas não é
este o caso das representações sociais que são armazenadas nossa
linguagem e que são criadas em um ambiente bem complexo. Es-
tou muito consciente que vários dos meus colegas menosprezam
observações, que eles consideram como uma abdicação covarde do
rigor cientifico, um signo de prolixidade, preguiça e vagueza. Acho
que eles são extremamente pessimistas psicologia social não é mais
o que ela era meio século atrás.
Desde então, nós começamos a valorizar as exigências da teo-
ria, de uma análise acurada do fenômeno; mas nós também pas-
106
samos a valorizar o inverso, a saber, as limitações das teorias que
explicam somente o que pode ser experimentado e do experimen-
to como algo ao qual a realidade se ajusta. E o que nós exigimos da
observação, é que ela preserve algumas das qualidades do expe-
rimento ao mesmo tempo em que nos liberte de suas limitações.
Ela obteve sucesso, nesta tarefa, para a etnologia, antropologia e
psicologia infantil e nós não vemos razões por que ela não deva
ter os mesmos resultados na psicologia social.
Evidentemente, porém, algo mais do que os méritos compa-
rativos de um ou outro método está em jogo. E isto deve ser dito
sem ambigüidade; deixando de lado os méritos técnicos, o expe-
rimento se prestou para associar exclusivamente a psicologia so-
cial à psicologia geral e para afastá-la da sociologia e das ciências
sociais. Indubitavelmente, esta não foi a intenção dos seus funda-
dores, mas este foi o caminho por onde ela se encaminhou. Ademais,
seus programas de pesquisa e ensino formaram excelentes espe-
cialistas em psicologia, que são, ao mesmo tempo, ignorantes em
sociologia. Um retomo à observação necessitaria um retorno às
ciências humanas. Durante a última década, elas fizeram avanços
significativos e demonstraram que podem ser feitas descobertas
sem rituais obsessivos, a tal ponto que podem existir destinos pio-
res do que o fato de tornar a aderir a eles.
A terceira implicação, que é uma conseqüência natural da se-
gunda, diz respeito à descrição. Durante certo tempo, nós estáva-
mos preocupados somente com os mecanismos explanatórios
para a mudança de atitude, influência, atribuição, etc. sem pensar
muito em coletar dados. Tal coleta era vista como uma atividade
menor, uma prova de preguiça intelectual e até mesmo como uma
inequívoca inutilidade. Delinear hipóteses e verificá-las no labora-
tório parecem ser a palavra de ordem. Mas, ao contrário das apa-
rências, esta palavra de ordem nada tem a ver com a ciência. A
maioria das ciências - da lingüística à economia, da astronomia à
química, da etnologia à antropologia - descrevem fenômenos e
tentam descobrir regularidades, nas quais se possa fundamentar
uma teoria geral. A sua compreensividade consiste principalmente
no acúmulo de dados à sua disposição e o significado das regulari-
dades revelaram que teorias interpretar a seguir. Não desejo ana-
lisar aqui as razões desta palavra de ordem, nem suas conse-
qüências negativas para a nossa disciplina. Quaisquer que sejam
as razões, permanece o fato de que somente uma descrição cuida-
dosa das representações sociais, da sua estrutura e da sua evolu-
107
ção nos vários campos, nos possibilitará entendê-las e que uma
explicação válida só pode provir de um estudo comparativo de tais
descrições. Isto não implica que nós devemos descartar a teoria,
substituindo-a por uma acumulação insensata de dados, mas que
o que nós queremos é uma teoria baseada em observações ade-
quadas e que seja a mais acurada possível.
Por fim, a quarta implicação diz respeito ao fator tempo. As
representações sociais são históricas na sua essência e influenci-
am o desenvolvimento do indivíduo desde a primeira infância,
desde o dia em que a mãe, com todas as suas imagens e conceitos,
começa a ficar preocupada com o seu bebe. Estas imagens e con-
ceitos são derivadas dos seus próprios dias de escola, de progra-
mas de rádio, de conversas com outras mães e com o pai e de ex-
periências pessoais e elas dete rminam seu relacionamento com a
criança, o significado que ela dará para os seus choros, seu com-
portamento e como ela organizará a atmosfera na qual ela crescerá.
A compreensão que os pais têm da criança modela sua personali-
dade e pavimenta o caminho para sua socialização. É por isso que
nós pressupomos: ...que é a transmissão do conhecimento à
criança, muito mais do que o seu comportamento ou as suas habi-
lidades discriminatórias que deve ser o tema central de preocupa-
ção dos psicólogos do desenvolvimento (Nelson, 1974. Veja tam-
bém Palmonari & Ricci Bitti, 1978).
Nossas representações de nossos corpos, de nossas relações
com outras pessoas, da justiça, do mundo, etc. se desenvolvem da
infância à maturidade. Dever-se-ia enfrentar um estudo detalhado
do seu desenvolvimento, estudo que explorasse a forma como
uma sociedade é concebida e experimentada simultaneamente
por diferentes grupos e gerações. Não haveria razão por que ver o
jovem adulto civilizado como o protótipo da raça humana e desse
modo ignorar todos os fenômenos genéticos. E isso nos conduz a
uma visão mais ampla de um elo entre a psicologia do desenvolvi-
mento e a psicologia social, a primeira sendo uma psicologia social
da criança e a segunda, a psicologia do desenvolvimento dos adul-
tos.
Em ambas, o fenômeno das representações sociais tem um
papel central e é isto o que elas têm em comum. Se somássemos a
estes certos aspectos da sociologia da vida quotidiana - que, de
mais a mais, ainda não foi adequadamente formulada -nós po-
deremos reconstruir uma ciência geral que incluiria toda uma

108
galáxia de investigações relacionadas. Percebo isto como uma
materialização concreta de uma observação de Vygotsky: O pro-
blema do pensamento e da linguagem extrapola os limites da ciên-
cia natural e se toma o problema central da sociologia histórica
humana, i.e. da psicologia social (Vygotsky, 1977). Esta seria a
ciência dos universos consensuais em evolução, uma cosmogonia
da existência física humana. Não ignoro as dificuldades de tal em-
preendimento, nem o fato de que ele pode ser impassível, como
também não ignoro a lacuna entre tal projeto e as nossas modes-
tas realizações até o dia de hoje. Mas não posso compreender que
isso seja razão suficiente para não empreendê-lo e não desenvol-
ve-lo, o mais claramente possível, na esperança que outros irão
compartilhar da minha fé nesse projeto.

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