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Aqui estou numa situação singular. Há mais de vinte anos preconizei uma
psicologia social centrada nos fenômenos cognitivos e lingüísticos. E agora que
esta psicologia social tomou forma sob nossos olhos, me forçam a explicar hoje o
que tinha em mente e o que eu queria fazer outrora. E eu não devo fazer aqui
unicamente para vocês, mas para os outros que me desafiam e me apressam a
pegar o bonde “cognitivista” já andando. Como se eu o tivesse abandonado! Como
se tivesse parado de defendê-lo ou interrompido minha pesquisa na direção que eu
mesmo escolhi!
Durante todo este período, a teoria das representações sociais permaneceu
discreta. Meu conceito de representação não fazia parte de uma terminologia
comum. Decerto, desde que eu a havia formulado (Moscovici, 1961) não faltavam
teorias para explicitá-la exatamente e aumentar o seu alcance (Abric, 1970;
Chombart de Lauwe, 1979; Doise, 1976; Faucheux et Moscovici, 1968; Flament,
1984; Herzlich, 1973; Jodelet, 1984; Roqueplo, 1974 etc.) No entanto, a ênfase
que o meu conceito de representação coloca no aspecto cognitivo da realidade
social e a forma de considerar esta realidade eram e continuam incompatíveis com
uma visão positivista da ciência e uma abordagem behaviorista da realidade.
Somente após a publicação de excelente artigo de Farr (1978) que se torna
possível uma ponte entre nossos estudos e aqueles que prosseguiram em outras
áreas. O fato de poder discutir esta situação num curso de verão representa uma
mudança aos meus olhos. Isto me permite esperar que nossas idéias encontrem
uma maior compreensão. No entanto, não alimento grandes ilusões.
As resistências e as incompreensões permanecem numerosas, dado que,
nenhuma mudança sobrevém na visão correntemente aceita da ciência e da
realidade. Talvez, vocês contribuirão para esta mudança necessária.
Neste estado, o conceito de representação, mesmo o de representação social,
não é mais discreto. Ele está a um passo de se tornar um conceito central e
comum a todas as ciências sociais. A história das mentalidades, assunto que
suscita muito interesse, se refere explicitamente (Le Goff, 1974) ao conceito de
representação social e o ilustra brilhantemente. Mas, sobretudo no domínio da
inteligência artificial que o conceito de RS se revela indispensável (Bobrow et
Collins, 1975). É chegado o tempo onde as pessoas falam de uma era de
representações para caracterizar o novo modo de pensar, ao qual os computadores
e sua ciência têm feito nascer (Hofstadter, 1979). E eu creio que o termo se
justifica.
Dado que este curso de verão é dedicado à análise dos fenômenos cognitivos e
que vocês têm certamente descoberto muitas coisas a respeito deste assunto,
inclusive sobre as representações sociais, minha tarefa será menos árdua. Aqui, eu
Texto preparado para estudantes de um curso de verão em psicologia social (Aix-en-Provance, 1981) e
traduzido em inglês sob o título “The comming era of representations” em J.P.Codol e J.P. Leyens:
Cognitive approaches to social behavior, La Haye, M. Nijhoff, 1982, pp. 115-150
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Neste capítulo, não discutirei o que entendemos por social. Nós podemos evidentemente definir social
como toda informação ou reação relativa a uma pessoa antes que a um gato, ou a uma casa, mas isto
será bastante rudimentar. Não é a natureza do objeto que o diferencia de social do não social, mas a
relação que temos com ele. Existem gatos sagrados e casas sagradas e existem seres humanos que
representam menos que objetos para seus médicos, por exemplo. Apagandando a distinção entre
elementos sociais e elementos interpessoais, lançamos a dúvida sobre uma grande parte do trabalho
feito sob a rubrica de cognição social.
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das experiências mentais. Demos um passo na direção correta, mesmo não tendo
ido muito longe.
De qualquer maneira que avaliarmos o que se passa na psicologia, uma coisa é
certa: estas tendências não deveriam nos surpreender. Zajonc (1980) demonstra
isso brilhantemente, afirmando que a psicologia social é cognitiva há muito tempo.
E ele não se enganou. Mesmo o termo “psicologia social cognitiva” é um
pleonasmo. Mas Zajonc tem sobretudo na mente, o primeiro estado do
desenvolvimento que quero vos falar, durante o qual os psicólogos têm acentuado
o caráter racional do comportamento e das relações sociais. Por que eles destacam
a racionalidade? Este destaque não se justificaria? Certamente sim. É sabido que
os primeiros psicólogos sociais que estudaram as massas, os fenômenos de
influência, a propaganda, deram um maior destaque aos fatores emocionais,
afetivos e inconscientes. De fato, aos fatores irracionais. Suas teorias se fizeram
aclamar nos meios reacionários e encontraram sucesso em particular nos meios
nazistas. Não é nada surpreendente que os psicólogos sociais notadamente os
sábios alemães como Lewin (1951) e Asch (1952) tivessem protestado contra esta
maneira de abordar o comportamento e as relações sociais. Lewin se ocupava dos
grupos primários, não das massas, Asch substituiu a doutrina da influência devido
ao prestígio e ao poder sugestivo em tais grupos, pela análise racional dos
processos de influência. Nestes estudos é resgatada uma visão de homem como
animal racional. Daí por diante, o comportamento e o pensamento humano foram
estudados em um enquadramento social. Nestas condições, é fácil de compreender
porque os fenômenos cognitivos pareciam estar no coração desta nova psicologia
social em sua segunda pátria – os EUA. Portanto, se observamos as coisas mais de
perto, vemos que os fenômenos cognitivos já estavam presentes numa antiga
abordagem em ligação com os fenômenos de atitude. E tudo girava em torno
delas.
Sem querer substituir os futuros historiadores de nossa ciência, adoraria fazer
dois destaques neste assunto. De um lado, as atitudes são definidas como
estruturas cognitivas: do espírito social voltado para os valores e dos estados de
disponibilidade organizados através da experiência. É verdade que sob a influência
do behaviorismo este estado mental foi mais bem estudado, entretanto ele não
desapareceu inteiramente. De outro lado, as atitudes são a coluna vertebral de
todas as outras manifestações psíquicas: percepções, julgamentos e
comportamentos. Assim, a maior parte das teorias tratava da estrutura e da
dinâmica das atitudes (Sherif e Hovland, 1961; Osgood e Tannembaum, 1955). E a
teoria mais influente é a Teoria da Dissonância Cognitiva (Festinger, 1957) que
engendrou a série de estudos mais originais da história da psicologia social, e é
como vocês sabem, uma teoria da mudança de atitudes. Ela exprime que os
choques entre duas cognições são a força motriz de todas as modificações de
nossas opiniões e de nossos julgamentos. Nós procuramos atenuar este conflito e
a colocar nossas atitudes de acordo com os nossos comportamentos. Suponhamos
que eu tivesse uma opinião desfavorável sobre a teoria da dissonância. Se eu
devesse vos apresentar, dizendo que se trata de uma bela teoria, eu diria uma
mentira. Mas, após a minha conferência, eu teria uma melhor opinião sobre ela do
que antes, porque faria o máximo para diminuir o desatino entre minhas
declarações e minhas crenças.
Por outro lado, ao longo destes anos, tudo que se relacionava à percepção, ao
julgamento social etc., parecia relegado ao segundo plano. Como estes fenômenos
negligenciados tornaram-se o centro da atenção? No período onde as atitudes (e a
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homem não é mais concebido enquanto animal racional, mas enquanto máquina
pensante.
O que isto implica? Implica simplesmente que como as máquinas, ele adquire o
conhecimento retrabalhando as informações que o atingem quando em contato
com o mundo exterior (Graumann et Sommer, 1981). Lidamos aqui com uma
espécie singular de máquina, uma máquina que não reproduz o cérebro do sábio
profissional, mas o cérebro do sábio ingênuo. Em outras palavras, este indivíduo é
considerado como sendo “o homem da rua” “monsieur Toutelemonde”: de mente
sã, nem muito inteligente, nem muito estúpido, nem tão instruído, nem tão
ignorante. Vocês e eu, por exemplo, quando falamos do caráter de um amigo, ou
da razão pela qual somos chamados a um posto de trabalho que procuramos.
Examinemos um pouco mais de perto o interior desta máquina singular para
ver o que ela contém. Antes de tudo, lá encontramos uma série de “teorias
implícitas” sobre a personalidade (p. ex. conceitos leigos, idéias fixas,
prejulgamentos do senso comum etc) sobre os seres humanos (Rosemberg e
Dedlak, 1972). Quais são suas funções? Duas funções se apresentam: “a primeira
tem tratado do papel de opiniões pré-concebidas nos julgamentos do outro e a
segunda concerne às diferenças individuais de percepção” (Schneider, 1973,
p.294). Em todo caso, estas teorias implícitas são relativamente impermeáveis à
experiência pessoal. São fortemente influenciadas pela linguagem e inteiramente
distintas das teorias científicas correspondentes.
Em segundo lugar, o sábio ingênuo é confrontado com uma variedade
surpreendente de ações e com um leque assustadoramente largo de situações
quando ele observa o comportamento do outro. Tentando apreender as coisas e
ter uma visão estável, ele se pergunta por que tal ou qual coisa se produz, e tenta
fazer uma análise causal de ações e situações. Como vocês sabem, no curso desta
análise, ele se esforça para atribuir a causa do que observa seja relativa à pessoa,
seja à sua situação. Digamos que um amigo desempregado lhes peça ajuda. Vocês
poderiam então se perguntar se ele está sem trabalho porque não tem vontade de
trabalhar, porque ele é incapaz de trabalhar ou porque as condições econômicas o
impedem de encontrar trabalho. Estou certo de que não existe dúvida nas suas
mentes sobre a resposta. Assim, para o sábio ingênuo, compreender significa
sempre interpretar e intelegir se reduz sempre a explicar (grifos do autor).
Quando observamos mais de perto a maneira que esta máquina pensante
efetua uma análise, reconhecemos a presença do “esquema”. Estes esquemas
são qualquer coisa como conexões prévias, organizações ativas entre as
percepções e a memória, que classificam e ordenam o fluxo de
informações não selecionadas, arranjando-as de acordo com o modelo
apropriado. (Grifos não são do autor). Como o escrevem Garumann e Sommer:
“vemos que os esquemas guiam o processo de percepção” (1981, p. 20). Uma
distinção é feita entre esquemas causais e esquemas de eventos. Os primeiros
transformam todo elemento de informação em efeito de uma causa: encontramos
uma enumeração de esquemas causais num artigo célebre de Kelley (1972). Os
segundos, que podíamos considerar como os scripts, descrevem uma seqüência de
eventos dos quais participamos (Schank et Abelson, 1977). Um script do curso de
verão, por exemplo, representaria o que se passou depois que vocês chegaram
aqui. Ele compreenderia seus trabalhos no laboratório, seminários, e todo o resto,
até a conferência desta manhã.
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Do ponto de vista desta discussão, os scripts são os esquemas perceptivos e os programas que definem
uma seqüência de ações. Eles são construídos segundo o modelo behaviorista, que dá prioridade aos
estímulos e „a aprendizagem. Segundo Schank e Abelson, para compreender o que acontece numa
situação dada, é preciso ter exposto as ações determinadas pela situação. Temos dificuldade em
manipular o que se desvia do modelo standard (Schank e Abelson, p.67). De toda maneira, este não é o
caso das representações sociais. Elas tendem a tomar o lugar de situações específicas, tendem a redefini-
las, e a ultrapassa-las. As representações sociais são os sistemas de preconcepções, de imagens e de
valores que possuem sua própria significação cultural e subsistem independentemente das experiências
individuais; elas incluem automaticamente a previsão de desvios possíveis. As teorias científicas também,
na realidade. O conceito de teorias “implícitas” é apenas um estratagema que permite tratar a
informação ligada como se ela fosse uma informação livre.
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excluir tais informações e ao mesmo tempo lhes dão pouca importância. Parece
quase que um princípio geral: cada crença ou teoria conserva todas as
informações que a confirmam e se livra de todas as informações que a invalida.
É fácil encontrar exemplos históricos surpreendentes neste princípio. Stálin
negligenciando os relatórios que anunciavam um ataque alemão iminente.
Dayan não deu importância aos que o advertiam sobre um ataque egípcio 3.
2. Se tivermos uma idéia ou uma representação do que uma pessoa deve ser,
tentamos confirmá-la através de todos os meios que dispusemos. De maneira
mais específica, criamos relações, manipulamos a situação de maneira a
estimular comportamentos em consonância com nossas crenças sobre o outro 4.
Isto é o que fizeram os anti-semitas: criaram em torno do judeu, condições em
que eles parecem avarentos, medrosos, ou desviantes. Todas estas interações
sociais são em geral canalizadas de tal modo que elas conduzem os indivíduos
que são alvos dessas crenças a fornecer no seu comportamento as
confirmações das crenças daqueles que a perceberam. Vejam aqui uma
experiência elegante que ilustra este ponto. Os casais de sujeitos que aqui não
se conheciam anteriormente (um observador masculino e um alvo feminino),
interagiam numa situação onde se apresentavam. Os homens deviam interagir
com as mulheres que julgavam ser sedutoras ou pouco sedutoras, a partir de
informações anteriormente fornecidas pelos experimentadores. Nós
analisávamos em seguida o comportamento real do alvo para ver se ele
correspondia ao estereotipo do observador. Os resultados são impressionantes.
Como o verificamos, no momento em que um alvo feminino era percebido (sem
o seu conhecimento) como fisicamente sedutor, a mulher alvo reagia com um
comportamento amável ou sociável. Inversamente, se o homem não a achava
sedutora, ela se mostrava pouco amável ou sociável. Todavia deve-se
acrescentar que estes comportamentos só eram evidentes nos domínios onde
os homens acreditam que a beleza física e as características pessoais estavam
ligados de uma forma ou de outra. Observamos um fenômeno análogo no caso
onde os sujeitos acreditavam que certas pessoas estavam dispostas de modo
hostil ou amigável. (Snyder e Swann, 1978). Parecia, portanto que os
indivíduos tendem a criar mundos fechados. Cada um de nós vive num mundo
fechado, tenta produzir nos outros os comportamentos que confirmarão as
idéias preconcebidas que fazemos deles. Na verdade, nós criamos estas
informações. E uma vez manifestadas estas informações elas confirmam os
dados iniciais do nosso mundo individual e o perpetuam. A expressão que
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Estas descobertas de laboratório fazem parte do estoque de conhecimentos comuns a todos aqueles
que estudaram a realidade social. “As crenças e as percepções políticas não são fundadas sobre as
observações empíricas nem, na verdade, sobre qualquer informação que assim seja. Ademais, as
cognições que não têm um fundamento empírico são aquelas que resistem mais „a revisão inspirada pela
observação do mundo, têm assim a influência mais patente (visível) sobre o fato de saber que as
observações empíricas e os índices sociais levados em consideração, os quais ignoramos.” M. Edelman,
Politics as Symbolic Action, Academic Press, New York, 1971, p.31.
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A confirmação comportamental é um termo que se aplica a um fenômeno largamente observado por
numerosos psicossociólogos. As pessoas tentam desempenhar o papel de criminoso ou de doente para
racionalizar sua conduta desviante e justificar o diagnóstico e as prescrições dos especialistas.
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Kruglanski tem razão ao notar que os sábios profissionais não estão imunes contra os erros dos sábios
ingênuos. Mas isto não muda em nada a situação. O principal é saber se as faltas “lógicas” são cometidas
no tratamento da informação ou se as faltas eram de natureza “teórica” e implicavam as deduções feitas
e a informação criada. Existe uma assimetria particular na epistemologia científica: jamais alguém
pretenderia unicamente que este ou aquele sábio, por exemplo, Lorentz ou Poincaré, cometeram um erro
de raciocínio recusando a teoria da relatividade, enquanto que este que examina a epistemologia profana
afirma que “ o homem da rua” comete um erro recusando de atribuir a causalidade „as situações e não
„as pessoas. Parece-me que é tão difícil de seguir Kruglanski e de aceitar que não existe diferença entre
os dois tipos de sábios quanto definir suas diferenças sobre uma escala de perfeição do pensamento
lógico. Fazemos uma pergunta ruim quando nos perguntamos: “quem pensa melhor?”. A resposta auto-
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fundamentando-se nas causas pessoais. O que faz com que ele testemunhe
com uma tal indiferença, estaríamos tentados a dizer, com uma certa aversão à
realidade? Por que ele se recusa em corrigir seus erros sistemáticos e suas
idéias, enquanto que, a nossos olhos, a mente humana é naturalmente e quase
que constantemente ocupada de se conservar de tais erros? Pareceria que ele
necessitasse incriminar sua ignorância de regras da lógica e sua falta de
treinamento para pensar logicamente. Isto é porque ele representa um perigo.
Nas universidades de língua inglesa, começamos a ensinar aos estudantes os
“perigos do sábio intuitivo” (Gergen, 1981). Como a humanidade pôde
sobreviver desde milhões de anos se apoiando sobre teorias e explicações
preconizadas por pensadores tão indigentes? Como podemos inventar a
agricultura e a química e mesmo descobrir a América? Nós nos perguntamos.
Especialmente quando vemos sábios profissionais que dispõem de métodos
elaborados e estão perfeitamente certos de conhecer as causas capazes de
destruir esta obra em algumas horas. E isso apenas com uma bomba atômica.
Os estudos sobre este assunto são numerosos e sua especialização é tal que
nenhum estudante pode esperar domina-los. O material em geral e as monografias
abraçam o domínio que vai da psicologia social à psicologia da criança e à
psicologia clínica. Existem estudos sobre todo ou sobre quase todos os aspectos da
epistemologia leiga e da atribuição causal. Como podemos encetar uma discussão
fecunda seguindo particularmente as linhas teóricas gerais? Eu quero, contudo,
levantar o desafio. Começarei minha discussão observando que apesar da sua
abundância, a literatura com algumas exceções raras, tende a ser pouco
conclusiva. As provas factuais fazem da tarefa de análise científica uma empresa
bastante arriscada. Entretanto, é preciso admitir que suas conclusões parecem
pouco surpreendentes. Elas já vos eram familiares, mesmo sem as experiências
como premissas da psicologia social clássica que foram fundadas, depois de tudo,
para responder à questão: “o que explica o fato de que o raciocínio e o
pensamento das pessoas estejam freqüentemente errados?”(grifos não são
do autor). Os pioneiros neste domínio estão divididos em duas escolas de
pensamento, uma afirmando que as emoções são responsáveis pela obnubilação
da mente, a outra dando destaque aos preconceitos e mecanismos acionados pela
situação de grupo. Estou realmente impressionado por sua perspicácia. Lendo o
livro de Nisbett e Ross (1980) tive quase a impressão de reler as passagens de Le
Bon, McDougall e Bechterew. É, contudo verdade que nós precedemos sobre um
ponto. Dispusemos de uma quantidade suficientemente grande de fatos para ter o
direito de discutir a questão livremente, sem sucumbir à vã especulação. Cada
uma das linhas de pesquisa que acabo de descrever tem seu valor. Tomadas em
conjunto, elas fornecem uma documentação indispensável à intuição sociológica e
psicológica. Portanto, se desejamos ter uma visão consistente do conjunto do
fenômeno em questão, nós devemos pesquisá-la em um nível mais profundo.
complementar dos psicossociólogos: “Nós!” é tão pouco satisfatória como aquela de Kruglanski:
“Ninguém!”.
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É fácil de ver após a passagem seguinte como certas representações sociais conduzem ao
personalismo: “ensinamos aos Americanos em casa, na escola e na retórica política persuasiva que a
América é o país da igualdade de oportunidades. Dada esta igualdade, aqueles que são pobres são
inclinados a atribuir sua situação infortunada a suas próprias dificuldades e a sua insuficiência. Esta
inferência lógica e esta crença largamente difundida têm como perturbar os pobres. Eles são fortificados
nos seus sentimentos de culpabilidade pelos ricos e por seus representantes parlamentares que atribuem
seu próprio sucesso e o fracasso dos outros ao seu valor pessoal e a falta de valor,
respectivamente”.Edelman, op. cit., p. 55.
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necessariamente social por natureza. (grifos não são do autor). Por este
método de abordagem, obteremos uma visão mais exata das coisas que estamos
dividindo em leigas e sábias, homens da rua e homens de gabinete. Tornar-se-ia
então evidente que a maior parte entre nós pensa errado, pois pensamos
diferentemente, conforme uma teoria social diferente.
Estas observações precisam ser expostas com mais precisão, e espero fazer um
pouco daqui por diante (Moscovici,1984). Neste instante, eu queria simplesmente
indicar que atingimos um ponto que não permite volta. Os modelos não são um
grande socorro, e se nós desejamos prosseguir nosso caminho, nos é necessário
construir novos modelos. Guardando o objetivo presente na mente, eu queria
acrescentar um comentário mais pessoal. Isso que me parece o mais contestável e
mesmo artificial em tudo que escrevemos sobre cognição social, não é a redução
do mundo coletivo ao marfim do laboratório. É sua terrível simplificação da vida
mental dos seres humanos em sociedade. Devo admitir que não cheguei a
compreender como uma discussão sobre a definição de cognição social ou a
viabilidade das atribuições causais podem não dar conta do fato de que os seres
humanos são governados por uma curiosidade autêntica, de crenças religiosas ou
filosóficas e uma gama de etnias. Ou então este aspecto cultural foi evacuado,
jogando tudo isso no saco dos prejulgamentos e dos estereótipos. No meu ponto
de vista, toda teoria da cognição, toda análise de nossa vida mental que não
destina um papel de pivô ao estudo das culturas que criam a linguagem, que não
se interessam pelo tipo de relação entre as pessoas ou por suas atitudes para com
o conhecimento e as instituições, toda teoria desta espécie me parece sem objeto.
É somente se apreendemos os fenômenos de representação social que podemos
restabelecer sua pertinência. Todos que escreveram neste objetivo confirmaram a
verdade desta observação7.
É bem possível que muitos aspectos dos meus argumentos estejam errados ou
exagerados. Precisamos esperar uma discussão profunda para o descobrir.
Enquanto isso me deixem prosseguir nestas especulações. No seu estado primitivo,
as pesquisas sobre cognições sociais e aquelas consagradas em representações
sociais tratavam do mesmo objeto: a psicologia popular ou ingênua. Elas eram as
mesmas partes de uma hipótese comparável. Heider a exprimiu como o seguinte:
“Já que a psicologia do senso comum guia nosso comportamento para com o
outro, ela é uma parte essencial dos fenômenos aos quais nós nos interessamos.
Nós interpretamos as ações dos outros e predizemos o que eles farão em certas
condições. Considerando que, em geral, nós não formulamos estas idéias, elas
funcionam freqüentemente de maneira adequada. Elas cumprem de uma certa
medida o que uma ciência deve cumprir: Uma descrição adequada do sujeito
estudado que lhe garante a previsão possível” (1958, p.5).
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Na psicologia da criança, podemos observar uma evolução comparável. Inicialmente, estudamos as
crianças isoladamente, depois sua cognição social (conhecimento interpessoal, atribuições etc) se tornou
o centro de interesse. Atualmente o interesse se dirige em direção as representações sociais das crianças
relativas ao dinheiro, ao governo, à cultura etc. Veja, por exemplo, o capítulo intitulado “Issues in
Childhood Development” in H. McGurk (ed. Psychology in progress, Methuen, London, 1978.
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- Ela tem boa memória. Seu marido atesta o fato e se oferece ele mesmo para
observação.
- Oh! Você, meu bravo, nós o guiamos dificilmente!
Muitos diziam, não existia no mundo ninguém mais teimoso que ele! Etc.
(1979, p.250).
Vocês vêem os efeitos cômicos que Flaubert tira destas situações. Woody Allen
obteve efeitos comparáveis em seus filmes, brincando com o vocabulário e com as
explicações psicanalíticas que ele aplica às situações as mais incongruentes. Sem
querer ofendê-los, eu devo admitir que, deste ponto de vista, a psicologia amadora
não é este fictício homem da rua, mas Heider ele mesmo, compondo peças de
teatro, romances e obras de psicologia a fim de produzir uma versão sistemática
das relações interpessoais. E Kelley, Jones, Ross, Nisbett e outros, seriam os
psicólogos científicos.
Retornemos aos motivos dos nossos sábios amadores. Seus objetivos, quando
tentam incorporar a ciência ao domínio da experiência cotidiana, não são somente
úteis ou práticos, asseguram a sobrevivência da espécie. Mas, seus verdadeiros
motivos são também o prazer, a energia mental, e a aventura social. Para eles, um
contato pessoal com a ciência quer dizer estar em relação com a maior force de
verdade e da ação na esfera humana.
Utilizarei um exemplo para fazer um contraste entre o método de Hercule Poirot
e o de Boulevard e Pécuchet. Imaginem que vocês têm a sua frente um pedaço de
queijo num prato. Ele tem uma forma distinta, uma cor, um odor e uma
consistência; Poirot sabe do que ele fala: é de um camembert. Logo que ele enfia
sua faca e o prova, o sabor do queijo confirma seu julgamento e ele o identifica.
Não é roquefort, nem chester, nem munster, mas camembert. Uma informação
sem falha e o detetive se perguntará em seguida como o queijo foi escolhido, fará
sua investigação com o vendedor para saber quando o compramos etc.
Coloquemos então o mesmo camembert na mesa de Boulevard e Pécuchet. De
lado, colocamos um copo de vinho tinto. “É certamente francês” dirá um dos
nossos dois heróis. E eles levantarão as teorias químicas e depois as históricas,
eles se lembraram de paisagens da Normandia, falarão de vacas e de pradrarias
em flores, e trautearão a famosa canção “irei rever minha Normandia”. Eles
experimentarão um frisson de patriotismo. E como pela célebre Madeleine de
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6. Esperando Godot
Sem dizer que por uma razão ou por outra, podemos sempre separar
conceitualmente o processo do conteúdo, de sorte que o primeiro se refere a uma
coordenação de regras ou de sistema gerais, e o segundo a exemplos particulares.
Isto não resulta a questão de saber se é preciso fazer esta separação, portanto, e,
sobretudo, é legítimo de fazê-la no nosso próprio domínio. Deixamos de lado uma
grande parte das provas. As regras da lógica são especificamente ligadas a uma
cultura dada e a uma atividade mental dada. A regra de não contradição, que é a
mais importante na lógica e o pensamento ocidental, parecem desempenhar um
papel secundário na ciência e no pensamento chineses, de mesma forma que no
domínio do pensamento simbólico. De outro lado, existem numerosos temas de
heróis, o tema de uma comunidade primordial, de um mundo justo que existe em
algum lugar (Lerner e Miller, 1976), o tema da aspiração de um mundo como tal, e
assim por diante. Nossas representações sociais são feitas por temas deste gênero
e os temas recebem sua coerência. Flament (1984) mostrou como o princípio do
equilíbrio de Heider não é apenas um simples caso de lógica. Existe igualmente um
conteúdo ideológico. O mesmo conteúdo ideológico aparece na filosofia taoísta e
através da filosofia de Rousseau. Desde a Revolução Francesa, esta filosofia
usufrui uma considerável popularidade. Uma vez que nós penetramos um pouco na
camada exterior, nós destacamos que as leis da psicossociologia são a versão
condensada de toda uma sociologia (Moscovici, 1961).
As coisas não permanecem lá. Na epistemologia científica, as teorias e sua
lógica, as relações de causalidade e os princípios físicos ou biológicos são tratados
como uma unidade. Por que nos limitamos à lógica e à causalidade quando lidamos
com a epistemologia leiga, sem dar conta das teorias ou representações
subjacentes? Dissociando o que na verdade é uma entidade orgânica – pois cada
pensamento é um pensamento de qualquer coisa – nossa pesquisa tende a perder
uma boa parte de sua importância e de sua pertinência, e mesmo sua relação com
a sociedade em seu conjunto. Ë somente analisando os temas, as declarações, as
imagens e suas combinações que podemos enraizar nossos estudos na cultura à
qual nós pertencemos e a compreender. É só assim que estamos em posição
pontual e de dar respostas significativas (Gilligan, 1977). Vocês advinham meus
sentimentos. A psicologia social cognitiva- desculpem o pleonasmo! Não imita a
ciência da computação ou a psicologia geral. Ela não se ocupa da matéria, mas do
software e não se interessa na aplicação dos programas e das linguagens, mas na
sua criação: a saber, como nascem as cognições.
Em todo caso, no que concerne às representações sociais, devemos seguir o
exemplo da antropologia e da psicanálise, que elucidam os mecanismos
examinando o conteúdo resultante destes mecanismos e deduzindo os conteúdos
sobre a base dos mecanismos. Já desenvolvi várias vezes esta idéias que estão
longe de serem originais. A objeção que vai ao seu encontro é que elas são
metafísicas. Aos meus olhos, isto não diminui em nada sua pertinência, pelo
contrário. Elas convergem mesmo com algumas idéias expressas pelo homem que
consideramos como pioneiro da psicologia cognitiva, Neisser. Permitam-me citá-lo
um pouco demoradamente. Antes de ter expressado seus arrependimentos sobre
do que a psicologia cognitiva era feita, ele retorna ao laboratório e lamenta o fato
operações lógicas são inseparáveis das operações representacionais. Nesta consideração, teremos
particular interesse em ler de PH.N. Johnson-Laird e M. Steedman “ The Psychology of syllogisms” ,
Cognitive Psychology, 10, (1978), pp. 64-99.
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Obs. Texto traduzido pela Profa Renata Lira dos Santos Aléssio