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IMAGINÁRIO

Perspectivas
tribais ou a
mudança do
paradigma social* Introdução

AS IMPORTANTES MUDANÇAS de valores que


RESUMO aconteceram nas nossas sociedades, no fi-
Esse texto propõe uma reflexão sobre algumas importantes nal do século passado, obrigam-nos a fazer
mudanças de valores (e sua efemeridade) ocorridas na pas- algumas considerações. É o que podemos
sagem da modernidade para a pós-modernidade, tal como a fazer, permanecendo, em um primeiro tem-
idéia de futuro, racionalidade e indivíduo, papel da comunica- po, no plano geral. Podemos, em seguida,
ção como espaço de convivialidade, a partir de uma perspecti- propor uma “alavanca metodológica” para
va metodológica baseada na socioantropologia. tentar compreender essas mudanças de
valores às quais acabamos de fazer alusão.
ABSTRACT É possível utilizar para isso uma metáfora,
This paper traces some important socioantropologic changes a do tribalismo (outra maneira de falar da
which have occurred in the passage of the modern to the post- multiplicação dos microgrupos sociais), fe-
modern condition. nômeno que surge novamente nos nossos
dias, acarretando toda uma série de conse-
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) qüências importantes para a estruturação
- Modernidade (Modernity) do indivíduo e da vida social em seu con-
- Afetual (Affectual) junto.
- Tribalismo (Tribalism)

1 Elementos socioantropológicos
de base

Para traçar, rapidamente, o quadro no qual


eu vou propor minhas hipóteses, faz-se ne-
cessário relembrar alguns dados da moder-
nidade, ainda que sejam banais.
Em princípio, temos a noção de epis-
teme. Através dessa noção, Michel Foucault
indica que, finalmente, nós somos mais
pensados do que nós pensamos e mais agi-
dos do que nós agimos. Propondo ao de-
bate a noção de episteme, Michel Foucault
quis dizer que as formas de representação e
de organização social têm um duplo aspec-
to. De um lado, alguma coisa que vai mo-
Michel Maffesoli delar em profundidade e de maneira sub-
Professor da Sorbonne
terrânea as representações sociais; de outro
lado, o fato que essas representações sociais
possuem uma série de conseqüências so-
bre a organização social, embora isso não

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seja forçosamente pensado, conscientizado levada em conta para podermos apreciar a
ou verbalizado como tal. Podemos dizer o pertinência do seu propósito. Mas, então,
mesmo das descobertas científicas; é assim questiona-se a respeito da passagem de
que um autor como Thomas Khun faz as uma episteme a uma outra.
mesmas constatações que Michel Foucault; A passagem ou fechamento de uma
pela noção de paradigma (mais branda que episteme e o começo de uma outra é uma
aquela de modelo), ele mostra como existe questão difícil que só podemos pensar
uma matriz a partir da qual se cruzam, no com muita prudência. É possível reter
domínio científico, as maneiras de se repre- uma proposta feita por Sorokin, sociólogo
sentar o mundo. americano da cultura. Esse autor utiliza a
A noção de bacia semântica, proposta noção de saturação. Ele mostra como, em
por Gilbert Durand e inspirada do incons- um determinado momento, um conjunto
ciente coletivo de Jung, é igualmente uma cultural perde a sua evidência. É justamente
noção interessante a considerar. Gilbert Du- logo que essa evidência se perde que vamos
rand utiliza a imagem da bacia semântica entrar, progressivamente, dentro de um
para indicar como as pequenas coisas vão outro tipo de episteme; um pouco como
gerar as coisas mais importantes. A inun- em uma relação de amizade ou amorosa; a
dação acaba por originar o rio embaixo do evidência do amor e a evidência da amiza-
vale, rio que vamos nomear, que vamos ca- de desaparecem em uma bela manhã sem
nalizar, e que vai, finalmente, perder-se no que possamos dizer precisamente o porquê.
delta, depois se lançar no mar até que um Simplesmente, evocaremos uma lassitude
novo ciclo recomeça. somada pela história comum, dividida du-
Da mesma maneira podemos evocar o rante muito tempo com alguém, como se
lençol freático que, apesar de nós não o ver- tudo devesse, quase que mecanicamente,
mos, sustenta em profundidade a vida, ou cansar-se.
seja, nossa maneira de ser. É o que podemos Podemos nos perguntar se não é algu-
chamar de clima social, cobrindo a noção de ma coisa dessa ordem que está atualmente
espírito do tempo, da qual Hegel, no século em jogo nas nossas sociedades, escondida
XIX, mostrou a importância. Assim, antes naquilo que chamamos, freqüentemente, de
mesmo da constituição dos indivíduos ou crise.
dos atores sociais em membros da socieda- Não sabemos muito bem o que é ne-
de, tem alguma coisa que ultrapassa cada cessário colocar sobre esse termo de crise,
um de nós e que ultrapassa a globalidade a não ser que podemos concordar cada vez
da sociedade. É alguma coisa, para dizer a mais em reconhecer que essa crise não é
verdade, “misteriosa”, no sentido mais sim- mais somente econômica, tampouco política
ples desse termo, ou seja, o que faz laço, o ou simplesmente cultural. Sem dúvida, vale
que une as pessoas entre si. mais falar aqui de uma perda da evidência.
Trata-se de uma outra maneira de de- Isso significa, então, que a um determinado
signar a cultura, não as grandes obras da momento, um conjunto social, ou melhor,
cultura, mas o substrato, o background no “civilizacional”, não tem mais consciência
qual cada um se banha sem prestar aten- do que ele é, não sabendo mais quais são os
ção. É, no fundo, o que a gente suga no grandes mitos que o animam e não tendo
leite materno, com o qual a educação nos mais confiança no que ele é. Pensemos aqui
impregna, mesmo aquela da universidade, em uma fórmula de Kundera na Insusten-
na qual uma cultura que nos modela. Ao tável Leveza do Ser: “Os amores são como
mesmo tempo, essa noção de episteme não os impérios; quando acaba a idéia sobre a
é um dado particular nos tempos moder- qual se fundam, eles desaparecem com ela”.
nos; podemos aplicá-la a outros períodos, A partir dessas considerações, podemos
segundo uma evolução cíclica que deve ser pensar que o mito que foi a base da moder-

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nidade saturou-se; o que se constituiu, até Quais poderiam ser, agora, as pala-
agora, na ossada de base na qual são orga- vras-chave da modernidade?
nizadas as representações (a base na qual se
estruturou a sociedade), de alguma forma,
esgotou-se a ponto de que alguma outra 2.1 A concepção do tempo é uma concepção do
coisa pode nascer. tempo finalizado

Assim, quando nós queremos compreen-


2 O mito da modernidade der, com profundidade, um conjunto social,
é necessário saber sobre qual elemento da
Faz-se necessário fazer referência, mais tríade temporal esse conjunto social se so-
uma vez, a Sorokin. Esse autor indica que bressai: sobre o passado, sobre o presente
existem, empiricamente, dois tipos de con- ou sobre o futuro.
juntos sociais: Podemos localizar, então, as socie-
dades nas quais o tempo vai se voltar em
- os conjuntos sociais de preferência direção ao passado: é o caso das sociedades
de tipo racionalista; ditas tradicionais, para as quais nada se ino-
va, tudo se refere à tradição, ou seja, aquilo
- os conjuntos sociais de preferência que já passou.
de tipo sensualista. Ao contrário, outras sociedades ba-
seiam-se em ressaltar o presente.
Nietzsche, à sua maneira, tinha formu- Ainda há outras, que vão se constituir
lado essa dicotomia quando ele destacou o em função do futuro. A sociedade moderna
estremecimento entre Apolo e Dionísio. Os funcionou assim, referindo-se ao futuro,
historiadores da arte também retomaram tendo como conseqüência o mito do pro-
essas distinções; Walter Pater e o sociólogo gresso, expressão maior desse tempo finali-
Karl Manheim, fazia o mesmo tipo de pro- zado.
posição. Da minha parte, eu também torno É bem difícil saber por que nossas so-
a utilizar essas noções para destacar que ciedades se orientaram nessa concepção de
alguma coisa teria constituído a moderni- tempo finalizado. Podemos constatar isso
dade em torno da figura emblemática de a partir do século XVII e XVIII, e mais ain-
Apolo. Entretanto, de um ponto de vista so- da do século XIX, quando essa orientação
ciológico, eu prefiro Prometeu, aquele que da sociedade em função do seu futuro vai
rouba o fogo dos Deuses, aquele a partir do atingir seu ápice. Toda a filosofia da his-
qual vão se reconhecer um certo número tória hegeliana, todas as diversas análises
de atitudes ativas em si mesmas e sobre o dos filósofos ou dos sociólogos, como Au-
mundo. A hipótese é que, atualmente, essa gusto Comte, são feitas em função daquilo
figura emblemática de Apolo ou de Prome- que está por vir. Hoje só vale em função do
teu cede, de maneira furtiva, ou de maneira amanhã, é o que também indica Freud no
mais ou menos fixa, o lugar à figura emble- seu “relatório do gozo”.
mática de Dionísio. Esse conceito de tempo finalizado, ou
Podemos dizer, de outra maneira, que do tempo pensado sempre em função do
uma sociedade mais sensualista substitui, futuro, é um dos primeiros elementos da
aos poucos, a sociedade racionalista que constituição da episteme da modernidade.
foi a sociedade moderna (logo, a figura em- Podemos dizer que estamos aqui em uma
blemática de Prometeu ou de Apolo), pois concepção projetiva: o projeto é constitutivo
tudo o que vai caracterizar a modernidade do indivíduo, da mesma maneira que ele é
se organiza em torno de algumas grandes constitutivo do conjunto social no seu todo.
palavras-chave. O vetor desse tempo finalizado, ou o

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fato de que não vamos pensar o mundo so- sentido, o indivíduo aprende a ter uma
mente em função do futuro, é uma maneira identidade dominada por ela mesma e, con-
de destacar a razão. seqüentemente, aprende com os outros que
chegaram a essa mesma dominação, a do-
minar o mundo. É interessante lembrar essa
2.2 A racionalidade fórmula de Cornélios, em Cinna, precisa-
mente em uma época que é o começo mes-
Obviamente, a racionalidade é uma das mo da modernidade. Cinna diz: “Eu sou o
características do animal humano, mas há mestre de mim mesmo como do Universo,
certos momentos de sua história em que eu sou, eu quero ser”. Os poetas têm assim,
essa racionalidade toma, no homem, uma freqüentemente, a capacidade de cristalizar
orientação específica. Refiro-me aqui aos bem o tempo.
filósofos da Escola de Frankfurt, que bem O pivô desse esquema da modernida-
mostraram como, no século XIX, a racionali- de, que é da ordem da evidência, é o indiví-
dade se tornou racionalismo. Na Alemanha, duo ou o individualismo.
o termo é mais significativo; a Sweckrationa-
lität é uma razão que se orienta em função
de um fim. Segundo essa perspectiva, “so- 2.4 O individualismo
mente tem sentido, aquilo que há sentido”;
do mesmo jeito, se torna sem sentido o que O individualismo aparece como a expres-
não tem sentido. Desse ponto de vista, a po- são teórica da modernidade. Ele se inscreve
lissemia do termo em francês é interessante, em um quadro geral. A principium indivi-
pois ela permite destacar o que não vamos duationis é certamente o ponto essencial a
reter aqui; no seio dessa grande capacidade partir do qual se pensa a modernidade e a
humana, que é a razão, trata-se de alguma partir do qual elaboramos todos os nossos
coisa que só faz sentido em função do futu- sistemas. Mas restituí-lo assim, no seio da
ro. Isso foi traduzido pela expressão “racio- modernidade, indica-nos que é um fenô-
nalidade instrumental”, que exprime bem meno pontual: ele não existiu sempre; ele
essa concepção da modernidade em que não existirá sempre forçosamente. Podemos
toda coisa vale somente na medida em que dizer que esse principium individuationis se
serve e em que ela se baseia na utilidade. saturou nos fatos, logo ele não está nas nos-
Podemos fazer, assim, referência a Heide- sas cabeças, ao menos nas cabeças da intelli-
gger, quando ele fala de “utensilidade”. A gentsia, ou seja, naqueles que têm o poder
partir daí, toda uma série de conseqüências de fazer e de dizer alguma coisa.
sociais vão merecer nossa atenção. Podemos fazer rapidamente uma ge-
nealogia desse princípio de individuação.
Quando Descartes destaca o seu cogito ergo
2.3 O domínio sum, ele o indica em relação ao que era o
pensamento coletivo da Idade Média: que
O terceiro elemento da construção desse existe somente o pensamento individu-
mito da modernidade é o domínio, ou seja, al. Aliás, a fórmula latina no seu todo é
uma forma da lógica da dominação sobre si mais interessante: “cogito ergo sum in arcem
e sobre o mundo. meum”, “eu penso, logo existo na fortaleza
A grande concepção utilitária do mun- do meu espírito”. Essa fórmula nos mostra
do que cada um adquire progressivamente o “enclausuramento” específico que é aque-
na educação, na socialização, é o fato de que le da constituição do indivíduo no começo
é conveniente dominar-se. Isso é a concep- da modernidade. Ela mostra também a di-
ção econômica da modernidade: economia ferença fundamental em relação a um pen-
de si mesmo, economia do mundo. Nesse samento anterior, que era coletivo, e não é

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impossível que retornemos, posteriormente, to e do ideal democrático, satura-se, e nós
a um pensamento coletivo. poderíamos juntar uma série de elementos
A Reforma - e um pouco, ao mesmo que lhe demonstram, mesmo que seja de
tempo o cartesianismo - introduz igualmen- uma maneira violenta e sangrenta em certos
te alguma coisa da ordem do individualis- países, ou de uma maneira mais policiada e
mo, pois com ela a relação e a divindade mais branda em outros países.
mítica não são mais da ordem do coletivo.
Lutero e Calvino introduziram a noção de 2) Da mesma maneira, as grandes insti-
um livre-arbítrio, a expressão de uma rela- tuições se constituíram essencialmente no
ção individual que um “eu” vai estabelecer século XIX: a família, a instituição médica, a
com uma alteridade absoluta. instituição universitária e mesmo a institui-
Jean Jacques Rousseau fará a mesma ção eclesiástica (a Igreja Católica encontrou
coisa. É a partir de um indivíduo relacional o término da sua figura somente no concílio
que podemos pensar em um contrato social, do Vaticano Primeiro, em 1871, concílio que
o que aparecerá com a Revolução Francesa concretizou também a “romanização” da
e o código napoleônico. Finalmente, a pa- Igreja). Dessa forma, todas as instituições
lavra-mestra, conforme o que eu disse de sociais, não importa quais elas sejam, se tor-
Descartes, da Reforma e da filosofia do Ilu- nam cada vez mais porosas nos nossos dias.
minismo, é a autonomia ou o indivíduo au- Podemos evocar para fazer uma ima-
tônomo. Lembremos a etimologia do termo gem um tecido social que persiste inteiro,
“autônomos”: eu sou a minha própria lei. mas que está sendo devorado em todas as
Parece-me que é nisso que se situa o pivô partes. Essa “devoração” se generalizou nas
da modernidade, nessa concepção do indi- instituições, nas empresas, nos meios da
víduo que dá a sua lei a si mesmo e que, em educação, no trabalho social, nas entidades
seguida, pode se associar a outros indivídu- microscópicas, que sejam as capelas, os mi-
os autônomos para fazer história. É a partir crogrupos, ou melhor, aquilo que eu chamo
daí que se constrói o contrato social (que de tribo.
vemos bem a fragilidade nos nossos dias),
a cidadania, que é sem dúvida tudo o que 3) Um outro elemento dessa heterogenei-
funda o ideal democrático. Arendt mostrou dade do modelo da modernidade reside na
tudo o que esse ideal deve ao indivíduo. saturação das certezas ideológicas compa-
radas a outrora. O pensamento foi animado
por grandes idéias, “essas grandes nar-
3 O tribalismo rativas de referência” (para retomar uma
expressão de Jean-François Lyotard que
Em oposição a esse esquema que acabamos pode ser o marxismo, em alguns aspectos o
de expor, e em oposição às figuras emble- freudismo, ou o positivismo). Essas grandes
máticas da modernidade, minha proposta idéias se saturaram, cada uma a seu tempo,
empírica é que nós somos, no entanto, tornando-se cada vez mais porosas. Não é
confrontados a uma heterogeneidade desse que elas não existam mais, mas elas existem
modelo monoteísta que foi, até agora, o da somente no estado de remanescentes e não
modernidade. como referências em relação às quais deví-
amos nos situar. Hoje, somos confrontados
1) Não existe teorização do que se está se com um tipo de patchwork, de velharia ide-
passando nas nossas sociedades ocidentais, ológica, com ideologias portáteis, múltiplas
mas, sociólogos e antropólogos, somos obri- e diversas e com uma forma de “babeliza-
gados a constatar uma saturação, um cansa- ção do pensamento”.
ço, uma porosidade do Estado-nação. Esse
Estado-nação, expressão política do contra- 4) É no quadro dessa heterogeneidade ou

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dessa hipótese de heterogeneidade política, coisa que se estabelece na nossa sociedade,
institucional e ideológica, que parece neces- não se baseando mais na vontade, mas na
sário questionarmos o que eu defini acima contaminação; é alguma coisa da ordem
como o pivô da modernidade, ou seja, o do vírus. A moda é viral; isso provoca as
indivíduo com a sua identidade específica, epidemias. Existe, ao meu ver, alguma coisa
sexual, ideológica, profissional. dessa ordem que se dissemina em todos os
De agora em diante, parece-me que o domínios; mesmo o pensamento não esca-
indivíduo deve dar o lugar a outra coisa. O pa a esse fenômeno; isso é particularmente
termo resta ainda a ser encontrado. Da mi- chocante. Aqui, onde nós deveríamos pen-
nha parte, eu proponho aquele de “pessoa” sar por nós mesmos, vemos constituir-se
no sentido etimológico do termo (persona). pequenas entidades sectárias, fanáticas,
Isso significa que somos confrontados às opondo-se umas às outras.
“máscaras” e que nós temos menos uma Ao contrário do contrato com o seu
identidade do que identificações. A aquisi- aspecto racional, voluntário, que comporta
ção da identidade era até agora o ápice da essa noção, está se constituindo uma outra
educação, o apogeu da socialização. Mas maneira de ser, uma outra forma de sociali-
nós assistimos agora à passagem da iden- dade. Essa outra maneira de ser vai reinves-
tidade para as identificações múltiplas. É tir os elementos que a análise social tinha
essa passagem que me parece fundar o nas- deixado de lado: o emocional e o afetual. O
cimento; talvez seja melhor dizer o renas- afetual e o emocional não são unicamente
cimento de formas tribais de existência. O da ordem do emotivo ou do afetivo, mas
tribalismo é, assim, uma metáfora útil para um clima específico baseado nos processos
tentar, provisoriamente, notar a saturação de contaminação, no fato de que toda uma
em que o indivíduo ou o individualismo foi série de “transes”, às vezes macroscópicos,
questão e do fato de que, a partir de agora, freqüentemente microscópicos, constitui o
enfumaçaram-se em proveito de microcon- terreno da vida social.
juntos, de formas comunitárias. Freqüente- Nesse sentido, o homo politicus ou
mente, temos o hábito de insistir, nos dias o homo economicus vai cada vez mais dar
de hoje, no indivíduo ou no individualis- lugar, tanto para o melhor quanto para o
mo. De fato, agora prevalecem as “afinida- pior, ao homo estheticus. Esse último vai
des eletivas” que não são mais o feito de constituir-se nas emoções partilhadas. É na
alguns, mas o feito de um grande número capacidade de colocar em jogo o emocional,
de pessoas, constituindo-se em tribos no o afetual, que vai nos ser necessário, daqui
seio das nossas instituições. Isso é chocante por diante, de pensar nesse homo estheticus,
no mundo universitário, mesmo na ordem base daquilo que eu chamo de tribalismo .
religiosa, sendo uma evidência na evolução
sectária. Assim, todas as instituições se frag-
mentam em entidades microscópicas.
É aí que a idéia de autonomia, que era Nota
constitutiva da modernidade, cede lugar a
outra coisa. Poderíamos falar de heterono- * Artigo traduzido por Cristiane Freitas - PPGCom/FAME-
mia, que designa o fato de que eu não seria COS
mais a minha própria lei. Minha lei é outra. Referências
Eu existo somente no e para o espírito do
outro, somente no e para o olhar do outro. Os temas dessa intervenção no VI Seminário Internacional
O “se tornar moda no mundo” é, nesse de Comunicação do PGCOM/PUCRS foram desenvolvidos
aspecto, interessante: moda da vestimenta, essencialmente em:
moda da linguagem, moda corporal, moda
sexual. Existe, no fenômeno moda, alguma Maffesoli M. (1982) L’Ombre de Dionysos. Contribution à une so-

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ciologie de l’orgie. Paris, (1991), Le Livre de Poche, Biblio-essais.

Maffesoli M. (1988) Le Temps des tribus. Le déclin de


l’individualisme dans les sociétés de masse (2000), Ed La table
Ronde.

Maffesoli M. (1990) Au creux des apparences. Pour une éthique de


l’esthétique. Paris, (1993), Le Livre de Poche, Biblio-essais.

Maffesoli M. (1997) Du nomadisme. Vagabondages initiatiques.


Paris, Le Livre de Poche, Biblio-essais.

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