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DEBORA BREDER
resumo Em fins dos anos 1990 Françoise Héri- e recorrendo a noções como “invariante” e
tier e Pierre Bourdieu lançariam, com um intervalo “estrutura”, pode-se dizer que ambos os livros
de apenas dois anos, Masculin/Feminin, la pensée apresentam uma perspectiva, se não cética, ao
de la différence (1996) e La domination masculine menos pouco otimista em relação aos discur-
(1998), respectivamente. Versando sobre a constru- sos, anunciando os possíveis deslocamentos ou
ção hierárquica da diferença masculino/feminino, mesmo o apagamento da “diferença” – perspec-
ambos os livros apresentam uma perspectiva, se tiva esta que teria suscitado, na época, alguns
não cética, ao menos pouco otimista em relação aos mal-entendidos e muitas críticas2.
discursos, anunciando possíveis deslocamentos ou Mais do que apontar os significativos afas-
mesmo o apagamento da “diferença”. Mais do que tamentos entre Françoise Héritier e Pierre
apontar os significativos afastamentos entre esses Bourdieu no que tange à questão, este artigo
autores no que tange à questão, este artigo propõe propõe uma reflexão sobre os pontos nos quais
uma reflexão sobre os pontos nos quais suas pers- suas perspectivas convergem.
pectivas convergem.
palavras-chave Corpo. Sexo. Gênero. Fran- A dominação masculina
çoise Héritier. Pierre Bourdieu.
Em A dominação masculina, Bourdieu
procura iluminar o conjunto dos complexos
Parmi ‘toutes les possibilités logiques, plausibles et mecanismos que operam, nos mais diversos
réalisables’ de débats, il en est une qui n’est pas en- domínios e em diferentes níveis, na construção
core advenue à l’existence: le dialogue entre Fran- hierárquica da diferença masculino/feminino.
çoise Héritier et Pierre Bourdieu à propôs d’un O objetivo do autor é apreender a lógica simbó-
même objet1 (Lagrave, 2000, p. 457). lica da dominação masculina; em suas palavras,
“demonstrar os processos que são responsáveis
Em fins dos anos 1990 Françoise Héritier e pela transformação da história em natureza,
Pierre Bourdieu – então professores do Collè- do arbitrário cultural em natural”, revelando,
ge de France – lançariam, com um intervalo de assim, tanto o “caráter arbitrário” dessa domi-
apenas dois anos, Masculin/Feminin, la pensée nação quanto sua “necessidade sócio-lógica”
de la différence (1996), e La domination mascu- (Bourdieu, 2003, p. 8).
line (1998), respectivamente. Para empreender essa “arqueologia objetiva
Versando sobre a construção simbólica e do inconsciente”, conforme denomina seu in-
hierárquica da diferença masculino/feminino tento, o autor propõe como método a análise
que a leva a formular o princípio da “valência damental do parentesco”, não obstante a sua
diferencial dos sexos” como modo organizador universalidade, relevaria da ordem simbólica:
dos sistemas de parentesco. ela constituiria “un artefact et non un fait de na-
Ao analisar a lógica implícita nas terminolo- ture” (Op. cit., p. 24).
gias de parentesco, ela observa que nos sistemas Mas qual seria, em última instância, a cau-
matrilineares crow, que deveriam apresentar a sa final da construção hierárquica da diferença
imagem invertida dos sistemas patrilineares masculino/feminino?
omaha (em que a relação irmão/irmã é equipa- Talvez uma das principais distinções entre
rada à relação pai/filha), a inversão não vai até as perspectivas de Héritier e Bourdieu diga res-
o fim (isto é, a relação irmã/irmão equiparada à peito a essa questão7. Ao contrário do segundo,
relação mãe/filho). A partir de uma determina- a primeira avança uma hipótese, sugerindo que
da geração, as relações reais de primogenitura a causa final dessa dominação encontrar-se-ia
intervêm e transformam a lógica do sistema, na vontade de controle, por parte dos homens,
fazendo com que o irmão mais velho de uma do poder genésico feminino (Op. cit., p. 230)8.
mulher não possa ser por ela tratado com um Com efeito, de seu ponto de vista a “valên-
termo equivalente ao de “filho”: cia diferencial dos sexos” encontraria a sua ra-
zão de ser no poder de fecundidade feminino;
Mesmo se os sistemas crow postulam, na sua es- em suas palavras, no “privilégio exorbitante que
sência, uma ‘dominância’ do feminino sobre o têm as mulheres de engendrar os dois sexos”,
masculino no coração mesmo da relação central fazendo com que “de uma forma saia outra for-
de germanidade entre um irmão e uma irmã, nem ma”, ou seja, que a mulher seja capaz de gerar
todas as suas consequências são extraídas, mesmo não apenas o idêntico, mas também o diferente
no registro da denominação – não me refiro, bem (Héritier, 2000a, p. 34-36). Sob esse aspecto
entendido, ao funcionamento global das socie- a dominação masculina não decorreria de um
dades. Já nos sistemas omaha, essa ‘dominância’ suposto handicap feminino devido à diferença
conceitual do masculino sobre o feminino nas de peso, altura, força, períodos de gestação e
relações de germanidade extrai, implacável e im- aleitamento, e sim da vontade de controle, por
pertubavelmente, suas consequências até o fim parte dos homens, da fecundidade feminina.
(Op. cit., p. 24-25, tradução minha)6. Os sistemas de parentesco e as regras sociais da
aliança, que segundo as evidências etnográficas
Nesse sentido, argumenta Héritier, não há implicam geralmente a troca de mulheres pelos
nenhum sistema de parentesco cuja lógica in- homens, assegurariam o controle masculino
terna estabeleça que uma relação que vai das sobre o poder de fecundidade feminino.
mulheres aos homens, das irmãs aos irmãos,
possa ser transcrita para uma relação em que A valência diferencial dos sexos e a
as mulheres sejam primogênitas e pertençam proibição do incesto
estruturalmente à geração superior.
Em suma, a “valência diferencial dos sexos” Ao considerar essa hipótese, como vemos,
(que a autora diferencia do fato social da do- deparamo-nos com um dos grandes postula-
minação masculina) exprimiria uma relação dos antropológicos: a teoria lévi-straussiana da
conceitual orientada e hierarquizada entre o proibição do incesto, fundada no imperativo
masculino e o feminino. Inscrevendo-se no da troca. Héritier refere-se explicitamente à
cerne das estruturas sociais, a segunda “lei fun- questão:
No entanto, dizer exatamente por que a valên- do incesto inscrever-se-ia como o evento inau-
cia diferencial dos sexos parece ter se imposto gural de uma nova ordem: ao instaurar o fato
de modo tão universal, assim como a proibição sociológico da aliança sobre o fato biológico da
do incesto, parece ressair das mesmas necessi- consanguinidade, a “regra do dom por excelên-
dades: trata-se de construir o social e as regras cia” instituiria a própria sociedade humana.
que lhe permitem funcionar. Ao lado dos três Sob essa ótica, como vemos, a proibição
pilares que eram, para Lévi-Strauss, a proibição do incesto relevaria da estrutura. Manifestação
do incesto, a divisão sexual do trabalho e uma universal do princípio de reciprocidade, esta
forma reconhecida de união sexual, eu acres- proibição instauraria, no fato da troca, o uni-
centaria de bom grado um quarto, tão evidente verso das regras. Nesse sentido pode-se dizer
que não se via, mas absolutamente indispensável que a função simbólica da troca – a reciproci-
para explicar o funcionamento dos demais, que dade em ação nos ritos cotidianos – consistiria,
também só se referem à relação do masculino e em última instância, em revelar ao homem sua
do feminino. Esse quarto pilar, ou, se preferir- própria condição humana. Trocar com o outro
mos, a corda que liga entre si os três pilares do significa que eu sou, que eu existo e reconheço
trípode social, é a valência diferencial dos sexos o outro como semelhante; mais, significa tam-
(Héritier, 1996, p. 27, tradução minha). bém que espero ser por ele reconhecido.
Desde sua proposição em As estruturas ele-
Para Lévi-Strauss (1982), como sabemos, mentares do parentesco, apresentada em 1948
a proibição do incesto – a “regra do dom por como tese de doutorado na Sorbonne, pode-se
excelência” – constituir-se-ia na própria cul- dizer que a teoria da aliança foi amplamente
tura em si. Passagem dialética entre natureza aceita e rejeitada no campo acadêmico, revista
e cultura, a proibição do incesto instauraria o e retomada sob diversos aspectos e em diferen-
fato da aliança. As mulheres, o bem “supre- tes áreas, constituindo uma referência obriga-
mo” e “escasso”, seriam objeto de troca entre tória, ainda que sob distintas abordagens, nos
os homens: a renúncia à própria mãe, irmã ou estudos de parentesco. Não por acaso, grande
filha, impedindo a autorreprodução de famílias parte dos estudos de gênero – dentre os quais
biológicas isoladas e fechadas sobre si mesmas, os estudos feministas – também a mencionam,
levaria o homem a estabelecer laços com ou- considerando, na maioria das vezes de modo
tros homens, ampliando as relações sociais e crítico, algumas de suas principais asserções.
integrando todos num sistema de obrigações Dentre estas asserções destaca-se, indubita-
mútuas em função das alianças feitas. velmente, a da troca de mulheres pelos homens.
Assim, ao procurar empreender uma gênese Segundo boa parte dos estudos feministas, a
lógica da emergência da cultura, Lévi-Strauss teoria lévi-straussiana estaria calcada numa
enuncia aquele que se tornaria um postulado visão androcêntrica e naturalista do mundo –
fundamental em sua obra, alvo de inúmeros visão esta que reservaria ao homem o estatu-
desdobramentos: a troca como fundamento da to de sujeito e relegaria a mulher à posição de
sociedade e o princípio de reciprocidade como mero objeto de troca. Em seu célebre artigo,
fundamento do pensamento simbólico. Para o considerado um “clássico” para os estudos de
autor, a troca – condição sine qua non do es- gênero, Gayle Rubin (1975) argumenta que
tado de sociedade – constituir-se-ia num “fato se a troca de mulheres constitui um “concei-
social total”, capaz de integrar os mais diversos to sedutor e forte”, por situar a opressão das
níveis constitutivos da realidade. A proibição mulheres no interior de sistemas sociais e não
em questões de ordem biológica, ele constitui, seu autor, os dados etnográficos demonstram
não obstante, um “conceito problemático” se majoritariamente que são os homens que tro-
for pensado como instituidor e fundamento da cam as mulheres ou, ao menos, assim conce-
cultura9. No campo antropológico, certos tra- bem a relação entre os sexos – fato este que, por
balhos questionam a universalidade da troca de sua generalidade, não deixa de ser significativo.
mulheres pelos homens baseando-se em dados Como nota Héritier (2000b, p. 119), uma coi-
etnográficos até então desconhecidos ou supos- sa é questionar os antropólogos por não discu-
tamente mal-interpretados. Chantal Collard tirem suficientemente a dominação masculina;
(2000), por exemplo, procura demonstrar o outra, bem diferente, é pensar que as evidências
viés “sexista” e “naturalista” dessa teoria, ques- etnográficas podem ser negadas. Não é de
tionando a universalidade da aliança, por um surpreender, portanto, que em A dominação
lado, e a da troca de mulheres pelos homens, masculina Bourdieu também tenha abordado o
por outro, a partir da análise dos casos Na, problema, identificando na economia de trocas
Garo e Minangkabau. simbólicas – e, em última instância, na proibi-
Todavia, ao considerar essas críticas, Lévi- ção do incesto – a razão última da construção
-Strauss observaria – como já o havia feito em hierárquica da diferença masculino/feminino:
1983, em “A família” –, que seria indiferente
à teoria da aliança que sejam os homens que É na lógica da economia de trocas simbólicas –
trocam as mulheres ou vice-versa: e, mais precisamente, na construção social das
relações de parentesco e do casamento, em que
Que, nessa construção, sejam os homens ou as se determina às mulheres seu estatuto social de
mulheres que se deslocam não altera nada em sua objetos de troca, definidos segundo os interes-
economia. Basta inverter os signos e o sistema de ses masculinos, e destinados assim a contribuir
relações continuará o mesmo. E a supor que os para a reprodução do capital simbólico dos
dois sexos sejam colocados em uma posição de homens – que reside a explicação do primado
igualdade, poderíamos dizer, o que acaba dando concedido à masculinidade nas taxinomias cul-
no mesmo, que grupos formados de homens e turais. O tabu do incesto, em que Lévi-Strauss
de mulheres trocam entre si relações de parentes- vê o ato fundador da sociedade, na medida em
co. Não decretei que os homens eram os agentes que implica o imperativo da troca compreendi-
e as mulheres os objetos de troca. Os dados et- do como igual comunicação entre os homens, é
nográficos simplesmente me mostraram que, na correlativo da instituição da violência pela qual
maior parte das sociedades, os homens fazem ou as mulheres são negadas como sujeitos da troca
concebem as coisas desse modo, e que em função e da aliança que se instauram através delas, mas
de sua generalidade, essa disparidade oferece um reduzindo-as à condição de objetos, ou melhor,
caráter fundamental. Era preciso, portanto, que a de instrumentos simbólicos da política masculina:
teoria levasse em conta essa situação, ainda que ela destinadas a circular como signos fiduciários e a
pudesse se acomodar na situação inversa – que, instituir assim as relações entre os homens, elas
conforme sabemos hoje, existe ou parece existir ficam reduzidas à condição de instrumentos de
num número muito pequeno de sociedades (Lévi- produção ou de reprodução do capital simbóli-
-Strauss, 2000, p. 717-718, tradução minha). co e social (Bourdieu, Op. cit., p. 56).
Como vemos, Héritier não nega a ação dos dessa diferença (assimetria) implica, no registro
agentes singulares, homens e mulheres, tanto na simbólico, o glissement da hierarquia na cons-
perpetuação quanto na transformação do fato trução da relação masculino/feminino, isso não
social da dominação masculina. Ela observa, significa, bem entendido, que em sua perspec-
contudo, a óbvia existência desses agentes des- tiva o fato social da dominação masculina seja
de os primórdios da humanidade – ainda que algo imutável:
seja difícil decriptar, sob o acúmulo dos séculos,
suas ações e o efeito dessas ações sobre as repre- A base da dominação masculina parece tão ar-
sentações acerca do corpo e da diferença sexual. caica e tão profundamente ancorada que nada
Se Héritier não nega as “estratégias” dos a poderia abalar. Esta não é uma certeza, con-
agentes, Bourdieu tampouco nega a permanên- tudo, pois se como o enuncio aqui, o motivo
cia das “estruturas”, notando que as “constantes da dominação masculina é o poder feminino de
e invariáveis” também fazem parte da história. fecundidade, é a ação nesse ponto preciso que
Embora saliente a “historicidade” do “incons- deve conseguir abalar o edifício (Héritier, 2000,
ciente androcêntrico”, o autor reconhece que p. 36, tradução minha)10.
a dominação masculina “está há milênios ins-
crita na objetividade das estruturas sociais e na Conforme defenderia na introdução de
subjetividade das estruturas cognitivas”, e que Masculin/Féminin. La pensée de la différence, não
não dispomos, para pensar essa diferença, em há sistema de representação que seja totalmen-
última instância, mais do que de “um espírito te fechado sobre si mesmo; todos comportam
estruturado segundo essa oposição” (Bourdieu, aberturas, e é justamente através dessas falhas
Op. cit., p. 137). Nesse sentido o autor critica que podemos converter nosso olhar e empreen-
a “vaidade dos apelos ostentatórios dos filóso- der ações refletidas contra a dominação.
fos ‘pós-modernos’ no sentido de ‘ultrapassar No primeiro capítulo de La domination
os dualismos’”, observando a profunda anco- masculine, Bourdieu também seria incisivo: “há
ragem simbólica dessas oposições nos corpos sempre lugar para uma luta cognitiva a propósi-
e no mundo. Como pondera Héritier, talvez to do sentido das coisas do mundo e particular-
pensássemos de forma completamente distinta mente das realidades sexuais”.
se a humanidade não fosse sexuada.
Em suma, inscrita na estrutura e constituin-
do uma estratégia, a valência diferencial dos Françoise Héritier & Pierre Bourdieu: The
sexos e a dominação masculina pertenceriam, !"#$#%&!%$'()*+,-#.%-!*+(*/(-&"(0$'"12"3$-
com os homens e mulheres, à história. le Difference
displacements or even the erasure of “difference”. de Castro (1990) e Terray (1986). Segundo Viveiros
Instead of pointing out the significant distance be- de Castro, o princípio de reciprocidade encontrar-se-
-ia excluído das “leis fundamentais do parentesco”
tween these authors in dealing with the issue, this
enunciadas por Héritier tendo em vista a distinção
article proposes a reflection on the topics in which
que a autora realiza entre as estruturas elementares
their perspectives converge. de parentesco e as estruturas elementares de aliança,
keywords Body. Sex. Gender. Françoise Héri- e a defesa da anterioridade lógica das primeiras em
tier. Pierre Bourdieu. relação às segundas. Segundo o autor, ao derivar as
regras sociológicas de aliança das leis terminológicas
do parentesco consanguíneo, Héritier subordinaria a
aliança à consanguinidade e privilegiaria “universais
Notas ideológicos” sobre “universais sociológicos”. Já Terray
pondera que as duas leis enunciadas por Héritier são
1. Rose Marie Lagrave (2000, p. 457). suscetíveis de receber um tratamento diferenciado:
2. Defendendo-se das acusações de compartilhar um a primeira (as relações paralelas como expressão da
pensamento do “imobilismo”, Héritier (2001, p. 94- identidade), em termos de estrutura, de lógica; a se-
95) objetaria que um “invariante” não significa, de gunda (a valência diferencial dos sexos) em termos
modo algum, uma “resposta invariável” sobre o que de estratégia, de política. Terray sugere que Héritier
quer que seja: “O que é invariante é a capacidade hu- penderia para uma interpretação estratégica e políti-
mana de formular uma questão e reunir, para tanto, ca da valência diferencial dos sexos e questiona em
dois elementos que formam um sistema”. Ou seja: que medida uma orientação nessa linha poderia ser
“invariante” seria o quadro do pensamento, a pergun- considerada uma lei fundamental e universal do pa-
ta e não a resposta – variando esta última em função rentesco. Cf. também Terray, 1997. Nesta resenha
dos diferentes contextos culturais. consagrada a Héritier (1996), o autor considera a
3. Irredutível e incontornável, mas pensada de formas valência diferencial dos sexos sob outra perspectiva
distintas segundo as diferentes épocas e culturas, – como um “universal cultural” relacionado àquele
como tão bem demonstrou Laqueur (2001) ao se re- enunciado por Lévi-Strauss: a proibição do incesto.
ferir à nossa própria tradição cultural. Assim, tanto 6. A análise dos sistemas terminológicos de parentesco,
o que Lacqueur denomina modelo de sexo único – no é escusado dizer, não se refere ao estatuto real das mu-
qual a mulher figura como uma versão imperfeita do lheres, evidenciado nas práticas sociais, mas à relação
homem, anatomicamente como um “homem inver- ideológica entre os sexos.
tido”, havendo uma conversibilidade simbólica de 7. Questão que me parece diretamente relacionada com
fluidos (modelo que em sua ótica teria prevalecido a da anterioridade conferida ao “biológico” e ao “so-
até o século XVII) – quanto o que denomina modelo cial” na elaboração da lógica simbólica que opera na
de dois sexos – no qual homens e mulheres figuram construção da diferença masculino/feminino: se para
como sendo essencialmente distintos fisicamente, Héritier a “valência diferencial dos sexos” decorreria
constituindo-se essas distinções não em diferenças de da constatação da “incontornável” diferença anatô-
“grau”, mas de “natureza” (modelo que teria emer- mica e fisiológica entre os sexos e de sua “assimetria
gido entre os séculos XVIII e XIX) –, evidencia a no plano da reprodução”, para Bourdieu, ao con-
construção simbólica e hierárquica da diferença mas- trário, é a “visão androcêntrica” que construiria “as
culino/feminino. diferenças visíveis entre o corpo feminino e o corpo
4. Respectivamente as classificações “havaiana” (F = FB masculino”.
= MB), “sudanesa” (F ≠ FB ≠ MB), “eskimo” (F ≠ FB 8. Conforme avalia Fine, se a teoria de Bourdieu “parece
= MB) e “iroquesa” (F = FB ≠ MB), e a inexistência apta a explicar de que modo uma estrutura pode se re-
de (F = MB ≠ FB). Como observa Viveiros de Castro, produzir, ela não explica nem a configuração da estrutu-
“De fato, a oposição entre relações paralelas e cruza- ra em si, nem suas transformações” (Fine, 2003, p. 178).
das pode ser negada (fórmulas ‘havaiana’, ‘sudanesa’ 9. Nesse artigo, no qual propõe a ideia de “sistema de
e ‘eskimo’) ou afirmada (fórmulas ‘iroquesa’ e ‘crow/ sexo/gênero”, Gayle Rubin (1975) pondera que a es-
omaha’), mas não pode ser embaralhada” (1990, p. 6). trutura lógica que sustentaria a concepção lévi-straus-
5. Dentre as críticas à teoria geral do parentesco pro- siana do parentesco estaria fundada na naturalização
posta por Héritier (1981) cabe observar a de Viveiros da heterossexualidade: a troca de mulheres pressu-
poria, em suas palavras, um “tabu anterior e menos ______ . Articulations et substances. L’Homme, Paris, p.
explícito sobre a homossexualidade”. O que a autora 21-38, 2000a.
denomina “sistema de sexo/gênero” – definido como ______ . À propos de la théorie de l’échange. Commen-
um “conjunto de disposições pelas quais uma socie- taire de ‘Femmes échangées, femmes échangistes. In:
dade transforma a sexualidade biológica em produto L’Homme 154-155, 2000b.
da atividade humana e nas quais essas necessidades ______ . Inceste et substance. Œdipe, Allen, les autres
sexuais transformadas são satisfeitas” – estruturar-se- et nous. In: ANDRÉ, Jacques (Org.). Incestes. Paris:
-ia na dicotomia de gênero e na heterossexualidade PUF, 2001.
compulsória; a “subordinação” das mulheres cons- LAGRAVE, Rose Marie. Dialogue du deuxième type
tituiria um “produto das relações que organizam e sur la domination sociale du principe masculin. In:
produzem o sexo e o gênero”. Em sua perspectiva, JAMARD, Jean-Luc; TERRAY, Emmanuel; XAN-
a divisão sexual do trabalho exacerbaria as diferenças THAKOU, Margarita. (Orgs). En Substance. Textes
entre os sexos, “criando” o gênero, e prescreveria o pour Françoise Héritier. Paris: Fayard, 2000.
casamento heterossexual. LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero
10. A autora aprofundaria essa reflexão no segundo vo- dos gregos a Freud. Tradução de Vera Whately. Rio de
lume de Masculin/Féminin, Dissoudre la hiérarchie, Janeiro: Relume Dumará, [1992] 2001.
publicado em 2002. LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do
parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis:
Vozes, [1949] 1982.
______. Postface. L´Homme, Paris, p. 154-155, 2000.
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mination masculine?. In: Travail, genre et sociétés. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Princípios e parâ-
2003/2, N° 10, p. 174-180, 2003. metros: um comentário a L’exercice de la parenté. Co-
HÉRITIER, Françoise. Masculin/Féminin. La pensée de la municação no. 17, Programa de Pós-Graduação em
différence. Paris : Éditions Odile Jacob, 1996. Antropologia Social do Museu Nacional, Universida-
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Recebido em 29/03/2010
Aceito para publicação em 12/10/2010