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Françoise Héritier & Pierre Bourdieu:

a construção hierárquica da diferença masculino/


feminino

DEBORA BREDER

resumo Em fins dos anos 1990 Françoise Héri- e recorrendo a noções como “invariante” e
tier e Pierre Bourdieu lançariam, com um intervalo “estrutura”, pode-se dizer que ambos os livros
de apenas dois anos, Masculin/Feminin, la pensée apresentam uma perspectiva, se não cética, ao
de la différence (1996) e La domination masculine menos pouco otimista em relação aos discur-
(1998), respectivamente. Versando sobre a constru- sos, anunciando os possíveis deslocamentos ou
ção hierárquica da diferença masculino/feminino, mesmo o apagamento da “diferença” – perspec-
ambos os livros apresentam uma perspectiva, se tiva esta que teria suscitado, na época, alguns
não cética, ao menos pouco otimista em relação aos mal-entendidos e muitas críticas2.
discursos, anunciando possíveis deslocamentos ou Mais do que apontar os significativos afas-
mesmo o apagamento da “diferença”. Mais do que tamentos entre Françoise Héritier e Pierre
apontar os significativos afastamentos entre esses Bourdieu no que tange à questão, este artigo
autores no que tange à questão, este artigo propõe propõe uma reflexão sobre os pontos nos quais
uma reflexão sobre os pontos nos quais suas pers- suas perspectivas convergem.
pectivas convergem.
palavras-chave Corpo. Sexo. Gênero. Fran- A dominação masculina
çoise Héritier. Pierre Bourdieu.
Em A dominação masculina, Bourdieu
procura iluminar o conjunto dos complexos
Parmi ‘toutes les possibilités logiques, plausibles et mecanismos que operam, nos mais diversos
réalisables’ de débats, il en est une qui n’est pas en- domínios e em diferentes níveis, na construção
core advenue à l’existence: le dialogue entre Fran- hierárquica da diferença masculino/feminino.
çoise Héritier et Pierre Bourdieu à propôs d’un O objetivo do autor é apreender a lógica simbó-
même objet1 (Lagrave, 2000, p. 457). lica da dominação masculina; em suas palavras,
“demonstrar os processos que são responsáveis
Em fins dos anos 1990 Françoise Héritier e pela transformação da história em natureza,
Pierre Bourdieu – então professores do Collè- do arbitrário cultural em natural”, revelando,
ge de France – lançariam, com um intervalo de assim, tanto o “caráter arbitrário” dessa domi-
apenas dois anos, Masculin/Feminin, la pensée nação quanto sua “necessidade sócio-lógica”
de la différence (1996), e La domination mascu- (Bourdieu, 2003, p. 8).
line (1998), respectivamente. Para empreender essa “arqueologia objetiva
Versando sobre a construção simbólica e do inconsciente”, conforme denomina seu in-
hierárquica da diferença masculino/feminino tento, o autor propõe como método a análise

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de uma sociedade culturalmente afastada da te marcado em relação ao outro – e inserida


sua, observando ser este distanciamento uma num sistema de relações de sentido, ou seja,
condição imprescindível para compreender num discurso ideológico que ordena o mundo
tais mecanismos. Uma sociedade “exótica” e e qualifica os seres que o habitam.
“estranha”, mas, simultaneamente, “íntima” e Na sociedade cabila, a diferença masculino/
“familiar”. Conforme explica o autor, a escolha feminino inscreve-se em uma série de oposições
de Cabília, na Argélia, justifica-se pelo fato de homólogas, tais como alto/baixo, frente/trás,
esta sociedade representar uma “forma paradig- direita/esquerda, reto/curvo, seco/úmido, duro/
mática da visão ‘falo-narcísica’ e da cosmologia mole, claro/escuro, fora/dentro, ativo/passivo,
androcêntrica”, intrínseca à tradição medi- etc., cujos termos são diferentemente valora-
terrânea – uma tradição que seria partilhada dos. Deste modo, a constatação objetiva da di-
por “toda área cultural europeia” (Op. cit., p. ferença biológica entre os sexos transforma-se
14). A análise etnográfica desta sociedade – de em discurso simbólico que justifica, subjetiva e
suas estruturas objetivas e de suas formas cog- implicitamente, a dominação masculina:
nitivas – apresenta-se para o autor como um
meio eficaz para realizar uma “sócio-análise do O mundo social constrói o corpo como realida-
inconsciente androcêntrico capaz de operar a de sexuada e como depositário de princípios de
objetivação das categorias deste inconsciente” visão e de divisão sexualizantes. Esse programa
(Op. cit., p. 13). social de percepção incorporada aplica-se a to-
Segundo Bourdieu, ao contrário do que das as coisas do mundo e, antes de tudo, ao pró-
ocorre nas sociedades ocidentais modernas, na prio corpo, em sua realidade biológica: é ele que
sociedade cabila a sexualidade não constitui constrói a diferença entre os sexos biológicos,
uma ordem específica; no entanto, a diferença conformando-a aos princípios de uma visão mí-
sexual é largamente tematizada, participando tica do mundo, enraizada na relação arbitrária
do vasto conjunto de oposições que regem o de dominação dos homens sobre as mulheres,
cosmos: ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho,
na realidade da ordem social. A diferença bio-
A divisão entre os sexos parece estar “na ordem lógica entre os sexos, isto é, entre o corpo mas-
das coisas”, como se diz por vezes para falar do culino e o corpo feminino, e, especificamente,
que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: a diferença anatômica entre os órgãos sexuais,
ela está presente, ao mesmo tempo, em estado pode assim ser vista como justificativa natural
objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, da diferença socialmente construída entre os
cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o gêneros e, principalmente, da divisão social do
mundo social e, em estado incorporado, nos trabalho (Op. cit., p. 18-20).
corpos e nos habitus dos agentes, funcionando
como sistemas de esquemas de percepção, de Ou seja, os corpos não são apenas social-
pensamento e de ação (Op. cit., p. 17). mente construídos: eles são construídos segun-
do uma “visão androcêntrica” do mundo.
Fato inegável e dado à observação desde os Nesta perspectiva, portanto, não é o falo
primórdios da reflexão humana, a diferença se- (sua presença ou ausência, como quer a psi-
xual, contudo, não é apenas constatada: ela é canálise, por exemplo), ou as necessidades da
transcrita segundo uma lógica binária e hierar- reprodução biológica (cujo locus privilegiado é
quizada – pois um dos termos é invariavelmen- o corpo da mulher), que engendram a constru-

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ção hierárquica da diferença masculino/femi- veis cujo agenciamento se traduziria, sempre,


nino. Ao contrário: é a “visão androcêntrica” por uma desigualdade considerada como natu-
que, construindo arbitrariamente o biológico, ral, inscrita na ordem do mundo.
institui simbolicamente o falo como signo da Assim como Bourdieu, Héritier também
virilidade e justifica a divisão sexual do traba- considera que as categorias de gênero e as repre-
lho devido a um suposto handicap feminino sentações da pessoa, do corpo e de suas partes,
decorrente da gestação. Para Bourdieu (Op. por exemplo, não são fenômenos universais,
cit., p. 33), “A força particular da sociodiceia inscritos em uma natureza biológica irredutí-
masculina lhe vem do fato de ela acumular e vel, mas constituem, ao contrário, construções
condensar duas operações: ela legitima uma re- culturais específicas. A autora observa, con-
lação de dominação inscrevendo-a em uma na- tudo, que essas construções sociais não pode-
tureza biológica que é, por sua vez, ela própria riam ter sido edificadas em torno do nada: “A
uma construção social naturalizada”. reflexão dos homens, desde a emergência do
Assim, a “visão androcêntrica” do mundo pensamento, só pôde dirigir-se ao que lhes era
legitimar-se-ia continuamente por meio das dado observar de mais próximo: o corpo e o
práticas que ela própria determina, condi- meio em que está imerso” (Héritier, 1996, p.
cionando homens e mulheres, dominantes e 19, tradução minha). Assim, a observação das
dominados, aos mesmos esquemas de pensa- qualidades sensíveis teria levado à constatação,
mento – expresso numa linguagem binária e em si mesma bastante trivial, tanto da diferen-
hierarquizada – e ação – compelindo ambos os ça entre os sexos quanto dos diferentes papéis
sexos a agir conforme o que deles se espera. desempenhados por cada um na reprodução.
Segundo Bourdieu, instâncias como a Famí- Ao considerar esse ponto de vista é preciso
lia, a Igreja, a Escola e o Estado reproduziriam notar que, para a autora, a noção de identidade
material e simbolicamente a ordem masculina, passa necessariamente por uma representação
legitimando-a, explícita ou implicitamente, em do corpo e de seu lugar no mundo, sendo im-
ações políticas e práticas cotidianas. Sob esse possível viver como indivíduo, ou seja, como
aspecto as estruturas da dominação masculina ser social e sexuado, sem se colocar problemas
constituiriam o “produto de um trabalho in- relativos ao corpo. Nesse sentido, argumenta,
cessante de reprodução” – inscrevendo-se, por- ao analisar as categorias de gênero, que é pre-
tanto, na história (Op. cit., p. 46). ciso levar em consideração as representações
relativas ao corpo, aos diferentes papéis desem-
A valência diferencial dos sexos penhados por cada sexo na reprodução, aos
aportes dos ancestrais e genitores na formação
Mas o que teria originado essa “visão andro- da pessoa, etc., o que conduz, por conseguinte,
cêntrica” do mundo? às representações acerca dos humores do corpo,
Esta é justamente a questão que Héritier tais como o sangue, o leite, o esperma e a sali-
propõe em Masculin/Feminin, la pensée de la va – dados estes que são incontestavelmente de
différence. O objetivo da autora – que realizou ordem biológica, comuns a toda a humanida-
uma longa pesquisa etnográfica entre os Samo, de, e que teriam sido submetidos, em sua ótica,
do Burkina Fasso – é analisar a construção à “trituração intelectual” desde os primórdios
simbólica da diferença masculino/feminino, da reflexão humana.
procurando, no conjunto de representações Héritier sugere que a observação da dife-
próprio a cada sociedade, os elementos invariá- rença entre os sexos estaria no fundamento de

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todo pensamento, tradicional ou científico, de, em contraposição às relações cruzadas, suporte


constituindo uma espécie de themata arcaica da alteridade (Héritier, 1981, p. 38-39)4.
com a qual trabalharia o pensamento simbóli- Esta seria a primeira de duas “leis funda-
co. A partir desta constatação teriam emergido mentais do parentesco” enunciadas pela au-
para o espírito humano as categorias idêntico e tora a partir de seus estudos sobre os sistemas
diferente. semicomplexos de aliança. A segunda lei seria,
Categorias primordiais que articulariam o justamente, a “valência diferencial dos sexos”,
pensamento simbólico, o idêntico e o diferente definida como “o lugar diferente dos dois se-
estariam no cerne dos sistemas ideológicos: xos num quadro de valor”, e a “dominância do
princípio masculino” (Op. cit., p. 50)5.
Suporte maior dos sistemas ideológicos, a rela- Para Héritier, como vimos, embora as cate-
ção idêntico/diferente está na base dos sistemas gorias de gênero, as representações do corpo ou
que opõem dois a dois os valores abstratos ou a divisão sexual do trabalho não constituam fe-
concretos (quente/frio, seco/úmido, alto/bai- nômenos inscritos em uma natureza biológica
xo, inferior/superior, claro/escuro, etc.), valores irredutível por serem simbólica e socialmente
contrastados que reencontramos nas grades clas- construídos, essa elaboração se dá, não obstan-
sificatórias do masculino e do feminino (Op. te, a partir de um substrato biológico comum.
cit., p. 20, tradução minha). Esse substrato biológico comporta três da-
dos elementares, a saber: a existência de dois
Em suma, na perspectiva da autora, a defi- sexos (masculino/feminino), a sucessão das
nição de idêntico passaria pela comunidade de gerações (pais/filhos) e a ordem de nascimento
sexo, sendo essa diferença – de fato, irredutível no interior de uma mesma geração (primogê-
e incontornável3 – a marca elementar da alteri- nito/caçula). Em outras palavras, esses dados
dade a partir da qual se constituiria toda orga- naturais de base conformariam um campo de
nização social e toda ideologia. relações diferenciadas pelo sexo, pela geração e
Para fundamentar essa argumentação, Hé- pela primogenitura, intrínseco a todo sistema
ritier pondera acerca da ausência significativa de parentesco.
de uma única possibilidade lógica no tocante A autora ressalta, no entanto, que, embo-
às terminologias de parentesco. Em contrapo- ra inscritos no biológico, esses dados não são
sição às seguintes equações, todas encontradas traduzidos numa única linguagem. Espécie de
na experiência etnográfica, “matéria bruta” universal sobre a qual traba-
lharia o pensamento simbólico, esse substrato
paralelos = cruzados = irmãos biológico seria decomposto em unidades con-
paralelos ≠ cruzados ≠ irmãos ceituais e recomposto em diferentes cadeias
[paralelos = cruzados] ≠ irmãos sintagmáticas segundo cada sociedade. Ou seja,
[paralelos = irmãos] ≠ cruzados “[c]om um mesmo ‘alfabeto’ simbólico univer-
sal, ancorado nessa natureza biológica comum,
a autora constata a inexistência desta última: cada sociedade elabora ‘frases’ culturais singu-
lares e que lhes são próprias” (Héritier, 1996, p.
[cruzados = irmãos] ≠ paralelos 22, tradução minha).
A autora postula, contudo, que haveria um
Donde conclui, por conseguinte, que as re- domínio em que esses dados biológicos só te-
lações paralelas constituem o suporte da identida- riam recebido uma única tradução – postulado

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que a leva a formular o princípio da “valência damental do parentesco”, não obstante a sua
diferencial dos sexos” como modo organizador universalidade, relevaria da ordem simbólica:
dos sistemas de parentesco. ela constituiria “un artefact et non un fait de na-
Ao analisar a lógica implícita nas terminolo- ture” (Op. cit., p. 24).
gias de parentesco, ela observa que nos sistemas Mas qual seria, em última instância, a cau-
matrilineares crow, que deveriam apresentar a sa final da construção hierárquica da diferença
imagem invertida dos sistemas patrilineares masculino/feminino?
omaha (em que a relação irmão/irmã é equipa- Talvez uma das principais distinções entre
rada à relação pai/filha), a inversão não vai até as perspectivas de Héritier e Bourdieu diga res-
o fim (isto é, a relação irmã/irmão equiparada à peito a essa questão7. Ao contrário do segundo,
relação mãe/filho). A partir de uma determina- a primeira avança uma hipótese, sugerindo que
da geração, as relações reais de primogenitura a causa final dessa dominação encontrar-se-ia
intervêm e transformam a lógica do sistema, na vontade de controle, por parte dos homens,
fazendo com que o irmão mais velho de uma do poder genésico feminino (Op. cit., p. 230)8.
mulher não possa ser por ela tratado com um Com efeito, de seu ponto de vista a “valên-
termo equivalente ao de “filho”: cia diferencial dos sexos” encontraria a sua ra-
zão de ser no poder de fecundidade feminino;
Mesmo se os sistemas crow postulam, na sua es- em suas palavras, no “privilégio exorbitante que
sência, uma ‘dominância’ do feminino sobre o têm as mulheres de engendrar os dois sexos”,
masculino no coração mesmo da relação central fazendo com que “de uma forma saia outra for-
de germanidade entre um irmão e uma irmã, nem ma”, ou seja, que a mulher seja capaz de gerar
todas as suas consequências são extraídas, mesmo não apenas o idêntico, mas também o diferente
no registro da denominação – não me refiro, bem (Héritier, 2000a, p. 34-36). Sob esse aspecto
entendido, ao funcionamento global das socie- a dominação masculina não decorreria de um
dades. Já nos sistemas omaha, essa ‘dominância’ suposto handicap feminino devido à diferença
conceitual do masculino sobre o feminino nas de peso, altura, força, períodos de gestação e
relações de germanidade extrai, implacável e im- aleitamento, e sim da vontade de controle, por
pertubavelmente, suas consequências até o fim parte dos homens, da fecundidade feminina.
(Op. cit., p. 24-25, tradução minha)6. Os sistemas de parentesco e as regras sociais da
aliança, que segundo as evidências etnográficas
Nesse sentido, argumenta Héritier, não há implicam geralmente a troca de mulheres pelos
nenhum sistema de parentesco cuja lógica in- homens, assegurariam o controle masculino
terna estabeleça que uma relação que vai das sobre o poder de fecundidade feminino.
mulheres aos homens, das irmãs aos irmãos,
possa ser transcrita para uma relação em que A valência diferencial dos sexos e a
as mulheres sejam primogênitas e pertençam proibição do incesto
estruturalmente à geração superior.
Em suma, a “valência diferencial dos sexos” Ao considerar essa hipótese, como vemos,
(que a autora diferencia do fato social da do- deparamo-nos com um dos grandes postula-
minação masculina) exprimiria uma relação dos antropológicos: a teoria lévi-straussiana da
conceitual orientada e hierarquizada entre o proibição do incesto, fundada no imperativo
masculino e o feminino. Inscrevendo-se no da troca. Héritier refere-se explicitamente à
cerne das estruturas sociais, a segunda “lei fun- questão:

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No entanto, dizer exatamente por que a valên- do incesto inscrever-se-ia como o evento inau-
cia diferencial dos sexos parece ter se imposto gural de uma nova ordem: ao instaurar o fato
de modo tão universal, assim como a proibição sociológico da aliança sobre o fato biológico da
do incesto, parece ressair das mesmas necessi- consanguinidade, a “regra do dom por excelên-
dades: trata-se de construir o social e as regras cia” instituiria a própria sociedade humana.
que lhe permitem funcionar. Ao lado dos três Sob essa ótica, como vemos, a proibição
pilares que eram, para Lévi-Strauss, a proibição do incesto relevaria da estrutura. Manifestação
do incesto, a divisão sexual do trabalho e uma universal do princípio de reciprocidade, esta
forma reconhecida de união sexual, eu acres- proibição instauraria, no fato da troca, o uni-
centaria de bom grado um quarto, tão evidente verso das regras. Nesse sentido pode-se dizer
que não se via, mas absolutamente indispensável que a função simbólica da troca – a reciproci-
para explicar o funcionamento dos demais, que dade em ação nos ritos cotidianos – consistiria,
também só se referem à relação do masculino e em última instância, em revelar ao homem sua
do feminino. Esse quarto pilar, ou, se preferir- própria condição humana. Trocar com o outro
mos, a corda que liga entre si os três pilares do significa que eu sou, que eu existo e reconheço
trípode social, é a valência diferencial dos sexos o outro como semelhante; mais, significa tam-
(Héritier, 1996, p. 27, tradução minha). bém que espero ser por ele reconhecido.
Desde sua proposição em As estruturas ele-
Para Lévi-Strauss (1982), como sabemos, mentares do parentesco, apresentada em 1948
a proibição do incesto – a “regra do dom por como tese de doutorado na Sorbonne, pode-se
excelência” – constituir-se-ia na própria cul- dizer que a teoria da aliança foi amplamente
tura em si. Passagem dialética entre natureza aceita e rejeitada no campo acadêmico, revista
e cultura, a proibição do incesto instauraria o e retomada sob diversos aspectos e em diferen-
fato da aliança. As mulheres, o bem “supre- tes áreas, constituindo uma referência obriga-
mo” e “escasso”, seriam objeto de troca entre tória, ainda que sob distintas abordagens, nos
os homens: a renúncia à própria mãe, irmã ou estudos de parentesco. Não por acaso, grande
filha, impedindo a autorreprodução de famílias parte dos estudos de gênero – dentre os quais
biológicas isoladas e fechadas sobre si mesmas, os estudos feministas – também a mencionam,
levaria o homem a estabelecer laços com ou- considerando, na maioria das vezes de modo
tros homens, ampliando as relações sociais e crítico, algumas de suas principais asserções.
integrando todos num sistema de obrigações Dentre estas asserções destaca-se, indubita-
mútuas em função das alianças feitas. velmente, a da troca de mulheres pelos homens.
Assim, ao procurar empreender uma gênese Segundo boa parte dos estudos feministas, a
lógica da emergência da cultura, Lévi-Strauss teoria lévi-straussiana estaria calcada numa
enuncia aquele que se tornaria um postulado visão androcêntrica e naturalista do mundo –
fundamental em sua obra, alvo de inúmeros visão esta que reservaria ao homem o estatu-
desdobramentos: a troca como fundamento da to de sujeito e relegaria a mulher à posição de
sociedade e o princípio de reciprocidade como mero objeto de troca. Em seu célebre artigo,
fundamento do pensamento simbólico. Para o considerado um “clássico” para os estudos de
autor, a troca – condição sine qua non do es- gênero, Gayle Rubin (1975) argumenta que
tado de sociedade – constituir-se-ia num “fato se a troca de mulheres constitui um “concei-
social total”, capaz de integrar os mais diversos to sedutor e forte”, por situar a opressão das
níveis constitutivos da realidade. A proibição mulheres no interior de sistemas sociais e não

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em questões de ordem biológica, ele constitui, seu autor, os dados etnográficos demonstram
não obstante, um “conceito problemático” se majoritariamente que são os homens que tro-
for pensado como instituidor e fundamento da cam as mulheres ou, ao menos, assim conce-
cultura9. No campo antropológico, certos tra- bem a relação entre os sexos – fato este que, por
balhos questionam a universalidade da troca de sua generalidade, não deixa de ser significativo.
mulheres pelos homens baseando-se em dados Como nota Héritier (2000b, p. 119), uma coi-
etnográficos até então desconhecidos ou supos- sa é questionar os antropólogos por não discu-
tamente mal-interpretados. Chantal Collard tirem suficientemente a dominação masculina;
(2000), por exemplo, procura demonstrar o outra, bem diferente, é pensar que as evidências
viés “sexista” e “naturalista” dessa teoria, ques- etnográficas podem ser negadas. Não é de
tionando a universalidade da aliança, por um surpreender, portanto, que em A dominação
lado, e a da troca de mulheres pelos homens, masculina Bourdieu também tenha abordado o
por outro, a partir da análise dos casos Na, problema, identificando na economia de trocas
Garo e Minangkabau. simbólicas – e, em última instância, na proibi-
Todavia, ao considerar essas críticas, Lévi- ção do incesto – a razão última da construção
-Strauss observaria – como já o havia feito em hierárquica da diferença masculino/feminino:
1983, em “A família” –, que seria indiferente
à teoria da aliança que sejam os homens que É na lógica da economia de trocas simbólicas –
trocam as mulheres ou vice-versa: e, mais precisamente, na construção social das
relações de parentesco e do casamento, em que
Que, nessa construção, sejam os homens ou as se determina às mulheres seu estatuto social de
mulheres que se deslocam não altera nada em sua objetos de troca, definidos segundo os interes-
economia. Basta inverter os signos e o sistema de ses masculinos, e destinados assim a contribuir
relações continuará o mesmo. E a supor que os para a reprodução do capital simbólico dos
dois sexos sejam colocados em uma posição de homens – que reside a explicação do primado
igualdade, poderíamos dizer, o que acaba dando concedido à masculinidade nas taxinomias cul-
no mesmo, que grupos formados de homens e turais. O tabu do incesto, em que Lévi-Strauss
de mulheres trocam entre si relações de parentes- vê o ato fundador da sociedade, na medida em
co. Não decretei que os homens eram os agentes que implica o imperativo da troca compreendi-
e as mulheres os objetos de troca. Os dados et- do como igual comunicação entre os homens, é
nográficos simplesmente me mostraram que, na correlativo da instituição da violência pela qual
maior parte das sociedades, os homens fazem ou as mulheres são negadas como sujeitos da troca
concebem as coisas desse modo, e que em função e da aliança que se instauram através delas, mas
de sua generalidade, essa disparidade oferece um reduzindo-as à condição de objetos, ou melhor,
caráter fundamental. Era preciso, portanto, que a de instrumentos simbólicos da política masculina:
teoria levasse em conta essa situação, ainda que ela destinadas a circular como signos fiduciários e a
pudesse se acomodar na situação inversa – que, instituir assim as relações entre os homens, elas
conforme sabemos hoje, existe ou parece existir ficam reduzidas à condição de instrumentos de
num número muito pequeno de sociedades (Lévi- produção ou de reprodução do capital simbóli-
-Strauss, 2000, p. 717-718, tradução minha). co e social (Bourdieu, Op. cit., p. 56).

Em outras palavras, se a teoria da aliança No entanto, ao considerar a questão o autor


não está ligada a um sexo preciso, como objeta procura sublinhar o poder desigual que permeia

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a relação masculino/feminino e a dimensão esse aspecto a “valência diferencial dos sexos”


política da transação matrimonial, fatos que, relevaria não apenas da ordem simbólica: ela
de seu ponto de vista, teriam sido obliterados estaria intrinsecamente relacionada ao evento
pela abordagem “estritamente semiológica” de que, nos termos de Lévi-Strauss, fundaria a so-
Lévi-Strauss. Nesse sentido Bourdieu enfatiza ciedade humana – encontrando nessa relação o
o papel dos agentes na reprodução das repre- princípio de sua universalidade.
sentações e práticas que organizam o mundo Em função dessa profunda ancoragem nas
social, privilegiando noções tais como as de “estruturas inconscientes do espírito humano”,
“estratégia” e “interesse” em contraposição, por como diria Héritier, ou no “inconsciente his-
exemplo, às de “regra” e “estrutura”, considera- tórico e androcêntrico”, como diria Bourdieu,
das demasiado “normativas” por certas corren- ambos consideram com reserva os discursos
tes da disciplina. que alardeiam uma mudança significativa da
ordem sexual. Embora reconheçam que as mu-
A historicidade das estruturas e as lheres, nas sociedades ocidentais modernas, te-
lutas cognitivas nham logrado certas conquistas, especialmente
nas últimas décadas, ambos observam que a
Em que pesem os diferentes horizontes te- construção hierárquica da diferença masculi-
óricos de Françoise Héritier e Pierre Bourdieu, no/feminino prossegue seu curso, conforme
pode-se dizer que há uma convergência de indica, por exemplo, a constante recomposição
perspectivas quanto a determinadas questões de domínios exclusivamente masculinos a cada
relativas à construção hierárquica da diferença nova conquista feminina. É o que Bourdieu
masculino/feminino. denomina de a “permanência na mudança”,
Em primeiro lugar, ambos consideram o isto é, a permanência da posição relativa entre
fato social da dominação masculina e o discur- os sexos apesar dessas conquistas. Como nota
so ideológico que a legitima como relevando, Héritier:
em última instância, da ordem simbólica. A
construção hierárquica da diferença mascu- O que impressiona, apesar dos mais diversos agen-
lino/feminino constituiria uma manipula- ciamentos, são as constantes. Se o papel dos atores
ção simbólica de dados biológicos: transcritas sociais, atualmente, é extremamente importante
numa linguagem binária cujos termos são dife- na diminuição das diferenças vivenciadas, nota-
rentemente marcados, as diferenças sexuais, de damente nas sociedades desenvolvidas; se vemos
ordem fisiológica e anatômica, transformam-se produzirem-se mutações profundas, seja de ori-
em valores, sendo inseridas em um sistema de gem técnica (as biotecnologias), seja pela evolução
relações de sentido que ordena o mundo e qua- dos costumes (as transformações ocorridas no seio
lifica quem o habita. Assim, a relação orientada da família, no exercício da sexualidade, etc.), não
e hierarquizada entre o masculino e o femini- me parece, contudo, que é chegada a hora em que
no, relação ideológica, traduzir-se-ia por uma as relações de gênero sejam necessária e universal-
desigualdade evidenciada cotidianamente nas mente concebidas como uma relação igualitária,
práticas sociais. intelectualmente e na prática. E me parece difí-
Em segundo lugar, ambos postulam a exis- cil chegarmos lá, tendo em vista a estreita ligação
tência de um estreito vínculo entre a dominação que existe, aos meus olhos, entre os quatro pilares
masculina e a proibição do incesto – entendida fundadores de toda sociedade (Héritier, 1996, p.
como a troca de mulheres pelos homens. Sob 27-28, tradução minha).

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Como vemos, Héritier não nega a ação dos dessa diferença (assimetria) implica, no registro
agentes singulares, homens e mulheres, tanto na simbólico, o glissement da hierarquia na cons-
perpetuação quanto na transformação do fato trução da relação masculino/feminino, isso não
social da dominação masculina. Ela observa, significa, bem entendido, que em sua perspec-
contudo, a óbvia existência desses agentes des- tiva o fato social da dominação masculina seja
de os primórdios da humanidade – ainda que algo imutável:
seja difícil decriptar, sob o acúmulo dos séculos,
suas ações e o efeito dessas ações sobre as repre- A base da dominação masculina parece tão ar-
sentações acerca do corpo e da diferença sexual. caica e tão profundamente ancorada que nada
Se Héritier não nega as “estratégias” dos a poderia abalar. Esta não é uma certeza, con-
agentes, Bourdieu tampouco nega a permanên- tudo, pois se como o enuncio aqui, o motivo
cia das “estruturas”, notando que as “constantes da dominação masculina é o poder feminino de
e invariáveis” também fazem parte da história. fecundidade, é a ação nesse ponto preciso que
Embora saliente a “historicidade” do “incons- deve conseguir abalar o edifício (Héritier, 2000,
ciente androcêntrico”, o autor reconhece que p. 36, tradução minha)10.
a dominação masculina “está há milênios ins-
crita na objetividade das estruturas sociais e na Conforme defenderia na introdução de
subjetividade das estruturas cognitivas”, e que Masculin/Féminin. La pensée de la différence, não
não dispomos, para pensar essa diferença, em há sistema de representação que seja totalmen-
última instância, mais do que de “um espírito te fechado sobre si mesmo; todos comportam
estruturado segundo essa oposição” (Bourdieu, aberturas, e é justamente através dessas falhas
Op. cit., p. 137). Nesse sentido o autor critica que podemos converter nosso olhar e empreen-
a “vaidade dos apelos ostentatórios dos filóso- der ações refletidas contra a dominação.
fos ‘pós-modernos’ no sentido de ‘ultrapassar No primeiro capítulo de La domination
os dualismos’”, observando a profunda anco- masculine, Bourdieu também seria incisivo: “há
ragem simbólica dessas oposições nos corpos sempre lugar para uma luta cognitiva a propósi-
e no mundo. Como pondera Héritier, talvez to do sentido das coisas do mundo e particular-
pensássemos de forma completamente distinta mente das realidades sexuais”.
se a humanidade não fosse sexuada.
Em suma, inscrita na estrutura e constituin-
do uma estratégia, a valência diferencial dos Françoise Héritier & Pierre Bourdieu: The
sexos e a dominação masculina pertenceriam, !"#$#%&!%$'()*+,-#.%-!*+(*/(-&"(0$'"12"3$-
com os homens e mulheres, à história. le Difference

*** abstract In the late 1990s Françoise Héritier


and Pierre Bourdieu published, with an interval of
E por pertencer à história, a dominação mas- only two years between them, Masculin/Feminin,
culina está sujeita, evidentemente, à mudança. la pensée de la différence (1996), and La domination
Nesse sentido é oportuno lembrar que se masculine (1998), respectively. Dealing with the
para Héritier não existe sociedade possível sem hierarchical construction of the difference between
o reconhecimento, cognitivo e social, da di- male and female, both books present a perspecti-
ferença sexual (ou da assimetria dos sexos no ve that is, if not skeptical, at least little optimistic
plano da reprodução) e se o reconhecimento concerning the discourses that announce possible

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displacements or even the erasure of “difference”. de Castro (1990) e Terray (1986). Segundo Viveiros
Instead of pointing out the significant distance be- de Castro, o princípio de reciprocidade encontrar-se-
-ia excluído das “leis fundamentais do parentesco”
tween these authors in dealing with the issue, this
enunciadas por Héritier tendo em vista a distinção
article proposes a reflection on the topics in which
que a autora realiza entre as estruturas elementares
their perspectives converge. de parentesco e as estruturas elementares de aliança,
keywords Body. Sex. Gender. Françoise Héri- e a defesa da anterioridade lógica das primeiras em
tier. Pierre Bourdieu. relação às segundas. Segundo o autor, ao derivar as
regras sociológicas de aliança das leis terminológicas
do parentesco consanguíneo, Héritier subordinaria a
aliança à consanguinidade e privilegiaria “universais
Notas ideológicos” sobre “universais sociológicos”. Já Terray
pondera que as duas leis enunciadas por Héritier são
1. Rose Marie Lagrave (2000, p. 457). suscetíveis de receber um tratamento diferenciado:
2. Defendendo-se das acusações de compartilhar um a primeira (as relações paralelas como expressão da
pensamento do “imobilismo”, Héritier (2001, p. 94- identidade), em termos de estrutura, de lógica; a se-
95) objetaria que um “invariante” não significa, de gunda (a valência diferencial dos sexos) em termos
modo algum, uma “resposta invariável” sobre o que de estratégia, de política. Terray sugere que Héritier
quer que seja: “O que é invariante é a capacidade hu- penderia para uma interpretação estratégica e políti-
mana de formular uma questão e reunir, para tanto, ca da valência diferencial dos sexos e questiona em
dois elementos que formam um sistema”. Ou seja: que medida uma orientação nessa linha poderia ser
“invariante” seria o quadro do pensamento, a pergun- considerada uma lei fundamental e universal do pa-
ta e não a resposta – variando esta última em função rentesco. Cf. também Terray, 1997. Nesta resenha
dos diferentes contextos culturais. consagrada a Héritier (1996), o autor considera a
3. Irredutível e incontornável, mas pensada de formas valência diferencial dos sexos sob outra perspectiva
distintas segundo as diferentes épocas e culturas, – como um “universal cultural” relacionado àquele
como tão bem demonstrou Laqueur (2001) ao se re- enunciado por Lévi-Strauss: a proibição do incesto.
ferir à nossa própria tradição cultural. Assim, tanto 6. A análise dos sistemas terminológicos de parentesco,
o que Lacqueur denomina modelo de sexo único – no é escusado dizer, não se refere ao estatuto real das mu-
qual a mulher figura como uma versão imperfeita do lheres, evidenciado nas práticas sociais, mas à relação
homem, anatomicamente como um “homem inver- ideológica entre os sexos.
tido”, havendo uma conversibilidade simbólica de 7. Questão que me parece diretamente relacionada com
fluidos (modelo que em sua ótica teria prevalecido a da anterioridade conferida ao “biológico” e ao “so-
até o século XVII) – quanto o que denomina modelo cial” na elaboração da lógica simbólica que opera na
de dois sexos – no qual homens e mulheres figuram construção da diferença masculino/feminino: se para
como sendo essencialmente distintos fisicamente, Héritier a “valência diferencial dos sexos” decorreria
constituindo-se essas distinções não em diferenças de da constatação da “incontornável” diferença anatô-
“grau”, mas de “natureza” (modelo que teria emer- mica e fisiológica entre os sexos e de sua “assimetria
gido entre os séculos XVIII e XIX) –, evidencia a no plano da reprodução”, para Bourdieu, ao con-
construção simbólica e hierárquica da diferença mas- trário, é a “visão androcêntrica” que construiria “as
culino/feminino. diferenças visíveis entre o corpo feminino e o corpo
4. Respectivamente as classificações “havaiana” (F = FB masculino”.
= MB), “sudanesa” (F ≠ FB ≠ MB), “eskimo” (F ≠ FB 8. Conforme avalia Fine, se a teoria de Bourdieu “parece
= MB) e “iroquesa” (F = FB ≠ MB), e a inexistência apta a explicar de que modo uma estrutura pode se re-
de (F = MB ≠ FB). Como observa Viveiros de Castro, produzir, ela não explica nem a configuração da estrutu-
“De fato, a oposição entre relações paralelas e cruza- ra em si, nem suas transformações” (Fine, 2003, p. 178).
das pode ser negada (fórmulas ‘havaiana’, ‘sudanesa’ 9. Nesse artigo, no qual propõe a ideia de “sistema de
e ‘eskimo’) ou afirmada (fórmulas ‘iroquesa’ e ‘crow/ sexo/gênero”, Gayle Rubin (1975) pondera que a es-
omaha’), mas não pode ser embaralhada” (1990, p. 6). trutura lógica que sustentaria a concepção lévi-straus-
5. Dentre as críticas à teoria geral do parentesco pro- siana do parentesco estaria fundada na naturalização
posta por Héritier (1981) cabe observar a de Viveiros da heterossexualidade: a troca de mulheres pressu-

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poria, em suas palavras, um “tabu anterior e menos ______ . Articulations et substances. L’Homme, Paris, p.
explícito sobre a homossexualidade”. O que a autora 21-38, 2000a.
denomina “sistema de sexo/gênero” – definido como ______ . À propos de la théorie de l’échange. Commen-
um “conjunto de disposições pelas quais uma socie- taire de ‘Femmes échangées, femmes échangistes. In:
dade transforma a sexualidade biológica em produto L’Homme 154-155, 2000b.
da atividade humana e nas quais essas necessidades ______ . Inceste et substance. Œdipe, Allen, les autres
sexuais transformadas são satisfeitas” – estruturar-se- et nous. In: ANDRÉ, Jacques (Org.). Incestes. Paris:
-ia na dicotomia de gênero e na heterossexualidade PUF, 2001.
compulsória; a “subordinação” das mulheres cons- LAGRAVE, Rose Marie. Dialogue du deuxième type
tituiria um “produto das relações que organizam e sur la domination sociale du principe masculin. In:
produzem o sexo e o gênero”. Em sua perspectiva, JAMARD, Jean-Luc; TERRAY, Emmanuel; XAN-
a divisão sexual do trabalho exacerbaria as diferenças THAKOU, Margarita. (Orgs). En Substance. Textes
entre os sexos, “criando” o gênero, e prescreveria o pour Françoise Héritier. Paris: Fayard, 2000.
casamento heterossexual. LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero
10. A autora aprofundaria essa reflexão no segundo vo- dos gregos a Freud. Tradução de Vera Whately. Rio de
lume de Masculin/Féminin, Dissoudre la hiérarchie, Janeiro: Relume Dumará, [1992] 2001.
publicado em 2002. LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do
parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis:
Vozes, [1949] 1982.
______. Postface. L´Homme, Paris, p. 154-155, 2000.
Referências bibliográficas  RUBIN, Gayle. The Traffic in Women: Notes on the ‘Po-
litical Economy’ of Sex. In: REITER, Rayna (Org.).
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Toward an Anthropology of Women. Nova York: Mon-
de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro : Bertrand do thly Review, 1975. p. 157-210.
Brasil, [1998] 2003. TERRAY, Emmanuel. Sur l’exercice de la parenté (note
COLLARD, Chantal. Femmes échangées, femmes échan- critique). Annales: économies, sociétés, civilisations, Pa-
gistes. À propos de la théorie de l’alliance de Claude ris, v. 41, no. 2, 1986.
Lévi-Strauss. L’Homme, Paris, p. 101-115, 2000. ______. La pensée de la différence. L’Homme, Paris, n.
FINE, Agnes. Valence différentielle des sexes et/ou “do- 141, 1997.
mination masculine?. In: Travail, genre et sociétés. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Princípios e parâ-
2003/2, N° 10, p. 174-180, 2003. metros: um comentário a L’exercice de la parenté. Co-
HÉRITIER, Françoise. Masculin/Féminin. La pensée de la municação no. 17, Programa de Pós-Graduação em
différence. Paris : Éditions Odile Jacob, 1996. Antropologia Social do Museu Nacional, Universida-
de Federal do Rio de Janeiro, 1990.

autora Debora Breder


Doutora em Antropologia Social / UFF
Professora da Universidade Cândido Mendes

Recebido em 29/03/2010
Aceito para publicação em 12/10/2010

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