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Copyright © 2020 de SARA FIDÉLIS

QUE SEJA DOCE


TODOS OS DIREITOS
RESERVADOS.
Edição Digital | Criado no Brasil.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer


semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera
coincidência. Este livro ou qualquer
parte dele não pode ser reproduzido ou
usado de forma alguma sem autorização
expressa, por escrito, da autora, exceto
pelo uso de citações breves em resenhas
ou avaliações críticas.

Revisão: Rômulo Bartalini e Di


Marroquim
Capa: Washington Rodrigues
Artes: Washington Rodrigues
Diagramação: Letti Oliver

A violação dos direitos autorais é crime


estabelecido pela lei n° 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do código penal.
1° EDIÇÃO, 2020.
Dedico este livro aquelas mulheres
que necessitam de mais açúcar
em suas vidas.
Cinco anos após a fatídica noite
que fez o futuro arquitetado de Robin
ruir, ela tenta sobreviver em meio a
dificuldades, cuidando sozinha de seu
filho, Bernardo, e trabalhando em um
emprego que odeia, após abandonar o
sonho de abrir a própria doceria.
Decidida de que não há espaço e
nem tempo para paixões em sua vida, a
confeiteira faz de tudo para não ser
notada, mas o acaso se encarrega de dar
a Robin uma transferência no emprego,
que a leva para outra cidade e a outra
pessoa.
Dominic é apaixonado por
palavras e vê nelas, sejam faladas,
escritas ou cantadas, uma chance de
mudar vidas. Com a carreira de
psicólogo em ascensão, ele está de volta
à sua cidade natal e deseja apenas um
colega para dividir o aluguel.
Uma confusão com os nomes
desses dois e voilà: temos a receita
perfeita para cenas hilárias, fortes
emoções, um romance com cheirinho de
chocolate e potência para aquecer os
forninhos.
Olá, caras leitoras!
Quero apresentar rapidamente
para vocês, meu novo romance.
Que Seja Doce, é uma comédia
romântica, com uma pitada de drama e
algumas colheres de hot.
Acredito que tenha todos os
ingredientes que fazem uma boa história
e espero que vocês se apaixonem por
esse casal, tanto quanto eu...
Quero apenas salientar, que
algumas palavrinhas, como pra e tá,
foram mantidas nessa informalidade
para dar mais fluidez ao texto e deixá-lo
mais próximo a realidade.
Além disso, por mais que o livro
se passe no Brasil, mais precisamente
em Minas Gerais, as cidades de
Cordilhéus e Lagos, são fictícias, apenas
levemente inspiradas em outros
municípios reais do sul de Minas.

Recado dado,
Boa leitura!
Sara Fidélis.
CAPÍTULO 01
CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03
CAPÍTULO 04
CAPÍTULO 05
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07
CAPÍTULO 08
CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
EPÍLOGO
LIVRO DE RECEITAS DA ROBIN
AGRADECIMENTOS
NOTAS DA AUTORA
Cordilhéus - MG
O sonho era bom.
Seja lá com o que estava
sonhando, sei que era bom porque não
acordei com a sensação sufocante do
choro e a tristeza esmagando meu peito.
Acontece algumas vezes.
Hoje, não. Na verdade, é bem
provável que eu perdesse a hora, já que
meu celular não despertou — maravilha.
Mas tenho um pequeno despertador
humano, que nesse momento desfere,
sem muito cuidado, cutucões seguidos
em meu rosto.
Os dedinhos gorduchos
encontram minha narina e abro os olhos,
assustada.
— Mamãe... Acoda, mamãe.
— Hum... — Me viro, tentando
fugir do alcance de suas mãozinhas.
— Acoda, acoda, acoda,
acooooooda, mãe.
Coloco o travesseiro sobre a
cabeça, minha última tentativa de dormir
uns minutos a mais. Óbvio que nada
adianta quando está determinado. Ele
sobe na cama e parece ter tomado como
missão descobrir meu rosto.
— Mããããe... Tá na hora de
acodar, dorminhoca.
Eu sorrio, reconhecendo as
mesmas palavras que costumo usar todas
as manhãs para arrancá-lo da cama e,
por fim, desisto do sono e descubro o
rosto. Me sento e encontro dois olhinhos
verdes me encarando.
— Bom dia, Minduim! — Ele
sorri diante do apelido que lhe dei logo
que descobrimos sua alergia a
amendoim, quando ele tinha apenas dois
anos.
— Quero o cereal do erefante
mãe, eu não alcanço.
Claro que ele não alcança.
Coloquei propositalmente na prateleira
mais alta do armário na cozinha, do
contrário Bernardo comeria tudo de uma
vez.
Fito a carinha dele, os olhos
praticamente implorando, o pijama de
leãozinho com direito a touca com juba
e tudo, e não resisto. Como sempre.
Levanto-me e alongo os braços,
antes de calçar as pantufas ao lado da
cama e seguir até a cozinha.
Começo a preparar o cereal
enquanto vejo Bernardo se pendurando
na banqueta até conseguir subir. Ele tem
quatro anos, mas ainda é bem pequeno,
apesar de muito esperto.
— Hoje eu vou pa escola?
Ergo os olhos para ele outra vez.
— Minduim, você está de férias.
A mamãe já explicou que vamos nos
mudar de cidade por causa do trabalho
da mamãe e para ficar perto da vovó.
Você vai pra uma escola nova, assim que
as férias acabarem.
Vejo que os olhinhos dele se
acendem. Bernardo é apaixonado pela
minha avó.
Desde que minha vida mudou há
quase cinco anos atrás, me vi sozinha,
sem pai ou mãe, sem Derek, grávida e
em luto, então eu e minha avó nos
aproximamos muito e moramos juntas
por algum tempo.
Mas a idade avançada e a morte
de seu filho cobraram um preço na
mente fragilizada dela. Quando as
confusões e os esquecimentos
começaram, percebemos logo e ela
mesma decidiu se mudar para uma casa
de repouso.
Não era o que eu ou Bernardo
queríamos, mas infelizmente a
alternativa não existia. Eu não podia
deixar de trabalhar para cuidar dela,
porque preciso sustentar meu filho, vovó
não podia ficar mais sozinha e dinheiro
para cuidadores simplesmente não
existia.
Dessa forma, a casa de repouso
veio a calhar. Ela se mudou para uma
cidade vizinha e Bernardo e eu ficamos
sozinhos.
Desde então, deixo meu filho na
escola todos os dias em período integral
e trabalho como atendente em uma
joalheria no shopping.
Por sorte — não posso dizer que
achei ruim — a empresa está em
constante expansão, e com a abertura de
uma filial em Lagos fui transferida para
lá. O que é bom, não temos mais
ninguém aqui e poderemos ficar perto da
vovó Rute.
O pensamento me faz lembrar
que há outra pessoa que mora em Lagos.
Alguém que prefiro não reencontrar.
— Hein, mãe???
Só então percebo que me perdi e
não ouvi o que disse.
— O que perguntou, Bê? —
questiono, colocando a tigela de cereal
com leite na sua frente.
— Vovó Rute disse que minha
outa avó mora lá. Vou conhecer ela?
Ela, a outa avó, já tentou uma
reaproximação milhares de vezes,
ligações, mensagens e aparições
esporádicas no meu trabalho. Todas
ignoradas.
Minha mãe nos deixou e vive em
Lagos. A atitude dela resultou no
incidente com meu pai e impediu que
meu filho conhecesse o seu. Minha vida
mudou completamente em cinco minutos.
Todos os projetos da moça
recém formada deixaram de existir,
meus planos foram moldados outra vez,
porque de repente só o que importava
era o bebê que carregava em meu ventre.
Tudo mudou por uma decisão egoísta da
parte dela e por isso mesmo, evitei a
todo custo que soubesse da existência do
neto.
— Não, querido. Vovó Rute não
devia ter falado disso com você, ela
sabe que não vai acontecer. Além disso,
você já tem duas avós e um avô, pra que
precisa de mais? — falo, me referindo
aos pais do Derek, que apesar de
morarem em outro estado, vez ou outra
aparecem para ver o neto.
Bernardo apenas dá de ombros
enquanto enche uma colherada e coloca
na boca. Graças a Deus, ele ainda não
consegue entender muito bem tudo isso e
dá pouca importância.
— Você vai ficar na Mari, tá
bom? A mamãe te pega depois do
trabalho. Come tudinho aí enquanto eu
vou me vestir.
Deixo-o comendo e caminho na
direção do quarto, mais irritada que dez
minutos antes. Odeio ter que falar na
minha mãe.
Abro o guarda-roupas e tento me
decidir entre um vestido cinza, largo e
longo ou um conjunto social preto.
Sempre me visto com seriedade e com o
máximo de discrição possível para não
atrair atenção, na verdade, os óculos
enormes que uso e o coque preso são
minhas ferramentas usuais para afastar
qualquer interessado.
Quando tudo aconteceu e eu tive
alta do hospital, fui morar com minha
avó, que me acolheu naquele momento
tão difícil. Ela também sofreu muito e
nós nos demos apoio em meio à
tragédia. A casa em que morava com
meu pai não era nossa e, apesar de muito
trabalhador, não nos deixou nada além
de alguns trocados no banco, que
ajudaram muito quando precisei
comprar as coisas para um bebê
totalmente inesperado.
Perdi muita coisa naqueles dias.
A mãe — porque, infelizmente para
todos nós, eu a culparia sempre por tudo
que veio depois da sua partida — e os
dois homens que eu amava. Algo assim,
tão doloroso, faz com que algumas
mudanças sejam necessárias.
Eu tenho alguns colegas no
trabalho, mas não falo sobre o passado e
com certeza não me envolvi
emocionalmente com mais ninguém
depois do Derek. Não é algo que eu
queira pra mim e pro Bernardo, estamos
bem sozinhos e prefiro que as coisas
continuem assim.
Não estou pronta para mudar
isso e já tenho meus vinte e sete anos.
Sendo bem honesta, acho que nunca vou
estar.

Depois de muitas horas de pé


trabalhando e mais uma reprimenda
básica do meu chefe, do tipo "você não
é uma funcionária ruim, mas poderia se
vestir melhor", saí do trabalho direto
pra buscar meu filho.
Mari é minha melhor amiga, uma
das poucas com quem realmente
converso e que sabe um pouco mais
sobre mim do que a maioria. Ela tem um
emprego flexível em uma firma de
recrutamento e seleção e, com isso,
acaba passando boa parte do dia em
casa, o que me ajudou muito nessas
férias.
Sentada diante dela, com uma
xícara de café na mão e um pedaço de
bolo diante de mim, ouço Bernardo
narrar todos os acontecimentos do dia,
do seu jeitinho engraçado.
Do mesmo modo empolgado com
que ele começa, logo interrompe a
narrativa e corre para a sala, quando
ouve a música de um de seus desenhos
preferidos começando.
— Mari, eu não sei o que fazer...
— externo alguns pensamentos que têm
me perturbado a semana toda. —
Devemos nos mudar na quinta-feira e
não encontrei um lugar para morarmos
até agora. O aluguel no centro da cidade
é muito caro e não posso morar muito
longe do trabalho e da escola que
consegui pro Bernardo. Principalmente
porque não conheço a cidade direito...
Mari me fita pensativa.
— Por que não diz ao seu chefe
que não pode ir? Podiam enviar alguém
sem filhos, pra quem fosse mais fácil
toda essa transição, Robin. O bolo está
ruim?
Suspiro, desanimada e faço que
não. Mesmo que esteja. Ela deixou
passar do ponto e está ressecado e
esfarelando.
— É que, apesar dessa
complicação toda, de certa forma vai ser
bom. Eu recebi uma ligação da casa de
repouso em que minha avó mora, eles
vão reformar o prédio e precisam que os
familiares hospedem os moradores por
alguns dias... Seria bom se ela pudesse
ficar com a gente em definitivo.
Infelizmente não tenho como tomar conta
dela, mas por uns dias seria ótimo.
— Como vai fazer, então?
Durante os dias que ela vai ter que ficar
com você? — Mari pergunta,
preocupada.
— Bom, vai ser durante as férias
do Bernardo. Vou ter que pagar alguém
pra ficar com ele em meu horário de
trabalho, então já peço pra que fique de
olho nela, também.
— Mas como vai pagar por
isso? Vai ter que arcar com o aluguel e a
mudança...
Realmente, não vai ser nada
fácil.
— Eu tenho um pouco de
dinheiro. Não é muito, mas deve cobrir
o primeiro e o segundo mês de aluguel, e
o pagamento de quinze dias de trabalho
pra uma babá. Depois disso vamos ficar
no vermelho, mas logo eu já devo
receber de novo e aí aguentamos mais
um mês, e assim por diante...
Mari acena concordando, mas
sei que está nervosa por mim. Eu
também estou.
— O que você precisa mesmo,
Robin, é de alguém pra dividir o
aluguel. Seria muito melhor pra você
agora, com o pouco dinheiro que tem e
várias despesas... Já pensou nisso?
— É uma péssima ideia! A
menos que esteja se voluntariando, eu
não posso simplesmente escolher
alguém aleatório para morar na mesma
casa que eu e meu filho, Mari. É
perigoso e além disso, sabe que não lido
bem com qualquer pessoa.
Vejo quando o rosto dela se
ilumina e me permito uma pequena dose
de esperança. Quem sabe ela tenha uma
ideia que me tire desse impasse?
— Vou te ajudar a achar alguma
coisa. Mas sabe com o que você
realmente deveria se preocupar?
Arrumar um namorado! Você só vive pro
Bernardo e pro trabalho, um trabalho
aliás que você nem gosta...
Ah não, essa conversa outra vez.
— Mari, já disse que não estou
procurando um relacionamento, temos
um assunto muito mais importante, se
não notou. Vou ter que morar em um
lugar péssimo, com psicopatas à
espreita e traficantes como vizinhos.
— Já sei! Tenho a pessoa ideal
pra você, Robin!
Até meu corpo rejeita a ideia,
me trazendo um arrepio. O maior
problema dessa alternativa é que
provavelmente as únicas pessoas que
vou encontrar, dispostas a dividir um
aluguel, serão jovens estudantes,
desocupadas e festeiras.
— Mari, não dá! Tenho o
Bernardo e as coisas são mais
complicadas pra mim... Deixa que eu me
viro.
Ela balança a cabeça, recusando
minha negativa.
— Você precisa! Já passou da
hora de deixar de ser teimosa, sabia?
Não confia em mim? Não vou colocar
um psicopata na sua vida. Eu acho que
vocês vão se dar super bem, sabe que eu
não faço escolhas ruins.
Penso por um momento na ideia.
Apesar da minha recusa inicial, ter
alguém com quem dividir as contas não
seria mesmo ruim, poderia ficar mais
tranquila e comprar algumas coisas pra
casa, móveis... O Bernardo também
precisa de sapatos novos e algumas
calças, porque deu uma crescida e
perdeu várias roupas.
— Bom, se for alguém que você
conhece, vou me sentir mais tranquila
quanto à ideia — me pego respondendo
e nem sei por que estou cogitando essa
loucura. — Quem é?
Mari dá de ombros com aquela
cara de quem diz que sim, é a melhor
amiga do mundo.
— Seu nome é Dominic, está de
mudança pra Lagos, como você.
Acredito que se darão muito bem. Vou te
passar o contato e aí vocês poderão
conversar, e quem sabe combinam algo?
Pode dar certo...
Nem posso acreditar em uma
coincidência como essa. Uma amiga da
Mari, de mudança para Lagos e
precisando de alguém para dividir o
aluguel.
Obrigada, Deus, por se lembrar
de mim.

Lagos - MG
— Perfeito! Com certeza, vou
ficar com esse apartamento. Se eu puder
alugar o cômodo embaixo também,
claro.
A corretora abre um sorriso
contente e eu torço para que não precise
chamá-la pelo nome, mesmo porque não
consigo me lembrar qual é.
— Claro, senhor Duarte!
Tento soar gentil e não aparentar
irritação.
— Eu prefiro que me chame de
Dominic, apenas.
O sorriso da mulher aumenta.
Olhando direito, ela até é bem bonita
quando sorri.
Claro que pensa que estou dando
intimidade por algum motivo qualquer;
ninguém entende que eu simplesmente
não quero que me associem ao meu pai.
Não no momento, quando ele parece
rejeitar todas as minhas escolhas, se não
houverem antes sido escolhidas por ele
mesmo.
— Claro, Dominic. Então quer
alugar o apartamento e o cômodo
comercial. O que pretende abrir ali?
A moça se aproxima um pouco e
pelo brilho nos olhos dela, sei que suas
intenções não são muito profissionais.
— Estou transferindo meu
consultório particular pra cá. Vou
trabalhar em uma clínica, atendendo
como psicólogo, mas quero também
manter um lugar para atender fora de
hora, quando necessário.
— Certo... — A mulher corre os
olhos pela grande sala vazia. — Se
preferir, temos outro apartamento nesse
prédio, um pouco menor. Dois quartos...
— Mas não com essa vista,
tenho certeza. Prefiro ficar com esse.
— A vista aqui é mesmo
fantástica... — A voz dela adquire um
tom rouco, sedutor.
Retribuo seu olhar com menos
ânimo do que deveria. Eu realmente me
referia a vista das janelas, do alto da
cobertura posso ver toda a cidade de
Lagos e, mesmo que seja um município
pequeno, ainda assim é uma visão
incrível. Amo esse lugar.
Quando ela percebe que não
respondi seu comentário, prossegue
retornando ao modo profissional.
Ótimo. Não estou no clima.
Aguentar minha madrasta ao telefone,
dizendo pela décima vez que preciso me
reconciliar com meu pai, me tira o
apetite. Inclusive o sexual.
— Bom, costumamos alugar esse
local para estudantes justamente pela
quantidade de quartos, eles gostam de
dividir o aluguel. Mas se o senhor o
prefere, por mim, ótimo.
Me volto para a corretora
pensando no que acabou de dizer.
— Sabe, não seria má ideia
dividir o aluguel com um amigo. Mesmo
porque vou ter que arcar com o contrato
do cômodo também.
A moça aquiesce concordando,
apesar de não conseguir disfarçar o
olhar intrigado que me direciona. E é
bem óbvio o porquê.
Sabendo quem eu sou, ou mais
precisamente quem é meu pai, fica
difícil acreditar que eu teria motivos
para cogitar a possibilidade de dividir o
aluguel ou que tenha dificuldades em
arcar com os dois imóveis. Mas a
verdade é bem diferente do que era um
tempo atrás.
Como alguém com influência
política e com investimentos nos mais
variados tipos de negócios, era natural
que meu pai desejasse que seu legado
fosse transferido um dia para o herdeiro
de tudo aquilo que ele almejou e
alcançou.
O problema é que convivendo de
perto com aquele jogo de interesses de
todo mundo a sua volta e as outras fontes
de renda dele durante minha vida toda,
soube que não era pra mim e mais tarde
descobri o que queria fazer. Seu
Henrique, meu pai, não aprovou minha
decisão pela psicologia e, em uma
atitude no mínimo insensata, decidiu que
não apoiaria mais meus planos e nem
mesmo os financiaria, ao menos não até
que eu voltasse à realidade, em suas
palavras, e retornasse para os negócios
da família.
Isso não aconteceu. Cursei
psicologia fora da cidade, contando
minhas moedas, e estudei muito para
chegar onde estou hoje. Trabalhei algum
tempo na própria universidade, onde
adquiri alguma experiência.
Agora, retorno à Lagos com
pouco dinheiro, que vou investir nos
móveis que faltam para a casa e o
consultório, e no aluguel. Mas até que eu
receba meu primeiro pagamento na
clínica, alguém com quem dividir as
contas viria a calhar.
Os meus rendimentos serão bons
e pretendo atender alguns pacientes
particulares, de modo que logo vou
conseguir equilibrar minhas finanças, e
o melhor, sozinho, por mérito próprio.
Além disso, sempre posso vender meu
carro se precisar.
— E então? Podemos assinar o
contrato? — pergunto ansioso. —
Pretendo me mudar ainda essa semana
se tudo der certo.
— Claro, vou cuidar dos papéis
necessários para o contrato. Pode me
procurar amanhã mesmo com seus
documentos para assinar e pegar as
chaves, precisa também transferir para o
proprietário o depósito.
Deixamos o prédio e sigo em
direção ao hotel em que estou
hospedado até a mudança, gastando o
que não devia para não ter que encarar
minha complicada relação pai e filho e
ficar com minha família até arrumar um
lugar definitivo.
Me decido por um banho rápido,
antes de poder me jogar na cama e
dormir algumas horas. Entro no chuveiro
e deixo que a água quente escorra por
meu corpo enquanto penso na
possibilidade de realmente dividir o
apartamento. Mas com quem? A maioria
dos meus amigos acabou se mudando e
com os outros perdi o contato
totalmente.
O vidro do box já está embaçado
e ainda não pensei em uma opção
viável. Acho que não existe. Não dá pra
colocar um anúncio nas redes sociais
procurando um colega de quarto. Eu não
sou um adolescente de mudança pra
faculdade.
Quando fecho o chuveiro e saio
do banho, pego o celular para ver se
tenho alguma chamada perdida e me
deparo com uma mensagem no
WhatsApp de um número desconhecido.
"Boa noite, Dominic. Uma
amiga em comum me passou seu
contato. Parece que está procurando
alguém com quem dividir o aluguel em
Lagos... É isso mesmo?"
Pelo visto a corretora foi rápida
em espalhar minha intenção.
"Bom, sim. Qual seu nome?"
Procuro pelo nome da pessoa no
status, mas tudo que encontro é uma
frase que deve ser de algum filme e a
foto de um céu muito azul.
Isso deve ser um indicativo de
que se trata de um cara reservado e isso
é muito bom. Alguém que com certeza
vai saber respeitar limites, o que torna a
convivência mais fácil.
Cordilhéus - MG
Ela respondeu! Tomara que
Dominic ainda não tenha encontrado
alguém. É segunda-feira e seguimos sem
moradia até agora.
Apesar do pavor que sinto em
me arriscar em algo assim, as garantias
de Mari são suficientes. Além disso, se
ela for muito espaçosa, festeira ou algo
pior, podemos nos mudar quando eu
começar a receber.
Respondo com o máximo de
informações possível para assegurar a
necessidade urgente.
"Meu nome é Robin. A empresa
em que trabalho me transferiu para
Lagos e preciso me mudar na quinta-
feira, mas ainda não consegui um
apartamento. Procuro por alguém de
confiança para isso e me indicaram
você..."
A resposta chega instantes
depois.
"Bom, Robin, não vou dizer que
não me sinta desconfortável em dividir
a casa com alguém que não conheço.
Mas a ideia não parece ruim, levando
em conta as despesas e os cinco
quartos..."
Se ela se sente assim em dividir
o espaço, será que vai aceitar fazer isso
com alguém que tenha um filho? Sei bem
como crianças tendem a ser bagunceiras.
Bernardo já está dormindo no
sofá-cama ao meu lado. Passo a mão por
seus cabelos claros e suspiro, um pouco
desanimada. Acho difícil Dominic estar
disposta a isso.
Como será que ela é? A foto no
perfil é o brasão de psicologia. Tomara
que não seja cheia de frescuras, porque
com certeza não daríamos certo.
"Claro. Também acho estranho
tudo isso, mas te garanto que sou
alguém fácil de lidar e conviver. Só que
tem uma coisa... Não sei se tem alguma
ressalva, mas meu filhote vai comigo. O
Bernardo precisa de um lugar separado
também, sei que em um apartamento,
um quintal para correr e brincar seria
pedir muito, mas o espaço geral é bom?
Você teria problemas em ceder um
quarto pra ele?"
Dessa vez a resposta demora a
vir e já estou roendo as unhas de
ansiedade quando vejo que ela começou
a digitar.
"Sem problemas. Posso
inclusive preparar o cantinho dele pra
te dar uma mão. Vamos precisar
depositar o valor referente a três
aluguéis, para segurar o imóvel. É um
valor que podemos resgatar ao final do
contrato, acha que consegue enviar a
metade?"
Huuum. Não sei se o que eu
tenho guardado pode suprir isso e mais
os móveis, e ainda durar o mês todo.
Mas antes metade que tudo.
"Acredito que sim. Até que eu
receba meu primeiro salário vou estar
um pouco sem dinheiro, mas tenho
algumas economias para o aluguel e
móveis novos. Preferi vender os antigos
por aqui e comprar aí, para não ter que
lidar com mudança de uma cidade para
outra."
Nem acredito que esteja mesmo
acontecendo. A Mari é um anjo. Além de
todo apoio de sempre, ainda me arrumou
uma pessoa confiável e compreensiva,
quando eu mais precisava.
"E se você pagar o valor dos
aluguéis no total e eu comprar os
móveis para a casa? Mesmo porque já
estou em Lagos e posso preparar tudo
pra quando chegar."
Ai meu Deus! Mais uma santa na
minha vida. Só de pensar que vou chegar
e tudo vai estar pronto, sinto que um
peso foi retirado de mim.
Apesar que... E se for um golpe?
Eu deposito o dinheiro e essa mulher
some no mundo? Em questão de
segundos estou enviando uma mensagem
pra Mari, perguntando outra vez se
Dominic é mesmo confiável.
Ela não demora um segundo para
responder:
"Já te coloquei em enrascadas?
Confia em mim!"
Suspiro, entre aliviada e
resignada.
"SERIA ÓTIMO! Não sabe como
me sinto mais leve com isso, agora. A
Mari foi ótima em nos unir; vamos nos
dar muito bem."
"Ah! Então o nome dela é
Mari..."
Será que isso foi uma
brincadeira? Talvez não. Ela pode não
saber quem foi que indicou, mesmo
porque eu não disse. Eu deveria ter
começado dizendo isso...
"É... Acho que é a primeira
coisa que eu deveria ter dito, né?"
"Com certeza, cara! Mas então
está certo. Vou te passar os dados do
locador para depósito e amanhã,
quando estiver comprando as coisas, te
mando fotos. Até mais Robin, estou na
expectativa dessa nossa aventura!"
Cara? Pelo menos, não me
parece ser uma garota mimada e fresca.
Não é o tipo de gíria que alguém assim
usaria.
Menos mal. Eu e Dominic vamos
nos dar bem.

Dominic parece mais empolgada


que eu com a mudança, o que é
compreensível pelo que me contou
acerca do apartamento e do prédio.
Continuamos nos falando pelo celular e
acredito que vamos conseguir conviver
bem. Ela vai poder morar e trabalhar no
mesmo lugar e as comodidades
realmente são atraentes: piscina e
academia.
Não que eu planeje aproveitar
qualquer uma delas.
Bernardo, por outro lado, parece
um tanto inquieto com todas as
novidades. Morar em outra cidade,
estudar em uma escola diferente e ainda
dividir o espaço com alguém
desconhecido.
— Filho, precisamos morar com
ela pelo menos um tempo até a mamãe
conseguir um dinheiro pra um lugar só
nosso. Tenho certeza de que vamos nos
dar bem, vai ser como com a tia Mari...
Ele acena concordando, mas
percebo que está ansioso. O que é
normal, afinal eu também estou. Pelo
pouco que temos conversado, ela me
parece ser uma pessoa tranquila, não é
de falar muito e não me fez perguntas
muito pessoais. É uma situação chata,
mas no momento a única que atendeu
minha urgência.
Termino de fechar mais uma
caixa com os brinquedos dele — não sei
de onde saiu tanta coisa — mas acho
que vai caber tudo no carro. Indo para a
cozinha, começo a empacotar meus
antigos instrumentos de trabalho, mas
que ainda utilizo muito no dia-a-dia.
Batedeira, formas dos mais
variados tipos, alguns ingredientes que
sempre tenho à mão, vasilhames
diversos e mais formas: pequenas,
médias e grandes, para bolos e tortas,
para cupcakes e cookies com desenhos
diferentes, enfim, embalo aquilo tudo
que um dia foi meu sonho e que hoje,
ainda me consola nos momentos em que
me sinto mais sozinha.
Sempre que me sinto triste, faço
um bolo. Quando estou furiosa, asso
biscoitos — o contrário também
acontece — e quando estou feliz... bom,
sempre asso alguma coisa.
De repente, sinto meu celular
vibrar no bolso. É Dominic mandando a
foto de um conjunto de sofás pretos de
courino e em seguida, um outro de
tecido, mais bonito e elegante e que,
com certeza, não vai sobreviver ao meu
pequeno aventureiro e o monte de
comida que ele deixa cair por onde
passa.
Sua mensagem reflete exatamente
o que pensei sobre os dois:
"Praticidade ou beleza? Eu
voto em evitar a sujeira para não
termos que limpar. A propósito, o que
acha de contratar uma faxineira?"
Abro um sorriso diante da ideia.
Claro que eu adoraria não ter que me
preocupar com limpeza quando chegasse
em casa, depois de já trabalhar o dia
todo, mas não posso pagar.
"Praticidade, com certeza. Não
posso pagar por uma faxineira... Eu
cozinho e você limpa. Ou paga alguém
pra limpar se preferir."
Sua resposta chega instantes
depois:
"Ah, sabe cozinhar? Adoro a
modernidade. Como está o processo
pra mudança? Chega aqui hoje
ainda?"
Modernidade saber cozinhar?
Não deveria achar que sou antiquada?
Dou de ombros para o comentário
estranho e olho ao meu redor para as
várias caixas e sacos com roupas. Está
quase tudo pronto.
"Sim, antes de anoitecer. Estou
encaixotando uns brinquedinhos do
Bernardo."
"Legal, falando nele, já arrumei
seu cantinho. Quer ver?"
Que pergunta! Óbvio que eu iria
querer ver o que ela aprontou no quarto
do meu filho.
"Claro! Manda foto..."
"Assim que estiver no apê eu
mando."
Penso finalmente em algo que
vem me incomodando muito. Apesar de
Mari ter me garantido que Dominic é
confiável e tudo mais...
"Falando nisso, devia me
mandar uma foto sua. Não acha
estranho ainda não termos nos visto?
hahaha"
"Bobagem, Robin. Falando
igual uma menininha... Te garanto que
sou muito sexy."
Dou risada e vejo meu filho me
encarando, sem entender nada. Não é
como se eu não risse nunca, é?
— É a Dominic, Minduim. Ela é
meio engraçada...
Pensando nisso, ainda sinto outra
vez aquele desconforto com a situação.
Talvez tenha me precipitado e essa
mudança não seja o melhor pra nós, mas
não posso de modo algum perder o
emprego e bom, por mais que eu pense
muito não encontro alternativa.
"Mari... Tem certeza sobre
Dominic? Acha que vamos nos dar
bem?"
Decido ler sua confirmação mais
uma vez. Já deve estar cansando de mim
e minhas bobagens.
Minha amiga sempre esteve ao
meu lado. Mesmo que não saiba tudo
sobre mim, ela ainda me conhece melhor
que a maioria e sabe que não gosto de
pessoas muito invasivas e de nada que
me deixe em situações constrangedoras.
Não acredito que me colocaria em
qualquer coisa que fosse prejudicial a
mim ou meu filho.
"Absoluta! Me espanta que
tenha finalmente me escutado. O que
deu em você? Mas tenho certeza de que
vão se dar bem."
Sempre me sinto mais aliviada
quando leio suas palavras com tanta
convicção. Afinal de contas, a moça é
legal, está disposta a comprar os móveis
e a ficar responsável pela limpeza. Não
pode ser tão ruim...
"Tenho certeza de que sim.
Estou de mudança hoje, Mari, quando
chegar em Lagos te mando foto de
tudo. Muito obrigada!"
"E vai morar onde? Deu tudo
certo então?"
"Sim, tudo certo! Já paguei e
estou encaixotando as coisas..."
Recebo um emoji sorridente
como resposta e me volto outra vez para
as caixas.

Lagos - MG
Entrar em lojas e comprar
móveis para casa. Apesar de nunca ter
precisado fazer isso antes, porque
primeiro morava com meu pai e depois
aluguei um apartamento mobiliado e
minúsculo na época da faculdade, é bem
mais divertido do que imaginei. Depois
de escolher um conjunto de sofás e a
geladeira, fui procurar por uma cama.
Eu já tenho a minha e os móveis do meu
antigo quarto foram trazidos para cá e
levados para o endereço novo, então não
preciso me preocupar com isso.
Escolhi uma cama de casal pra
Robin, porque afinal, um homem solteiro
precisa de espaço tanto quanto um
casado... Ou não, mas espaço é sempre
bom.
— Qual o próximo item? — O
vendedor me pergunta e checo o papel
na minha mão, antes de responder.
— Fogão e forno.
— E como prefere? Quatro
bocas ou cinco? Também temos alguns
modelos de seis... Pode ser cooktop e
um forno elétrico, ou os dois a gás em
um modelo único. Prefere um forno de
embutir?
Caralho. O rapaz me leva para a
área em que os produtos estão dispostos
e uma fileira interminável de fogões está
ali, além de fornos, coifas e outras
coisas.
Simplesmente travo na hora
dessa escolha. Se for optar por algo
bonito eu ficaria com o forno de embutir,
mas realmente não sei se é a opção mais
prática.
Vou pedir a opinião do Robin
outra vez. O cara é quem vai cozinhar,
então ele que decida.
— Só um minuto... — peço ao
vendedor, enquanto já digito uma
mensagem.
"Robin... Fogão de quantas
bocas? Com forno a gás ou prefere
tudo separado? Me ajuda aí..."
Ele demora um pouco a
responder e decido ligar para saber, mas
antes de sair da tela do WhatsApp vejo
que está digitando.
"Estamos querendo economizar
ou está dentro do planejado? Porque se
puder ser qualquer um, eu escolheria o
forno elétrico, seja de embutir ou não.
É mais rápido pra assar bolos..."
Bolos? Além de comida o cara
me fala que faz bolos. Será que ele é
gay? Não que isso signifique alguma
coisa, mas acho que é bom saber, pra
caso desça do carro de peruca e chegue
aos ouvidos da minha família que agora
moro junto com um namorado. Vai
saber...
"Robin, posso fazer uma
pergunta indiscreta?"
"Claro, mas escolho responder
ou não."
Ok. Pode ser que ele não
responda.
"Certo, você é gay?"
A resposta vem logo em seguida,
com uma enxurrada de risos de duas
formas: Emojis e palavras para
demonstrar a risada e depois finalmente
ele digita palavras compreensíveis:
"Que pergunta mais aleatória!
Não, não sou gay. Eu tenho o Bernardo,
lembra?"
O que isso tem a ver? Será que
acha que é uma raça de cachorro muito
hétero? É muito grande realmente, mas
pra mim não faz sentido nenhum. Cada
coisa...
"Só perguntei por perguntar.
Curiosidade."
A próxima mensagem dele, no
entanto, me pega de surpresa.
"Olha só, sei que vamos morar
no mesmo apartamento. Me desculpe
por dizer isso assim, mas como estou
de mudança hoje preciso que fique
claro. Eu sou hétero e vou continuar
assim, mesmo que não saia com outras
pessoas..."
O quê? Parabéns Dominic, agora
o cara pensa que você está interessado
nele. Idiota.
"Não, cara. Não viaja,
perguntei por curiosidade só..."
"Tudo certo, então. E o fogão?
Pode ser o cooktop e o forno elétrico?"
"Pode, sem ser o de embutir
porque assim já podemos usar."
— Decidido — digo para o
vendedor que me espera pacientemente.
Finalizo as compras e deixo a
loja com tudo acertado. Farão a entrega
em poucas horas e acredito que tudo
esteja no lugar até a noite. Aproveito a
saída para já comprar algumas coisas
que tinha esquecido para o São
Bernardo. Estou preocupado por ser um
cachorro que fica muito grande e
torcendo para que seja bem treinado, ou
então as coisas podem se complicar um
pouco.
Verifiquei se o prédio aceitava
animais, mas mesmo que tenham dito
que sim, um cachorro desse porte não é
a mesma coisa que um Poodle, mesmo
ainda sendo um filhote e se tivermos
problemas com isso não sei como Robin
vai lidar. Não creio que dar ou vender o
cão esteja em seus planos.
Cacete. Devia ter pensado nisso
direito, o cachorro fica imenso.
Passo no supermercado antes de
retornar para casa e compro algumas
coisas básicas para abastecer a
despensa. Acho que Robin acabou
gastando muito com os aluguéis, então
estou fazendo o possível para equiparar
as coisas.
Claro que móveis são caros, mas
muitas coisas eu já tinha e mantive,
como a televisão e a mesa de cozinha. Já
armários e guarda-roupas fazem parte do
mobiliário planejado do apartamento.
Quando chego na nova casa,
começo a arrumar as coisas e logo o
local vai tomando cara de lar de
verdade. Os entregadores chegam um
pouco depois e já colocam as coisas no
lugar, montam a cama e me deixam com
a organização pesada que tenho pela
frente.
Os sofás pretos na sala, uma
mesa de centro que já presenciou muitos
copos de cerveja e a televisão fixada em
um painel, isso me faz sentir que foi
feito algum avanço. Logo depois, leio o
manual de instruções para ligar o fogão
e coloco o forno no lugar.
Quando me dou conta de que
finalmente terminei o trabalho, percebo
também que já escureceu e que Robin
deve estar chegando por aí. Aproveito e
mando uma mensagem.
"Já estão em Lagos?"
Dessa vez sua resposta demora
um pouco mais e imagino que esteja
dirigindo, mas pouco depois, meu
celular vibra com a notificação:
"Em uns dez minutos... Está no
apartamento?"
"Sim, vou tomar um banho. Sua
chave está na portaria, pode pegar e
subir."
"Ok! Nos vemos daqui a pouco."

Na estrada - MG
Deixamos nossa casa, a cidade
de Cordilhéus e poucos amigos para trás
quando o sol ainda estava se pondo. A
viagem não será muito longa e logo que
pegamos a estrada, me vejo pensando
em todas essas mudanças e em como
isso tudo pode ser desastroso.
Mas logo Bernardo, que está
sentado em sua cadeirinha no banco
traseiro do carro, me pede para ligar o
som. Enquanto as músicas infantis,
animadas e repetitivas enchem o ar, nós
cantamos juntos e eu esqueço por um
tempo toda a apreensão.
Criar um filho sozinha é muito
difícil. Não simplesmente por não ter o
pai dele ao meu lado, mas por não ter
ninguém. Todas as decisões são minhas,
todas as obrigações também e,
principalmente, toda a responsabilidade
da vida dele está nas minhas mãos. Mas
olhando-o agora, alegre enquanto canta,
percebo que tenho feito um bom
trabalho.
Talvez não com a minha vida e
minhas escolhas, mas ao menos com ele.
— Mamãe, a gente zá chegou?
Já, mamãe? — pergunta agitado.
— Ainda não querido, mas
estamos quase lá... — respondo
observando pelo GPS do celular que
realmente estamos perto.
Instantes depois, quando olho
pelo retrovisor — hábito de mãe —
vejo sua cabecinha inclinada para o lado
e os olhos fechados. É sempre assim, ele
pula, brinca, se agita e de repente é
vencido pelo cansaço.
Meu celular se acende com a
notificação de uma nova mensagem de
Dominic e paro no acostamento,
tomando o cuidado de ligar o pisca-
alerta para ler.
"Já estão em Lagos?"
Aproveito para verificar outra
vez a distância.
"Em uns dez minutos... Está no
apartamento?"
Espero que esteja. A parte mais
complicada e difícil será esse primeiro
momento, então o melhor a se fazer é
passar por ele logo.
"Sim, vou tomar um banho. Sua
chave está na portaria, pode pegar e
subir."
Perfeito!
"Ok! Nos vemos daqui a pouco."
Digito rapidamente a última
mensagem e logo voltamos para a
rodovia.
Troco de música no som e
abaixo o volume, outra vez volto meus
pensamentos para o novo.
E bem, tudo é novo...
Uma nova casa, emprego, escola,
rotina, uma nova amiga. A chance de
estar perto da minha avó. Poder
aproximar ela e Bernardo também é uma
mudança, e uma muito bem-vinda.
Tudo isso me faz pensar na
minha mãe, não que eu queira, mas é
inevitável me lembrar de que anos atrás
ela fez esse caminho. Se mudou para
essa cidade e recomeçou sua vida do
zero. Anulando a antiga.
Tenho receio de encontrá-la
pelas ruas, mas sem que saiba que me
mudei, não deve acontecer. Apenas
precisarei manter suas tentativas de
aproximação o mais distante possíveis.
Talvez ela nem descubra que
estamos aqui...
Talvez descubra e não se
importe.
As luzes da cidade começam a
surgir e logo estamos na avenida
principal, seguindo em direção ao
centro.
O trânsito não está intenso e o
trajeto todo leva poucos minutos, avisto
o prédio alto e bonito um pouco antes de
ouvir a voz robótica do GPS me
informando que cheguei ao meu destino.
Enfim, em casa.
Entro com o carro no
estacionamento do prédio e encontro
uma vaga; pego minha bolsa e abro a
porta de trás, retiro Bernardo ainda
dormindo. Depois que colocar ele na
cama, vou voltar para buscar as caixas.
Encontro a portaria e dentro de
uma cabine, um senhor assistindo
televisão totalmente concentrado.
— Boa noite... — falo, atraindo
sua atenção. — Meu nome é Robin, sou
a nova moradora do 901, me disseram
para pegar a chave aqui.
Os olhos do homem se voltam
para mim e ao ver que estou com meu
filho adormecido nos braços, ele logo se
levanta apressado e pega a chave de um
painel na parede atrás de sua mesa.
— Boa noite! Aqui está a chave,
meu nome é Antônio, sou o porteiro do
prédio. Qualquer coisa que precisar
pode ligar aqui e me pedir.
Os olhos do velhinho parecem
sorrir ao olhar de mim para Bernardo.
— Que bela família vocês
formam!
Bom, uma família um pouco
pequena, mas é a que eu tenho. Aceno
agradecendo o comentário gentil.
— Obrigada, seu Antônio. Vou
subir e colocar esse menino na cama.
Boa noite!
Me viro em direção as escadas,
mas o senhor deixa sua cabine e me guia
até o elevador, aperta o botão do último
andar e depois se afasta.
Quando as portas se abrem
diante do pequeno hall, saio com meu
filho ainda adormecido e me dirijo até a
porta que dá acesso ao apartamento.
Com apenas uma das mãos, consigo com
algum esforço destrancá-la.
Passo por ela e a fecho em
seguida. Uau! Está realmente incrível.
Ouço o barulho do chuveiro e
decido colocar Bernardo em um dos
sofás, antes de sair procurando o quarto.
Coloco-o recostado sobre algumas
almofadas e sigo pelo corredor, abrindo
as portas uma a uma.
A primeira porta que testo está
fechada e é de lá que vem o som do
chuveiro. Imagino que seja o quarto da
Dominic e sigo adiante. Abro a porta
seguinte e vejo um quarto muito bem
organizado e limpo, nenhuma peça de
roupa à vista, então deduzo que este seja
o meu.
Continuo me distanciando pelo
corredor e entro no quarto depois desse,
preparada para encontrar o que ela
organizou para meu filho.
Mas o que é isso?
Entro e fecho a porta atrás de
mim. Acho que temos um problema...
Dominic tem um cachorro em um
apartamento? Será que não é proibido?
Dou uma olhada ao redor. Não tem uma
casinha, mas uma espécie de colchonete
no chão.
Me aproximo mais e vejo
também os vasilhames, um cheio de
ração e o outro de água. Definitivamente
um cachorro. Minha expressão de
desagrado é automática, não pelo
cachorro em si, mas pelo nome gravado
nas vasilhas... Bernardo! Que horror, o
cachorro tem o mesmo nome do meu
filho.
Isso é... bizarro.
— Tem alguém aí? — ouço uma
voz chamando. Uma voz de homem,
aqui, dentro do apartamento. — Tem um
menino no sofá! Olha, eu estou
armado!
Armado? Ai, meu Deus do céu!
Meu filho sozinho com um bandido.
Senhor Deus, me ajuda, protege meu
Minduim. E Dominic! Dominic vai sair
do banho e dar de cara com o bandido...
— Não toque no meu filho! Pode
levar, leve o que quiser, mas deixe meu
filho em paz! — grito em resposta ao
ladrão, torcendo para que seja apenas
isso, um roubo.
— Levar? Quem é você? — o
homem pergunta e deixo o quarto o mais
rápido que posso. Preciso proteger meu
filho com minha própria vida, se
necessário.
Com as mãos erguidas, sigo na
direção da sala. Quando passo pela
porta do quarto de Dominic, percebo
que o chuveiro foi desligado, ela deve
estar apavorada lá dentro.
— Dominic! — grito. — Não
saia do banheiro! Tem um ladrão armado
aqui... — aviso, torcendo para que ela
tenha levado o celular junto e possa
ligar para a polícia.
Celular. Deixei o meu no carro...
Droga.
Quando finalmente paro na sala,
o que vejo me deixa estática.
Primeiro: o homem está armado
com uma panela. Sério isso? Segundo:
ele só usa uma toalha enrolada na
cintura, muito à vontade.
E terceiro, mas que não deveria
sequer ser registrado aqui, noto que o
corpo dele é bastante atraente... Roubar
casas tem lhe feito muito bem.
Os olhos castanhos me fitam
curiosos e seu rosto transmite confusão.
Quem está confusa aqui sou eu! Os
cabelos molhados pingam sobre o tapete
e escorrem sobre a pele, sobre os
braços e ombros fortes, o abdômen
marcado... Meu olhar acompanha as
gotinhas, contra meu bom senso, mas não
é todo dia que um homem seminu e
molhado invade minha casa.
Ele não deveria ser um pirralho
magrelo e feio? O homem também me
encara sem dizer nada, mas ao contrário
de mim, seu olhar não desce pelo meu
corpo que está extremamente coberto
pelo blusão e as calças.
— Pode me dizer o que está
fazendo aqui? — pergunta, parecendo
irritado.
Noto um movimento no sofá e
vejo Bernardo, que esfrega os olhos e se
senta, assustado.
— Mamãe? — me chama com a
voz chorosa.
— Estou aqui, Bê. — Corro para
o lado dele e o abraço forte e apenas
então, olho outra vez para o homem de
pé. — Eu moro aqui... Você por outro
lado está invadindo. Dominic! — grito
outra vez.
— Pode parar de gritar meu
nome como se eu não estivesse na sua
frente?
Ai. Meu. Deus...
Lagos - MG
— Quer dizer o que com isso?
— a mulher pergunta, aparentando
confusão.
— Como assim? Quero dizer que
estou aqui na sua frente e que está
gritando meu nome como se fosse uma
doida! Aliás, quem é você e o que está
fazendo aqui? — questiono e então volto
meu olhar para o menino que me encara
assustado. — Você disse que mora aqui?
Não vai me dizer que isso é uma espécie
de golpe e que vai falar agora que esse
menino é meu filho, porque não vai
colar.
Só pode ser isso. Uma dessas
mulheres loucas com ideias ainda mais
insanas. Ela parece bem doida, com
umas roupas imensas e óculos maiores
ainda.
— Seu filho? Você está louco?
— responde parecendo sincera.
— Menos mal... — Suspiro mais
aliviado e deixo a panela de lado. —
Pode me explicar o que está fazendo
aqui, então?
A moça me olha diretamente nos
olhos, ou é mesmo uma boa atriz ou está
tão confusa quanto eu.
— Eu sou Robin, parece que
houve algum equívoco entre nós, eu
tinha certeza de que você era uma
mulher...
Robin! Robin é uma mulher... Ai
que inferno.
— Estamos quites então —
respondo contrariado. — Eu acreditava
que você era um rapaz.
— Isso explica por que ficou me
chamando de cara.
Apesar da situação absurda, não
posso deixar de abrir um sorriso ao
lembrar do modo como questionei sua
sexualidade. Que loucura.
— Bom, Robin... Parece que
temos um problema aqui. Eu sou
Dominic, um homem como pode ver e
você não é um. O que vamos fazer? Quer
que eu chame a corretora e peça pra ela
te mostrar um dos outros apartamentos?
A mulher parece que vai chorar.
Tudo bem que em meu trabalho lido com
lágrimas o tempo todo, mas prefiro não
ser o causador delas.
— Eu não posso ir para outro
lugar! Não tenho dinheiro, paguei o
aluguel adiantado, se não se lembra! —
Sua resposta me desanima. Que merda
eu faço agora?
— Eu comprei os móveis,
arrumei seu quarto e o do cachorro...
Até o próximo mês não posso arcar com
outro aluguel.
Robin se levanta e coloca as
duas mãos na cintura enquanto me
encara com raiva, parece estar se
preparando para uma batalha.
— Você disse que tinha
arrumado o quarto do Bernardo também,
não vi nada disso aqui. Mentiu pra mim,
como vou saber se não tentou me fazer
acreditar que era uma mulher pra pegar
meu dinheiro?
— Mas eu acabei de dizer que
arrumei o quarto pro... — Merda. Olho
dela para o menino sentado
confortavelmente no sofá e minha ficha
cai. — Esse garoto é o Bernardo?
Ela assente ainda irritada.
— Mas... — Que confusão. —
Tinha certeza que você havia dito que
era um cachorro... Você disse sim, vou
levar meu filhote, eu me lembro bem!
— Um cachorro? Eu não
acredito que aquele quarto, com
RAÇÃO é o que preparou pro meu filho!
Filhote é só um modo de dizer. Por que
um cachorro se chamaria Bernardo?
Pelo amor de Deus!
Começo a me irritar também, não
é culpa minha se ela não explicou nada
direito.
— SÃO BERNARDO é uma
raça de cachorro! — falo exaltado.
— E quem teria um São
Bernardo em um apartamento? Você é
louco!
— Eu? Você que pensou que eu
fosse mulher! Dominic é nome de
homem, está me ouvindo? Robin também
— completo.
Vejo os olhos dela estreitando-se
na minha direção, como se fosse
possível ficar ainda mais irritada.
— Eu tive uma colega na
faculdade que se chamava Dominic e era
mulher, tenho certeza.
— Dominic com C é nome de
homem, o dela provavelmente era
escrito com q u e... — explico e nem sei
porque isso parece tão relevante agora,
quando temos coisas muito mais sérias a
resolver.
— E como eu ia saber disso?
Nunca trabalhei em cartório de registro!
Preciso pensar e tentar encontrar
uma solução sensata. Não adianta
discutir e brigar por algo que não foi
culpa de nenhum de nós.
— Espere aqui, eu vou me vestir
e volto pra conversarmos sobre o que
fazer agora.
Ela aquiesce e se senta outra vez
ao lado do garoto.
Me afasto na direção do quarto,
mas ainda ouço a voz do menininho
falando com a mãe:
— Mãe, esse moço é muito,
muuuito brrravo, né?
Coitado do moleque. Deve ter
tomado um susto e tanto, mas em minha
defesa, nosso primeiro encontro não foi
nada natural pra mim também.
Me visto rapidamente,
colocando uma camiseta preta e calças e
dou uma olhada rápida no espelho. Com
certeza não causei a melhor das
impressões, mas não dava pra prever
uma coisa como essa.
Quando retorno à sala encontro
os dois na mesma posição que deixei.
Ambos me fitam constrangidos e um
pouco temerosos.
— Certo, precisamos conversar
então, Robin. As coisas estão
bagunçadas aqui e eu não esperava por
isso. Imagino que também foi uma
surpresa e tanto pra vocês dois, chegar
no apartamento novo e me encontrar ao
invés da Dominic que esperavam...
A mulher apenas dá de ombros.
Agora que a raiva inicial cedeu, ela
parece bastante envergonhada e pouco à
vontade comigo.
— O que vamos fazer? —
pergunto, dando a ela a oportunidade de
encontrar uma solução.
Robin me fita com os olhos
verdes amedrontados por trás dos
óculos, mas suas palavras saem com
firmeza.
— Eu, infelizmente, não vejo
outra opção a não ser a de que se mude e
nos deixe com o apartamento. Já paguei
pelo aluguel e você pode levar seus
móveis, eu dou um jeito depois...
Ergo a mão interrompendo o que
ela diz e vejo sua boca se fechar
rapidamente.
— Escute... Eu não posso sair.
Primeiro porque escolhi o apartamento
nesse prédio pra trabalhar aqui embaixo
em uma sala comercial que aluguei. Eu
adoro a vista, também...
Ela se levanta, os braços
cruzados em uma atitude clara de defesa,
mas está tentando ser forte diante do
problema.
— Dominic, eu não tenho
dinheiro agora. Vou começar a trabalhar
na segunda-feira e preciso de um lugar
pra ficar. Não me importaria em ir
embora se tivesse como pagar outro
aluguel, mas não tenho.
Penso por um instante nas poucas
economias que possuo, antes de
apresentar outra alternativa.
— E se... eu chamar a corretora
aqui, pedir pra ela te arrumar o outro
lugar e pagar pelo primeiro mês? No
próximo vencimento eu pago também e
por hora divido os móveis com você.
Pode levar as coisas do seu quarto e da
cozinha, porque eu não vou cozinhar
mesmo... Acha que poderíamos chegar a
um acordo?
Quase ouço as engrenagens do
cérebro dela analisando a proposta e eu
sei que não há razão para não aceitar,
porque o que proponho é justo.
Então quando a vejo assentir,
não é uma grande surpresa. Pego o
telefone e ligo para a corretora
imediatamente, mas ela não atende.
Claro que não, já é noite.
— Olha, hoje acho que podemos
nos virar por aqui. A imobiliária já
fechou e amanhã, logo que abrir,
resolvemos isso. Pode ser?
Vejo que ela não se sente
confortável, mas não temos muito o que
fazer.
— Tudo bem, então. Ainda bem
que me comprou uma cama de casal, ou
meu filho teria que dormir na casinha de
cachorro — ela fala, enquanto pega o
menino no colo.
— Não tem casinha. Um São
Bernardo é muito grande pra caber em
uma — comento aleatoriamente.
Robin passa por mim na direção
do quarto, levando também sua bolsa no
ombro e o garoto acena enquanto se
distanciam.
Que situação absurda, meu Deus.

Fecho a porta e deposito


Bernardo sobre a cama arrumada. Ele
engatinha até os travesseiros e se deita
me encarando, os olhinhos brilhando de
curiosidade com tudo que acabou de
acontecer.
— Mamãe, a gente vai mudar de
novo?
Me sento ao seu lado, deixando
as outras preocupações de lado por um
instante para cuidar das dele.
— Acho que sim, meu filho. Mas
neste mesmo prédio... amanhã. Hoje
vamos ficar por aqui.
— E eu posso pegar o meu
pijama?
As caixas no carro. No meio de
toda a confusão acabei me esquecendo
de nossas coisas e agora o único que
pode me ajudar é a última pessoa pra
quem gostaria de pedir algo.
— A mamãe vai buscar daqui a
pouco, tudo bem?
Ele faz que sim com um gesto e
bagunço seus cachinhos claros. Ainda
estou pensando em toda essa história
quando ouço algumas batidas na porta e
a voz dele, me chamando:
— Robin...
Abro ainda um tanto quanto
apreensiva e encaro os olhos dele,
insondáveis e irritantes, devo salientar,
já que parecem me analisar a todo
momento.
— Eu pensei... Começamos de
um modo meio esquisito, mas você e o
garoto chegaram de viagem e não
comeram. Penso que com tudo isso não
deve manter a ideia de cozinhar, mas
que tal se eu pedir uma pizza?
A oferta é gentil e feita de modo
calculadamente educado, como se ele
soubesse que eu preferiria dizer não.
— Pitista! — grita Bernardo, já
ficando de pé sobre a cama e atraindo
nossa atenção para si.
— Bom, parece que o menino
gostou da ideia... — Dominic comenta,
abrindo um sorriso que me incomoda.
Tem algo de estranho no modo como ele
sorri.
Acho que estou ficando
paranoica.
— Tudo bem — respondo,
porque depois da empolgação de
Bernardo não posso dizer não, além do
mais, precisamos comer mesmo. —
Olha, sei que está apenas sendo educado
e tudo mais, mas será que poderia me
ajudar com uma coisa? Não vou nem
descarregar o carro, mas preciso pegar
ao menos uma caixa com algumas roupas
e objetos que vamos precisar com
urgência. Poderia ir comigo buscar?
Ele me fita por um momento e
decido complementar:
— Por favor?
Vejo-o assentir e então me volto
para Bernardo outra vez.
— Minduim, fique aqui
quietinho, tá bom? A mamãe vai no
carro buscar seu pijama pra dormirmos
e já volto.
Bernardo concorda e Dominic e
eu deixamos o quarto e depois o
apartamento, descemos no elevador em
silêncio. Furtivamente analiso-o ao meu
lado, notando que não parece tão
abalado quanto eu com a proximidade e
a falta de assunto.
As mãos nos bolsos da calça, os
cabelos escuros ainda molhados e o som
de uma música baixinha escapando de
seus lábios entreabertos.
— Mais calma, agora? —
pergunta, me pegando no flagra enquanto
o observo.
Desvio os olhos rapidamente e
ouço um riso baixo vindo dele.
— Hum, sim. Desculpe por
aquela coisa toda de ladrão... Fiquei
nervosa — me explico, indo contra
todas as fibras do meu corpo, que me
pedem silêncio.
Não me lembro da última vez em
que desenvolvi uma conversa
desnecessária com um homem por mais
que cinco minutos nos últimos anos.
Com um pediatra vez ou outra, meu
chefe quando preciso e fora isso, muito
raramente, quando respondo a algum
questionamento ou sou obrigada a passar
alguma informação.
— Tudo bem, essas coisas
acontecem. — Ele fica em silêncio um
instante e então abre seu sorriso chato.
— Não acontecem, não. Mas tudo bem,
me desculpe pela coisa toda com a
leiteira.
Antes que eu consiga me conter,
viro-me na direção dele e o fito de
baixo para cima. Não havia percebido
que era tão alto.
— Leiteira? Aquilo era uma
panela!
— Isso, panela, a mesma coisa
— responde, dando de ombros.
Em que mundo uma leiteira e
uma panela são a mesma coisa?
— Uma leiteira serve para
aquecer o leite, apesar de usarmos para
outros líquidos também. Em casas
pobres, como a minha, podemos usar
como jarra de suco de vez em quando —
falo, mesmo percebendo o olhar dele de
incredulidade. — Panelas são para
cozinhar...
— Sabe... — Ele me encara com
ar interrogativo. — É estranho que a
frase mais longa que disse essa noite,
não foi em defesa do seu filho, mas da
panela.
O comentário faz com que eu
queira rir, mas me controlo, afinal, não
somos amigos e nem seremos. Não
preciso ser tão sociável assim porque,
se Deus quiser, de manhã as coisas
estarão resolvidas e eu, fora do
apartamento e longe desse homem.
Quando o elevador para no
estacionamento, seguimos em silêncio.
Vou na frente guiando Dominic até onde
estacionei e ele me segue de perto.
Abro o porta-malas do meu fiat
uno que já viu dias bem melhores, com
outra dona é claro, porque comigo está
caindo aos pedaços desde sempre. É
bem constrangedor o fato de ver meu
carro lado a lado com um carrão
novinho, até o brilho sobre a lataria é
diferente, mais rico. Não entendo de
modelos de carro ou marcas, mas é um
daqueles caríssimos... Apesar de
constrangida, pelo que pude ver, a
situação de Dominic é tão complicada
quanto a minha, então não acho que ele
vá reparar no meu calhambeque.
— O que eu levo? — pergunta
ao meu lado, encarando toda a tralha que
consegui forçar no pequeno espaço do
carro.
Passo os olhos sobre as caixas
até encontrar uma com o nome do
Bernardo e entrego a ele, depois eu pego
a caixa menor em que guardei nossos
itens de higiene pessoal e colocando a
mão dentro de um dos sacos pretos com
meu nome colado em uma etiqueta,
retiro sem poder escolher, algumas
peças de roupa, colocando-as na outra
caixa rapidamente.
— É só isso... Vou deixar o resto
pra descarregar na casa nova, quando
for definitivo.
— Então vamos. — Ele segura a
caixa com apenas uma das mãos
enquanto digita algo no celular com a
outra. — Gostam de pizza de quê?
— Quase tudo. Bernardo adora
bacon e frango, só não come se tiver
legumes no meio.
Ele faz um gesto afirmativo de
cabeça e digita no celular o que imagino
que seja nosso pedido.
— Refrigerante? Suco? —
questiona outra vez.
— Tanto faz, o que você quiser
pedir está ótimo.
Dominic desvia o olhar por um
momento e foca em mim, mas não dura
um segundo e logo ele já digita no
celular outra vez.
— Pronto, aqui diz que chega em
meia hora, deve dar tempo de vocês
tomarem banho.
Voltamos para o apartamento e
faço exatamente o que ele disse. Pego
Bernardo no quarto e o levo para o
banheiro, já que o da suíte está sem
chuveiro — é a tal porta fechada que a
princípio pensei que fosse o quarto de
Dominic — e dou um banho rápido nele
antes que acabe adormecendo.
A água acaba por deixá-lo mais
desperto e com isso, vai conseguir
esperar pela comida. Bernardo deixa o
banheiro já usando seu pijama de
dinossauro e com os pés aquecidos nas
pantufas. Eu aproveito para entrar no
chuveiro e me livrar do estresse do dia,
do cansaço e da poeira da estrada.
Tudo que aconteceu aqui hoje foi
além dos limites que estabeleci pra
minha vida nos últimos anos. A mudança
em si já era um passo enorme, mas
morar com uma desconhecida era algo
surreal que me obriguei aceitar pela
necessidade.
Agora, encontrar um homem em
seu lugar, ia muito além dos meus
pesadelos mais insanos.
Sempre gostei do sexo oposto.
Não é como se antes do incidente eu
houvesse tido diversos namorados, mas
me sentia atraída por rapazes, me
envolvi com alguns poucos e me abri
para relacionamentos, até que a vida me
presenteou com Derek.
Depois, isso tudo teve fim. Não
foi um esforço terrível não me envolver,
não precisei cuidar das minhas
necessidades sexuais sozinha para evitar
me relacionar com outro homem... Não,
na verdade foi algo bem natural. A vida
me tirou Derek, assim como havia me
dado e meu corpo, minha alma e mente
não sentiram a mínima vontade de uma
substituição.
O isolamento é algo bem natural
quando você perde todos que amou e se
vê sozinha em uma situação assustadora,
nova e completamente inesperada.
Apesar de ter sido algo espontâneo,
ainda assim evitei um contato mais
próximo com outras pessoas, que não
fossem minha avó, meu filho e Mari.
Por tudo isso, essa noite tem
sido muito surreal. Não apenas me vi em
uma casa na companhia de um homem
desconhecido, mas fui obrigada a vencer
algumas barreiras que eu mesma criei e
conversar com ele ao menos o
estritamente necessário para não ser
considerada uma louca.
Isso sem contar o fato de ter tido
uma primeira visão dele bastante
reveladora. Não sei quanto tempo fazia
desde a última vez em que havia visto
um homem de toalha.
A água quente faz seu efeito
calmante enquanto penso nos momentos
no elevador e no nosso embate na sala.
Definitivamente o contato mais próximo
que tenho com um homem em anos e não
sei o que isso faz de mim, porque nem
mesmo o toquei.
Dou um salto quando ouço a voz
dele muito perto.
— A pizza chegou...
Deus do céu! O homem está do
outro lado da porta, de fora, e eu quase
me esborrachei no chão de pavor.
— Estou saindo... — respondo
em um tom tão baixo que duvido muito
que tenha me escutado.
Desligo o chuveiro e deixo o
box. Me seco e me visto ali mesmo,
antes de calçar meus chinelos e ir
encontrar os dois na cozinha.
Meus cabelos estão molhados e
os enrolo em um coque no alto da
cabeça enquanto caminho, sendo guiada
pelo som da voz animada do meu filho
— quase posso ouvir o sermão de dona
Rute, minha avó, por lavar os cabelos
tão tarde.
— Foi... A mamãe tentou ligar o
carro, mas a gente ficou mesmo foi
esperando.
Me sento diante dos dois na
mesa. Os pratos, talheres e copos já
estão aqui e o refrigerante e a pizza
também, mas eles me esperaram e ainda
não começaram a comer.
— Esperando o que? O
conserto? — Dominic pergunta, se
mostrando interessado.
— Não. A vontade dele de ligar.
Ouço a risada grave dele ecoar e
sinto meu rosto arder de vergonha.
Crianças não podem ser deixadas sem
supervisão porque sempre vão encontrar
um modo de fazer a mãe ser humilhada
de alguma forma.
Bernardo encara o homem como
se estranhasse a risada, porque afinal,
pra ele é a verdade, não é algo
engraçado.
— E o carro de vocês tem
vontade própria? — Dominic pergunta,
se divertindo sem perceber como estou
envergonhada.
Disfarço, me adiantando para
servir a pizza em um dos pratos e cortar
em pedaços pequenos que Bernardo
possa comer.
— Minha mãe diz que ele é
temperado. Só pega a hora que quer...
Dessa vez ele não ri e óbvio que
não o fez porque não entendeu o que foi
dito. Seu olhar se desvia pra mim, me
questionando em silêncio e, apesar de
me sentir boba com aquilo, respondo:
— Temperamental. Carro velho,
sabe como é, sempre digo a ele que
nosso carro é temperamental e só liga se
for da sua vontade. Bernardo ainda está
naquela fase de levar as coisas ao pé da
letra.
Dessa vez ele não ri com tanto
gosto, mas ainda assim sorri, achando
tudo muito engraçado.
Depois disso a conversa cessa.
Bernardo está ocupado comendo e eu
não faço esforço para manter um assunto
aleatório, quando posso muito bem
fingir estar de boca cheia o tempo todo.
Dominic parece entender que quero ficar
quieta e não puxa assunto.
Quando terminamos de comer,
lavo os pratos e me ofereço para dividir
o valor pago pela pizza, mas ele afirma
que não precisa. Duas vezes, então
acabo deixando pra lá.
Bernardo já esfrega os olhos,
com sono e me aproveito disso para me
retirar com ele para o quarto. Nos
deitamos na cama e minutos depois ouço
seu ressonar suave.
Eu, por outro lado, levo horas
para conseguir adormecer. Pensando em
como me sinto esquisita por estar aqui,
em Dominic, em Mari que me arrumou
essa confusão toda e vai se ver comigo
pela manhã, e na mudança que vou ter
que fazer no dia seguinte.
Está tudo um caos tão grande e
me vejo tão preocupada com tudo que
espanto o sono. As paranoias da
madrugada chegam e acabo me
levantando duas vezes para verificar se
tranquei mesmo a porta do quarto. Por
fim, o cansaço acaba me vencendo e
apago sem perceber.
Quando liguei, a corretora logo
se dispôs a aparecer para resolver o mal
entendido. O problema era que a mulher
não fazia mais noção do que estava
acontecendo ali que eu ou Robin.
— Eu compreendo que não
queiram dividir o apartamento um com o
outro e que por mais que você quisesse
alguém para compartilhar as despesas,
tenha pensado em um rapaz —
respondeu logo que expliquei o que
tinha acontecido na noite anterior.
— Se sabia que era essa minha
intenção, por que passou meu contato
para Robin?
As duas mulheres me olharam
com evidente surpresa e então me
surpreenderam de volta:
— Eu não passei seu contato! —
respondeu a corretora.
Ao mesmo tempo, Robin também
argumentou:
— Mas eu nem conheço essa
mulher...
Olhei de uma para outra sem
entender nada. Se antes já estava difícil,
agora beirava o ridículo.
— Você não disse que ela havia
dado meu número? — questionei Robin,
tentando me lembrar do que ela
realmente tinha me dito.
— Eu disse que a Mari me deu
seu número...
— E você — continuo, me
dirigindo a corretora. — Não é a Mari?
A mulher nega, parecendo bem
chateada por não me lembrar seu nome.
— Meu nome é Loreta. Como
pode ver não tem muita semelhança com
Mari, Dominic.
Instintivamente minha mão voa
para meus cabelos e a passo por eles,
enquanto tento ordenar os pensamentos.
— Então, quem é essa Mari?
Robin abre a boca para dizer
alguma coisa e então para, também
pensando.
— Mari é uma amiga minha,
morávamos perto e ela sabia que eu
estava procurando um apartamento com
urgência e me deu seu número...
— Bom, isso é... Mariana
Toledo?
Robin acena com um gesto de
cabeça.
— Por que ela diria pra
dividirmos um apartamento? Comentei
com ela e o namorado, na última vez que
os vi, que iria me mudar pra Lagos, mas
só isso — pondero.
Ela apenas dá de ombros, mas
percebo que também está curiosa.
— Tudo bem, isso não vem ao
caso agora. Loreta, a Robin e eu não
podemos morar juntos. Ela precisa de
mais liberdade e tem um filho. Eu
também não me sinto confortável, então
pensei que você poderia mostrar a ela
aquele apartamento que me disse que
tinha no prédio, um pouco menor...
A expressão de Loreta é de
derrota total e isso acaba por minar um
pouco da confiança que sentia nessa
solução.
— O que foi? Acha que ela não
vai gostar? — pergunto.
— O problema é que o
apartamento não está mais vago...
— Como não? — questiono
começando a me desesperar. — Tem três
dias que conversamos e você me falou
dele.
— Eu sei que sim, mas ontem
mesmo um casal, que tinha visitado o
apartamento na semana anterior, voltou
com a papelada e assinaram o contrato.
Infelizmente, agora não tem nenhum
apartamento disponível no prédio...
Suspiro e esfrego o rosto com as
mãos, tentando clarear a mente e
encontrar uma alternativa.
Robin abaixa os olhos, mas sua
expressão é desolada.
— E em outro prédio? Sabe de
alguma coisa legal, com preço
semelhante, pra duas pessoas?
Loreta pensa por alguns
momentos e depois acena
afirmativamente.
Graças a Deus.
— Tem um apartamento lindo no
Laguna. Adequado pra duas pessoas e
muito seguro, distante daqui, mas
perfeito.
Olho pra Robin sorrindo, mas
ela balança a cabeça de um lado para o
outro negando e meu sorriso morre.
— Nada muito longe... A escola
do Bernardo é logo ali e meu trabalho é
no centro. Não posso morar do outro
lado da cidade.
— Mas o que vamos fazer,
Robin? — pergunto exasperado. —
Vocês precisam se mudar!
Imediatamente a postura
relaxada dela muda para a defensiva.
Droga, eu não deveria mesmo usar esse
tom, mas estou muito irritado com esse
problema.
— Não precisamos nos mudar.
Nós queremos sair porque seria mais
viável pra todo mundo. Mas, eu não fiz a
besteira sozinha e não vou ser
responsabilizada por isso.
— Eu sei... — respondo,
cedendo a contragosto. — É que estou
frustrado por não achar uma solução.
— Bom, você poderia sair,
Dominic. Sei que alugou o cômodo aí
embaixo, mas pra uma pessoa se virar
sozinha é mais fácil.
Nego com um gesto.
— Não. Eu não vou sair daqui,
já falamos sobre isso.
Ela aquiesce.
— Tudo bem. Eu saio, mas só
quando encontrar outro lugar. Loreta,
obrigada por vir até aqui. Se encontrar
um apartamento que seja nas
proximidades do jeito que preciso, por
favor me avise, por enquanto parece que
vamos ter que conviver.
Robin deixa a sala, arrastando os
pés em suas pantufas, tão cinzas quanto
todo o conjunto que está vestindo, e
caminha calmamente para seu quarto.
Como se não tivesse acabado de impor
sobre mim sua presença até sabe-se lá
quando.
Ela e o menino não podem ficar
aqui, é simplesmente impossível. Vou ter
que dar um jeito de que ela entenda que
o melhor é se mudar.
Me despeço da corretora,
enquanto arquiteto em minha mente
alguma maneira de fazer com que Robin
se mude o mais rápido possível, por
vontade própria.

Conviver com um homem que


mal conheço, morar na mesma casa que
ele, é uma ideia horrível.
Mas não é como se fosse uma
escolha.
Observo Bernardo, que ainda
dorme enrolado em meu cobertor, sobre
a cama. A respiração dele é tranquila,
sem saber que eu estou em completo
desespero.
Não posso sair daqui com meu
filho sem um lugar para onde ir e acabar
parando embaixo de uma ponte. Isso é
impensável.
De um jeito ou de outro preciso
fazer com que Dominic mude seus
planos. Ele é quem precisa sair, deixar o
lugar para nós. Sei que não está muito
disposto, então vou ter que agir de modo
que ele não tenha alternativa a não ser
sair.
Me deito ao lado do meu filho na
cama e repenso sobre minhas opções.
Infelizmente não são muitas... Posso me
mudar para o outro lado da cidade,
prejudicar Bernardo e a mim, as aulas
dele e meu emprego, e ceder diante da
vontade de Dominic ou posso resistir a
isso e fazer com que ele se mude.
Todos esses anos vivendo
apenas para meu filho me tornaram uma
mulher frágil em muitos sentidos e
reconheço isso. Apesar de tudo que
suportei, eu não sou forte, não de
verdade, apenas evito as coisas que
podem me despedaçar e, com isso,
consigo me manter inteira.
Mas não sou assim em todos os
aspectos. Quando se trata do meu filho,
o único bem que realmente possuo, eu
não apenas sou forte, como também
imbatível e é contra essa pessoa que
Dominic terá que lutar. Não vou
prejudicar meu garotinho em favor de
um homem que mal conheço, e não vou
abaixar a cabeça e acatar as suas ordens
como se ele tivesse qualquer poder ou
autoridade.
Meus dedos deslizam pelos
cabelos de Bernardo e ele resmunga
alguma coisa, ainda adormecido.
Não posso deixar que meu
pequeno seja mais prejudicado e que
alguma coisa, ou alguém, tire mais do
meu Minduim do que a vida já tirou.

Dominic mal falou comigo


depois que a corretora se foi. Acho que
ficou chateado porque não peguei
minhas coisas e saí daqui o mais rápido
possível, fosse para onde fosse. Não que
eu esteja reclamando, porque prefiro
assim, com o mínimo de interação
possível.
Pouco mais tarde, ele deixou o
apartamento levando suas chaves e sem
dizer o que ia fazer ou onde ia, então
aproveitei os momentos sem ele para
preparar algo para almoçarmos.
Fritei alguns bifes e fiz um
macarrão instantâneo, nada elaborado,
mas ainda assim bem gostoso.
Antes de mais nada, deixei
Bernardo assistindo alguns vídeos
musicais na televisão da sala, ele adora
essas canções e sempre ouve o mais alto
possível.
Com meu celular na mão, saí do
apartamento direto pra sacada. Em uma
coisa Dominic está certo, a vista desse
lugar é mesmo incrível e posso entender
o que ele viu aqui.
Me perco por um momento ou
dois, observando o trânsito lá embaixo,
nas ruas cheias de árvores, tão verdes
que quase se pode esquecer que estamos
na cidade. Mais ao fundo, posso avistar
o lago, que é a grande atração turística
daqui e banha a cidade dando a ela um
ar mágico e um tanto utópico.
O melhor de dois mundos. A
natureza, que traz uma sensação de
tranquilidade, de sossego... E a
modernidade, a tecnologia, tudo a um
alcance rápido.
Percebo que me distraí e volto a
ideia inicial. Disco rapidamente o
número da Mari e espero que atenda.
— Oiii! Já se instalaram em
Lagos? Como está o Minduim?
— Mari, alguma coisa de muito
errado aconteceu. Qual era sua intenção
ao me passar o número de Dominic?
Juro que estou tentando entender, mas
até agora está mesmo difícil.
— Como assim? — A ouço
questionar. — Queria que saíssem e se
conhecessem, quem sabe pudessem dar
certo e tal... Realmente acho que
combinam, o Lucas acha que ele é um
cara decente — fala se referindo ao
namorado dela.
Ah, droga.
— Mari, você não sugeriu,
então, que dividíssemos o apartamento?
Ela ri, achando divertido.
— Morar juntos? Olha, pensei
que se dariam bem, mas nem tanto né,
Robin? Isso é meio demais até pra mim.
Por quê?
— Porque foi isso que eu
entendi. Entrei em contato com ele pra
saber se queria dividir o apartamento e
ele disse que sim.
Ela fica quieta por um segundo.
— E por que você faria isso?
Não estou entendendo.
— Porque pensei que era uma
mulher, uma amiga sua, e que estava me
sugerindo o nome como alguém para
dividir o aluguel e não pra um encontro.
— Sério? Isso é coisa de
louco... — Mari parece incrédula e não
posso nem mesmo fingir que não
entendo. Porque é mesmo ridículo que
nenhum de nós tenha percebido o
engano.
— Ele também achava que eu
era um homem e combinamos tudo, mas
quando cheguei aqui, imagine só a
surpresa que foi?
A gargalhada dela vibra pelo
celular.
— Desculpa, Robin, mas é
muito engraçado, nem consigo
imaginar a cara de vocês com isso. E
agora?
— Agora eu não tenho pra onde
ir, não posso ficar morando com um cara
totalmente desconhecido e ele também
não quer deixar o apartamento. O que eu
vou fazer?
— Ele disse que não vai sair?
Aquiesço com um gesto até me
lembrar que ela não pode me ver.
— Disse. Preciso fazer com que
mude de ideia... Acho que viver com um
menino da idade do meu filho não deve
ser fácil pra qualquer um, mas ele
parece disposto a ignorar isso porque
quer que eu saia.
— E você vai fazer o que? Não
podem se dar bem? — Eu nem preciso
responder. — Tá, esquece... Se não
consegue fazer e manter amizades com
mulheres, imagine com um homem,
morando junto. Precisa fazer ele sair,
então.
— Disso eu sei, mas como?
Acho que vou tentar ser bem incômoda...
A música do Bernardo chega até
mim e com ela uma ideia.
— Já sei até como fazer isso.
Explico rapidamente pra Mari
meu plano de tornar o lugar o mais
feminino e infantil possível,
atormentando Dominic do modo como
puder para que ele se canse, prefira a
paz e o sossego de um lugar só seu e ela
aplaude a ideia, animada.
Não vai ser fácil porque não é
algo que eu faria normalmente.
Manipular uma situação e bater de frente
com alguém que me contraria não é um
hábito meu, mas para tudo se tem uma
primeira vez.
Dominic retorna bem mais tarde,
quando já é quase noite, a princípio não
parece incomodado com as músicas ou
com Bernardo pulando e dançando,
gritando e gargalhando a cada canção.
Mas com o passar do tempo e o fato de
que ele está monopolizando a diversão,
percebo logo uma carranca denunciando
sua irritação.
— Robin, tem um jogo passando
agora — ele comenta casualmente e sei
exatamente onde quer chegar. — Estou a
fim de assistir. Você gosta de futebol?
Sei que a intenção é clara, mas
me faço de boba.
— Não muito. Mas divirta-se
por lá. Eu e Bernardo vamos ficar em
casa, jantar por aqui, deve ter percebido
que ele não pretende parar de cantar
essas musiquinhas tão cedo.
Estou de costas pra ele, lavando
a louça que sujei no almoço, mas sinto
sua presença atrás de mim.
Sei que se me virar, vou
deparar-me com sua expressão raivosa e
não posso lidar com isso, não sou
ousada o bastante. Mas posso me manter
de costas, fingindo não notar o quanto o
estou irritando.
Dominic fica em silêncio por um
momento e chego a pensar que não vai
dizer nada.
— Eu não estava pensando em
sair para ver o jogo...
— Ah não? Mudou de ideia
sobre assistir? Talvez possa ir ao
mercado, então. Tem algumas coisas que
precisamos e que você não comprou.
Me viro e o encontro com os
braços cruzados. A camiseta branca e
apertada comprimindo os músculos
fortes, atraindo meu olhar
inapropriadamente para ali.
Forço meus olhos a irem direto
para os seus e então noto a raiva que ele
tenta dominar. Antes que me diga o não
que sei que está na ponta de sua língua,
completo:
— Vou anotar o que preciso.
Muito obrigada por se dispor.
Afasto-me na direção do quarto
rapidamente, antes que a raiva dele me
atinja quase que fisicamente. Apesar de
receosa, abro um sorriso enquanto anoto
em um pedaço de papel os ingredientes
para um bolo. A primeira batalha parece
ganha.

Tento controlar minha raiva


enquanto passeio pelos corredores
lotados no supermercado e encontro nas
prateleiras os ingredientes que ela
anotou.
Tinha que ter dito não, seu
idiota.
Mas infelizmente pra mim, não
consigo ser grosseiro dessa forma.
Mesmo que ela tenha me obrigado a sair
de casa e que o menino tenha tomado
conta de toda a sala e me impedido de
ver meu jogo.
Ainda assim, não pude ser
estúpido.
Olho o pedaço de papel outra
vez e vejo ali anotado o próximo item:
glacê real.
Como se essas coisas fossem
necessárias.
Encontro o maldito glacê e
coloco no carrinho, em seguida o
granulado colorido e sigo, por fim, na
direção do caixa.
Na minha frente, duas moças
conversam agitadas e mesmo que eu não
quisesse seria impossível não ouvir o
que dizem.
— Acredita nisso? Teve a
coragem de levar essa mulher pra dentro
da minha casa! E depois que eu os
encontrei ainda me pediu desculpas.
Como se alguma mulher pudesse deixar
passar algo assim.
— Vai se separar dele? — A
amiga dela pergunta.
— Saí de casa na mesma hora!
Minha filha mora naquela casa, Marta.
Imagina se fosse ela a pegar o pai no
flagra? Não tinha condições de aceitar
as desculpas dele.
Elas passam as poucas compras
no caixa e finalmente chega minha vez.
Espero pacientemente que a moça no
caixa registre tudo, pago e depois pego
as sacolas murmurando um
agradecimento.
Dentro do carro, pego meu
celular do bolso e pesquiso pelo jogo,
tentando de alguma forma assistir online.
Encontro a partida e percebo que já
começou o segundo tempo, mas ainda
assim há boa parte para se assistir.
Ali mesmo, no estacionamento
do mercado, vibro com o segundo gol do
meu time e grito frustrado com o
primeiro do adversário, mas quando o
jogo fica mais calmo, acabo repensando
a ideia de ficar aqui. O tempo está
esfriando e é melhor ir pra casa, mesmo
que a ideia de encontrar aqueles dois
esteja me irritando um pouco.
Com isso em mente, acabo por
ligar o carro e dirijo outra vez, indo
embora antes que o jogo termine.
O elevador se abre no meu andar
e quando passo pela porta da sala, ouço
a música irritante daquela galinha azul.
Palhaçada, nunca vi uma
galinha dessa cor, o que andam
ensinando para as crianças hoje em
dia?
O menino está comendo alguma
coisa em cima do sofá e me lembro da
conversa que tive com Robin antes de
saber quem ela era. Que bom que
optamos pelo estofado prático, ou
estaria destruído.
— Voltei, Robin.
Passo da sala pra cozinha e a
encontro esvaziando uma caixa de
utensílios domésticos. Várias outras
estão espalhadas pelo local, o que é um
aviso claro de que ela pretende ficar.
— Ah, oi — ela diz, quando me
vê e seus olhos fogem rapidamente dos
meus.
É uma mania irritante, mas as
vezes não consigo evitar fazer análises
das pessoas mesmo quando não sou
pago pra isso e Robin, por mais que
tenha agido para aparentar
determinação, nem mesmo consegue me
olhar por mais que alguns segundos.
Acho que não preciso de muito para
fazê-la sair correndo pela porta.
— Comprei as coisas que pediu,
vai fazer o que?
— Bolo — ela responde,
simplesmente, ainda sem me encarar.
Observo-a abaixada diante da
caixa, retirando as formas uma a uma.
Acho que é uma mulher bonita, por mais
que não haja nela nada que evidencie
esse fato. Pelo contrário, tudo nela
parece ser proposital para esconder
qualquer característica positiva.
Os cabelos trançados e em
seguida enrolados em um coque, que me
lembra algo que minha avó usaria, as
roupas sempre largas e de cores neutras,
que escondem completamente o corpo
dela. Robin parece ser magra, mas nem
mesmo dá pra ter certeza.
Os óculos que sempre usa
escondem os olhos verdes, como os do
menino e não tem nenhum artifício para
destacar o rosto. Nada de brincos ou
maquiagem, os sapatos são sem graça
também. Nada esquisito ou bizarro,
apenas sem nenhum atrativo.
O psicólogo que vive em mim
me diz que é proposital, só não sei o
porquê. Geralmente todos escondem
parte de quem são, querem ser diferentes
e mostrar ao mundo algo que foge à
realidade, mas nunca para passar uma
imagem pior que a real.
— O que foi? — O tom dela é
apreensivo.
— Nada, estou só vendo o que
está fazendo...
A mão dela coloca uma mecha
de cabelo atrás da orelha, mas não há
um fio sequer fora do lugar. Ela está
nervosa e sempre parece assim quando
estou por perto.
Mas não é um nervosismo de
charme ou flerte, ela nem mesmo parece
me notar como homem. É desconforto.
— Vai ficar aí me olhando?
Abro um sorriso e percebo que
ela se contrai. Cada uma...
— Por quê? Não posso ficar
aqui? Essa cozinha também é minha.
Ela murmura algo que não
compreendo e depois ergue a voz.
— A música não está te
incomodando? Sei que o Minduim ouve
muito alto, mas fazer o quê... Sabe como
é, viver com crianças é assim.
Dou de ombros, percebendo que
ela quer que eu me incomode. Dois
sabem jogar esse jogo.
— Não me incomodo, estou
acostumado ao som alto.
— Ah, que bom. — Vejo a
decepção ali. — Eu também não me
importo, nem mesmo no sábado de
manhã quando ele liga o som às seis
horas.
Estreito os olhos na direção
dela. Não sei se está me testando ou se o
menino faz isso, mas com certeza
acordar com essa maldita galinha
cacarejando às seis horas no final de
semana não seria nada agradável.
— Tudo bem — respondo. — Eu
posso me adaptar, tem alguma coisa que
gostaria que eu não fizesse? Algo que te
incomoda?
Ela apenas encolhe os ombros,
como se dissesse que não e eu me pego
questionando sobre o que posso fazer
para deixá-la nervosa. Como fazer para
que ela saia daqui em fuga o mais rápido
possível.
— Bom, eu vou me deitar,
amanhã é sábado, mas já vou atender
alguns pacientes no consultório lá
embaixo.
— Já tem clientes? — Robin tem
a sobrancelha erguida na minha direção.
Parece mesmo curiosa.
— A psicóloga que trabalhava
na clínica, no cargo que vou ocupar,
também atendia alguns pacientes
particulares e passou todos pra mim
antes de se mudar, uns quinze dias atrás.
Então estou um pouco atrasado...
Ela assente, voltando a ficar em
silêncio.
— Pensei que fosse trabalhar em
um shopping — falo ainda observando a
quantidade de itens de culinária que ela
tem.
— E vou. Por quê?
— Não sei, tanta coisa de
cozinha. Parece que vai abrir um
restaurante. — Dou risada, mas percebo
que ela se mantém séria.
Até demais. Meu comentário a
incomodou.
— Gosto de cozinhar...
Assinto a observando. Tem
alguma coisa errada com ela.
— Vou dormir então, boa noite.
— Boa noite... — responde.
Me afasto e passo pelo menino
na sala. Percebo que de repente ele
apagou deitado no sofá. Está dormindo e
isso me deixa aliviado, pelo menos o
som vai ser desligado.
Mas quando me deito na cama,
percebo que ela não desligou o som,
pelo contrário, agora a batedeira está
ligada e ouço a voz dela cantando junto
com os vídeos.
Que tipo de adulto canta essas
porcarias?
E de repente entendo. Ela está
mesmo tentando me fazer ir embora.
Dou risada sozinho, pensando
em todo o esforço de Robin essa noite.
Me provocando com a música alta, me
impedindo de ver o jogo e me mandando
ao mercado.
Robin vai precisar se esforçar
muito mais, porque eu estou pronto pra
guerra.
Antes de dormir, me lembro da
conversa que ouvi no mercado e a ideia
sombria me toma a mente. Ela mal sabe
o que a aguarda.
O sábado passou e Dominic
realmente acabou ficando mais no
consultório. Aproveitei o dia com
Bernardo, comemos juntos e passeamos
nos arredores do prédio para conhecer
tudo. Também nos encarregamos de
sermos insuportáveis apenas quando
Dominic entrava em casa, ou ao menos
eu me encarreguei. Bernardo mal sabia o
que estava acontecendo, mas topava
qualquer bagunça que eu sugerisse.
Eu quis cumprir o que disse e
ligar a televisão no último volume às
seis horas, mas Bernardo dormiu até as
dez, frustrando meus planos.
Depois de cansarmos da rua e de
Bernardo tomar não apenas um, mas
dois sorvetes, entramos no prédio pela
ala comercial. Ainda não havíamos
saído de casa por aquele caminho e nem
visto as lojas e cômodos que ficam no
térreo.
Passamos em frente a algumas
lojas de roupas e artigos femininos, um
escritório de advocacia e mais ao fundo,
uma sala grande com o emblema de
psicologia na porta. Antes que consiga
dar uma boa olhada pelo vidro, a porta
se abre e um Dominic sorridente sai de
lá, acompanhado de uma mulher mais
velha, que sorri pra ele em meio a
algumas lágrimas.
Me viro para continuar meu
caminho, andando e evitando o momento
constrangedor, mas Bernardo adora me
colocar em meio a situações
embaraçosas.
— Dominic! A mamãe me levou
pra passear no vizinho — conta,
animado, atraindo a atenção tanto do
homem, quando da paciente.
Abro um sorriso sem mostrar os
dentes.
— Na vizinhança, querido —
corrijo. — Boa tarde! — Aceno e dou a
mão para Bernardo, o arrastando
comigo.
Dominic acena de volta e
Bernardo retribui animado.
Paramos diante do elevador
enquanto esperamos que ele desça e
mesmo a contragosto, ouço partes da
conversa de Dominic com a paciente.
O que ele diz não consigo
escutar, o tom de voz é baixo,
sussurrado e me parece muito íntimo.
— Doutor, muito obrigada por
tudo. — Ouço então a voz da mulher. —
Foi uma sessão muito esclarecedora e
olha, seu bilhete... Suas palavras eram
exatamente o que eu precisava hoje.
Estranho o comentário e acabo
olhando na direção dos dois. Vejo que a
mulher segura um pedaço de papel
contra o peito com força. Dominic pousa
a mão no ombro dela e abre aquele
sorriso dele, o que me dá uma sensação
ruim, e fala alguma coisa que não
consigo ouvir, mas que faz todo o rosto
da mulher se acender.
Estreito meus olhos para aquela
cena e não posso deixar de ser
maliciosa. Um psicólogo jovem e
bonito, dando um bilhete para a paciente
e o rubor no rosto dela, tudo me parece
muito suspeito.
O elevador chega e as portas se
abrem, então conduzo Bernardo comigo
para dentro, enquanto penso sobre isso.
Bobagem, com certeza, sempre fui meio
paranoica.
Quando entramos em casa,
estouro pipoca a pedido do Minduim e
acabamos os dois enroscados no sofá,
assistindo animações por algum tempo.
Dominic entra um pouco depois
e nos encontra assim, mas apenas nos
cumprimenta e segue para o quarto, de
onde sai um pouco depois, deixando
uma jaqueta preta sobre o braço do sofá.
Ele segue para o banheiro e
ouço-o ligar o chuveiro, ainda sem
entender porque não colocou um maldito
chuveiro no próprio quarto, a menos que
esteja tão liso quanto eu que não posso
gastar nem mesmo com um chuveiro
agora, ou pode faltar pra comida.
Compreendo pela blusa ali que ele não
tem intenção de ficar em casa, mas
provavelmente planeja sair para nos
evitar e acabo derrubando
acidentalmente o pote de pipocas sobre
a jaqueta.
Quando Dominic chega outra vez
na sala, sinto a respiração ficar presa na
garganta por um instante. Ele é mesmo
impressionante. Arrumado assim, com a
barba aparada e o rastro de perfume
após o banho, é quase irresistível. Isso
para mulheres com um outro estilo de
vida, é claro.
Eu me acostumei a ver homens
tão bonitos quanto ele e ignorar. Era
quase como se sair com alguém, me
interessar ou sentir desejo, fossem
coisas que fizeram parte de uma outra
vida. Mesmo assim ele é uma visão.
Ainda o estou encarando e só
então noto que sua expressão não é das
mais agradáveis. Dominic fita a jaqueta
suja de sal e pipoca e depois olha de
Bernardo pra mim, aguardando uma
explicação.
— Me desculpe — falo, soando
mais arrependida que deveria. A
verdade é que não me sinto confortável
agindo desse modo. — Sou desastrada
demais e acabei derrubando...
Ele pega a blusa e bate nela com
força, para retirar os vestígios de
sujeira. Depois sai pela porta sem
despedir-se e não volta antes que eu e
Bernardo estejamos dormindo.
O domingo chegou e se foi e
apesar das tentativas óbvias de Robin de
me irritar, a única coisa que tem
conseguido é me divertir com tanta
bobagem.
Música alta continua sendo sua
maior arma, mas apenas aguardo sem
reclamar. Sei que não vai demorar para
que o síndico venha se queixar, a pedido
dos moradores do andar de baixo.
Panelas espalhadas pela cozinha,
restos de coberturas e doces.
Sinceramente a única pessoa a se
incomodar com essa baguncinha é ela
mesma, porque percebo que seus olhos
se voltam para a pia cheia de louça a
todo instante e por fim, acaba limpando
tudo. Não precisava ter sujado minha
jaqueta de pipoca, conseguiu me irritar
por um momento, mas depois comecei a
imaginá-la virando o pote sobre a blusa,
como uma moleca e isso me divertiu
também.
O menino vive me chamando e
me enchendo de perguntas, acredito que
ela peça isso a ele pensando que vou me
sentir incomodado. Mas Bernardo é
esperto e tão engraçadinho que gosto das
nossas conversas, não me irrita passar
tempo com o garoto. Na verdade,
sempre quis ter um filho justamente
porque gosto de crianças, então se o
plano for esse, falhou.
No sábado à noite saí e fui me
encontrar com minha irmã. Fazia algum
tempo já que não nos víamos e ela quis
descobrir a todo custo o local em que
estou morando, mas explicar sobre
Robin e Bernardo seria complicado, por
isso optei por jantarmos fora e omitir
algumas informações.
Foi divertido estar com ela,
Alice é alguns anos mais nova que eu e
tem uma cabecinha de vento na maioria
das vezes, mas é agradável estar com
ela e escutar sobre suas viagens,
amizades e passeios.
Voltei tarde da noite e no
domingo dormi até a hora do almoço.
Quando finalmente deixei o quarto, não
tinha ninguém à vista e eles só
retornaram quando já escurecia.
Não perguntei onde estavam ou o
que foram fazer, não é mesmo da minha
conta, mas Bernardo fez questão de me
contar tudo e assim eu soube que foram
visitar a avó dele, que mora em uma
casa de repouso. Foi o máximo de
interação que tivemos nesse dia.
A segunda-feira chegou e com
ela, finalmente minha oportunidade de
revanche pelo que Robin vinha fazendo
e também o momento adequado para
fazer com que ela desistisse do
apartamento de uma vez por todas.
— Oi... Eu preciso sair pro
trabalho e a mocinha que me indicaram
ainda não chegou.
Tomo um copo de água na
cozinha, enquanto ouço a conversa dela,
que está na sala.
— Não, não fui avisada. Vocês
não têm outra pessoa disponível? Eu
preciso de uma babá, tenho que
trabalhar e não tenho com quem deixar
meu filho.
Ela parece desesperada, pelo
pouco que a conheço já sei que não é
comum que erga o tom de voz para
alguém e por isso, mesmo que ainda fale
baixo, noto o quanto está incomodada.
— Mas o que eu faço? — Ela
apenas ouve por um instante. —Tudo
bem, obrigada.
Vejo que desligou o telefone e
me inclino para sondá-la. Robin está
parada de pé, no meio da sala, vestida
para o trabalho. Os cabelos loiros
presos em um coque severo e ela usa um
conjunto social preto que deve ser pelo
menos dois números maiores que o
tamanho dela.
— Robin?
Ela se vira e me olha, alarmada.
— Te assustei? Desculpe. Estava
na cozinha e acabei ouvindo sua
ligação... Quer que eu fique com o
Bernardo? Eu ainda não vou pra clínica
hoje, vou ficar em casa.
Ela balança a cabeça, negando.
— Obrigada, mas não posso
fazer isso. Vou dar um jeito... —
responde. Mas eu sei bem que ela não
tem quem fique com o garoto. Ela
também sabe.
— Você vai se atrasar. Eu te
envio uma mensagem se precisar de
alguma coisa, vai tranquila que eu cuido
dele.
— Eu não sei...
Aceno, compreendendo como
isso é difícil. E sei que antes que o dia
acabe vou piorar as coisas um pouco
mais.
— Eu entendo que é chato deixar
ele com alguém que você conhece tão
pouco. Mas qual a diferença entre mim e
uma babá de uma agência? E eu nem
cobro. — Dou de ombros e espero por
sua resposta.
Ela acaba assentindo.
— Tudo bem. Precisa dar
almoço pra ele, deixei comida pronta na
geladeira e também tem que lembrar ele
de ir ao banheiro, ou pode acontecer um
desastre.
Assinto, já imaginando o horror
que seria, mas não deixo transparecer
nada.
Robin pega a bolsa e sai
correndo porta afora, mas coloca a
cabeça para dentro no último momento.
— Me liga caso tenha algum
problema. Qualquer um...
E então ela sai.
Passar o dia com o menino não é
difícil, porque ele é educadinho e me
fala quando quer comer ou sente sede.
De ir ao banheiro ele realmente se
esquece e preciso lembrá-lo algumas
vezes, mas Bernardo realmente gosta de
desenhos e isso facilita as coisas
também.
Faço tudo direito e cuido do
menino como um adulto responsável
faria e deixo para aprontar minhas
artimanhas apenas quando percebo que
Robin está pra chegar.
Espalho algumas garrafas de
cerveja pela sala, abertas e deixadas ali
de qualquer jeito. Jogo algumas peças
de roupa sobre o sofá para dar um ar de
bagunça ao lugar e substituo os desenhos
do menino por um rock pesado.
Ao contrário do que imaginei,
ele não reclama, acaba ficando de pé
sobre o sofá, pulando e dançando ao
som da música.
Pego uma das fraldas que ela me
instruiu por mensagem a colocar nele
caso dormisse e coloco enquanto ele
bate as pernas e balança a cabeça
imitando os músicos na televisão.
Depois me sento no sofá ao lado
dele, tiro a camisa e os sapatos e me
esparramo como se não tivesse nada
mais a fazer da vida, a não ser beber e
curtir o som. E espero por Robin.
Quando ela entra e anuncia sua
chegada, pego a garrafa sobre a mesinha
e a seguro. Tomo um gole, enquanto
assisto o choque percorrer seu rosto,
que demonstra todas as suas emoções.
Ela estaca diante de mim e olha,
assustada, ao seu redor.
É quase como se eu tivesse dado
uma festa e, a julgar pelo modo como
ela reage, acredito que pensou a mesma
coisa.
— Aconteceu alguma coisa
aqui? — pergunta olhando as garrafas e
para mim, demorando-se um instante ao
notar minha falta de roupas.
Dou de ombros.
— Não. Foi divertido, eu e o
Bernardo curtimos uma tarde de rapazes,
não foi, menino?
Ele balança a cabeça sorrindo e
quase me sinto mal, mas me alivia a
consciência saber que cuidei do garoto
direitinho e que por mais que ela me
odeie, não fiz nada do que parece.
— Dominic, tem cerveja pra
todo lado... — Apesar da repreensão,
ela fala em tom baixo e contido.
— Ah, eu bebi um pouco.
Aproveitando a folga, né? No trabalho
não rola.
Ela vai pegando as garrafas e
colocando na cozinha, limpando tudo
com o olhar desanimado, mas não grita
comigo em momento algum, mesmo que
seja o que mereço e que sei que Robin
gostaria de fazer.
Se aproxima do filho depois e o
abraça apertado. Me sinto um babaca
por deixa-la preocupada e quase acabo
dizendo a verdade, mas me seguro.
— Obrigada por ficar com ele,
Dominic. Vou dar banho no Bernardo
agora.
Ela pega o garoto no colo e
segue para o banheiro. Desligo o som
assim que os dois saem da sala e visto
minha camisa.
Suspiro irritado por me ver
obrigado a tomar atitudes tão infantis,
mas se ao menos funcionar...
Deixo a sala e acabo indo para o
quarto. Ainda é cedo, mas não quero
encarar Robin e rever o modo como ela
ficou assustada com o que encontrou em
casa. Preciso encontrar um modo de
irritá-la sem envolver o Bernardo.
Uma notificação surge na tela do
meu celular e vejo uma mensagem de
Alice, minha irmã.
"Estou na portaria. Libera
minha subida antes que eu comece a
gritar rs"
Droga. Como essa peste
descobriu onde eu estou morando?
Aproveito que Robin está no
dando banho no menino e peço ao
porteiro que libere a entrada dela. A
espero na sala e quando Alice aparece
toda sorridente, a conduzo para meu
quarto rapidamente.
— O que veio fazer aqui? —
pergunto ao fechar a porta.
— Vim te ver, claro. Não devia
colocar o consultório particular no
mesmo prédio em que mora, se queria
manter segredo.
Fala, agindo como uma
espertinha. Alice em teoria é uma adulta,
mas sabe agir como uma das crianças
mais irritantes quando quer.
— Não é nada disso... é que...
Nesse momento ouvimos vozes
do lado de fora do quarto e Robin, que
me chama e bate na porta.
Merda.
Faço sinal para que Alice fique
em silêncio e abro uma pequena fresta
na porta.
— Oi, Robin.
— Escuta, o Bernardo estava
usando fralda. Talvez eu não tenha
explicado direito, mas ele vai ao
banheiro sozinho. A fralda é só para
quando estiver dormindo... Ele é
grandinho já.
Aceno afirmativamente.
— Huum, tudo bem. Vou me
lembrar na próxima.
Ela olha para os pés e depois de
volta pra mim, o menino está ao seu lado
com os cachos loiros molhados e me
encara curioso com a conversa.
— Amanhã ele vai comigo pro
trabalho e vou tentar encontrar alguém
pra olhar ele na quarta. Obrigada mesmo
assim.
— Com quem você está falando,
Dominic? Volta logo pra cama.
Alice e a boca maldita da peste.
Os olhos de Robin faltam saltar
para fora, quebrando os óculos no
caminho.
— Desculpe por isso — digo,
abrindo um sorriso sem graça.
Penso em explicar melhor,
apresentar Alice a ela, mas percebo que
isso pode ser o que eu precisava.
Exatamente o que planejei depois de
ouvir a conversa das mulheres
desconhecidas no mercado.
— Eu não esperava que fosse
bater aqui na porta.
— Você está... — O tom dela é
quase um sussurro agora. — Está com
uma mulher aí? E estava com meu filho,
Dominic? Francamente. Você é a pior
babá da história!
Eu continuo sorrindo, mas não
dou nenhuma explicação.
— Vem, Minduim. — Ela sai
arrastando o menino e eu fecho a porta.
Me viro e deparo-me com Alice
que me analisa com um sorriso
debochado.
— Então além de morar com
uma garota, ainda tem uma criança na
jogada? Papai vai ficar tão feliz...
— Alice, se você falar pra
alguém sobre isso... É só uma confusão,
estamos morando no mesmo lugar,
temporariamente.
Ela aquiesce.
— Claro que é. Não me pareceu
uma namorada mesmo, mas ela ficou
furiosa. Por que deixou a moça acreditar
que estava com alguém, enquanto era
babá do filho dela? Eu hein, que coisa
esquisita. Não é muito seu estilo fazer
essas coisas.
— Mas foi você quem gritou
feito uma amante doida — recordo.
— Eu sei, mas estava brincando,
né? Pensei que ia abrir a porta e dizer
quem eu era.
Coço a cabeça como sempre
faço quando fico nervoso.
— Eu quero que ela se mude e
isso vai acontecer mais fácil se pensar
mal de mim...
— Huuum, fica mais esquisito
ainda. Mas enfim, da sua vida você
quem sabe. Que tal se agora me levar
pra comer e tomar uma cerveja? Não
jantou ainda, né?
Faço que não.
— Tudo bem. Vamos sair e você
vai passar pela sala quieta, sem dar um
piu, está ouvindo?
Ela concorda e pego minhas
chaves e a carteira. Seguimos pelo
corredor, e fico um pouco nervoso por
ter que passar por Robin, porque sei que
vou ver no rosto dela algo que não vou
gostar. Afinal, além de tudo minha irmã
faz o estilo femme fatale, botas que
sobem até as coxas, saia curta, uma
mulher muito diferente de Robin no
modo como se veste, pensa e age.
Por sorte não a vejo em lugar
nenhum e deixo o apartamento também
sem ser visto.
Isso foi jogo sujo. Posso ser
reservada e até antissocial. Tenho
problemas e traumas, mas não sou boba.
Sei muito bem que Dominic também está
me irritando de propósito, mas os
métodos dele são bem mais pesados que
os meus.
Beber com meu filho do lado e
trazer uma mulher para casa sem avisar
e sabendo que moro aqui com uma
criança, foi ir longe demais.
Mas eu também posso ir longe.
Definitivamente longe.
No domingo visitei vovó Rute e
tive que conversar na administração do
lar em que ela vive sobre a
possibilidade de deixá-la com eles,
mesmo durante a reforma.
Não é o que nenhum de nós
gostaria, mas eu não esperava estar
morando com um homem quando a hora
chegasse.
Senti-me mal por a deixar lá,
sozinha, porque a maioria dos seus
companheiros foram passar um tempo
com suas famílias, mas com Dominic, as
coisas se complicaram.
Mas isso foi antes. Agi levando-
o em consideração, até ele conduzir esse
jogo de quem desiste primeiro a um
outro nível. Agora, acho que a melhor
ideia é levar minha avó para casa.
Dona Rute é excepcional.
Espirituosa, divertida e agitada, mas
apesar da vivacidade, a mente dela não
é mais a mesma de anos atrás e tenho
certeza de que ter alguém como ela em
casa vai ser uma prova de fogo para
Dominic.
Hoje é terça-feira, um dia após o
incidente delicado com o psicólogo
mais instável que conheci na vida. Logo
pela manhã, entrei em contato com o
asilo e pedi para que preparassem minha
avó para sair e avisei que a pegaria
após o expediente.
Bernardo veio comigo para o
trabalho e por mais que meu novo chefe
não tenha gostado tanto, também não foi
grosseiro, nem nada assim.
Distraí Bernardo deixando-o
jogar no meu celular por um tempo, nos
fundos da loja, mas um pouco depois ele
surgiu, dizendo que meu chefe estava
beijando na boca de uma menina.
Entendi na hora que ele não queria ficar
lá, não há ninguém na joalheria além de
mim e as duas outras funcionárias e
nenhuma delas parece interessada no
gerente.
A Magic’s em Lagos não é tão
grande quanto a matriz, mas é uma loja
bonita e sofisticada dentro do shopping.
Aproveite-me do lugar e o deixei
no playground aos cuidados de uma
monitora. Como não encontrei ainda
alguém que possa tomar conta dele em
casa e com o acréscimo de uma idosa
não muito convencional, acabei por
pedir ao seu Antônio, o porteiro, que os
vigiasse pra mim por uns dias e ele
aceitou. Não que minha avó seja louca
ou precise de supervisão vinte e quatro
horas por dia, mas vez ou outra é bom
verificar o que ela está aprontando.
Bernardo e eu saímos do
shopping direto para buscar vovó Rute.
Quando chegamos ao lar de idosos, as
malas dela já estavam prontas e o
colchonete enrolado.
Minha avó nos esperava na
varanda, com seus pertences espalhados
e uma samambaia no colo. Perfeito. Não
vejo a hora de encontrar Dominic.
— Boa noite, vovó —
cumprimento e a abraço apertado. —
Está pronta pra ir?
Ela assente com um sorriso
imenso no rosto.
— Tem certeza, minha filha?
Não vou te causar problemas?
— Absoluta! — respondo,
animada.
Ela é minha solução, não meu
problema.
— Oi Minduinzinho da vovó —
chama, abrindo os braços em um
convite, que Bernardo logo aceita. Ele
solta minha mão e corre para abraçá-la,
subindo sobre as pernas da avó.
— Oi vovó Rutinha...
Os dois adoram os diminutivos e
sempre me rendem momentos divertidos.
Coloco as coisas dela no carro e
a ajudo a entrar e se acomodar.
Bernardo vai no banco traseiro, em sua
cadeira, instalado confortavelmente.
Quando chegamos no prédio,
faço questão de apresentar seu Antônio a
minha avó e avisa-la de que ele vai
aparecer vez ou outra para ajudar, caso
ela precise.
Eles se cumprimentam e, graças
a Deus, parecem se dar bem. Bernardo
está eufórico com a presença dela e
também estou feliz. Apesar de Dominic
ser a razão pela qual decidi trazê-la, ele
também foi o motivo pelo qual tinha
desistido da ideia antes.
Por mais que tenha pesado a
decisão antes de tomar uma atitude,
estou apreensiva. Tenho medo do modo
como ele vai reagir e tratá-la, porque em
momento algum dei a entender à minha
avó que Dominic não a quisesse
conosco.
Contei sobre nossa confusão e
vovó Rute achou tudo muito engraçado.
Quando expliquei porque não poderia
ficar em casa, ela entendeu
perfeitamente, mas ficou muito feliz
quando eu disse que não era mais um
problema.
Subimos no elevador, Bernardo
contando mil e uma coisas para a vovó e
eu ansiosa com o que poderia acontecer
nos próximos minutos. Mas é em vão.
Quando entramos no
apartamento, Dominic não está à vista.
Procuro-o por toda a casa e não o
encontro. Então, munida de material de
limpeza, organizo o quarto que havia
sido preparado para o cachorro
Bernardo. Retiro os itens animalescos e
coloco o colchão que trouxemos do
asilo no chão.
O cubro com lençóis novos e
levo também um abajur e uma pequena
mesinha que estava no outro quarto.
Instalo vovó no cômodo que antes eu
ocupava, porque não teria o menor
sentido deixá-la dormir no chão. Ela e
Bernardo vão dividir a cama de casal
por algum tempo, enquanto eu me divirto
no colchonete.
Ao contrário dos dois quartos
principais, esse para o qual acabo de me
transferir não tem banheiro, os outros
dois ao fim do corredor também não,
então sei que ela ficará mais bem
instalada no outro, apesar de ainda
precisar usar o banheiro social para
tomar banho.
— Onde está seu colega? —
pergunta curiosa. Percebo que a todo
instante ela olha pra porta, ansiosa para
conhecê-lo.
— Não sei. Deve estar
trabalhando ainda.
Ela concorda. Abre uma das
malas que trouxe e vejo vários itens de
decoração. Tapetes de tricô, patinhos de
porcelana e aromatizadores de ambiente.
— Sua casa está muito sem vida,
minha filha... Ainda bem que trouxe
minhas coisas.
Ah, Dominic vai amar isso tudo.
Na terça-feira, Robin realmente
cumpriu com o que disse e levou
Bernardo para o trabalho. Como ainda
não comecei na clínica e não tive
pacientes à tarde, fui a academia e
conheci o espaço da piscina, fiquei de
bobeira o dia todo e isso acabou me
fazendo sentir um pouco de culpa. Não
me custava ficar com o menino.
Ao mesmo tempo, tento me
concentrar na razão de tudo isso. Logo
eles vão embora, o que é a intenção, e
eu poderei ficar sozinho em paz. Talvez
até mande algumas flores e um pedido
de desculpas oficial depois.
No fim da tarde desci para o
consultório e me dediquei a preparar-me
para as sessões do dia seguinte. Sempre
acreditei que as pessoas se curam de
todo e qualquer trauma ou dificuldade se
uma nova maneira de enxergar o mundo
puder penetrar suas almas.
Para um profissional, alcançar
uma conexão forte a esse ponto com o
paciente é algo complicado e gradativo,
afinal a confiança vem aos poucos e com
ela a abertura e devagar, o progresso.
Nunca desejei ser um
profissional medíocre, a psicologia não
foi uma escolha financeira ou uma
decisão impensada. Pelo contrário, me
descobri nisso, soube em um momento
difícil que podia ajudar outros a
superarem seus próprios percalços com
a minha atenção, meus ouvidos,
conselhos e palavras.
Palavras. Elas sempre tiveram o
poder de me tocar de um modo especial,
as faladas podem realmente incomodar
ao ponto de gerar em mim desejo de
transformação. Mas as escritas, possuem
um peso ainda maior.
Elas não apenas podem me dizer
algo que venha a ser gerador de
mudança, como também ficam ali,
fixadas, em todas as vezes que preciso
me recordar.
Foi assim que, ainda na
faculdade, desenvolvi meu método
específico de tratamento. Além da
terapia tradicional, trabalho com as
palavras escritas. Cada paciente recebe
um pequeno texto por sessão, escrito
especialmente para ele. Versos com o
poder de dar ânimo, força, de restaurar a
autoestima ou expurgar alguns demônios.
Pode parecer uma besteira para
muitos, mas a vitória nos meus casos
indica também o sucesso do meu
método.
Sentado em minha poltrona
confortável, analiso a agenda do dia
seguinte e vejo os nomes dos pacientes.
Abrindo o armário de arquivos,
encontro as fichas e recordo as
anotações sobre as últimas consultas que
os pacientes tiveram e o que tenho de
informação sobre eles, fornecidas pelo
profissional anterior.
Cada caso é único e especial,
assim trato-os dessa maneira. Porém, me
sinto um pouco apreensivo ao começar
tratamentos com pacientes com os quais
ainda não criei um vínculo e por isso me
sinto ansioso com o dia de amanhã.
Só me levanto da cadeira depois
de cuidadosamente escrever os textos de
reflexão para as duas consultas, dobrar
os papeis e endereçar aos pacientes
específicos.
Olho no relógio e vejo que já
passa das sete da noite. Sinto meu
estômago roncar de fome e considero
uma trégua com Robin, para comermos
alguma coisa.
O calor também me incomoda.
Ficar aqui, fechado e sem ar
condicionado não está ajudando e a
camisa social preta está colada em meu
corpo, me fazendo suar um pouco.
Deixo o escritório por hoje e
subo para o apartamento. Depois de
ontem e do que eu fiz para irritar Robin,
não sei se o humor dela vai estar dos
melhores.
Destranco a porta e entro. Por
um instante cogito a possibilidade de ter
entrado no lugar errado, afinal apenas
isso justificaria uma senhorinha sentada
no meu sofá, tricotando alguma coisa
rosa.
Talvez isso explicasse também a
samambaia enorme que está sobre a
mesa de centro. Mesmo que meus olhos
me mostrem isso, eles também me
mostram Bernardo deitado no outro sofá,
minha televisão na parede e Robin de
costas em suas roupas esquisitas, na
cozinha.
Entro e fecho a porta com um
baque forte para atrair a atenção de
todos.
— Boa noite — falo em alto e
bom som. — Não sabia que tínhamos
visita...
A velhinha abre um sorriso
enorme para mim.
— Olá broto, eu sou a Rute.
Ela acabou de me chamar de
broto? Abro um sorriso em resposta e
me aproximo dela para a cumprimentar.
A senhora se levanta e me estende a
mão, colocando-a bem debaixo do meu
nariz e apesar de nunca ter visto isso
acontecer fora dos filmes, a intenção é
claramente que eu beije a mão que me
empurra.
Ainda sorrindo, faço a vontade
da mulher simpática e em resposta ao
meu gesto, a paqueradora mostra todos
os dentes da dentadura. Acho que isso
não poderia ficar mais esquisito, mesmo
que ela seja uma graça de velhinha.
— Ela é minha avó — Bernardo
fala e percebo o total choque no rosto de
dona Rute.
Volto minha atenção para o
garoto e observo a máscara dos Minions
que está sobre os cabelos loiros.
— É mesmo? Mas dona Rute é
muito jovem para ser sua avó!
Apesar de não responder nada, o
sorriso dela e o modo como dispensa
meu elogio com um gesto, demonstram o
quanto ficou satisfeita.
Robin por outro lado observa
nossa interação, parecendo irritada.
— Que bom que já se
conheceram. Agora vamos, pessoal? Ou
vai ficar tarde. Depois vocês conversam
mais...
— Ah, estão de saída? —
pergunto ao ver Bernardo se levantar de
um pulo, assim como a avó.
— Sim, vamos sair agora... —
Robin responde pegando sua bolsa e
passando por mim na direção da porta.
— Foi um prazer conhecê-la,
dona Rute. Espero vê-la mais vezes.
Aceno em despedida, mas Robin
para perto da porta.
— Ah, quanto a isso... — O
olhar dela é fixo no chão. — Vovó Rute
se mudou pra cá, vai morar um tempo
com a gente. Boa noite, Dominic.
Mas que merda é essa?
— Ei, ei, ei... Antes de saírem,
preciso falar com você um minutinho,
Robin. Me acompanhe, por favor.
Sigo na direção do meu quarto
sem olhar para trás e esperando que ela
me siga, mas temendo que a espertinha
fuja. Ouço seus passos arrastados atrás
de mim e entro no quarto, fechando a
porta depois dela.
— Robin, que história é essa de
que sua mãe vai morar aqui? —
questiono, já deixando claro minha
desaprovação.
Apesar do tom ser de tristeza e
remorso, como sempre Robin não me
encara ao responder:
— Imagino que isso deva tê-lo
deixado furioso. Não está me parecendo
muito feliz.
Ela está satisfeita! O tom de
arrependimento é ensaiado, posso ver
pelas covinhas fofas que teimam em
aparecer no seu rosto, mesmo que ela
continue fitando o chão, mesmo que
esteja tentando se manter séria.
Eu disse que as covinhas dela
são fofas? Acho que é isso. Robin tem
alguma coisa meiga no modo como tenta
me enfrentar, tentando ser mais
audaciosa.
Foco, aqui. Ela está tentando
transformar seu apartamento em um
abrigo, Dominic! Isso não é nada
meigo.
— É claro que fiquei furioso,
você não me consultou sobre isso.
Simplesmente decidiu e a trouxe para
cá.
— Na verdade, pensei que fosse
funcionar assim. Também não falamos
sobre você trazer mulheres para casa e
mesmo assim o fez — responde como se
fosse a mesma coisa.
— É diferente! Você sabia que
isso não era aceitável e por isso não
disse nada. Não foi? — Elevo um pouco
o tom da voz, não quero me irritar tanto,
mas ela está se fazendo de boba e isso
me deixa muito nervoso.
—Sabe, Dominic, acho que hoje
devemos conversar um pouco sobre suas
medidas e pesos diferentes. Quer dizer
que tudo bem você trazer uma mulher
pra cá sabendo que meu filho estava sob
sua responsabilidade? Tudo bem beber
enquanto estava cuidando dele? Mas eu
não posso trazer minha avó para viver
comigo mesmo tendo cinco quartos
nesse lugar e ela sendo uma idosa que
não tinha para onde ir?
Estreito meus olhos em sua
direção, percebendo seu discurso
ensaiado e a vejo ajeitar os óculos,
como um tique nervoso.
—Você fez isso de propósito?
Está tentando me irritar? Tudo bem
quando eram apenas pipocas sobre
minhas roupas ou o som da maldita
galinha, mas uma moradora é ir meio
longe.
— Exatamente o que pensei
quando trouxe companhia feminina
enquanto cuidava de um menino de
quatro anos. Minha intenção não era a de
te irritar, mas você precisa sair dessa
bolha em que vive, tem que aceitar
coisas que não estejam nos seus planos
— responde. Como se ela fosse o tipo
de pessoa que aceita tudo e vive bem
com isso.
— Ah é? Então agora você se
acha uma deusa? Pensa que pode mudar
a vida dos outros de acordo com o que
acha melhor? Comigo não vai funcionar.
Mulherzinha petulante! Fazendo
a sonsa e dominando todo o apartamento
enquanto eu, bem cego, esperava que
fosse só uma bobinha.
— Então vai expulsar uma
senhora de idade daqui? No meio da
noite e sem ter pra onde ir?
Assinto resignado. Tudo bem que
passa pouco das sete da noite, mas é
claro que eu não faria isso e ela sabe
muito bem.
— Não vou colocar sua mãe na
rua, mas você ultrapassou os limites
aqui, Robin, e eu não vejo a hora de que
pegue todo seu clã e dê o fora.
Ela apenas encolhe os ombros,
mas vejo um sorrisinho oculto ali.
— Talvez você o faça antes... E
ela não é minha mãe, é minha avó.
Como se isso fizesse alguma
diferença. O fato é que ela é
manipuladora pra cacete.
Saio do quarto para a sala e a
noto me seguindo. Bernardo está parado
com os olhos arregalados e a avó com
as duas mãos tapando os ouvidos dele.
Acho que não fomos muito discretos.
— Vocês estão brigando,
mamãe? A minha mãe nunca briga! —
fala, olhando agora para mim.
— É porque ela não costuma
viver — respondo a ele com um sorriso
no rosto.
Foi pesado, mas a avó dela
parece ter achado graça, porque além de
sorrir, ainda concorda comigo.
— Robin me disse que você é
terapeuta. Você deve ser mesmo
excelente no que faz, porque para
conhecer minha neta tão rápido assim só
pode ser ótimo. Ela não vive mesmo,
tem toda razão.
— Nem é preciso um diploma
para ver isso, dona Rute.
Ela aquiesce e me lembro que
deve ter ouvido toda a discussão.
— Me desculpe se fui grosseiro,
é que dividimos o lugar e ela não me
perguntou se estava tudo bem trazer a
senhora para morar aqui. Não é a sua
presença, dona Rute, fiquei chateado por
não ter sido nem mesmo informado ou
consultado. A senhora entende, não é?
A vontade que eu tenho é de
gritar com Robin, mas me controlo pelas
companhias que temos. Ela não age de
modo diferente do meu, parece bem
irritada e Bernardo percebe.
— Mamãe está brava com você
— fala pra mim. — Ela fica brava
quando eu faço alguma coisa errada,
mas eu quase não faço. O que foi que
você fez, hein?
— Parece que muitas coisas,
Bernardo. Mas no momento, acho que
interrompi o passeio de vocês — mudo
o rumo da conversa para algo mais leve.
O rostinho pequeno transmite
compreensão.
— Foi mesmo e a gente quase
não sai... Mas ela disse que vamos
tomar sorvete, você pode ir junto e aí
não vai mais atrapalhar. Não é, mamãe?
Robin abre os olhos com a
sugestão e mais uma vez arruma os
óculos grande sobre o nariz pequeno.
Faz um muxoxo pensando em como
responder aquilo.
— Eu não acho uma boa ideia,
querido. O Dominic deve ter muito
trabalho ainda e não seria bom
atrapalha-lo.
De repente, tudo que eu quero é
ir junto e irritá-la um pouco mais, afinal,
depois de trazer dona Rute para morar
comigo, ela merece.
— Na verdade, já acabei meu
trabalho por hoje e estava inclusive
pensando em como está calor. Um
sorvete seria muito bom, fico grato pelo
convite.
— Dominic, querido... Eu não
vou incomodar? É só por uns dias, sabe?
— dona Rute me questiona e percebo
então que Robin quis me fazer acreditar
que era algo permanente, quando não
era.
Abro um sorriso para a senhora
de cabelos brancos a minha frente, agora
bem mais tranquilo.
— Sim, está tudo bem. Não é
problema algum, eu não teria ficado
chateado se ela tivesse me dito. Só
queria que Robin aprendesse a
compartilhar o que pensa. A senhora não
acha que ela se acostumou a decidir tudo
sozinha? — indago, e vejo seu olhar se
acender diante do modo como
compreendo a neta.
— Vovó, depois conversamos
sobre isso. Vamos logo tomar esse
sorvete, então — Robin interrompe
qualquer resposta.
Estraga prazeres.
— Eu sigo vocês no meu carro.
E, Robin, você está sendo um pouco
desagradável hoje, mas vou relevar isso,
porque acredito que a culpa deva ser
minha. Vamos?
Ela estreita os olhos para mim e
finalmente sai pela porta, acompanhada
de perto pelos outros dois. Os sigo para
o estacionamento, ainda sem acreditar
que aquilo esteja mesmo acontecendo,
que estou indo a uma sorveteria com
uma idosa paqueradora, uma mulher bem
estranha e pouco amigável e um
garotinho tagarela e esperto.
Depois de vê-los entrando no
carro, também pego o meu e dirijo. Com
Robin à minha frente, sigo-a até a
sorveteria. Quando estacionamos
Bernardo desce e se junta a mim.
Todos eles acabam se
aglomerando em torno do meu carro.
Bernardo parece impressionado, assim
como dona Rute. Robin por outro lado
parece desconfiada, mas não pergunta
nada, nem comenta o fato de eu não ter
dinheiro e manter um Mustang, que é
absurdamente caro, mas se um dia eu
precisar, meus tempos de playboy ainda
podem me salvar de algum modo.
Entramos e logo o ar refrigerado
alivia um pouco o calor da noite.
Bernardo segue direto para a bancada
onde ficam dispostos os doces,
coberturas e guloseimas de todo tipo e
eu o acompanho. Começamos a montar
nossos sorvetes, enquanto Robin e a avó
encontram uma mesa e pedem alguma
coisa a garçonete.

Minha avó pede um milk-shake e


eu acabo optando por um refrigerante. O
calor está absurdo, mesmo que uma
frente fria esteja prevista para os
próximos dias, talvez esteja quente
assim justamente por isso. Prefiro matar
a sede.
Rapidamente a garçonete volta
com minha bebida e vejo o olhar da
minha avó recair sobre Dominic, que
empilha um monte de jujubas sobre uma
taça de sorvete, fazendo o mesmo com
outra taça, provavelmente pra Bernardo.
Ai, Deus.
— Você não me disse que ele era
bonito, minha filha — ela comenta,
animada.
— Não disse, porque ele não é
— respondo, sorvendo um gole do meu
refrigerante e tentando parecer sincera.
— Ah, claro que não. Deve ser
por isso que você não para de olhar as
almofadas dele.
Repentinamente me engasgo, e
Coca-Cola começa a sair pelas minhas
narinas, chamando a atenção de todos a
nossa volta. Mas, ninguém pode me
culpar por reagir assim a um comentário
como esse.
— Vovó! Que absurdo, eu não
estou fazendo isso — digo, enquanto uso
os guardanapos na mesa para limpar ao
menos parte do estrago.
Dominic realmente é muito
bonito, mas eu jamais admitiria isso em
voz alta e com certeza não estava
olhando o bumbum dele, apenas para a
forma como a calça abraça as pernas
fortes. Gosto de calças que vestem bem,
apenas isso.
Eles sentam conosco e noto que
Dominic me encara enquanto mastiga
alguma bala que não combina nada com
sorvete.
— A senhora engasgou, mamãe?
Não pode tomar tudo de uma vez...
Dominic sorri, achando graça
das palavras de Bernardo.
— E então? Ela ainda está com
raiva de mim, Bernardo?
— Sim, acho que é porque você
não pediu desculpas, ela sempre me diz
que pedir desculpas é muito importante.
— Ah é verdade, eu, mais do
que ninguém, deveria saber disso. —
Me desculpe Robin, não foi minha
intenção estragar sua noite, eu só estava
mesmo louco por um sorvete.
— Claro que estava —
respondo. — Por que mais você pegaria
metade do estoque deles?
— Eu admito que exagerei um
pouquinho, mas você também
ultrapassou alguns limites para se livrar
de mim. Podemos tentar ao menos nos
entender, ser amigos, quem sabe.
Percebo que não falamos mais
do sorvete. Ele me olha demoradamente
e posso ver que está sendo sincero pela
primeira vez, assumindo que todas as
nossas últimas atitudes foram mal-
intencionadas. É uma admissão de que
se sentiu incomodado com nossa
presença, ao ponto de agir
deliberadamente para me perturbar, mas
eu agi do mesmo modo.
Com a boca toda suja de
chocolate, Bernardo resolve falar mais
do que eu esperava.
— Iiiiih, não adianta insistir, ela
não vai ser sua amiga. A mamãe sempre
diz que só precisa de três pessoas, eu, a
vovó e a tia Mari.
Abaixo o rosto e continuo minha
missão de secar a mesa, dessa vez
tentando disfarçar o quanto a resposta de
Bernardo me incomodou. Prefiro não
dar motivos para especulações e isso
com certeza é material para que
Dominic conheça mais sobre mim do
que estou disposta a revelar.
— Minduinzinho, não fala assim
que sua mãe fica triste, tá bom? — Vovó
Rute diz e sei que a intenção não é ruim,
mas não quero isso. Não quero que ele
saiba o que me deixa alegre ou triste, o
que me incomoda, meus limites e o quão
patética minha vida se tornou cinco anos
atrás.
— Eu vou... no banheiro me
limpar melhor. Estou toda grudenta,
termine o sorvete, Minduim.
Com isso me levanto e sigo na
direção indicada por uma pequena
placa, mas mesmo me distanciando,
sinto os olhos dele cravados em minhas
costas, analisando cada maldito
movimento meu.
Chegamos em casa e Robin vai
diretamente para o quarto, com uma
desculpa qualquer sobre estar com dor
de cabeça. Mas não sem que eu perceba
que colocou a avó na sua cama e se
mudou para um dos outros quartos, mais
especificamente o do cachorro.
O jantar está pronto na geladeira.
É o que ela me diz antes de se fechar.
Apesar da insistência de Rute em
aquecer a comida, acabo indo eu mesmo
esquentar e depois chamo a ela e
Bernardo para comerem.
Nos sentamos os três à mesa.
Fico em silêncio remoendo as palavras
do menino sobre sua mãe, enquanto ele e
a bisavó falam animados sobre o que
farão no dia seguinte e comem com a
mesma empolgação.
Ela não vai ser sua amiga.
Talvez eu tenha sido muito duro
com Robin, como profissional não posso
deixar de me sentir culpado por fazer
com que alguém, tão retraída, se sinta
ainda mais na defensiva, ao invés de
ajudar.
Robin é mãe solteira e dá um
duro danado pra cuidar do filho e agora
da avó. Sinto uma onda de raiva me
atingir quando penso no pai de
Bernardo. Que tipo de homem faz um
filho e desaparece, deixando as
obrigações nas costas da mãe? Muitos,
pelo que sei, ainda assim não torna isso
mais razoável ao meu ver.
Estou olhando fixamente para o
garoto que brinca com a comida,
fazendo avião e colocando na própria
boca. É uma bobagem, mas alguém
deveria fazer avião e colocar na boca do
moleque.
— O que foi, meu filho? Ficou
sério de repente... — comenta dona
Rute, me fitando com curiosidade,
enquanto termina de limpar o prato.
— Onde está o pai dele? —
pergunto, mesmo sabendo que não é da
minha conta.
Dona Rute olha para o garoto e
vejo quando Bernardo também registra a
pergunta e me olha sem parecer se
importar muito com isso.
— Ele não tem um...
Apesar da resposta dela, ainda
fico em dúvida sobre o que isso quer
dizer. Muita gente diria isso de um pai
que não é presente, mas Bernardo acaba
respondendo minha pergunta sem que eu
precise questionar em voz alta:
— Meu papai mora no céu, junto
com o Jesus e os anjinhos.
Abro um sorriso triste ao ouvir
as palavras dele.
— Entendo. — Que bola fora,
hein Dominic? Julgando um homem
que morreu.
Mas não me culpo pela
curiosidade. Uma mulher solteira,
criando o garoto sozinha... Me intrometi
por preocupação, mesmo que, como
salientei antes, não tenha nada a ver com
a vida deles. Ainda assim não pude
evitar.
Bernardo se levanta da mesa e
sai pulando para a sala. De onde
estamos, posso ver quando ele se deita
no sofá e liga a televisão sozinho. As
crianças de hoje fazem coisas que eu,
com quatro anos, nem sonharia.
— Será que Robin vai jantar,
dona Rute? — Levanto-me e começo a
retirar os pratos da mesa.
— Acredito que não, ela ficou
um pouco sem jeito com as coisas que o
Bernardo falou e eu também não
ajudei... — Ela balança a cabeça e solta
um suspiro cansado. — Eu não faço por
mal, sabe? Queria que ela voltasse a
agir como uma mulher da idade dela,
mas nem ousaria te contar as coisas
pelas quais ela passou, sob o risco de
ser expulsa e deixada pra morrer no frio.
Nem comento o quanto está calor
hoje, não vem mesmo ao caso.
— Mas é muita coisa pra uma
menina tão novinha enfrentar sozinha...
— conclui por fim.
— Robin não é tão menina mais,
dona Rute. Tem o quê? Uns vinte e cinco
anos?
Ela sorri.
— Vinte e sete — responde, e
continua, me dizendo mais do que eu
esperava. — Mas era bem mais nova
quando engravidou do Minduim. É muito
tempo para um luto durar, meu rapaz.
Assinto, porque concordo.
Se o rapaz faleceu quando ela
engravidou, são cinco anos de luto e
isso é muita coisa. Por outro lado,
imagino que não seja apenas tristeza e
saudades, estou habituado a ver pessoas
que se isolam de tudo e de todos e
geralmente há algo mais, que as faz agir
desse modo.
— Vou preparar um prato pra
ela. — Abro o armário, procurando o
local em que ela guardou as coisas e
retiro de lá um prato. — Quem sabe ela
se anima um pouco, dona Rute? Eu fui
meio idiota... — confesso. — Vou me
desculpar e tentar chegar a um acordo.
A senhorinha sorri pra mim,
parecendo bem alegre com isso e eu
também me sinto. Mais homem, mais
maduro e menos imbecil.
Preparo a comida para Robin e
sigo até o quarto, passando por um
Bernardo semiadormecido no sofá. Bato
na porta, a vejo abri-la e me sondar com
os olhos avermelhados, acho que andou
chorando.
— Oi, trouxe seu jantar —
revelo um pouco sem jeito e estendo o
prato a minha frente.
Os olhos dela olham fixamente
para a comida por alguns instantes e
começo a ficar nervoso, mas logo Robin
olha outra vez pra mim e abre um
sorriso discreto.
— Obrigada... — responde e
recebe a comida das minhas mãos.
— Por nada, você que fez, eu só
servi. É o mínimo, não acha?
Ela ergue a sobrancelha com
sarcasmo e o sorriso aumenta um
pouquinho. É tão raro vê-la sorrir que
me surpreendo por um segundo com o
quanto gosto disso.
— Tem razão, não fez mais que a
obrigação — brinca.
Sorrio de volta e vejo o sorriso
dela morrer. Eu hein... Nem fiz nada
dessa vez.
— Amanhã eu começo na clínica
e também vou atender dois pacientes no
consultório, após meu horário. Será que
podemos conversar depois disso?
Pensei um pouco sobre nossa situação
aqui e o modo como tenho agido... —
Olho para ela e alfineto. — Como temos
agido. Acho que sei uma maneira de
fazer as coisas darem certo.
— Tudo bem, eu chego por volta
das seis e meia da tarde. Vai estar no
consultório?
Assinto e respondo:
— Termino minha última
paciente mais ou menos nesse horário,
talvez sete.
— Vou te esperar lá embaixo
então, acho melhor conversarmos longe
da vovó Rute e do Minduim.
— Combinado. E por falar em
Minduim, ele dormiu no sofá... —
comento.
— Ah! — Rapidamente ela sai
do quarto, deixando a porta entreaberta
e indo em direção a sala.
Observo em um canto o colchão
muito fino arrumado com as roupas de
cama dela, um pequeno abajur, uma
mesinha e os tênis que ela usava mais
cedo em um canto.
Vejo-a passar com o pequeno
adormecido nos braços e entrar no outro
quarto. Enquanto isso, meus dedos
batucam incessantes sobre o portal,
minha cabeça baixa enquanto reflito
sobre ela, sobre eles.
Robin retorna um pouco depois,
os braços erguidos arrumando o coque
preso no alto da cabeça.
— Pronto... Minha avó também
já vai se deitar, boa noite, Dominic.
Ela passa para dentro do quarto
e percebe meu olhar fixo no colchonete.
— Ah, eu não podia colocar
minha avó nesse colchão fininho, né? Ia
acordar com a coluna travada, coitada.
Realmente. Mas isso não me faz
sentir-me melhor.
— E se... — Emito um pigarro
tentando clarear as palavras, para que
não pareçam erradas. — E se você
dormir na minha cama? — Ela arregala
os olhos, daquele jeito engraçado que já
fez antes. — Calma! Estou sugerindo
que durma na minha cama essa noite e eu
dormirei no sofá, que é bem mais
confortável que esse colchãozinho aí.
Amanhã arrumo outra cama...
A negativa dela vem pronta,
como eu já esperava.
— Não posso tirar você do seu
conforto. Além disso, não é obrigação
sua comprar uma cama a mais quando
fui eu quem trouxe a nova inquilina...
— É minha obrigação, sim —
respondo calmamente. — Ou se
esqueceu de que pagou os alugueis para
que eu arcasse com os móveis? Pode ser
que eu não contasse com dona Rute, mas
tinha que ter providenciado uma cama
pro menino e não uma tigela de
cachorro...
Ela meneia a cabeça, meio
concordando e discordando ao mesmo
tempo, e então eu insisto.
— É só uma noite, Robin. Além
disso, você vai trabalhar de pé o dia
todo e eu vou cansar de ficar sentado,
cochilando em meio as consultas...
Claro que não faço isso, mas ela
não precisa saber. Robin olha para trás,
com um olhar de desânimo para o
colchonete e acaba assentindo.
Mas antes que eu possa cantar
vitória, ela me vem com outra.
— Vamos fazer o seguinte, se
não se importar, eu posso dormir no
sofá. Eu pensei mesmo que seria mais
confortável, mas não queria que
parecesse outra implicância, eu me
mudando pra sala.
Aquiesço, concordando com o
que ela disse no final. Robin também
está cansada, não faz parte nem da
personalidade dela e nem da minha
ficarmos agindo como crianças.
— Dorme no meu quarto, Robin.
É melhor que eu durma na sala... —
insisto.
— Dominic... — Ela pausa por
um momento. — Eu sei que pode
parecer ridículo, mas não me sentiria a
vontade dormindo na sua cama, não
temos intimidade pra isso.
Eu entendo. Por mais que pra
mim realmente seja uma besteira, porque
afinal de contas é só uma cama, mas
consigo compreender o que ela sente e
então acabo por concordar.
— Tudo bem então, Robin. Boa
noite...
Deixo-a ali, arrumando suas
coisas, se preparando para dormir e
entro em meu quarto, fechando a porta.
Tiro os sapatos, a camisa e a calça e
sigo até o banheiro para escovar os
dentes.
Preciso arrumar logo o
chuveiro... O imbecil aqui optou pela
suíte que já vinha com a ducha instalada
e se ferrou, porque a resistência estava
queimada. No fim de semana vou
resolver isso, dividir o banheiro com
três pessoas não vai ser a melhor opção.
Volto ao quarto e me deito sobre
a colcha na cama, sem me dar ao
trabalho de retirá-la.
Meus pensamentos se voltam pra
essa família que hoje reside aqui,
comigo. São pessoas que passaram por
coisas muito piores que eu, mesmo que
eu ainda não entenda toda a história.
Eles sofreram perdas e ainda assim se
mantêm juntos, unidos. Me lembro do
meu pai, minha madrasta, a família que
eu também possuo e que venho
ignorando ultimamente.
Pensar em meu pai ainda é
complicado. Ele não concorda com
minhas escolhas e eu não aceito que
tente controlar minhas decisões, mas
ainda assim, sei que ele não é um
homem ruim, não foi um pai terrível,
apenas um pouco distante e controlador.
Minha mãe era incrível. Me lembro do
sorriso doce que ela tinha e do jeitinho
meigo com o qual dobrava a todos,
inclusive meu pai.
Quando ela se foi, todos
sofremos muito. Alice em especial,
porque era mais nova e teve
dificuldades para entender a morte da
mãe, meu pai também ficou arrasado,
vivendo sozinho por algum anos.
Bárbara, minha madrasta, surgiu
um tempo depois, os dois acabaram se
apaixonando e se casando. Não posso
reclamar dela, que sempre acaba
buscando nele um lado mais humano e,
muitas vezes, encontrando.
Minha família. São imperfeitos
de tantas formas, mas o que eu sou? Um
homem imperfeito também e cheio de
falhas, na verdade, o cuidado de uns
para com os outros e o amor é o que
deveria importar.
Pego no sono, enquanto o
pensamento de procurá-los e tentar
resolver as coisas entre nós, fixa-se bem
no fundo da minha mente.

O despertador toca e corro para


pegar o celular, desligando o alarme em
seguida. Não quero acordar a casa toda.
Me levanto espreguiçando-me,
calço minhas pantufas e rumo para o
banheiro, onde escovo os dentes e lavo
o rosto. Em seguida, caminho até a
cozinha a fim de preparar meu café,
forte, capaz de me animar e fazer com
que eu desperte em alguns minutos.
Enquanto ligo a cafeteira e vejo
a bebida escorrer para a xícara e o
aroma tomar conta do lugar, ouço passos
abafados e vejo Dominic surgir na
cozinha.
Não é justo que alguém seja
bonito assim logo pela manhã. Ele usa
uma regata preta, que deixa entrever o
abdômen esculpido pelas laterais
abertas. Vejo as calças um pouco largas
e que não deveriam conferir a ele uma
aparência ainda mais sensual, mas o
fazem e os chinelos que ele arrasta, sem
a menor disposição.
Os cabelos estão uma bagunça e
a expressão de sono é adorável. Já meus
pensamentos e essa análise toda, são
péssimos.
— Bom dia, Robin —
cumprimenta com um sorriso preguiçoso
que causa um formigamento na boca do
meu estômago.
Robin Muniz, sua burra.
Finalmente compreendo o que me
incomoda tanto no sorriso dele, é
simplesmente o fato de ser terno às
vezes, sexy em outras e atrevido na
maioria. O que realmente me irrita ao
vê-lo sorrir é o modo como esse simples
gesto desencadeia algumas sensações
que mantenho adormecidas há muito
tempo.
— Bom dia — respondo,
percebendo como estou divagando.
Dominic parece não ter notado porque
ainda está bem ocupado observando
minhas roupas com um sorriso aberto.
Olho para baixo e noto que estou
com meu pijama, que é rosa e as
pantufas, lilases. Não é indecente nem
nada disso, mas sei que ele está
encarando por causa das cores tão
destoantes das que uso no dia-a-dia.
Ignoro, fingindo não notar.
— E então? O que vai fazer com
o Bernardo e sua avó hoje?
Tomo um gole do meu café
amargo e como sempre, faço uma careta.
Detesto café, mas não me movo bem sem
ele.
— Hum, eles vão se virar por
aqui, mas o seu Antônio da portaria vai
ficar de olho nos dois pra mim, por
enquanto.
Ele acena concordando e passa
por mim para também pegar uma xícara
no armário.
— Eu chego no consultório umas
quatro horas, posso subir e ver como
estão se virando. Ajudar com alguma
coisa...
Agradeço com um gesto de
cabeça, mas não acrescento nada a sua
oferta.
— É seu primeiro dia na clínica
— constato. — Boa sorte por lá.
Ele agradece com outro gesto, e
também toma seu café que ao contrário
do meu, é extremamente adoçado.
O deixo na cozinha e me troco
para o trabalho, outra vez vestindo
minhas roupas habituais que me passam
muito mais segurança. O preto básico de
sempre em uma calça de tecido, larga,
uma camisa social folgada e sapatilhas
discretas. Arrumo de novo os cabelos
em meu coque costumeiro e coloco os
óculos outra vez.
Quando deixo o apartamento e
passo por Dominic, que agora está na
sala jogado casualmente sobre o sofá,
percebo que o olhar dele percorre meu
corpo com desaprovação, com certeza
recriminando minha escolha de roupas.
Nada que não esteja acostumada.
É exatamente a impressão que procuro
causar com elas, mas ainda assim...
Ainda assim, dessa vez, algo me
incomoda.
Chego ao shopping alguns
minutos depois, o trajeto é curto e deixo
meu carro no estacionamento, seguindo
para a Magic’s.
Meu novo chefe, André, tem sido
um pouco implicante desde meu
primeiro dia, por mais que não tenha me
repreendido por levar Bernardo comigo
no dia anterior. Ele me olha logo que
passo pelas portas e sua decepção com
minhas roupas também é evidente, mas
ao contrário do que aconteceu agora há
pouco, dessa vez não me sinto
incomodada com o fato de ele não
aprovar minhas escolhas.
Já percebi que mesmo com elas
ele ainda me olha de um modo meio
predatório, que me causa arrepios, não
muito diferente da maneira como age
com as outras meninas, que não parecem
se incomodar.
— Bom dia — cumprimento a
ele e as outras duas funcionárias e passo
para trás do balcão.
As duas moças sorriem para
mim, mas percebo que se entreolham de
um modo que já conheço bem. Eu sou a
esquisita, que não se encaixa ali, mãe
solteira e antissocial. Prazer, não
planejo mudar nenhuma das afirmações
anteriores.
— Robin, pode vir ao escritório
por um momento? — André pede, como
se fosse uma opção, mas já entra para os
fundos da loja, esperando que eu o siga.
A fachada da joalheria é linda.
Tudo brilha como as peças que
vendemos e o piso preto é quase um
espelho. As bancadas prateadas e com
vidro por cima permitem aos clientes um
vislumbre dos pequenos e caros objetos,
dispostos sobre veludo escuro, que
confere a eles ainda mais destaque.
Minhas colegas são quase parte
da vitrine, bonitas, jovens e muito
maquiadas, e os adornos não param por
aí. Os saltos altíssimos e os vestidos
elegantes complementam o visual, tanto
de Paula como de Giovana.
Sigo André para o interior da
loja, a parte que os clientes não veem e
que nem de longe tem o mesmo efeito
visual. Uma cozinha pequena e limpa,
um banheiro minúsculo e não tão limpo
assim e um escritório do lado esquerdo
do banheiro, de onde meu gerente dita
suas ordens cansativas e irritantes.
Ele se senta atrás da sua mesa e
aponta para a cadeira a sua frente,
aguardando que eu faça o mesmo. Me
sento diante do seu escrutínio e aguardo
que me diga o que estou fazendo aqui.
— Robin, você veio transferida
para cá e muito bem recomendada. Devo
dizer que estou um pouco...
decepcionado.
Ok, tudo bem que eu não ando
procurando aprovação por aí, mas é um
pouco deprimente ouvir isso no seu
terceiro dia de trabalho.
— Senhor? Me desculpe, mas
não entendo no que não tenho atendido
suas expectativas. Faço meu trabalho
direito, cumpro os horários e vendi tanto
quanto as outras meninas, pelo que pude
ver.
Ele aquiesce.
— É verdade, você vendeu.
Como? — pergunta, bastante curioso.
— Perdão, não entendi o que
quer saber.
— Como tem conseguido
vender? Sendo bem honesto com você,
Robin, sua maneira de se portar e de se
vestir não combinam em nada com esse
lugar. As pessoas que compram joias
não costumam ser desleixadas, nós
vendemos estética e também
compromisso, no caso das alianças. Mas
você não vende beleza, Robin.
Abaixo os olhos, um pouco
constrangida com seu tom. Não estou
precisando de atenção masculina, mas
precisava me chamar de feia?
— Isso foi rude — fala,
percebendo como soou ofensivo. — Eu
vejo que você é uma mulher bonita,
Robin, com certeza eu posso ver isso.
— Nojento. — Por mais que você
pareça fazer o possível para encobrir
esse fato, podia tentar ao menos
melhorar as roupas com as quais vem
para o trabalho? Talvez desfazer esse
coque... Nem estou pedindo maquiagem
ou salto, apenas algumas pequenas
melhorias.
Aceno concordando. Realmente
ele não está pedindo muito, mas não
pretendo cumprir, a menos que minha
desobediência ameace meu emprego e
ainda assim, é um caso a se pensar.
Trabalhar em uma joalheria não
me rende nada mais que trabalhar em
qualquer outro comércio, não é como se
fosse abrir mão de quem sou por esse
sonho de emprego.
— Então tudo bem, estamos
acertados. Pode ir...
Me levanto rapidamente e volto
para a loja. Minhas colegas estão
entretidas conversando e não me veem
chegar, mas eu as ouço mesmo sem
querer:
— Não tem jeito, Paula —
Giovana comenta. — Mesmo que o
André fale sobre isso e ela diga que vai
melhorar... Não é algo como oratória
que está em jogo aqui. Melhorar a
aparência dela? Só com plásticas.
— Nossa, como você é
venenosa, ela até não é tão feia assim.
Está com ciúmes? — Paula, questiona.
Obrigada, eu acho.
— Meninas, temos clientes. —
Ouço a voz de André atrás de mim e
vejo o momento em que as duas também
o encaram, percebendo que eu estava ali
o tempo todo.
Paula desvia o olhar para o
chão, parecendo envergonhada, mas
Giovana age como se não houvesse sido
nada demais.
Eu caminho para a vitrine oposta
à delas e fico ali, em silêncio,
esperando que o bolo que se formou em
minha garganta acabe por desaparecer
em algum momento. André passa por
mim e me oferece um sorriso bem triste,
balançando a cabeça em negativa e
dando de ombros em seguida.
Como quem diz: A culpa disso
tudo é sua.
Talvez seja, mas fiz minha
opção: ouvir esse tipo de comentário,
me entristecer com isso e seguir minha
vida cuidado do meu filho sem ter que
lidar com a dor de envolvimentos
românticos. Aprendi há muito tempo que
ninguém se apaixona se não houver
atração.
Os sentimentos não são baseados
na aparência física, mas é o primeiro
passo para uma aproximação que
propicie todo o resto.
Prefiro as ofensas de outras
mulheres que não conhecem o
significado de sororidade, aos assédios
de homens que não entendem um não.
Me despeço de uma paciente na
clínica e volto para minha sala. Meu
primeiro dia tem sido satisfatório,
apesar de alguns diagnósticos bem
imprecisos da colega a quem vim
substituir. Mesmo assim, nada
preocupante.
O lugar é moderno e funciona em
conjunto como uma grande casa e em
cada cômodo um profissional presta os
atendimentos. Há apenas uma
recepcionista para todos nós, mas como
cada um cuida de sua própria agenda,
parece funcionar bem.
A clínica se chama Vitalle e trata
de inúmeras especialidades, mas não
são consultas particulares. Trabalhamos
atendendo pacientes que, após passarem
por uma avaliação, conseguiram vagas
na clínica que é mantida pelo governo. É
o nosso Sistema Único de Saúde de uma
maneira um pouco mais organizada.
A recepcionista abre a porta e
me avisa que meu próximo paciente
chegou. Agradeço e peço que diga para
o menino entrar.
Paulo é um garotinho de oito
anos e também um desafio para mim,
atualmente meu único paciente que ainda
é uma criança. No arquivo original dele,
minha colega anotou que o garoto sofre
de pseudologia fantástica, ou seja, conta
mentiras compulsivamente, o que
também é conhecido como mitomania.
A psicóloga não anotou
exemplos ou qualquer outra coisa que
embasasse o diagnóstico, o que me
deixa um pouco apreensivo e um tanto
quanto irritado com a quantidade
escassa de informações.
— E aí Paulo? Tudo bem? —
cumprimento o menino, ao vê-lo entrar.
— Tudo bem — responde,
olhando ao redor e assimilando minha
sala.
— É a primeira vez que vem
aqui? — Sei que não é, mas o modo
como ele observa tudo é um pouco
estranho.
— Não — ele diz. — Mas
pintaram as paredes e os móveis também
são mais novos...
Bom saber.
— Ah, entendi. Eu tenho os
dados aqui das suas sessões anteriores,
Paulo. Meu nome é Dominic, vou ser o
terapeuta responsável pelas suas
consultas de agora em diante e espero
que você e eu possamos nos dar bem.
Hoje gostaria que me contasse um pouco
sobre como foi a sua semana.
Paulo dá de ombros e começa a
falar:
— Eu fui para a escola todos os
dias. Não queria ir porque estava bem
doente, mas minha mãe não me deixou
faltar. Brinquei com meu amigo Vinícius
no começo da semana, e ontem minha
mãe fez bolo de chocolate e me deixou
chamar ele para tomar café com a gente.
Assisti filmes, vi meus desenhos
preferidos... — Ele dá de ombros outra
vez. — Só isso.
— Parece muito bom, uma
semana animada. Você estava sentindo o
quê, quando disse que estava doente?
— Dor de barriga — sussurra,
mas seus olhos se desviam dos meus.
— Ah entendo, eu também tenho
dor de barriga as vezes — comento. —
Quando como muito bolo de chocolate.
Será que foi isso?
Pensei que ele sorriria em
cumplicidade, mas Paulo me direciona
um olhar triste antes de me questionar:
— Você tem dor de barriga pra
não vir trabalhar?
Então, entendi que a doença de
Paulo era apenas uma desculpa para não
ir a aula. É uma mentira, mas nada que o
caracterize como mentiroso compulsivo.
— Não, eu gosto de vir
trabalhar. Você já viajou para algum
lugar muito legal, Paulo? Me conte
alguma aventura sua...
Dou a oportunidade para que sua
mente crie as histórias mais fantásticas,
mas o menino não o faz.
— Só vamos na minha avó aos
sábados. E fui na praia uma vez, mas faz
muito tempo.
Abro o armário, onde estão
empilhados alguns brinquedos para as
sessões infantis, lápis de colorir, canetas
decoradas e outras coisas para agradar
os pequenos. Pego algumas folhas de
papel em branco e entrego a ele junto
com gizes de cera.
— Faz um desenho pra mim,
Paulo? Quero um caprichado, que me
mostre alguma coisa que queira
compartilhar comigo, tudo bem? Não
precisa ser algo bom, pode ser alguma
coisa que você não goste ou que tenha
medo. Mas também pode ser algo que te
deixe feliz. Você é quem sabe...
Ele aquiesce e pega o material
das minhas mãos, caminhando depois
para uma mesinha colorida no canto da
sala.
Saindo do local, procuro pelos
pais do menino e a mocinha na recepção
me indica o casal. Os chamo então para
conversar no corredor.
— Tudo bem? Meu nome é
Dominic e sou o novo psicólogo do
Paulo. Poderiam me falar mais sobre as
mentiras que o filho de vocês vem
contando?
A mãe do garoto se apresenta
como Denise e é uma mulher jovem, na
faixa dos trinta e cinco anos. O pai
parece ser um pouco mais velho e
também mais sério.
— Ele conta algumas mentiras
bobas, como toda criança, mas a
frequência disso tem aumentado. Eram
coisas pequenas, mentiras para faltar à
escola, ele não gosta muito...
— Mas as mentiras evoluíram?
— questiono, fitando-a nos olhos.
— Sim, cerca de um mês atrás,
ele chegou em casa contando que o
professor o havia trancado em uma sala
sozinho e o machucado. O problema é
que quem dá aula para o Paulo é uma
moça chamada Nice, ela é bem jovem e
boazinha. Além disso, ele não tinha
machucado nenhum. Desde que
começamos as sessões, ele mencionou
incidentes do mesmo tipo algumas outras
vezes.
Assinto, estranhando ainda mais
tudo aquilo.
— O que tenho atraído minha
atenção em relação ao diagnóstico feito
pela terapeuta anterior é que ele não me
parece um mentiroso crônico, ele não
tem aquela necessidade de inventar
coisas para se sentir superior nem nada
do tipo. Dei oportunidades a ele de criar
histórias e ele não o fez. Só a coisa da
dor de barriga pra faltar à escola,
mesmo.
— Então doutor... — A mulher
torce as mãos, aparentando nervosismo.
— Para nós ele também não mente
sempre, não é compulsivo como ela o
descreveu. Acho que tem algo por trás
das mentiras que Paulo inventa.
Aceno concordando, porque
também é o que penso.
— Prometo que vou descobrir
exatamente o que está acontecendo com
ele. Tragam o Paulo na próxima semana
e anotem pra mim caso haja algo
suspeito ou uma coisa mais séria.
Volto ao consultório e libero o
menino para ir. Vejo os três se afastando
e me dou conta de que o pai se manteve
em silêncio durante toda a conversa.
Recolho e guardo as coisas que
ofereci ao menino para os desenhos e
também junto os papeis espalhados.
Faço algumas anotações em seu
arquivo, e quando vou guardar as folhas
rabiscadas, um dos desenhos me chama
a atenção. O menino rascunhou um
homem muito alto e um garotinho que
parece representar a ele mesmo.
O rapazinho se esconde embaixo
de uma mesa e o homem está de pé,
diante dela. Aquilo me faz pensar em
todos os casos de agressão a crianças
que vemos todos os dias.
O que me leva a uma questão
ainda mais alarmante: e se o menino
estiver mentindo que apanhou do
professor, porque os pais ordenaram que
o fizesse? E se forem eles que o
maltrataram e acobertaram isso
inventando o problema das mentiras?
Isso seria muito conveniente, o menino
poderia dar com a língua nos dentes e
seria desacreditado.
A questão exige uma
investigação mais detalhada, mas agora
que sei o que procurar, também sei as
perguntas que devo fazer.
Encerro o dia na clínica e sigo
para o consultório. Antes de começar
meus atendimentos, subo ao apartamento
para ver como Bernardo e dona Rute
passaram o dia.
Aparentemente tudo está em
ordem e a única coisa anormal que vejo
é uma sacola plástica cobrindo os
cabelos da mulher.
— Tudo bem por aqui?
O olhar dela se ilumina ao me
encarar e o sorriso não poderia ser mais
sincero. Bernardo também fica contente
e sai correndo até a porta.
— Dominic, eu e a vovó
brincamos muitão, ajudei ela a arrumar
seu quarto, quer ver?
Algo me diz que não é uma boa
ideia.
— Quero... — respondo sem
saber até que ponto isso é verdade. —
Você me mostra?
Ele faz que sim com a cabecinha
e levanta os braços para mim. Eu o ergo
do chão e enquanto ouço sua risada alta,
coloco-o sobre meus ombros e depois
saio em disparada para o quarto,
ouvindo a gargalhada ecoar.
Abro a porta e acompanho o
menino, rindo ao ver o estado em que
meu quarto se encontra.
Tem um pato de porcelana sobre
meu criado mudo. Na cabeceira da cama
tem um outro enfeite de vidro, em cima
de uma toalha de crochê azul. Diante da
cama tem um tapete da mesma cor,
porém bem maior, e no chão um outro
pato serve para fazer peso contra a porta
e mantê-la aberta.
Os enfeites são cafonas demais,
mas a intenção foi boa, então volto com
Bernardo ainda gargalhando enquanto
faço umas curvas pela sala e o ouço
gritando: velocidade máximaaa.
Paro ao chegar diante da senhora
sentada tranquilamente no sofá.
— Muito obrigado, dona Rute.
Meu quarto está completamente
diferente, adorei os enfeites novos.
Ela sorri, feliz com meu
agradecimento.
— Estava muito sem vida, não
é? Arrumei umas coisinhas no banheiro
também e no quarto da Robin. Apesar de
que ela vai dormir no sofá mesmo...
Me lembro então de que pedi
uma cama nova na hora do almoço e os
móveis para o quarto do garoto. Para
que as coisas deem certo, também
preciso cumprir minha parte no acordo.
— Não vieram entregadores aqui
não, dona Rute? Pedi umas coisas para
arrumar o quarto dela.
As bochechas da velhinha ficam
vermelhas e me preparo para o que virá.
Coloco Bernardo no chão e ele logo
engatinha para o sofá, sentando ao lado
da avó.
— Vieram umas pessoas, sim.
Mas eu mandei embora...
Por que ela faria isso?
— A vovó sabia que era
mentira... — Bernardo responde em um
sussurro.
— O quê? — pergunto, porque
parece que perdi alguma informação
nessa conversa.
— Alienígenas! Ou os
iluminados, né vó?
Dona Rute assente, bem séria.
— Nunca se sabe quando vão
aparecer.
Franzo a testa preocupado com a
sanidade da mulher.
— Os extraterrestres? —
questiono temendo a resposta.
A risada dela é bem alta, para
meu total alívio.
— Claro que não, menino. O
Minduim que fala essas bobagens...
— Ah, por um momento a
senhora me assustou — respondo
também sorrindo.
— Extraterrestres não vem na
casa da gente assim não, eles planejam.
Meu receio era que fossem mesmo os
Illuminati.
Espero a risada dela, mas não
vem. Dona Rute está mesmo falando
sério e eu, não sei se dou risada ou me
preocupo mais a sério.
— Certo, vamos combinar o
seguinte. A senhora pergunta quando
voltarem, se são os Illuminati ou da loja
de móveis. Tudo bem?
Ela pensa por um momento e
responde com muita sabedoria:
— Querido, eles podem mentir.
Você não sabe que veem tudo com
aquele terceiro olho? Podem saber que
estamos esperando os móveis e
aproveitar para usar isso contra nós.
Que diabos ela pensa que os
Illuminati iriam querer aqui eu não sei,
mas prefiro não discutir.
— Illuminati de verdade não
mente, dona Rute. Faz parte do pacto
que fazem — explico, entrando na onda
e torcendo para que meus argumentos
sejam convincentes.
Ela faz o sinal da cruz com
movimentos ágeis e finalmente
concorda:
— Tudo bem, então. Eu pergunto
se voltarem.
— Falando em perguntar... Por
que a senhora está usando essa sacola na
cabeça? — Imagino que seja um
capacete contra Illuminati ou algo assim.
— Ah, isso — Ela leva a mão à
sacola. — Estava com frio nas orelhas.

Ouço a batida sutil na porta do


consultório e pelo horário imagino que
seja Robin. Minha paciente das seis
desmarcou e com isso acabei dedicando
os últimos quarenta minutos a organizar
algumas coisas, rever fichas e preparar
meus textos do dia seguinte.
Alguns ficam dentro de um pote
grande sobre a mesa, os que não estão
endereçados especificamente a alguém e
qualquer paciente que queira pode
retirá-los e refletir ou discutir sobre eles
comigo.
Outros, mais direcionados e
pessoais, são entregues em mãos, porque
sei exatamente o poder que algumas
palavras possuem.
— Entre — convido e vejo a
porta se abrir.
Robin passa por ela e percebo
que seu olhar curioso varre toda a sala,
observando os móveis, os certificados
na parede, a decoração sutil e por fim,
me fitando.
— Oi, esperou muito tempo? —
questiona.
— Não, eu precisava mesmo
arrumar umas coisas aqui. Senta aí...
Ela olha o divã em um canto,
mas se senta na poltrona em frente à
mesa, as mãos sobre as pernas se
movimentam constantemente e percebo
que está nervosa, além de parecer um
pouco chateada.
— Sabe que não é uma consulta,
não é? — pergunto sorrindo e tentando
aliviar o clima.
— Eu sei — responde. — Estou
um pouco aérea hoje.
— Quer falar sobre isso?
Ela me fita e seu rosto insinua
um sorriso discreto.
— Não estamos em terapia,
doutor.
Dispenso a palavra com a mão.
— Doutor é quem fez doutorado.
Eu não fiz ainda.
O sorriso dela aumenta um
milímetro e me pego imaginando como
seria Robin gargalhando.
— E então? Qual sua ideia? —
Vai direto ao ponto.
— É simples. Somos adultos,
precisamos de um lugar para comer e
dormir, e sabemos nos comportar
quando não estamos em uma guerra para
expulsar o outro de casa. Acho que
podemos conviver por esse mês e
quando chegarmos ao final dele,
pensamos no que fazer.
Ela aquiesce, mas está pensativa.
— Eu não sei... Concordo que
podemos conviver pacificamente, mas
ao final de um mês, não sei se terei pra
onde ir. Como disse antes, não quero
morar longe.
Sou obrigado a concordar que o
fato de ter um salário não quer dizer que
vai ser fácil achar um outro lugar,
mesmo porque já tentei pagar por um e a
distância complicou as coisas.
— Acho justo que encontre uma
casa que atenda ao que precisa.
Podemos combinar isso. Não vamos
determinar um prazo específico, mas
vou falar com a Laura e quando um
apartamento nesse prédio ficar
disponível, ela vai entrar em contato
com você, antes de qualquer outra
pessoa. É um prédio enorme, não deve
demorar a surgir alguma coisa.
Apesar de parecer concordar
comigo, Robin meneia a cabeça.
— É Loreta, Dominic — fala,
referindo-se ao nome da corretora.
— Isso... O que acha?
Ela cruza as pernas em um gesto
automático e percebo que isso faz com
que a calça cole em seu corpo. Robin
tem pernas grossas, quem diria!
— Eu acho que pode dar certo,
mas vamos ter regras, Dominic.
Estreito os olhos. Era só o que
me faltava.
— Que tipo de regras?
— Não pode beber se estiver
sozinho com o Bernardo, mesmo que não
deva acontecer mais.
— Feito — concordo de pronto.
Ela faz uma expressão pensativa,
mas algo me diz que a próxima regra
está na ponta da língua.
— Sem mulheres aleatórias na
casa. Se uma hora tiver uma namorada
fixa, tudo bem, fora isso, não me sinto à
vontade com estranhos andando por lá.
Menos ainda se você estiver servindo de
babá... Não que isso vá se repetir.
Aí está um ponto em que preciso
me desculpar. Pigarreio e baixo os
olhos, um pouco envergonhado em
assumir a verdade.
— Minha irmã...
— O que tem sua irmã? Tudo
bem, não vou proibir sua família de vir
te ver. — Ela dá de ombros.
— Não... Era minha irmã no
quarto aquele dia. Só estava te
provocando.
O olhar dela é que se estreita
agora.
— Fez de propósito pra eu
pensar que estava descuidando do
Bernardo?
Assinto.
— E tem mais, vesti a fralda
nele antes de você chegar, com a mesma
intenção. Durante o dia, ele foi ao
banheiro em todas as vezes que
precisou.
Penso que ela vai se irritar, mas
Robin parece estranhamente bem-
humorada.
— Você não vale nada! —
exclama.
— Ah, é? E não vai admitir sua
culpa? — Começo a rir da expressão de
ultraje no rosto dela. — Aquela galinha
maldita quase estourou meus tímpanos.
— A boca da mulher se curva levemente
e percebo que estou ansioso pela ideia
de vê-la rindo de verdade. — E a
pipoca? Jogou o pote em cima da minha
jaqueta! Você é do mal, Robin.
— Não vai falar da minha avó?
— pergunta, e apesar de ainda se manter
um pouco reservada, parece estar se
divertindo. Também estou achando esse
clima bem mais descontraído que antes.
— Por falar em sua avó, ela
estava com umas conversas bem
estranhas agora há pouco. Fui ver como
estavam e confesso que fiquei um pouco
assustado.
Robin se levanta de repente, o
rosto sério outra vez.
— Calma! Eles estão bem... —
falo, fazendo sinal para que se sente. —
Dona Rute redecorou meu quarto, sabe?
Acho que agora vou dar um nome pra
ele: Lago dos Patos...
As mãos dela cobrem o rosto,
enquanto balança a cabeça sem
acreditar.
— Ai, Dominic. Desculpe, de
verdade...
— Mas não foi o que me
assustou. Ela estava falando em
Illuminati e extraterrestres. Eu pedi uma
cama pra você, mas dona Rute não
deixou entrar porque não tinha certeza se
não eram eles.
— Sério? — Ela morde o lábio,
controlando a risada, está a ponto de rir
de verdade, alto, mas ela se controla
como em todas as vezes anteriores.
— Eu mentiria sobre isso? Ela
também estava com uma sacola na
cabeça e, quando perguntei, me falou
que era frio... nas orelhas! Eu sei que é
engraçado e tudo mais, mas assim, ela
está bem? Tem algum problema que eu
deva saber?
— Velhice, Dominic — explica,
com um suspiro. — Minha avó tem
quase noventa anos. Não é Alzheimer,
mas às vezes o esquecimento, as
confusões mentais e uma ou outra ideia
descabida, como essas que você mesmo
viu, complicam um pouquinho a vida
dela.
— Ela sofre com isso? — Minha
pergunta não é impensada. Quero mesmo
saber. A velhinha é tão alegre e cheia de
vida que me incomoda pensar que está
passando por um período difícil.
— Você deve entender mais
dessas coisas que eu, mas geralmente
ela lida muito bem com tudo. Acha graça
nas coisas que faz e ignora a maioria
como se tivesse mesmo razão. Ela
chegou a dizer pro Bernardo que está
tantan e agora ele repete isso sempre,
me matando de vergonha.
— Menos mal, se ela leva na
esportiva.
— Leva sim. Ela é bem-
humorada.
— Ao contrário da neta — falo,
pisando em ovos. — Você chegou aqui
meio chateada, fico contente porque
parece que te diverti um pouco, mas se
quiser contar o que houve...
Robin ergue os olhos pra mim e
inclina a cabeça, me rondando.
— Você é bem perceptivo. É a
profissão?
— Acho que sim. E então? —
Insisto.
Soltando os cabelos, ela desfaz o
coque e só então percebo como são
longos e bonitos, o loiro escuro
permeado por mechas mais claras. Ela
os enrola outra vez nas mãos e prende o
coque, agora com mais firmeza que
antes.
— É bobagem. Minhas colegas
de trabalho na Magic’s e o gerente da
loja andaram implicando comigo, mas
nada que eu já não tenha me acostumado.
Percebo que os olhos dela se
fixam no pote de vidro sobre a mesa. A
cabeça se inclina, tentando ver o que são
os papéis dobrados.
— O que é isso? — Aponta o
dedo para eles e por um segundo, fico
constrangido em contar a respeito.
Nem sei bem o porquê. É meu
maior orgulho, minha realização como
profissional, mas acho que a ideia de
que ela leia é o que me perturba. Coloco
muito de mim, dos meus pensamentos e
emoções em todos os versos.
— É uma coisa meio pessoal. —
Isso a deixa ainda mais curiosa e agora
Robin tenta descaradamente chegar mais
perto e enxergar.
— O que é, Dominic? — Acho
que o brilho nos olhos dela é que me
leva a fazer a proposta. Não presenciei
muitas coisas que a tornassem menos
passiva.
— Um segredo meu por um seu,
Robin.
Ela retorna o corpo para trás na
cadeira com brusquidão.
— Hum, acho que prefiro ficar
curiosa.
— Não quero saber nada
demais. Vou perguntar e você escolhe se
a resposta vale a pena, para matar sua
bisbilhotice. Já notei que não gosta do
shopping, então o que quero saber é: O
que você faria se pudesse ser qualquer
coisa que quisesse? Com o que você
gostaria de trabalhar?
A expressão dela é de alívio,
acreditava mesmo que fosse perguntar
algo muito mais pessoal, mas a
tranquilidade em seus traços dura pouco
e logo ela assume um ar melancólico.
— Confeitaria. Amo fazer doces,
bolos decorados, biscoitos de todo
tipo... — conta, sonhadora.
Não pergunto porque não faz
exatamente isso. Estou aqui, analisando
a colega de apartamento e me lembro de
que ela não é uma paciente, por isso não
a questiono. Só o fato de contar algo
sem se esquivar já é um milagre.
— Eu não imaginaria isso com
base no seu café de hoje cedo...
— Ah, é diferente. É pra me
deixar desperta, o café bem forte me dá
energia — explica e continua: — Mas
eu sou louca por doces. Inclusive,
amanhã é nossa noite da sobremesa.
Caso queira participar, está convidado.
É meu gesto de boa fé.
Que porra será isso?
— Parece bom. Amanhã não sei
se vou poder, um amigo vai estar na
cidade e combinei de o encontrar, mas
nas próximas vou participar com
certeza.
Ela assente e levanto da cadeira
e começo a pegar minhas coisas sobre a
mesa.
— Vamos subir?
Claro que não tenho essa sorte.
— Escorregadio você, não? Eu
contei meu segredo, quero saber o que
são esses papéis aqui dentro. — Ela
pontua as palavras batucando o dedo no
pote.
Suspiro, sem outra alternativa.
— É mais fácil se você ler. Pega
um aí... — incentivo, me preparando
para a reação dela.
Robin me olha desconfiada, mas
não perde tempo. Destampa o vidro e
retira um dos bilhetes, abre e começa a
ler em voz alta.
— Em alguns dias mais
sombrios, me pego imaginando o que
tiraria do meu peito a sensação de
impotência diante da vida.
Faz uma pausa e me fita,
aparentando surpresa. Depois continua:
— Eu queria ser como uma ave,
pousar nos galhos de uma árvore e
observar a cidade silenciosa à noite.
Voar por sobre todo o caos que corre lá
embaixo e sentir-me atemporal,
onipresente.
Mas isso arrancaria da minha
alma a sensação de solidão?
Pelo contrário, a tornaria
insuportável, me transformaria em um
mero expectador.
Robin para de pronunciar as
palavras, mas seus olhos ainda
percorrem o pequeno papel. Eu não
preciso ouvi-la, sei exatamente o que
escrevi ali, porque é um dos primeiros
textos que fiz quando escolhi trabalhar
desse modo.
A narrativa segue da seguinte
maneira:
Por que desejar, quando se pode
ter?
Viva de maneira que não restem
arrependimentos no fim. De modo que
todos os bens que alcançar não
sobreponham em seu coração o lugar
dos momentos vividos com seus
amados.
Escolha não apenas observar,
mas fazer parte, compor o todo e sentir.
Porque no fim, não importam os
ressentimentos ou a tristeza; no fim,
são os sorrisos, os abraços e as
carícias, que fazem com que sua
jornada valha a pena.
Quando chega às últimas
palavras, seus olhos estão marejados e
ela apenas deposita o bilhete sobre a
mesa. Também me sinto estranho, como
se o que acabou de acontecer fosse algo
íntimo demais, profundo.
Nenhum de nós toca no assunto.
Robin não faz perguntas e eu não
ofereço explicações.
— Vamos? — percebo que ela
não está pronta para falar à respeito e
sei, pelo seu modo de agir, que o que leu
a tocou de alguma forma.
Robin assente com um gesto de
cabeça, sem emitir nenhum som, e juntos
saímos do consultório, rumo àquela que
agora é definitivamente a nossa casa.
A noite da sobremesa chegou e
passou. Uma semana decorreu desde que
conversei com Dominic em seu
consultório e nossa trégua vai muito
bem. É quinta-feira outra vez e saio do
trabalho, seguindo diretamente para
casa, pois ainda pretendo verificar se
possuo todos os ingredientes antes de
começar a preparar os pratos para hoje,
a primeira vez em que ele vai participar
e admito que me sinto um pouco agitada
com a ideia.
Cumprimento seu Antônio
quando passo pela portaria e ele me
informa que foi até o apartamento
algumas vezes e que estava tudo bem.
Vejo a porta do consultório de
Dominic entreaberta, mas deixo para
conversarmos em casa. Depois daquele
dia, das coisas que li em sua sala,
acabei agindo esquisito e sei que ele
notou.
Entro no elevador e enquanto ele
sobe, volto a remoer as coisas escritas
no bilhete, como fiz a semana inteira.
Me senti afrontada por aquele pedaço de
papel, como se fosse um choque de
realidade, e acabei não o questionando
sobre o significado, continuando
curiosa, até mais do que antes.
Hoje vou tentar me portar como
uma pessoa normal e não me esquecer
de perguntar a ele sobre as frases, os
textos. Vamos conviver por algum tempo
e preciso me esforçar a ser mais
amigável, e ainda assim resguardar-me
de ser transparente demais.
Dominic tem um modo especial
de olhar as coisas, parece ver muito
mais do que deveria.
Um tremor atinge meu corpo
quando me lembro do modo como me
analisava na noite anterior. Não posso
culpá-lo por querer saber mais, é o
natural, mas ainda assim prefiro omitir
meu passado, minhas escolhas de vida e
meu fardo.
Quando finalmente abro a porta,
sou engolida pela agitação na sala. Vovó
Rute anda de um lado para o outro,
nervosa, e Bernardo pula de um plástico
bolha para outro no chão e entra em
caixas de papelão.
— O que é isso? — pergunto,
observando a bagunça e ouvindo vozes
vindas do corredor.
— O Dominic comprou uma
cama de carro pra mim, mãe! — A
alegria na voz de Bernardo é evidente.
— Uma cama de carro, filho? —
Realmente ele havia dito que compraria,
mas nisso se passaram sete dias em que
continuei dormindo no sofá.
— É! Daquelas que parecem um
carro muito vermerio, mas é de dormir.
Tem também um guarda-roupa, sabia?
Adivinha de que ele é desenhado? —
pergunta pulando outra vez no plástico
bolha, se divertindo ao ouvir os
estouros.
— De carro? — arrisco.
— Isso! E tem uma cama pra
você, mamãe. Mas ela não é bonita igual
a minha... — A carinha dele demonstra
tristeza por mim, porque com certeza
acha que eu preferiria uma cama de
carro.
— Hum, que pena, filho. E cadê
o Dominic?
Minha avó se aproxima, andando
rapidamente e olha para os lados antes
de cochichar:
— Ele está no quarto, montando
as coisas pro Minduim com aqueles
homens. Dominic falou que eles são
funcionários da loja... — O olhar dela
me mostra que não acreditou muito na
profissão que declararam.
Posiciono minha mão sobre o
ombro dela para a tranquilizar.
— Vovó, pode ficar calma, eles
estão montando um quarto bonito pra
mim e a senhora vai poder ficar no meu.
O Bernardo também vai ter o dele, não é
legal?
Ela assente, um pouco
contrariada, mas acaba se afastando e se
sentando no sofá.
— Minduim, quero que você
adivinhe uma coisa agora. Que dia é
hoje?
Ele vem saltitando outra vez pro
meu lado, os cachinhos loiros estão
molhados de suor.
— Hoje é seu aniversário?
Balanço a cabeça, negando.
— Então o que é? — pergunta,
dando pulinhos no lugar.
— Noite da sobremesaaaa... —
falo em um sussurro animado, um grito
sem elevar a voz, e Bernardo sai
correndo pela sala com os braços
erguidos, comemorando.
O observo alegre e sigo na
direção da cozinha a fim de definir o
que vou cozinhar. Estou animada com
nossa terceira quinta-feira na casa nova,
na primeira tínhamos acabado de nos
mudar e não pudemos fazer a noite da
sobremesa, um costume que temos há
muito tempo e que levamos bem a sério.
Na segunda, compramos sorvete e
tomamos junto com bolo, mas hoje, será
especial como antes da mudança.
Bernardo come doces, como
toda criança, mas nada que prejudique
sua saúde. No entanto, na quinta-feira as
guloseimas imperam na nossa casa.
Geralmente temos até um tema:
doces inspirados em Paris, em um circo,
quitutes de festa junina, quando é época
— às vezes fora dela também. Outras
vezes escolhemos um sabor ou um
mesmo tipo de doce de vários sabores.
Abro meu caderno de receitas,
guardado na gaveta sob a pia, e começo
a passar as páginas, tentando escolher o
que vai ser. Costumo decidir isso antes e
preparar as sobremesas com
antecedência, mas com a mudança tudo
ficou meio conturbado e acabei não
pensando nisso até ontem à noite.
Estou em dúvida entre bolos e
tortas ou docinhos de festa. Nada que
precise congelar porque acho que não
vai dar tempo hoje.
Ouço os passos pesados se
aproximando e me viro para encontrar
Dominic.
Ele abre um sorriso quando me
vê e sinto que a cada vez que o vejo, as
coisas só ficam piores. Agora o homem
veste uma camiseta branca colada ao
corpo suado, os cabelos escuros estão
um pouco molhados junto a fronte e isso
o deixa ainda mais...
— Eu não vi você chegar —
comenta, passando por mim para pegar
um copo. — Vim beber água... Cara,
montar guarda-roupa dá trabalho.
E ele voltou a me chamar de
cara. Acho que me conhecendo bem,
acabou não me achando muito diferente
de um amigo do sexo masculino. Ai
Deus. Se ele não fosse tão bonito,
certamente eu me sentiria menos mal por
constatar que ele me vê desse modo.
Com certeza me sentiria bem, na
verdade.
— Vovó disse que os montadores
da loja estavam aí, por que você estava
montando um guarda-roupa?
Dominic se vira de lado e apoia
a mão na beirada da pia, enquanto toma
um longo gole de água fresca. E eu fico
aqui, observando-o engolir, o
movimento no pescoço dele, o braço
forte levantado, as veias saltando pelo
esforço recente e o pior de tudo: uma
curta faixa de pele do abdômen que a
camiseta deixa a mostra quando ele
ergue o braço.
O que está acontecendo comigo?
Muito tempo sem sexo, isso eu admito,
mas não me comportei assim nenhuma
vez nos últimos anos. Estou aqui,
praticamente o devorando com os olhos.
Foco meu olhar outra vez no
caderno e sinto meu rosto se aquecer.
Agradeço a Deus pela liberdade que
temos nos pensamentos, ou estaria muito
mais envergonhada.
— Eles estão montando — fala,
depositando o copo sobre a pia com um
barulho alto. — Mas precisavam de
ajuda e assim é mais rápido. Era pra já
estar pronto, se a dona Rutinha ali,
tivesse deixado os Iluminatti entrarem na
casa... Ela disse que deixaria, mas
ignorou os homens por mais de uma
semana.
Aceno, ainda olhando para as
receitas. Dominic se aproxima e inclina
o rosto por sobre meu ombro, tentando
olhar o que tem nas minhas mãos.
O cheiro dele invade meus
sentidos de uma maneira bem
intrometida. Meu primeiro instinto é
erguer o rosto e lembrar a ele que está
invadindo meu espaço, mas ele está
perto demais, então me mantenho
parada.
— O que vai ser, hein? Noite da
sobremesa, certo? O que você vai fazer?
Dou de ombros, passando as
páginas como se estivesse me
decidindo. Eu estava escolhendo, agora
estou apenas disfarçando.
Ergo os óculos que teimam em
escorregar para a ponta do meu nariz e
continuo concentrada no cheiro dele,
fingindo ler as receitas. Mas que
perfume do diabo!
— Eu gosto muito de chocolate e
de morangos também — ele fala.
— Hum, clichêzinho você, hein?
— falo, lutando para descontrair o
momento. Momento esse que só
acontece dentro da minha cabeça.
Dominic ri e o som reverbera
bem perto da minha nuca. Que droga.
— Vai fazer um bolo de
chocolate? — pede, na maior cara de
pau.
Fecho o caderno com força, o
assustando e ele se afasta alguns passos.
— Como você tem sido um bom
rapaz, comprando e montando móveis,
com direito a cama de carro e tudo, vou
te dar o tema de hoje, mas não se
acostume! A temática dessa noite vai ser
chocolate com morangos, nada muito
original, mas delicioso, tenho que
admitir — explico, com ares de maitre e
ele sorri.
— Beleza! — Parece animado
como uma criança. — E vamos jantar o
quê?
Dou de ombros, realmente não
pensei muito nisso.
— Vou preparar alguma massa.
Na noite de hoje, o importante é a
sobremesa.
Dominic acena concordando com
tudo e vai se afastando, mas eu o chamo
antes que saia:
— Ah, você lava a louça. Se
lembra do nosso acordo, quando eu
ainda era só um rapaz e você ainda era
uma possível amiga? Eu cozinho e você
limpa, Dominic.
— Verdade. — Ele coça a
cabeça, pensando. — Não tenho feito
muito isso.
— Tudo bem, eu não cozinhei
também. Não de verdade, só fiz umas
besteiras pro Bernardo e não te ofereci,
de propósito.
Ele sorri e balança a cabeça,
sem acreditar que eu tenha feito mesmo
isso.

Fui literalmente expulso da


cozinha quando os preparativos para a
tal noite começaram. Não sei porque,
mas pareço estar presenciando um
verdadeiro evento.
Dona Rute se enfia no banheiro
para um banho bastante demorado e vejo
Bernardo escolhendo uma fantasia. Sim,
não uma roupa comum, mas uma de
algum super herói que nunca vi.
Robin está cantarolando na
cozinha e é bastante surpreendente, já
que nunca a vi agindo tão naturalmente.
Ela parece quase... feliz. Do meu quarto,
consigo ouvir os barulhinhos e as
conversas sozinha, enquanto prepara os
doces.
— Você, trate de endurecer,
bombonzinho. — É a conversa mais
erótica que já ouvi entre mulher e
chocolate.
Ainda a escuto um pouco depois:
— Ei! Precisa parar quieto, ou
não vai ficar bonitinho como a mamãe
gosta!
Claro que a princípio imagino
que esteja falando com Bernardo, mas
com a porta do meu quarto, escancarada
— graças ao pato que a mantém assim
—, vejo quando o garoto passa correndo
com uma capa esvoaçante nas costas.
Conclusão: Robin é mais
amigável e carinhosa com comida que
com pessoas e fica muito alegre quando
cozinha.
Também tomo um banho e me
arrumo com cuidado, parece importante
para todos eles, então tento não aparecer
de chinelo e bermuda. Visto uma
camiseta básica, afinal, também não é
um restaurante chique, e calças jeans
escuras. Calço um sapato mais
despojado e arrumo os cabelos.
Vejo quando Robin passa
correndo para o banheiro e também
entra no banho, as reclamações que ouço
de Bernardo pouco depois indicam que
ele precisou se lavar e para isso, retirar
a fantasia.
Meia hora depois, estou deitado
na cama quando ouço a voz do pequeno
me chamando na porta:
— A mamãe disse que já pode
vir.
Ergo o corpo apoiando os
cotovelos e começo a rir ao notar o
modo como ele está vestido. A fantasia
voltou, a capa também e agora tem uma
máscara cobrindo os olhinhos verdes.
— Quem é você? — questiono e
arranco dele uma risada.
— Não tá me conhecendo, é?
Sou eu, o Bernardo. — As mãos na
cintura mostram como ele adora o fato
de estar me surpreendendo.
— Bernardo? Não me contou
que era um super herói. — Meneio a
cabeça, como se tentasse me lembrar.
— É minha indetidade secreta.
— Leva o dedo gordinho a boca,
fazendo sinal de silêncio. — Eu sou o
Super Minduim.
O esforço para não rir é enorme.
Agora posso notar que a capa tem
textura como se fosse a casca de um
amendoim e a roupa vermelha por baixo
representando a leguminosa. Tem
também um SM gravado bem no peito da
roupa justa.
— Tudo bem, vou manter
segredo.
Bernardo me encara da porta,
pensativo e depois pede com uma
expressão engraçada.
— Ia ser animal se o Super
Minduim pudesse voar.
Moleque esperto.
Me levanto da cama e o coloco
sobre os ombros em um impulso,
arrancando um gritinho animado do
menino.
— Segura firme, Super
Minduim! Vamos voar...
Corro com ele que grita uns sons
animados, que imagino que deva ser
algum slogan do tal herói.
Estou rindo junto também quando
chegamos a cozinha e me deparo com
Robin e a avó nos encarando, de pé ao
redor da mesa. Dona Rute sorri animada
com nossa brincadeira, mas Robin se
mantém séria.
Desço o menino para o chão e as
cumprimento, notando o avental rosa que
Robin está usando sobre as roupas
escuras. É um detalhe pequeno sobre
todo o resto que continua igual, mas faz
uma diferença imensa, a deixa mais
corada, mais bonita.
— Boa noite, querido. Demorei
me arrumando, pensei que já estivessem
aqui. — Ouço a senhorinha me dizendo.
Dona Rute está vestindo uma
saia rosa, abaixo dos joelhos e uma
blusa estampada também em rosa e azul.
Até sapatos de salto ela colocou, acho
que alguém está mesmo querendo
impressionar.
Beijo sua mão delicadamente,
como ela já mostrou que gosta, e ofereço
um sorriso tão brega quanto o gesto.
— Valeu a pena sua dedicação,
dona Rute. Está muito bonita. — Não
posso perder a oportunidade de alfinetar
Robin. — Sua presença trouxe alegria
para nossa noite, além de cores.
Robin me dá um olhar enviesado
e não diz nada, deixando claro que sabe
que me refiro às suas roupas escuras.
— Dominic, querido, está
absolutamente fabuloso também.
Ela me presenteia com um
tapinha na bochecha e depois se senta na
mesa, aguardando enquanto Robin traz o
jantar.
— Posso ajudar em alguma
coisa? – ofereço.
Robin caminha até a mesa de
volta, carregando uma travessa
fumegante. Não sei o que tem dentro,
mas o cheiro é delicioso.
— Pegue os guardanapos, por
favor. Eu guardei naquele armário —
responde apontando para o canto
esquerdo da cozinha.
Me levanto e abro o armário, em
um canto encontro guardanapos de
tecido que nunca vi antes,
provavelmente ela trouxe na mudança. O
que coloca meu cérebro em parafuso,
porém, é o que vejo ao lado deles. Um
notebook, dentro do armário.
A única coisa que posso
imaginar justificar um notebook
guardado junto com pratos e utensílios
de cozinha, é que Robin o estava
escondendo de Bernardo por algum
motivo. Ignoro a questão e retorno a
mesa levando apenas o que fui
incumbido de buscar.
O jantar transcorre
tranquilamente. Robin é uma cozinheira
incrível e quando finalmente ela retira
os pratos, estou impressionado com o
potencial que tem de transformar uma
lasanha em algo tão fora do comum.
Ela traz pratos menores depois,
garfos pequenos, colheres e também
alguns potes. E então começa de
verdade a noite da sobremesa.
Posso dizer que estou
impressionado e nem chegaria perto de
descrever meu assombro, e ainda nem
começamos a comer. Robin traz os
doces em pratos, travessas e vasilhas e
deposita tudo sobre a mesa.
Ela abre um sorriso sutil, porém
orgulhoso, e percebo que é porque estou
agindo como um menino namorando a
vitrine de uma doceria. Olho pra
Bernardo e acho que a expressão no
rosto dele deve ser bem semelhante a
que estou demonstrando.
— Nosso tema de hoje é
chocolate com morangos e temos
algumas delícias aqui: Bombom de
morango — Robin fala mostrando os
morangos mergulhados na calda de
chocolate que foi endurecida. — Bolo
Floresta Negra, recheado com
morangos, substituindo as tradicionais
cerejas, a pedido do nosso convidado.
— Ela aponta pra mim, incorporando
uma confeiteira, chef ou qualquer coisa
do tipo. — Merengue com morango e
chocolate, óbvio. Torta de creme de
avelã, ganache e mais das nossas frutas
da noite e por fim, um mousse simples,
feito com os dois sabores.
Não consigo dizer nada, estou
olhando de um prato para o outro
tentando me decidir por qual devo
comer primeiro e já pensando nas horas
que vou precisar correr a mais essa
semana, porque com certeza vou provar
um pouco de cada.
Robin serve a todos, não como
se fosse uma obrigação, parece mais
orgulho do banquete que preparou, como
se ela também quisesse cuidar da
apresentação dos pratos.
Sem que eu peça, ela decide por
mim e coloca um pedaço do bolo no meu
prato. Eu o sinto se desmanchar quando
levo a primeira garfada a boca, nunca
em toda minha vida comi algo tão bom.
Isso levando em conta que sempre gostei
de boa comida. Mas isso aqui? Outro
nível.
— E então? O que achou? —
Noto a ansiedade na voz de Robin.
Ela cozinha bem e sabe disso,
gosta de saber que é boa e mesmo assim
prefere continuar trabalhando em um
emprego que não gosta. Depois de
experimentar o que ela pode fazer, tomo
pra mim a responsabilidade de fazê-la
entender que precisa trabalhar com isso.
Eu sei o que significa fazer algo
que amamos e é sempre a melhor opção.
— Imagino que você não vai
gostar de ouvir isso, mas está sendo
desperdiçada naquele emprego. Eu
nunca comi, em toda minha vida, algo
tão bom como isso – digo, apontando
para o prato a fim de dar ênfase. — E
não estou me referindo apenas a bolos,
mas a qualquer comida, doce ou
salgada. Aquela lasanha, esse bolo, são
as melhores coisas que já coloquei na
boca.
Vejo um traço de malícia surgir
nos olhos dela, para desaparecer em
seguida. Ora, ora, Robin pensa em sexo,
então.
— Qualquer mesmo — reitero,
agora sorrindo e vendo o rosto dela
corar um pouco, entendendo a
insinuação.
— Obrigada, Dominic. Tenho
certeza de que isso é um exagero, mas
fico feliz que tenha gostado.
Experimente as outras...
— Não é exagero nenhum —
falo, seguindo seu conselho e pegando
um pouco da torta de creme de avelã. —
Você precisa montar uma confeitaria.
Mas primeiro, vou comer de todos pra
termos certeza.
Ela continua sorrindo
discretamente e é o momento em que a
vejo mais feliz desde que nos
conhecemos. É como se a mera ideia já
a deixasse contente.
— Robin, eu estou falando sério
— determino ao experimentar a torta.
— Eu não posso fazer isso, mas
agradeço o incentivo.
— Por que não pode, minha
filha? — Dona Rute decide dar sua
contribuição para a conversa. — Está
jogando seu diploma pela janela...
Diploma. Então é pior que eu
imaginava.
Eu a observo e fico esperando
alguma reação. Robin é um pouco
imprevisível e se fecha facilmente
quando não quer falar sobre algo, mas
estranhamente ela parece bem tranquila
com o assunto, o que me dá ânimo para
prosseguir.
— Sabe, você nunca me contou o
motivo por trás disso, mas acho que
nada justifica se prender a algo que não
gosta de fazer, tendo como opção
trabalhar com o que você ama.
Seu olhar recai sobre mim por
um momento. Ela leva uma colher do
mousse a boca, enquanto parece
absorver minhas palavras, mas então
muda abruptamente de assunto.
— Realmente deve ser bom fazer
algo que amamos, você ama sua
profissão? — A espertinha me
questiona, fugindo pela tangente.
— Sim, eu adoro saber que
posso ajudar as pessoas a superarem
seus problemas e a encontrarem um
novo caminho para seguir — respondo,
mesmo sabendo que ela fez de
propósito.
— Isso é muito bonito. Pelo que
disse, você substituiu uma colega, certo?
Como estão os pacientes?
— Alguns são mais
complicados, pode ser mais tranquilo
quando é algo que cabe apenas à própria
pessoa resolver. Em outras situações
envolve mais gente e isso complica
tudo.
Penso no garotinho que atendi
ontem, Paulo, e no trabalho de detetive
que precisarei fazer essa semana a fim
de descobrir se realmente alguém o está
amedrontando.
— Quer dizer que alguns casos
são fáceis? — pergunta.
— Não foi isso que eu disse...
— Me interrompo quando noto que ela
está brincando. Robin fez uma piada? –
Ah! Eu não diria que mantenho casos,
muito menos esses, não gosto do que
vem fácil.
Sorrio pra ela de maneira
cúmplice e Dona Rute, com sua
excessiva franqueza decide se
manifestar.
— Acho que estamos sobrando,
Super Minduim. Vamos ver um filme?
— Vovó! — Robin arregala os
olhos com o comentário e eu começo a
rir da sua expressão envergonhada.
— O que foi? — A velhinha
suspira, desanimada. — Eu sei que você
disse que não achava o traseiro dele
atraente, mas pensei que pudesse ter
mudado de ideia.
Robin cobre o rosto com as
mãos e eu começo a gargalhar sem
controle algum, enquanto dona Rute ri
também, um pouco sem graça, e
Bernardo encara tudo sem entender
nada.
— Robin... — chamo, mas ela
emite apenas um grunhido em resposta e
não me encara. — Deixa de bobagem, eu
também imagino que seu traseiro não
seja dos melhores, já que gosta tanto de
esconder que tem um.
Finalmente ela descobre o rosto
e vejo o quanto está vermelha, noto
também os olhos lacrimejantes, mas
Robin não está chorando. Ela está rindo,
pela primeira vez ela ri tanto que perde
o controle e acaba gargalhando, e
honestamente, vê-la assim acaba fazendo
com que me sinta melhor que com o bolo
de chocolate.
O que a risada faz com o rosto
dela, sempre tão austero, é surreal. Não
sou tão ligado a essas coisas, mas ver
uma pessoa evitar tanto um sorriso, faz
com que criemos expectativas e dessa
vez, não fui decepcionado.
Estou ainda a observando
quando meu celular toca. Retiro-o do
bolso e vejo o nome da minha madrasta
piscando na tela.
Pedindo licença aos três, me
levanto e caminho até a varanda,
atendendo a ligação no caminho:
— Bárbara?
— Oi, Dom. Tudo bem? —
pergunta com carinho e me lembro da
minha decisão de procurá-los.
— Tudo indo e por aí?
— Também... Sabe, seu pai já
soube que está trabalhando aqui. Eu
sei que ficou por conta própria todo
esse tempo, mas se precisar de alguma
coisa, posso conversar com ele.
Minha madrasta é legal, me irrita
as vezes por estar sempre procurando
nos unir mais, mas a intenção é boa, fica
apaziguando as discussões.
— Vou dar um pulo aí essa
semana pra ver vocês. Não estou
precisando de nada, mas agradeço por
se preocupar. Acha que... tudo bem por
ele se eu aparecer em casa?
Ela sorri animada do outro lado.
— Claro, rapaz! Seu pai vai
adorar te ver, precisam deixar de
bobagem. Ele está com saudade...
Me lembro de como nossa última
briga foi feia, mas ela tem razão. Tudo
por besteiras, coisas que não valem a
pena.
— Meu pai disse isso? Ele falou
que estava com saudades?
— Claro que não, Dom! E ele
fala essas coisas? Eu o peguei olhando
suas postagens mais recentes, as coisas
da clínica. Mandou imprimir uma foto
da sua formatura, mesmo dizendo que
foi uma péssima escolha.
Dou risada do comentário. Bem
típico dele esse tipo de atitude.
— Você vem mesmo? — ela
pergunta e sei que também quer me ver.
Sempre fomos bem próximos.
— Vou. Eu te aviso antes, tá
bom?
— Combinado. Até mais então,
meu filho.
Desligo a chamada, mas quando
me volto para entrar outra vez na casa,
me deparo com Robin ali, de pé atrás de
mim.
Ela tem dois copos nas mãos e
me estende um. Os traços do riso de
antes já se foram, mas ela traz ainda uma
leveza no modo com que age.
— Refrigerante — fala,
explicando a bebida. — Estava meio
empolgada com as sobremesas e acabei
esquecendo na geladeira.
Agradeço com um gesto, pego o
copo e me viro outra vez para a vista lá
embaixo quando a vejo se encostar na
amurada, ao meu lado.
— Cadê o Super Minduim? —
pergunto.
— Foi deitar. Disse que não está
cansado, mas queria deitar na cama de
carro.
O garotinho é uma figura.
— Vovó Rute está tricotando
uma touca nova pro Bernardo. Ela já fez
umas doze, no mínimo.
Assinto e meneio a cabeça, me
lembrando da quantidade de crochê
espalhado pela casa.
— Dominic... — ela chama, mas
seus olhos estão fixos nas luzes que
rodeiam o lago lá na frente. — O texto
que li outro dia... estou curiosa e acabei
não perguntando. O que era?
Claro que eu sabia que não havia
explicado nada, mas acabei pensando
que Robin tivesse se esquecido disso, já
que não perguntou antes.
— Eu trabalho um pouco
diferente. Já fez terapia? — Ela faz que
não. — Ouço os problemas e aconselho,
ajudo as pessoas a descobrir o que
devem fazer, tudo que um profissional
de psicologia faz. Mas também uso
esses textos.
— Como, exatamente?
— Aqueles dentro do pote ficam
ali, à disposição de quem quiser retirar
um. Às vezes o paciente se sente triste,
desanimado, não quer falar sobre algo
que o incomoda, então apenas pega um
dos textos, lê, e nós conversamos sobre
ele e, de alguma forma, sempre
chegamos ao cerne das questões.
Tomo um pouco do refrigerante e
espero que ela diga alguma coisa, mas
Robin se mantém em silêncio e eu
continuo:
— Faço também um trabalho
mais direto. Estudo os casos, as
dificuldades e os traumas, e preparo o
material exclusivamente para aquela
pessoa. Não de uma maneira dura, faço
de um jeito mais poético e que mesmo
assim, ou talvez seja justamente por
isso, consegue ser mais eficaz que
várias horas no divã.
— Você os escreve? Quer
dizer... Vem da sua cabeça? — Me sinto
um pouco sem jeito ao perceber o tom
admirado.
— É, eu escrevo. Mas não é
nada demais, eu transformo os conselhos
que qualquer um daria para pessoas em
diversas situações em poemas. Na
verdade, eu diria que é mais uma
literatura poética. Não sigo estrofes ou
métrica, são só... palavras, são versos
dispostos da maneira que eu acho
melhor. Mas as palavras quando bem
colocadas, podem ser sentidas de um
modo que você nem conseguiria
imaginar.
Apesar do orgulho que sinto pelo
que faço, é uma coisa muito particular e
me sinto estranho contando tudo isso
para alguém que não é um paciente.
Vejo o movimento da cabeça
dela, afirmando, antes de ouvir sua voz:
— Eu consigo.
Terminamos de tomar as bebidas
em silêncio e fico aqui, planejando
alguma coisa para quebrar o clima
esquisito em que estamos, quando ela o
faz.
— Era sua mãe no telefone?
Demoro alguns segundos para
entender que ela se refere a Bárbara.
— Madrasta.
Ela aquiesce.
— Deveria ir mesmo ver seu
pai, não faz ideia do quanto vai querer
isso um dia.
Poderiam ser apenas palavras
comuns que qualquer pessoa diria, mas
o modo como Robin o faz demonstra que
ela tem experiência nisso. Que sabe
como é desejar estar com o próprio pai
e não saber, ou talvez se refira ao pai do
menino...
— Eu vou — repito as mesmas
palavras que disse a Bárbara pouco
antes.
— Que bom. Boa noite,
Dominic. À propósito, obrigada por
tudo. Não precisava ter gastado tanto
com as coisas pro Bernardo, mas
agradeço, ele adorou tudo.
Oferece um aceno e a vejo entrar
em seguida. Fico ali por mais alguns
instantes pesando minha decisão de ir
ver meu pai e as coisas que Bárbara
disse. Ele imprimiu a foto da minha
formatura.
Velho teimoso.
Entro sorrindo com a ideia de
contar a ele que sei sobre a foto, ficaria
tão envergonhado. Negaria até o fim, se
bem o conheço.
Passo pela cozinha e vejo que os
doces sumiram, então imagino que
Robin tenha guardado tudo antes de ir se
deitar. Caminho pela sala, mas dona
Rute não está mais aqui.
Acabo decidindo ir para o meu
quarto também, mas passo por ele
direto. Ando até o cômodo que mandei
arrumar para o menino e observo-o
dormindo na cama.
Ele está abraçado com um urso
quase do seu tamanho, tem um abajur
azul ao lado da cama, que antes não
estava ali e que lança sobre o corpinho
pequeno uma luz fantasmagórica, mas
imagino que ele tenha medo do escuro e
por isso Robin o acendeu.
Observando-o penso como deve
ter sido difícil crescer assim, sem o pai.
O meu sempre foi duro e distante, mas
eu nunca duvidei que me amasse e não
me lembro de admirar mais alguém, que
não a ele, quando era criança. Talvez
Bernardo seja pequeno demais para
compreender, mas eu sei como a falta de
um dos pais faz falta e nos marca. Um
dia ele também vai entender.
Vejo que o cobertor dele tem as
duas laterais presas sob o colchão, para
evitar que ele se descubra,
provavelmente. Mas sorrio ao notar que
suas pernas já estão sobre o cobertor, de
alguma forma ele conseguiu se soltar.
Entro no quarto evitando fazer
barulho e ergo com cuidado as pernas
do menino, colocando-as sob o cobertor.
Saio do quarto e vejo que Robin
está parada na porta do quarto dela, que
fica bem em frente ao de Bernardo,
observando a cena. Levo as mãos aos
cabelos e abro um sorriso,
envergonhado por ser pego em flagrante.
— Eu também fazia isso... Me
descobria toda noite.
Robin apenas balança a cabeça,
concordando, mas não fala nada. Apenas
se vira, entra e fecha a porta do seu
quarto.
Acabo fazendo o mesmo.

Mais um dia tenso no trabalho.


Não que isso seja novidade, desde antes
de nos mudarmos para Lagos, as coisas
na joalheria já não eram as melhores. O
problema, que agrava meu
descontentamento, com certeza tem a ver
com a noite da sobremesa.
O fato de ontem mesmo, ter
trabalhado por horas na cozinha,
envolvida pelo calor do forno, o cheiro
delicioso de bolo enchendo o ar, a
suculência dos morangos vermelhos, a
suavidade do chocolate picado...
Ter passado tanto tempo
transformando ingredientes em belos
pratos, cuidando da apresentação de
cada um deles, sentido meu ego ser
saciado pelos sons das interjeições de
deleite da minha família — e de
Dominic — ao provar meus quitutes,
tudo isso me fez tão bem que, como
sempre, voltar a realidade em que sou
apenas uma vendedora é arrasador. Não
subestimando as vendas, mas quem
coloca literalmente a mão na massa não
quer saber de outra coisa.
Acredito que esse seja o
principal motivo para que ao final do
dia, possa descrevê-lo como infernal.
Mas não apenas isso. Meu chefe não me
convidou outra vez ao cubículo que
chama de escritório, mas fez questão de
me dirigir algumas alfinetadas sempre
que elas se encaixavam de algum jeito
no assunto.
— Giovana, como esse vestido
cai bem em você, gosto de ver que
alguém nesse lugar sabe vestir-se
apropriadamente para o trabalho.
Ou então:
— Foi ao cabelereiro, Paula?
Seus cabelos ficam ótimos assim,
soltos, como toda mulher deveria usar.
Nem vou começar a dizer como
esse pensamento por si só é machista e
como o jeito com que ele me trata faz
com que as outras funcionárias também
não tenham o mínimo respeito por mim,
porque bom, se ele age assim, por que
elas se comportariam de maneira
diferente? Me repreende, dá indiretas,
mas não perde a oportunidade de tentar
olhar dentro da minha blusa, sempre que
abaixo perto dele. Imbecil.
Como eu disse, dia infernal.
Para somar a equação que já não
vai bem, a noite anterior mudou algo
entre Dominic e eu. Não sei de que
forma exatamente, mas há entre nós um
entendimento, uma tranquilidade que não
existia antes. Ao mesmo tempo que
também uma inquietude faz com que
minhas reações à presença dele apenas
se ampliem a cada dia.
Não é um sentimento. Deus sabe
que perdi a capacidade de sentir há
muito tempo. Todo o amor que cabe
dentro do meu peito já tem um trajeto
preciso e bem estabelecido que liga
Bernardo e eu, minha avó e eu. Mas
ainda assim é alguma coisa.
Amizade, talvez? Mesmo isso, é
algo novo e o que é novo me incomoda.
Tudo que me tira da confortável zona
que estabeleci para que viva meus dias é
um incomodo.
Me lembro que no dia em que
encaixotava nossos poucos pertences
para a mudança, aconteceu pela primeira
vez. Dominic fez algum comentário,
acho que foi quando me perguntou se eu
era gay, me recordo de ter rido, alto. A
reação de Bernardo foi claramente de
surpresa, porque não é um som que eu
emita com facilidade.
Mas naquele dia o riso veio
fácil.
Não estranhei como deveria, até
então Dominic era uma possível amiga,
uma mulher. Mas depois que nos
conhecemos, isso começou a ser
recorrente e venho fazendo um esforço
enorme para não ceder.
Eu sei, eu sei. Pareço mesmo
uma louca falando assim, mas a questão
é que as risadas, gargalhadas, a alegria
do dia-a-dia, não fizeram parte da minha
vida nos últimos cinco anos. Salvo
alguns momentos especiais e todos eles
envolviam meu filho. Então é um pouco
assustador perceber que tudo que
Dominic faz, ou diz, me faz querer
sorrir.
Foi o que mais me irritou nele
desde o começo. O sorriso dele me fazia
querer retribuir e por isso o desaprovei
imediatamente. Meu psicológico, claro,
ignorando os motivos.
Mas aos poucos fui
compreendendo o que acontecia. Ele me
despertava a vontade de simplesmente
sorrir e essa demonstração física de
alegria não fazia parte dos meus hábitos.
Agora, ao entrar em meu carro,
no estacionamento do shopping, suspiro
aliviada. Um dia a menos nesse
emprego, porque em trinta ou quarenta
anos poderei me aposentar. Que a
economia do país me ajude!
Vejo Paula e Giovana passarem
ao meu lado. A janela está aberta e por
isso é fácil para elas pararem na lateral:
— Robin, amanhã vamos fazer
as unhas depois do trabalho, se quiser
vir com a gente... — Paula convida. Sei
que entre as duas, a que tem menos má
intenção é ela, ainda assim é muito
óbvio que nenhuma de nós anseia por
essa aproximação.
— Obrigada pelo convite, vou
pensar. — Aceno para elas enquanto
subo o vidro, em seguida dou partida e
as vejo ainda pelo retrovisor, dando
tchau e sorrindo.
Sorrisos nem sempre são
sinceros.
Não seria algo a se pensar se os
meus fossem assim, espontâneos e
falsos, mas não. Um dia já fui o tipo de
pessoa que agradece com um curvar
sutil nos lábios, que comemora um gol
na televisão com um grito alto e uma
risada estrondosa. Meus sorrisos sempre
foram honestos, a libertação de algo que
transbordava dentro do meu peito e
então, saía em profusão. Mas isso, esse
acúmulo que se derrama em felicidade
honesta, não acontece mais há muito
tempo, não quando Bernardo não está
envolvido.
Dominic ativa essa parte minha
que não existia mais e, apesar de
parecer bom, isso é ruim.
Eu, Robin Muniz, gargalhei na
mesa de jantar ontem à noite e o pior, só
de me lembrar do comentário abusado
dele sobre meu traseiro, ou do nosso
momento mais filosófico na varanda, a
minha boca começa a se erguer nesse
espasmo involuntário. Algo mudou e que
o causador da mudança viva em minha
casa, coma na minha mesa e como bônus
tenha aqueles braços, é o estopim para
fazer com que esse seja um péssimo dia.
Ainda estou remoendo todas
essas coisas quando chego em casa.
Subo para o apartamento após verificar
com o porteiro se tudo correu em
absoluta paz e exceto por minha avó ter
aberto a porta empunhando um pato de
porcelana, tudo foi bem, de acordo com
ele.
Dessa vez, quando passo pela
porta do consultório de Dominic, acabo
olhando na direção dela, querendo
encontrá-lo ali. Nada demais, moramos
no mesmo apartamento e podemos subir
juntos, mas está trancado.
Entro em casa procurando por
todos e encontro Bernardo deitado em
sua cama e vovó Rute sentada em uma
cadeira perto dele.
— O que foi? Aconteceu alguma
coisa? — Estranho ver meu pequeno
serelepe deitado a essa hora.
— Minha cama de carro, é
radical.
Ah, isso. Desde ontem a cama é
o assunto mais interessante do mundo
pra ele e eu entendo bem o porquê.
Sempre passamos muitos problemas
financeiros e Bernardo, apesar de ter
seu próprio quarto, dormia no mesmo
berço desde que nasceu. Então, ter uma
cama dele já era algo diferente, uma
como essa, ainda mais.
— Que bom que você gostou,
filho. Agradeceu Dominic?
Ele faz que sim com a cabeça e
fico mais tranquila. Acabei me
esquecendo de falar para que fizesse
isso e mesmo que fosse nosso acordo em
razão do aluguel, educação sempre cabe.
— E a senhora, vovó? O que faz
aí nessa cadeira?
— Não é uma cadeira —
responde, bem séria.
— Não? — Observo bem o
assento e as quatro pernas. Parece muito
mesmo uma cadeira, mas como vovó
Rute é imprevisível...
— É uma aeronave. Minduim
está de carro e eu vou pro espaço. —
Ela sorri contente e eu me aproximo e
dou um beijo em sua testa enrugadinha.
Dona Rute faz muito bem para
Bernardo e eu. E mesmo que, vez ou
outra, cometa suas loucuras e fale coisas
sem sentido, ela adora meu filho e
encara os teatrinhos dele como se
fossem obras de Shakespeare. A melhor
atriz do mundo.
— O que foi, filha? — Me
encara notando meu sentimentalismo
bobo. — Está tudo bem?
— Acho que um dia vai ficar,
vovó Rutinha — respondo e sinto que é
verdade.
Um dia tudo vai estar bem.

As semanas acabam se passando


rapidamente. Meu ritmo de trabalho e o
de Dominic, fazendo com que
estivéssemos menos juntos nos últimos
dias.
É sexta-feira de novo. Já tem um
mês desde que nos mudamos e estamos
os três — vovó, Bernardo e eu —
estirados na sala quando Dominic chega.
Bernardo inventou uma sessão de
cinema e acabei entrando na onda.
Arrastei nossos colchões para a
sala e os coloquei sobre o tapete para
termos mais espaço, minha avó se deitou
confortável no sofá, porque obviamente
não levantaria do chão sem ajuda.
Depois de constatar que havia
sobrado arroz de ontem — assim como
muitos doces da nossa segunda noite da
sobremesa que teve biscoitos como tema
— e de levar uma carne ao forno, deitei-
me com Bernardo enquanto o claro som
da abertura dos filmes da Disney enchia
a casa.
Quando nosso companheiro de
apartamento chega, encontra-nos assim,
enquanto os créditos iniciais do filme
Carros, o mais antigo, passam pela tela.
Claro que a escolha foi influenciada
pela cama nova do Minduim que ainda é
novidade.
— Boa noite — Dominic
cumprimenta. — O que está acontecendo
aqui? Sexta agora é uma noite temática
também?
Ergo os olhos do colchão onde
estou e o vejo de pé atrás de nós.
— Por enquanto não decretamos
nada, mas hoje teremos uma sessão
cinema. E o filme foi inspirado no
quarto novo de alguém — falo,
apontando pra Bernardo que não
desgruda os olhos da tela.
Dominic desvia os olhos para a
televisão.
— Carros? Eu adoro esse filme.
O quê? — pergunta ao ver que o estou
encarando com uma expressão curiosa.
— Você gosta, sua avó gosta. Eu não
posso gostar?
— Eu adoro o Marquinhos... —
Vovó Rute diz e fico um tempo tentando
compreender, até que a gargalhada de
Dominic me distrai.
E o que vem depois.
— Senta aqui, amigão.
Ambos olhamos pra Bernardo e
me vejo meio sem reação. Ouço a
risadinha divertida da minha avó.
Amigão? De onde foi que saiu isso?
— Eu já volto, companheiro —
ele responde. — Vou tomar um banho e
venho assistir com vocês.
— Quer que eu pause? —
pergunto, estranhando um pouco o fato
de ele querer mesmo ver um filme
infantil com uma criança de quatro anos,
em uma sexta-feira à noite, mas não vou
reclamar. Acho que senti falta de falar
com ele nos últimos dias, já que
acabamos nos vendo pouco.
— Não precisa, volto rápido,
mais veloz que o Marquinhos, não é
dona Rute?
Ela assente e só então entendo
que o Relâmpago McQueen é o tal
Marquinhos.
Continuamos o filme e Bernardo
acaba se encostando em mim. Noto que
está sonolento e acredito que a euforia
dos últimos dias está cobrando um
preço.
Uns dez minutos transcorrem e
ouvimos a porta do banheiro se abrir.
Acabo pausando o filme para
esperarmos Dominic e aproveito para ir
até a cozinha verificar a comida.
Meu timming sempre foi ruim,
mas agora posso dizer que ficou
decididamente péssimo, ou excelente,
depende do ponto de vista.
Para uma mulher que evita a todo
custo ter pensamentos obscenos, porque
esses levam a atitudes impensadas e
todo o resto, a precisão do instante em
que me levantei do chão e caminhei por
trás do sofá, foi o verdadeiro início do
meu carma.
Foi o mesmo segundo em que
Dominic se esgueirou para fora do
banheiro. Por seus movimentos, ele
esperava ter sucesso em passar para o
quarto sem ser visto, mas como disse:
timming.
Nossos olhares se encontram por
um momento e fico estática, assim como
ele.
Eu deveria rir. Nesse momento,
nem o papa me julgaria por rir
sonoramente e assim toda essa tensão se
dissiparia, porque nunca imaginei me
deparar com ele, seminu no corredor,
usando apenas um pano de prato para
cobrir as partes importantes.
Um pano de prato.
Seria engraçado se não fosse
tão...
Vejo as gotas de água escorrerem
pelo peito dele, as entradas bem
delineadas no quadril, que descem por
sob o pano de prato, as pernas que são
um espetáculo à parte, os cabelos
molhados, pingando um pouco sobre os
ombros fortes.
Meu Deus. Nem o fato de tudo
isso ser completamente bizarro apaga o
calor que se acende dentro de mim. É
completamente inoportuno ficar aqui,
analisando cada milímetro da pele dele,
sabendo que nas costas não há outro
pedaço de tecido o cobrindo, mas nem
ele se explica, nem eu me movo.
Noto que há algo nos olhos dele,
uma energia diferente que passa entre
nós como uma corrente elétrica que
conduz essa força de um para o outro e
que nos paralisa no lugar.
Finalmente, depois do que
pareceram horas, acabo abaixando os
olhos e caminho até a cozinha. Ouço a
porta do quarto dele se fechando logo
depois.
Abro a torneira da pia e refresco
meu rosto com a água fria. Não sei o que
deu em mim para ficar ali, parada, mas
prefiro acreditar que tenha sido pela
surpresa.
Mas que droga ele fazia com o
pano de prato? Que homem maluco!
Aos poucos sinto as batidas do
meu coração se acalmarem. Quando foi
que elas dispararam? Minha respiração
entrecortada se normaliza e consigo
cumprir com o que vim fazer, olhar a
carne no forno.
Com um garfo verifico que ainda
não está no ponto certo e fecho o forno.
Abro a geladeira, pego a caixa de suco
na porta e me sirvo um copo. Estou
dando tempo para que tudo em mim se
normalize, antes de voltar a sala e logo
depois encarar Dominic. Vestido.
Só percebo que minha mão está
tremendo um pouco quando derrubo um
pouco do líquido sobre ela. Abro a
torneira outra vez e lavo as mãos.
Estendo a mão para o gancho na
parede, onde geralmente fica um pano de
prato para secar as mãos, e meus dedos
envolvem um tecido bem mais grosso,
felpudo. Uma toalha de banho.
Ai, meu Deus.
Me agacho diante do armário
que fica embaixo da pia, onde
geralmente ficam empilhados os
pequenos tecidos finos e específicos
para secar as mãos e a louça na cozinha,
mas ao invés dos inocentes paninhos —
que nunca mais serão vistos por mim
assim — encontro uma pilha de toalhas,
as mesmas que deveriam estar no
gabinete do banheiro.
Vovó Rute andou fazendo mais
uma de suas trapalhadas.
Que merda acabou de acontecer
aqui? Fecho a porta do quarto e acabo
me encostando nela, sem saber bem o
que fazer.
Tomei meu banho na velocidade
da luz, na intenção de assistir ao filme
no conforto da sala com aquela família
animada. Eu poderia fazer mil e uma
coisas em uma sexta-feira à noite, mas
gosto mesmo de animações e como a
minha família nunca foi muito cheia de
programações, acho divertido o que eles
fazem, eu gosto.
Mas tudo começou a dar errado
no momento em que abri o chuveiro.
Primeiro que meu chinelo, que deveria
ser antiderrapante, não cumpriu com
suas obrigações e me fez escorregar. Por
pouco não caí dentro do box e, como
consequência, ganhei um provável roxo
no cotovelo assim que o bati contra a
parede.
Depois que entrei sob a água e
me molhei todo, percebi que não tinha
pegado o sabonete e assim sai molhando
o banheiro todo e peguei um na gaveta
do gabinete, voltando finalmente pro
banho.
E daí pra frente tudo piorou.
Fechei o chuveiro e percebi que ao
contrário do que sempre faço, não tinha
levado a toalha e pendurado perto do
box. Então, sai outra vez pingando e abri
as portas do armário para pegá-la e aí,
simplesmente não havia toalha.
Em duas pilhas altas, estavam
dispostos os mais variados tipos de
panos de prato. Desenhos de todo estilo
e nenhuma mísera toalhinha de rosto.
Encarei o tapete no chão,
pensando em usá-lo para me enrolar e
poder deixar o banheiro e a fumaça que
preenchia o ambiente, me fazendo suar
logo após o banho. Mas era
emborrachado.
O que me restava era abrir a
porta, uma pequena fresta, e chamar
alguém, pedir ajuda, mas alguma coisa
me impediu.
Robin era toda reservada e achei
que ficaria sem jeito com meu pedido.
Se eu soubesse...
Vovó Rute, bem, ela com certeza
era a responsável pela dura situação em
que me encontrava e por isso também
não era opção, e Bernardo, ele não
saberia me ajudar.
Então, aproveitando que estavam
todos concentrados no filme, decidi me
aventurar, como Deus me enviou ao
mundo, usando de escudo um dos panos
e optando por cobrir o ponto essencial,
já que mais de um lugar não tinha como.
Abri a porta do banheiro e saí
para o corredor, mas a merda do filme
estava em pausa e diante de mim, no
outro extremo, estava Robin.
Ela parou. Eu também.
Esperei por um grito. Talvez ela
ficasse brava ou saísse correndo e
apesar de não ser culpa minha, daria pra
entender. Mas contrariando todas as
minhas suposições, ela ficou.
Primeiro pelo susto, suponho,
mas depois...
O olhar dela, o modo como
percorreu meu corpo sem o pudor de
sempre, o desejo, tudo foi como um soco
no estômago, brutal.
Se ela foi pega de surpresa, eu
também não estava preparado para a
reação do meu corpo diante da brasa
que havia no escrutínio dela. Eu devia
abrir a boca, me desculpar, me explicar,
mas tudo que fiz foi engolir em seco,
sentindo aquele anseio primitivo que
corria dela para mim.
Nunca a olhei desse modo.
Havia reparado que por trás dos
aparatos para parecer comum, invisível,
tinha uma mulher bonita e não nego que
senti o cheiro bom que ela tem uma ou
duas vezes. Eu notei, mas nunca meus
pensamentos foram além disso em um
sentido sexual.
Ela não me fez desejá-la do
modo que sempre acontece com outras
mulheres, com roupas que favorecem
suas qualidades físicas, conversas
descontraídas e insinuações. Mas o
desejo cru e bruto que veio dela,
despertou o meu.
Me vi ali, parado, imóvel,
enquanto a única parte do meu corpo que
ela não podia encarar com aquele fogo
todo, acordava.
No pouco tempo de convívio,
soube que Robin não era o tipo de
mulher que se deixava levar por luxúria
e sim que evitava interações físicas.
Mesmo que ela não tenha me dito isso,
eu soube pelo seu modo de agir.
Mas a força da eletricidade entre
nós fixou meus pés no lugar e por um
instante, me vi desejando que fosse ela
aqui, com apenas um trapo cobrindo-a,
ou nem isso.
Quando finalmente se moveu,
muda, consegui sair do transe em que fui
colocado e corri para o quarto antes que
tivesse que encarar dona Rute ou
Bernardo.
E agora eu, um homem de trinta
anos, não consigo vestir uma roupa,
voltar para a sala e agir como um adulto.
Pedir desculpas, explicar a situação,
isso seria o razoável. Mas não sei bem
como vou reagir quando os olhos dela
me fitarem por trás das lentes grossas.
Finalmente, vou até meu guarda-
roupa e tiro da gaveta uma cueca, me
vestindo. Depois me atiro sobre a cama
enquanto finalmente sinto meu corpo
esfriar.
Mais calmo, coloco uma roupa
qualquer, tomando o cuidado de vestir
calças largas. Seco o cabelo, o máximo
que o pano de prato permite, e deixo o
quarto.
Quando chego na sala, o filme já
está rolando outra vez. Dona Rute ronca
levemente e eu acabo me divertindo,
pensando na enrascada que a velhinha
me colocou dessa vez.
Dou a volta, atento à tensão que
emana de Robin, que não desvia os
olhos da tela nem mesmo quando me
deito no lugar que sobrou, bem ao lado
dela. Eu podia fugir, ficar fechado no
quarto, mas isso não resolveria as
coisas e apesar de inusitado, não existe
um culpado aqui. Bom, até existe, mas
ela está no sétimo sono.
Fixo os olhos na tela também e
ficamos aqui, em um silêncio
desconfortável, até o filme terminar.
Bernardo, que a princípio parecia estar
cochilando, logo se sentou no colchão
quando notou que eu havia voltado.
Ótimo, porque o que menos precisamos
agora é ficar apenas os dois acordados,
em uma situação vergonhosa.
Quando finalmente Marquinhos
ganha a corrida e termina o desenho,
Robin se levanta e faz com que dona
Rute também desperte.
— Vou colocar a comida na
mesa, pessoal — ela fala, amigável
demais. Percebo que está tentando fingir
que não aconteceu nada, mesmo que
ainda não tenha olhado pra mim uma
única vez.
Entro na onda e chamo Bernardo
para também se levantar e ir comigo
para a mesa.
— Vem Super Minduim, vamos
comer. Um super herói não vence o mal
se estiver fraco.
O menino fica de pé em um pulo
e ergue os bracinhos pra me mostrar os
músculos.
— Eu sou forte, óh! — Aponta
para o braço magro. — Se eu papar fico
mais forte?
É um garoto muito bonitinho e
me vejo concordando com ele.
— Se papar vai ficar sim, igual
o Hulk — respondo, usando o mesmo
termo que ele.
Apoio a mão em suas costas e o
empurro devagar até a mesa. Dona Rute
vem logo depois e Robin coloca as
travessas de comida sobre o tampo de
madeira, ainda sem me olhar. Está com
vergonha.
A refeição consiste de carne
assada e arroz. Não tem nenhum outro
prato, nada tão elaborado, mas
incrivelmente Robin consegue fazer tudo
que cozinha parecer um banquete.
— Hum... Está gostoso, mãe —
Bernardo fala ao experimentar a carne.
— Que bom, filho. Coma tudo,
então.
— Se eu comer tudinho, o
Dominic me disse que vou ficar igual o
Hulk, mas ele é verde... — fala, fazendo
uma careta ao comentar a cor.
Robin assente meio distraída e
leva uma colher a boca, ainda evitando
contato visual.
— Mãe, será que se eu papar,
posso ficar igual o Dominic ao invés do
Hulk? Você já viu o bração dele? Parece
o do Hulk, mas não é verde igual
meleca.
Ela engasga. Droga.
Robin começa a tossir, uma vez
após outra, e cobre a boca com uma
mão, enquanto tenta bater nas costas com
a outra.
Fico olhando para ter certeza de
que não preciso intervir, mas logo ela
pega o copo de água ao seu lado e toma
um gole, acalmando a tosse pouco
depois.
— Já viu, mãe? — insiste
Bernardo. — A senhora viu como ele é
forte?
— Ah, ela viu — respondo,
quando percebo que ela não vai dizer
nada.
Não devia fazer isso, mas faço.
Acho que estou tentando aliviar o clima,
tornar as coisas mais engraçadas, mas
ela me olha finalmente e seu rosto fica
vermelho como um tomate.
— Desculpa — falo. — Não
resisti.
Vovó Rute que calmamente
comia de seu prato, mesmo quando a
neta se engasgava terrivelmente, olha
pra nós de repente:
— Ela viu? E não me falou
nada? Meu Jesus Cristinho, Robin!
Pensei que já teria aprendido a essa
altura que gosto de detalhes.
É a minha vez de ficar
constrangido, mas decido acabar com
isso de uma vez:
— Dona Rute, a culpa é sua,
sabia? — Estou a ponto de contar a ela
sobre o incidente, quando noto o gesto
de Robin, balançando a cabeça de um
lado para o outro, me implorando com
os olhos para não dizer. — A senhora
fica enchendo minha bola, vou ficar
muito convencido.
— Mas você pode ficar. Por
falar nisso, filho... — Ela me prepara
em tom suave, mas já estou pronto. Dona
Rute me surpreende sempre e nunca se
deve esperar algo comum quando
resolve falar. — Tem umas garrafas de
cerveja embaixo da pia, no chão.
Ah, isso.
Robin me olha outra vez, se
lembrando do dia em que me embebedei
enquanto vigiava Bernardo.
— Sim, são minhas... —
respondo. — Deixei ali tem uns dias.
A verdade é que esqueci
completamente que as tinha colocado
ali, logo quando nos conhecemos e eu
tentei fazê-los se mudar.
— Eu imaginei. Você foi
alcóolatra? — pergunta, mas depois
continua sem me dar tempo de
responder. — Já ouvi muito essas
histórias, o vício é terrível mesmo, mas
fique tranquilo que você encontrou uma
família, que vai te apoiar sempre.
Olho para a velha senhora, me
divertindo com o comentário. Como
umas poucas garrafas a fizeram deduzir
que eu fosse alcóolatra? Ainda assim,
fico espantado ao constatar que não há
uma única centelha de julgamento no
olhar da mulher idosa.
— A senhora chegou a essa
conclusão de que forma? — Estou
interessado em saber o que a levou a
essa ideia, além das três ou quatro
garrafas.
Ela abaixa os olhos e meneia a
cabecinha branca, parecendo mesmo
muito entristecida com a descoberta da
minha tendência ruim.
— Ouvi que geralmente quando
abandonam o vício, algumas pessoas
preferem beber outros líquidos nas
garrafas que costumavam usar antes,
para sentir o mesmo prazer que o álcool
proporcionava.
Ah, merda. Já começo a sorrir,
percebendo que minha última máscara
de vilão vai cair por terra em segundos.
— Como assim, vovó? — Robin
não resiste.
— A água, Robinha. — Sorrio
ainda mais ao ouvir o diminutivo. —
Dominic bebe água em garrafas de
cerveja pra sentir que está bebendo o
que era sua perdição. — Meu Deus, a
velhinha leva jeito para o drama, quase
me comovo pelo pobre e viciado
Dominic. — É um jeito de se manter
sóbrio, mas sem abandonar os costumes
antigos, e isso é muito esperto, menino.
— Água? — O olhar de Robin
se volta pra mim e mesmo constrangida,
noto que a curiosidade fala mais alto.
— É, água — respondo. —
Achou mesmo que eu beberia em
serviço?
— Mas... Você disse que estava
de folga.
— Eu estava trabalhando, como
babá.
Dona Rute ignora nossa curta
interação como se não fosse perder
tempo tentando entender e volta o olhar
para o prato.
Robin balança a cabeça,
inconformada ao descobrir mais um dos
meus truques, mas depois disso o jantar
caminha do modo como começou: Eu
tentando fazer com que as coisas voltem
ao que eram antes do pano de prato e
Robin olhando para tudo, menos pra
mim.

Não foi insônia. Na verdade, eu


dormi durante algumas horas depois do
jantar. O que me fez acordar às quatro
da manhã foi o sonho.
Eu devia imaginar que algo
assim pudesse acontecer. Robin é o tipo
de mulher que não demonstra sua
sensualidade, e são essas mulheres que
despertam certas fantasias, as melhores
na verdade.
O sonho ia bem.
Eu chegava em casa, ela estava
na cozinha, nada absurdo. Mas
enquanto Robin caminhava para a sala,
em saltos enormes e usando apenas seu
avental rosa, as coisas começaram a
mudar. Ela soltou os cabelos loiros e
me encarou demoradamente, retirando
os óculos em seguida.
Nunca a vi assim, mas minha
imaginação sempre foi incrível.
Robin ergueu a colher de
madeira que tinha nas mãos. No
começo não estava ali, surgiu de
repente, e ainda por cima suja de
chocolate. Enfim, ela ergueu a colher e
lambeu com a ponta da língua, de um
jeitinho muito sexy.
— Hoje é a noite da sobremesa,
Dominic.
Eu acordei em um pulo, com uma
ereção que não respeitava colegas de
apartamento traumatizadas. Inferno.
Preciso de água.
Visto a calça que havia tirado
para dormir e saio do quarto. Abro a
geladeira na cozinha e o ar gelado
refresca meu corpo quente, em brasas.
Antes de pegar a água, percebo
que tem uma travessa com os bombons
de chocolate e morango da noite da
sobremesa. Meus sentidos são invadidos
pelo cheiro do doce e as lembranças do
sonho. Não resisto a pegar um e comer,
ainda com a porta aberta.
— Ai, que susto! — Ouço o
arfar dela, logo atrás de mim. Preciso de
um momento para me recuperar e então
me viro, a encarando finalmente.
— Oi — falo, sussurrando.
— Vim beber água...
— Eu também, mas achei esses
morangos e aí uma coisa levou a outra
— respondo.
Robin está vestindo um pijama
de calças compridas, a blusa tem
manguinhas e é colorida, como o do
outro dia. Não é nada sensual como no
meu sonho, mas agora que visualizei ela
desse modo, a imagem não muda, eu
consigo enxergar por baixo do que ela
mostra.
Abrindo o armário para pegar
um copo, ela fica na ponta dos pés e me
pego analisando a curva do seu quadril,
tentando ver se é tão generoso quando a
minha imaginação pintou. Parece muito
bom.
Fecho a geladeira e me encosto
na porta, observando-a enquanto pega a
água do filtro, provavelmente para não
ter que se aproximar tanto quanto
precisaria se quisesse beber da água
gelada, que está atrás de mim.
Os olhos dela finalmente me
fitam e vejo os cabelos presos,
lembrando de como os imaginei soltos.
Meus olhos descem para a frente de sua
blusa e quase, quase consigo imaginar o
que ela esconde.
— Para com isso — a voz dela
me assusta e eu ergo o olhar.
— Desculpe? Parar com o quê?
— Me faço de desentendido.
— Me olhar assim, eu sei o que
está fazendo.
Ela sabe?
— Está me dando o troco por
mais cedo... Olha, não fique pensando
besteira, você me pegou de surpresa e
eu fiquei sem ação. Foi uma bobagem e
não vai acontecer de novo, vou
supervisionar as toalhas quando vovó
Rute as guardar.
— Não estou fazendo isso, pelo
menos... não de propósito. Foi meio
estranho, não foi?
Ela aquiesce.
— Eu tentei usar o tapete.
— O quê? — pergunta, confusa.
— O tapete do banheiro, pra me
enrolar, mas era de borracha por baixo.
Não deu muito certo.
— Hum, parece que não.
Me viro de costas, tentando
forçar minha mente a esquecer o sonho,
esquecer os pensamentos insanos. Essa
mulher mora comigo, tem um filho de
quatro anos, uma avó maluquinha e não
quer ser seduzida. Ela não tentou me
seduzir e ainda assim, aqui estou eu.
— Robin — chamo e espero que
ela não perceba meu tom mais rouco.
Pode parecer repentino, mas sonhos
eróticos fazem isso com as pessoas: eles
têm o poder de mudar o modo como
enxergamos alguém, literalmente da
noite para o dia. Volto-me para a frente
outra vez. — Olha só, você e eu estamos
nos dando bem, admita ou não. Eu sei
que está se acostumando comigo,
ficando mais à vontade. Estamos muito
perto de sermos amigos, certo?
Apesar de encarar os próprios
pés, ela balança a cabeça afirmando.
— Não vamos retroceder por
causa de uma besteira — falo. Alguém
tem que ser sensato e o psicólogo aqui
sou eu, independente do que esteja
passando pela minha cabeça.
— Eu sei — ela responde,
baixinho. — É uma bobagem, é só que
fiquei constrangida. Sei que pode ter
parecido outra coisa, que estava lá
parada porque quis, mas eu me assustei
e paralisei.
Não sou um homem arrogante,
apesar de reconhecer minhas
qualidades, mas também não sou idiota.
Ela está tímida, como era de se esperar,
e se esquivando, mas nem em mil anos,
eu deixaria de reconhecer o que
aconteceu. O desejo pulsava do corpo
dela para o meu e isso é um fato.
Ainda assim, jamais a obrigaria
a admitir alguma coisa, principalmente
dadas as nossas circunstâncias especiais
como colegas de apartamento.
— Claro que sei disso — minto.
— Eu também estaquei lá, mas está tudo
bem entre a gente? Podemos continuar
nossa amizade de onde paramos? Você
me dá uns doces, faz comida, eu monto
móveis e te empresto minha agradável
companhia... — brinco com a situação e
ela abre um sorriso curto. Não como a
risada de ontem, na verdade esse não me
parece sincero, mas ainda assim é
melhor que nada.
— Tudo bem. Amigos —
responde e uma onda de alívio me
invade. — Amanhã levanto cedo para
trabalhar, Dominic. Vou me deitar outra
vez.
— Amanhã é sábado —
constato.
— Pois é, para as vendedoras
mal remuneradas é só mais um dia de
trabalho.
Robin suspira desanimada e faço
um gesto positivo, compreendendo.
— Fico de olho nos dois
amanhã, se isso te tranquilizar de alguma
forma.
— Sem garrafas de cerveja
cheias de água para lidar com seu vício?
— Agora ela está brincando de novo, o
clima voltando ao que era ontem.
— Me diz uma coisa, em que
escola sua avó estudou, hein? Muito
dramática, deveria trabalhar no cinema.
De onde será que saem essas ideias
dela?
Robin dá de ombros.
— Ela tem muito tempo pra
televisão. Ainda bem que a internet e ela
não são da mesma era, ou você ia ver o
que ela aprontaria.
Então me lembro de algo que
estava ali, no fundo da minha mente
inundada por visões da Robin seminua.
— Falando nisso... —Abro o
armário e aponto com o indicador para o
notebook guardado ali. — Escondeu do
Bernardo ou foi dona Rute atacando
outra vez?
— O que acha? — Ela ergue a
sobrancelha, me desafiando. — E eu
nem dei falta dele. Sabe o que isso
significa, Dominic?
Faço que não, porque com essa
senhorinha ninguém faz ideia mesmo.
— Que o apocalipse está
próximo. Vovó deve estar usando a
internet.
Sábado à tarde decidi parar de
protelar o encontro com meu pai. Por
mais complicado que seja, é minha
família e não vale a pena seguirmos
assim.
Entro no carro e sigo caminho
até a residência dele, do outro lado do
lago. Meu pai vive em uma casa imensa
na beira d'água com todo luxo que o
dinheiro pode comprar, ao menos aqui
em Lagos.
Como disse antes, Henrique
Duarte não é uma pessoa ruim, é um
homem de negócios que apoia políticos,
que por sua vez o auxiliam a encontrar
investidores e sustentar seus grandes
projetos. Como o shopping em que
Robin trabalha, que é um de seus
empreendimentos.
Não a joalheria, o shopping
mesmo. O prédio não é imenso como os
que existem nas cidades metropolitanas,
foi feito proporcional ao tamanho da
cidade. Porém, ainda assim o lucro que
obtém é inegável, isso sem considerar
os outros estabelecimentos, lojas e
empresas. Se um negócio é lucrativo
nessa cidade, o nome dos Duarte está
nos contratos de uma forma ou de outra.
Empreendendo, ou investindo e
ganhando.
Meu pai também não é
desonesto, mas as amizades por
interesse, os joguinhos de imagem
pública e autopromoção, e o fato das
pessoas nesse meio não agirem de modo
transparente o bastante para que se
possa enxergar os próprios pés
mergulhados em águas, sejam rasas ou
profundas, são motivos mais que
suficientes para que eu não queira fazer
parte de tudo isso.
Claro que tive meus momentos.
Aos vinte anos, era um típico
playboy, bancado pelo dinheiro do pai e
sem preocupações sentimentais ou
filosóficas.
Quando fiz vinte e três, conheci
Laíssa, que era amiga da minha irmã e
uma mulher linda. A partir de então, eu
sempre estava com elas quando saiam e
Laíssa dormia em nossa casa, passava
os fins de semana também e fomos nos
aproximando bem rápido.
Quando finalmente a beijei já
estava louco por ela e a pedi em
namoro. Ela aceitou, eufórica. Era uma
mulher fisicamente espetacular, andava
sempre muito bem vestida e ostentava a
mim como se fosse um prêmio.
Sua postura não me incomodava
naquela época, eu achava natural e não
parava para fazer uma análise do que
nós realmente éramos, afinal também a
exibia como a um troféu. Como se
fôssemos um casal de celebridades
fúteis.
Ela era educada, divertida e
estava sempre disposta ao que eu
propunha. Enquanto rodávamos Lagos
em meu carro do ano — porque sempre
trocava por um modelo melhor e mais
caro — íamos aos melhores
restaurantes, eu bancava suas compras e
a levava em viagens, nós fomos felizes.
Durante quase três anos
estivemos juntos e as coisas apenas
mudaram quando eu amadureci. Gostaria
de ter uma história bonita de amor para
contar, de como a paixão por uma
mulher me transformou, mas não foi
assim que aconteceu.
Vendo dia e noite as pessoas
vazias e superficiais que rodeavam meu
pai, movidas por seus egos e sugando
tudo que podiam onde quer que
estivessem, decidi que não queria aquilo
pra mim.
Não é um problema ter dinheiro,
é saudável e eu, como todo mundo,
também gosto. O problema são as
relações movidas apenas por status e
poder, o fato de não se discernir quem
são seus amigos reais daqueles que
apenas acham viável estar por perto.
A natureza humana, o egoísmo,
as vontades, os relacionamentos, assim
como a preocupação honesta com outras
pessoas, a humanidade... Tudo isso
passou a ocupar um espaço cada vez
maior nos meus pensamentos, até que
decidi o que queria fazer do meu futuro.
Escolhi psicologia para ajudar
outros a encontrar um norte, a entender o
quanto o mundo é complexo. Meu pai
desaprovou de imediato, afinal sua
intenção de que eu aprendesse com ele e
um dia assumisse seus negócios sempre
havia sido muito clara.
Laíssa tentou me fazer mudar de
ideia, me mostrar porque seguir os
planos que meu pai havia traçado pra
mim era a melhor opção, mas expliquei
a ela como pensava, tentei expor o
quanto havia mudado e esperei por um
apoio, que nunca veio.
Por mais alguns meses,
permanecemos em uma relação. Talvez
ela imaginasse que era apenas um
capricho do rapaz mimado que conhecia.
Mas quando me mudei e abdiquei do
dinheiro dos Duarte, abrindo mão de
tudo, exceto do meu carro, que havia
sido comprado com a herança que
recebi da minha mãe, ela acabou
descobrindo que não me amava tanto.
Senti a dor da traição e foi aí
que entendi que havia tomado a decisão
certa. Laíssa fora apenas a primeira de
muitas outras pessoas interesseiras que
surgiriam em meu caminho, se eu
prosseguisse na vida que levava. Eu não
viveria rodeado dessa gente.
Quando enfim paro o carro
diante dos portões e toco o interfone,
sou atendido por Marta, que solta um
grito ao ouvir que sou eu e libera a
entrada rapidamente. Estaciono na porta
da frente da casa, ela é rodeada por
coqueiros e muito verde, os jardins
continuam bem cuidados.
Marta é uma senhora de meia
idade, que trabalha nessa casa desde que
eu era moleque e ela, bem mais jovem.
A vejo saindo pela porta, correndo ao
meu encontro.
— Dom! Não acredito nisso,
olha só pra você! É um homem feito, tão
bonito...
Pelo modo como fala, pareço ter
sumido por anos e não foi bem assim.
Vim para casa muitas vezes durante a
faculdade e sempre eu e meu pai
discutíamos a respeito do curso, quando
ele levantava o assunto.
A última vez em que estive aqui
deve ter mais de um ano, próximo à
minha formatura, quando ele declarou
que não iria, que eu não o queria por lá
e ressaltou outra vez minhas escolhas
irresponsáveis. Desde então, não nos
falamos mais.
— Oi, Marta! — Aproximo-me e
lhe dou um abraço forte e um beijo
estalado na bochecha. — Estava
morrendo de saudades!
— Mentiroso — retruca me
dando um tapa no braço. — Se
estivesse, teria vindo antes. Onde já se
viu...
Planejo uma desculpa para dar a
ela, mas bem a tempo Bárbara surge na
porta com um sorriso radiante.
— Ah, Dom... — Ela desce os
poucos degraus rapidamente, vindo em
minha direção. — Que saudade, meu
filho!
A abraço também apertado e nos
demoramos um pouco nisso. Bárbara
nunca substituiu minha mãe, eu já era
adulto quando ela e meu pai se casaram.
Estava na faculdade quando se
conheceram, mas sempre nos demos bem
e os dois, por mais diferentes que sejam,
ainda parecem muito apaixonados.
— E a Alice? — pergunto por
minha irmã.
— Saiu, mas não se preocupe
com isso. Logo ela volta...
Aquiesço, mas me sinto um
pouco nervoso. Minha irmã sempre
consegue deixar o clima um pouco mais
leve, caso esteja pesado, e sua presença
acaba por facilitar as coisas.
— Vem, menino. Entra aqui... —
Bárbara está sorrindo, abrindo caminho
para dentro da casa e eu a sigo. É
incrível que eu tenha crescido nesse
lugar e vivido a maior parte da minha
vida aqui e ainda assim me sinta fora do
lugar. Não é a casa em si, mas o receio
de que não seja mais bem recebido.
— Bárbara — chamo. — Vou
ficar na sala, vamos conversar lá.
Ela me olha por um momento e
aquiesce, entendendo meu nervosismo.
— Tudo bem — fala. — Vou
avisar seu pai que está aqui.
Aceno concordando. Ela
compreende perfeitamente minha
intenção. Me mantenho na sala, afastado
do caminho do seu Henrique caso ele
não queira me ver e ao seu alcance, caso
queira.
A vejo entrar pelo corredor, que
sei que conduz ao escritório, e me sento
no sofá branco, na sala imensa. Marta,
que veio logo atrás de nós, passa por
mim sorrindo e indo direto para a
cozinha. Se eu bem a conheço, foi
preparar alguma coisa para me obrigar a
comer.
Olho ao redor e noto que nada
mudou. Claro que não estive fora por
tanto tempo, mas ainda assim, alguns
detalhes pareciam esquecidos e as
lembranças de tudo que vivi aqui voltam
agora com força total. Sobre a enorme
lareira, vários porta-retratos estão
dispostos e abro um sorriso ao observar
as fotografias.
Me levanto e caminho até lá.
Como sempre, a lareira está
impecavelmente limpa, afinal, quem
usaria uma coisa dessas em um clima
como o nosso? É muito mais um enfeite
que qualquer outra coisa. Logo na frente,
vejo uma fotografia minha com Alice e
nossa mãe, estamos abraçados e
sorrindo, antes de as coisas ficarem
tristes.
O sorriso dela era lindo, mágico.
No quadro seguinte, papai e
Bárbara estão abraçados no dia em que
se casaram. Não houve festa, meu pai
era viúvo e ela também, então
decidiram-se por um segundo casamento
discreto, pareciam muito contentes na
fotografia.
Ao lado dessa, vejo Alice
sorrindo para a câmera em sua festa de
quinze anos. Parece uma princesa de
contos de fadas e eu estou ao seu lado,
mais afastado como um bom príncipe,
dando destaque a ela.
Quando chego à última foto, paro
e a pego nas mãos. É a imagem sobre a
qual Bárbara falou outro dia. Estou
vestindo minha beca, no dia da
formatura e sorrindo para o fotógrafo.
Aquele sorriso ensaiado para as fotos
formais, apesar de me lembrar de que
realmente estava muito feliz com a
conquista.
— Bom dia... — A voz grossa
dele ecoa pela sala e deposito o porta-
retrato no lugar rapidamente.
Me viro em sua direção, minhas
mãos seguem para os bolsos da calça
porque não sei o que mais poderia fazer
com elas e meu olhar se fixa no dele por
um instante.
Meu pai era relativamente jovem
quando me mudei para estudar fora, mas
nesses poucos anos sua aparência
avançou bastante, dando a ele um ar
senhoril do qual não me lembrava.
Sempre o vi como um homem
forte, imponente, mas agora já o enxergo
de outro modo. Ainda imponente, porém
mais frágil, mais humano. Talvez minha
visão é que tenha mudado.
— Bom dia, pai.
Ele acena, parecendo achar
aquilo certo.
— Faz tempo desde a última vez
— fala, sentando-se no sofá e indicando
o outro para que eu me sente. Quando foi
que chegamos a isso? Estou sendo
convidado a me sentar em minha própria
casa.
Me sento ainda assim.
— Pai... — chamo, me
lembrando do porque estou aqui. — Sei
que não concorda com minhas decisões,
que ficou chateado por não ter seguido
seus passos, feito o que esperava de
mim, mas nós somos...
— Família, Dominic — ele diz,
assentindo. — Exagerei demais na
última vez que nos falamos.
Vejo Bárbara entrar na sala
nesse momento e tomar seu lugar ao lado
dele, sentando-se no braço do sofá e
apoiando a mão no ombro curvado do
marido.
Marte entra também nesse
instante e coloca uma bandeja diante de
mim, ignorando meu pai e Bárbara. Ela
sempre bajulou Alice e eu além do
apropriado.
Sorrio para ela, grato, e pego
uma bolacha do pratinho que colocou à
minha frente, apenas para que não fique
chateada. Ela parece satisfeita e deixa a
sala novamente.
— Eu sinto muito, pai. Sei que
tinha planos para seus negócios, mas eu
não quero fazer isso. Não me importo de
tomar conta das coisas quando o senhor
não estiver mais aqui, mas espero que
isso demore muito tempo.
Ele apenas continua
concordando com o que eu disse, mas
não diz nada. Sua esposa, por outro
lado, segura na mão dele e me encara
com o olhar gentil e um tanto
melancólico.
— Dom, seu pai não se importa
com isso. Ficou irritado e esbravejou
bastante, Deus sabe que ele tem um
temperamento difícil, mas as
preocupações eram todas para você,
sobre seu futuro.
Me calo por um instante e olho
dela para ele, que não diz nada que
negue a afirmativa.
— Como assim?
— Seu pai construiu um império,
pode não ser um bilionário, mas fez tudo
com muito trabalho duro e pensando que
um dia você assumiria os negócios. Sua
irmã também estaria segura e
financeiramente bem. Para ele, tudo que
fez toda sua vida era uma segurança de
que nunca teriam que se preocupar com
dinheiro.
Ela direciona um olhar amoroso
a ele que se mantém quieto, apenas
ouvindo. Estranho sua atitude, tão
complacente, passiva.
— Quando você escolheu outro
caminho, um que nós sabemos que nesse
país não é dos mais remunerados, ele se
preocupou, nós nos preocupamos. Ver
você estudando enquanto morava em
uma casinha minúscula, sem condições
para se manter de maneira adequada...
Você ainda vai ter um filho, Dominic, e
vai entender que nada está acima dos
filhos.
Continuo os fitando sem entender
bem como a conversa tensa que pensei
que iria ocorrer, se transformou em algo
melodramático e de reconciliação sem
que eu precisasse me esforçar.
Vejo quando meu pai beija a mão
dela, agradecendo pelas palavras ou
algo assim.
— Certo, posso entender essa
inquietação, pai. E sei que sua intenção
não foi ruim, assim como a minha
também não. Mas o que está
acontecendo? Por que estão sendo tão
tranquilos com isso hoje? Por que o
senhor decidiu lidar bem com minhas
vontades agora, de repente?
Nenhum deles fala nada, mas a
troca de olhares que presencio me diz
que há muito nessa história que não
compartilharam comigo.
Dessa vez ele mesmo fala:
— Eu só não quero que minha
vida passe sem ter as pessoas que
importam ao meu lado. Se posso evitar
isso, se está nas minhas mãos ter um
bom relacionamento com meu filho, não
vou deixar de fazê-lo por orgulho e
desentendimentos bobos. Vejo o quanto
minha esposa sofre por não ter a família
por perto e não posso manter você
afastado se podemos nos consertar.
Isso eu compreendo. É
exatamente o mesmo motivo que me fez
vir até aqui, lidar com nossas diferenças
para que as coisas possam ficar bem
entre nós.
Somos família e não existe razão
forte o bastante para impedir uma
reconciliação.
Abaixo a cabeça, ainda
refletindo sobre tudo que eles falaram,
todas as coisas que eu ensaiei dizer aqui
e que foram arrancadas da minha boca.
Uma sintonia de pensamentos que chega
a ser surpreendente.
Penso em Robin tão dedicada a
família, em Bernardo e dona Rute, tão
próximos, ligados e preocupados um
com o outro. Pequenas diferenças são
meros detalhes a se ignorar quando
existe amor.

Apesar da insistência, não cedi


ao pedido de minhas colegas para a
manicure, nem os outros programas que
inventaram. O problema não é apenas o
cuidado comigo mesma que me decidi
não ter, a vaidade. O problema são as
companhias e a estranheza do convite.
— Mas Robin — insistiu Paula.
— É uma oportunidade para nos
conhecermos melhor, trabalhamos
juntas, você não acha importante que
sejamos amigas?
Não, não acho mesmo.
— Sei disso — respondi com
educação. — Mas não posso mesmo,
meu filho está esperando e não tenho
quem fique com ele agora à tarde.
Giovana faz um beicinho, que
com certeza acha que é fofo, mas na
verdade fica ridículo em uma mulher da
idade dela, além de disparar os alarmes
de falsidade, afinal, era ela que falava
mal de mim dias antes, sem nenhuma
vergonha.
— Então semana que vem? —
questionou.
— Quem sabe... — ponderei,
apenas para tirá-las do meu pé.
— Pode ser cabeleireiro, ou uma
voltinha nas lojas — sugeriu Paula. — A
gente combina.
Mas por que de repente estão
interessadas em sair comigo? Preferia a
versão fria e odiosa das duas. As vejo
deixar o estacionamento e apenas então
ligo o carro. Ou tento ligar, porque
apesar de dar partida várias vezes,
simplesmente não acontece nada,
completamente morto.
Ótimo. Tudo que eu não posso
ter agora é uma despesa a mais. Vou ter
que vir a pé para o trabalho e apesar de
ser perto, não me inspira nenhuma
animação.
Será que vou ser multada se
deixar o carro aqui?
Estou ponderando a ideia,
quando ouço uma batida no vidro, olho
para o lado e encontro o olhar curioso
de André.
Abaixo o vidro e o vejo abrir um
sorriso desagradável.
— Não quer ligar?
Faço que não com um gesto.
— Deixa eu dar uma olhada... —
Ele caminha até o capô do carro e eu o
abro, contra minha vontade. Como se ele
fosse entender algo sobre isso.
Dito e feito. Instantes depois o
vejo voltar até a janela arrumando o
terno bem cortado.
— É, infelizmente não sei o que
houve, mas se quiser posso pedir a um
mecânico amigo meu pra vir dar uma
olhada.
— Não precisa, obrigada. Vou
deixá-lo aqui e amanhã resolvo isso —
falo, antes que ele acabe fazendo isso e
eu precise pagar com o dinheiro que não
tenho.
— Tudo bem, vem comigo então.
Te deixo em casa. — Ele passa as mãos
pelos cabelos, claramente irritado com o
desdobramento do seu sábado.
— Não precisa, moro bem
pertinho daqui e vou andando.
Tiro a bolsa do carro e abro a
porta, ele se afasta para que eu saia e
então questiona outra vez:
— Tem certeza? Vou ter que
fazer um desvio grande, mas não é um
problema exatamente.
Que babaca. Eu nem disse onde
moro, como ele pode saber que seria um
desvio grande?
— Absoluta, obrigada.
André se despede com um aceno
e começa a se afastar, antes de se
distanciar muito, acaba se virando outra
vez:
— Escuta, sobre aquele dia no
escritório, mantenho o que eu disse, mas
percebi que as outras funcionárias se
viram no direito de te tratar mal.
Conversei com elas e prometeram que
seriam mais... cordiais. Eu não queria
tornar seu trabalho difícil, só estava
pensando nos interesses da empresa,
como te falei. Você é uma mulher muito
sensual, Robin, não quis dizer o
contrário.
O que? Como se eu quisesse que
me olhasse dessa maneira. Eca... E eu
sabia que aquela disposição toda delas
não era sem motivo.
— Não tem problema, André.
Elas estão sendo legais, se é o que quer
saber.
Ele assente e volta a caminhar.
Eu sigo para o lado oposto com a bolsa
no ombro e aproveito o tempo de
caminhada para pensar em todas as
mudanças que vem acontecendo na
minha rotina, tão bem estabelecida, e na
minha vida planejada dentro do que eu
escolhi viver.
O emprego em um lugar novo, as
pessoas que não conseguem se
acostumar a alguém que não se adapta a
elas, o apartamento, vovó Rute em casa
com a gente, Dominic.
Ele é a maior mudança de todas
essas, mesmo que não tenha nada demais
para se dizer. Mas a aproximação sutil e
o modo como venho dando a ele cada
dia mais um pequeno espaço, a maneira
como desde o princípio ele conseguiu
arrancar de mim reações que não
imaginava mais poder ter, já são muitas
diferenças.
Os sorrisos pequenos que a cada
dia ficam maiores, a confiança que aos
poucos ofereço, no sentido de
dividirmos a casa, os momentos e as
pessoas mais importantes na minha vida.
Além disso, as conversas, o modo como
ele simplesmente olha, enxergando tanto
e ao mesmo tempo não vendo nada. E as
sensações físicas.
Em meio as minhas divagações,
acabo fazendo um adendo antes da
admissão final.
Fácil. O que é fácil, em
absoluto? Fácil é fazer o que se deseja,
chorar de tristeza, arfar de surpresa,
comer tendo fome ou agasalhar-se no
frio. Difícil tem outro significado,
mantendo ainda o sentido.
É muito difícil realizar uma
tarefa quando seu coração não está de
acordo. É dificílimo despejar terra
sobre sua alma que clama por água.
Foi fácil para mim deixar
algumas coisas de lado, a vaidade foi
uma delas. Não que eu não gostasse de
me arrumar, de vestir-me bem. Eu
gostava, mas nunca vivi em prol de
aparências. Quando ocorreu o acidente,
me vi sozinha e com meu filho no ventre,
depois nos braços, aquilo foi natural, foi
espontâneo.
Por que eu me arrumaria? Não
tinha mais um namorado, mas tinha um
filho a caminho, alguém que dependeria
unicamente de mim. As coisas mais
superficiais foram colocadas de lado
sem que precisasse pensar sobre elas.
Ao menos no início, depois... Depois foi
uma decisão tomada especialmente a fim
de afastar interesses amorosos.
Misturar-me. Não atrair
atenção. Passar despercebida. Tornar-
me invisível.
Fácil foi afastar-me da maioria
das pessoas, selecionar melhor os
poucos amigos, não compartilhar meu
passado, meu segredo, mesmo porque
era a última coisa sobre a qual eu queria
falar.
Difícil, quase venenoso para
mim, foi desistir da confeitaria, dos
meus sonhos de futuro, daquilo que eu
amava — amo — fazer e começar um
emprego novo, do qual nunca gostei.
Mas era justo, ainda é. Nada mais do
que mereço.
Complicado foi viver dia após
dia sem minha família, convivendo com
a culpa, a minha e a que atribuí a minha
mãe. Difícil foi afastá-la todas as vezes
que buscou aproximar-se, recusar seus
cuidados quando tanto precisei de um
abraço, esconder o neto para que ela
acabasse por desistir de nós, rasgar os
cheques que chegavam anonimamente
vez ou outra, quando eu me esforçava
para comprar o básico para
sobrevivermos.
Foi fácil me afastar do contato
físico. Foi muito fácil não fazer sexo
durante cinco anos, não havia em mim
uma gota de vontade, de desejo. Tudo
havia morrido também.
Mas agora é difícil. Desde que
meus olhos o viram pela primeira vez, o
corpo bonito ainda molhado do banho,
alguma coisa acordou dentro de mim.
Me recusei a entender, a enxergar o
óbvio.
Demorei a aceitar que seus
sorrisos me incomodam porque eu gosto
de cada um deles e também a assumir
que seu cheiro, sua presença, me
desestabilizam mais que os sorrisos. E
com certeza, levei um bom tempo para
admitir que o que sinto quando o vejo é
desejo.
É claro que não percebi antes,
afinal, eu pensava que havia matado a
sexualidade em mim muito tempo atrás,
de modo fácil.
Por que então agora é tão difícil
extinguir essa labareda decidida a
queimar meu corpo e me consumir até as
cinzas?
Passa pouco da hora do almoço
e já estou exausta. Considerando que fiz
o caminho para casa andando enquanto
carregava minha bolsa e alguns
ingredientes que comprei no trajeto para
o jantar, não é de se espantar que quando
finalmente giro a chave na porta para
entrar esteja suando e em minha pior
aparência.
Uma coisa fascinante da minha
nova residência é que sempre quando
chego e entro na sala, não sei o que vai
acontecer. Posso ser atingida por um
brinquedo voador, encontrar um homem
seminu, móveis novos sendo montados
ou alguma das sandices da minha avó.
Ainda que já espere por algo nesse
sentido, sempre há a possibilidade de
ser surpreendida.
Vovó Rute está sentada no sofá,
conversando com uma moça que deve
ser um pouco mais nova que eu e é
extremamente bonita. Paro na entrada
tentando imaginar o que está
acontecendo aqui, quando sou notada.
— Você chegou, meu amor —
vovó diz entusiasmada. — Que bom, a
sua amiga Mari deixou algumas coisas
pra você, a sacola está no seu quarto.
— Oi, vó... A Mari? — pergunto
me aproximando e vejo o olhar da
mulher recair sobre mim, minhas roupas
e provavelmente o brilho de suor no meu
rosto, emoldurado pelos cabelos
revoltos. — Tem certeza? A Mari não
mora aqui.
Minha avó me olha feio, de
modo que seu ponto fica claro antes
mesmo que ela o explique:
— Acha que eu, logo eu, não
guardaria um nome? Ela disse que se
chamava Mari, tenho certeza disso, falou
também que vai te ligar e que combinam
de sair depois porque ela vai passar o
final de semana na cidade — fala,
pontuando as palavras com gestos.
— Certo.
Meu olhar então se desvia para a
mulher que ainda me fita, parecendo
curiosa. Quando nossos olhares se
encontram ela abre um sorriso e fico
sem saber exatamente como agir, mas
algo me diz que não é uma visita para
mim.
— E você, é? — questiono,
afinal, ela está no meu sofá.
A moça joga os longos cabelos
pretos para trás e cruza as pernas dentro
da saia minúscula.
— Estou esperando o Dom,
vamos sair para almoçar.
A resposta dela vem e me atinge
com uma força inesperada. Minhas mãos
ficam geladas quase no mesmo instante e
meu coração acelera. Não imaginava
que isso fosse acontecer comigo um dia,
não depois de tanto tempo. Dom.
Controlo as sensações e volto os
olhos para minha avó, que tem um
sorriso inocente no rosto.
— E o Minduim?
— No quarto — responde. —
Está te esperando para te pedir alguma
coisa.
Assinto e passo por elas sem
mais uma palavra. Deixo as sacolas que
trouxe sobre a mesa e tento esquecer que
tem uma pessoa usando um trapo sobre
as pernas sentada na sala, esperando o
único maldito homem que conseguiu
despertar tudo que eu havia acreditado
estar morto dentro de mim.
Ciúmes. Nunca fui uma pessoa
ciumenta, nem mesmo antes do acidente,
e agora isso. Não é só pelo fato de que
ela pode e vai sair com ele, de que os
dois vão ficar juntos, mas além disso,
sei muito bem a imagem que Dominic
tem de mim, a única que mostro para ele
e para os outros. Por mais que seja
tolice e não faça sentido, afinal, eu
escolhi viver assim, não consigo deixar
de nos comparar e saber que não tenho a
mínima chance de atraí-lo, quando ele
pode estar com alguém como ela.
Não que eu queira uma chance,
claro.
Depois de guardar as compras na
geladeira e no armário, deixo a cozinha
determinada a ver meu filho e tirar de
uma vez essa bobagem da cabeça.
Dominic é meu colega de apartamento e
nada mais que isso.
Seria muito mais fácil se ele não
escolhesse esse exato momento para sair
do quarto e acabar por bloquear meu
caminho para o corredor.
— Você chegou! — Ele abre um
sorriso luminoso e sinto um nó na boca
do estômago. Droga, por que ele tem que
sorrir assim?
Fico parada no lugar, séria e
esperando, me esforçando para fazer
essa onda nova de sensações retroceder
e tudo só parece piorar quando o cheiro
do perfume dele me alcança.
Dominic está usando uma
camiseta de gola polo rosa e bermuda
cargo branca. Nunca o vi vestido assim,
é casual e social ao mesmo tempo, os
óculos escuros estão parados sobre os
cabelos meio úmidos e o efeito dele em
mim é terrível.
Terrível, porque eu não podia,
não devia me sentir assim, tão atraída
por ele.
— Está tudo bem, Robin? — ele
pergunta, apoiando a mão no meu
ombro.
Me lembro do estado em que me
encontro, descabelada, suada e nas
minhas roupas ridículas de sempre. A
imagem da morena sensual no sofá me
volta a mente e tiro a mão dele de cima
de mim rapidamente, aproveitando sua
surpresa para passar para o quarto de
Bernardo sem responder nada.
Ainda sinto seu olhar nas minhas
costas por um momento, mas entro no
cômodo e fecho a porta atrás de mim.
Bernardo se levanta do chão
onde brincava entretido com alguns
carrinhos e vem correndo abraçar
minhas pernas.
— Mamãe, que bom que você
chegou. Eu não quero mais isso de
frérias.
Me abaixo para ficar da altura
dele e me esforço para concentrar minha
atenção, nesse momento, na pessoinha
que me fita com os olhinhos claros.
— Por que, filho? Férias são
para se divertir, suas aulas voltarão logo
— respondo.
— Mas não é divetido. Não tem
nada pra fazer e a vovó não quer
brincar.
Apesar de dizer a maioria das
coisas bem certinho, mesmo em sua voz
aguda de criança, Bernardo ainda me
presenteia com algumas frases
engraçadas e palavras pela metade, ou
invertidas.
— Ela disse que não queria? —
Estranho seu comentário, porque vovó
Rute sempre adorou brincar com ele.
— Disse, puque aquela moça
chegou e ela falou que tinha que fazer
sala até o Dominic chegar. Mas a sala já
tá pronta. — Bernardo mostra as
mãozinhas para o lado como que para
dar ênfase ao que disse. — Eu fali para
ela que não tem que fazer...
— Falei, amor — corrijo. — A
vovó disse que você queria pedir
alguma coisa pra mamãe. O que é que
meu Minduim quer? — Faço cócegas
nele que se desmancha de rir,
esquecendo a ideia da sala bem rápido.
— Cookies, mãe. Quero cookies!
— grita, meio desesperado, se
desvencilhando.
Pois bem. Que seja, então. Não é
noite da sobremesa, mas sinto que um
pouco mais de açúcar hoje é tudo que
precisamos.

Mas que merda foi essa? Da


última vez que nos falamos ontem à
noite, depois do ocorrido com a toalha,
ela parecia envergonhada, mas isso era
compreensível. Fui ver meu pai, Robin
foi trabalhar e só nos encontramos
agora. Eu não posso ter feito alguma
coisa errada se nem por perto estava.
Por que então ela me ignorou
completamente e foi tão ríspida?
Chego à sala, encontro Alice e
dona Rute. Elas estão conversando, mas
não consigo prestar atenção ao que
dizem, apenas penso no que pode ter
acontecido para Robin agir daquele
jeito.
— Vamos? — Minha irmã
chama, levantando-se em seguida.
Apesar de querer voltar e descobrir o
que aconteceu, Alice está me esperando
tem tempo. Quando cheguei, ela já
estava aqui.
— Me dá só mais um minuto? —
peço e a vejo assentir.
Caminho para a cozinha ao invés
de ir onde quero. Capturo uma caneta
sobre a geladeira e um post-it dos que
Robin colocou na porta, um quadradinho
maior, e faço meu milagre para que as
palavras caibam dos dois lados.
Robin,
Fique bem. O mundo já roubou
sua alegria por tempo demais, não o
torne vitorioso. Visitei tantos lugares,
vivi tantas coisas e ansiei por cada
novidade em minha vida, mas sinto que
nunca esperei tanto algo como
aguardei ouvir o som da sua risada e
quando aconteceu, valeu cada segundo
de espera. Não cale a sonata que vem
do seu ser.
Deixo o bilhete sobre a mesa,
volto para a sala e me despeço de dona
Rute, antes que mude de ideia e rasgue o
papel.
Honestamente, eu não sei porque
fiz isso, mas não quero analisar demais.
Ajudo tantas pessoas todos os dias,
agindo exatamente assim. Por que não
ela? Por que não alguém com quem me
importo e que posso ver dando um passo
de cada vez, apenas sobrevivendo,
resistindo dia após dia?
Ainda estamos a caminho do
restaurante, quando Alice decide tocar
no assunto que nem mesmo esqueci.
— Então... Aquela sua colega de
apartamento, Robin, certo? Meio
estranha ela...
Desvio os olhos da rodovia um
instante e a fito, mas volto a me
concentrar no trânsito em seguida.
— A Robin não é estranha. Só é
um pouco diferente, principalmente das
mulheres da idade dela com quem você
convive. É uma outra realidade, só isso
— defendo e me sinto mal por isso. Por
que estou agindo de modo tão protetor?
Parece que estou meio ferrado.
Alice não insiste, apenas faz um
gesto de cabeça como quem deixa pra lá
e se concentra na paisagem a nossa
volta.
Quando chegamos ao restaurante,
nos sentamos em uma área aberta aos
fundos dele. É um lugar gostoso e que
tem a vista do lago. Vários clientes
ocupam outras mesas, mas nessa região
isso é bem comum. Tudo está sempre
lotado, especialmente aos fins de
semana.
Na beira do lago do lado oposto
à casa do meu pai, a maioria das
propriedades é comercial. São
restaurantes como este, cafés, algumas
lojas e uma área verde imensa, onde as
famílias fazem piqueniques e as crianças
se divertem.
Minha irmã adora esse lugar,
sempre que nós dois estamos em Lagos,
acabamos vindo aqui. Mas a verdade é
que Alice ama mesmo é ser livre, viajar
e de preferência para longe.
— E então? O que você vai
querer comer? — pergunto logo que nos
sentamos e recebemos os cardápios.
Alice analisa os pratos no papel
em sua mão, mas sei que é apenas um
ritual. Todas as vezes ela pede a mesma
coisa.
— Filé à parmegiana, salada e
arroz — diz, comprovando minha
afirmativa. — Para dois. — Decide por
mim.
Uma garçonete anota nosso
pedido e nos deixa a sós outra vez.
— Você demorou chegar —
comenta. — Onde estava?
— Vai mesmo fingir que não
sabe? Aposto que a Marta te ligou para
contar assim que sai de lá — falo,
brincando.
Alice revira os olhos, mas acaba
rindo.
— Na verdade, você ainda
estava lá quando ela telefonou. Por isso
te esperei, sabia que não ia demorar
muito.
— Duas fofoqueiras, vocês —
respondo, ainda achando graça.
— Imagina as fofocas que vou
fazer quando chegar em casa. Antes,
tinha um menininho morando com meu
irmão. Agora também tem uma
senhorinha muito falante e sem citar a
mãe do menino que você jura que não é
esquisita, mas que me pareceu um poço
de falta de educação.
E voltamos ao assunto.
— Ela não é mal educada. Só é
tímida... Não fala muito com outras
pessoas — explico, sem saber por que.
Mas me sinto na obrigação de a
defender, porque eu sei que é a verdade.
— Certo. Me diz uma coisa,
como foi que vocês acabaram morando
juntos? E se me lembro bem, tem poucos
dias que você estava fazendo tudo o
possível para que ela se mudasse de lá,
até a deixou pensar que eu era uma
amante casual... O que foi que mudou,
hein?
Um estalo une as palavras dela e
as atitudes de Robin. Só pode ser isso,
ela me pediu para não levar mulheres
para casa e eu não as apresentei.
— Alice, você disse a Robin ou
a dona Rute que era minha irmã?
Ela está achando graça da
situação.
— Claro que não, né? No
começa você queria que ela pensasse
besteira, dessa vez eu não sabia o que
devia falar, então só disse meu nome.
Pra Robin disse que estava te esperando
e só.
Um sorriso idiota insiste em
insinuar-se no meu rosto. Será que ela
ficou com raiva porque prometi que não
levaria ninguém? Ou ficou com ciúmes?
Uma besteira pensar nisso, sei que ela
não tem razão para sentir ciúmes de mim
e eu nem deveria gostar da ideia, mas
depois de tudo que me fez passar com
meu sonho erótico, Robin bem que
merecia se sentir assim.
— O que foi? — Alice pergunta
no mesmo momento em que nossa
comida chega.
— É que ela estava esquisita
quando a encontrei antes de sairmos.
Agora que entendi que era por isso. Eu
deixei um bilhete, mas acho não devia
ter feito...
Alice afasta os talheres para que
a garçonete a sirva.
— O que aconteceu? Ela está
falando em suicídio? Alguma crise? Tem
que ser algo muito sério pra justificar
um de seus textos filosóficos em pleno
sábado.
Eu a encaro sem entender nada.
De onde saiu aquilo?
— Do que você está falando?
Robin não é minha paciente. Eu só... sei
que ela precisa. — Prefiro não dizer
que a mensagem que deixei fala muito
mais do que eu diria para qualquer
paciente.
— Hum, quantos anos ela tem?
— Alice pergunta.
Parece que não sou tão bom em
disfarçar as coisas quanto gostaria.
— E o que isso tem a ver? —
questiono. — Ela é só alguém que quero
ajudar e se eu posso, por que não fazer?
Espero que a garçonete também
me sirva e agradeço, vendo-a se
distanciar em seguida.
— Pelo esforço em justificar e
se explicar, acho que ela deve ter uma
idade apropriada, apesar de dificultar
que alguém entenda isso com aquelas
roupas e tal. Você está transando com
sua colega? — Sempre direta, Alice
pergunta sem rodeios.
Quem dera...
— Claro que não, Alice. A
família dela mora lá. Não é nada disso...
— Uma relação em outro nível.
— A engraçadinha brinca. —
Conhecendo a família, morando juntos.
— Está começando a me irritar.
Sabe muito bem que não é assim, eu não
a deixei acreditar que estava com uma
mulher no quarto? Se estivesse saindo
com ela, por que faria isso?
Ela sorri diabolicamente, como
só as irmãs sabem fazer.
— Então desembucha! Qual o
problema dela? E vocês não tem nada
mesmo? Porque fala sério, é muito a sua
cara depois de tanto tempo sozinho,
arrumar justo uma doida.
— Alice, já cansei de te explicar
que eu não sou psiquiatra, meus
pacientes não são loucos.
Ela dá de ombros.
— Ela não é sua paciente, você
mesmo disse — retruca.
— Primeiro: tanto tempo
sozinho? Nós quase não nos vimos nos
últimos anos, como pode saber algo
assim?
Alice revira os olhos e termina
de mastigar a comida, antes de falar:
— Estou falando de namoro, não
de sexo. Mas fala logo da moça
descabelada.
Só falto fulmina-la com o olhar
que lhe direciono, mas acabo por
suspirar e contar o que sei.
— O pai do filho dela morreu e
Robin é muito fechada, nunca me falou
sobre isso, a avó dela que deixou
escapar. Ela parece tentar se esconder
das pessoas, naquelas roupas e nas
atitudes. Não sei muito, como pode ver...
— Muito? Você não sabe é nada!
Isso tudo é muito vago. Não descobriu
algo interessante? Acho que está
perdendo o jeito.
— Eu não quero forçar as
coisas. — Suspiro, pensando em toda a
questão envolvendo Robin e no porquê
de não ter feito as perguntas que me
deixam curioso. — Eu quero saber, mas
apenas se ela confiar em mim para falar.
Quero ajudar, mas se ela quiser isso.
— Mas então, vocês não têm
nada mesmo?
— Eu já disse que não. — Mas
me lembro do sonho e do modo como
ela ficou com a presença de Alice na
casa. — Acho que não.
— Como assim, acha que não?
— Ela une as mãos na frente do rosto,
noto as unhas enormes pintadas de
vermelho e seu sorriso ansioso.
Bufo soltando o ar e me recosto
na cadeira, tentando encontrar um modo
fácil de explicar o que nem eu entendo
bem.
— Eu não sei, nunca aconteceu
nada, mas sei que estou atraído por ela
— confesso, sem saber o motivo. Acho
que eu mesmo precisava ouvir as
palavras. — Nem sei se é recíproco,
mas mesmo que seja, não posso fazer
nada a respeito.
— Você está a fim dela! —
Minha irmã comemora em voz alta,
atraindo alguns olhares para nós e me
deixando sem jeito no processo. — Ela
é bonita, então? E não te incomoda o
fato de ela já ter um filho?
— Como assim? Você a viu... —
respondo, ignorando a outra pergunta de
propósito. A verdade é que ela ser mãe
de Bernardo não me incomoda nem um
pouco, o que é meio estranho.
Eu sempre adorei crianças,
quero ser pai um dia e Robin ser mãe,
não muda o modo como eu a vejo.
— Quero dizer sem aqueles
óculos escondendo metade do rosto, o
cabelo desgrenhado e as roupas da
Marta — Alice explica e eu volto a me
concentrar nela.
Dou risada da comparação.
— Você a achou feia? —
pergunto.
Alice parece pensativa por um
momento, mas em seguida balança a
cabeça, negando.
— E isso porque ela se esforça
muito para parecer feia — digo. —
Robin é o tipo de mulher que não
precisa se arrumar para chamar a
atenção e acho que isso é o que ela
menos quer, por isso tanto pouco caso
com a aparência. Apenas imagino como
ela ficaria usando outras roupas.
— Quer dizer que ela não se
arruma nunca? Anda toda esculhambada
todos os dias? E mesmo assim você se
interessou? Eca!
Alice faz uma careta
acompanhando o comentário. Ela
sempre foi assim, expansiva demais,
intensa e gosta de dizer o que pensa, mas
tem um coração enorme e me apoia em
tudo.
— Não é assim, sua babaca —
corrijo. — Ela usa roupas de cores
sóbrias e maiores que seu tamanho,
discretas. Não usa maquiagem e não
solta os cabelos, mas está sempre
cheirosa e as roupas não são coisas
velhas, nem nada assim.
— Me chamou de babaca? —
Pelo visto ela só escutou isso. — Eu
fico meses sem ver o cara e logo que a
gente se reencontra, mal começa uma
conversa e já vem com ofensas. – Alice
fala consigo mesma e sorri, sabendo que
nossa relação é ótima justamente pela
espontaneidade. Depois prossegue: —
Acho que se ela está se esforçando para
não chamar a atenção, provavelmente é
para que nenhum homem se aproxime,
deve ter alguma história sinistra...
Sorrio.
— Quem é o psicólogo aqui? —
indago e me endireito na cadeira,
voltando a comer.
— Bom, garanto que se eu
morasse com um cara e estivesse a fim
dele, conseguiria algumas respostas e
quem sabe um beijinho? Eu te desafio!
Abro os olhos, me assustando
com a proposta. Eu e Alice sempre nos
desafiamos, desde crianças e ela sabe
que dificilmente fujo na hora do embate,
mas nesse caso não tem a ver só comigo.
— Me desafia a o quê, sua
doida? Beijar a Robin? Só pode ter
enlouquecido.
— Você não confia no seu taco?
— Provoca. — Mostra aquele
adolescente pervertido que eu sei que
habita em você!
Ela faz um gesto dramático para
acompanhar a bobagem toda que está
falando.
— O adolescente pervertido
morreu uns anos atrás — explico. —
Além disso, acho que você está
esquecendo um detalhe muito
importante. Nós dividimos o
apartamento, eu não posso fazer isso.
— Hum, acho que não...
Quase ouço as engrenagens
trabalhando no cérebro de Alice.
— O que foi? — pergunto,
curioso.
— Não seria culpa sua se ela te
beijasse — diz, como se fosse a coisa
mais plausível de ocorrer.
— Não seria, mas jamais iria
acontecer. Ela não faria isso de jeito
nenhum.
Alice afasta o prato, deixando
seu almoço pela metade. Sei bem como
ela está empolgada porque não é o tipo
que rejeita comida, mas nada a anima
mais rápido que a possibilidade de se
meter na minha vida amorosa,
principalmente depois do fiasco com
Laíssa. Sinto que ela se acha na
obrigação de consertar alguma coisa.
— É seu papel levá-la a esse
ponto.
Faço que não com um gesto.
— Meu papel é ajudá-la com o
aluguel. Se eu puder fazer algo mais
sobre os problemas que ela enfrenta,
ótimo. Nada que vá além é meu papel.
— Mas você escreveu um
bilhete... O que dizia hein? — A mulher
tem parte com o demônio, só pode. Me
lembra disso agora...
Me recordo do papel, do que
escrevi e começo a imaginar a reação de
Robin ao ler aquilo tudo. O modo como
falei do sorriso dela talvez tenha sido
demais.
— Tá bom — admito. — Talvez
tenha ido um pouco além do que
deveria, mas ainda é contornável.
— Não mesmo! Quero o
romance, Dominic, pelo amor de Deus!
Me ajuda a te ajudar.
Dou risada do exagero dela.
— Eu falei de atração, ninguém
aqui está falando de romance.
O gesto dela é de desdém,
jogando a mão para cima como se
varresse minhas palavras.
— Claro! Afinal, ela tem um
filho, uma avó. Mas uns beijos não
assinam contratos de casamento.
Eu não deveria nem mesmo
cogitar a possibilidade, mas não consigo
tirar a porra do sonho da cabeça, o
cheiro dela, a risada. Talvez se Robin
tomar a iniciativa, se for algo que parta
dela, quem sabe eu possa apenas
acompanhar seu ritmo?
Talvez se eu a provocar o
bastante...
Arrumo o quarto de Bernardo
enquanto ele ajuda me entregando alguns
brinquedos espalhados, limpo o chão e
tiro o pó. Quando terminamos, meu filho
sobe sobre meus pés enquanto
caminhamos na direção da cozinha.
Vovó Rute e ele já almoçaram mais cedo
e eu perdi completamente a fome depois
de chegar em casa.
No entanto, fazer biscoitos,
preparar meus doces, não é algo que
faço pensando em me saciar ou aos
outros. Tem muito mais a ver com o
modo como me sinto quando trabalho, a
forma com que a alegria é natural nesses
momentos e como não me sinto culpada
por estar contente.
Quando bato os ingredientes à
mão, vendo a massa encorpar e
acrescentando aos poucos tudo aquilo
que, no final, vai formar algo delicioso e
bonito, capaz de espantar a tristeza por
algum tempo — não apenas a de quem
come o mimo açucarado, mas
principalmente a minha —, sinto que
estou no meu lugar. Em um mundo
colorido, doce e onde a tristeza não me
afeta.
— Vem, vovó. Eu e o Minduim
vamos preparar uns biscoitos e a gente
vai conversando enquanto isso — chamo
quando passamos pela sala, ainda
andando do mesmo modo.
Levantando-se do sofá, ela nos
acompanha até a cozinha e toma um
assento à mesa.
— Vai fazer o que, Robinha? —
pergunta.
Faço uma careta para o
diminutivo. Odeio esse, em especifico.
— A mamãezinha vai fazer
cookies, vovó Rutinha — Bernardo
entra na onda e eu acabo rindo.
— Bernardo! Você não pode
falar essas coisas, é muito feio. Robin,
esse menino está aprendendo a falar
palavrão na escola! — ela chama,
alarmada. — Não vai dizer nada? Eu te
disse que a escola hoje em dia só ensina
o que não presta.
Estou me abaixando diante do
armário, retirando uma tigela grande
para a massa, quando ouço o desespero
dela. Levanto-me e encaro Bernardo
com a expressão severa, procurando o
que possa estar fazendo para deixar
minha avó aflita assim.
— O que foi, vó? — pergunto
quando o vejo sentadinho na cadeira,
esperando.
— Não ouviu o que ele disse?
— pergunta, os olhos arregalados e a
feição apavorada. — Disse que você...
vai fazer uma coisa de... sabe, aquele
lugar por onde fazemos nosso cocô.
Começo a rir, antes de conseguir
corrigir o mal entendido e Bernardo
olha dela para mim, tentando entender o
que fez de errado. Quando consigo me
acalmar, minha avó está me encarando
parecendo bem chateada por eu não
chamar a atenção do meu filho pelo
palavrão que acredita ter ouvido.
— Vó, o Minduim disse que
vamos fazer cookies, que significa
biscoitos, em inglês. São aqueles com
gotinhas de chocolate, que a senhora
adora.
Noto que suas bochechas ficam
coradas quando percebe o equívoco e
seu olhar se desvia do meu rosto para a
mesa.
— Ah, bom — fala. — E eu
pensando besteira, tadinho do
Minduinzinho da vó.
A mão dela toca os cabelos dele
e Bernardo abre um sorriso. Depois se
volta pra mim:
— Mãe, cadê meu chapéu de
chef?
Abro a gaveta onde coloquei os
panos de prato, aventais e luvas e de lá
tiro o chapéu dele e o avental azul, cheio
de carrinhos desenhados.
Amarro o avental em sua cintura
fina e coloco a touca branca de ajudante
sobre seus cabelos, o preparando para
me auxiliar no preparo dos doces que
tanto gosta.
Depois de também arrumar o
meu próprio avental, pego a tigela que
separei e coloco dentro dela o açúcar e
a manteiga.
Começo a mexer e quando a
massa já está bem uniforme, deixo que
Bernardo assuma o comando, enquanto
pego o extrato de baunilha que preparei
meses antes.
— O que é isso aqui? — Ergo os
olhos do nosso preparo para fitar minha
avó, que aponta para um pedaço de
papel sobre a mesa.
O pego das suas mãos e vejo
meu nome no início do texto, o que basta
para fazer meu coração disparar e as
sensações anteriores voltarem com força
total.
Robin,
Fique bem. O mundo já roubou
sua alegria por tempo demais, não o
torne vitorioso. Visitei tantos lugares,
vivi tantas coisas e ansiei por cada
novidade em minha vida, mas sinto que
nunca esperei tanto algo como
aguardei ouvir o som da sua risada e
quando aconteceu, valeu cada segundo
de espera. Não cale a sonata que vem
do seu ser.
Aquele mísero pedaço de papel
faz com que tudo dentro de mim seja
revolvido em instantes. Cada pequena
palavra dele, ali, ativa dentro de mim
emoções inesperadas e impróprias.
Por mais reservada que eu tente
ser, Dominic sabe. Sempre notei como
ele é perceptivo, mas agora eu sei que
entende que a alegria foi literalmente
arrancada de mim e isso tem o poder de
mexer comigo. Porém, o modo como ele
diz que aguardou por um sorriso meu me
toca muito mais.
Pode ser algo profissional, por
mais que eu não esteja sob seus
cuidados psicológicos. Também pode
ser apenas amigável, já que
desenvolvemos certa relação. Mas,
quem pode convencer meu coração
idiota disso, quando ele insiste em
disparar no peito, ameaçando explodir a
qualquer instante apenas por pensar que
minhas reações possam ter algum
impacto sobre ele?
Não cale a sonata que vem do
seu ser. É a coisa mais linda que já li.
Dominic tem mesmo um dom, e é
covardia usar isso comigo. Mas
principalmente, é tolice minha me sentir
tão balançada por esse gesto, sabendo
que ele saiu agora há pouco com outra
pessoa e que deve passar a noite fora,
transando, enquanto eu como cookies.
Deixo o papel sobre a mesa e
tento voltar a me concentrar nos
biscoitos. Pego o chocolate em gotas e
me preparo para adicionar à receita,
mas ele conseguiu o feito inédito de me
tirar a felicidade mesmo dentro da
minha cozinha.
Já não consigo mais sorrir dos
comentários espirituosos da vovó e nem
ouço com atenção tudo que meu filho
diz, não estou cantarolando como
sempre faço e nem mesmo muito
concentrada.
Alterno os pensamentos entre o
bilhete e a morena estonteante que vai
estar nos braços dele por hoje.
Estou tão distraída que nem
percebo minha avó pegar o bilhete outra
vez e o ler, até que sua voz emocionada
me chama a atenção:
— Que coisa linda, minha filha!
De onde saiu isso?
Ela está enxugando uma lágrima?
Penso em não responder, mas sei
que vai acabar imaginando coisas e
tecendo um namorado imaginário, se eu
não disser logo que foi Dominic quem
escreveu.
— Dominic — respondo,
apenas.
— Ah, meu Jesus Cristinho —
vovó exclama, se abanando. — Além de
um pitéu o homem ainda sabe discursar.
Não vamos definir o que é um
discurso em uma hora dessas, então
apenas aceno com a cabeça,
concordando enquanto viro o chocolate
sobre a massa e assumo a função de
mexer.
Bernardo desce da cadeira e
corre para o lado dela, para olhar o
bilhete. Ele faz uma cara muito séria,
como se estivesse mesmo lendo e depois
se vira pra mim:
— Tombém gostei — diz.
— Ele escreve bem — concordo
para acabar com o assunto.
Mas dona Rute não desiste fácil.
— Escreve bem? Minha filha,
isso vem do coração. Você precisa sair
com ele, vão dar uma volta, tomar um
sorvete sozinhos... Ir a um parque,
qualquer coisa, pode ir hoje mesmo.
Direciono um olhar sério para
ela e franzo a testa.
— Acho que a senhora cupido
está se esquecendo que nosso poeta não
está em casa, inclusive ele já saiu para
um parque ou qualquer coisa,
acompanhado.
Ela dá de ombros.
— Aquela mocinha? Não é nada
disso, tenho certeza.
— Ah, é? — Sinto as malditas
garras da esperança se infiltrando para
dentro de mim e o pior: Nem sei por
que, afinal nunca antes cogitei a
possibilidade de me envolver com
Dominic. — Como a senhora sabe?
— Eles eram muito íntimos... —
fala, como se fosse algo bom.
— Nossa, me sinto aliviada,
vovó. Desde quando serem íntimos é
uma coisa boa? Eu, hein? — resmungo,
rabugenta.
— Então ficaria contente se não
fosse nada demais, não é? Sabia que
toda aquela história de desdenhar as
almofadas era balela... — ela comenta,
toda sorridente.
Aponto com a cabeça para
Bernardo e ela também o olha, mas ele
está distraído roubando gotas de
chocolate para prestar atenção ao
assunto.
— Mas é simples — continua.
— Dominic não moraria com você tendo
uma namorada, então a moça teria que
ser apenas uma diversão, mas eles eram
íntimos demais para apenas isso. Por
isso acho que não é nada.
Para a idade dela e levando em
consideração a quantidade de besteira
que faz no dia-a-dia, vovó Rute sabe
ordenar os pensamentos muito bem.
Ainda assim, fico calada porque não sei
até que ponto pode ter razão.
Faço as bolinhas com a massa e
pouco depois, levo a forma ao forno que
já está aquecido na temperatura ideal.
Depois, começo a limpar a mesa,
retirando o excesso de farinha dela, de
mim e do Minduim também.
— Você precisa sair, filha. Se
não for com ele, com outra pessoa.
Faço que não com um gesto e
continuo meu serviço.
— Eu vou morrer logo, não
quero saber que você ficou aqui, mais
morta que eu... Isso é muito triste, meu
espírito não vai ter paz se souber que
ficou trancada em casa. — E seu drama
apenas começou.
Estou planejando uma resposta,
mas ouço a porta da sala se abrir e os
passos dele em seguida.
Automaticamente busco o relógio na
parede e vejo que passa pouco das três
da tarde, tempo suficiente para sexo,
mas talvez, apenas quem sabe, vovó
tenha razão e não seja bem o que
imaginei.
— Que cheiro bom... — A sua
voz chega até a cozinha antes que ele
mesmo entre.
Meus olhos encontram os dele
por um instante, mas abaixo o rosto, e
volto a limpar a mesa.
— É chocolate, Minduim? —
pergunta para Bernardo, usando o
apelido pela primeira vez.
Aquela simples palavrinha faz
com que eu sinta uma vontade quase
incontrolável de olhar pra ele, de ver
sua expressão ao pronunciar aquilo e o
modo como os dois interagem, mas
resisto a isso porque me lembro do post-
it que ainda está sobre a mesa. Não
posso encará-lo, não estou pronta.
— São cookies, a gente fez. Quer
ver?
Pelo canto do olho consigo ver
quando ele pega Bernardo no colo e
segue com ele até o forno para verem os
biscoitos. Ergo os olhos um pouquinho
apenas e faço um sinal de silêncio para
minha avó, torcendo pra que dessa vez
ela consiga se conter, mas o que vejo é o
deslumbramento no seu rosto enquanto
observa os dois. E é por isso mesmo que
prefiro nem ver.
Eles voltam pra perto de nós e o
vejo depositar Bernardo na cadeira ao
meu lado.
— Oi, Robin — fala, com a voz
grave. Perto demais para que meu corpo
não reaja. — Está melhor um pouco?
— Estou muito bem —
respondo. Continuar ignorando não vai
ajudar.
Me afasto e coloco o pano sujo
na pia, retirando em seguida o avental.
— Agora, os biscoitos vão
demorar um pouco a ficarem prontos,
Minduim. Vou tomar um banho rapidinho
e depois a gente come — concluo, me
preparando para sumir da cozinha o
mais rápido possível, antes que ele
acabe parando ao meu lado outra vez,
com aquele perfume incrível.
— Falando em comer, você
almoçou, meu filho? — vovó pergunta a
ele.
Se saiu para almoçar, a resposta
é meio óbvia.
— Vó, ele saiu com essa
finalidade. — Não me contenho.
Dominic sorri, parece achar
minha irritação bem divertida.
— Almocei, dona Rute. Levei
Alice a um daqueles restaurantes na
beira do lago, a senhora conhece? Um
lugar tão romântico, muito bonito.
Vovó olha para mim antes de
responder e depois abre um sorrisinho
sem jeito.
— Não conheço, não — ela diz.
— Ah, a senhora precisa
conhecer. A Alice adorou, ficou toda
animada com nossa saída. Ela também
adora meu carro, nós passeamos e nos
divertimos muito.
Que idiota. Parece estar fazendo
de propósito.
— Vou tomar meu banho, com
licença. — Dou as costas para eles e
deixo a cozinha.
E eu sou agora obrigada a ficar
ouvindo isso? Estou me irritando muito
mais que deveria? Com certeza. Ter
ciúmes de um homem com quem não
tenho e nunca tive nada. Era só o que me
faltava.

Robin segue para seu quarto


bastante irritada.
— O que foi que deu nela? —
pergunto para dona Rute, me fazendo de
inocente, depois de ficar tentando
provocar uma reação.
Eu apenas queria saber até que
ponto ela se sentiria incomodada.
— Hum, acho que muitas coisas
— a senhorinha me responde. — Foi um
belo bilhete... — comenta, me deixando
sem jeito.
— Obrigado — respondo,
pegando o papel sobre a mesa. — Ela
leu?
Dona Rute aquiesce.
— Leu, gostou muito. Mas você
fica cutucando onça com vara curta —
fala, me repreendendo. Essa velhinha é
surreal, parece completamente
desmiolada em um momento e lúcida e
inteligente logo depois.
— Vou falar com ela...
Dona Rute concorda.
— Eu e o Minduim vamos ficar
bem aqui. Esperando você se desculpar
e convencer a cabeça dura a sair de casa
para um passeio, à noite de preferência.
Deixo a cozinha e logo estou
batendo na porta entreaberta do quarto, a
vejo de costas, colocando algumas
roupas sobre uma toalha branca na
cama.
— Robin? — chamo, agora mais
cauteloso.
— Vou tomar banho —ela
responde sem sequer se virar.
Termino de abrir a porta e entro.
— Só quero falar com você, bem
rapidinho.
— Hum... — Ainda está de
costas, remexendo as roupas e dobrando
de novo.
— Acho que devo ter feito
alguma coisa errada, mas ainda não sei
o quê. A gente estava bem ontem, apesar
de você ter ficado me encarando pelado
e tal... — Ouço um resmungo dela e
sorrio. — Mas aí quando você chegou
mais cedo nem me respondeu no
corredor e agora está toda irritada. Pode
me dizer o que eu fiz?
Finalmente ela se vira e me
encara. É a primeira vez que a vejo sem
os óculos e o efeito é arrebatador.
Por um momento não consigo me
concentrar no que ela diz, apenas encaro
os olhos verdes, grandes, rodeados por
cílios longos e cheios e tão... não sei
explicar, acho que são vibrantes,
repletos de vida. Eles não têm a mesma
tristeza que ela demonstra na maior
parte do tempo, mas agora parecem
furiosos. Ela é linda.
— O que disse? — pergunto,
porque realmente não ouvi.
— Para quem está tão
interessado em saber o que fez, não
parece muito atento — ela responde.
— Desculpe... — Minha mão vai
parar nos meus cabelos, mas acabo a
soltando ao lado do corpo. — É que
você está sem os óculos, nunca te vi sem
eles e fiquei surpreso.
— Ah... — Ela olha ao redor,
procurando onde os colocou. — É que
eu estava indo tomar banho.
— Sim, já disse isso algumas
vezes. Mas o que você dizia antes
mesmo? Sobre o que eu fiz para te
irritar...
Minha estratégia de distração
funciona, ela abandona a busca e me
fita:
— Quando cheguei, tinha uma
mulher no sofá. A mesma que adora
restaurantes românticos e seu carro... —
responde, usando o que eu disse na
cozinha, contra mim.
— Sim, Alice. O que tem isso?
— pergunto, abrindo um sorriso
debochado.
— Como assim o que tem?
Combinamos que isso não ia mais
acontecer, Dom — fala, dando ênfase ao
meu apelido e meu sorriso se amplia.
Adorei ouvi-lo em sua boca.
— Eu disse mesmo. Mas
mudando de assunto, você ao menos leu
o que escrevi? Estava em cima da mesa,
você nem trouxe pro quarto.
As duas mãos dela vão parar na
cintura e sinto que estou perto de a tirar
do sério, algo raro.
— Você é bem cara de pau,
Dominic. Escrever aquelas coisas pra
mim, com a menina da mini saia
esperando na sala. E aí volta e vem
perguntar sobre isso. — Definitivamente
é ciúme.
— Que coisas? Não escrevi
nada demais, não sei porque está agindo
assim — falo, assinando minha sentença
de morte.
— Nada demais? — fala
exaltada. — Se você não entende, não
vou ser eu a explicar. Pode me dar
licença agora?
Com meus olhos fixos nos dela,
avanço alguns passos para mais perto e
a vejo se afastar a mesma distância.
— Já que não quer dizer o que é,
vou arriscar um palpite e você apenas
me diz se eu estiver certo.
Me aproximo mais e meus olhos
agora fitam sua boca cheia, passeiam
pelo rosto delicado. Como um simples
par de óculos pode esconder tanto?
— Eu acho que você está com
ciúmes da Alice — falo, de repente.
Robin se afasta mais, agora
quase encostando na parede atrás dela.
— Não tenho ideia do porquê
está dizendo algo tão ridículo, mas se
puder sair agora...
— Não — interrompo. — Você
ficou com ciúmes sim e por isso não
falou comigo quando chegou. Por isso
também saiu da cozinha brava quando
comecei a te provocar, falando dela.
Os olhos dela se estreitam ao
registrar minhas palavras e o significado
delas. Dou mais dois passos e ela me
imita na direção contrária, encontrando
o obstáculo, finalmente.
— Você estava me provocando?
Quantos anos você tem, Dominic?
— Trinta, não sou velho demais
pra você — respondo, fingindo
interpretar sua pergunta de outra
maneira.
— Não estou falando disso... —
Apesar da firmeza nas palavras, o olhar
dela analisa a distância entre nós e
procura uma fuga. — Eu não estou com
ciúmes, só quero que respeite o que nós
combinamos.
— Eu estou fazendo isso — falo,
ao mesmo tempo que coloco minha mão
na parede atrás dela, deixando nossos
corpos a centímetros um do outro e meu
rosto ainda mais perto do seu.
Vejo a respiração de Robin se
alterar, consigo ver suas pupilas se
dilatarem e o peito subir e descer. Não
consigo desviar os olhos da sua boca e
quando a vejo passar a língua sobre os
lábios em um gesto involuntário, quase
perco o controle.
Mas não posso, ainda não.
— Dominic... — chama
baixinho, sinto o ar que sai de sua boca,
quente. — Você está muito perto.
— Não tanto quanto gostaria,
docinho.
Ela ergue um pouco o rosto na
minha direção e sua mão espalma sobre
meu peito, vejo a rendição em seus
gestos e sei que se a beijasse agora, ela
não iria recuar. Mas, se eu o fizer, perco
a chance de levá-la para sair essa noite
e agora que plantei a ideia na mente
quero mesmo sair com Robin.
— Alice. Você disse que eu
poderia trazê-la aqui...
A mão dela que está encostada
em mim me empurra para trás e ela
recupera a postura de antes.
— Eu disse? Não me lembro
disso — responde, abaixando-se sobre a
cama e pegando a toalha com suas
roupas.
— Disse que minha irmã podia
vir — falo, abrindo um sorriso lento
enquanto vejo a compreensão a alcançar.
Robin não diz nada. Se levanta
com seus pertences nas mãos e parece
um pouco envergonhada por ter ficado
enciumada e não ter percebido quem era
Alice.
— E agora, como pedido de
desculpas por ter me tratado tão mal e
me julgado assim, além de claro,
desprezado meus versos totalmente
sinceros, vai ter que sair comigo para
jantarmos fora. Sua avó não aceita não
como resposta.
Ela abre a boca, procurando as
palavras certas para responder e
provavelmente me recusar, mas deixo o
quarto rápido, antes que o faça.
O que acabou de acontecer, foi
no mínimo confuso e no máximo... Bom,
eu nem ousaria nominar as maiores
coisas que esse momento ínfimo com
Dominic em meu quarto me causaram.
Uma discussão sobre a qual eu
não tinha direito algum, atitudes da parte
dele para as quais eu não estava
preparada e reações fortes que não pude
prever.
Dominic é o tipo de homem que
envolve totalmente um ambiente com sua
presença. A partir do momento em que
ele entrou em meu quarto, preencheu
cada centímetro do lugar e inundou
minha mente também.
Um momento e lugar íntimos
demais, o modo como ele me fitava
surpreso ao me ver sem os óculos,
deveria ter me deixado apavorada. Era
daquele olhar que eu fugia, era por
aquele tipo de atenção que eu me
protegia tanto, mas ao contrário das
sensações ruins que outros momentos
com pessoas diferentes já haviam me
causado, naquele instante me senti bem.
Ver a reação dele, a intensidade
em suas expressões e em sequência de
suas ações, amedrontava uma pequena
parte de mim, mas fazia com que a outra,
muito maior, exultasse secretamente.
Repreendi-me por gostar da
atenção, por me sentir bem com o desejo
que emana do corpo dele para o meu,
por apreciar saber que não sou a única
nessa equação a enxergá-lo de modo
mais passional.
Enquanto tomo meu banho, após
vê-lo dizer determinando que vamos sair
juntos, me permito pensar na
possibilidade. Não é o tempo ao lado de
Dominic que me assusta, mas as reações
exageradas do meu corpo quando ele
está por perto e o quão fácil é me
esquecer dos motivos pelos quais estou
sozinha.
Visto um moletom surrado e uma
camiseta de mangas longas preta, arrumo
meu coque e coloco os óculos no rosto,
antes de deixar o quarto me arrastando
em minhas pantufas.
Chego até a sala e encontro vovó
e Bernardo sentados, já saboreando os
cookies.
— Vó! A senhora tirou os
biscoitos do forno? Podia ter se
queimado — repreendo.
— Que nada, filha. Se
tivéssemos te esperado, os biscoitos é
que iriam queimar — respondeu
sorrindo.
A velhinha é teimosa, mas tem
razão.
Pego um dos cookies no prato e
mordo, sentindo o chocolate ainda
quente das gotas se derretendo na minha
boca.
— Por que está vestida desse
jeito? — Vovó Rute pergunta.
— Como assim? — Olho para
minhas roupas e não vejo nada de errado
com elas.
— O Dominic foi pra
academia... Eu sabia que aquilo ali era
resultado de muito esforço... — Ignoro o
comentário e ela continua. — Pediu pra
dizer que é pra esperar por ele para
saírem. Não pode estar pensando em ir
assim...
— Ir aonde? Vocês dois
enlouqueceram! — Percebo minha voz
se alterando diante do desespero de que
realmente esperem isso de mim. — Não
vou sair com ele, isso não faz o menor
sentido.
— Por que não? Deixa de ser
boba, menina... Vocês são apenas
amigos, dividem a casa, ele é um moço
bom, não vai acontecer nada demais.
Se ela o visse no meu quarto
pouco antes, me colocando literalmente
contra a parede, duvido que manteria
essa opinião.
— Vó, eu não vou — insisto.
— Vai fazer o quê, então?
Bernardo se levanta do sofá e
vem até o prato que está ao lado da avó
para pegar mais um biscoito.
— Nada, não vou fazer
absolutamente nada.
Me distraio um pouco
organizando minhas roupas, guardando
algumas de Bernardo e cerca de uma
hora depois, minha avó me procura e
volta a insistir no assunto.
— Robinha, só um passeio
inocente. Pela sua avó que já tem até um
pé na cova — ela pede.
— Vó, não adianta insistir —
falo, exasperada. — Não posso deixar
vocês, já disse. Vamos ver um filme e
podemos jogar alguma coisa, depois vou
preparar o jantar. Mesmo que eu
quisesse sair, não teria a menor
possibilidade. Estou indo pro trabalho
com o coração na mão de deixar vocês
dois aqui, mas ao menos o seu Antônio
vem até o apartamento, me dá uma ajuda
vendo se tudo está bem. Agora, à noite
não posso contar com ele.
— Quanto a isso, já está
resolvido. — A voz de Dominic vem de
algum lugar fora do quarto e não quero
me virar e encará-lo depois do momento
que tivemos. Também prefiro manter
minha recusa sem precisar olhar para
ele, como uma covarde.
— Não está resolvido, não. Não
tem a menor chance de eu deixar os dois
aqui. Além disso, eu não vou a
encontros, todos aqui deveriam saber
disso. — O desespero é tamanho que
acabo falando mais do que deveria.
Ouço os passos dele se
aproximando, mas mantenho-me de
frente para minha cama, dobrando
roupas.
— O Minduim não pode ficar
sem jantar — continuo. Minha avó pode
passar mal e nós... nós moramos juntos,
não sei de onde vocês tiraram essa ideia
insana.
A risada dele é baixa, mas ouço
ainda assim.
— Robin, do que você está
falando? Te chamei para jantar comigo,
como amigos. Ninguém falou em
encontro aqui, eu nunca disse que estava
interessado em você dessa forma.
Fecho os olhos quando a
resposta dele me alcança. Como sou
idiota, por que fui dizer aquilo? Qual
motivo Dominic teria para se interessar
por mim como mulher? Ridícula. Agora
me sinto envergonhada por ter falado
daquele jeito.
— Eu... Eu sei, claro. — Tento
consertar. — Mas não podemos, ainda
assim — respondo em um fiapo de voz.
— Por que, mãe? — Bernardo é
quem pergunta. O vejo entrar também no
quarto, os olhos verdes me encarando,
com curiosidade.
— Agora eu vi, mesmo! —
respondo. — Até você? Por que iria
querer que eu saísse com ele e te
deixasse aqui?
— Aí é que está — Dominic fala
e se aproxima mais, até sua mão pousar
sobre meu ombro. — Quem disse que
vamos deixá-los sozinhos? Vamos jantar
todos: eu, você, dona Rute e o Minduim.
Olho para minha avó atrás de
mim e apesar de vê-la olhar pra ele um
pouco assustada a princípio, ela assente
sorrindo logo depois. Me sinto ainda
mais boba por supor que seríamos nós
dois.
— Hum, bom... Eu posso ser
meio paranoica às vezes, mas tenho
certeza de que ninguém me disse isso
antes. — Acabo me virando para o
encarar. — Você não disse que eles
iriam junto.
Dominic abre um sorriso que me
tira o ar.
Agora está vestindo uma
bermuda preta, tênis esportivos e uma
regata branca larga que oculta muito mal
seu corpo suado. Meus olhos percorrem
o trecho de pele que é revelada pela
abertura da blusa e descem por seu
corpo, antes que possa racionalizar. Ele
é lindo demais e, infelizmente, eu
enxergo isso.
— Mas eles vão — fala,
ignorando a inspeção que acabei de
fazer. — Por que pensou que eu iria
querer sair só com você?
Tá bom, agora ele está sendo
maldoso.
— E eu vou saber? Entrou no
quarto, ficou agindo estranho e soltou
essa no final — respondo de queixo
erguido. Também não vou aceitar que
aja como se eu fosse uma louca,
fantasiando coisas.
As duas mãos dele voam para o
meu rosto, o emoldurando, em um gesto
íntimo demais. Dominic vem aos poucos
assumindo liberdades que não me
lembro de ter lhe dado.
— Robin, para de pensar tanto.
Só vai se arrumar, tá bom? Não está se
casando, mudando de emprego ou
decidindo comprar um imóvel. Pelo
amor de Deus, é só comida!
Ele solta meu rosto e sinto um
formigamento no lugar onde me tocou,
mas logo sua mão vai parar na base das
minhas costas e ele começa a me
empurrar de volta na direção do quarto.
— Ei — exclamo surpresa. — O
que pensa que está fazendo, Dominic?
— Te obrigando a ir se trocar.
Tem que dar banho no pequeno ainda...
— Me arrumar... Pra que isso?
Estou bem assim.
— Você está de pantufas, Robin
— ele responde e continua me
conduzindo até pararmos diante do meu
quarto. — Vai lá, por favor. Você não
tem que passar maquiagem, pode usar o
que está acostumada... O que quiser, só
coloca um tênis, pelo menos.
Penso nas roupas dele,
geralmente mais sociais, e apenas
imagino como seria chegar onde quer
que ele planeje ir, vestida do modo
como estou.
Um tanto contrariada, entro no
quarto e fecho a porta, paro diante do
guarda-roupas e abro as portas,
pensando no que fazer.
Eu deveria mesmo ir do modo
como estou, mantendo meus princípios,
certo? Mas minha natureza feminina
ainda existe e meu orgulho está ferido.
Sim, sou muito contraditória.
Não queria ou não podia ir sozinha com
Dominic, mas me sinto mal por ouvi-lo
dizer que estou imaginando coisas, como
se nem que eu fosse a última mulher da
face da terra pudesse se interessar por
mim.
Eu não sou feia, sei disso. Não
sou bonita como uma modelo ou uma
miss, mas conheço minhas qualidades e
não sou de se jogar fora, mesmo que ele
não enxergue isso. Também reconheço
que a culpa disso é apenas minhas, mas
ainda assim...
Talvez seja o desejo ridículo que
sinto por ele, mesmo contra meu bom
senso, ou o modo como as palavras dele
me incomodaram, mas uma parte de mim
reconhece que, no fundo, quero que ele
me veja, que me note como mulher, que
me queira. E por isso acabo fazendo
concessões.
Nada muito radical, mas
considerando meu cotidiano, sei que
ainda conseguirei o surpreender.
Procuro por uma blusa escura
que seja menos básica e encontro uma
mais soltinha, de mangas largas e com
um laço sobre o busto, bem bonitinha.
Acabo vestindo uma calça que comprei
um tempo atrás, na época pesava alguns
quilos a menos e ela ficava larga. Agora
está bem ajustada nas pernas e por isso
mesmo fazia um bom tempo que não a
vestia.
Calço botas de cano e salto
baixo e coloco um pequeno par de
brincos. Não estou vestida pra matar,
mas ao menos ninguém deve rir de mim
e, por consequência, dele no lugar em
que formos.
Me encaro no espelho e percebo
que apesar da calça mais apertada e dos
brinquinhos, não estou muito diferente
de quando vou trabalhar ou saio com
Bernardo. Então, tomo duas decisões.
Primeiro retiro os grandes óculos que
costumo usar apenas como acessório.
Sim, um acessório com efeito contrário,
porque na verdade minha visão é
excelente. Depois, solto os cabelos e os
deixo cair sobre minhas costas.
Eu não havia me dado conta de
como estão compridos. Passo a escova
sobre os fios claros e vejo as pontas se
enrolarem um pouco. Me dou por
satisfeita ao mirar meu reflexo no
espelho. Posso não ser uma beldade e
não estar tão bem vestida ou maquiada,
mas vejo que a diferença é grande.
Do quarto mesmo, chamo
Bernardo e passo com ele para o
banheiro sem avistar Dominic ou minha
avó.
Não nos demoramos no banho.
Logo estou secando Bernardo e vestindo
uma roupa mais social nele, seguindo o
exemplo de Dominic, já que não sei
onde estamos indo.
Bernardo sai do banheiro
correndo e eu aproveito o instante para
arrumar algumas mechas do meu cabelo
que saíram do lugar e depois vou atrás
deles.
Ouço as vozes dos dois vindo do
quarto de Dominic e acabo parando do
lado de fora, apenas escutando.
— Vem cá, garotão — Dominic
chama. — Você está lindo, hein? Vai
chamar a atenção da mulherada.
Bernardo não diz nada a
respeito, ainda nem entende o que isso
quer dizer. Graças a Deus.
— Você também tá bonito, seu
maluco. — Ouço a voz baixa do meu
filho responder. Seu maluco? Cubro a
boca com a mão, rindo da fala
engraçada.
— Então vem, vamos tirar uma
foto. — Não posso vê-los de onde estou,
mas alguns segundos depois, Dominic
fala outra vez: — Pronto, Minduim.
Vamos passear, agora.
Não consigo sair a tempo, logo
os dois deixam o quarto e Bernardo
passa como um raio na direção da sala.
Dominic para diante de mim, as
mãos nos bolsos da calça enquanto um
sorriso lento se abre no rosto dele.
A boca também está entreaberta,
mas ele não diz nada. Parece ter perdido
a capacidade de falar. Está vendo, Dr.
Dominic? O senhor ainda pode ser
surpreendido.
Seus olhos notam meus cabelos
soltos e se demoram ali, acho que
acostumando-se com essa nova versão.
Ele aquiesce parecendo aprovar o que
vê. Depois relanceia os olhos para
minhas pernas nas calças justas,
diferente das que já me viu usar, mas ali
ele não se demora, Dominic sabe que me
deixaria desconfortável.
Abaixo os olhos, meus punhos se
fecham automaticamente. Estou um
pouco nervosa, esperando que ele diga
alguma coisa.
— Robin... — Ouço sua voz e
ergo o rosto outra vez. — Não precisa
se preocupar com nada, tá bom? O
primeiro idiota que se atrever a chegar
perto de você vai ter os dentes
quebrados.
Abro um sorriso a contragosto.
Então ele sabe que me esforço
para não receber olhares e não atrair
atenção nenhuma. Ao mesmo tempo, sei
que não entende. Qualquer pessoa
pensaria que faço isso por medo dos
homens, uma decepção amorosa ou por
ter vivido um relacionamento abusivo,
mas nunca fui vítima de nenhuma dessas
coisas. Eu apenas tento não parecer
atraente porque eu não posso me
envolver, eu é que não posso me
relacionar.
— Vamos? — É minha única
resposta.
Ele assente e ainda me dá outra
olhada discreta, sorrindo como se fosse
o portador de um segredo.
Pouco depois, deixamos o
prédio no carro dele. Dominic explica
algumas coisas para Bernardo que
presta atenção em tudo, sem entender
nada, claro. Como ele espera que um
menino de quatro anos entenda quantos
cavalos o carro possui? Pela expressão
do meu filho, sei bem que deve estar
tentando imaginar como tantos cavalos
cabem dentro do capô do carro.
Minha avó está sentadinha no
banco traseiro, ao lado de Bernardo e
parece contente em sair de casa apesar
de não sobrar muito espaço para as
pernas no lugar em que está. Estou bem
mais relaxada, sabendo que nosso jantar
é apenas algo amigável e que nada
demais vai acontecer.
A noite ainda está no início e o
clima é agradável, não venta forte e não
está quente demais. Bernardo pediu que
Dominic abrisse a capota do carro antes
de sairmos e ele o fez, por isso sinto a
brisa soprar meus cabelos e tocar meu
rosto, me arrancando um suspiro
contente.
— Que carro é esse mesmo? —
Me vejo perguntando.
Dominic se vira pra mim e seus
olhos estão céticos.
— Sério isso?
Dou de ombros.
— Não entendo de carros, só sei
o modelo do meu porque não tem como
não saber.
— Hum... — Os olhos dele estão
na rodovia outra vez e percebo que ele
segue na direção em que fica o lago. —
É um Ford Mustang. Já existem modelos
mais novos, mas essa belezinha comprei
com a herança que recebi da minha mãe.
Tem um valor sentimental.
Assinto, realmente é um carro
muito bonito e pelo que já ouvi falar,
muito caro também.
— Sua mãe te deixou uma
herança e tanto, então — comento. —
Quanto custa um carro desses? —
pergunto, curiosa.
— Digamos que se eu precisar
de dinheiro rápido, ainda consigo uns
cento e cinquenta mil — ele responde,
sem dar muita importância.
Arregalo os olhos e observo o
carro agora com uma nova visão.
— Mas você precisou do
dinheiro! O aluguel e tal, você sabe que
está rodando pela cidade em um carro
que poderia quase pagar por uma casa,
certo?
Dominic assente.
— Sei, mas não precisava de
uma casa quando comprei o carro e
ainda não sei se vou ficar em Lagos
definitivamente. Comprar uma casa me
parece muito permanente, quando eu
tiver certeza de que é a hora certa, faço
isso.
Penso no que ele diz, talvez
tenha razão. Por enquanto o que me
importa é o modo como o ar sopra
delicioso sobre meus cabelos, trazendo
o cheiro das plantas na beira da estrada,
misturado ao aroma amadeirado de
Dominic.
— Estão confortáveis aí atrás?
— ele pergunta. — Dona Rute?
Minduim?
Ainda sinto o coração errar uma
batida sempre que o ouço falar assim.
— Esse carro é radical! —
Bernardo grita, arrancando risadas de
todos nós. Minha avó apenas balança a
cabeça concordando, muito quieta, por
sinal.
Dominic entra à direita quando
chegamos na avenida defronte ao lago,
onde bares e restaurantes estão abertos e
várias pessoas circulam caminhando ou
em seus carros, afinal é sábado à noite.
— Vou levar vocês em um outro
restaurante que fica mais ao final da rua.
Podia ir no que almocei com Alice, mas
já comi lá hoje. Se importam?
Faço que não com um gesto,
qualquer um estaria ótimo. Aproveito o
momento para olhar ao redor com
atenção e sei que Bernardo também está
curioso analisando tudo. Apesar de já
ter quase um mês que nos mudamos, é
nossa primeira vez vendo o lago da
cidade de perto e também a primeira
nessa rua movimentada.
Tudo aqui é bonito, os comércios
são elegantes e construídos de modo que
os turistas e os moradores da cidade se
sintam em casa. Vários bares são feitos
de madeira, dando um ar mais rústico e
romântico, e há muitas árvores na beira
lago.
Dominic segue para o final da
avenida e vejo que o carro chama
bastante atenção das pessoas, o que
acaba tirando um pouco da graça que
estava vendo em observar as coisas.
Não me sinto muito à vontade com os
olhares sobre nós. Logo paramos em um
estacionamento gramado, todo verde, e
descemos em uma área vazia.
— Vamos descer... — Dominic
fala. — O restaurante fica mais abaixo.
Com isso ele nos mostra a
instalação bem de frente à água e um
caminho de pedrinhas, formando uma
trilha. Por sorte aqui é muito bem
iluminado.
Dominic oferece a mão para
Bernardo e os dois descem na frente. Eu
apoio vovó Rute pelo braço e juntas
vamos os seguindo de perto.
Quando chegamos ao final da
pequena trilha, a visão é realmente
fantástica. Mesas de madeira espalhadas
por um deque bonito, iluminadas por
lampiões, cobertas por longas toalhas
brancas. Em um pequeno palco, alguns
músicos tocam melodias bonitas,
inundando o lugar com os sons suaves.
Realmente lindo e perfeito para
um jantar a dois.
— Nossa, pensei que fôssemos a
um playground ou algo assim —
comento enquanto ele abre caminho na
direção de uma mesa vazia.
Nem mesmo os lugares são
preparados pensando em famílias, já que
precisamos arrastar mais duas cadeiras
para unir às outras.
— Pois é, acho esse lugar tão
bonito e vocês não conhecem nada ainda
aqui, achei que podia deixar o
playground para outro dia — Dominic
responde.
Nos sentamos ao redor da mesa
e o vejo olhando ao redor, procurando o
garçom para fazer nosso pedido.
— Nossa! Você sabia que eles
estavam aqui? — Dominic me encara
enquanto questiona, alegre.
— Eles? — Me viro na cadeira,
olhando para trás bem a tempo de
avistar Mari e Lucas entrando no
restaurante.
Com a bagunça toda em casa,
esqueci de ligar pra ela. Tinha me
esquecido inclusive de que estavam na
cidade e nem mesmo olhei as coisas que
deixou lá em casa.
— Sabia... Não no restaurante,
mas na cidade. Nem me lembrei de que
vocês se conheciam, isso porque a
confusão toda começou por esse
motivo...
Mari acena para mim e arrasta
Lucas na nossa direção.
— Ah, Robin! — Me levanto e
sou logo envolvida por ela, em um
abraço apertado que retribuo. — Meu
Deus! Como você está linda!
Vejo a surpresa no rosto dela,
que logo desliza os dedos pelos meus
cabelos.
— Oi, Mari. Desculpe por não
ter ligado, acabei deixando para
amanhã.
Vejo Dominic se levantar e
cumprimentar Lucas sorrindo, daquele
jeito tipicamente masculino, com direito
a tapinhas nas costas e tudo.
Vovó apenas estende a mão e
cumprimenta os dois e Bernardo já está
puxando a barra do vestido de Mari,
para que ela o pegue no colo.
— Vem cá, Minduim. — Ela o
ergue do chão e o abraça. — Sentiu falta
da tia Mari? Nossa, eu fiquei louca de
saudades de você, viu?
— Vocês querem se juntar a nós?
— convido.
Mari, no entanto, faz uma
expressão triste.
— Não podemos, vim apenas
buscar um pedido, estamos indo ao
shopping. Vamos ver uma animação
boba que o Lucas está doido pra assistir
e depois vamos para a casa dele.
Amanhã a gente faz alguma coisa,
combinado?
Assinto e estendo os braços para
que Bernardo solte-a.
— Amor — Lucas a chama. — E
se levássemos o Bernardo com a gente?
— Então ele me encara sorrindo. —
Olha, a Mari está ficando louca de
saudade desse menino, falou nele a
semana toda e estamos indo fazer
programa de criança, muito mais
interessante pro Bernardo que esse lugar
aqui...
— Deissa mããããe... — Bernardo
pede com as mãozinhas unidas como em
uma prece. — Por favor. A tia Mari me
leva depois.
Abro a boca para responder,
negar, mas não sei bem o que dizer. Eles
sempre foram próximos e podem passar
algum tempo juntos antes que Mari volte
pra casa. Além disso, Bernardo está de
férias e tem ficado só em casa.
Mas ainda assim...
— Eu vou com eles, Robinha —
vovó comenta. — Você sabe como adoro
um cineminha. — Ela já está se
levantando e vejo Lucas oferecer o
braço a ela, enquanto se distanciam sem
esperar resposta.
— Deixo os dois lá mais tarde
— Mari diz antes de desaparecer na
estrada de pedrinhas.
Me viro, encaro Dominic que
está sentado analisando o cardápio que
deve ter pegado enquanto eu conversava
e percebo que aquilo tudo foi muito
estranho. Muita coincidência.
Sento-me outra vez, e repasso os
últimos acontecimentos. Mari entrou
para pegar um pedido, mas saiu sem
nada nas mãos. Vovó se levantou
animada para ir com eles, mesmo não
tendo proximidade com nenhum dos
dois. E finalmente, eu e Dominic
ficamos aqui, em um restaurante
romântico e completamente sozinhos.
Não vou correr o risco de ouvi-
lo me dizer que estou louca ou que estou
fantasiando um cenário no qual ele faria
algo assim apenas para passar mais
tempo comigo, então decido manter
minhas suspeitas pra mim.
— O que você quer comer? —
pergunta, como se não tivesse
acontecido nada.
— Hum, não sei. — Puxo o outro
cardápio para mim e analiso as opções.
— Podíamos comer... gosta de massa?
Ele assente.
— Que tal um talharim à
carbonara? Ou nhoque ao molho sugo?
— ofereço as opções.
— Fico com o macarrão. Vou
pedir um vinho para acompanhar, tudo
bem?
Concordo e o vejo se adiantar
chamando o garçom, que logo está ao
nosso lado. Dominic faz o pedido e o
homem se afasta em seguida.
— E então, Robin... O que está
achando do nosso encontro? — Dominic
abre um sorriso e sinto a ansiedade
crescer.
— Não é um encontro —
comento apenas.
— Ah não? — Ele continua
rindo. — Por que me parece muito com
um. Nos arrumamos, peguei você de
carro, viemos a um restaurante para um
jantar romântico, sozinhos. Agora vamos
tomar vinho e depois olhar as estrelas...
Definitivamente é um encontro.
Tento manter a calma ao
constatar que ele não parece estar
brincando.
— Não é bem assim. — Abro
um sorriso sem graça. — Eu não me
arrumei tanto, além disso você não me
buscou, nós moramos juntos. Também
não viemos sozinhos, apenas
aconteceu... Certo, Dominic?
Estreito os olhos na direção
dele, esperando uma resposta. O garçom
escolhe esse momento para chegar com
o vinho, então aguardo que ele nos sirva
e se afaste e volto ao assunto:
— Dominic? Foi tudo
coincidência, não foi? Você mesmo
disse que não se interessaria por mim,
dessa forma.
— Eu disse, não foi? — ele
responde com outra pergunta. — Bom,
na verdade se estou me lembrando bem,
eu falei que nunca havia dito que estava
interessado, o que não quer dizer que eu
não esteja.
Encaro seus olhos insondáveis e
não consigo discernir onde a brincadeira
termina e a verdade se inicia. Sinto que
o sangue corre mais rápido por minhas
veias, concentrando-se todo no meu
rosto, que deve estar parecendo um
tomate. Minhas mãos também começam
a suar e meu coração martela no peito de
modo quase audível.
Tomo um gole de vinho em
silêncio, eu é que não vou perguntar se
ele está se divertindo comigo ou falando
sério.
— Sabe, você fica linda assim,
com os cabelos soltos e sem aqueles
óculos. Eu queria dizer isso assim que te
vi, mas sabia que ia encontrar uma
desculpa qualquer e voltar para o quarto
se eu o fizesse. Mas agora, acho que
você não vai desperdiçar a comida, o
vinho e decidir ir embora a pé, então...
Você tem os olhos mais lindos que já vi.
Minha respiração se acelera.
Encaro os olhos dele que estão fixos nos
meus e sinto que falta ar nesse lugar tão
aberto. A noite mal começou e Dominic
já me deixou sem fala, não quero pensar
no que vem depois.
Claro que a ideia inicial era que
saíssemos só nós dois, mas dona Rute
me alertou de que a neta, mesmo que
quisesse, não aceitaria tão fácil. Foi a
velhinha esperta também que me deu a
ideia de arrumar uma babá e quando
Lucas ligou, dizendo que estava na
cidade e me chamando pra beber, acabei
pedindo socorro.
Não é como se não fosse cobrar
o favor um dia, mas acabou topando, e
ele e Mariana foram até o restaurante
estrategicamente para buscar dona Rute
e Bernardo. Robin não é boba, eu sabia
que ela desconfiaria, mas depois de
estarmos aqui, não poderia fazer muito a
respeito.
Ela agora me encara desconfiada
do outro lado da mesa, enquanto tento
manter a conversa divertida e digo
algumas verdades em tom brincalhão.
Apesar das ressalvas, acho que ela está
gostando de sair comigo.
— Mais vinho? — ofereço.
Robin fita a taça um pouco
surpresa por já a ter esvaziado, mas dá
de ombros e faz que sim.
— Então, Robin. Hoje é o dia
em que vamos nos conhecer de verdade?
Os olhos dela se abrem um
pouco mais e percebo que entendeu tudo
errado.
— Ei, não estou falando de nada
disso, mas que mente, viu? Quero saber
mais sobre você, sinto que moro com
uma completa estranha.
Agora ela não me encara, o que
me deixa cada vez mais curioso sobre
tudo.
— Não tem muito pra saber... —
responde.
— Eu discordo. Mas não precisa
me contar coisas íntimas ou dolorosas,
só quero conhecer seus gostos, o que
faz, essas coisas que geralmente se vê
logo na superfície.
Prendo a respiração enquanto a
vejo bebericar o vinho, ponderando o
que dizer. Respiro mais aliviado quando
sua voz me alcança:
— Bom, eu nasci em Cordilhéus,
aqui ao lado. Cresci lá também com
meus pais e só morei fora por alguns
anos no período da faculdade.
— Assim como eu — digo, me
identificando.
— Fiz gastronomia na capital.
Na época eu já namorava o Derek, pai
do Bernardo, e acabamos nos afastando
por um tempo, mas sempre dávamos um
jeito de manter a relação. Quando me
formei, voltei para casa com planos de
abrir uma confeitaria e ficar por lá... —
Robin está falando muito mais que eu
esperava e acho que acaba percebendo
que chegou no ponto em que precisaria
contar o que aconteceu com o namorado,
porque vejo quando seus olhos se focam
em mim e ela interrompe a narrativa. —
Bom, planos mudam.
Assinto e não a questiono a
respeito disso.
— E então, alguns anos depois,
você está aqui. Hoje você trabalha no
shopping. É uma joalheria, certo?
— Isso, já trabalho na rede há
algum tempo, mas antes em Cordilhéus.
Fui transferida pra cá e como era uma
oportunidade de ficar mais perto da
minha avó, além de ficar desempregada
não ser mesmo uma opção, acabei
decidindo vir.
— Certo, mas são só vocês? E
seus pais, onde estão?
Não planejei uma pergunta
pessoal, para mim não era nada demais.
Mas pelo modo como ela desvia os
olhos e passa a observar as outras
mesas, pela maneira como suas mãos
apertam a taça com força, percebo que
cheguei a um assunto delicado. Já vi
muitas reações desse tipo no consultório
para não as reconhecer.
— Desculpe — falo e ela volta o
olhar pra mim novamente. — Eu não
sabia que era um assunto na lista dos
dolorosos. — Abro um sorriso fraco,
tentando aliviar a tensão.
Robin faz um gesto negativo com
a cabeça.
— E como saberia? —
responde. — Não é como se eu falasse
muito sobre essas coisas.
Ela toma mais um gole de vinho
e não sei se é por causa da bebida, ou se
o clima a motivou, mas acaba se abrindo
um pouco mais.
— Minha mãe se divorciou do
meu pai um pouco antes da morte dele.
Não é um assunto sobre o qual eu goste
de falar e além disso, estragaria o clima
de descontração do nosso jantar, não
acha?
Concordo. Queria perguntar o
que houve com a mãe, ou como o pai
dela morreu, mas sei que ela já falou
muito mais do que planejava e essas
coisas levam tempo.
O garçom chega com nossos
pratos e os coloca diante de nós. O
cheiro da massa está delicioso e vejo
Robin aproximar o rosto e inalar o
aroma, antes de finalmente provar.
— Bom, vou tentar outra
abordagem, porque a primeira foi falha.
O que você faz para se divertir? Já sei
que não é muito de sair de casa, que não
tem encontros... Então o que faz?
Ela mastiga lentamente e apenas
depois, me dá uma resposta.
— Eu não sei, não faço muita
coisa. Leio um pouco, ouço músicas,
vejo filmes, seriados e cozinho.
Também experimento meu jantar,
mesmo estando bem mais interessado
nessa versão mais desprendida de
Robin.
— Lê o que? Romances? —
pergunto pouco depois, fazendo piada.
Mas ela assente com seriedade.
— Certo, e que tipo de música
gosta? Sertanejo universitário não
parece ser seu estilo.
— Gosto de músicas de vários
gêneros, ouço mais música clássica,
MPB e rock alternativo.
Ergo as sobrancelhas, descrente.
— Como Kiss? — indago.
Ela faz que não com a cabeça e
seus cabelos se balançam junto.
— Não esse tipo de rock, mais
no estilo da Dominium. Já ouviu, né? Eu
adoro.
Dou uma risada cética.
— Não acredito! Você não está
falando sério... — Mas ela afirma com
um gesto. — Eu nunca parei pra escutar
as músicas, mas tenho certeza de que a
legião de fãs deles tem muito mais a ver
com a aparência dos caras do que com o
som que fazem.
Robin me lança um olhar
fulminante e antes que defenda a banda,
prefiro interromper:
— Se você gritar “Eu sou uma
dominada” agora, vou embora, estou
avisando.
Arranco uma risada dela.
— Eu não diria algo assim, não
faz meu estilo. Mas gosto mesmo da
banda e você deveria deixar de ser
preconceituoso e ouvir. Não é porque os
músicos são bonitos que a música deles
é ruim. Eu mesma nunca parei pra
analisar a aparência deles...
Penso em dizer que ela é uma
exceção, já que não foca na aparência de
ninguém, mas percebo que soaria rude e
me controlo a tempo.
— Bom, ignorando sua tietagem,
se eu for pensar nos meus dias, não são
muito diferentes dos seus. Exceto por
algumas saídas ocasionais pra comer e
beber com os amigos.
— Encontrar amantes... — ela
comenta, dando outra garfada e acaba
me fazendo sorrir.
— Amante é coisa de homem
casado, Robin. Eu me encontro com
mulheres sim, mas não sou o Don Juan
que está pintando, não.
— Por que não? — Apesar de
parecer brincadeira, o tom é de
curiosidade. Ela realmente quer saber.
— Porque... Não sei. Acho que
tive minha cota de aventuras quando era
mais novo, não estou procurando isso
mais, não vejo tanta graça em colecionar
mulheres. Claro que ainda saio, mas
deixou de ser prioridade.
— E o que é prioridade, Dom?
— pergunta, sorrindo pelo uso do
apelido e eu percebo que o álcool deve
ter subido um pouco, porque ela está
muito mais desinibida que de costume.
Reflito outra vez sobre o quanto
gosto de vê-la assim, desenvolta, como
na noite da sobremesa.
— Minha carreira, o trabalho
diferente que faço. Família... Me
distanciei deles um pouco, mas já
resolvemos. Eu hoje priorizo
relacionamentos mais completos.
Ela concorda comigo e depois
disso, terminamos de comer em um
silêncio confortável.
Quando o garçom retira os
pratos, peço a conta. Robin se oferece
para dividir, mas rejeito a oferta e ela
não faz uma cena por causa disso.
— Vem comigo, quero te mostrar
uma coisa.
Seguimos em linha reta pelo
deque, até bem depois da última mesa.
Aqui, a claridade é reduzida, mas
podemos ver o reflexo da luz dos postes
nas margens do lago, da lua no centro
das águas e a luminescência das
estrelas, que aparecem muito mais aqui
que em outros lugares da cidade.
Estamos sozinhos. Ainda
podemos ouvir o som dos músicos e da
conversa no restaurante, mas quando
chegamos na amurada que separa o fim
do deque da água escura lá embaixo, não
há mais ninguém por perto.
— Não acha lindo? — pergunto
enquanto vejo o fascínio na expressão
dela.
— É maravilhoso.
— Olha... — Aponto com o dedo
para o outro lado do lago, as enormes
casas às margens. — Meu pai mora ali.
Eu cresci em uma daquelas casas, você
não vai conseguir ver perfeitamente.
— Sério? Primeiro um carro
daqueles, agora uma mansão? Ainda
arruma gente pra dividir o aluguel e não
desiste do apartamento. Eu, hein...
O tom dela de repreensão é
falso, percebo que está achando graça
da situação.
— Eu sei, pobre garoto rico... A
verdade é que meu pai não queria que eu
fosse psicólogo, tinha outros planos. Eu
meio que me rebelei, saí de casa e me
formei. Agora fizemos as pazes, mas
quando voltei a Lagos ainda estávamos
brigados e eu não podia ir pra casa, mas
sabe... Me acostumei a morar longe da
minha família. Eu os amo, mas prefiro
ser independente.
— Sei. Eu tive que ser
independente. A vida me forçou a isso
bem antes do que eu havia imaginado,
mas ainda assim eu entendo. Prefiro
fazer as coisas do meu jeito, tomar
minhas decisões — ela comenta,
parecendo compreender mesmo o que
quero dizer.
— Não acha estranho que eu
prefira dividir o apartamento com você,
um garotinho que é um furacão de quatro
anos e uma velhinha que teme os
Iluminatti, do que morar com meu pai?
A risada dela enche a noite. Não
é uma gargalhada estrondosa, mas nesse
silêncio, tudo que ouço é o som que ela
faz ao sorrir.
— Não sei. Juro que pensei que
iria desistir depois da vovó Rute, mas
bom, eles são mesmo cativantes.
— Vocês três são — respondo.
Não posso ter certeza por causa da
parca luz, mas quase posso ver o rubor
no rosto dela. —Então... Eu prometi
estrelas, pode fazer o favor de olhar
para o céu?
Ela atende meu pedido com um
sorriso meigo nos lábios e ergue o rosto,
admirando o manto da noite que está
todo pintado, salpicado de pontinhos
prateados.
— Robin... — chamo.
— Hum — ela responde ainda
com os olhos fixos no céu.
— Lembra do meu texto de
ontem? Quando falei do seu sorriso?
Vejo sua cabeça mover-se para
cima e para baixo.
— Não quero ser brega, mas
acho que vai ser impossível. Então
releve, por favor. Mas... Por mais que
esteja te cobrando de olhar as estrelas,
não consigo. Aqui, nesse instante, a luz
que seu corpo emana, que vem do seu
sorriso e olhar... Nada brilha mais que
você.
Espero por uma risada divertida,
porque sei bem como soou piegas, por
mais honesto que seja, mas ela não sorri.
Robin baixa os olhos na minha direção e
recosta o corpo sobre a amurada.
Ficamos assim, nos encarando
por alguns segundos e então dou o
primeiro passo.
Toco seus cabelos devagar e
vejo seus olhos se fecharem brevemente
com o contato. Meus dedos passeiam
por seu rosto, as pontas trilhando cada
traço, cada linha...
Robin abre os olhos e posso ver
ali o mesmo desejo que vi antes. Por
mais que a vida tenha a moldado de
maneira a viver sob regras e decisões
um tanto quanto opressoras, ela ainda é
uma mulher que quer ser beijada. E eu
sou um homem, alucinado pela ideia de
provar dos lábios dela.
Toco seu queixo quase como um
sussurro, apavorado com a
possibilidade de que ela pense demais e
interrompa meus gestos. Demoro meu
olhar sobre seus lindos olhos, a boca
cheia e seus cabelos sedosos,
conhecendo cada pedaço que hoje
decidiu me mostrar.
Então com paciência, toco seus
lábios com os meus, em um beijo afável.
Sinto suas mãos alcançarem meu peito e
prevejo sua resistência, mas ao invés
disso, sou presenteado com sua
rendição.
Robin sobe as mãos até meu
pescoço e as posiciona em minha nuca,
aproveito-me de sua entrega e aproximo
mais meu corpo do seu, envolvendo sua
cintura com os braços. Ela suspira e me
dá espaço para avançar, nosso beijo se
torna um pouco mais intenso, suas mãos
têm um aperto mais firme e recebo seus
atos como permissão para reivindicá-la.
Toco sua boca entreaberta com a
língua e ela não recua, abre mais os
lábios me cedendo o acesso e então me
corresponde com vontade. Sinto o gosto
de vinho, misturado ao doce sabor dela,
único. Suas mãos deslizam para meus
ombros e a puxo de encontro ao meu
peito, colando-me a ela e sentindo os
contornos suaves que ela esconde tão
bem.
O beijo é afoito, repleto de todo
o desejo contido e cheio de promessas
açucaradas, como Robin. A realidade,
porém, é amarga e por mais que eu
quisesse conhecer cada centímetro dela
e tê-la como venho fantasiando, sei que
Robin bebeu um pouco e me odiaria por
avançar e fazê-la retroceder ao seu
casulo no dia seguinte.
Por isso, diminuo
gradativamente a chama que queima
entre nós e volto a delicadeza inicial,
encerrando o beijo um pouco depois.
Os olhos dela se abrem e
encontram os meus, suas mãos ainda
estão no mesmo lugar e temo outra vez
sua reação.
— Tudo bem? — pergunto,
sondando.
— Tudo... — ela responde.
— Vamos pra casa, então. Quer
uma sobremesa? — questiono, me
lembrando de que não ofereci essa
opção após o jantar.
Ela faz que não, ainda entre meus
braços.
— Em casa... — diz em um
sussurro.
Abro um sorriso ao ver que ela
não está fugindo, gritando ou pior,
chorando. Solto seu corpo e ela retira as
mãos de mim, mas antes que se afaste
demais, tomo sua mão na minha e a puxo
de volta pelo caminho que fizemos.

O trajeto para casa foi permeado


por nosso silêncio, mas a mão dele
ainda segurava a minha. Não sei bem
porque permiti que as coisas chegassem
a esse ponto, porque retribuí seu beijo
daquela forma apaixonada, mas não
quero pensar muito essa noite e estragar
o que aconteceu entre nós.
Amanhã. Dizem — acho que a
bíblia diz — que basta ao dia o seu
próprio mal. Então que o amanhã se
encarregue das conversas
constrangedoras, dos limites que
precisarei impor e dos sentimentos
ruins. Hoje, só quero sentir seus dedos
envolvendo os meus um pouco mais,
lembrar do nosso beijo com um sorriso
de felicidade e me jogar na cama, alegre
como uma adolescente.
Se eu pudesse perpetuar essa
noite, com certeza entregaria a ele mais
que alguns beijos. São tantos anos sem
sentir o toque de um homem, sem ser
desejada, não como uma mulher
qualquer, mas por mim, por quem eu
sou. Tanto tempo sem sentir o êxtase, as
carícias...
Mas quando passarmos por
aquela porta e nos despedirmos, antes
de rumarmos para nossos quartos, a
noite terá fim e no dia seguinte, será
apenas mais uma lembrança.
Dominic fechou a capota antes
de entrarmos no carro outra vez, por
isso agora o perfume dele é o único
cheiro que me envolve e as sensações
do seu polegar acariciando o dorso da
minha mão, são muito mais reais.
Chegamos em casa e entramos
em silêncio, para o caso de encontrar
vovó e Bernardo dormindo. Sigo para o
quarto do meu filho, sozinha, e me
deparo com a cama vazia. No quarto da
minha avó também não tem ninguém.
Concluo que ainda não devam ter
chegado.
— Robin — Dominic chama da
cozinha. — Não vai ficar brava se eu
disser que comi um cookie ou dois, né?
Eles estavam aqui na mesa, me
convidando.
Tiro as botas e caminho de meias
até onde ele está.
— Claro que não vou ficar
brava, pode comer. — Também pego um
biscoito do prato e abro a geladeira. —
Quer cerveja? — pergunto observando
as opções, mesmo que cookie com
cerveja não seja a melhor das
combinações.
— Não — ele responde. —
Qualquer coisa não alcóolica pra mim e
pra confeiteira também. Não quero ouvir
que abusei de você amanhã, que estava
bêbada, ou aquele clichê de não me
lembro.
Meneio a cabeça com o
comentário, mas noto que os olhos dele
me sondam, investigam.
— Eu não estou bêbada,
Dominic. Bebi um pouco de vinho,
talvez tenha falado mais que
normalmente, mas estou sóbria.
Retiro duas latas de refrigerante
e ofereço uma a ele.
— Tudo bem, então. Vamos nos
sentar na varanda — convida, me
entregando o prato e rumando para lá,
sem esperar minha resposta.
Na sala ele para um minuto,
abraça todas as almofadas do sofá e
depois segue para a varanda com elas
nos braços. Dominic atira as almofadas
no chão e só então entendo o que ele
pretendia.
— Senta... — Ele mesmo faz o
que diz e sigo seu exemplo. O vejo
retirar os sapatos, ficando também
apenas de meias. — Preciso te contar
uma coisa, mas você tem que prometer
que não vai surtar.
Olho pra ele já um pouco
assustada e espero pelo que vai dizer.
— Bom, que eu armei pra Mari e
o Lucas pegarem sua avó e o Bernardo,
você já sabia. Inclusive, fui eu também
que mandei o endereço pra Mari deixar
uma sacola pra você aqui.
Não respondo, claro que eu
imaginava a primeira parte, sobre a
segunda, nem tinha parado pra pensar.
— O Lucas mandou uma
mensagem, sabe. E quero primeiro
deixar muito claro que não planejei isso
e que estou sendo vítima de armação
tanto quanto você, mas se quiser fazer
algo a respeito, tiro o carro agora
mesmo e vamos atrás deles.
— Do que você está falando? —
Estou um pouco alarmada pela
expressão dele.
— Lucas disse que sua avó
declarou veementemente que os
alienígenas iriam invadir o apartamento
essa noite e por isso, ela e Bernardo vão
dormir na casa dele.
— Isso é sério? Nem pra
inventar algo mais plausível — falo
rindo. — Mas se levarmos em conta que
ela diria essas coisas em uma conversa
normal, faz sentido que use os
extraterrestres para nos fazer ficar
sozinhos.
— Está tudo bem, então? Não
quer ir buscá-los? — Dominic
questiona, com receio.
— Vou mandar mensagem pra
Mari. Preciso saber se não vão
atrapalhar...
— Bom, Lucas garantiu que não.
Disse que sabe que é armação da sua vó,
mas que por eles não tem problema
nenhum e que traz os dois de manhã.
Ainda assim, envio uma
mensagem pra Mari e fico mais tranquila
quando ela me responde que não é um
problema, inclusive que Bernardo já
dormiu.
E finalmente me dou conta de
que com essa mudança repentina, nossa
noite ainda não terminou.
Alguém certa vez me disse que o
silêncio é o princípio da sabedoria.
Mesmo que eu tenha esquecido quem
proferiu a frase, cada palavra ficou
gravada em mim e por várias vezes me
vi refletindo sobre o significado.
Na varanda de um apartamento
no qual nunca planejei morar, em uma
cidade que nem mesmo conhecia e ao
lado de um homem com o qual jamais
sonhei, me pego pensando na realidade
dessa frase outra vez.
Dominic toma um gole ou outro
de refrigerante, mas seus olhos estão
fixos na vista de tirar o fôlego que temos
daqui. Ao longe podemos discernir os
contornos do lago, sendo banhado pela
lua, e acima de nós, as estrelas são um
show à parte.
Meus olhos veem a mesma cena
que os dele, mas minha reflexão gira em
torno dessa noite, dos nossos momentos
juntos e do que isso realmente quer
dizer. Não sei se estou pronta para me
livrar de tudo que pesa sobre meus
ombros, mas confesso que quero muito
dar esse passo. Eu não deveria, sei
disso, mas apesar da culpa que ainda me
dilacera em tantas situações, quero ser
egoísta, pensar nas minhas vontades, pra
variar.
Me pergunto quanto tempo já
dura nosso silêncio, mas acredito que a
sabedoria desse instante é uma só:
Dominic sabe tão bem quanto eu, que
quando quebrarmos a calmaria que paira
entre nós, seremos alcançados pela
tempestade e não haverá opção que não
seja molharmo-nos completamente.
— Me conte um pouco sobre
você — peço, atirando a primeira gota
de chuva sobre a terra. — Sempre foi o
homem que é hoje? Centrado, cuidando
das necessidades de outras pessoas...
Dominic me fita e um sorriso
matreiro se desenha em seu rosto.
— Não mesmo. Alguns anos
atrás eu era só um playboy mimado,
apaixonado por dinheiro, festas,
mulheres. — Ele para um segundo, se
recordando. — Acho que essa versão é
a que não era verdadeira. Minha mãe
morreu e acabei focando nas coisas
rasas, em tudo que não apresentava
profundidade, que não envolvia sentir e
sofrer, sabe?
Faço que sim, compreendendo
cada sílaba.
— Antes disso, eu era tranquilo
e depois que passei por meu luto, que
entendi que a tinha perdido e desejei
voltar a viver pelo que importava, me
desprendi das coisas que eram
irrelevantes e acabei descobrindo o que
queria fazer.
Tomo um gole do meu
refrigerante, assimilando mais do que
ele pode imaginar.
— Por isso, Robin, eu entendo
de traumas, passados dolorosos, de
sofrimento... E uma coisa posso te dizer.
— Aquilo atrai minha atenção e o fito,
devorando o que Dominic tem a falar. —
O mundo inteiro pode te estender a mão,
milhares de oportunidades podem surgir,
mas a única pessoa capaz de te fazer
feliz e de te arrancar do poço em que
caiu, é você. Mas se quiser, posso jogar
a corda... — Ele abre um sorriso,
trazendo leveza ao comentário, mesmo
que não haja nada de leve no que acabou
de dizer.
Estou em um buraco profundo,
que vem cegando minha visão do mundo,
que transforma tudo em cinza, preto e
branco. E sou a única capaz de decidir
escalar para fora e voltar a enxergar as
cores. Mas Dominic está me oferecendo
sua mão para sustentar-me e dar impulso
para encontrar a luz.
Os olhos dele me sondam
enquanto cada lâmina afiada que deixou
seus lábios penetra fundo em meu peito
e eu tomo a primeira decisão sensata em
muitos anos. Eu o beijo.
Dentro do meu ser, tormenta,
intempérie, vendaval. Em meu toque
mansidão, bonança e sutileza.
Dominic toca meu rosto com as
mãos, meus cabelos e em seguida
desliza os dedos por meus braços, seu
toque acendendo-me pouco a pouco. Ele
retribui meu beijo com ardor, nosso
ritmo é sincrônico e como se
houvéssemos ensaiado. Vamos nos
doando mais a cada roçar suave, a cada
carícia tênue.
Logo, o que era garoa se torna
um dilúvio. Nosso beijo agora é intenso
e chega ao ápice, ao auge em que apenas
nossas bocas unidas não são mais o
suficiente.
Sinto seu toque em minha
cintura, ambas as mãos circundando meu
corpo e depois, puxando-me de encontro
a ele. Seus dedos queimam como fogo
em contato com minha pele, agora sob a
blusa larga, e cada pequena fagulha
reacende algo que havia se apagado.
Minhas camadas, todas elas,
reconhecem o desejo, por mais que
minha mente tenha tentado esquecer.
Tantos anos de repressão ameaçam
agora irromper, alagando tudo. Uma
mistura inimaginável de fogo e água, de
frio e calor. Também o toco sobre a
camisa, os ombros fortes, os braços
musculosos, o pescoço, a barba
cerrada...
Dominic espalma a mão contra a
base da minha coluna, incentivando-me
a me unir a ele ainda mais e eu não
posso conter o anseio que vem do meu
âmago. Sem dar tempo para racionalizar
minhas decisões, passo uma perna sobre
as dele, me sentando em seu colo.
Sua respiração é sôfrega como a
minha, nossas carícias cada vez mais
desesperadas. Perco meus dedos em
seus cabelos fartos e sinto quando ele
faz o mesmo comigo, puxando-os um
pouco, expondo meu pescoço. Sua boca
deixa a minha e seu rosto afunda-se na
curva da minha nuca, inalando meu
cheiro e me beijando ali com ânsia.
Mesmo trêmula, tateio em busca
dos botões da camisa preta e quando os
encontro, exulto com a pequena vitória.
Sem habilidade alguma, começo a abri-
los aqui mesmo.
— Tem certeza? — As mãos
dele, que seguravam meus cabelos,
agora paralisam meus movimentos,
impedindo-me. Seu olhar é cheio de
volúpia e reflete a intensidade do meu
querer, ainda assim, Dominic me oferece
uma oportunidade de recuar.
Não respondo. Apenas
movimento os pulsos para que ele me
solte e quando o faz, continuo despindo-
o, enquanto seu olhar prende o meu
como um imã. Ele não se move, apenas
seu peito sobe e desce, cada vez mais
rápido.
Quando abro o último botão,
deslizo a camisa por seus ombros e ele
termina de retirá-la. Em seguida seu
toque está outra vez sobre mim, agora
erguendo a bata que estou usando.
Levanto os braços, tanto para facilitar,
quanto para demonstrar com clareza
minha decisão e ele me livra da peça
com agilidade.
O frio ar da noite toca meu corpo
e arrepia minha pele, os olhos dele
devoram o que veem e pela força de sua
determinação, sei que o que visto por
baixo das roupas não tem a menor
importância.
Ainda comigo sobre suas pernas,
ele estende nossas roupas no chão ao
meu lado e coloca uma almofada, antes
de me deitar sobre a cama improvisada.
Sua boca volta para a minha, mas suas
mãos agora têm muito mais acesso que
antes e eu também me deleito em seu
torso nu.
Inspiro e expiro de modo
entrecortado, tão afoita que não controlo
mais meus reflexos como um todo.
Dominic me deseja pura e simplesmente,
eu o quero com minha feminilidade, mas
também me entrego como em um ritual
que marca uma virada. Ele é minha
conversão de um caminho que conduz ao
precipício, a uma estrada recheada de
percalços, incertezas, e em meio aos
buracos, esperança.
Seus dedos tocam o botão da
minha calça e quando ele o abre e desce
o zíper, ergo o quadril auxiliando-o a me
despir dela. Toca minhas pernas, desde
o joelho até as coxas, passeando pela
parte interna delas, provocando-me.
Enlaçando-o pela nuca, colo seu
peito nu ao meu e sinto sua ereção vir ao
meu encontro, a fricção inesperada
arranca um arfar dos meus lábios e
Dominic mordisca minha boca. Sinto-me
vibrar por ele, cada centímetro meu
anseia senti-lo por completo, ser
preenchida até a exaustão.
Sem esperar mais, repito seus
gestos de instantes atrás, livrando-o de
sua calça. Ele ergue o corpo um pouco e
termina de retirá-la. Ao invés de voltar
imediatamente para o ponto em que
paramos, Dominic me encara de cima
em silêncio, suas pupilas estão dilatadas
e a fome em seus olhos é voraz.
Me remexo um pouco,
desconfortável, e isso faz com que o
canto esquerdo de sua boca se curve em
um sorriso delicioso.
— Você é maravilhosa — ele
sussurra.
Então volta a me beijar. Agora
toca meus seios sobre o sutiã, fazendo
com que a pulsação forte em meu centro
se avolume, cresça, se agigante em pura
ebulição. Antes que eu perceba, o fecho
é aberto e a brisa acaricia meu colo
desnudo, os mamilos erguendo-se ao seu
encontro, clamando pela atenção
daquele que os excitou.
Quando suas mãos grandes se
enchem, apertando e sentindo, arqueio
as costas me oferecendo mais. Dominic
me toca, conhece e se farta. O polegar
roça sobre o ponto rosado, me levando à
loucura e um gemido baixo escapa,
vindo direto da minha garganta.
Meus olhos se fecham em deleite
e arfo quando, sem aviso, sua boca toma
meu seio, iniciando ondas eletrizantes
que trilham um caminho por meu ventre
e se encerram em meu sexo.
— Gostosa... — A palavra e o ar
que é soprado sobre minha pele sensível
me levam à beira de um colapso.
Dominic abocanha meu outro seio,
dedicando-se em igual medida.
Beijando, mordendo com cuidado,
instigando.
Vejo sua língua deslizar de um a
outro, saboreando-me.
Apoia minhas pernas em seu
peito e desce minha calcinha em um
deslizar suave por elas, desnudando-me
por completo ali, à luz do luar. Seu dedo
encontra caminho para minha intimidade
e ele o desliza, conhecendo os recantos
mais ocultos do meu corpo e sentindo a
umidade que evidencia meu prazer.
— Dominic... — Minha voz sai
rouca, quase não a reconheço. Perdi o
dom da fala.
— O que foi, docinho? —
pergunta, brincando comigo, apenas
ameaçando me tocar onde mais o desejo.
— Por favor.
Ele não é dado a joguinhos, não
me faz implorar mais. Meus olhos se
abrem mais, surpresos ao vê-lo levar o
dedo a boca, sugando meu sabor.
Sua mão toca a barra da cueca
boxer preta, que só agora identifico, e
ele a abaixa, libertando seu membro
rígido. Não há tempo para deleitar-me
com a visão, Dominic se aproxima da
minha entrada e com cuidado preenche-
me vagarosamente.
E assim, centímetro a centímetro
o sinto me penetrando. Minhas unhas se
cravam em suas costas enquanto uma
dorzinha aguda registra o feito.
Lentamente, meu corpo se acostuma a
sua largura, sua extensão, se moldando e
ajustando, reconhecendo a vida nova e
pulsante dentro de mim depois de tanto
tempo.
O incomodo dá lugar ao prazer, a
sensação que faz com que um arrepio me
cubra por inteiro. Fecho os olhos, ainda
me ajustando à euforia, à sensação de
completude e ao prazer. A primeira
estocada vem, fazendo meus olhos se
fecharem e um gemido alto me fugir ao
controle.
— Dominic, de novo... — peço,
quando ele interrompe os movimentos.
Seus lábios tocam os meus, tão
levemente que nem tenho certeza de que
aconteceu.
— Dom. Me chame assim, Robin
— ele pede.
Nesse instante, se ele ordenasse
que o chamasse de amor, que o
venerasse, acredito que o faria, apenas
para sentir aquilo outra vez.
— Dom? Combina, você está
meio mandão mesmo. — Não é a hora
apropriada, mas não resisto.
Ele ri, mas castiga-me retirando-
se de mim quase que completamente.
— Dom — choramingo e sou
recompensada por outra arremetida.
Agora sua boca volta à minha
com força, seu beijo é bruto e enérgico e
os golpes dele contra mim, vigorosos.
Sinto sua rigidez entrar e sair, firme,
rítmica e profunda. Seu comprimento
alcança meu limite e eu ainda quero
mais. Se pudesse fundir-me a ele aqui,
nessa varanda sob as estrelas, nesse
instante, eu o faria. Ser vítima da
adoração de Dominic faz sentir-me uma
divindade.
Envolvo sua cintura com minhas
pernas e isso o leva ainda mais fundo. A
velocidade é calculada, não é uma
questão de quantas vezes ele me
preenche, mas de entrar tão
profundamente, que não o sinta apenas
em um âmbito físico.
Ele interrompe nosso beijo e
então beija meu rosto, meu pescoço e
segue até meu ouvido.
— Vem comigo, Robin... Se
liberte — ele diz baixinho.
Uma avalanche toma conta de
mim, crescendo e transbordando em meu
centro. Não são palavras eróticas, não
para outras pessoas, mas pra mim é
como uma chave que abre meus grilhões.
Me desmancho sobre ele,
chamando seu nome enquanto Dominic
aumenta o ritmo, arrancando tudo de
mim. Não sei se foram as palavras ou o
prazer, mas sinto as lágrimas escorrendo
por meu rosto enquanto um sorriso se
abre simultaneamente.
Ele colhe minhas lágrimas com
seus beijos açucarados, enquanto estoca
mais uma, duas, três vezes e então
abandona meu corpo, derramando-se
sobre meu ventre no último instante.
Fecho meus olhos apreciando o
que acabei de vivenciar. Dominic se
senta e veste a cueca rapidamente,
depois levanta-se e some para dentro da
casa, mas volta instantes depois com
alguns lenços de papel e limpa a prova
do que fizemos de cima de mim. Me
oferece a mão para que eu fique de pé,
seu corpo me cobrindo da possibilidade
de algum olhar em outro prédio que seja
tão alto quanto o nosso.
Sem preocupar-se com qualquer
outra coisa, ele me beija novamente,
acariciando meu rosto e meus cabelos.
Depois, em um impulso, ergue meu
corpo, incentivando-me a circunda-lo
com as pernas e assim, me leva para
dentro de casa em seus braços.
Caminha comigo no colo para o
corredor e dali segue para seu quarto,
onde me deita sobre a cama.
— Se eu te deixar dormir
sozinha, vai acordar arrependida —
fala, justificando sua decisão.
— E dormindo na sua cama
anulamos a possibilidade?
Ele assente.
— Vou anular a noite toda e de
manhã de novo. Vou entrar em você até o
amanhecer e gravar a sensação na sua
mente depois que o sol raiar.
Sei que ele tem razão. Se eu
passar a noite longe, posso pensar muito
e acabar voltando atrás, mas não é o que
eu quero, por isso apenas me aninho sob
seus lençóis e espero que ele se deite ao
meu lado.
Dominic me puxa para perto e
pouso a cabeça sobre seu peito, ouvindo
as batidas do seu coração se acalmarem.
— Você está bem com isso? —
pergunta.
Penso um pouco antes de
responder.
— Estou bem.
— E vai estar bem de manhã? —
insiste.
— Vai me lembrar do porquê foi
uma ótima e sábia decisão ficar com
você? — questiono, brincando.
Ele sorri.
— Quantas vezes for necessário.
— Então vou estar bem ao
amanhecer...
E eu fico bem. Dominic me
mostra que tomei a decisão certa
gentilmente, depois com força.
Demonstra também com sua boca, mãos
e corpo.
De madrugada e ao nascer do
sol.
E apenas então, adormecemos.
Passa pouco das seis da manhã e
meus olhos estão pesados de sono,
natural depois da noite que tive. Ainda
assim, é preciso acordar.
Desligo o despertador do celular
ao lado da cama e me viro, observando
Robin adormecida ao meu lado, o braço
sobre meu corpo, o lençol branco
cobrindo-a até os seios e os cabelos
espalhados sobre o travesseiro.
O que aconteceu entre nós vai
muito além de sexo. Não sei o que é
exatamente e o que pode vir a ser, mas
estou disposto a arriscar e descobrir,
porque o que sinto é que tudo só passou
a fazer sentido após uma confusão que a
trouxe pra mim, com toda sua bagagem e
doçura.
— Robin... — chamo. — Precisa
acordar, docinho.
Toco seu rosto, tentando a
despertar e lentamente vejo seus olhos
abrirem-se. O verde de sua íris me
encarando e em seguida, desviando-se
para os arredores, se situando.
— Hoje é domingo, pode dormir
até quando quiser, mas acho que vai
preferir estar dormindo na sua cama
quando o Minduim e sua avó chegarem.
Os olhos dela abrem-se mais,
dando-se conta da confusão que seria se
eles chegassem e a encontrassem no meu
quarto.
— Que horas são? — pergunta
alarmada.
— Pouco mais de seis, eles
provavelmente ainda vão demorar
algumas horas — respondo.
— Por que me acordou, então?
— ela questiona, cobrindo o rosto com o
travesseiro.
Sorrio diante de seu jeitinho de
menina e descubro seu rosto.
— Porque prometi mostrar como
tomou a decisão certa ao amanhecer...
Um sorriso lento curva sua boca
bem-feita e eu a puxo para mim,
acordando-a com beijos lentos que
despertam seu corpo e a deixam
excitada. Robin passou muito tempo
evitando sexo e me sinto sortudo por ser
o primeiro homem na vida dela em tanto
tempo, principalmente porque a
abstinência fez com que agora sua
disposição seja incansável.
Tomo-a outra vez com languidez,
em um sexo preguiçoso, enquanto nos
adaptamos ao novo dia.
— E agora? — questiono,
mesmo que temendo sua resposta.
Estamos os dois deitados na
cama, as pernas dela enroscadas na
minha após nos saciarmos um do outro.
Por mais algumas horas.
Não preciso explicar minha
pergunta.
— Eu não estou arrependida,
Dom. — A cada vez que ouço meu
apelido deixar sua boca, um sorriso se
insinua na minha. — O que você quer?
Viro-me na cama, a encarando.
— Quero que isso possa
continuar e não estou falando do sexo,
por mais que não seja uma má ideia. —
Ela sorri e cobre o rosto com as mãos,
envergonhada. — Eu sinto que estamos
nos conhecendo e que isso entre nós
pode ser algo mais.
Ela assente, baixando as mãos.
— Não estou pronta para definir
as coisas, não sei quando vou estar,
Dominic. Envolvimento físico é um
grande passo pra mim, mas o emocional
é muito maior...
— Isso quer dizer que não vai
acontecer de novo? — Prendo a
respiração enquanto espero sua
resposta.
— Quer dizer apenas que temos
que ir devagar, não quero que minha avó
ou Bernardo percebam nada por
enquanto e então, vamos descobrindo
como as coisas acontecem. Sem pressão.
Respiro aliviado. Eu não
esperava um relacionamento assim, de
cara, mas o simples fato de ela abrir-se
pra mim depois de tanto tempo é razão
para que eu acredite que temos algo
especial.
— De acordo com os termos...
— falo, brincando, e arranco outro
sorriso dela.
O domingo passa sem maiores
acontecimentos e ao mesmo tempo, é um
dia diferente de todos os anteriores.
Bernardo e dona Rute retornam quase na
hora do almoço. Robin cozinhou
enquanto lavei a louça e comemos todos
juntos.
Me esforcei muito pra não dar
bandeira e na parte da tarde ficamos de
bobeira vendo filmes. Não tive nenhum
momento sozinho com ela.
Quando a noite chegou, Robin
me disse que na tarde seguinte as aulas
de Bernardo começariam e a avó dela
deveria retornar à casa de repouso.
Apesar de saber que aquilo
aconteceria, nenhum de nós parecia feliz
com a notícia, mas o arranjo de deixa-la
sozinha com Bernardo, tendo apenas seu
Antônio para dar notícias e vigiar os
dois vez ou outra, não podia ser
permanente. Não era seguro para ela,
que já tinha a idade avançada.
Robin parecia triste, mas aceitou
que por hora era a melhor opção e
prometeu a avó que quando pudesse,
mudaria aquilo e a levaria pra casa.
Me ofereci para levá-los.
Apesar da clínica, meus horários eram
mais flexíveis e de acordo com minha
agenda do dia, conseguia me organizar.
Assim, ficou definido que eu levaria
dona Rute de volta e deixaria o pequeno
na escola.
A segunda amanheceu fria.
Levantei-me pouco depois das sete e
encontrei Robin preparando café na
cozinha.
Ela aguardava a máquina
terminar o trabalho e usava suas
vestimentas coloridas que só apareciam
na hora de dormir, os pés como sempre
enfiados nas pantufas.
Me aproximei por trás e afastei
seus cabelos para o lado, beijando seu
pescoço e inalando seu cheiro bom.
— Bom dia — murmurei. —
Senti sua falta... Acha que não dá pra eu
escapar pra sua cama de madrugada,
não?
Ouço sua risada baixa e ela vira-
se dentro dos meus braços e me beija de
leve.
— Bom dia, espertinho.
A máquina desliga, mostrando
que o café está pronto, mas não a deixo
retirar a caneca. Antes envolvo seu
corpo gostoso e lhe arranco um beijo de
verdade.
Quando nos soltamos, os olhos
dela sorriem por trás dos óculos
enormes.
— Isso sim é um bom dia de
respeito — brinca.
— Agora é minha vez, me deixa
pegar meu combustível — falo, me
referindo ao café.
Ela me estende a xícara com um
sorriso e se volta para a máquina
novamente, a fim de preparar outro para
si.
— Quanta gentileza. Nem parece
que coloca Galinha Pintadinha no último
volume às seis da manhã para acordar o
coleguinha — brinco e me sento à mesa,
aguardando por ela.
— Foi só uma ideia, Dominic.
Eu nem cheguei a isso...
Quando seu café fica pronto, ela
senta-se de frente pra mim e beberica o
líquido quente com sua careta habitual.
— Vai pra loja agora?
Robin suspira desanimada.
— Segunda-feira. Lógico que
vou para aquele tormento diário... —
responde cabisbaixa.
Ela captura um bolinho de um
prato e só então percebo que ela os fez
antes mesmo que eu acordasse. São
bolinhos de chuva, rápidos e práticos de
preparar, se bem me lembro. Marta fazia
muito quando era pequeno.
— Fez isso agora? — pergunto
apenas pra confirmar.
Robin aquiesce e aponta o prato
com a cabeça, me dizendo pra comer.
Experimento um e fecho os olhos
me deleitando com o sabor. Ela é
incrível.
— Vai chover — comenta
aleatoriamente.
Quando não digo nada, apenas
tento enxergar pela janela se realmente o
tempo está se fechando, ela aponta com
o dedo para o bolinho que acabo de
pegar.
— Bolinho de chuva. Gosto de
levar ao pé da letra, quando chove, eu
faço.
Meneio a cabeça, achando graça.
— E se não chover? Agora você
já fez.
— Vai chover, ou eu não teria
feito — fala com convicção e dou de
ombros, afinal, o que importa não é a
chuva, mas o bolinho delicioso.
Pego outro no prato, lembrando-
me de não comer todos porque Bernardo
e dona Rute também vão querer.
— Você odeia a Magic’s — não
é uma pergunta, estou apenas
constatando o que vejo e sei que ela não
gosta da joalheria.
Ela assente, quieta.
— E por que não abre a
confeitaria, Robin? Sei que estou me
intrometendo, mas você nasceu pra isso
— falo, erguendo o bolinho. — Precisa
fazer seus doces, bolos... E olha que
estou falando de sabor, ainda nem vi o
que você pode confeitar, literalmente.
Robin fecha os olhos por um
instante e quando os abre, o brilho está
lá, como todas as vezes que o assunto
surge.
— Seria mágico. Mas eu não
posso, sabe? Não quero falar sobre isso,
ainda. Pode ser que um dia eu explique
meus motivos, mas não posso abrir a
confeitaria.
Assinto, compreendendo mais do
que ela diz. Posso ver nos olhos dela
que é uma autopunição, mas no que
depender de mim, ela também irá se
livrar disso. Um passo de cada vez.
Ela se levanta e segue para o
quarto e, por um instante, temo que tenha
me intrometido demais, muito rápido e
que isso a faça fechar-se pra mim, mas
quando ela retorna, tenho uma grata
surpresa.
Robin ainda veste seus blusões
largos e as calças desajustadas, mas os
cabelos estão apenas parcialmente
presos, descobrindo o rosto, mas caindo
livremente pelas costas e os óculos
desapareceram.
Ela sorri e é a coisa mais linda
que já vi.
— O que acha? — pergunta,
ansiosa.
Bato palmas animado e sorrio
junto.
— Está maravilhosa —
respondo.
— Pois hoje eu vou trabalhar
assim. É, Dr. Dominic, parece que suas
sessões de terapia fazem milagres. — Se
aproxima e me dá um beijo rápido nos
lábios, depois pega sua bolsa e sai de
casa, um pouco mais cedo que de
costume.
Termino meu café sozinho,
pensando em como poucos dias
ocasionaram uma mudança tão grande
nela. Estou ansioso para vê-la de
avental rosa e um vestido colorido, com
um daqueles sorrisos incríveis
enfeitando o rosto.
Eu também amadureci muito em
pouco tempo. O homem que se guiava
por aparência, como a maioria se
formos honestos, se foi. Robin é linda e
isso foi uma grata surpresa, mas antes de
notar isso, as qualidades que me
atraíram não se relacionam ao físico.
Robin é forte, amável, zelosa
com as pessoas que ama. É talentosa,
doce e batalhadora. E sim, muito bonita.
Deixo o apartamento enquanto
dona Rute e Bernardo ainda estão
dormindo e sigo para a clínica. Tenho
um paciente pela manhã e tento focar
minha mente apenas nele e no problema
que preciso e estou determinado a
solucionar.
O garotinho, Paulo, chega com
os pais para sua consulta e outra vez
entra sozinho, como faço questão.
Durante a semana anterior, me encontrei
com os pais dele uma vez, sem o
menino, e as respostas deles, ou melhor,
da mãe de Paulo, me ajudaram a ter uma
visão melhor da coisa toda.
— Bom dia, Paulo. E então, tudo
bem?
Ele acena, concordando.
Decido tentar uma abordagem
direta, mantendo o plano B reservado
para caso o menino não queira se abrir,
o que é mais comum.
— Paulo, você tem oito anos. É
um rapaz já... Sabe por que estamos
aqui? Por que precisa se consultar?
— Porque minha escola
informou aos meus pais que eu
precisava de tratamento e a psicóloga de
antes disse que eu minto muito.
Aquiesço.
— Isso mesmo. Mas Paulo, eu
não te acho um mentiroso e acho que
ninguém vai achar se você me contar
toda a verdade. Eu prometo que se você
falar, não vou deixar que te façam mal...
O menino pondera por um
momento e fico em silêncio aguardando.
Quando ele não diz nada, opto pelos
textos que dão tão certo com os adultos.
No caso de crianças, preciso aplicar
isso de uma maneira diferente, mais
lúdica.
Levanto-me e abro o armário,
retirando de lá um livro que já li e usei
tantas vezes que a capa está desgastada
e as páginas amareladas.
— Já ouviu falar sobre esse
livro? — Mostro a ele meu exemplar de
O Mágico de Oz e Paulo faz que sim
com um gesto. — Nele, uma garotinha e
seu cachorro acabam indo parar em Oz e
precisam encontrar um mago, mas
acabam fazendo amigos e embarcando
em uma aventura alucinante. Mas além
da ótima história, esse livro tem uma
frase que gosto muito, posso ler?
— Pode — Paulo me fita, atento,
acho que estranhando o rumo da
conversa.
— A verdadeira coragem está
em enfrentar o perigo, quando você está
com medo.
Deixo que ele pense a respeito
por um instante.
— Sabe o que isso quer dizer?
— Não espero sua resposta. —
Significa que, mesmo quando temos
muito medo de tomar uma atitude,
devemos fazer exatamente isso. Nos
tornamos ainda mais corajosos quando
enfrentamos o perigo, mesmo
amedrontados.
O garoto ainda não diz nada, mas
parece estar pensando no que eu disse.
— Eu gosto muito desse livro.
Se quiser, posso te emprestar, Paulo.
Você precisa ser corajoso e não se
preocupe, vou ficar ao seu lado contra
quem quiser te fazer mal.
Ele me observa com atenção, os
olhos analisando-me.
— Você é forte. Acho que se
prometer que vai me ajudar, eu posso
contar.
Bingo.
– Prometo que pode contar
comigo. Seu pai fez alguma coisa que te
machucou, Paulo?
O menino franze a testa, confuso.
— Meu pai? Não, senhor. Meu
pai é bravo, mas não me machuca.
Pelo visto nem sempre tenho
razão. Me levanto e abro o armário de
arquivos. De lá retiro a pasta dele e de
dentro dela, o desenho que Paulo fez na
última sessão.
— Você desenhou isso. —
Mostro a ele. — Esse garoto aqui é
você?
O menino balança a cabeça,
fazendo que sim.
— Certo. E quem é esse? —
Aponto para o homem de pé.
Apesar de hesitar um pouco,
Paulo acaba falando:
— É o senhor Eduardo.
Assinto. Por mais que esteja me
sentindo ansioso por saber que estou
prestes a compreender a situação,
mantenho a expressão neutra para não o
perturbar.
— Sua mãe me disse que você
falou que seu professor bateu em você,
te machucou de alguma forma. Mas
segundo ela, é uma moça que te dá aula.
O senhor Eduardo faz o quê na escola?
— Ele é o diretor. O trabalho
dele é punir as crianças desobedientes,
aí quando esquecemos a tarefa, ou
brigamos, vamos para a sala dele. Eu
não falei pra minha mãe que era ele,
fiquei com medo...
— Eu entendo. O que acontece
quando são mandados para a sala dele?
Paulo desvia o olhar do meu, fita
o chão.
— Paulo, o que ele faz com
vocês? — insisto. – Lembre-se de ter
coragem e que vou ficar ao seu lado,
seus pais também vão.
— Comigo ele não foi tão ruim.
Já fui parar na diretoria três vezes,
quando briguei com um colega, um dia
porque me atrasei e dessa vez, porque
eu colei na prova. Ele me jogou debaixo
da mesa, me puxando pelos cabelos, e
chutou minhas pernas também...
O menino ergue a barra da calça,
revelando um roxo que passaria
despercebido, como um hematoma por
pancada, muito comum na idade dele.
Fecho os olhos por um momento.
Se o agressor fosse o pai do garoto seria
muito pior, mas também seria algo
restrito a eles. Agora a situação ficou
mais complexa e envolve muitas outras
crianças e possivelmente funcionários
da escola que se fazem de cegos diante
do comportamento abusivo.
— E com as outras crianças? —
pergunto. Minha obrigação pode ser com
esse garoto assustado, mas minha
consciência jamais me permitiria ficar
calado quanto aos outros alunos.
— Não sei o que ele faz com
todo mundo. Mas as meninas, às vezes
tem que limpar a sala dele até brilhar e
o Vinicius disse que na última vez que
foi lá, o diretor abriu a calça. Acho que
queria fazer xixi na frente do Vini, mas a
professora Nice bateu na porta e ele não
fez.
– Sei... — respondo enojado.
Nessas horas queria ser como
uma criança. Inocente assim.
– Vai ficar tudo bem. Vou chamar
seus pais.
Quando eles entram e conto tudo
o que Paulo me disse, a mãe dele fica
estática, em choque, e me
surpreendendo, o pai é que chora sem
cessar.
Eu o entendo, se fosse um filho
meu, se fosse com o Minduim, que não é
sangue do meu sangue, eu não seria
muito diplomático para resolver as
coisas. Provavelmente acabaria na
cadeia...
Eles abraçam o filho e nós
acionamos a polícia, para que lidem
com o desgraçado e identifiquem
quaisquer abusos que ele tenha
cometido.
Depois de algum tempo,
resolvemos tudo que cabe a nós,
deixando o caso nas mãos das
autoridades e Paulo vai pra casa,
amparado por seus pais.
Os vejo deixar a clínica, agora
pela última vez e com o livro em mãos,
me recordo de outra frase dele:
Não há lugar como o nosso lar.
Ainda é hora do almoço e pelos
acontecimentos da manhã, parece que
faz dias que sai de casa. Cheguei ao
apartamento para ajudar dona Rute com
suas malas e levá-la para o lugar em que
mora, e deixar Bernardo no colégio. Os
dois já me esperavam arrumados.
Estou um pouco nervoso por
fazer isso, sendo o primeiro dia de aula
do moleque. Não sei como ele vai reagir
na escola nova, se vai chorar e o que
devo fazer se isso acontecer. Robin
também está preocupada, me mandou
mensagens com instruções a manhã toda,
disse que à tarde busca Bernardo e
conversa com a professora.
Primeiro nos dirigimos à escola,
que tem horário a se cumprir. Entro com
Bernardo e procuramos pela sala que
Robin especificou, enquanto a avó do
garoto me espera no carro.
Não é uma escola grande e logo
conseguimos achar a turma dele. Na
porta da frente, uma moça recebe os
alunos sorrindo e nos aproximamos
dela.
— Boa tarde — cumprimento.
— Esse é o Bernardo, é o primeiro dia
dele aqui.
Ela assente e continua sorrindo.
— Ele veio de outra cidade, não
conhece ninguém aqui. Então se puder
ficar de olho...
A mulher me olha de cima a
baixo, me deixando um pouco sem
graça, então me volto pro Minduim, que
espera de pé ao meu lado.
— Garotão, boa aula — falo
despenteando o cabelo dele.
Bernardo abraça minhas pernas
com o rostinho meio triste e me abaixo
para ficar da altura dele, o abraçando
também.
— Vai dar tudo certo, Minduim.
Quando você chegar vamos nos divertir,
certo?
Ele balança a cabeça
concordando, os cachinhos loiros
movendo-se também.
O vejo entrar na sala e aceno me
despedindo. Sinto um aperto no peito
totalmente sem sentido. É só a escola,
uma aula, e eu não tenho motivo pra me
sentir assim. Eu, hein.
Me despeço da professora e
começo a me afastar, mas então, algo me
vem à mente.
— Aqui... Qual o nome do
diretor da escola?
A expressão da moça é um pouco
confusa, mas ela me responde ainda
assim:
— É diretora, se chama Carmem.
Respiro aliviado e volto para o
carro.
— E então? – vovó Rute
questiona assim que abro a porta e me
sento no banco do motorista. — Eu nem
quis ver a carinha dele... Deu trabalho?
Olho pra ela e franzo o cenho.
— A senhora deixou a bomba
pra mim, então? E nem me avisou. Eu
não estava preparado, dona Rute.
Ela sorri e vejo que está sem
dentes. Meus olhos se arregalam com a
visão.
— Dona Rute! Cadê sua
dentadura?
A velhinha me presenteia com
outro sorriso desdentado.
— Coloquei em uma vasilha com
alvejante pra clarear... — responde,
como se fosse normal.
Talvez seja, nunca usei dentadura
para saber. Faço uma nota mental para
pesquisar sobre isso no Google e ligo o
carro, seguindo com ela para a casa de
repouso.
Estaciono em uma área verde e
desço as malas do carro enquanto ela sai
toda serelepe, cumprimentando seus
amigos que também estão retornando
hoje.
— Onde posso deixar suas
coisas? — pergunto.
— Pode entrar e seguir pelo
corredor, é a terceira porta à esquerda,
querido.
Ela está segurando a mão de
outra velhinha, que imagino ser uma
amiga querida, e apenas assinto me
afastando.
— Quem é o garboso, Rute? —
Ouço a pergunta da outra senhora e
acabo sorrindo. Essas idosas de hoje em
dia...
— É meu neto, sabe? Namora
minha neta. Eles acham que me
enganam... — Ouço a resposta e
paraliso onde estou. — Vou morar com
eles quando se casarem.
Ah, meu Deus.
Essa velhinha é de outro mundo.
Deixo suas coisas no quarto
indicado, sobre a cama estreita e acabo
me demorando analisando o lugar. Não
me parece ruim, mas não é um lar.
Suspiro, conformado. Não posso
tomar conta dela e nem mesmo pagar
alguém agora.
Deixo o quarto e me despeço de
dona Rute, antes de voltar para meus
atendimentos, ansioso para chegar em
casa, descobrir como foi o dia de
Bernardo e me encontrar com Robin.
Verifico se meu carro ainda se
encontra no estacionamento antes de
entrar no shopping para trabalhar.
Vasculho minha mente enquanto me
dirijo à joalheria, em busca de uma
solução para o conserto dele.
Talvez eu possa vender alguma
coisa que esteja parada...
Eu devo ter algo que pague o
mecânico.
Perdida em meio a esses
devaneios, chego em meu local de
trabalho e passo direto para dentro, a
fim de guardar minha bolsa. Demoro um
pouco a perceber que as conversas
cessaram e que todos me olham,
assustados.
— Robin? — Giovana me
chama.
Olho por sobre o ombro
esperando que diga o que quer.
— Uau... Eu disse que era ela,
Paula. Olha só, nem precisou mudar de
roupa, soltou o cabelo e... você está sem
óculos! Aliás, você enxerga sem eles?
Dou de ombros e abro um
sorriso sem graça. André está em um
canto observando tudo sem dizer nada.
— Agora ela sorri! Viu isso,
Giovana? — Paula questiona.
Que saco. Eu sabia que iriam
estranhar, mas não imaginei que fosse
ser tanto assim. Estão chocadas e eu nem
estou tão diferente.
— Claro que sorrio —
respondo, como se não fosse algo
anormal pra mim. — Sou humana.
Humanos dão risada e nem é como se eu
estivesse gargalhando.
Elas se entreolham, estranhando
minha atitude, mas André abre um
sorriso imenso — grande demais pro
meu gosto — e se aproxima de onde
estou.
— Robin, Robin... — ele fala.
— Você conseguiu me deixar sem
palavras por alguns minutos e isso é um
feito e tanto. Olhem isso... — diz para as
outras duas, apontando pra mim. — Ela
nem está vestindo nada bonito, não se
maquiou e ainda assim conseguiu ficar
mais atraente que vocês duas.
Sinto meu rosto arder de
constrangimento. Por mim, por elas e até
por ele, que não consegue filtrar os
pensamentos.
— Ao trabalho, meninas — ele
completa e passando por mim, apoia a
mão no meu ombro e aproxima a boca
do meu ouvido. — Está linda!
O vejo se afastar com uma
sensação incômoda no peito. Não foi
nada absurdo, mas a mudança de
comportamento dele, ou o agravamento
de repente, como se o simples fato de ter
alterado alguns detalhes em mim
piorasse o modo como me trata e vê, me
causa arrepios.
Não gosto desse novo André.
Menos ainda que gostava do anterior.
A manhã toda passa assim,
estranha, e a tarde não é muito diferente.
No meio do dia ouço uma
conversa estranha entre meu chefe e
Giovana e aquilo fica martelando na
minha mente algum tempo depois.
Passo pelo corredor para ir ao
banheiro e os vejo na sala dele, a porta
meio aberta.
— Não fale assim, Gio... Nós
nos divertimos muito. Só que já deu... —
André diz, e apesar das palavras não
serem grosseiras, o tom dele é de
descaso total.
Acabo parando no lugar, sem
conseguir me mover enquanto escuto
aquela conversa íntima demais para um
gerente e sua subordinada.
— Eu não queria, André. Você
sabe que não era o que eu queria no
começo, então agora, se vai me
dispensar porque seu olho grande já
mudou de foco, eu quero ser
recompensada, ou já sabe...
Antes que eu consiga me
esconder, Giovana deixa a sala no alto
dos seus saltos e me vê. Ela não diz
nada, mas abre um sorriso esquisito e
depois some rumo a loja.
Apesar de ter sido tudo, menos
normal, em meio a minha preocupação
com o primeiro dia de Bernardo na
escola, esqueço e acabo lotando
Dominic de mensagens, que ele retribui
de modo bem fofo e é o ponto alto do
meu dia.
Quase cinco da tarde eu deixo o
trabalho. Meu combinado com André é
de trabalhar na hora que seria meu
intervalo para o almoço e sair mais cedo
todos os dias para pegar meu filho no
colégio.
Por sorte é tudo muito perto e
consigo chegar até lá a tempo, mesmo a
pé.
Aguardo do lado de fora da sala
para conversar com a professora e
deixar meu contato direto, caso precise.
Os alunos vão saindo um a um e
logo Bernardo vem correndo com a
mochilinha nas costas, todo alegre.
— Oi mamãe, vamos logo. O
Dominic e eu vamos nos divetir.
— Ah é, filho? Vão fazer o que?
— pergunto.
— Isso não sei, mas vai ser
animal! — Bernardo fala e sorrio da
empolgação. Acho que animal nem é
uma gíria atual.
A professora caminha em nossa
direção, já com sua bolsa e preparada
para ir embora. Seu rosto se ilumina ao
nos ver ali, esperando.
— Oi! Você deve ser a mãe
desse rapazinho aqui... — diz ela,
bagunçando os cabelos de Bernardo.
— Sim, eu sou Robin —
respondo e estendo a mão em um
cumprimento. — Te esperei para deixar
o número do meu celular, caso precise
falar comigo em alguma emergência. Eu
sei que a escola tem, na secretaria, mas
fico preocupada. O Bernardo tem
alergia a amendoim e não pode comer
de jeito algum, é muito grave.
A moça assente, ainda sorrindo
de modo dócil demais.
— Certo, sem problemas.
— Tudo bem, então. Qual seu
nome mesmo? — pergunto, percebendo
que não me informei sobre isso.
— Cíntia — ela diz. — Sempre
que precisar de alguma coisa, mamãe,
estou à disposição.
Assinto. Que moça simpática.
— Então é isso, Cíntia. Muito
obrigada...
Seguro a mão de Bernardo,
pronta para irmos embora.
— Na verdade, Robin, queria
perguntar uma coisa. Mas promete que
não vai pensar mal de mim?
Faço que não com um gesto, já
achando tudo meio estranho.
— Hoje na entrada para a aula,
um homem veio trazer seu filho. Eu
perguntei ao Bernardo, que me disse que
não era o pai dele e nem seu namorado...
Ah, Deus. Isso não pode estar
acontecendo.
— Sim, eu não pude vir e ele
trouxe Bernardo pra mim — balbucio
uma resposta.
— Então... — ela prossegue,
mas pelo brilho em seus olhos, já sei
muito bem o que tem em mente. — Ele é
lindo, sabe? Não costumo agir assim,
desculpe se estiver parecendo atirada
demais, mas senti mesmo que pintou um
clima entre nós e queria saber se pode
me passar o contato dele.
Pintou um clima? Sério?
Não sei o que responder a isso.
Não posso dizer que apesar de não ser
meu namorado, temos algo, porque
Bernardo olha dela pra mim, curioso.
Também não posso me negar a passar o
contato por birra.
A única coisa que posso fazer é
inventar uma desculpa.
— Olha, Cíntia, você me parece
muito legal e eu adoraria te passar o
contato... — Mentirosa. — Mas
acontece que não sei como ele encararia
isso. Tenho receio de que brigue
comigo, ache ruim por não ter
perguntado antes se podia.
A expressão dela murcha um
pouco, mas parece compreender bem
minha explicação. E não é uma mentira,
afinal, mesmo que não fosse Dominic,
não passaria o número de algum amigo
para uma desconhecida sem ter
permissão.
— Tudo bem, Robin. Você está
certa... Ele vem trazer Bernardo
amanhã?
O pior de tudo é que
provavelmente, ele o faça.

Na volta pra casa, Bernardo está


mais falante que de costume. Me conta o
que aconteceu na escola, fala sobre os
garotinhos que conheceu e a professora
que é muito legal. Sei...
Comenta animado sobre a
divessão com Dominic e eu ouço tudo
com atenção, apesar de ainda estar
irritada com o descaramento da mulher.
Quando chegamos ao
apartamento, antes mesmo de abrir a
porta sei que temos visitas. Ouço a voz
de Dominic e de uma mulher, e minha
curiosidade já é atiçada.
Entramos e o vejo
instantaneamente. Está sentado no sofá,
os cabelos úmidos que mostram que
deve ter saído há pouco do banho e de
frente pra ele, no outro sofá, está sua
irmã, Alice.
Me lembro do modo como fui
grosseira na primeira vez em que a vi e
me sinto um pouco envergonhada, mas
não há muito o que ser feito pelo
passado, apenas posso tentar remediar a
situação.
— Olha quem chegou! —
Dominic fala, empolgado. — E aí
amigão? Animado pra gente brincar?
Bernardo solta minha mão e
corre ao encontro dele. Fico paralisada
observando a interação dos dois, que
parecem ter agora um aperto de mão
exclusivo.
— Oi, Robin... — ele
cumprimenta, sorrindo.
— Boa noite — respondo, um
pouco tímida diante do olhar da irmã
dele.
— Alice, essa é a Robin e esse
garotão aqui é o Minduim. Robin, essa é
minha irmã, Alice. — Por mais que seja
apenas simbólica, a apresentação ajuda
a quebrar o gelo.
— Oi! — Estendo a mão para a
cumprimentar e ela sorri, retribuindo o
gesto. — Muito prazer em conhecê-la.
De novo.
Alice parece achar graça.
— O prazer é meu, Robin. Hoje
você está bem diferente — comenta de
repente.
— Ah, sim. Os óculos... —
respondo, trocando o peso de uma perna
para a outra.
— Não. — Ela balança a
cabeça, negando. — Você está
simpática.
Ai, Deus. Entrar sob o tapete
parece cada vez mais atrativo.
— Sobre isso, hum...
— Alice, para de fazer isso —
Dominic a repreende, sério.
— Não — interrompo. — Ela
tem razão, fui rude no outro dia. Sinto
muito.
Como ela não diz nada, acabo
completando.
— Você vai compreender a
situação e provavelmente concordar
comigo. Deixei o Bernardo com ele... —
Aponto para Dominic. — Que disse que
cuidaria do meu filho, se ofereceu pra
isso, mas quando chego em casa tem
uma mulher com ele no quarto. Era você,
mas eu não sabia disso.
Agora ela está rindo
abertamente. Mas em meu nervosismo,
não paro de falar:
— Brigamos por isso e Dominic
prometeu que não traria mais mulheres
aqui, eu acreditei. Chego em casa e me
deparo com você, na sala, dizendo que
estava esperando por ele. Achei que era
uma... amante.
A sobrancelha dela se ergue.
— Quem tem amante é homem
casado — fala, ainda sorrindo, a mesma
frase que ele me disse antes. — Mas eu
entendo. Na verdade, me desculpe por
provocar você de dentro do quarto, foi
muito infantil, mas tem horas... que eu
não sei ser adulta.
Acabo sorrindo do comentário e
por fim, aceno concordando.
— Me deem licença. Vou
preparar alguma coisa pro pequeno
furacão comer — falo me referindo ao
Bernardo que já pula pra todo lado em
um falatório sem fim.
— Não se preocupe. — Alice se
levanta. — Eu já estou indo, vim apenas
trazer um presente antecipado de
aniversário pro Dom.
Dominic também se coloca de
pé.
— Legal — respondo. — Foi um
prazer, Alice, de verdade. Um pouco
vergonhoso, mas ainda assim um prazer.
A vejo sorrindo e acenando com
a cabeça, concordando com minha visão
da coisa toda.
Dominic a acompanha até a porta
e eu sigo para a cozinha. O aniversário
dele está próximo, pelo que Alice disse
e eu honestamente não sei o que ele
espera de mim em um caso como este.
Mas coloco a questão de lado por um
momento.
Abro os armários em busca do
que fazer e ouço os passinhos do
Minduim atrás de mim, pouco depois.
— Mamãe, pode fazer
bigadeiro? — ele pede.
Dominic entra em seguida e seu
olhar me aquece. A vontade de caminhar
até ele e lhe dar um beijo é difícil de
controlar e pelo jeito como sorri pra
mim em cumplicidade, sei que pensa o
mesmo.
Ele não pode ter dado moral pra
professora... Não pode.
— Eu ouvi bigadeiro? —
pergunta, imitando Bernardo. —
Adoooooro chocolate.
— ÉÉÉ... — Bernardo grita com
os braços erguidos e se vira pra mim de
novo. — Faz, mãe! A gente quer muito.
Ele junta as mãozinhas como
sempre faz ao implorar alguma coisa e
pra meu total derretimento, Dominic
decide que é hora de ser fofo e faz o
mesmo.
Como resistir a isso?

O cheiro do chocolate trilha o


caminho da cozinha até a sala, onde eu e
Bernardo preparamos nossa cabana.
Virei os dois sofás, um de costas
para o outro e em uma distância
considerável. Por cima deles, coloquei
os lençóis cobrindo tudo. A altura pra
mim é baixa e só posso ficar sentado e
ainda assim bastante encolhido.
— Tá ficando demais! — O
garoto festeja, mas eu não estou
satisfeito.
— Espera aí, Minduim...
Corro até a pequena despensa
que temos atrás da cozinha e analiso o
material à minha frente. Um rodo, uma
vassoura, um pedaço comprido de cano
sem utilidade alguma até agora e o varão
de uma cortina que não cheguei a
instalar. Vai ter que servir.
Munido do material de
construção, volto para a sala, antes
passando por Robin que está mexendo o
brigadeiro no fogo, sem cessar.
Ela está linda, com seu avental
colorido. As lembranças do sonho
voltam com força total e acabo parando
atrás dela.
— Ei — sussurro.
Ela se vira pra mim, ainda sem
parar de mexer o doce e roubo um beijo
rápido, saindo correndo em seguida.
Bernardo está enfiado dentro da
cabana, me esperando e não parece
muito feliz ao me ver retirar os lençóis.
— O que você tá fazendo, cara?
— pergunta, me arrancando uma risada.
Ele ainda puxa o r muito forte e em
algumas vezes omite mesmo.
— Vou aumentar nossa cabana,
cara — respondo. — Tenha confiança
em mim.
Coloco nossas quatro colunas
nos cantos dos sofás, entre os assentos e
os braços e depois amarro as pontas do
tecido em cada um, deixando o espaço
mais amplo e bem firme.
— Agora posso entrar? — Ele
está pulando, bem agitado.
— Ainda não... Quando eu
terminar, aqui vai ser nossa cabana da
vida. Do lado de dentro dela, podemos
conversar sobre qualquer coisa e todos
os segredos ficam guardados ali —
invento na hora.
Ouço seus resmungos enquanto
corro até meu quarto. Retiro um
colchonete fino que tenho embaixo da
cama. Guardo desde a antiga casa, para
as vezes em que alguém passava a noite
lá. Na maioria delas, Alice, que
aparecia sem avisar.
Volto para a sala e forro o chão
da barraca com o colchão fino e depois
retiro as almofadas dos dois sofás e
também coloco na nossa casa
improvisada.
Finalmente deixo Bernardo
entrar. Ele logo se deita em uma das
almofadas e encara o teto de tecido. Me
deito do lado esquerdo e ambos olhamos
pra cima, quietos, até ele soltar a pérola.
— Eu adoro acampar, marujo.
Dou risada e ele me olha,
tentando encontrar a graça. Está tão
sério, daquele jeitinho engraçado que só
crianças pequenas assim conseguem ter,
e eu acabo rindo ainda mais.
— Vem aqui, marujo... — Me
viro na direção dele e o ataco com
cócegas.
Minduim ri alto e se contorce,
esperneando enquanto tenta se livrar e é
assim que Robin nos encontra quando
abre a porta da barraca — leia-se:
ergue o pedaço de lençol caído.
— O que é isso? — pergunta,
achando graça.
— A cabana da vida —
respondo, disfarçando. Sei muito bem
que ela se refere às gargalhadas
descontroladas.
— Vem, mãe. Fica com a gente...
Aqui podemos falar sobre qualquer
coisa, sabia? O poder da cabana é que
nenhum segrredo pode sair de dentro
dela — Bernardo chama e se afasta para
um canto, dando espaço.
Eu chego mais perto dele e
Robin entra, sentando-se ao meu lado.
— Sentem-se... Marujos — fala,
deixando claro que ouviu o comentário
do filho. — Trouxe o alimento para a
tripulação.
Ela mostra o prato com o doce e
oferece uma colher a cada um de nós.
— Mãe, tipulação é da água,
aqui a gente é escoteino marujo. Não é,
Dominic?
— Claro, marujo — respondo e
Robin meneia a cabeça.
— Entendido — ela diz. —
Então trouxe o alimento dos escoteiros.
Agora sim, Bernardo obedece e
se aproxima do prato com a colher.
Robin o auxilia e depois, oferece o doce
pra mim, que não demoro a pegar uma
parte generosa.
Comemos o brigadeiro juntos e
depois peço comida, livrando Robin da
cozinha por uma noite e prometendo a
ela que no dia seguinte, sem falta, eu iria
limpar a casa.
A comida chega um tempo
depois e comemos dentro da barraca
ainda, porque Minduim se recusa a sair
e devo admitir que estou gostando da
brincadeira.
Nos deitamos os três, lado a
lado e começamos a contar histórias de
marujos que andam em terra firme.
Conto algumas que me lembro, invento
outras e por fim, acabo me recordando
da manhã complicada que tive na clínica
e decido narrar as aventuras de Dorothy
em O Mágico de Oz.
— Então tio Henry, que já não
conseguia pagar a hipoteca... Aluguel —
modifico ao me dar conta de que o
pequeno não deve saber o que é uma
hipoteca.
— Ele dormiu... — Robin
sussurra, me interrompendo.
Olho para o lado e vejo que
Bernardo realmente adormeceu no meio
da história.
— Quer que eu o leve pra cama?
— pergunto em tom baixo.
— Pode deixar, eu o carrego.
Faço que não e me sento,
preparando-me para pegar o menino.
— Vai na frente e arruma a cama
dele.
Ela sai da cabana na frente e eu
chego a cogitar a possibilidade de
desfazer a barraca, facilitando a tarefa
de sair com Bernardo, mas prefiro não o
fazer.
Me levanto com ele nos braços,
andando um pouco encurvado e acabo
conseguindo sair com algum esforço.
Chego ao quarto e vejo sua mãe
ao lado da cama, ligando o abajur.
Coloco-o com a cabecinha sobre o
travesseiro e seguro Robin pela mão
logo depois.
— Shiiiii... — Faço o sinal de
silêncio. — Vem comigo.
A arrasto de volta pra cabana e
ela entra comigo, rindo.
— Venha senhorita, bem vinda à
cabana da vida...
Me deito e ela faz o mesmo ao
meu lado, mas a puxo para que sua
cabeça fique sobre meu peito.
— Como foi seu dia? —
pergunto, realmente interessado.
Ela suspira, pensativa e não diz
nada.
— Tudo bem, eu começo. Tive
uma manhã difícil com um garotinho que
estava sendo vítima de violência por
parte do diretor da escola em que
estuda, envolvi a polícia no caso e tudo
mais. Bem estressante. — Penso no que
veio depois. — Então levei Bernardo
pra aula, ele estava querendo chorar e
eu com medo de ser a mesma escola do
Paulo, o garoto que atendi de manhã,
mas no fim deu certo. E aí levei sua avó
pra casa...
Faço uma pausa, sem saber se
devo dizer o que pensei do lugar. Acabo
escolhendo a franqueza.
— Achei tão impessoal, sabe?
Não gostei muito. Bem, além disso
pensei em você em todo o tempo,
durante todos os acontecimentos.
— Nossa, perto da sua manhã,
meu dia foi bem normal... — ela
comenta.
— Então me conta — a
incentivo.
Ela fita o tecido acima de nós e
começa a relembrar.
— Foi esquisito... Todo mundo
agiu estranho no trabalho, me trataram
diferente só por causa dos óculos e do
cabelo... — responde, incomodada. —
Estou sentindo falta da vovó e ela mal
saiu daqui, também fiquei preocupada
com Bernardo na aula.
Assinto, compreendendo. Mas
prefiro provocar.
— Quer dizer, que a última coisa
em que pensou foi em mim? Aliás, nem
estou incluso nessa lista aí...
O som de sua risada ainda faz
meu coração acelerar.
— Pensei em você, sim. Quando
fui buscar Bernardo na aula e a
professora dele me pediu seu número de
celular, alegando que pintou um clima
entre vocês.
Viro o rosto para vê-la melhor.
— Tá brincando?
Robin faz que não.
— Caralho... — falo. Por essa
eu não esperava. — Que coisa doida, de
onde será que saiu isso? E se eu fosse
seu marido? Que mulher louca.
Vejo que ela desvia o rosto do
meu ao som da palavra marido. Nem vi
quando falei, no automático.
— Ela perguntou pro Minduim
antes, se você era pai dele ou meu
namorado.
— Hum... Foi esperta. Eu gosto
das espertas. Acha que deveria ligar pra
ela?
Sinto o corpo de Robin enrijecer
ao meu lado. As vezes esqueço que ela
ainda não me conhece bem o bastante
para entender todas as piadinhas bobas.
— Não sei, você quem tem que
decidir — responde, muito séria.
É ainda mais linda com ciúmes.
— Robin — chamo e ela me
encara finalmente. — Eu sei que não é
um namoro, mas eu não gosto de dividir
nada, ouviu? Já basta o apartamento.
Então, nem me venha com essa de
decidir sair com cinquenta homens,
porque eu sou o único, docinho.
Ela estreita os olhos, ainda séria.
— Cinquenta homens? Não sei
lidar nem com você, imagine com mais
quarenta e nove. Provavelmente
enlouqueceria.
— Isso significa que eu não vou
sair com ninguém também e que o único
clima que pintou hoje, foi o do frio, lá
fora. Notou como está esfriando?
Ela ri por fim da minha bobagem
e me dá um beijo no rosto, mas me viro
no último instante e beijo sua boca.
O beijo, que era brincadeira, se
transforma em algo mais no segundo em
que nossos lábios se tocam. O carinho e
a despretensão do momento, viram fogo
instantaneamente.
E a noite termina assim, com
Robin em cima de mim retirando o
avental e o aroma de chocolate cobrindo
tudo e a nós dois.
Sonhos que se realizam.
A semana passou, me levando a
crer que uma pessoa pode, sim, estar
extremamente feliz e frustrada ao mesmo
tempo. Não existe essa coisa de estar
cem por cento de um jeito ou do outro,
ou você é feliz e acontecem alguns
percalços que te deixam
momentaneamente triste ou você é triste
e tem instantes de alegria.
O fato é que apesar de não
termos definido nada sobre nosso
relacionamento, é exatamente esse limbo
no qual estamos vivendo que me faz
bem. Como se vivêssemos em um
mundinho só nosso dentro do
apartamento. Em meus devaneios mais
insanos, visualizo Dominic, Bernardo e
eu como uma família de comercial de
margarina.
Apesar dessa euforia toda,
precisamos trabalhar e na joalheria as
coisas vão de mal a pior. E a cada dia,
quando penso que o limite foi atingido,
as coisas ficam mais ruins.
Na terça-feira fui trabalhar
pisando em nuvens de algodão doce.
Havia tido uma noite incrível com
Bernardo e Dominic e passei a
madrugada com o homem incrível que
vive comigo e que se revela mais
maravilhoso a cada dia.
Mas o doce se transformou em
amargo rapidamente, porque quando
entrei na loja na quarta-feira, Paula me
disse que André queria falar comigo e
fui direto à sua sala, tentando me
lembrar de algo que justificasse uma
bronca e me recordando da conversa
suspeita que ouvi entre Giovana e ele.
Bati na porta e ouvi a voz dele
me dizendo para entrar.
— Queria me ver? — perguntei.
— Robin, sente-se aqui... —
disse, apontando a cadeira a sua frente.
Atendi ao seu pedido, um pouco
apreensiva.
— Sou um homem compassivo,
Robin. Chamei você aqui uns dias atrás
para repreendê-la e como tenho notado
seu empenho em ao menos tentar fazer o
que pedi, quis parabenizá-la por seus
esforços.
Ele estava achando que as
mudanças sutis em minha aparência
fossem por causa da repreensão.
— Hum... Obrigada, André. Mas
não é nada demais, eu só soltei os
cabelos — repeti a frase que já havia
dito centenas de vezes naquela semana.
— Nada demais? Querida, você
está se sujeitando a andar por aí
cegamente, apenas para cumprir um
desejo meu, mostrando seu rostinho
bonito para nossos clientes.
Demorei um pouco a entender
que ele se referia aos óculos, que nunca
precisei. Mas André não sabia disso.
— Ah, sim. Tudo bem, eu dou
um jeito... — respondi. Não podia
admitir que usava apenas para afastar a
atenção indesejada. Como a dele.
Notei que seus olhos
fiscalizaram meu corpo, analisando
meus seios na blusa um pouco mais
ajustada que acabei vestindo, pensando
em Dominic apenas. O desconforto
bateu forte.
— Como recompensa por ter
sido uma menina boazinha, tenho um
prêmio para você.
André se levantou da poltrona,
deu a volta na mesa e sentou-se na
beirada dela, de frente pra mim. Tinha
uma caixinha de veludo nas mãos e a
abriu, fazendo cerimônia.
Dentro dela, havia um colar
lindíssimo. Eu conhecia o modelo
porque tínhamos um idêntico na vitrine,
era de ouro e com um pingente
incrustrado de pequenos diamantes e
valia mais que tudo que eu possuía,
somando.
— Esse colar é seu. Fez o que eu
pedi e toda essa disposição precisa ser
recompensada, não acha?
A mão dele tocou minha perna e
levantei-me em um pulo, como se
houvesse levado um choque e não um
dos bons. Finalmente entendi que aquilo
era uma proposta indecente e pouco
sutil.
— Obrigada, André. Não posso
aceitar sua generosidade — respondi.
— O colar é lindo e muito caro e eu não
mudei um pouco a aparência porque
você pediu, fiz isso pra agradar meu
namorado.
Ao som da palavra namorado, o
cenho dele se franziu.
— Eu não sabia que tinha
namorado...
Nem eu.
— Tudo bem, Robin. Pode ir,
então — respondeu, zangado.
Deixei a sala quase correndo e
quando cheguei na loja, percebi que as
outras garotas me encaravam. Paula foi a
primeira a se manifestar.
— E então? Ganhou um
presentinho do patrão? — perguntou
com um sorriso, enquanto Giovana me
olhava de cara feia. Paula também
notou. — Ah, não liga pra Gio. Ela era a
preferida dele, ganhou um anel de
esmeraldas lindo quando chegou aqui e
nós vimos o colar que desapareceu da
vitrine. Você está valendo muito.
A palidez em meu rosto e a falta
de resposta entregaram como me sentia
com aquilo.
— Ah, você não aceitou o
presente, não foi? A Giovana também
não, quando ele ofereceu a primeira vez.
Mas isso só o tornou mais... insistente.
Será que eu estava entendendo as
coisas direito? Elas não podiam falar de
assédio naquela naturalidade. Aceitar as
investidas dele por algumas joias?
— Isso é sério? Vocês encaram o
que ele faz assim? — pergunto, tentando
me acalmar e ouvir o lado delas.
— Por que, não? — Giovana é
quem responde, agora. — Não é como
se fosse um sacrifício, ele é bem bonito.
Desde esse momento estranho,
tentei me manter o mais afastada
possível das duas. Não que eu as
estivesse julgando. Bom, talvez um
pouco, mas era muito absurdo.
Se fosse algo exclusivo, eu ainda
tentaria inventar desculpas, acreditar
que era romance, por mais que não
parecesse. Mas as duas? Uma tendo
conhecimento da outra e aceitando
aquilo em troca de presentes caros?
Tive medo a tarde toda e na
quinta também, mas apesar de alguns
olhares mais indiscretos, André não
tentou outra aproximação e fiquei mais
calma. Afinal, ele era um assediador e
ordinário, mas eu não era obrigada a
aceitar suas propostas. Não era como se
ele fosse me arrastar pro mato e me
forçar.
Por isso também não comentei
nada em casa, com Dominic. Não achei
necessário levar um assunto como esse
até ele, mesmo porque deixar o emprego
nunca foi uma opção.
A sexta-feira chegou, e como
acabei descobrindo, aniversário do
Dominic. Eu disse a ele que não
poderíamos sair sozinhos, não tinha com
quem deixar o Minduim e apesar da
insistência de Dominic, Bernardo não
conseguiria assistir um filme inteiro no
cinema, em silêncio — eu já havia
tentado. Mas ele me ofereceu outra
opção.
Pediu a Alice para ficar com
Bernardo até às nove da noite, de modo
que pudéssemos ir ao cinema e ainda
voltar a tempo de passarmos algum
tempo com ele, tomando sorvete —
condição imposta pelo meu filho.
Concordei depois de ligar pra
Alice, perguntar diversas vezes se
realmente estava tudo bem e me
certificar de que não era um problema.
O constrangimento foi palpável, ter que
conversar com Alice sobre os nossos
planos, sendo ela a irmã dele.
Com isso definido, comprei um
livro pra Dominic de presente. Não
tenho dinheiro para extravagâncias e sei
que ele gosta de ler, então teria que ser o
bastante. Também deixei tudo preparado
para assar um bolo de chocolate para
comermos com o sorvete e cantarmos
parabéns em casa.
Como finalmente meu carro foi
consertado, depois que arrumei um
mecânico barato e que aceitou dividir a
conta em duas vezes, hoje dirigi até a
joalheira, chegando um pouco antes do
horário.
Sou chamada por André outra
vez em sua sala. Prendo meus cabelos,
tentando evitar os olhares dele e seus
dedos nojentos que agora tocam nos
meus fios sempre que podem.
Bato na porta com o coração
disparado, implorando a Deus que ele
não faça nada que ultrapasse o aceitável
— ainda mais que o que tem feito —
porque preciso do trabalho e não posso
me manter aqui se ele fizer isso.
— Entre. — Sua voz me alcança.
Passo pela porta e a deixo
aberta, propositalmente.
— Robin, hoje vou precisar que
fique até as sete, tudo bem?
E lá se vai meu banho, antes do
encontro.
— Claro. Posso perguntar o
porquê?
A sobrancelha dele só falta se
colar à testa, mas mesmo desaprovando,
me responde:
— Chegaram peças novas e
preciso que cadastre tudo pra mim no
sistema de vendas. A Giovana e a Paula
já fizeram nas últimas vezes, então agora
será você.
Apesar de ser uma tarefa de
assistente administrativo ou uma
secretária, como a joalheria não tem
esses funcionários na folha de
pagamento, sobra para as vendedoras.
— Tudo bem.
— Pode ir. — Ele me dispensa e
volta os olhos pro computador, não me
dando maior atenção.
Envio uma mensagem ao
Dominic, informando a ele que não vou
poder ir em casa e perguntando se é
possível que busque Bernardo na escola
pra mim e me encontre já no cinema, que
fica no shopping mesmo.
Ele responde pouco depois,
dizendo que não tem problema e fico
menos preocupada.
O dia transcorre sem maiores
acontecimentos e quando passa pouco
das seis, Paula e Giovana vão embora e
André fecha a porta de entrada do local,
nos trancando do lado de dentro.
Isso faz com que um alarme soe
na minha cabeça e começo a me sentir
um pouco sufocada, mas ele apenas cede
o assento em seu escritório e dita
algumas coisas para que eu cadastre.
Depois de mais ou menos uns
quinze itens, terminamos.
— Prontinho — fala, sorrindo.
Desligo o computador e me
levanto. Passo por ele, me dirigindo ao
banheiro para jogar uma água no rosto e
arrumar meus cabelos antes de sair para
encontrar Dominic.
— Robin — ele me chama
quando já estou na porta.
Olho para André, sentado na
cadeira em que costumam se sentar os
visitantes e espero.
— Não quer repensar meu
presente? Você é uma moça inteligente,
não vou insultá-la fingindo que só estou
oferecendo um colar, mas nós podemos
nos dar bem. E eu sou muito generoso.
Fico parada o encarando,
temendo seus próximos movimentos. Se
eu disser não, o que ele vai fazer?
— Vi seu carro... — ele
continua. — Se não quer joias, posso te
ajudar com outras coisas que precise,
com despesas talvez. Você tem um filho
pra criar, essas coisas são complicadas.
Ele fala como se realmente se
importasse, como se não estivesse
oferecendo-se para ajudar meu filho,
transformando a mãe dele em uma
prostituta.
— Eu não estou interessada,
André — respondo por fim. — E não
gosto dessas suas propostas, me
ofendem.
Me viro de costas e ouço o
arrastar da cadeira. Em segundos ele
está diante de mim, seu corpo me
prensando contra a porta da sua sala.
— Tem certeza? — A mão dele
toca meu pescoço com leveza, mas o
desejo em seus olhos me assusta.
— Sim. Se afaste, por favor.
Ele ri e me mantém presa no
lugar.
— Robin, deixa de ser teimosa...
Eu não sou um velho horroroso te
oferecendo presentes. Vamos nos dar
muito prazer e você será mimada.
— André, eu juro que vou gritar.
Várias outras lojas ainda estão abertas
— argumento, mesmo que eu saiba que
ali dos fundos, podem não me escutar.
— Alguém vai me ouvir.
— Eu gosto quando gritam —
responde com um sorriso cínico.
Animal.
Percebo que a estratégia de
persuasão falhou, tentei argumentar e
não deu muito certo. Minhas pernas
estão presas entre as dele, o que me
impede de dar uma joelhada que o deixe
imobilizado. Acabo fazendo a única
coisa que me vem à mente em meio ao
desespero.
Projeto minha cabeça pra frente
e bato com força no nariz dele. André
solta um grito de dor e as mãos voam
para o rosto, que começa a sangrar.
Aproveito a distração e corro
para o banheiro, me trancando ali. Como
a porta da frente está fechada, sei que
me veria sem saída e com ele em meu
encalço. Aqui posso ao menos ganhar
tempo.
Me encosto na porta e sinto meu
corpo ceder, sentando-me no chão. Estou
apavorada, temendo que ele coloque
essa porta abaixo e faça algo terrível.
Meu celular ficou na bolsa, na
frente da loja e só posso rezar para que
ele desista dessa insanidade e vá
embora.
— Robin! Abre essa porta, sua
maluca! — grita, transtornado. — Você
quebrou meu nariz, está sangrando,
sabia? Eu vou te matar, sua cadela.
Fecho os olhos, respiro fundo e
aperto forte as unhas nas palmas da mão.
Ele começa a esmurrar a parede
e dar pontapés na pequena chapa de
madeira que nos separa, ameaçando
derruba-la. As lágrimas começam a
descer ao mesmo tempo em que o ouço
investir em mais golpes contra a porta.
Eu estou morta.
Após receber a mensagem de
Robin, começo a me preparar para
buscar Bernardo no colégio e por isso
reagendo alguns pacientes para mais
cedo, de modo que as cinco da tarde já
esteja livre.
Rosana é uma das pacientes
particulares que recebi da colega que
substituí e sua consulta é a última do
meu dia.
É uma mulher de trinta e poucos
anos, que vive em um estado depressivo
e letárgico. Acredito que a tristeza seja
ocasionada por um motivo concreto e
suspeito de que tenha relação com seu
casamento, mesmo que ela ainda não
tenha me dito com todas as letras. Sua
relação parece firmada em abusos
morais.
Em nossa segunda sessão, ela
chegou ao consultório e notei um vergão
vermelho em seu pescoço. Por mais
indelicado que fosse, a questionei a
respeito e ouvi uma desculpa que não
fazia o menor sentido. Notei também que
tinha dificuldade para olhar em meus
olhos e que suas mãos tremiam um
pouco.
No dia anterior, preparei com
muito cuidado os versos que lhe
entregaria para que refletisse, esperando
causar algum impacto positivo.
Coloco o papel sobre a mesa
aguardando sua chegada, mas Rosana se
atrasa cerca de quinze minutos. Quando
chega um tanto apressada e agitada, me
diz que não pode ultrapassar o horário
de costume.
Decido ser objetivo.
— Rosana, quero que leia o que
está escrito nesse papel. Não de maneira
mecânica, mas absorvendo as palavras e
tentando encaixá-las em sua realidade,
certo? — Ela assente. — Não precisa
ler em voz alta, apenas pra você, e
pensar no que elas querem dizer e qual o
efeito delas em suas emoções, tudo
bem?
Rosana aquiesce outra vez.
Vejo suas mãos alcançarem o
bilhete e então seus olhos estão sobre a
folha, devorando cada palavra que
escrevi ontem à noite.
Eu pensava nos problemas que
imaginei fazerem parte de sua vida e no
que essa mulher fragilizada precisava
ouvir, mas enquanto refletia a respeito,
observava Robin dormindo, o corpo
subindo e descendo com a respiração
calma.
Acabei considerando as
amarguras que a tornaram fechada e
retraída e que aos poucos desapareciam
diante dos meus olhos. Ver uma mulher
subjugada se impor e desabrochar, causa
mais fascínio que a primavera matizando
o mundo em cores.
Rosana podia se libertar
também.
Me lembro de ter escrito mais ou
menos o seguinte:
A força da mulher por vezes é
silenciosa, não consiste em erguer a
voz e cerrar os punhos, mas em
subsistir dia após dia, levantar-se e
admirar o brilho do sol mesmo quando
sua alma segue mirrada e pequenina.
Mas até que ponto essa
existência é válida? É vida? É legítimo
doar sua luz em favor de outros,
apagando o próprio brilho?
Que o vigor que a sustentou até
aqui se prolifere e confira às suas
pernas impulso para correr.
Autoridade, verbos, adjetivos e
eloquência, para uma vez ao menos,
declarar amor... por si mesma.
Os dedos frágeis dela tocam a
própria face, lutando para apagar as
provas da emoção. O rosto encara o
papel depositado sobre o vestido.
— Quer falar sobre isso,
Rosana?
Ela move a cabeça de um lado
para o outro, negando.
— Tudo bem, então. Vou falar
algumas coisas e peço que apenas
assimile. Se eu estiver dizendo
bobagens, algo que não tem nada a ver
com sua realidade, pode me parar a
qualquer momento.
Rosana continua de cabeça
baixa.
— Nunca existiram, de verdade,
diferenças entre homens e mulheres, não
em vários aspectos. Somos todos seres
humanos, dotados de sentimentos,
emoções, pensamentos e vontades. Mas
a sociedade acabou perpetuando uma
crença de que as mulheres deveriam
obedecer, e que os pais e maridos
tinham o poder de decidir por elas. Isso
não faz o menor sentido, concorda?
Afinal, as mulheres trabalham, lutam,
amam, odeiam, tanto quanto os homens e
mais, porque elas geram a vida.
Vejo que ao menos ela parece
atenta e isso me motiva a continuar.
— Então, algumas mulheres
decidiram que era hora de mostrar que
aquilo não era justo. Se somos iguais em
tantas coisas, por que deveriam se
contentar em servir? Em obedecer? Em
ser privadas de escolhas? Essa luta dura
muito tempo e vai continuar ainda, mas
hoje as coisas já são melhores que antes.
Hoje você pode gritar e vai encontrar
pessoas dispostas a te ouvir e apoiar,
pode procurar as autoridades ou um
cartório. Hoje, muitas doenças como a
depressão, a angústia e a ansiedade, em
alguns casos podem ser vencidas com a
força que vem de você e com o desejo
de felicidade.
— Acha mesmo que é tão fácil,
doutor? — ela sussurra.
Suspiro com pesar; não é fácil,
mas a alternativa é muito pior.
— Não. De maneira nenhuma. É
difícil, doloroso, mas possível. Não
estou dizendo que todos os problemas
podem ser resolvidos com um basta,
mas se você se abrir, posso te ajudar a
resolver cada um deles. Você precisa ao
menos tentar ser feliz, se acostumar com
a tristeza é a pior escolha.
A vejo assentir, permitindo que
mais algumas lágrimas escapem.
— Eu vou... pensar em tudo que
disse. Obrigada — fala, com pesar. —
Posso levar? — pergunta, se referindo
ao papel que entreguei.
— Claro, Rosana. Leve e leia
quantas vezes puder durante a semana,
na próxima sessão conversamos mais.
Ela se levanta, nos despedimos e
logo Rosana deixa o consultório. Pego
sua ficha e faço algumas anotações,
depois tranco tudo e sigo até o colégio
para buscar Bernardo.
O aguardo do lado de fora da
sala de aula e quando ele sai, seguro em
sua mão e desapareço antes que a
professora possa se aproximar.
— Minduim, hoje vai acontecer
uma coisa diferente. Já falamos sobre
isso, você se lembra?
Ele faz que sim e abre um
sorriso.
— Eu vou ficar com aquela
moça feliz e você vai sair com a mamãe
e vamos comer sorvete! — Levanta os
bracinhos comemorando.
— Isso mesmo, moça feliz é uma
boa maneira de se referir a Alice. —
Dou risada e assinto. — Depois que eu
sair com a sua mãe, vou comprar o
sorvete. Do que você quer?
— De arcuriris — responde e
franzo o cenho tentando compreender.
— De quê? — pergunto.
— Daqueles muito cororidos,
igual arcuriris.
Olho pro garoto sentado no
banco de trás e meneio a cabeça. É cada
uma...
— Tá bom, Minduim. Sorvete
sabor de arco-íris.
O sorriso dele é pura alegria e
eu só me pergunto onde vou encontrar o
tal sorvete.
Quando chegamos ao
apartamento, Alice já nos esperava na
portaria. Subimos juntos e os deixo na
sala se conhecendo melhor, enquanto
vou tomar um banho rápido.
Me visto e sigo até a cozinha,
verificando os armários para arrumar
alguma coisa pro Bernardo comer, antes
de sair de casa.
Encontro alguns biscoitos,
pipoca e também um pacote de pão.
Acabo fazendo uns sanduíches com
queijo e presunto e abrindo uma caixa
de suco.
Arrumo tudo na mesa e chamo
Bernardo e Alice para comerem.
O garoto se senta à mesa e toma
metade do suco antes mesmo de morder
um pedaço do pão, mas está comendo
aos pouquinhos e isso já é ótimo.
— É, irmão... Quem te viu, quem
te vê, hein? — Alice provoca. — Ele já
te chama de papai?
Olho feio para ela e por sorte,
Bernardo está entretido com a comida e
não percebe nada.
Pego minhas chaves e celular e
passo ao lado da minha irmã antes de
sair de casa, dando um peteleco em sua
orelha.
Papai. Essa é boa...
A palavra acaba ficando na
minha cabeça durante todo o trajeto para
o shopping, não tinha pensado nisso,
mas se as coisas com Robin evoluírem,
uma hora ou outra Bernardo pode acabar
me vendo como pai.
Seria algo ruim? Eu mesmo ando
me preocupando com o garoto, muito
mais do que esperava, sempre quis
construir minha família e Robin e
Bernardo... Na verdade, eu gosto muito
da ideia.
Ainda estou com o pensamento
rondando a mente quando estaciono e
entro, seguindo direto para o último
andar, na direção do cinema.
Tiro o celular do bolso e fito o
relógio. Faltam cinco minutos para as
sete e Robin deve estar chegando. Entro
na fila e compro os dois ingressos para
um filme de comédia, não favorecendo
nenhum de nós, nem romance e nem
ação.
Depois sigo para a outra fila,
onde são vendidos os petiscos e peço
um balde grande de pipoca e dois
refrigerantes. Quando deixo o balcão,
são sete e oito, sei que vão liberar a
entrada pontualmente as sete e quinze,
mas como antes de tudo tem o trailer, um
pequeno atraso não será problema.
Tentando equilibrar tudo nas
mãos, caminho na direção da joalheria.
Nunca fui até lá, mas como sei que a
loja substituiu uma outra marca que
revendia no mesmo ponto, conheço o
caminho e pelo horário acabaremos nos
encontrando no meio do trajeto.
A distância não é grande, mas
não vejo Robin, mesmo estando atento.
Quando chego diante da joalheria e me
deparo com as portas fechadas, imagino
que tenhamos nos desencontrado de
algum modo.
Apoio o balde de pipoca e as
latas de refrigerante sobre um banco no
centro dos largos corredores e tiro o
celular para ligar pra Robin. Disco seu
número e ouço os toques da chamada até
que a ligação cai na caixa postal, mas
ela não atende.
Envio uma mensagem:
“Cadê você, docinho?”
A mensagem é enviada e o
celular dela a recebe imediatamente,
mas Robin não visualiza. Me aproximo
da porta e tento ouvir alguma coisa.
Será que ela ficou lá dentro e
fecharam a porta pra terminar o
trabalho? Deve ter se enrolado um
pouco.
A princípio não ouço nada, mas
ao discar outra vez para o celular, o
escuto tocar lá dentro. Robin ainda não
saiu.
Acho que vamos perder o filme.
Observo pelo vidro e a parte
frontal da loja está escura, iluminada
apenas pelas pequenas luzes nos
mostruários, mas no fundo consigo ver
uma lâmpada acesa.
Tento avistar algum movimento,
mas não consigo ver o final do corredor,
que vislumbro pela porta lateral aberta.
Eu poderia chamar daqui, mas e se
arrumar confusão com o chefe dela?
— Abre a porta, vagabunda...
Que porra foi essa? Parece estar
vindo de dentro da loja e sinto meu
coração disparar em desespero. Encosto
o ouvido na porta, tentando captar
alguma coisa, a voz dela talvez, para
confirmar que existe mesmo um
problema, mas não ouço resposta.
— Robin — grito, alarmado.
Mas ninguém responde.
De repente, começo a ouvir um
estrondo que se repete, como se alguém
batesse seguidamente em alguma coisa.
Merda.
— Robin? — grito, batendo no
vidro. — Você está aí?
Os barulhos cessam por um
momento, mas a pessoa lá dentro parece
nervosa em tal nível que o som abafado
da minha voz não a alcança.
— Eu vou derrubar essa porta
— o homem grita e o barulho começa
outra vez.
Desgraçado.
Ouço aquilo sabendo que Robin
só tem uma chance, só existe uma
maneira de que eu chegue a tempo.
Derrubando essa porta antes.
Ouço um grito estrangulado
vindo de lá e o suor começa a escorrer
por meu rosto, mesmo sendo uma noite
fria.
— Robin! Eu tô aqui — grito
outra vez. Puxo os cabelos olhando ao
redor, buscando alguma opção e vejo
que várias pessoas já estão reunidas ao
meu redor, observando com curiosidade
o show que estou dando gritando
sozinho.
— Tem um cara lá dentro,
tentando machucar minha namorada. Eu
preciso quebrar o vidro...
As pessoas me olham espantadas
e um rapaz se adianta.
— Tem que chamar a polícia —
ele alerta.
Claro que tenho, gênio. Mas
pode não dar tempo...
— Então chama. Enquanto isso,
alguma ideia pra quebrar o vidro?
Começam a sugerir coisas
absurdas, que jamais quebrariam um
vidro daquela espessura e laminado.
— Na loja ao lado deve ter uma
marreta — alguém grita.
Antes que eu me dirija à loja,
para fazer uma tentativa, um segurança
do shopping vem ao meu encontro,
correndo.
— O que está acontecendo,
rapaz? — pergunta afoito.
— Tem alguém lá dentro com a
minha namorada, tentando machucá-la e
preciso quebrar essa porra de vidro
para a tirar de lá — respondo, me
afastando.
— Não pode fazer isso. Isso não
é terra de ninguém, não. O dono da
joalheria não vai aceitar isso. Vamos
chamar a polícia e contatar o gerente da
loja para que venha até o shopping abrir.
E quem o desgraçado pensa que
está com ela? É o único homem que
trabalha na loja, pelo que sei.
— Foda-se o dono da joalheria.
Eu sou Dominic Duarte. Se ele é dono
da loja, minha família é dona do
shopping e eu vou pôr isso aqui abaixo
antes de deixar o desgraçado tocar nela.
O homem arregala os olhos e sua
postura muda imediatamente.
— Tudo bem, senhor. Mas
podemos disparar o alarme.
O encaro entre furioso e irritado.
— E de que isso vai me servir?
— questiono, exasperado, já pensando
que posso ter que derrubar o guarda se
quiser continuar com meu plano.
— Quem estiver lá dentro vai
pensar que alguém está invadindo e seja
por medo ou precaução, vai parar o que
estiver fazendo.
Até que ele não é tão burro.
Quando o guarda percebe que me
convenceu, segue na direção da porta e
parando em frente a fechadura começa a
golpear o sensor do alarme com uma
arma de choque. Na terceira batida,
consegue disparar o som ensurdecedor.
Em poucos segundos aparece um
rapaz correndo, vindo dos fundos,
bastante atordoado. Ele abre a porta
com uma mão ensanguentada sobre o
nariz.
— O que pensam que estão
fazendo? — pergunta, observando o
circo do lado de fora.
O guarda titubeia, afinal só tem a
minha palavra, mas eu sei bem o que
ouvi.
— Estou tirando a minha
namorada daqui, seu merdinha.
A mão dele bloqueia meu alvo
principal, então apenas me aproximo o
máximo possível e ergo o joelho,
acertando seu estômago.
O vejo curvar-se um pouco,
grunhindo de dor.
— Se ela estiver machucada,
você vai morrer — aviso, seguindo loja
adentro enquanto o guarda segura o
homem que reclama, dizendo que
estamos ficando loucos.
Passo pela área frontal da
joalheria, seguindo para o lugar de onde
ouvi os barulhos.
— Robin? Robin, onde você
está? — grito, enquanto a procuro.
— Dominic? Aqui... — A porta
ao fim do corredor se abre e finalmente
a vejo.
O rosto manchado pelas
lágrimas, os olhos vermelhos e as mãos
trêmulas ao lado do corpo. A puxo para
meu peito e a abraço, enquanto ela se
agarra a mim, se desfazendo.
Beijo o topo de sua cabeça,
enquanto a aperto forte e em seguida a
afasto, inspecionando seus traços, seu
corpo, em busca de qualquer ferimento.
— Ele fez alguma coisa? —
pergunto.
Robin nega, com um gesto.
— Tentou me agarrar a força, eu
escapei e me tranquei no banheiro.
Ela olha pra trás e observo que a
maçaneta da porta já estava fora do
lugar, cedendo.
— Se você não tivesse chegado
a tempo... Como me achou? —
questiona.
— Não vem ao caso, agora. Eu
teria posto tudo abaixo se fosse preciso.
Agora você vai precisar ser forte, ele
está com o guarda e não vai ser muito
agradável.
Robin assente e eu a conduzo
para fora, abraçando-a pelos ombros. O
babaca está em um canto, tentando se
explicar para a polícia que já chegou.
Uma policial se aproxima de nós
e começa a questionar Robin sobre o
que aconteceu e ela conta os detalhes, da
noite e do que já havia acontecido antes.
Minha vontade é atravessar o pátio e
quebrar todos os dentes do tal André,
mas Robin precisa mais de mim ao seu
lado do que em qualquer outro lugar.
A ouço narrando o modo como
ele tentou comprá-la, coagindo, e
quando rejeitado, tentou forçá-la. A
policial se afasta, dirigindo-se aos
outros dois que estão junto ao chefe de
Robin e explica a situação e logo
assistimos André ser algemado.
Ele começa a gritar quando
percebe o que está acontecendo.
— Robin, fala pra eles que eu
não fiz nada... Eu só queria conversar,
você entendeu tudo errado, garota. Eu
jamais faria isso, diz pra eles.
A vejo abaixar a cabeça,
evitando o olhar dele e a aperto mais
forte, tentando transmitir segurança. A
verdade é que me sinto muito aliviado
por ter conseguido impedir o que aquele
doente pretendia.
Somente vamos para casa após
passarmos na delegacia e Robin prestar
oficialmente um depoimento contra
André, que ficará detido por enquanto.
Mas acredito que com as câmeras de
segurança internas, não será um
problema comprovar a má intenção dele.
Deixamos o carro dela no
estacionamento do shopping, então
vamos pra casa juntos. Robin encosta a
cabeça no vidro, observando o trânsito e
se mantendo em absoluto silêncio
durante todo o trajeto, eu seguro sua mão
e respeito o espaço que ela precisa, sem
me afastar.
É... Não é todo dia que um
homem faz trinta e um anos.
A noite foi um pouco
complicada. Por sorte, quando chegamos
em casa, Bernardo já está dormindo,
porque nenhum de nós se lembrou do
sorvete.
Conto a Alice o que aconteceu e
ela oferece ajuda no que Robin precisar,
mas olhando para ela, percebo que
agora só quer ficar quieta. Alice também
percebe e vai embora logo. Robin deita-
se no sofá e fica mudando de canal o
tempo todo, apenas fazendo-se de
ocupada, porque na verdade não está
pronta para conversar.
Preparo o jantar, mesmo que não
saiba fazer muita coisa, mas não me saio
tão mal com espaguete e molho
vermelho. Arrumo o prato e os talheres,
junto a um copo de suco de laranja e
coloco sobre uma bandeja que encontro
em meio a desordem meio ordenada de
Robin. Não consigo tirar da cabeça a
expressão daquele imbecil, o jeito
presunçoso que agiu, como se ela
estivesse inventando tudo. Não vai ficar
assim.
Da cozinha, consigo vê-la
deitada no sofá, ainda com a mesma
roupa de antes e o olhar vazio. Eu não
vou lidar bem com um retrocesso...
Não apenas por nós, pelo
relacionamento que estamos
construindo, mas principalmente por ela,
que luta todos os dias para se abrir um
pouco mais.
Desgraçado. Ele não vai tirar
dela os avanços que teve.
Me lembro da minha última
consulta de hoje, da reação honesta da
paciente e do quanto de Robin havia
naquelas palavras.
Pegando um dos post-its que ela
sempre deixa na cozinha, rascunho uma
parte da mensagem, torcendo para que a
emoção do momento, associada às
palavras a ajudem a seguir em frente, ao
invés de olhar ainda mais para trás.
“A força da mulher por vezes é
silenciosa, consiste em subsistir dia
após dia, levantar-se e admirar o
brilho do sol mesmo quando sua alma
segue mirrada e pequenina.
Mas até que ponto essa
existência é válida? É legítimo doar
sua luz em favor de outros, apagando o
próprio brilho?
Que o vigor que a sustentou até
aqui se prolifere e confira às suas
pernas impulso para correr.
Autoridade, verbos, adjetivos e
eloquência, para uma vez ao menos,
declarar amor... por si mesma.”
Dobro o papel, o coloco ao lado
do prato e levo até Robin.
Ela me vê e abre um sorriso
triste.
— Come um pouco, vai te fazer
bem. Eu espero... Não me garanto muito
na cozinha.
A vejo se sentar e passar a mão
no rosto, retirando alguns fios de cabelo
dali. Ela estende as mãos e pega a
bandeja, observando com curiosidade o
post-it.
— Sobremesa... — respondo à
pergunta que ela não fez sobre o
significado do bilhete.
Robin come ainda em silêncio e,
apesar de parecer perdida e triste, ela
não me rejeita ou afasta. Quando termina
de comer, coloca tudo de lado e pega
apenas o papel, desviando o olhar em
minha direção por um breve instante.
Me sento aos seus pés, sobre o
tapete, esperando que leia. Ansioso para
que o faça.
Ao desdobrar o pequeno
quadrado, ela suspira profundamente,
como se precisasse de fôlego extra.
Percebo seus avanços na leitura porque
ao mesmo tempo em que lê, seus olhos
vão enchendo-se, como se fossem uma
represa que sobe até transbordar.
As lágrimas começam a cair e
ergo a mão, limpando uma, duas, três, no
processo. Robin já terminou de ler. Sei
que são poucas palavras, mas ainda
assim ela encara o bilhete, relendo-o de
novo e de novo.
A tristeza silenciosa se
transforma em um choro sentido e me
ajoelho diante dela, a abraçando e
beijando seu rosto molhado.
— Quer conversar comigo? Se
quiser, estou aqui — falo, torcendo para
que ela se abra, me diga como se sente e
o que precisa que eu faça.
Mas o momento é muito mais
intenso do que eu ousaria imaginar.
— É uma história muito longa...
— fala, a voz embargada. — Começa
cinco anos atrás, Dom.
— Eu tenho todo o tempo que
precisar.
A vejo aquiescer e então puxar
os pés para cima do sofá, soltando-se
dos meus braços e circundando os
próprios joelhos. Seus olhos também
ficam mais distantes, como se ela não
estivesse aqui, mas perdida no passado,
relembrando.
O silêncio dura um minuto ou
dois, mas eu apenas espero. Ela seca o
rosto e o choro para. Sinto que com sua
primeira frase, ela vai liberar uma
torrente de palavras presas e parar
apenas quanto tudo a houver deixado.
Suas mãos estão ao redor dos
joelhos e posiciono as minhas, sobre
elas. Robin não recua e a devastação
que vejo em seus olhos quase faz com
que eu o faça, mas estou ciente de que
esse é o principal passo para que essa
dor não seja mais um complemento de
quem ela é.
Vejo seus lábios se abrirem um
pouco, a língua os umedece e então, eu
devoro cada palavra que sai dali:
— Eu tinha vinte e dois anos
quando minha mãe saiu de casa. Ela nos
abandonou porque não estava feliz; o
irônico é que sempre achei que éramos
uma ótima família.
Assinto para incentivá-la a
prosseguir.
— Eu namorava Derek já há
alguns anos nessa época, ficamos juntos
durante o tempo que fiz faculdade e
depois. Quando tudo aconteceu, eu já
havia me formado e planejava abrir
minha confeitaria, ele seria um
advogado de sucesso e um dia nós
iríamos nos casar. Não pensava muito
em casamento, mas eventualmente...
Aperto sua mão, demonstrando
apoio.
— Eu não conseguia mais ver
meu pai daquele jeito, sabe? Ele se
chamava Pedro e era maravilhoso, era
um amor comigo. Pensei em várias
maneiras de ajudar, mas ele se negava a
sair de casa.
Robin faz uma pausa e retoma de
onde parou, o olhar tão transparente que
quase posso visualizar as cenas.
— É curioso porque sempre
pensei que ela o amasse mais... Acho
que talvez minha mãe também pensasse
assim e se ressentiu disso, mas não era
verdade. Ele só não sabia demostrar.
Foi então que decidi enviá-lo para uma
viagem curta, um fim de semana de
pescaria. Me lembrei que ele sempre
fazia isso antes e voltava alegre.
Uma lágrima solitária rola por
seu rosto e descansa em seu queixo.
Levanto minha outra mão e a seco.
— Era pra ser legal, estava tudo
planejado. Eles se davam bem, meu pai
e o Derek, mas eu queria que fossem
amigos. Achei que seria melhor assim,
só os dois se divertindo. – Robin
suspira, deixando que as recordações há
muito enterradas, voltem. — É tudo
culpa minha...
Então a vejo desmoronar,
mergulhando em um poço de angústia e
terror, ainda pior que antes de começar a
falar.
Tudo que anseio é poder
alcançá-la e colar seus pedaços, porque
é isso: ela está quebrada, fragmentada
em milhões de cacos. Robin chora e seu
pranto é tão intenso que sinto seu corpo
tremer, seus ombros sobem e descem
com a respiração sofrida.
O desejo que sinto de abraçá-la
e oferecer conforto consome todos os
meus sentidos, mas não o faço, apenas
aperto mais forte suas mãos. Ela precisa
continuar sua história até o fim, liberar
essa culpa que ofusca seu brilho e a
mantém em uma espécie de semivida.
Robin se acalma depois de
alguns minutos, o choro vai diminuindo
até que volta a ser silencioso e
tranquilo.
— O que houve depois? — Me
arrisco a perguntar.
— Eles saíram de carro felizes,
me despedi na porta de casa os ouvindo
falar sobre a pescaria. Eu estava
preocupada, minha menstruação não
havia descido, no fundo eu não
acreditava que pudesse estar grávida,
mas mesmo assim decidi confirmar.
Posso ver que ela está vivendo
toda a dor desse momento novamente,
falar sobre isso parece ser tão doloroso,
como se tudo ocorresse agora mesmo.
Mas ela não para.
— Me lembro de ouvir meu
celular tocar do lado de fora do
banheiro, mas meus olhos não se
desviavam dos ponteiros do relógio,
esperando o tempo do teste terminar. Se
eu soubesse que em cinco minutos todo
o mundo como eu conhecia iria ruir, se
soubesse que aqueles eram os instantes
de calmaria antes da fúria da
tempestade, eu teria apenas fechado
meus olhos e sentido, aproveitado cada
segundo antes que o caos se
aproximasse engolindo tudo.
Ela solta as pernas, ergue os
braços e prende os cabelos em volta
deles mesmos, fazendo um coque. Acho
que está nervosa...
— Demorei um minuto a mais
para conseguir encarar o resultado. Eu
olhava fixamente para os dois tracinhos
rosa que tingiram a linha branca do
teste, como se isso fosse fazer com que
desaparecessem. E assim, descobri que
estava grávida... Fiquei sem ação, mas
foi quando saí do banheiro, que as
coisas realmente ficaram ruins.
A essa altura eu já suspeitava de
como tudo terminaria, mas agora que
Robin tinha começado, eu sentia que ela
queria contar.
— Eles não chegaram ao
acampamento. Chovia bastante, Derek
desviou de outro automóvel, pelo que
disseram. O carro rodou na pista e
acabou caindo por uma ribanceira,
capotou várias vezes e ao final,
explodiu. Eu só posso torcer para que
tenham morrido na queda, porque a
alternativa... pensar que morreram
queimados...
As mãos dela agora cobrem o
rosto, enquanto sua cabeça vai de um
lado para o outro, negando.
— Só posso tentar imaginar o
que você passou, como se sentiu. Ter
que lidar com o luto e levar uma
gravidez adiante — sussurro, o peso do
relato dela pairando sobre nós.
— Foi surreal, mas foi Bernardo
quem me salvou. — Apesar de triste, ela
abre um sorriso fraco. — Em alguns
dias não conseguia nem mesmo me
levantar da cama, em outros a solidão
era tão grande que não existir era muito
atrativo... Aí pensava nele e decidia
lutar mais um dia, comer outra refeição,
abrir os olhos novamente.
Ela coloca uma mecha de cabelo
que se soltou do coque, atrás da orelha,
mas volta a segurar minha mão e isso me
conforta de um jeito estranho.
— Foi o que eu fiz. Dia após
dia, ano após ano. Minha avó ficou
comigo um tempo e fomos o consolo
uma da outra. Meu pai era o único filho
dela e isso trouxe muito sofrimento a
vovó Rute também.
Assinto, entendo o sofrimento, a
angústia e a dor. Mas não compreendo a
culpa.
— Sinto muito por tudo que teve
que passar, docinho.
Me levanto e sento-me ao seu
lado. Puxo-a para mim e Robin estica o
corpo, se deitando completamente, a
cabeça sobre minhas pernas. Solto o
coque bagunçado que ela fez e acaricio
seus cabelos.
— Não consigo entender uma
coisa. Por que você se culpa? Foi um
acidente, totalmente imprevisível. Por
que se fechou dessa forma e abriu mão
do que amava fazer? Da confeitaria...
— Ninguém entende. — Ela dá
de ombros. — Eu sugeri o passeio.
Ninguém estava nem mesmo pensando
nisso. Poderia tê-lo levado ao cinema ou
até mesmo deixado que o tempo
cuidasse da tristeza, mas não. Me
intrometi e matei meu pai, matei meu
namorado e privei meu filho de ter uma
família decente.
Já estou meneando a cabeça, sem
acreditar que estou a ouvindo dizer isso.
— Não posso concordar com
você. Ninguém teria como prever isso,
eles foram porque queriam ir, era só um
passeio. É horrível, muito doloroso, mas
uma fatalidade.
Ela não me deixa continuar.
— Eu sei que não faz sentido,
mas não posso deixar de me sentir
culpada, eu não consigo. Sempre que
vejo meu filho, quando ele faz
aniversário e não tem uma festa porque
não temos convidados, quando é dia dos
pais...
— Robin, sua família é incrível.
Vocês dois e a vovó Rute. Você ama seu
filho e ele sabe disso, é muito mais do
que muitas outras crianças tem.
— Eu que o diga...
— Sua mãe, ela nunca mais
procurou vocês?
— Na verdade, ela já me
procurou muitas vezes. Mas eu nunca
aceitei vê-la, afinal o que ela teria pra
me dizer? Com toda certeza me culpa
pelo que aconteceu também. Eu sei que
eu a culpo e é por isso que não falo com
ela e não contei sobre Bernardo —
Robin assume, parecendo envergonhada.
— Ela não pode pensar assim,
na verdade é muito mais provável que
queira apenas rever a filha. Por que não
contou sobre o Minduim? Sei que é
difícil entender, mas às vezes os casais
se separam e isso não quer dizer que
amem menos os filhos. Você era adulta
quando ela foi embora... — falo cada
palavra temendo ter passado dos limites,
não quero que ela fique com raiva de
mim.
Graças a Deus ela não fica.
— Eu sei que não é maduro da
minha parte, mas estamos bem sozinhos.
Minha mãe escolheu nos deixar, não tem
porque mudar de ideia e querer, agora,
fazer parte das nossas vidas.
— Você tem o direito de pensar
assim. — Acabo cedendo. — Mas eu
não aceito que se culpe pelo que
aconteceu tantos anos atrás. Eles
morreram e isso é horrível, mas você
está viva e precisa parar de se punir.
— Eu me acostumei a viver com
esses sentimentos, não sei se saberia
voltar ao que eu era antes de tudo. Nem
mesmo sei se gostaria de mudar...
Mentira.
— Você sabe sim. Seus olhos
brilham quando fala sobre a confeitaria.
Você devia estar vivendo esse sonho. As
mudanças pequenas que vi acontecendo
no pouco tempo que nos conhecemos são
a prova de que você está preparada para
seguir em frente. Não acho que ainda se
culpe, você é sensata, sabe que não faz
sentido. Você acha que eles a
culpariam...
Robin parece desconfortável
com o assunto, mas apesar de não ter
incentivado, também não me impede de
continuar.
— Seu pai te amava?
Ela vira o rosto em minha
direção e seus olhos ficam um pouco
maiores por causa do meu
questionamento.
— Claro que sim. Nossa família
era tudo pra ele.
— E com o Derek, você se dava
bem? Tinham um bom relacionamento?
Ela pensa por um momento.
— Sim, nós tínhamos uma
relação muito boa, mas não sei se era
amor mesmo, sabe? Éramos muito
jovens, estávamos apaixonados e ele me
tratava muito bem.
Quero mostrar pra ela, por meio
das lembranças positivas que tem sobre
ambas as relações, que ninguém que a
amasse desejaria que ela se flagelasse
vivendo pela metade.
— E realmente acredita que eles
a culpariam? Não responda no
automático. Se lembre dos dois, de
como agiam e pensavam e depois, seja
honesta. Acha que seu pai ficaria feliz
em saber que trabalha em um emprego
que odeia, engavetando seu diploma, seu
talento, por uma culpa que não é sua?
Ela apenas suspira, dessa vez
não me encara.
— Não. Nenhum dos dois faria
isso, eu sei. Mas como eu posso ser
feliz, sabendo que arranquei as chances
deles? Como posso namorar, ser amada,
trabalhar com o que eu gosto, me vestir
bem, me sentir bonita e completa,
quando eles não podem? Posso não ter
feito nada intencionalmente, mas se eles
não podem mais viver essas coisas, eu
não deveria poder... — Apesar de
insistir nisso, ela não tem mais tanta
convicção.
— Penso justamente o contrário.
Como pode viver assim, desperdiçando
sua vida, quando tem a oportunidade de
aproveitar da melhor forma possível,
por você e por eles? Não acha que
gostariam que ao menos você pudesse
viver plenamente?
— Eu não sei o que eles
pensariam, porque estão mortos.
As palavras não foram ditas com
raiva, apenas como um fato.
— Você iria querer isso para o
Bernardo? Se algo acontecesse com
você porque foi a algum lugar a pedido
dele, o culparia?
Ela não responde, é claro que
não. Não digo mais nada, não é preciso
porque ela entende perfeitamente onde
quero chegar.
— Ainda é seu aniversário... —
ela diz, mudando completamente de
assunto. — Quantos aninhos mesmo?
— Trinta e um. Eu sei, pareço ter
vinte...
Robin dá uma risadinha e eu
sinto que vai ficar tudo bem. Apesar de
não ter me dito em voz alta, sei que tudo
o que conversamos vai ficar dentro dela
e que vai assimilar devagar.
Vou garantir isso, porque uma
coisa é certa... Estou apaixonado.
Porra, Dominic! Como pôde ser
tão fácil assim?
— Vem, vamos fazer seu bolo,
de chocolate. — Foi assim. Ela me
ganhou pelo estômago, só pode.
Ela se levanta e eu a sigo até a
cozinha, já é tarde, mas ainda é meu
aniversário. Robin pega alguns
utensílios sob a pia e os coloca sobre
ela. Junta também os ingredientes que já
estavam separados em um canto e
depois abre a gaveta.
A vejo vestir seu avental rosa e
colocar o chapéu sobre os cabelos,
como uma verdadeira chef.
— Olha só! Assim que eu gosto,
de touca e tudo... —brinco.
— Dominic, por favor —
repreende. — O nome é toque blanche,
não seja vulgar — fala, fazendo sotaque
francês.
Agora ela está brincando. É
como se um peso imenso houvesse sido
arrancado dos ombros dela, apenas por
ter contado a alguém, por ter dito o que
sentia e pensava.
— Certo, chef... Eu quero ajudar,
não tem um desses aí pra mim, não?
Ela retira da gaveta outro
avental, esse é preto. Depois se
aproxima, amarrando na minha cintura.
— Agora sua touca... — ela diz.
— Então quando é pra mim, é
touca mesmo, hein?
Quando vejo o item minúsculo
na mão dela, minha sobrancelha se ergue
em descrença.
— Isso nem cabe na minha
cabeça! — afirmo.
— Porque é do Minduim. Além
disso, você é um auxiliar, não pode ser
igual ao meu...
Bufo, fingindo irritação e coloco
o gorro sobre meus cabelos, porque
claro que não entra na cabeça.
— Toma... — Ela me entrega a
vasilha e um copo de medidas. — Pegue
a farinha de trigo e coloque duas
xícaras, depois uma de chocolate em pó
e uma de açúcar.
Eu sigo as instruções, enquanto
ela unta uma forma e se move pela
cozinha com autoridade, quase como se
fosse a dona de um restaurante chique,
em Paris.
Começa a colocar raspas de
chocolate em uma panela e vai ditando
minhas próximas tarefas, sempre
sorrindo ao olhar pra mim. Acho que é o
avental.
Robin pega a tigela das minhas
mãos, coloca sob a batedeira e a liga.
Observo fascinado sua desenvoltura e
não consigo resistir. Me aproximo,
abraço sua cintura e encaixo meu rosto
na curva do pescoço dela, sentindo seu
cheiro gostoso e aproveitando a
proximidade.
Torcendo muito para que mesmo
nessa miríade de sentimentos
opressores, ela tenha encontrado o
mesmo que eu, que se sinta da mesma
forma.
Aos poucos, Robin vai
acrescentando cada ingrediente,
encorpando a massa e eu vou
adicionando um beijo em sua nuca, uma
mordida em sua orelha e um toque leve
em seus lábios quando possível.
Ela continua compenetrada.
— Docinho... — Vejo o sorriso
curvar o rosto dela. — Eu não esperava
que fosse falar sobre isso. Perguntei
sobre o incidente na joalheria.
Ela suspira.
— Sobre isso, eu estou bem,
acho. Já vinha percebendo algumas
atitudes dele, notando o modo como
falava e comecei a suspeitar. Apesar do
susto ter sido grande, André não chegou
a fazer nada, eu me tranquei a tempo.
A batedeira é desligada e então,
ela se vira entre meus braços, ficando
frente a frente comigo.
— Fiquei apavorada na hora,
mas vou ficar bem. O que me angustiou
mais foi perder o emprego. Não posso
mais trabalhar lá, mesmo que ele seja
demitido, caso eu prove o que
aconteceu, ainda assim... Não quero
voltar.
— Você não vai voltar, esquece
isso. Amanhã vou a delegacia, posso
levar Bernardo pra ficar com Alice se
estiver tudo bem pra você. Aí pode ficar
aqui, tendo um dia de princesa. Se tiver
alguma chance de ele sair impune disso,
meu pai vai resolver.
— Seu pai? — Ela ergue a
sobrancelha.
— É, estamos bem agora,
fizemos as pazes e ele é um homem
poderoso aqui na cidade. Te ajudo a
conseguir um trabalho se for o caso, mas
eu ainda tenho esperança de que você
volte a confeitar. Ganhar a vida com
isso, porque fazer os doces, isso já faz.
Na verdade, o tempo todo.
Ela olha ao redor, pensativa e
pela primeira vez, não se apressa em
negar.
Apenas pega a tigela e despeja o
conteúdo dela na forma. O forno já está
ligado — eu nem sei como ela preparou
tudo tão rápido — e então o bolo é
colocado para assar.
Robin segue para o fogão, liga a
chama e começa a mexer uma cobertura,
que fica pronta em poucos minutos.
Apenas então ela se aproxima de mim,
que estou de braços cruzados, encostado
na mesa a observando.
— Obrigada por tudo... Por me
ouvir, pelo que fez hoje, por conseguir
isso.
Ela não explica o que é isso, mas
eu entendo.
— Eu que agradeço, por me
permitir chegar mais perto.
— Eu não permiti nada — fala,
brincando. — Fui obrigada a morar com
você, depois começou a andar pelado
pela casa, me provocando. Quando
percebi, já estava sem minhas roupas!
— Na varanda, acho válido
lembrar — comento, vendo suas
bochechas adquirirem um delicioso tom
vermelho. — Bem à vontade, sentindo a
adrenalina, aquele medo de ser vista,
mas ao mesmo tempo querendo uma
plateia — provoco.
— Dominic! Não foi nada assim,
você sabe muito bem.
Não mesmo. Foi algo surreal,
incontrolável e romântico.
Hoje, eu só queria sentar Robin
sobre a mesa e me enterrar nela, matar o
desejo, com força. Mas depois do que
aconteceu, não posso ser esse cara.
— Eu sei. — Abro os braços e
ela entra no meio deles. — Posso te
beijar? Tudo bem, depois do que
aconteceu?
Ela ri, mas vejo a malícia em
seus olhos.
— Não é o que é feito, Dom.
Mas com quem é feito, o modo como
acontece. Você, pode tudo.
— Tudo? — questiono, já
sentindo meu sangue correr mais rápido.
— Tudo que for possível em
meia hora.
Abro um sorriso sacana diante
do seu rendimento e tiro a touca infantil
da cabeça. Minha boca já está na dela e
não consigo ser delicado. Sugo seus
lábios com força e introduzo a língua,
enquanto a puxo para mais perto e ouço
um gemido lhe escapar.
Nos beijamos assim por um
tempo, até o fôlego faltar. Interrompo o
beijo, vejo seu peito subindo e descendo
rápido e levo as mãos para o laço do
avental dela, retirando-o sem cerimônia.
Logo meus dedos desabotoam a camisa
branca que ela está usando, revelando
um sutiã preto, que cobre muito pouco e
desperta meu pau em dois segundos.
— Ah, docinho... Você é tão
gostosa.
Seu olhar está preso ao meu e
suas mãos seguem para a barra da minha
camiseta, mas param.
— Eu queria que ficasse de
avental... — fala, corando.
— Sério? Então a fantasia não
era só minha. — Me entrego. — Tudo
bem, a cabana da vida realizou meu
sonho, hoje vou fazer sua vontade, chef.
Mas apenas se ficar de touca.
Ela ri.
— Claro — responde.
Se afasta um pouco, cedendo o
espaço que preciso para desamarrar o
avental, retirar a camiseta e amarrar o
laço outra vez nas costas.
Robin me encara, o olhar aceso
me devorando e seus dedos voam para o
fecho da minha calça, desabotoando e
baixando o zíper em seguida.
Estou apenas de cueca boxer e
avental diante dela e chego a ficar um
pouco sem jeito, mas evito demonstrar.
Se ela quer isso, vai ter.
Retiro a calça dela também,
quando noto que seus sapatos já estão
longe e minha boca se enche de água
diante da visão. Robin escolheu uma
calcinha rendada, da mesma cor do
sutiã, não é pequena, mas abraça suas
curvas sensualmente e eu ofego com a
imagem.
Firmo sua cintura e a ergo com
facilidade, invertendo nossas posições e
a colocando sentada sobre a mesa.
A beijo outra vez e Robin
retribui com vontade, suas mãos
seguram e puxam meus cabelos,
enquanto que as minhas voam por suas
costas, abrindo o fecho da lingerie e
libertando seus seios perfeitos.
Desço a boca sobre eles,
sugando e beijando enlouquecido. Robin
joga a cabeça para trás, me oferecendo
livre acesso e gemendo baixinho.
Os mamilos dela erguidos pra
mim me endurecem ainda mais e com a
ponta da língua eu os circulo, a atiçando,
e depois chupo com vontade.
Toco-a por cima da calcinha,
ainda com o rosto afundado entre seus
seios gostosos e ouço um suspiro dela,
quando começo a movimentar os dedos,
fazendo fricção entre sua carne e o
tecido.
Vou explodir de tesão se não
puder entrar nela agora.
— Robin... está pronta, amor?
Eu preciso estar dentro de você.
— Agora — geme, totalmente
entregue.
Arranco sua calcinha e ela apoia
as pernas na beirada da mesa. Abaixo a
cueca até os pés e me estico um pouco
para alcançar o lugar em que deixei a
carteira quando chegamos. Pego um
preservativo, mas ela balança a cabeça.
— Não precisa... — fala.
Faço uma anotação mental para
questioná-la sobre isso depois. Agora,
só me importa meter até me satisfazer
dela, cansar, esgotar.
Seguro meu pau pela base e me
aproximo de sua entrada molhada, Robin
está aberta pra mim sobre a mesa, seu
corpo na beirada, apenas esperando.
Deslizo minha ereção sobre seu clitóris,
passeando por seu sexo de uma ponta a
outra e então, vendo a excitação em seus
olhos verdes, me afundo nela de uma só
vez.
Arremeto contra ela várias
vezes, aumentando o ritmo e a força.
Observo seus seios se
balançando com a força das investidas e
não resisto. Seguro-os com força,
apoiando-me ali para meter cada vez
mais duro, fundo e forte.
É intenso e bruto, mas pelo modo
como ela se move e como geme me
deixando mais louco, não tenho dúvidas
de que está gostando.
Seguro suas pernas e as coloco
ao redor da minha cintura, de modo que
consigo deitar meu corpo sobre o dela
parcialmente. A posição e o ímpeto
fazem com que a mesa acabe se
movendo pra frente e pra trás, fazendo
um pouco de barulho e eu só agradeço
pela distância em que ficam os quartos.
Robin aproveita a proximidade e
suas mãos tocam meus braços, meu peito
por cima do avental e ela acaba rindo.
— Isso é hora de rir?
— Desculpe — ela pede e eu
paro os movimentos. — Mas você já se
olhou no espelho? Esse corpo, de
avental em cima de mim! Acho que
nunca sonhei com algo tão erótico.
— É? Você gosta disso,
docinho? Vou te lamber, morder, sentir
teu gosto bem aqui.
Toco-a no ponto em que tenho o
pau enterrado e a vejo arfar com a ideia,
suas pupilas se dilatam de desejo.
— Mas não agora, tenho pouco
tempo e você me interrompeu. Vou ter
que meter mais forte... — ameaço.
Dessa vez ela só morde o lábio
inferior e eu me afundo nela. As
estocadas ficam mais firmes ainda, na
posição em que estamos consigo ir mais
fundo e acelero as investidas, sentindo
que entro e saio do calor dela cada vez
mais rápido.
O pacote de açúcar sobre a mesa
cai, espalhando o pó pra todo lado, mas
não paro. À medida que me impulsiono
mais, repetidas vezes, o açúcar se
mistura aos nossos corpos,
principalmente ao dela, se infiltrando
por baixo e também se erguendo no ar
como se estivéssemos soprando o pó
refinado.
A ideia não é ruim.
Passo a mão sobre o monte
branco e polvilho sobre os seios dela,
os lambendo em seguida. Levo o dedo
esbranquiçado a sua boca e a deixo
sugar, sua boca se curvando em um
biquinho, sua língua passeando por meu
dedo, sua entrada apertada me
envolvendo, tudo isso fode meu
psicológico, enquanto eu fodo mais e
mais.
Jogo o açúcar sobre sua boca e
chupo com força, pulverizo em seu
pescoço e deslizo a língua, me
deliciando no sabor doce e no gosto
dela.
Sinto a compressão aumentar, os
gemidos dela ficam mais altos e deslizo
para dentro dela com tanta facilidade,
que sei que vai gozar. Ainda bem,
porque essa mulher, em cima da mesa
vestindo apenas uma touca e coberta de
açúcar, é demais pra mim.
Quando ela se perde, fechando
os olhos e se libertando, a coloco
sentada outra vez, na pontinha da mesa,
apoiando suas pernas ao redor do meu
pescoço e mergulho nela seguidamente,
até sentir o jorro escapar de mim para
ela.
O timing é perfeito, porque ainda
estou dentro dela, ouvindo nossas
respirações altas, quando o forno apita.
O bolo está pronto e no fim, é um
feliz aniversário.
Eu não preciso trabalhar. Melhor
dizendo, não tenho um emprego para
onde ir, não depois de ontem. Porque eu
não vou voltar.
O pensamento passa pela minha
cabeça antes mesmo que eu abra os
olhos e fite o teto branco do meu quarto.
Não estou preocupada,
estranhamente. Por mais que eu queira
que André seja punido, a verdade é que
me sinto grata por estar bem e longe. Se
ele passar uns dias na cadeia, muito
melhor, mas não se aproximando mais
de mim e de ninguém que rejeite seu
interesse, já está ótimo.
Passei a noite com Dominic de
novo, dessa vez ele ficou comigo até o
dia amanhecer porque sabíamos que
Bernardo não acordaria cedo. De
manhã, se levantou e me disse que tinha
algumas coisas pra fazer no consultório.
Continuei deitada. Quando Dominic
retornou, pronto para sair, me levantei e
acordei Bernardo para que os dois
fossem juntos, conforme ele havia
pedido.
Alice tem suas roupas
extravagantes e língua sem filtro, mas é
uma boa pessoa e o Minduim adorou o
tempo que passaram juntos, por isso
decidi concordar.
É sábado e apesar do início de
noite conturbada que tive ontem, não
estou abalada ao ponto de não poder
lidar com meu filho, mas Dominic
insistiu e acabei gostando da ideia.
Acho que um tempo só pra mim, para
fazer o que gosto e repensar minha vida
pode ser bom.
Voltei para a cama depois que
deixaram o apartamento, Bernardo
vestindo uma fantasia de pirata, com
direito a tapa-olho e tudo, que era o que
havia na sacola que Mari deixou para
mim uns dias antes. Claro que sugeri que
usasse algo mais básico, mas Dominic
comentou que a extravagância dele
compensava minha neutralidade e acabei
apoiando a fantasia. Não quero meu
filho vivendo em um mundo sem cor.
Assim como meu pai não iria
querer...
As palavras de Dominic ontem,
não apenas as escritas, mas tudo o que
me disse, causaram um impacto muito
maior do que ele poderia supor. Senti
cada uma delas e as absorvi.
Talvez ele esteja certo. Não sei
se posso mudar as coisas tão
radicalmente, mas não sou obrigada a
isso, a ser abrupta. Posso ir me
adaptando aos poucos, fazendo pequenas
concessões, tentando me reencontrar e
redescobrir e se ele realmente for a
corda que me ajuda a escalar o poço,
ainda melhor.
Agora fito o visor do celular,
olhando as horas e me espanto ao ver
que é quase hora do almoço. Me levanto
e espreguiço, antes de calçar minhas
usuais pantufas e seguir para o banheiro.
Escovo os dentes e lavo o rosto,
passo uma escova pelos cabelos e os
deixo soltos sobre meus ombros. Saio
do quarto para a cozinha, pensando no
que vou fazer. Tem tanto tempo que não
tenho um dia livre assim, que nem sei
por onde começar, mas acabo me
decidindo pelo café. Posso precisar da
energia extra, mesmo que ainda não
tenha planos.
Abro o armário e retiro uma
xícara. Quando vou ligar a cafeteira,
vejo um post-it verde se destacando
sobre o porta-cápsulas.
“Algumas rupturas não devem
ser vistas como fracassos, mas como
oportunidades de recomeços. Você tem
nas mãos agora uma folha em branco e
pode escolher que história contar...
Seja criativa, Docinho.”
Não consigo evitar o sorriso que
vem de dentro de mim. Ligo a cafeteira e
espero o líquido escuro e fumegante
encher a caneca, enquanto ainda fito o
papel nas minhas mãos.
Tenho pavor de como tudo tem
acontecido. Dominic chegou devagar,
preenchendo cada espacinho vago que
fui abrindo, e agora tomou conta do meu
coração sem que eu realmente me desse
conta disso.
A ideia de que em um futuro
próximo, ele não esteja mais ao meu
lado consegue ofuscar a alegria do que
estamos vivendo. Se ele se for...
Como fui ousar me apaixonar
por alguém tão incrível quanto ele?
Percebo que a melancolia
ameaça tomar conta de mim e a espanto
do melhor jeito que conheço.
Caminho até a sala e paro diante
do aparelho de som, deixo minha bebida
na mesinha de centro, pegando meu
pendrive para ouvir um pouco de
música. Quando vou conectá-lo, vejo ao
lado da entrada usb um outro post-it,
rosa dessa vez.
“Viva a vida como se fosse uma
canção. Algumas são alegres e
contagiantes, outras são suaves e
calmas e existem aquelas que
entristecem e fazem chorar, mas em
todas, a intensidade de sentimentos faz
cada verso valer a pena. Portanto,
SINTA! Música é uma boa pedida.
Mesmo quando a banda parece mais
uma equipe de crossfit que com um
grupo de rock...”
Dou risada. Como ele sabia que
eu iria escutar música? Conecto o
pendrive sem me importar com seus
comentários a respeito da Dominium e
ouço a deliciosa voz do vocalista encher
o apartamento.
Afasto a mesa um pouco,
ganhando algum espaço e me movo junto
com as músicas, dançando, pulando em
alguns momentos e cantando o tempo
todo. É libertador.
Quando termino, sinto que acabo
de passar por uma sessão de terapia, me
sinto mais leve e decidida. Feliz, eu
diria.
Vou fazer alfajor.
É uma decisão bem aleatória,
mas todas as vezes em que me sinto mal
ou muito bem, termino na cozinha e,
apesar de ainda ter bolo de chocolate de
ontem à noite, tenho uma pessoinha em
especial que é louca pelo doce argentino
e é nela que penso quando escolho o que
vou colocar no forno.
Volto para a cozinha, o som
ainda me alcançando ali e começo a
separar, colocando sobre a pia, todos os
ingredientes.
Trigo, açúcar, manteiga, essência
de baunilha, glucose de milho e doce de
leite, que não é argentino, mas vem de
uma cidade que fica aqui perto. É
produzido em uma fábrica de laticínios
chamada Majestic e é, sem sombra de
dúvidas, o melhor doce de leite que
alguém já criou. Pego também o glacê
real — bendita seja a hora em que fiz
Dominic sair de casa atrás disso, mesmo
que no momento não precisasse — e os
corantes.
Me abaixo sob a pia e de lá
retiro a vasilha para a massa e alguns
recipientes pequenos para colorir o
glacê.
Prendo meus cabelos para o alto,
cantando Judgment e abro a gaveta em
busca do meu avental que já está
acabadinho, coitado.
Um dia ainda compro um dolmã
completo...
Paraliso diante do pensamento.
Um dolmã para alguém que não exerce a
profissão e não tem uma confeitaria
seria um desserviço, mas a opção de
finalmente ceder e trabalhar naquilo em
que realmente tenho prazer está ali, na
minha mente, que finalmente parece
aceitar que eu posso sim fazer aquilo.
Deixo o sonho de lado por um
instante, antes que eu comece a pensar
em cursos em Paris e uma confeitaria
moderna e aconchegante, dois conceitos
que nos meus delírios combinam muito
bem. Pego o avental e o chacoalho,
retirando o resto de farinha da noite
anterior de cima dele e observando
enquanto um pequeno papel cai,
deslizando para o chão.
Abaixo-me e o pego. Esse
homem vai me matar do coração antes
que termine o dia. Por falar nisso, é uma
boa ideia ver aquele filme... Antes que
termine o dia.
Abro o bilhete, respirando fundo
e me preparando para mais uma onda de
sensações:
“Já vai preparar seus doces?
Eu já disse, você pode deixar a
confeiteira, mas a confeiteira não sai
de você. Admite logo, vai.
P.S.: Doido pra provar o teu
gosto, aposto que é melhor que o quer
que esteja fazendo.”
É definitivo. Ele quer acabar
comigo. E se quer tanto provar, já
deveria ter feito, só fica falando nisso...
Deus do céu. O que está
acontecendo comigo?
Concentração, Robin. Nada de
imaginar o rosto dele em lugares
secretos, provando.
De volta aos alfajores, por
favor...

Saímos de casa cedo, Bernardo e


eu, e seguimos direto para o outro lado
do lago, para a casa do meu pai.
Alice, aquela desmiolada, ainda
está dormindo quando chego e Marta
corre para chamá-la.
— Você zá morava aqui? —
Bernardo pergunta, olhando a sala com
curiosidade.
— Eu já morei, sim. Meu papai
mora aqui, sabia? E a Alice também, por
isso viemos pra cá.
Ele assente, sorrindo.
— Ela é minha amiga... — fala,
animado.
— É mesmo.
Ouvimos algumas vozes, passos
se aproximando, e logo Bárbara e meu
pai entram na sala.
— Oi, querido — minha
madrasta me cumprimenta. — Não sabia
que viria hoje!
Recebo o abraço, contente por
estarmos todos bem de novo e
cumprimento meu pai que também
parece feliz.
— E esse pirata corajoso? —
Bárbara se abaixa diante de Bernardo,
que ergue o bracinho com a luva de
gancho na direção dela.
Bárbara ri da pose do moleque e
até meu pai acaba chegando mais perto e
se divertindo com a fantasia.
— Esse é o marujo Super
Minduim. Ele se chama Bernardo, mas é
muito feroz e cuida do seu navio com
bravura — digo, apoiando a história
toda que Bernardo me contou no
caminho.
— War... — É a resposta do
pequeno, que arranca algumas risadas
dos adultos.
— Como você é lindo, Super
Minduim. A Alice já está vindo brincar
com você, ela é um pouco dorminhoca e
acabou perdendo a hora, sabe? Que tal
se nós dois nos divertirmos um pouco
até ela aparecer? Eu posso pegar umas
coisas que eram do Dominic. Que tal?
Bárbara pergunta pra ele, mas
seus olhos também se voltam pra mim,
pedindo permissão e aceno, dizendo que
sim. O que mais eu faria com
brinquedos, hoje em dia?
Bernardo segura a mão que ela
oferece e juntos somem corredor
adentro.
Me sento no sofá, enquanto vejo
meu pai os observar até se afastarem.
— O que foi, pai?
— Ah, o de sempre. Bárbara e
os problemas com a família dela... Anda
meio tristinha.
Assinto, sei bem que as coisas
entre ela e os familiares são um pouco
complicadas.
— Pai, eu preciso conversar
com o senhor. Estou com um
probleminha... — falo, minimizando um
pouco as coisas.
— Probleminha, filho? Recebi
um telefonema ontem à noite, falando
sobre a situação no shopping. Mas pelo
que entendi, você teve um motivo para
dar aquele show — comenta, rindo.
— É... Foi um espetáculo
mesmo, tinha até plateia. — Coço a
cabeça, pesando as palavras que vou
usar para pedir o que quero.
Ainda estou organizando tudo,
mas ele percebe que estou enrolando.
— Fala o que você precisa. Eu
não estou mais descontente com você.
Sou seu pai, Dom. O que você quer?
— Não é bem por mim, pai. Não
quero dinheiro, nem nada assim, eu
gosto da independência que alcancei e
de viver do meu próprio bolso.
Ele assente.
— Também gosto que viva
assim, me faz ter orgulho de quem se
tornou. Só demorei um pouco a perceber
que você era o mais sensato de nós dois.
— Então, pai. O rapaz que foi
preso, era gerente da joalheria e chefe
da minha namorada. — Pelo visto o
mundo inteiro vai saber que ela é minha
namorada, antes que Robin descubra. —
Ele tentou a agarrar à força e, pelo que
ela me contou, assedia as outras
funcionárias também, que não o
denunciam porque em troca ele oferece
joias...
Vejo a testa dele se franzir.
— Sujeitinho desprezível, hein?
Não consegue mulher pelos métodos
tradicionais, não?
— Nem fale — respondo. —
Mas então, acho que as câmeras de
dentro da joalheria estavam desligadas,
não temos como provar o que ele tentou.
O delegado me mandou mensagem de
manhã, falando que liberaram o cara
com uma advertência, mas que vão
verificar o caso. Sabemos que isso
significa que não vai acontecer nada
com o canalha...
Ele concorda.
— E o que quer que eu faça?
Dou de ombros.
— Não sei. O ponto em que fica
a loja é seu... Não pode falar com a
matriz e contar o que aconteceu? Esse
idiota precisa ao menos ser demitido
por justa causa, pai.
— Claro que posso. Conheço
bem o Leonel, o dono. Fique tranquilo
que esse rapaz não vai conseguir
emprego em nenhum lugar decente,
nunca mais.
— Obrigado, pai. Já é alguma
coisa... — respondo, ainda um pouco
contrariado com o modo como André
está se safando dessa coisa com Robin.
— Sabe, você tem certeza de que
ele presenteou as moças com joias? —
Meu pai pergunta, pensativo.
— Foi o que ela me contou.
Ofereceu um colar caríssimo como
recompensa pra ela e várias coisas para
as outras garotas.
— Isso pode ser alguma coisa,
Dom. Como ele se chama? Me passe o
nome completo dele que vou averiguar
isso. Um gerente ainda é um funcionário
e essas joias não são dele. A menos que
tenha pagado por elas, o que duvido
muito, a coisa pode ficar bem feia pra
ele...
Fiquei tão obcecado com punir
André pelo que fez a Robin, que nem
percebi que o que ele fazia era roubo.
Um cara como ele não pode comprar um
colar de mais de quarenta mil reais
como se fosse bala, não pode sair dando
anéis de oito mil toda semana.
— Pai, o senhor é muito
detalhista. Nem pensei nisso...
— Isso porque eu não estou com
ciúmes da minha namorada, Dominic. —
Ele sorri. — Na verdade, em toda essa
história, essa é a parte mais desconexa.
Como ele pagaria por esses presentes?
Sua garota não deve ter mencionado isso
na delegacia, porque duvido que o Dr.
Beltrão fosse deixar passar uma coisa
assim — fala, se referindo ao delegado.
Aquiesço satisfeito. Agora sim.
— Vou falar com ele agora,
prometi que passaria na delegacia pra
que ela não precisasse ir, por isso trouxe
o Bernardo pra cá... Volto na hora do
almoço e levo ele comigo, tudo bem?
— Tudo. Bárbara vai adorar e
Alice já se levantou. A coisa é séria,
pelo visto... — Meu pai me encara mais
intensamente, se referindo a Robin e eu.
— Ela ainda não descobriu o
quanto é sério. Está tudo bem pro
senhor? Eu, namorando uma mulher que
já tem um filho...
A sobrancelha dele quase se cola
à testa, estranhando minha fala.
— Não estou dizendo que se for
contra vai fazer alguma diferença —
comento, abrindo um sorriso. — Só
querendo saber se não vai se
transformar em um vilão daqueles de
novela mexicana, destratar o Bernardo
quando eu sair, essas coisas.
Agora sim, ele parece chocado.
— Que coisa ridícula. Não vou
nem absorver essas besteiras que
acabou de falar, pra não ficar acordado
de noite, pensando em como você me
tem em baixa conta.
Dou risada da expressão dele,
apavorado.
— Desculpa, pai. Não resisti,
mas está meio cedo pra brincar assim,
levando em conta nossa última briga.
— Ah, por favor! Eu só queria
que você tivesse dinheiro, não se
matasse de trabalhar, mas já pedi
desculpas. Não é como se eu tivesse te
proibido de ir ou mandado alguém te
sabotar nas provas da faculdade.
— Eu sei. Desculpa se não
entendi antes que só estava
preocupado... — respondo, com
sinceridade.
Ele suspira, pesado. As mãos no
bolso, enquanto anda pela sala.
— Já resolvemos isso, filho. Eu
quero paz, quero minha família reunida
ao redor da mesa nos domingos, quero
ter netos correndo no quintal e esse
garoto... — Ele aponta pro corredor por
onde Bernardo saiu mais cedo. — é um
bom começo. Não me importo nem um
pouco de sua namorada ser mãe solteira.
Desde que deixe de ser solteira em
breve, está tudo certo.
Me levanto e abro os braços pra
ele, propondo um abraço e já rindo das
feições assustadas dele.
— Ah, pai. Sem abraço não
vale... Falou umas coisas tão bonitinhas,
tem que abraçar agora.
Ele meneia a cabeça, ainda sem
jeito, mas se aproxima. Eu o abraço e
ele fica rígido, mas dá uns dois tapinhas
nas minhas costas.
— Pai, tem mais uma coisa que
queria que visse pra mim...

Ficaram lindos e ainda nem os


decorei!
A massa do alfajor ficou na
geladeira por mais de uma hora,
enquanto eu tomava um banho
demorado. Apenas então a abri e cortei
os discos, assei as rodinhas por dez
minutos e deixei esfriar. Depois as uni
de duas em duas, passando uma camada
generosa de doce de leite no meio delas.
Derreti o chocolate e o preparei,
depois banhei cada doce nele, os
cobrindo completamente e deixando
secar sobre o papel manteiga.
Agora estou encarando as
belezinhas, enquanto misturo o glacê e
separo por cores. São vendidas as
embalagens prontas do pó branco e se eu
estivesse agora na minha confeitaria
imaginária, com certeza não seria minha
primeira escolha. Prefiro fazer à mão.
Mas como é uma receita menor, opto
pela praticidade e uso o da embalagem
mesmo, apenas misturando a quantidade
adequada de água e batendo muito, até
conseguir a textura para confeitar.
Também seria melhor usar
chocolate branco, mas não tenho em
casa agora e isso é quase urgente.
Separo o glacê em quatro partes,
em vasilhas diferentes e coloco os
corantes para produzir as cores que
preciso: branco, verde, preto e prata.
Depois disso feito, coloco as
misturas nos sacos para confeitar e
encaixo os bicos finos nas pontas, antes
de cortar a beiradinha e começar a obra
de arte.
Suspiro satisfeita ao ver a
primeira gotinha tingir o marrom dos
doces. Com todo amor e paciência do
mundo, faço meus desenhos pequenos.
As cabecinhas arredondadas, os olhos
grandes e negros, esbugalhados e até
arrisco uma nave em cima de cada um
deles.
Ao final, fito meu trabalho,
bastante satisfeita: são alfajores
perfeitamente habitados por
extraterrestres.
Deixo secarem e decido me
vestir pra ir ver vovó Rute. Minhas
músicas já pararam de tocar tem um
tempo, então acabo recolocando do
começo e sigo para o quarto.
Abro o guarda-roupas e observo
tudo, decidindo o que colocar. Levo a
mão a uma camiseta preta, como as
várias que tenho e sempre uso, e paro
por um instante. E se hoje eu fizesse o
inesperado? Não algo chamativo, mas
quem sabe, algo claro? Estou me
sentindo mais leve do que me senti
durante todos esses anos e isso após
uma tentativa de abuso.
Eu estranharia, me consideraria
louca ou pior, pensaria estar vivendo em
negação ou em estado de choque, mas
sei que não é nada disso.
O que eu sinto tem a ver com ele.
Dominic cuidou de mim, me
protegeu e esteve lá quando precisei. Se
preocupou, ouviu meu desabafo e foi
como se ele, com todo seu carinho e
atenção, conseguisse arrancar o que
ainda restava de culpa e pesar em minha
alma.
A verdade é que ele já vinha
fazendo isso, de modo tão sutil que mal
me dei conta do quanto já havia mudado.
Eu sofri e chorei muito tempo.
Vivi um luto constante, por Derek, por
meu pai e por mim mesma, pelos sonhos
que engavetei. Mas ele me fez acordar,
despertou em mim a vontade de viver.
Escolho então minha roupa, com
base naquilo que quero viver de agora
em diante, que quero sentir.
Me encaro no espelho depois de
me trocar e a mulher que vejo no reflexo
me lembra alguém que conheci alguns
anos atrás. Sorrio para a imagem e volto
para a cozinha.
Arrumo os doces em uma
bandeja bonita com tampa, pego minha
bolsa e deixo o apartamento planejando
chamar um táxi.
Quando estou trancando a porta,
vejo um post-it colado próximo a
fechadura.
“Vai sair? Divirta-se! Seu carro
está no estacionamento, trouxe hoje de
manhã.”
Não consigo acreditar que ele
exista.
Dirijo até a casa de repouso e
dou meu nome na entrada. Logo me
deixam entrar e me informam de que
vovó está no jardim. Ela nunca gostou
muito de ficar fechada no quarto.
Eu a vejo de longe, enquanto
caminho calmamente, com a bandeja nas
mãos. Vovó está sentada em um dos
bancos, conversando com alguém que
não consigo ver, porque uma árvore alta
tampa minha visão.
Ela sorri, animada, e isso me
deixa mais contente. Não quero que seja
infeliz e se Deus quiser uma hora vou
conseguir tirá-la daqui.
Quando estou chegando mais
perto, um garotinho sai correndo de trás
da árvore e cruza meu caminho, parando
na minha frente.
Bernardo me olha com a boca
escancarada e leva as duas mãos ao
rosto, para enfatizar a surpresa:
— Vovó! Dominic! É a minha
mãe e ela tá bonita!

Depois de ir à delegacia e
confirmar que André havia mesmo sido
solto, voltei para buscar Bernardo e
acabamos almoçando por lá. Bárbara e
Minduim se deram muito bem e meu pai
parecia estar satisfeito em ter a mesa
cheia.
Alice contava vários absurdos à
mesa, fazendo com que ríssemos a todo
instante.
Quando terminamos de comer,
perguntei a Bernardo o que ele queria
fazer, afinal tinha prometido a Robin que
ela teria o dia livre.
Ele sugeriu várias coisas, mas
quando perguntei se queria ver a avó,
saiu pulando de alegria. Bernardo pula
muito.
Fomos juntos até o asilo e dona
Rute ficou muito feliz em nos ver. Eles
brincaram um pouco, Bernardo contou
as novidades sobre a escola e depois
começou a correr pelo jardim, na
algazarra típica de criança.
Me sentei ao lado da senhorinha
e conversamos por algum tempo.
Perguntei como ela estava e como a
tratavam, e ela pareceu sincera ao dizer
que não achava ruim morar ali.
Falei sobre Robin e aí sim a
conversa rendeu:
— Ela me contou tudo, dona
Rute... Sobre o pai e o namorado, a
gravidez. Tudo.
Ela abriu um sorriso.
— Que bom, meu filho. Já estava
desanimada. Tive medo de sair de lá e
vocês não aproveitarem a casa vazia.
Nem respondi. O que poderia
dizer?
Sim, dona Rute. Temos
aproveitado a varanda, os quartos e
inclusive a mesa da cozinha.
Algo me diz que ela iria aprovar.
— Estou com umas ideias, se
tudo der certo, quem sabe posso tirar a
senhora daqui e levar de volta, hein?
Mas tudo depende dela. Se Robin
aparecer, me ajuda aí, viu? Pode
começar a falar sobre minhas almofadas
e tentar dar um empurrãozinho nas
coisas — brinco com ela, que solta uma
gargalhada.
— Claro que ajudo. Mas que
planos são esses, menino? — Ela se
aproxima, para ouvir o segredo.
Penso em contar os detalhes da
minha ideia, mas nesse instante
Bernardo, que saiu correndo há pouco,
me chama.
— Vovó! Dominic! É a minha
mãe e ela tá bonita!
Eu imaginava que ela fosse
aparecer por aqui hoje, só não sabia que
iríamos nos encontrar.
Me levanto para a encontrar e
acabo ficando tão surpreso quanto
Bernardo.
Robin não está bonita. Ela é
linda. Mas a mulher que vejo aqui...
Os cabelos dela estão soltos,
voando com a brisa suave e os lábios
rosados, que indicam alguma
maquiagem. Eu nunca a vi assim.
Mas o que realmente muda tudo,
são as roupas. Robin não usa as calças
largas de costume. Na verdade, ela não
usa calças.
Um vestidinho rosa, de um tom
discreto, mas muito contrário às roupas
sóbrias que costuma usar, está
emoldurando seu corpo.
As mangas são mais volumosas
nos ombros e descem soltinhas até o
meio dos braços. O vestido é justo até a
cintura e rodado na saia, indo até pouco
acima dos joelhos.
Estou parado a encarando,
completamente encantado.
Valeu a pena cada post-it, valeu
a pena correr ao estacionamento do
shopping de manhã e levar o carro dela,
e valeu a pena esperar que Robin
estivesse pronta.
Nas mãos, ela traz uma bandeja,
provavelmente com algo que preparou
para a avó. Mas, essa mulher diante de
mim é o presente mais doce que eu
poderia ter recebido.
Robin, que havia parado no
lugar, constrangida com nossa atenção,
volta a caminhar até nós. Bernardo já
saiu correndo ao seu encontro e anda
com ela, a enchendo de perguntas.
Ela para diante de mim e abre
um sorriso tímido.
— Oi... — fala, simplesmente.
Não posso resistir ao leve rubor
no rosto delicado. Me inclino um pouco
e roubo um beijo rápido dela.
Ela não me repreende, nem tira o
sorrisinho dos lábios, mas se vira para a
avó um pouco constrangida e fita
Bernardo, esperando outra avalanche de
questionamentos.
Mas o menino apenas se afasta
na direção da bisavó e cochicha alguma
coisa com ela, que assente animada.
Nos aproximamos dos dois, no
banco e Robin dá um beijo na avó.
— Como você está linda,
querida. Parece uma princesa... — dona
Rute tem os olhos marejados.
— Obrigada, vó. Eu trouxe isso,
seus preferidos. — Robin destampa a
vasilha e começo a rir ao perceber que
ela confeitou os doces com pequenos
alienígenas e uma nave espacial.
— Ah, que delícia! — Dona
Rute exclama, retirando um doce. —
Mas menina! Tem extraterrestres no
doce!
Robin se abaixa, conspirando
com a avó.
— Eu sei, considere uma
proposta de paz, vó. Eles não vão mais
invadir o apartamento...
— Quanta bobagem, minha filha
— comenta a velhinha. — O que eles
iriam fazer na sua casa?
Vai entender.
— Quer um, Minduim? — Robin
pergunta pro pequeno, que agora olha
dela pra mim e vice-versa.
Ele assente e logo já está
mordendo o confeito, em silêncio.
— Minduim, está tudo bem? —
pergunto. Eu devia ter pensado melhor
antes de beijar a mãe do garoto na frente
dele. Devia ter conversado.
Ele ergue o rosto e me fita com
os olhos verdes um pouco lacrimejantes.
— É que eu nunca tive um pai. A
vovó disse que você vai ser meu pai,
agora.
Sinto uma pontada no peito,
como um soco bem forte.
Espero pelo desespero de saber
que Bernardo já tem expectativas altas,
mas ele não vem. Na verdade, sendo
honesto comigo, percebo que, por mais
rápido que tenha sido, a ideia de ser pai
dele só me traz sentimentos bons. A
sugestão de ter os três na minha família
é a melhor coisa que já passou pela
minha cabeça.
Robin e eu olhamos para dona
Rute, porque independentemente de
como eu me sinta, ela não podia ter dito
isso ao garoto. É uma decisão
exclusivamente nossa. Mas a velhinha
apenas dá de ombros e enfia outro
alfajor na boca.
Chegamos em casa um pouco
mais tarde, quando a noite já sobrepunha
o sol. Robin parece diferente e apesar
de ter presenciado as pequenas
mudanças que vinham ocorrendo, vê-la
assim ainda é um impacto.
— Vou preparar o jantar... — ela
diz, logo que passamos pela porta.
— Tem certeza? Podemos pedir
alguma coisa, assistir a um filme... Me
ofereço inclusive pra te abraçar nas
partes românticas — brinco.
Ela concorda, animada. O que
chega até a ser estranho, porque Robin
quase não abre mão de ir para a cozinha.
— Antes que termine o dia...
Estou querendo ver esse filme desde de
manhã. Sobre o que o Bernardo disse...
Faço um gesto com a mão,
interrompendo.
— Não precisamos falar sobre
isso, ainda não.
Ela assente, satisfeita. Sei que
ficou sem graça com o comentário dele.
— Tá bom, vou me trocar e já
volto.
— Pode tomar o tempo que
precisar, porque esse Minduinzinho aqui
está suado e precisando de um banho.
Bernardo ergue os olhos pra
mãe.
— Posso levar meu barrco? —
pergunta, agitando-se.
— Pode, Super Minduim, vamos
lá...
Os dois correm para o banheiro
e eu fico aqui, os observando. Desde
que Bernardo comentou sobre eu ser seu
pai, ele não voltou a tocar no assunto e
não me questionou sobre nada.
Graças a Deus, porque eu não
saberia o que responder. Sei bem como
me sinto com relação aos dois, mas não
o que vai na mente de Robin, como ela
reagiria caso eu apressasse as coisas e
eu sei, de verdade, eu sei que é muito
cedo quando pensamos em tempo, dias,
semanas... Mas sinto como se
estivéssemos juntos há séculos.
Também vou para meu quarto me
vestir e fico encarando os patos de dona
Rute e o crochê que colocou ali.
Planejei tirar tudo depois que ela se
fosse, mas não consegui. A senhorinha
faz falta.
Sento-me na cama e esfrego o
rosto, suspirando.
— Dominic, Dominic... Que belo
palerma sentimental você se tornou —
falo, sozinho.
Visto uma bermuda de moletom e
uma regata velha e volto a sala para
esperar pelos dois. Procuro opções de
comida no aplicativo do celular, quando
ele começa a vibrar com uma ligação do
meu pai.
— Pai... — atendo.
— Oi, filho. Escuta, já cuidei da
situação. Entrei em contato com o
proprietário da loja e o informei sobre
os incidentes.
Me levanto, agora mais atento.
— E o que houve?
— Ele queria saber o nome da
sua namorada, parece que vai
recompensá-la de alguma forma. Eu dei
a entender que poderíamos entrar com
um processo contra a joalheria e ele
decidiu ser generoso. Mas eu não sei
nada sobre a moça... Inclusive
precisamos corrigir isso. Passei seu
contato e ele vai procurar você.
Abro um sorriso. Isso é ótimo.
— E o André? — pergunto,
ansioso.
— Sobre os assédios, com a
ausência de provas e as outras
funcionárias se negando a depor, seria
difícil comprovar, mas quando
comentei sobre as joias, o patrão dele
ficou furioso. Disse que não havia
como o rapaz pagar por elas e que iria
verificar as encomendas, as entregas e
checar o estoque, mas pelo que percebi,
as coisas não vão terminar bem pro
gerente.
— Obrigado, pai. Isso é muito
bom. Fico feliz pela indenização que ela
vai receber, mas principalmente porque
esse imbecil não vai sair impune.
— Não foi nada. Agora, sobre a
outra coisa que conversamos... Eu
analisei as possibilidades, a possível
rentabilidade e acho que você deve
investir. Sei que não está pensando
nisso por dinheiro, mas ainda é um bom
empreendimento. Vai falar com ela
sobre isso?
— Mais ou menos — respondo.
— Vou levar minha namorada amanhã
pra ver o lugar, mas vou manter
discrição até dar tudo certo.
— Certo. Dominic... — ele fala
e faz uma pausa. — Eu tenho muito
orgulho de ser seu pai e estou
admirado com tudo o que está disposto
a fazer por essa moça. Só espero que
ela mereça...
O tom dele não é maldoso, hoje
eu entendo que é apenas preocupação de
pai. Ele teme que Robin possa ser
interesseira, se aproveitando do pouco
que eu tenho e visando o nome e o bolso
dele. Mas eu a conheço.
— Ela merece, pai. Fique
tranquilo, eu não sou um idiota...
Ouço a gargalhada dele ao
fundo.
— Eu espero mesmo que não,
Dom.
Desligo o celular e acabo
pedindo porções de frango frito, arroz e
salada. Uma refeição com menos cara de
fast-food.
Robin e Bernardo voltam para a
sala pouco depois, ele agora veste um
pijama de palhaços e uma pantufa do
mesmo tema, o que me faz questionar
quantas pantufas esses dois possuem.
Ela, usando uma camisola de
malha, que não deveria ser sexy, mas
agora que conheço tudo que tem
embaixo...
Coloco o filme e Bernardo acaba
adormecendo nos primeiros dez minutos,
o tema não o interessou, claro. Nosso
pedido chega e Robin o acorda para
comer um pouco, o que ele faz
reclamando bastante e tão logo termina,
corre para a cama de carro vermerio e
se deita.
Robin e eu terminamos a noite no
sofá, abraçados.
Se a vida seguir esse curso, não
tenho do que reclamar. Eu posso me
habituar a viver assim...

O domingo amanhece de sol,


enfatizando o tempo louco dessa cidade.
Preparo o café da manhã antes
que os dois dorminhocos acordem.
Bernardo, sempre que pode, dorme até
mais tarde, mas Dominic deve estar
quase levantando e quero o surpreender.
Ele tem sido tão maravilhoso
comigo, em tudo, que só posso pensar
em fazer ao menos um gesto de carinho
que demonstre como estou feliz.
Não sei para onde estamos indo,
mas no que depender de mim, vamos
descobrir juntos. Arrumo a bandeja
enquanto me recordo da tarde anterior,
do comentário de Bernardo sobre ele ser
seu pai e do modo como aquilo mexeu
comigo.
Queria ter olhado nos olhos dele,
visto sua expressão, mas não consegui.
Não tive coragem de ver sua reação,
porque a verdade é que eu mesma venho
fantasiando isso há algum tempo.
Arrumo o pão com manteiga, o
café adoçado como sei que ele gosta, um
pedaço do bolo de chocolate que ainda
temos, um alfajor e uma fruta — não sei
se ele vai comer, mas café da manhã na
cama precisa de algo saudável, ao
menos na apresentação.
Pego um post-it e sigo seu
exemplo. Não sou boa com as palavras
como ele, mas nesse caso, a sinceridade
vai ter que bastar.
“Obrigada por ser a corda que
usei para deixar o poço. Obrigada por
ser esse homem, com o qual nunca
sonhei, porque não sabia que pudesse
existir, a não ser em sonhos.”
Entro no quarto dele, sem bater
na porta para não o despertar e o vejo
deitado de bruços, usando apenas uma
cueca boxer, branca. O lençol embolado
na beirada da cama.
Como foi que eu, parecendo
Betty, a feia, fui dar a sorte de encontrar
um homem desses? Não que eu esteja
reclamando.
Fecho a porta e me aproximo,
sentando-me na beirada da cama,
próxima ao rosto dele. Passo a mão por
seus cabelos, da cor de chocolate ao
leite, e acaricio seu rosto, a barba por
fazer...
Vejo seus olhos se abrirem e
focalizarem em mim. Um sorriso se
desenha em sua boca.
— Bom dia, docinho... — A voz
rouca me cumprimenta, enviando um
sinal elétrico que percorre todo meu
corpo.
— Bom dia, Dom — respondo,
abrindo um sorriso.
Ele se vira de frente e passa a
mão pelos cabelos, os arrumando, antes
de me olhar de novo e agora, perceber a
bandeja que carrego.
— Uau... O que estamos
comemorando? — ele pergunta, soltando
um assovio em seguida.
— Eu estou comemorando você
— falo, com sinceridade. — O mínimo
que posso fazer ao ser presenteada com
um Dom, é ser uma submissa de
qualidade.
Ele ri, de um jeito bem atrevido
e eu continuo:
— Preparei algumas coisinhas
para que coma e trouxe um recado,
vindo do meu coração — falo, toda
melosa.
Meu Deus. A Robin de pouco
tempo atrás teria vergonha de mim...
Ele abre o bilhete e vejo seus
olhos se franzindo nos cantinhos. Está
contente.
— Adorei isso... Posso me
acostumar, definitivamente.
Meu coração dá um salto no
peito, minha vontade é dizer que é
exatamente o que quero, que se
acostume, que fique.
— Mas sabe... Estou com
vontade de saborear outra coisa agora...
— ele diz.
Seus olhos descem por meu
corpo, se demorando no decote da minha
blusa de modo bem sugestivo.
E lá vamos nós.

Saímos de casa depois do


almoço. Bernardo todo contente em sua
cadeira, no banco traseiro, aproveitando
o ar que vem sobre nós por causa da
capota aberta.
Dominic usa óculos escuros, uma
bermuda de sarja e camisa azul. Me
vesti de acordo com as roupas dele já
que, como na primeira vez que saímos,
ele não quis revelar onde estávamos
indo.
Estou usando uma das minhas
calças soltinhas, não por ter decidido
retomar os velhos hábitos, mas porque
preciso comprar roupas novas. A blusa é
amarela, apesar de também não ser
muito ajustada, é um modelo bonitinho e
feminino que devo ter há anos.
Fiquei contente com a ideia de
receber uma indenização. Dominic me
contou que o pai interferiu na coisa toda
e com isso, vou receber algum dinheiro,
o que é bom, porque me demitindo vou
sair de mãos vazias.
Uma das primeiras coisas a fazer
é comprar roupas, com certeza. Para o
Bernardo e para mim. Talvez um gloss e
brincos novos...
Percebo que seguimos na
direção do lago e me vejo curiosa.
Almoçamos há pouco, então não sei bem
o que estamos vindo fazer. Até porque,
por ser domingo, a maioria das lojas
está fechada.
— Não vai mesmo me dizer
onde estamos indo?
Ele apenas balança a cabeça,
achando graça.
— Seu pai mora no lago... —
comento, temendo observar a expressão
dele. — Você não faria isso, não é? Me
levar até lá sem dizer nada antes.
Dominic dá de ombros, como
quem diz: talvez.
Mas quando nos aproximamos da
orla, ele vira à direita, o que me causa
alívio. Estamos na parte comercial e não
na residencial.
Seguimos pela beira lago e
vemos várias lojas realmente fechadas,
mas um café, uma lanchonete e alguns
restaurantes estão abertos.
Observo tudo, tentando encontrar
nosso destino, mas por mais que tente
não consigo vislumbrar. Dominic
estaciona o carro mais à frente, pouco
depois do meio da rua agitada, e faz com
que eu e Bernardo desçamos do carro.
— É aqui? — Olho ao redor e
ainda não entendi nada.
— Sim, vamos entrar...
Só então percebo a chave nas
mãos dele. Dominic para em frente a
uma loja que mais se parece com um
pequeno palacete dos anos cinquenta,
todo pintado de branco, com uma sacada
daquelas que remetem a serenatas.
O imóvel parece inabitado.
Não o questiono mais, apenas
espero para ver o que é que ele está
aprontando.
Quando Dominic abre a porta e
entramos, analiso o cômodo principal. O
chão é de madeira laminada, é moderno
ao mesmo tempo em que remete ao
passado. Do teto, descem vários lustres
bonitos e clássicos e é só isso.
Apesar de muito amplo, bonito e
arejado, não tem absolutamente nada
aqui.
Não sei se Dominic percebe
minha confusão, mas ainda assim não me
diz nada. Bernardo, por outro lado,
parece achar tudo fascinante, corre pelo
lugar livre de móveis, falando sozinho
para ouvir o eco da própria voz.
— Vem, cá... — Dominic me
chama. Me aproximo do centro do lugar
e o vejo abrir uma toalha branca de
mesa. — Deita aí...
Franzo o cenho.
— De onde saiu essa toalha? —
pergunto ainda de pé.
— Robin, não estraga o
momento, vai... Deita. Deixaram a toalha
aqui pra mim.
Faço o que ele sugere e me deito
no chão, Dominic logo segue meu
exemplo e faz o mesmo.
— Então, você sabe como eu sou
estranho. Vou fazer uma pergunta mais
esquisita. Você já leu O Segredo?
Faço que não.
— Já ouvi falar, serve?
— Não, mas vou explicar. Olha,
antes de alcançarmos nossos objetivos,
precisamos atrair as coisas que
queremos, com pensamentos positivos,
visualização dos nossos planos já
concretizados. Você precisa acreditar,
enxergar aquilo e então vai conseguir,
entende?
Faço que sim, ainda que não
esteja muito certa de que assimilei bem
a ideia ou de que Dom realmente
acredite no que está dizendo.
— Então, hoje estamos aqui
porque tenho uma tarefa pra você,
docinho. Vai visualizar sua confeitaria,
exatamente como gostaria que ela fosse,
caso tivesse uma. Quero que me fale em
voz alta, as cores, os móveis, como você
trabalharia... E eu vou conseguir ver
também. Quero detalhes tão realistas
que seja possível sentir a verdade em
todos eles.
— É sério? — pergunto sem
entender onde ele quer chegar com isso.
— Sim, muito. Eu percebi que
não parece mais resistente à ideia de
voltar a trabalhar com o que você ama, e
não tem mais um emprego... — ele
explica seu ponto de vista.
— Verdade, mas abrir uma
confeitaria custa dinheiro. E eu não
tenho. Mesmo que eu receba a
indenização, Dom. Se estiver pensando
nisso... Ainda assim vai ser pouco. Não
será o bastante.
— Não estou pensando nada
disso. Apenas que precisa confiar no
universo. Vamos, fale em voz alta...
Olho o teto, as paredes e
pondero sobre o espaço. Depois fecho
os olhos e puxo pela memória os sonhos
que tinha quando mais jovem.
— Bom, eu sempre quis algo que
fosse moderno em relação aos
equipamentos, utensílios de cozinha. Os
balcões seriam de vidro na frente,
envoltos por madeira. Algo que fosse
também aconchegante, romântico... Acho
que é a palavra que eu usaria.
Faço uma pausa e tento
visualizar as mesas.
— Gostaria de ter, do lado de
fora, mesas para dois. Aquelas altas,
com banquetas bonitas. E dentro do
salão maior, lugares para quatro
pessoas, cadeiras e mesas no mesmo
estilo... É isso, algo que fosse retrô, não
velharia. — Solto uma risada, pensando
em como me apressei a explicar, caso o
universo esteja ouvindo. — Coisas
novas, de última geração, mas com
design vintage, sabe?
— Sei — ele responde. —
Gosto disso... O que você iria servir,
vender?
— Eu teria cupcakes de muitos
sabores, confeitados e feitos com muito
amor. Os alfajores que a vovó Rute ama,
bolos de todos os tipos. Eu faria para
casamentos, festas e formaturas, além de
outros para vender as fatias. Doces
decorados, brigadeiros gourmets...
— Aqueles morangos que fez na
noite da sobremesa? — Dominic
questiona.
— Com certeza teria deles.
Biscoitos confeitados, bolinhos, donuts
e cookies. Café, sucos, chocolate quente
e chás. Também gostaria de ter algo
salgado, porque às vezes as pessoas não
querem tanto doce, então teria tortas,
salgadas e doces.
— Eu já adoro esse lugar. É tudo
tão gostoso. — A voz de Dominic me
alcança.
— Também adoro. Seria claro,
arejado durante o dia, e quando
fossemos fechar mais tarde o espaço
ficaria à meia luz.
— Lindo... E quais as cores de
tudo?
— A decoração seria em tons de
rosa claro e azul bebê, suaves... As
embalagens dos doces também. Já os
móveis seriam brancos, um rosa
clarinho em um ou outro item. Vasos de
flores sobre as mesas.
— Estou ansioso para ver. Já
quero sentar e comer meu morango
enquanto te espero fechar pra irmos
embora.
A forma como ele fala aquilo,
faz parecer tão real que me pego
sorrindo e busco sua mão ao meu lado.
— Vai ser maravilhoso — falo,
sem querer estourar nossa bolha.
Ainda ouço Bernardo correndo e
brincando ao nosso lado, mas minha
mente está fixa na imagem que ele
conseguiu me fazer criar.
— Eu gostaria de um espaço ao
ar livre, um jardim talvez... Onde as
pessoas pudessem ler, conversar... —
comento, pensando mais longe.
— Incrível. Também poderia ter
uns sofás, o que acha? Eu confesso que
ia achar demais, uma estante de livros e
um lugar para ler.
— Seria, sim — concordo. —
Um ambiente para passar algum tempo e
não apenas para comer. Sabe, Dom...
Estamos aqui apenas imaginando, mas
sabe o que tornaria minha confeitaria a
mais especial de todas?
Ele fica calado, aguardando.
— Seus textos, seus versos... Já
pensou como seria único, se tivéssemos
um tipo de doce em formatos diferentes
e cada formato recebesse o nome de um
sentimento?
Dominic se vira de lado,
percebo pelos movimentos e faço o
mesmo, abrindo os olhos e o encarando:
— Como assim? — ele
questiona, curioso.
— Solidão, paixão, tristeza,
angústia, amor... Alegria. O cliente
poderia comprar de acordo com o modo
como se sentisse e receberia junto um
post-it seu, um conselho, uma palavra
amiga, que o confortaria um pouco, junto
ao chocolate.
— Chocolate? — Ele ergue a
sobrancelha e percebo sua empolgação
com minha ideia.
— Sim, chocolate. Ele libera
serotonina e faz com que as pessoas se
sintam mais felizes.
Dominic assente.
— Então somaríamos o
chocolate aos versos... Ia ser incrível,
não acha?
— Vai ser, Robin. Não se
esqueça de que temos que mentalizar.
Aquiesço e fecho os olhos outra
vez, pensando naquilo tudo e tentando
manter o sonho vivo.
Dominic também se cala e até
Bernardo parece compreender o
momento e ficar mais quietinho.
Ficamos assim por um tempo e depois
deixamos esse lugar para trás, sem
esquecer o que vivenciamos.
Eu sempre acreditei que Robin
seria do tipo que saberia até as cores
das embalagens que entrariam em sua
doceria, mas constatar o quão longe ela
pode ir quando se permite, foi muito
além do que imaginei.
Voltamos pra casa dali e depois
de limpar os cômodos — algo que eu
estava enrolando para fazer, admito —
deixo os dois no apartamento e saio.
Chego na casa do meu pai um
pouco depois e o encontro no escritório.
— Pai... — chamo.
Ele ergue o rosto e me vê.
— E então? — questiona.
— Tudo certo... Pode me levar
em casa? O cara vem pegar aqui depois.
Eu não quero que ela saiba por
enquanto.
Nos olhamos, entendendo como
isso é importante, quando Bárbara entra:
— Oi, Dom... Trouxe o Super
Minduim? — Os olhos dela já o
procuram, ansiosos.
— Não trouxe. — Sorrio de sua
expressão desanimada. — Na próxima
vez que vier, vou trazer ele e a mãe,
para apresentar a vocês.
— Ótimo! Estamos ansiosos.
Assinto.
— Quando inaugurarem, vamos
estar lá. — É meu pai quem diz e
Bárbara olha dele pra mim sem entender
muita coisa.
Na verdade, nem mesmo eu
entendo bem. Só sei que, em algum
momento, o sonho dela passou a ser
mais importante que os meus.
A semana passou arrastada. Um
dia após o outro em casa, vendo filmes,
cozinhando, limpando... Brincando com
Bernardo e aguardando Dominic voltar.
A cada dia que passa me apego
mais a ele e meu temor também cresce
junto aos sentimentos. O prazo para que
eu procure um novo apartamento parece
cada vez mais perto, mesmo que
tenhamos deixado relativamente em
aberto. Dominic também tem chegado
cada dia mais tarde e apesar de tentar
descobrir o que ele anda fazendo, suas
respostas são vagas e nada
esclarecedoras.
Com tanto tempo livre e tendo
um filho para manter e despesas para
dividir, decidi que minha melhor opção
no momento era tentar conseguir algum
dinheiro vendendo bolos. Quando
comentei com Dominic, ele adorou a
ideia, me ajudou a criar um site básico
para anunciar, tudo muito simples, mas o
suficiente por enquanto.
Coloquei algumas fotos de doces
e bolos que já fiz e deixei meu contato,
torcendo para receber ao menos uma
encomenda em breve. Eu ainda não fui
contatada pelo dono da Magic’s e em
breve não vou conseguir mais manter
minha parte das contas e mesmo que
Dominic me tranquilize, dizendo que seu
pagamento pode suprir tudo, me sinto
apreensiva. Não é obrigação dele.
Hoje é quarta-feira. Dominic
levou Bernardo para a aula e depois de
o buscar a tarde, recebi uma ligação. A
primeira.
Enquanto falava com a cliente e
anotava o pedido, meu coração só
faltava sair correndo, abandonando meu
corpo.
— Sim, é da... confeitaria —
respondo à pergunta dela, observando
minha cozinha e tentando não me sentir
um pouco patética.
— Meu nome é Marta, eu
gostaria de fazer uma encomenda
grande. Não sei se tem tempo para isso,
mas estou desesperada...
Ai meu Deus, isso está
acontecendo.
— O que você precisa? —
pergunto, me forçando a continuar a
conversa, ao invés de surtar e sair
pulando como Bernardo faria.
— Vou dar uma festa, sabe? E a
confeiteira desmarcou. Preciso de tudo
pronto pra sábado... Vão ser bolos, os
sabores você pode variar, desde que
sejam ao menos oito, quero todos bem
decorados, lindos. O que? — Ela
questiona alguém ao seu lado. — Ah,
sim. Um de chocolate com morango, os
outros podem ser como achar melhor.
Anoto tudo, concentrada. O
pedido é bem aleatório, mas eu
compreendo. Com a proximidade da
festa, ela só quer que tudo esteja lá.
— Mais alguma coisa? —
interrogo.
— Sim. Quero cupcakes, cinco
sabores diferentes, mas apenas
algumas unidades de cada e também
doces confeitados e bombons. Pode
fazer também duas tortas salgadas?
— Eu... Pra que dia disse que é
mesmo?
— Sábado. Vi seu site e achei
tudo de tanto bom gosto... Tenho
certeza que é a oportunidade perfeita
para que outras pessoas conheçam seu
trabalho.
Ela está certa, é muito trabalho
para fazer sozinha em pouco tempo. Mas
eu dou conta e vai mesmo ser ótimo para
conseguir mais clientes.
— Tudo bem, Marta. Pode me
passar seu contato? Eu ligo assim que
estiver tudo pronto...
A mulher hesita e eu sinto um
calafrio. E se for um trote? Eu nem sei
como vou comprar isso tudo. Se levar
um calote, estou ferrada.
— Eu te ligo — ela diz.
Apesar do receio de perder a
cliente, tento abordar o assunto.
— Marta, você acha que
consegue fazer metade do pagamento
adiantado? Preciso comprar os
ingredientes e não estava contando com
um pedido tão grande e repentino.
Percebo que ela se afasta do
telefone e cochicha alguma coisa, antes
de me responder e cruzo os dedos
enquanto aguardo.
— Consigo, me passe seus
dados para o depósito e um e-mail que
envio o comprovante por lá.
Eu dito todas as informações,
incluindo o valor que calculo
aproximadamente e desligo o telefone.
Durante a próxima meia hora apenas
espero, roendo as unhas de ansiedade,
torcendo para não ser uma pegadinha de
mal gosto.
Mas meu celular mostra o ícone
de nova mensagem no e-mail um pouco
depois e o comprovante está lá, sorrindo
pra mim.
Agora sim, sou oficialmente uma
confeiteira.
Saio pulando e gritando e
Bernardo vem correndo ao meu
encontro. Dançamos juntos, sem música
mesmo, comemorando, mesmo que ele o
faça apenas pela diversão.
Preciso compartilhar com
Dominic.
Envio uma mensagem pra ele,
perguntando onde está e ele logo me
responde que já está subindo, apenas
arrumando uns relatórios no consultório.
Prefiro descer até lá, ao invés de
ficar esperando que ele venha. A
empolgação é tanta, que arrasto
Bernardo comigo e descemos de
elevador.
As portas se abrem e saímos,
mas quando chego diante da porta do
consultório, ela está fechada.
Por que Dominic diria que
estava aqui se não estivesse?
Então eu o vejo entrando, ele
caminha pelo corredor comercial do
prédio mexendo no celular e sorrindo.
Demora um pouco a nos notar, mas meu
olhar já percorreu seu corpo,
concentrando-se nas roupas meio sujas.
Ele não podia estar na clínica vestido
assim.
— Oi... — ele diz quando nos
vê.
Parece culpado.
— Oi — respondo, tentando não
demonstrar nada do que estou sentindo.
Ele não tem compromisso comigo, não
tem. Repito isso para tentar me
convencer, mas não funciona muito bem.
— Pensei que estivesse no consultório...
Ele coça a cabeça. Sempre faz
isso quando fica meio sem jeito.
— É, eu saí ali fora para falar
com um conhecido... Vamos subir?
Olho a sacola em suas mãos,
meio aberta e vejo uma outra roupa. A
mesma camisa que ele usava quando
saiu de casa, mais cedo.
Ele ia se trocar antes de subir.
Sinto um nó se formando na
garganta, me impedindo de falar. Então
apenas aquiesço e volto com os dois
para o elevador.

Merda.
Eu deveria ter previsto que algo
assim pudesse acontecer, que ela
poderia vir ao meu encontro e descobrir
a farsa. Mas não previ.
Por mais que não grite, xingue ou
exija uma explicação, vejo a mágoa nos
olhos dela, o modo desconfiado com que
me fita quando pensa que não estou
vendo.
Ela acha que menti, e bom, eu
menti mesmo. Mas por um bom motivo.
Entramos em casa e eu espero
que a raiva dela ceda. Não posso me
explicar, ainda não.
Sigo até a cozinha, rondando-a,
esperando que me conte as novidades.
Mas ela se mantém em silêncio.
— E então, como foi seu dia? —
pergunto.
Robin lava a louça na pia com
força brutal, ameaçando todos os copos
no processo.
Está furiosa.
— Docinho... Não vai falar
comigo?
— Não tenho nada a dizer.
Fiquei aqui fechada o dia todo, comendo
e engordando. Com certeza seu dia foi
mais interessante.
Onde será que ela pensa que eu
estive com essa roupa? Com outra
mulher, pelo jeito.
— Na verdade o meu foi muito
bom. — Vejo o papel com suas
anotações em cima da mesa. — O que é
isso? Recebeu uma encomenda? Isso
tudo é um pedido?
Ela assente, ainda de costas,
como se não fosse nada demais.
— E você não está feliz? —
questiono, começando a ficar chateado
com o descaso.
— Fiquei, sim — responde
apenas.
Olho dela para o papel e vejo
pelo canto do olho que Bernardo está
observando tudo.
— A mamãe dançou comigo na
sala e a gente pulou, sabia? São
muuuuuitos bolos.
Então ela ficou feliz. Só está
brava comigo.
— Imagino, Minduim. Eu vou
tomar um banho e volto já...
— Não precisa — ela diz. — Eu
vou dormir mais cedo, estou indo me
deitar agora mesmo.
Olho no relógio e vejo que passa
pouco das seis da tarde.
— Agora? — Isso é ridículo. —
Vamos ver um filme antes, eu te deixo
escolher e prometo ficar no outro sofá,
já que está tão irritada comigo.
Ela dá de ombros, mas não nega
que esteja brava.
— Robin... — Me aproximo e a
abraço por trás. — Não precisa ficar
nervosa. Eu juro que só tenho olhos pra
você, docinho.
Ela sai dos meus braços, se
afastando na direção dos armários, os
abrindo e fechando como se procurasse
alguma coisa.
— Não sei do que está falando,
Dominic. Só estou cansada e tenho todos
esses bolos pra fazer. Na verdade, nem
posso dormir, não sei porque disse que
iria... Vou ter que começar a preparar as
coisas e faltam vários ingredientes.
Acho que vou ao mercado agora.
Essa é uma ótima ideia.
— Tudo bem, vou com você. Me
espere um pouco, tá bom?
Robin finalmente me encara,
analisando-me.
— Não precisa, pode ficar aqui
que volto rápido.
— Eu quero comprar algumas
coisas também... Preciso de umas
bebidas, o sabonete também acabou e
você não saberia encontrar. — O olhar
enviesado que me dirige, mostra que
estou só piorando as coisas. — Me
espera, Robin. Vamos os três, tá bom?
Ela acaba assentindo.
Me troco rapidamente, nem me
dando ao trabalho de tomar um banho,
mesmo que esteja precisando. Vai que
ela foge...
Volto à sala e ela está calçando
um par de tênis no pequeno.
Quando termina, pega a lista da
encomenda e eu pego Bernardo no colo.
Me concentro nele, porque se continuar
vendo toda a raiva dela, vou acabar me
entregando.
Pelo jeito, hoje vou dormir
sozinho.
— Onde estão suas chaves? —
ela pergunta.
— Vamos no seu carro porque o
porta-malas é maior — respondo e ela
aquiesce.
Seguimos para um mercado que
vende em atacado e varejo e enquanto
Robin reúne os ingredientes que precisa
em um carrinho, eu encho outro com
fardos de refrigerante e frutas frescas.
Ela me olha cada vez parecendo
mais irritada, como se eu fizesse
escolhas absurdas, mas ignoro, fingindo
não notar. Qualquer desculpa que eu der,
será ruim.
Se ela soubesse tudo que fiz
hoje...
Cancelei meus atendimentos na
clínica e no consultório pelo restante da
semana, reagendando tudo para a
próxima. Transformar o sonho dela em
realidade não é tão fácil, ainda mais em
poucos dias.
Apesar do imóvel estar com a
pintura impecável, precisei pedir a um
pintor para cobrir uma das paredes
brancas com tinta rosa claro. E depois
disso, passei o dia de ontem inteiro em
busca dos móveis perfeitos.
Robin foi muito específica e eu
não quis fazer menos do que ela
visualizou.
As mesas altas para a calçada
não foram difíceis, as de dentro que me
exigiram uma busca maior. Por sorte,
encontrei seminovas em ótimo estado,
de uma loja que fechou as portas no
shopping. Não é a melhor ideia, mas
uma mão de tinta resolveu os pequenos
desgastes e fiquei satisfeito.
Mandei instalarem os vidros nos
balcões, a pintura deles e dos armários
também foi feita. Encomendei a cozinha
com tudo de mais moderno, seguindo as
instruções que ela me deu e pegando
dicas na loja, torcendo para não errar
em nada. Esse é o risco de se fazer uma
surpresa, mas a pesquisa foi intensa.
Não poupei gastos em relação às
formas, vasilhas e utensílios. Os
melhores fornos, duas batedeiras que
custaram mais do que minha televisão,
cada uma, e todos os outros aparatos
para uma cozinha completa.
Depois de arrumar todas essas
coisas, o sonho dela foi tomando forma
e se tornando, no processo, um sonho
meu também. Mas ainda faltava o mais
importante para que pudéssemos
inaugurar: a comida. Me encarreguei
disso, pedindo a Marta que fizesse a
encomenda. Me lembrei dos itens que
Robin gostaria de vender, deixando
alguns de fora, para que ela faça em
outro dia depois de descobrir a
surpresa.
Pedi a ajuda de Alice, também
liguei pra Mari e as duas se dispuseram
a trabalhar, servindo as mesas no fim de
semana. Depois, Robin pode cuidar de
contratar alguém para a ajudar.
Hoje, deixei Bernardo no
colégio, tendo que lidar diretamente com
a professora atirada e, depois disso,
meu dia consistiu em limpeza. O que não
tenho feito em casa, fiz
multiplicadamente na confeitaria. Lavei
o chão e fui obrigado a passar um
produto pra dar brilho — coisa da
Marta —, limpei as mesas, os balcões e
desinfetei tudo que ela vai precisar usar
na cozinha.
À tarde, entregaram o jogo de
sofás e os posicionei dentro do salão, ao
lado de uma estante branca abarrotada
de livros. Nos fundos, o trabalho está
sendo mais complicado, porque a grama
só será instalada no dia seguinte. O
lugar não tem um jardim pronto, mas
nada que mais um pequeno gasto não
resolva.
Os postes de luz e os bancos
brancos de madeira remetem aos séculos
passados e me fazem sentir exatamente o
que ela me fez quando descreveu sua
doceria ideal.
A não ser por alguns ajustes e
pelo gramado, tudo está quase pronto,
mas esqueci as bebidas. O freezer segue
vazio.
Então, aproveito a ida ao
mercado para abastecê-lo. Depois,
podemos fazer um pedido maior.
Ela caminha ao meu lado agora,
colocando os itens que veio buscar no
carrinho e evitando me olhar. Quero só
ver a cara dela quando descobrir o que
eu estava fazendo.
— Mamãe, posso levar esse?
Deissaaaa — Bernardo pede com a
expressão do gatinho do Shrek.
— Não, Minduim. Já me fez
comprar muita coisa, pode colocar esse
aí no lugar que pegou. A mamãe não tem
mais dinheiro...
Olho para o pequeno, que encara
a caixinha de biscoitos com tristeza e
não resisto.
— Eu te dou, Minduim, pode
levar.
Ele faz festa e coloca a caixa no
meu carrinho, antes de sair correndo em
busca de mais alguma coisa.
— Você não devia fazer isso —
ela fala. — Bernardo vai começar a
querer mais coisas e vou ter que chamar
a atenção dele porque é muito feio
criança que pede as coisas pros outros.
Abro um sorriso meio
debochado. Os outros... Mas que
marrenta!
— É mesmo? Então que bom que
não me importo de dar o que ele quiser,
não é?
Ela estreita os olhos e para de
andar, se virando pra me encarar.
— É mesmo? Pelo que me
lembro, estava tão ferrado quanto eu.
— Estava. Já recebi meu
primeiro pagamento e agora vamos ficar
tranquilos... — explico.
Não é mentira, realmente recebi
da clínica, mas a fonte do meu dinheiro
repentino não é só essa.
— Não vamos, Dominic. Você,
vai. É o seu salário e não é justo gastar
com Bernardo.
Me aproximo dela e a abraço
aqui mesmo, no meio do vai e vem do
mercado.
— Claro que é justo. O que mais
um pai faria? — Dou um beijo rápido na
boca dela, que nem mesmo fecha os
olhos, tamanha a surpresa e depois, me
viro e continuo andando sem esperar sua
resposta.
Termino de pegar algumas coisas
e me encontro com os dois outra vez e
apenas então, seguimos para o caixa.
Robin paga por suas coisas, sei que ela
insistiria com isso principalmente agora
que está chateada e não tento intervir
porque sei que o valor que transferi pra
sua conta mais cedo vai bastar.
Pago tudo que coloquei no
carrinho e as coisas que acabei
comprando para o Minduim. Depois de
guardar tudo no porta-malas seguimos
para casa, Robin ainda em sua greve de
silêncio, mas agora acredito que muito
mais pelo que eu disse, do que pela
irritação.
Mesmo que ela não peça, coloco
o avental extra e a ajudo no que posso,
por fim ela acaba melhorando um pouco
o humor e me dá algumas tarefas.
Prepara alguns recheios e leva à
geladeira, faz geleias de frutas, tudo que
pode ser feito antes para se preocupar
na sexta com assar e montar as coisas.
Quanto mais ela faz, mais
percebo o quanto vai precisar de ajuda.
Não acho que ela consiga preparar tanta
coisa todos os dias, atender o balcão e
servir as pessoas. Pretendo ajudar após
o trabalho, mas não consigo sair antes
das cinco e a menos que Robin decida
manter o lugar parte da noite aberto, não
serei de grande valia.
Paramos tarde da noite e ainda
temos dois dias pela frente. Resolvo
tomar um banho e depois, tentar amansar
a fera.

Pai. Ele disse isso...


Criei tanta expectativa, torcendo
para que Dominic pudesse se sentir
assim, mesmo sabendo que era loucura
pelo tempo que nos conhecemos, mas
quando ele disse, a emoção do momento
foi um pouco ofuscada pela raiva que
estou sentindo.
Não sei bem o porquê, talvez
não tenha motivos para isso. Mas ele
mentiu, continua me escondendo coisas e
não posso ignorar isso. Chegou tarde na
segunda, sumiu o dia todo na terça e
hoje, mentiu sobre onde estava.
Mas, ainda que eu estivesse no
pior dos meus humores, ele me ajudou o
tempo todo. Picando chocolate, abrindo
latas e misturando ingredientes. Tudo
estava tão bem de manhã, que é tentador
esquecer o pequeno problema e tentar
focar nas coisas boas, afinal, não tenho
por quê imaginar que ele tenha saído
com outra pessoa apenas por ter dito que
estava no consultório. E por ter levado
uma troca de roupa.
Esses pensamentos me fazem
lembrar das roupas. Dominic foi tomar
banho e decido aproveitar e jogar
algumas peças na máquina de lavar, ou
logo estarei sem o que vestir.
Separo primeiro os tecidos mais
delicados, para uma lavagem rápida e
no processo, resolvo ser boazinha e
colocar as calças sociais que ele usa no
trabalho. Como sempre, verifico os
bolsos antes de colocá-las, uma a uma,
na lavadora e em um deles, encontro um
pedaço de papel.
Automaticamente eu o abro.
É um número de telefone. Cíntia.
Não é esse o nome da professora do
Bernardo?
O tremor nas minhas mãos e meu
coração disparado não me deixam negar.
Eu fui burra, abri meu coração
outra vez, sem garantias de nada e agora,
ele acaba de ser perfurado. Apoio a mão
na lavadora e tento manter a respiração
calma, inspiro e expiro algumas vezes,
enquanto vejo as fantasias que criei ao
redor dele, ruírem.
Mas não tudo. Não vou voltar ao
ponto em que estava. Olho para a mesa
cheia de coisas e me concentro naquilo,
vou fazer dar certo.
Posso não ter Dominic, ele pode
até não ser o homem que pensei, mas
ainda é a pessoa que me ajudou quando
mais precisava e os ensinamentos que
me passou não vão ser esquecidos.
— Oi, Alice... — atendo a
ligação. — Acho que está tudo pronto
— respondo, ouvindo sua pergunta do
outro lado.
— Certo, vou conferir umas
coisas com você, ok? — ela pergunta e
já segue, sem esperar resposta. —
Pegou nossos uniformes na costureira?
A roupa da Robin? Não pode esquecer,
Dom, não é um mero detalhe, hein? —
me alerta pela décima vez.
— Vou pegar agora à tarde, não
precisa se preocupar. Conversou com a
Mari? Combinaram as coisas? —
questiono.
— Sim, achei ela uma graça,
inclusive. A Marta também vai ajudar e
o papai convidou vários amigos, a
Bárbara enviou convite às amigas... Vai
lotar!
Sorrio, contente. Por mais que
Robin esteja me punindo desde quarta-
feira, estou feliz porque logo ela vai
descobrir tudo, se declarar loucamente
apaixonada e tudo ficará bem.
— Estou ansioso... — Acabo
deixando escapar.
Alice ri, toda empolgada.
— Ela vai pirar, Dom. Se não
casar com essa garota depois dessa
loucura toda, eu desisto de colocar
juízo na sua cabeça.
É minha vez de rir. Colocar juízo
na minha cabeça? Logo essa
desmiolada?
— O papai também vai? —
pergunto. Sei que a presença de um dos
homens mais influentes da cidade pode
ser sinônimo de aprovação para outras
pessoas.
— Disse que sim, mas a
Bárbara viajou pra resolver umas
coisas com os parentes, lá... Falou que
como a inauguração vai ser em dois
dias, no domingo ela aparece por lá. A
Laíssa queria ir, mas eu disse que vou
trabalhar e que um outro dia a levo lá.
Fiquei pensando que talvez Robin não
goste e não quero que nada estrague o
grande dia.
— Fez bem — respondo. —
Nem tem o que Laíssa fazer lá, já que
sobrevive à base de saladas.
Alice ri, divertindo-se.
— Ah, continuando a listagem...
Falou com ela sobre os doces
especiais? Se quiser, eu posso dizer que
é um pedido pra mim. Ela ainda está
brava com você?
— Pode ser, liga pra ela e pede
os doces, fala que já conversamos e eu
disse que faria os textos. E sim, está
furiosa. Mas vai passar, ela pensa que
estou a enganando...
— Não deixa de ser verdade.
Acho que vou pra sua casa ajudar ela,
de alguma forma que não sei qual,
porque sabemos que não cozinho nem
miojo.
— É uma ótima ideia. Vai ser
útil e nos últimos dias ela não quer nem
minha ajuda, está tão brava que tenho
medo dos doces nem saírem bons.
— Mas amanhã vai valer a
pena... Sexo de reconciliação é sempre
melhor — ela diz.
— Nem me fale, quero pegar ela
e... — Interrompo minha fala, ao me dar
conta de quem é minha interlocutora. —
Alice, não quero nem pensar no porque
você entende sobre sexo de
reconciliação.
— Tão inocente... Enfim,
uniformes, dolmã, dos doces eu cuido e
por fim... A avó. Não se esqueça que
precisa pegá-la no asilo.
— Fica tranquila, se precisar de
alguma coisa eu grito.
Desligo o celular e fico algum
tempo pensando sobre tudo isso. Robin
vem me mantendo no zero a zero desde o
início da semana e nossa interação em
casa tem sido quase nula.
Bernardo por outro lado, me
espera acordado e brincamos até a hora
de dormir. Me conta histórias e ouve as
minhas, assistimos nossos desenhos
favoritos, e jantamos papeando enquanto
Robin age como se eu não existisse.
O encontrei vestindo fantasias
diferentes duas vezes essa semana, o que
me deu a ideia de encomendar um
uniforme de chef pra ele também.
Tentei ajudar no que posso em
casa, mas Robin não tem facilitado as
coisas. Não me deixou o levar a escola
nem uma única vez e me afasta quando
tento ser útil, mas ao menos isso me
deixou mais tempo livre pra focar na
inauguração e que Deus me ajude,
porque se ela não gostar... cara, não sei
o que vou fazer.
Tive que escolher um nome,
precisávamos de uma placa, de
panfletos e cartões de visita. Os
guardanapos e embalagens para viagem
também estão prontos e ostentam o nome
da doceria. A questão é que fui eu que
escolhi o nome e me sinto apreensivo
com isso, porque se não a agradar, vai
ser um soco no estômago, mas se eu
desse mais uma pista, ela iria descobrir
tudo.
O tiro no escuro foi dado, agora
é torcer para não ser atingido no meio
da testa.

Minha mãe me ligando pela


quinta vez hoje. Rejeito a ligação, não
bastasse todo o estresse de lidar com
Dominic e as encomendas, ainda ter que
pensar nela... Seria demais.
Alice entrou em contato comigo,
solicitando uma leva dos doces que
chamou de chocolates reflexivos — que
sequer existiam no mundo real.
Expliquei que Dominic e eu apenas
conversamos sobre eles e que nunca
havia feito um ou planejado fazer de
fato, mas de acordo com ela, a festa de
aniversário do pai deles era no final de
semana e Dominic havia elogiado tanto
os tais bombons que agora todos
queriam provar.
Elogiado como? Isso não sei, já
que nunca os fiz.
Insisti que sozinha não poderia
fazer, já que os versos eram dele e eu
mesma não tinha inspiração para nada
que não fosse cozinhar e decorar, mas
ela nem me ouviu, afirmando que com
Dominic já estava tudo resolvido e ele
iria preparar os textos.
Então usei a desculpa de que não
tinha tempo, o que era bem uma verdade
e Alice sem perder tempo, disse que
estava indo me ajudar e levando
reforços.
Ou seja, agora estou aqui, no
meio da cozinha, com um milhão de
coisas pra fazer e esperando minhas
ajudantes não solicitadas — porém,
sendo sincera, muito bem-vindas —
chegarem.
Graças a Deus elas não
demoram. Alice chega com uma senhora,
que se apresenta como Marta. A segunda
Marta a me salvar essa semana.
A mulher está acostumada a lidar
com cozinha e segue meus comandos
com facilidade, sem questionar. Já
Alice... Bom, o importante é a intenção.
Ela não me atrapalha e isso já é algo
bom.
Tenho pasta americana, glace de
todo tipo, chocolate picado, em calda e
branco, geleias, confeitos, massas, tudo
isso e muito mais espalhado pela casa.
Enquanto Marta vai batendo as
massas seguindo minhas receitas, vou
assando os bolos e decorando tudo.
Em meio a essa bagunça mal
vejo o dia passar e quando são quase
cinco horas, recebo uma mensagem de
Dominic.
“Não se preocupe, busco o
Minduim no colégio.”
Claro que busca. O safado sabe
que estou irritada e nem mesmo se
esforçou para entender meus motivos, o
que significa que sabe muito bem o que
fez.
Finalmente ontem à tarde Saulo
entrou em contato e me informou que na
segunda meu cheque indenizatório
estaria em minha conta e dessa forma,
vou encontrar outro lugar para morar,
longe de Dominic de preferência.
— Menina... — Marta me chama
em um momento. — Você disse que se
chama Robin? É um nome bem incomum.
— Eu sei — respondo, sorrindo.
— Não dá pra saber se é homem ou
mulher.
— Você é daqui mesmo? De
Lagos? — pergunta.
— Não, vim de Cordilhéus tem
uns dois meses, quase isso.
— Huum... — Emite apenas e
direciona um olhar para Alice.
Acho que ela não gosta de
Cordilhéus.
Dominic chega um pouco depois
com Bernardo e se oferece para ajudar.
Por mais que eu insista que não é
necessário, as outras duas já atiram
algumas tarefas para ele.
Em dado momento percebo
Marta cochichando que precisa dizer
alguma coisa a ele e fico com a pulga
atrás da orelha, mas logo Dominic sai
para “resolver uma coisa na rua” e eu
esqueço a curiosidade, substituindo-a
pela raiva e o ciúme.
Enquanto mais um bolo assa,
derreto o chocolate para preparar os
bombons reflexivos, tempero como se
deve e aguardo que amorne. Checo com
o termômetro para ter certeza, estamos
sem tempo, mas preciso trabalhar o
chocolate para que fiquem perfeitos.
Acabei me decidindo por:
Solidão, Angústia, Tristeza, Alegria,
Paixão e Amor. Cada um com seu
objetivo próprio.
Solidão foi feito à base de
chocolate belga, como os outros
também, e recheado com mousse de
licor de uva e o resultado foi muito além
do esperado. Ele foi feito com o intuito
de consolar e no formato quadradinho,
ficou uma graça.
Angústia foi a criação mais
difícil. A princípio eu não sabia como
recheá-lo, qual sabor associar ao
sentimento, mas então comecei a pensar
no que quero transmitir com a ideia e
nesse caso, a intenção é tornar a
angústia, em paz.
Os recheei com coco e um sutil
toque de limão e mesmo no formato
arredondado, tradicional, eles ainda
conseguiram se destacar e seriam muito
consumidos por aqueles que buscam
palavras amigas.
Fazer o Tristeza foi fácil, vivi
imersa nesse sentimento por tanto tempo,
que o conheço intimamente e no
momento ainda o sinto aqui,
enfraquecido, mas presente. O bombom
ganhou o formato de uma gota de
lágrima, bem figurativo e dentro dele,
mousse de morango, para ao menos
momentaneamente, emocionar e quem
sabe, levar um pouco de alegria.
Por falar em Alegria, esse traz
frases bonitas, reflexões sobre a vida e
sobre aproveitá-la bem e é recheado
com creme de maracujá e se parece com
uma estrela. Paixão é para aqueles que
se sentem mesmo apaixonados e os
dizeres serão versos de grandes poetas,
complementados com um pequeno
comentário de Dominic. O recheio não
podia ser outro que não o de pimenta
rosa, sutil para não apagar o doce, mas
picante. É um losango.
E por fim, o Amor... Este fiz em
duas versões, uma para os que estão
amando e querem ler algo sobre o
sentimento, conselhos amorosos, e outro
para os que desejam se declarar com um
gesto romântico.
Já é tarde da noite quando
Dominic retorna, estamos tão imersas
nos recheios que mal o notamos.
Bernardo adormeceu no sofá e nem
mesmo consegui o levar para a cama de
imediato e quando decido fazer uma
pausa e cuidar do meu filho, o encontro
na cama, dentro do seu pijama e coberto.
— Obrigada — digo, ao passar
por ele, indo de volta a cozinha.
— Por nada, docinho... — Sua
voz é suave e acabo parando, como se
ele estivesse me chamando.
Ficamos assim, nos encarando
por um momento mais longo do que eu
deveria. Sinto a intensidade dos olhos
dele sobre mim, o desejo gritante que
ameaça fazer com que minhas pernas
cedam e a vontade de o abraçar, beijar e
esquecer todo o resto.
— Amor... — ele fala, como uma
súplica e me lembro de tudo que não
sou.
Eu não sou seu amor, porque se
fosse, não haveriam outras pessoas e
não existiriam mentiras entre nós.
— Os chocolates estão prontos,
fez os textos? — Mudo de assunto,
impedindo-o de dizer qualquer outra
coisa que não seja sobre isso.
— Vou fazer agora. Consegui
outro forno emprestado, está tarde e se
puder ir assando os cupcakes em um
forno enquanto assa os bolos no outro,
vai adiantar seu trabalho.
Assinto agradecida. Ele pode ser
um babaca, mas é um babaca bem gentil.
E lindo, pro meu desgosto.
— Certo, tive muita ajuda, acho
que termino a tempo de dormir algumas
horas.
Combinei a entrega para as oito
horas da manhã, quando Marta virá
buscar tudo.
— Eu dei comida pro
Bernardo... — ele diz. — E banho...
Por que ele tem que fazer essas
coisas? Me confundir dessa maneira?
— Hum, eu realmente não
percebi que era tão tarde, sabe? Muito
obrigada por cuidar dele.
Volto para a cozinha antes que
faça alguma besteira. Dominic é tão fofo
que quase me faz esquecer que é apenas
um homem, e que falhou comigo.

Acho que adormeci sobre a


mesa. Não me lembro de ter ido para a
cama, nem mesmo de me despedir de
Alice e Marta.
Minhas últimas lembranças são
de ter concluído o trabalho, por volta
das quatro da manhã e oferecido um café
a elas, com pães e bolos, afinal nenhuma
de nós tinha jantado.
Me sento na cama assustada,
estou com minhas roupas, mas sem os
sapatos. Olho para o celular na mesinha
ao lado e o pego, torcendo para não ter
perdido a hora.
Oito e quinze.
Marta viria buscar as coisas
quinze minutos atrás, então me levanto
correndo, torcendo muito para que ela
tenha se atrasado. Deixo o quarto em
disparada, passando direto pela sala,
onde Dominic já está vestido e Bernardo
também.
Quase escorrego no caminho até
a cozinha, mas ao passar pela porta,
estaco.
Tudo sumiu.
Me viro, finalmente me dando
conta de como os dois estão
arrumadinhos para o horário.
— Onde está tudo? — pergunto.
— Sua cliente já veio e levou as
coisas... Não se preocupe, ela transferiu
seu pagamento também e agradeceu por
tudo, parecia bastante satisfeita.
Eu o encaro, sem saber se fico
feliz por ele ter entregado tudo, ou
irritada por não ter me acordado.
— Na verdade, ela gostou tanto
que pediu um favor. Disse que gostaria
muito que você comparecesse a tal festa,
explicou que a apresentação de tudo é
tão importante quanto o preparo e que
ninguém saberia fazer isso melhor que
você.
Franzo a testa, pensativa. Isso é
muito esquisito.
— Eu sei... — Dominic
concorda, vendo minha expressão. — É
meio estranho mesmo, mas eu a achei
uma pessoa interessante, parece ter
influência, acho que pode ser bom para
o seu nome e você nem precisa demorar
muito. Segundo ela pode chegar as nove
e meia, dez horas.
— Hum, e Alice? Levou os
chocolates para o aniversário do seu
pai? — questiono, notando que eles
também sumiram.
— Levou, eu terminei os versos
e ela levou embora quando foi pra casa.
Inclusive isso me deu uma ideia, posso
levar Bernardo para o aniversário do
meu pai e você vai lá cuidar da cliente.
Eu sei que poderia dizer não, mas não
vejo porque faria isso.
Dominic termina de arrumar a
roupa de Bernardo e se afasta para o
lado, finalmente me dando a visão
completa do meu pequeno.
— Que roupa é essa? Isso... Isso
é um dolmã? — questiono, meus olhos
de repente muito mais abertos que
deveriam pela falta de sono.
Dominic sorri e finaliza tudo,
colocando uma touca sobre os cabelos
claros do Minduim.
— É sim, ele adora fantasias...
Pensei que ia gostar de uma de chef,
como a mamãe, né Minduim?
Bernardo assente, alegre e
depois faz uma reverência desajeitada.
— Bem-vinda a confrataria...
— diz e arranca de mim uma risada.
— Estou apaixonada, filho! Nem
a mamãe tem uma roupa dessas, sabia?
Você está lindo!
Dominic fica sério, olhando de
Bernardo pra mim.
— Então... Vai na tal festa? —
insiste.
— Tem certeza que não é um
problema levar o Bernardo com você?
— Claro que não — responde.
— Alice vai estar lá também, minha
madrasta o adorou e fica me
perguntando sempre que apareço. Elas
me ajudam a tomar conta desse Super
Minduim. Só que preciso de uma
carona... Vou com você até a festa, no
seu carro e depois, Alice nos busca lá.
Pode ser?
— Por que? — pergunto,
achando estranho. — O que houve com
seu carro? Não o vi a semana toda... —
comento, só agora me dando conta disso.
— Na oficina, precisei trocar
umas peças...
Assinto, me tocando de como
andamos distantes se eu nem percebi
isso.
— Vou tomar um banho e me
vestir.
Me arrumo, seco os cabelos e
calço sapatos confortáveis para ficar em
pé. Quando encaro o relógio, já são
nove e trinte e sete.
No meu carro, seguimos para a
festa de Marta. Dominic está esquisito e
insistiu muito em dirigir. Segundo ele, a
mulher não tinha deixado o endereço,
apenas explicado o local e para que não
houvessem atrasos ele iria nos conduzir.
Ele segue para o lago, o que não
é de se estranhar, porque a maioria das
festas é oferecida naquela região.
Reviro os olhos... Eu não me perderia
ali, era só dizer que ficava próximo ao
local em que fomos no domingo anterior.
Inclusive, na mesma rua pelo
visto.
Dominic estaciona o carro e
aponta mais a frente, para o prédio que
visitamos antes. Está aberto!
— Tá brincando? A festa é lá?
— pergunto, surpresa.
— E tem mais — ele diz. —
Vem comigo e agora, por favor,
perguntas só do lado de dentro...
Dominic me oferece uma mão e
segura a de Bernardo pela outra e
seguimos até a porta assim. Eu permito,
porque estou bastante confusa com tudo
isso.
Quando chegamos diante do
local, vejo que está tudo muito diferente
e ao mesmo tempo, familiar demais.
Uma placa enorme, em estilo
retrô chama a atenção imediatamente.
Que Seja Doce.
É o nome do lugar. Algumas
mesas lindas estão do lado de fora e os
convidados de Marta conversam
animados comendo alguns dos cupcakes
que fiz.
Na varanda, em cima, também há
pessoas e ouço uma música baixa,
agradável intermediando as conversas.
Ainda sem compreender nada,
passo com Dominic e Bernardo pela
porta e sinto que vou morrer aqui
mesmo.
Tudo aquilo que sonhei e reprimi
durante anos, está diante dos meus
olhos. É uma confeitaria, a dos meus
sonhos, a que idealizei e me tirou noites
de sono tantas vezes.
As mesas brancas para quatro
pessoas, todas lotadas. Um balcão cheio
das iguarias que preparei, ao fundo. Os
lustres lindos dando exatamente o ar
vintage que sempre quis.
Me afasto de Dominic e o vejo
colocar as duas mãos no bolso, me
observando com um sorrisinho no rosto.
Paro no meio do salão, enquanto meus
olhos veem e se encantam com cada
pedaço do lugar.
Pelas janelas, consigo visualizar
bancos de madeira e casais
compartilhando pedaços de torta,
bombons reflexivos...
Isso é exatamente o que eu
planejei.
Talvez eu esteja lenta em meu
raciocínio, mas é tudo surreal demais.
Me viro para encarar Dominic e
descobrir o que está acontecendo, mas
me deparo com Bernardo, que se inclina
e repete o movimento que fez ainda no
apartamento.
— Bem-vinda a confrataria,
mamãe.
Dominic se abaixa e diz algo no
ouvido dele, me fitando com tanto
sentimento, que meu coração dispara
enlouquecido.
— Sua. Sua confrataria,
mamãe...
Primeiro, sinto um pingo de água
caindo em meu colo, sobre o decote da
blusa, apenas depois percebo que estou
chorando.
Por que estou chorando? Isso
não pode estar acontecendo.
Me viro outra vez, olhando tudo
novamente para absorver as coisas antes
de acordar e encontro Alice... E Mari?
Eu sabia que era um sonho.
As duas estão usando aventais e
servindo mesas e acenam pra mim,
animadas.
Olho para o lado direito e vejo o
conjunto de sofás e uma estante de
livros, um canto para leitura como
Dominic e eu mentalizamos e em um dos
sofás... está vovó Rute. Fazendo crochê.
Nada faz sentido, mas por mais
que pareça sonho, o cheiro, as cores —
rosa e azul bebê — as pessoas, a
conversa ao meu redor... Tudo é real
demais.
Me volto outra vez para Dominic
e o vejo segurando um embrulho de
presente nas mãos.
— Não vai perguntar nada? —
ele me questiona.
— Onde está Marta? — É o que
sai da minha boca.
Ele ri, percebo que seus olhos
estão marejados, parece emocionado.
— Dominic, o que é tudo isso?
— Finalmente pergunto.
O vejo se aproximar e segurar
minha mão. Ele toca meu rosto, seca
algumas lágrimas e beija minha testa
com carinho.
— Isso — diz, mostrando o
pacote em suas mãos. — É seu primeiro
dolmã. E essa — fala, abrindo os braços
e mostrando o lugar. — É a Que Seja
Doce, a melhor confeitaria de Lagos, e
única também. E é toda sua.
Robin me encarou por uns dois
minutos sem dizer nada, mas o modo
como as lágrimas desciam por seu rosto
dizia tudo.
A conduzi para a cozinha,
enquanto ela observava incrédula tudo
ao seu redor. Bernardo acabou se
juntando a vovó Rute e eu pude
conversar com ela por alguns minutos a
sós.
Dali a levei para a saleta ao
lado, onde montei um pequeno
escritório. Estava preparado para o
interrogatório, então quando ela me
questionou, expliquei que havia
recebido um dinheiro do meu pai e que
me decidi a investir no sonho dela.
Disse com todas as letras que
era um presente, que não esperava que
ela me retribuísse ou devolvesse nada,
mas claro, Robin começou a menear a
cabeça feito louca.
Então coloquei sobre a mesa um
contrato, no qual estavam especificados
apenas um terço dos meus gastos e
ofereci a ela a opção de me pagar um
dia, do modo como preferisse e sem
juros, como um empréstimo.
Robin não parava de chorar para
dizer o que realmente estava pensando
daquilo tudo, estava de pé diante de mim
porque se recusou a sentar até entender,
então a puxei para meu colo e a abracei
forte, morrendo de saudade.
Ela permaneceu estática.
— Amor, vou explicar o que
quiser saber. O que importa é que é sua,
seja um presente, um empréstimo ou um
investimento, o que for. Esse é o seu
momento e quero que aproveite sem
pensar em burocracia. Lá fora tem muita
gente ansiosa pra te conhecer, sua vó
está feliz por ter vindo, chorou
emocionada quando chegou e até o
Minduim estava tão empolgado que
falou a frase combinada antes da hora.
Vai colocar sua roupa e depois que
fecharmos, eu prometo que vou te
explicar cada detalhe e fazer as coisas
como você quiser.
Ela se levantou dos meus braços,
pegou o pacote que oferecia a ela e
caminhou na direção que indiquei como
sendo o banheiro.
Antes de entrar, parou e me
olhou. Sorriu.
— Muito obrigada por... tudo
isso.
Esperei do lado de fora enquanto
Robin se vestia. Quando ela saiu, seu
sorriso era tão radiante que poderia me
cegar, se não fosse a visão mais linda do
mundo todo.
O dolmã estava perfeito,
acinturado e feminino, mas a expressão
dela era a de um homem que acaba de
ser coroado Rei e veste seu primeiro
manto real, sendo a toque blanche a
coroa.
— Você está perfeita.
Abri a porta para que ela saísse
e a segui. Dessa vez, Robin se demorou
na cozinha, conhecendo tudo e
analisando cada pequena peça.
Parou com a mão sobre um dos
fornos e se virou para mim, sorrindo, o
reconhecendo da noite anterior.
Eu apenas dei de ombros.
Enquanto ela parecia encantada com
tudo, eu tinha olhos só pra ela.
Saímos pelos fundos e demos a
volta, até a lateral do prédio, onde
ficava a parte ao ar livre da confeitaria.
Eu a vi cobrir a boa com a mão,
enquanto fitava admirada os jardins. A
grama e as flores, os bancos, os postes e
a vista do lago.
Robin passou por mim, correndo
feito uma criança que precisa ver tudo
ao mesmo tempo. Voltou para dentro do
salão e eu fiz o mesmo.
Ela foi para trás do balcão e se
abaixou, olhando as vitrines, seus doces,
os bolos e as bebidas que eu trouxe.
Outra vez seus olhos se
estreitaram na minha direção,
compreendendo minhas compras
estranhas no mercado.
Então ela sorriu ao fitar a mulher
no caixa e Marta a encarou divertida.
— Marta — falou. A voz ainda
embargada pelo choro recente.
— Eu mesma, sua melhor
cliente...
Robin riu alto, cobriu a boca e
olhou para as mesas cheias, as pessoas
que conversavam saboreando tudo que
ela havia feito.
Um casal de namorados se
aproximou do caixa nesse instante e nós
ouvimos o rapaz dizer:
— Oi, pode fechar a conta pra
nós? Foram dois bombons reflexivos de
Paixão, uma fatia de torta e uma jarra de
suco de laranja.
Marta assentiu e começou a
somar os itens na calculadora. Ergueu o
rosto quando a moça falou com ela:
— A propósito, amei os
bombons, a ideia é muito inovadora.
Soube que vocês têm a melhor chef da
cidade...
E então ela notou Robin e sua
roupa nada discreta, assim como sua
expressão abobalhada.
— Ah, é você! Parabéns pela
inauguração, já é um sucesso. Nunca
comi coisas tão gostosas nessa cidade.
Se quiser, coloquei minhas fotos no
Instagram com a hashtag #Quesejadoce.
Robin sorriu e agradeceu, depois
agradeceu de novo e começou a querer
chorar, mas se afastou antes que a moça
notasse.
Saindo de trás do balcão, andou
por entre as mesas, cumprimentando as
pessoas, foi até a avó e eu pude ver as
duas se abraçando. Mari e Alice se
revezaram e conseguiram escapar para
ir até ela também.
— E eu? Quando vou poder
conhecer a chef? — Ouço a voz do meu
pai atrás de mim e me viro para o
encontrar com um sorriso no rosto. —
Dominic, você fez um trabalho fantástico
aqui. Está incrível.
— Obrigado, pai. Agora vou
precisar convence-la a aceitar tudo isso.
Ele a fita de longe, de costas
ainda falando com Alice.
— Disse que pode pagar depois?
Eu assinto.
— Então ofereça uma sociedade,
uma porcentagem mínima nos lucros até
que seus gastos sejam pagos.
— Exatamente o que pensei...
— Ali o Super Minduim — ele
comenta, ao ver Bernardo passar
correndo pelo salão. — Vamos lá,
preciso ser apresentado a moça.
Caminho com ele até os sofás,
onde ela ouve sorridente a conversa de
dona Rute.
— Robin... — a chamo e ela se
vira para nós. — Esse é meu pai,
Henrique. Pai, essa é a nossa chef,
Robin. Minha namorada.
Ela me direciona um olhar de
esguelha, mas não nega. Abre um sorriso
e estende a mão, educada:
— Prazer, seu Henrique. Feliz
aniversário, aliás.
A expressão dela fica engraçada
de repente e percebo que é porque meu
pai não a cumprimentou. Dou um
cutucão de leve na costela dele, que
acaba voltando de Marte.
— Ah, oi... Prazer, Robin. Me
desculpe, é que você disse, aniversário?
Hoje não é meu aniversário.
Ela fica um pouco corada, eu
acabo rindo e explicando antes que
Robin o faça.
— Precisávamos de uma
desculpa para fazer tantos doces, então
Alice disse que era sua festa.
Ele também sorri e começamos a
conversar banalidades por alguns
minutos, meu pai e Robin parecem se
dar bem e um pouco depois, ele se
despede, não sem antes comer um
bombom e sair em disparada porta
afora. Eu, hein. Parece que todos
comeram Alegria em excesso.
O resto da tarde passa agitado.
Robin recebe cumprimentos de todos os
lados e agradece parecendo
extremamente feliz.
Mais tarde, um representante da
revista da cidade aparece e faz algumas
fotos, provavelmente por intermédio do
seu Henrique. A deixo desfilando pelo
lugar, animada enquanto conhece tudo e
me sento com vovó Rute e Bernardo,
satisfeito.
— E então, dona Rute? O que
achou?
A senhorinha tem um bombom
Angústia nas mãos, o que me deixa um
pouco confuso.
— Por que a senhora está
angustiada? — questiono, sem
compreender. Ela parecia tão feliz.
Dona Rute tem a expressão meio
culpada, como se eu a tivesse
encontrado fazendo alguma travessura.
— Não estou. Eu quero comer
todos porque são deliciosos.
Essa velhinha...
Já passa das cinco da tarde
quando o lugar começa a se esvaziar,
nenhum de nós almoçou e como
agradecimento, Robin se meteu na
cozinha para preparar uma refeição
decente para todos, mas a verdade é que
estava louca para estrear tudo.
Comemos juntos, Alice, vovó
Rute, Mari e o Lucas, que acabou
aparecendo depois, Marta, Minduim,
Robin e eu. É uma refeição divertida,
em que todos disputam para saber quem
enganou Robin melhor.
Chegamos à conclusão de que fui
eu, claro. Apesar de muito feliz, ela não
parece ainda estar de volta ao normal e
isso começa a me preocupar. Afinal de
contas, se a raiva dela tem a ver com
meu sumiço e minha mentirinha, já era
de se esperar que tivesse entendido e
perdoado.
Quando a refeição termina,
Alice, Mari e Marta se juntam para
limpar o salão, deixando tudo perfeito
para o segundo dia da inauguração. Vovó
Rute e Minduim acabam indo para os
jardins e Lucas ajuda a namorada em
uma coisa ou outra enquanto folheia os
livros da estante.
Robin recolhe a louça para lavar
e eu a acompanho, oferecendo ajuda.
Vejo suas mãos ensaboando os
pratos e talheres, enquanto ela cantarola
uma canção daquela banda que gosta,
parece feliz, muito feliz, mas ainda me
evita.
Paro ao lado da pia, com um
pano de prato nas mãos enquanto seco as
louças que ela me entrega, sem tirar os
olhos dela.
Robin me evita com tanto
sucesso que eu poderia pensar que nem
se lembra de que estou aqui, se não
fosse pelo rubor no rosto dela.
Caramba, eu fiz o que julgava
impensável por essa mulher e agora, é
isso. Ela me rejeita na maior cara de
pau. Isso não pode ficar assim.
Aproveito que estamos sozinhos
e jogo, com força, o pano sobre as
panelas na mesa. Uma das tampas cai no
chão com um barulho alto, atraindo a
atenção dela que me encara,
provavelmente percebendo que estou
irritado.
— Você vai continuar me
tratando desse jeito? Eu fiquei quieto a
semana toda, mantive distância porque
sabia que tinha seus motivos pra estar
com raiva, mas agora? Você é
inteligente, deve ter percebido que
quando disse que estava no consultório,
na verdade estava aqui.
Ela mantém o olhar fixo no meu,
os olhos verdes me sondando,
procurando eu sei lá o que.
— O que foi? Não vai dizer
nada? Caralho, Robin. Eu queria te
deixar feliz, mas não pensei que fosse
levar essa briga boba pra frente —
sussurro, com raiva da atitude infantil.
Foi uma mentira idiota! Ainda assim
tomo o cuidado para não sermos
ouvidos.
— Já acabei por aqui — ela diz,
simplesmente. — Nós conversamos em
casa, Dominic. Depois...
Mas que mulher irritante!
Ela se vira, fecha a torneira com
ar de superioridade e passa por mim, se
afastando.
Ah, mas não vai mesmo.
Seguro seu braço, a mantendo no
lugar. Seus olhos fitam o lugar em que
minha mão está e depois, me encara.
— Pode me soltar? As coisas
não são assim, a surpresa foi
maravilhosa e nós ainda vamos falar a
respeito, mas o que você fez... Uma boa
ação não se sobrepõe às ruins.
O que foi que eu fiz?
— Mas de que droga você está
falando? Eu não fiz nada.
Robin me olha com aquela cara
que diz: “Sim, fez e sabe muito bem o
que.” Ela puxa o braço e solto meus
dedos, mas então, mudo de ideia.
Largo-a apenas para agarrar sua
cintura e trazer seu corpo para perto, em
um impulso.
O peito dela se choca contra o
meu e vejo suas pupilas crescendo
enquanto encaram minha boca. Me
demoro alguns segundo analisando seu
rosto, a mão espalmada na curva do
quadril dela.
Sinto meu pau ganhar vida.
Gostosa, nessa roupa, então...
Inverto nossas posições e ela
não recua. Prenso seu corpo contra a pia
e roubo um beijo com vontade.
Gemo ao sentir a entrega dela,
sua língua se encontrando com a minha e
perco o controle. Meu beijo se torna
duro, sinto a aspereza da minha barba
roçando seu rosto delicado e a aperto
mais contra mim quando seus dedos
seguram meus cabelos com força.
Pressiono minha ereção contra
ela e a escuto arfar. Apesar do que
disse, Robin sente tanta falta de mim
quanto sinto dela, porque suas mãos não
perdem tempo e me tocam em todos os
lugares. Aperto sua bunda, quase a
penetrando aqui mesmo, por sobre a
roupa se isso fosse possível.
Se eu a soltar e trancar a porta,
ela foge.
A maldição de mulher decide
que é a hora de morder meu lábio, como
se estivesse resistindo, e me afasto um
milímetro para a encarar e ver se
realmente não quer isso, mas ela me
olha com malícia, provocando e eu a
agarro pela nuca, embrenhando a mão
em seus cabelos, os puxando para trás e
expondo seu pescoço.
Minha língua o encontra e eu a
passeio pela extensão, como se fosse um
delicioso sorvete. Não sei se é a
saudade ou a briga, mas nunca foi tão
intenso quanto esse momento entre nós.
Mordo sua orelha e volto a
tomar sua boca, enquanto abro com
rapidez os botões do seu casaco.
— Manhê! Beijo na boca... —
Fecho os olhos ao ouvir a voz de
Bernardo atrás de mim. — Ecaaa. — ele
completa.
Robin me empurra um pouco e
dessa vez eu me afasto para que ela
passe. Encosto as mãos na pia, deixando
a respiração volta ao normal e minha
dignidade também.
— Oi, Minduim... Vamos lá ver
se a vovó Rutinha está pronta pra ir
embora?
Os dois saem na direção do
salão e eu abro um sorriso ao vê-los se
afastar. São meus, minha futura família.

Deixo Bernardo e vovó Rute na


sala, assistindo a um filme e desço até o
consultório, onde Dominic se trancou
desde que chegamos em casa.
Não faço ideia do porquê, mas é
até melhor. Poderemos conversar direito
e resolver as coisas longe do Minduim.
O que deu em mim? Como pude
facilitar as coisas pra ele sem antes
conversar sobre o telefone daquela
safada que estava em seu bolso?
O homem faz um ato gentil e eu...
Bom, um ato não.
No fundo eu sei que minha
insegurança, os ciúmes e o fato de não
estar em um relacionamento há tanto
tempo, são os responsáveis pelo modo
como o julguei precipitadamente e não o
deixei se explicar, nem mesmo o
questionei.
Tenho que admitir que ninguém
nunca fez tanto por mim, o gesto dele, o
carinho em cada detalhe, o cuidado com
aquilo que eu disse, isso não é coisa de
quem engana, um homem capaz de fazer
tudo aquilo por mim, não pode ter saído
com outra pessoa.
Ele disse que queria ser pai do
meu filho!
Droga.
Eu tenho sido infantil e imatura
e, agora, vou precisar consertar as
coisas e não sei como fazer isso. Não
sei nem mesmo por onde começar.
Bato na porta e ouço sua voz me
dizendo para entrar.
Quando a abro, o vejo sentado
na poltrona atrás da mesa. Está usando
óculos e com o celular no ouvido. Eu
nunca havia o visto de óculos e fico
impressionada.
O acessório que antes usei para
modificar minha aparência, confere a ele
uma beleza intelectual que o deixa ainda
mais sexy.
— Então fala, pai — ele diz. —
Pessoalmente? Quanto mistério. Agora
eu não posso, amanhã conversamos,
então.
Eu fito sua boca bem desenhada,
esperando que termine a ligação, ainda
parada na porta.
— A Marta disse sim, mas
depois não falou o que era. Tudo bem,
até amanhã.
Ele desliga e me encara,
analisando meu comportamento.
A noite chegou e está esfriando,
Dominic agora veste uma blusa de linha
que se ajusta perfeitamente em seus
ombros largos. Que saudade desse
homem.
— Entra... — ele repete.
Eu fecho a porta atrás de mim e
paro de pé diante da mesa, não sei muito
bem como agir agora que cheguei à
conclusão de que estou errada.
— Eu estava te esperando —
Dominic diz. Retira os óculos e os
coloca sobre a mesa. — Imaginei que
fosse acabar descendo para conversar.
Temos muito assunto pelo jeito.
Assinto.
— Não vai se sentar?
Eu pego a deixa e me sento.
— Primeiro — falo, encontrando
a voz finalmente. — Eu não sei como
começar a agradecer por tudo que fez.
Foi como entrar literalmente dentro de
um sonho, eu não sabia para que lado
olhar e todos os detalhes ficaram
perfeitos. Você foi perfeito, Dominic.
O sorriso dele... eu
simplesmente não consigo encontrar uma
expressão em seu rosto que não me faça
querer agarrá-lo.
— Mas... — ele diz. — Hoje
mais cedo me agradeceu e chorou, se
emocionou. Mas percebi que estava com
raiva de mim e não consegui entender
ainda seus motivos. Sei que ficou brava
porque eu disse que estava aqui e que
ficou olhando as roupas sujas que eu
estava vestindo outro dia, mas imaginei
que tivesse entendido que eu estava na
confeitaria.
— Você estava, não é? Todos os
dias?
O franzir suave em sua testa
demonstra confusão.
— É que... — Robin, sua idiota!
Agora vai precisar admitir. — Você
mentiu e logo depois encontrei um
número de celular no bolso da sua calça.
Seus olhos se estreitam e não
consigo entender o que está se passando
na cabeça dele.
— Andou mexendo nos meus
bolsos? — pergunta.
— Não, eu fui colocar suas
calças pra lavar. Eu não estava
bisbilhotando, mas encontrei o papel.
Cíntia. O nome da professora do
Bernardo que queria seu telefone.
Dominic assente e cruza as mãos
sob o queixo, apoiando os cotovelos na
mesa. Seus olhos parecem enxergar
dentro de mim, mas a seriedade dele me
deixa em suspenso, sem saber o que vem
depois.
— Robin, você acha que eu
sairia com ela? Que trairia você?
Honestamente, é isso que pensa de mim?
Porque não sei o que mais posso fazer
pra te mostrar que estou levando isso a
sério.
Meus olhos encontram o tapete,
fito minhas unhas que precisam urgente
de uma manicure e decido ser honesta
com ele e comigo.
— Nós não definimos o que
somos. É muito confuso porque não
somos namorados, mas moramos juntos.
Não temos um compromisso, mas você
parece envolvido com Bernardo, minha
avó e toda minha vida. Sua presença foi
tomando conta de tudo e agora... Eu não
sei mais como agir, o que esperar e até
que ponto posso me recuperar quando
você se cansar de nós. Eu sei que não
deu indícios de que queria se afastar,
mas eu já sofri demais, Dominic. Meias
palavras, gestos não bastam, preciso de
certezas.
Só o encaro quando concluo e o
vejo assentindo, o maxilar travado. Ele
parece irritado.
— Você é minha, Robin, e eu sou
seu. Namorados, noivos, casados, o que
você quiser. Eu não saí com essa mulher,
ela enfiou o telefone na minha mão na
frente de vários pais, eu fiquei sem jeito
e coloquei rápido no bolso. Só isso.
Ele se levanta, dá a volta na
mesa e se abaixa diante de mim,
segurando minhas mãos.
— Eu entendo isso, sobre as
meias palavras e se não fui mais claro,
foi por receio de te assustar, mas eu
estou nessa de corpo, alma e mente.
Cada pedaço meu está com você e
Bernardo. Não sei quando, como e nem
me interessa. Eu quero isso, quero os
dois na minha vida, quero ser parte
dessa família e se você permitir, quero
te amar, docinho.
Estranhamente, agora não sinto
vontade de chorar. É tudo que eu mais
queria ouvir, uma alegria imensa toma
conta de mim e sei que nesse momento,
eu não poderia ser mais feliz.
— Mas tem uma coisa...
Sempre tem um porém.
— Você duvidou de mim, me
julgou mal e me expulsou da sua cama a
semana toda e agora, acho que está na
hora de ser punida. Não concorda?
O olhar dele é malicioso e suas
mãos soltam as minhas, se posicionando
sob meu vestido, encontrando a pele da
minha coxa enquanto vejo suas pupilas
se dilatando.
— Como... Como sua submissa,
Dom? — Minhas palavras não saem em
um tom sensual, como o dele, é mais
uma brincadeirinha boba entre nós,
usando o apelido. Mas funciona
perfeitamente nesse momento, porque o
que mais quero é ser submetida por seu
toque, estamos sedentos um pelo outro
após o distanciamento.
— Exatamente, você foi muito
maldosa comigo. Anda, se deita no divã.
No divã? Confesso que não
pensei nisso antes, mas agora que ele
falou, é quase tão excitante quanto a
cozinha.
— O que vai fazer? —
questiono, mas obedeço.
— Primeiro quero que tire a
roupa, fique só com sua lingerie. Você
me obrigou a ficar longe, agora vou
entrar em você tão fundo, que não vai
conseguir me tirar mais.
Estou excitada apenas com suas
palavras. Nossa primeira vez foi linda,
intensa e romântica, e aos poucos, fui me
libertando, me conhecendo outra vez e
entendendo do que gosto ou não no sexo.
E isso, essa intensidade, esse Dominic
mandão, eu gosto com certeza. Também
adoro como ele é quando age
normalmente, sem entrar em um papel
como agora. A verdade é que gosto dele
de todas as formas.
Ele abre o armário e retira de lá
um balde, com um... Champagne?
— O que? — questiona ao ver
minha expressão. — Eu disse que estava
te esperando, era pra comemorar a
confeitaria, mas agora, vou comemorar
você.
Me lembro de ter dito
exatamente isso no outro dia e faço o
que ele me pediu, me lembrando no
processo de que estou sem sutiã.
Dominic estoura a bebida e
quando finalmente me olha outra vez,
sua expressão se acende. Os olhos fitam
meus seios nus e descem por meu corpo,
se demorando na calcinha pequena.
Ele encosta na beirada da mesa,
cruzando as pernas na altura dos
tornozelos, como se contemplasse uma
pintura. Eu fico aqui, um pouco
constrangida pela fome em seus olhos,
mas excitada como nunca antes.
— A calcinha, docinho... — ele
pede, a voz rouca. — Tira devagar.
Ergo o quadril para passar a
peça e retiro-a lentamente, ficando
completamente exposta sob seu olhar
faminto.
Dominic se levanta outra vez e
agora serve duas taças, me entregando
uma.
— Se encoste ali... — Ele
aponta para a parte de trás do móvel e
eu recosto-me. — Agora, abra um pouco
as pernas.
Sinto que estou completamente
molhada, e ele ainda nem me tocou. Nem
mesmo me beijou, mas esse jogo está me
levando à beira da insanidade.
Afasto as pernas, corando um
pouco diante dele e o vejo tomar com
sede um gole da bebida. Repito o gesto
porque está mesmo muito quente aqui e
depois coloco minha taça no chão.
Dominic retira a blusa de frio,
afrouxa um pouco a gravata e abre os
primeiros botões da camisa.
Ele se ajoelha no chão, diante do
meu sexo e corre o dedo lentamente por
toda a extensão, me arrancando um
gemido longo.
— Nem comecei, gostosa. Já
está prontinha... Tá vendo o que
acontece com preliminares tão longas?
— Muito longas — respondo. —
Já pode esquecer isso e começar.
Ele faz um sinal de silêncio pra
mim e sem me avisar, vira o conteúdo da
taça sobre meu corpo.
Eu arfo e solto um gritinho. O
líquido gelado contrasta com o calor que
emana da minha intimidade e o choque
térmico é alucinante.
Minha respiração acelera, meu
coração dispara enquanto me acostumo
com as novas sensações. As pequenas
bolhas fazendo cócegas e então, sem
aviso sou invadida pela língua dele.
— Ahhh... — Não consigo
conter o som, ao sentir seus lábios sobre
mim, devorando-me com ânsia e
vontade.
Sua língua traça círculos sobre
minha entrada e depois me devora até a
frente, chegando ao ponto que imploro
por ele. Não me lembro de já ter tido
essa sensação, não quero pensar em
nada que não seja esse momento, esse
homem, mas não acho que me esqueceria
de algo tão indescritível, caso já
houvesse passado por algo assim.
O pudor já se foi tem tempo,
agora ergo o quadril na direção da boca
dele, implorando por mais e Dominic
me suga, beija e devora,
correspondendo e superando minhas
expectativas que crescem e crescem.
Então não é mais apenas sua
boca. Seu dedo a acompanha, me
estimulando enquanto seus lábios me
consomem como se eu fosse um fruto
adocicado.
Sinto que estou a ponto de
liberar toda a excitação, meu corpo se
eleva aos poucos, flutuando rumo ao
ápice. Dominic busca a garrafa que está
próxima aos seus pés e despeja mais um
pouco da bebida em sua boca, deixando
pingar sobre mim depois e por fim,
sugando-a toda, enquanto eu chego ao
clímax.
Os tremores que me tomam, as
contrações e meus gemidos, são a prova
do melhor orgasmo que ele já me deu.
Sinto meu corpo um pouco pesado,
como se houvesse se exaurido, mas
Dominic já está de pé diante de mim,
abrindo a calça e exibindo sua ereção.
Agora o analiso com minucia.
Seu membro longo e grosso aponta
diretamente pra mim enquanto ele
movimenta a mão, da base a ponta, se
preparando para me preencher.
Ainda estou deitada,
recuperando-se, quando ele me segura
pela cintura, sentando-me no divã, mais
ereta. Dominic aproxima o... bom, por
falta de palavra melhor, ele aproxima o
pau da minha boca, mas antes segura
meu rosto e me faz o encarar.
— Apenas se quiser — ele diz.
E esse é o homem que não é um
dominador nato e por isso mesmo, meu
coração está entregue aos seus pés. Ele
me vira do avesso com seus toques, com
suas palavras, mas me ganha com o
modo como se importa comigo.
Abro a boca e experimento a
sensação de sua pele contra minha
língua, primeiro com toques suaves.
Ouço a respiração dele ofegante e então
desço os lábios sobre ele, o tomando em
minha boca tanto quanto consigo.
Apesar de não saber exatamente
como estou me saindo, o modo como ele
me olha, os incentivos de suas palavras
e a expressão de adoração, me fazem
crer que estou no caminho certo.
O beijo e conheço durante alguns
minutos e quando penso que vou fazer
por ele o mesmo que fez por mim,
Dominic se afasta.
— De joelhos, Robin — ele
ordena, com a expressão séria.
Muito gostoso.
Me ajoelho, preparada para
voltar ao que fazíamos, mas ele meneia
a cabeça, me reprovando.
— De costas, docinho.
Isso só fica mais interessante.
Me viro de costas, apoiando as mãos na
beirada do divã e viro a cabeça por
sobre o ombro para conseguir vê-lo.
Dominic move meu rosto na direção da
parede outra vez.
Ouço o barulho de líquido sendo
despejado e percebo que ele está outra
vez enchendo a taça. Ainda assim me
surpreendo quando sinto o gelado
escorrendo por minhas costas e arqueio
o corpo.
Então seus dedos estão sobre
mim, abrindo-me, atiçando e logo
depois sinto sua rigidez em minha
entrada. Ele me acaricia ali,
provocando, para depois me penetrar de
uma só vez.
A estocada vai fundo e sinto um
leve ardor dentro de mim, mas que se
perde em meio ao prazer. Ele não espera
que me adapte ao seu corpo, investe
seguidamente, forte e rápido.
Libero alguns gemidos e ele
próprio me brinda com alguns sons que
me enlouquecem. Dominic passa o braço
por meu pescoço, obrigando-me a colar
minhas costas ao seu peito, enquanto me
invade cada vez mais fundo. Vira meu
rosto em direção ao seu e toma minha
boca em um beijo, o líquido frio
encontra meus lábios e sinto o gosto do
champagne, além do cheiro que nos
envolve.
Não duramos muito tempo dessa
vez.
Nos libertamos juntos um pouco
depois e dessa vez eu espero que seja
para sempre.
Depois do sexo incrível,
Dominic e eu conversamos muito. Ele
me deu três opções quanto a confeitaria:
aceitar como um presente, visualizar
como um empréstimo, ou encarar aquilo
sendo algo nosso, vendo-o como um
sócio por enquanto e quem sabe, um
marido no futuro. Não foi difícil
escolher e ao mesmo tempo, dizer sim
para aquele pedido disfarçado e muito
precipitado.
O que me importa agora, é que já
perdi tempo demais com tristeza, quero
aproveitar todos os segundos da
felicidade gritante que estou vivendo.
Mas quando o questionei sobre a
maneira com que conseguiu o dinheiro,
Dominic repetiu o que já havia dito, seu
pai havia entregado a ele, que decidiu
investir na confeitaria. Não insisti,
apesar de curiosa para entender o
porquê desse presente, porque eram
questões familiares e ele me diria
quando estivesse pronto.
Ele me fez assinar um contrato,
no qual eu me declarava proprietária e o
admitia como meu sócio minoritário,
com dez por cento dos lucros, até que o
valor que ele investiu fosse pago. Tentei
fugir, afinal aquilo era insano. Eu não
investi nada e de repente era tudo meu,
mas Dominic foi irredutível e prometeu
que aceitaria sua parte nos lucros,
recebendo seu investimento em alguns
anos.
Passamos a noite juntos, em seu
quarto, depois de vovó Rute assumir o
dela por uma noite apenas e Bernardo
também dormir.
No dia seguinte, preparei o café
da manhã, me aproveitando do clima se
voltando para chuva e preparei os
bolinhos que adoro. Sim, eu sou assim
mesmo. O tempo não pode parecer mais
fechado que já corro a preparar bolinhos
de chuva, cobertos com açúcar e canela.
Vovó Rute nos contou animada,
sobre suas últimas peripécias no asilo e
Bernardo fez questão de usar a roupa de
chef outra vez.
Quando saímos de casa, eu
estava muito contente. Se eu soubesse o
que me aguardava, talvez tivesse
enrolado na cama um pouco mais.

A confeitaria está cheia outra


vez. Não sei o que Dominic fez como
estratégia de divulgação, mas com
certeza deu certo e devemos repetir.
Nossos bombons reflexivos
acabaram logo pela manhã e tive que
preparar outros. Eles estão sendo a
sensação do lugar, como idealizamos, e
mesmo que a ideia seja um pouco
singular, ou talvez por isso mesmo, as
pessoas estão amando.
Minha avó voltou para a casa de
repouso, a deixamos lá no caminho e por
isso Bernardo está aqui, correndo e
brincando e é ótimo saber que não tenho
um patrão mal-humorado que vai me
repreender por ter o trazido para cá.
Dominic também vestiu um
avental. Ele literalmente está colocando
a mão na massa. Bom, não de modo tão
literal assim porque na verdade está
atendendo no caixa, no lugar de Marta
que não pôde vir.
Uma paciente dele, que me
apresentou como Rosana, apareceu
também após o horário do almoço. Os
dois conversaram por alguns minutos e
quando ela foi embora, levando consigo
um bombom Alegria, Dominic também
parecia contente.
Quando perguntei sobre isso, ele
apenas me disse que mais uma mulher
tinha florescido. Senti um pouco de
ciúmes, mas sei que é o trabalho dele.
Dominic tem uma alma linda e ajudar, e
ficar feliz por isso, faz parte de quem
ele é.
Alice, Mari e Lucas continuam
aqui, dando apoio moral e físico
também, porque nenhum deles parece já
ter trabalhado tanto na vida.
— Amor, tem o reflexivo de
Paixão? — Dominic questiona na porta
da cozinha. — Acabaram aqui.
Eu aquiesço e entrego a ele mais
uma travessa cheia de bombons.
— Tem de Angústia também? —
Alice pergunta e todos nós fazemos uma
expressão de tristeza.
Em dois dias, descobrimos que
não é bom quando alguém pede um do
trio de sentimentos ruins, nos sentimos
mal, junto. Mas saber que podemos
ajudar minimamente é recompensador.
O dia segue agitado e muitas
pessoas vem conhecer nosso espaço.
Ainda estou vivendo como em um sonho,
mas começo a planejar as coisas,
tentando me adaptar à realidade.
Alice acaba me perguntando se
pode continuar me ajudando por um
tempo, como um emprego temporário e
eu concordo. Primeiro porque preciso
de ajuda e segundo, porque mesmo que
não faça sentido, já que a família dela
parece ter dinheiro, vejo que está
mesmo querendo, precisando do
emprego.
Quando estamos quase fechando,
Mari e Lucas se despedem. Precisam
voltar para Cordilhéus porque no dia
seguinte ambos trabalham.
Alguns poucos clientes ainda
estão no lugar e eu resolvo começar a
arrumar as coisas na cozinha, porque
logo iremos embora. Perco algum tempo
me apaixonando ainda mais por esse
lugar, cada forma, cada colher, todos os
utensílios são perfeitos.
As cores azul claro e rosa
predominam aqui, assim como nas
embalagens lá fora. Tudo lindo e em
pensar que ele teve todo aquele trabalho
de inventar a história da lei da atração
para me arrancar informações...
Lavo a louça, seco e guardo, sem
ver o tempo passar. Recolho algumas
sobras, retiro o lixo e limpo o chão bem
rapidinho. Me demoro algum tempo
nesse processo e quando termino tudo,
ouço a voz de Dominic, mas não está
falando comigo. Estranho, porque ouvi
os últimos clientes fechando a conta um
pouco antes.
O outro homem parece ser seu
pai e os dois estão bastante exaltados.
Saio na porta, retirando o
avental para descobrir porque tanto
barulho e me aproximo de onde estão
discutindo, sem perceber o que está
acontecendo.
— Oi — cumprimento seu
Henrique e vejo o olhar dele recair
sobre mim.
Ele não responde. Ninguém fala
nada, apenas me olham como se não
soubessem como reagir.
Dominic me encara com a
expressão meio apavorada e até Alice
se aproxima de nós com os olhos tristes.
Eu olho ao redor, tentando
entender o que está acontecendo, a loja
está vazia e minha mente já se volta para
meu filho. Onde está Bernardo?
Ouço sua voz vinda de fora, do
jardim ao lado e meu peito infla, de
alívio.
Como todos continuam a me
olhar, vou eu mesma atrás dele. Ouço
Dominic me chamando e seus passos
atrás de mim, mas não paro. Encontro
Minduim sentado em um dos bancos com
uma mulher. Ela está agachada de costas
pra mim, o abraçando e Bernardo me
olha por sobre o ombro dela,
aparentando confusão.
— Oi, moça. Está tudo bem? —
falo, me aproximando devagar.
Vai que é uma doida querendo
roubar meu filho.
Ela se levanta, ainda de costas e
antes que se vire, eu sei quem é. Eu a
reconheceria em qualquer lugar, de
todos os ângulos.
Sinto o sangue fugir do meu
rosto, minhas mãos tremem e ouço um
zunido em meu ouvido, como se de
repente tudo ficasse distante.
Quando minha mãe se vira e me
encara, seus olhos estão vermelhos e o
rosto molhado. É a primeira vez que a
vejo em mais de cinco anos e
simplesmente não sei o que dizer. Não
planejei esse encontro.
Meu peito está apertado, tomado
de angústia e começo a reviver um a um
os momentos que vivi logo após sua
partida.
O teto do banheiro parecendo
me oprimir, enquanto deitada no chão,
sentia o estômago em convulsões,
quando não havia mais o que por pra
fora. O enjoo da gravidez, associado
ao choque de saber que acabara de
perder as pessoas que amava.
— Filha... — ela fala,
suplicando por algo que não posso dar.
— Eu... — Ela tenta se expressar, mas o
choro alto a impede. Vejo seu corpo
tremendo em meio ao pranto e então,
começo a chorar também.
Ela tenta se aproximar, dar um
passo à frente, mas eu me afasto um
pouco. Bernardo nos observa com a
carinha assustada e logo todos os outros
estão aqui.
Minha memória se lembra
então, das contrações, do meu choro de
dor, sozinha no quarto do hospital,
chamando baixinho por ela, enquanto
rejeitava todas as suas ligações.
Dominic me abraça por trás,
colocando os braços ao meu redor e
beija meu rosto, enquanto sussurra:
— Desculpa, amor. Eu não
sabia...
Seu Henrique está com as mãos
no bolso, mas acaba seguindo o exemplo
do filho. Passa por nós e a abraça, eu a
vejo desmoronar de encontro a ele e
apenas então, tudo faz sentido.
Agora a vejo entrando no carro,
sem olhar pra trás, me prometendo que
tudo ficaria bem, jurando que me
amava, mas que ela e meu pai não
podiam ficar juntos. Sinto o mesmo nó
na garganta que senti naquele dia...
Henrique Duarte. Um dos
homens mais ricos de Lagos, seus dois
filhos, Dominic e Alice.
Essas pessoas que tanto me
apoiaram e acolheram, a amiga que fiz e
o homem por quem me apaixonei. São
eles a família pela qual ela nos deixou,
ela me abandonou por eles.
Recordo de um dia em especial.
Bernardo com pouco mais de dois anos,
no parque comigo. Eu o empurrando no
balanço antes de irmos ao mercado
buscar carne para o jantar; os
olhinhos dele brilhavam vendo um
menino brincando, soltando bolhas de
sabão com um brinquedo todo
elaborado... Perguntei ao vendedor
quanto era e Bernardo pulou de alegria
e já foi pegando o seu. Quinze reais.
Nós sempre podíamos comer carne, não
precisava ser naquele dia.
Nunca procurei saber o nome do
marido dela, nunca quis compreender
nada sobre sua decisão e como estava,
como era sua vida, assim como evitei a
todo custo que se mantivesse informada
sobre mim. Por isso jamais fiz essa
associação, nunca pensei que a madrasta
de Dominic, era na verdade minha mãe.
Ela por outro lado, não sei se
tinha como não estar ciente disso.
Apesar de tentar me manter impassível,
o sofrimento dela mexe comigo de uma
maneira que não quero admitir, vejo
seus olhos se desviando para Bernardo a
todo instante e imagino que deva se
sentir traída por eu tê-lo escondido.
No fundo, sei que estou
emocionada, estou abalada com o
reencontro porque mesmo após tantas
recusas, ela não desistiu de mim.
Dominic comentou comigo, que seu pai
e a esposa haviam decidido ir à doceria
hoje, porque ontem ela estava viajando,
resolvendo assuntos pessoais. Minha
mãe entrou em contato, chateada por ter
ido a Cordilhéus e descoberto lá que eu
havia me mudado.
Hoje eu entendo que, assim
como não foi minha culpa, o acidente
também não podia ter sido previsto por
ela, mas entre minha razão que entende,
minhas emoções que estão em frangalhos
após tantos baques, me sinto necessitada
de um tempo para pensar.
Como nenhuma de nós diz nada,
seu Henrique começa a me falar algumas
coisas.
— Robin, sua mãe sente muito
sua falta. Quando descobriu que tinha
um neto, ela chorou por uma semana
inteira trancada no quarto... Sei que não
foi fácil pra você, mas vocês precisam
uma da outra. Nenhum de nós imaginou
essa reviravolta, essa situação
surpreendente, mas talvez o destino
queira assim e, por que não, Deus? Uma
coincidência como essa, é fora das
probabilidades.
Dominic aperta meu ombro e
também se pronuncia.
— Eu não sabia que a Bárbara
era sua mãe, docinho. Ela não sabia que
era você quando veio aqui... Mas talvez,
você possa escutá-la.
Observo a todos, que aguardam
uma palavra minha. Demoro meu olhar
sobre ela, minha mãe, que me olha com
uma expressão semelhante a medo,
porque ela sabe bem como eu me sinto
em relação a tudo e como fugi todo esse
tempo.
O que ela não sabe, é como
Dominic me resgatou.
As coisas mudaram tanto nas
últimas semanas. Se não fosse por ele eu
nem mesmo cogitaria a possibilidade de
a escutar, mas quero ouvir o que ela tem
a dizer.
Não hoje.
— Vou ouvir, mas não agora.
Está tudo bagunçado e preciso pensar
um pouco, sozinha. Depois disso, vamos
conversar.
Ela me olha com desânimo. Não
acredita em mim.
— Eu prometo — falo. — Pode
levar o Bernardo embora e fechar aqui?
Eu vou andar um pouco — peço a
Dominic, que concorda e beija minha
testa, oferecendo apoio.
Bernardo se levanta, entendendo
que o confronto terminou e se aproxima
de mim.
— Mamãe... Posso ir com a
senhora?
Eu passo a mão por seus
cabelinhos loiros, me inclino para o
abraçar forte e depois o solto.
— Bê, a mamãe já vem, tá bom?
Fica aqui. Você conheceu essa moça? —
Aponto para ela, cedendo por fim e o
vejo assentir enquanto os cachinhos se
balançam. — É sua outra vovó, se
lembra que me perguntou sobre ela?
Bernardo olha pra minha mãe,
desconfiado e depois me fita com os
olhos verdes curiosos.
— Minha vovó?
Eu afirmo.
— Isso, fica aqui com ela, conta
pra ela sobre sua escola, tá bom?
Antes de sair pela porta, eu
consigo ver o momento em que eles se
abraçam outra vez.
Deixei a confeitaria a pé.
Precisava caminhar um pouco e pensar
no que acabara de acontecer. Em meu
íntimo, sempre soube que a
possibilidade de a reencontrar era real,
morando em Lagos. No entanto, não
imaginei que seria assim.
É fim de tarde e o vento frio
começa a soprar por entre as árvores na
beira do lago, enquanto sigo caminhando
pela orla, completamente sem rumo.
Quando vim para essa cidade,
cerca de dois meses antes, não
imaginava que minha vida pudesse
mudar tanto em um espaço de tempo tão
curto. Dizem que nos preparamos tão
arduamente para as mudanças, quando
na verdade o que realmente impacta
nosso destino acontece sem aviso.
Repentinamente.
Nunca levei esse pensamento em
consideração, mas agora acredito que
seja verdadeiro. Uma transferência para
um emprego medíocre e então, Dominic,
a confeitaria e agora minha mãe.
Mudanças tão significativas, vindas de
algo tão banal.
Vejo alguns carros que passam já
com seus faróis acesos ao meu lado. É
domingo e o movimento a essa hora
costuma ser menos intenso. As pessoas
já estão se recolhendo em seus lares,
descansando para iniciarem a nova
semana, o que me leva a divagar sobre o
meu lar.
Há tantos anos somos Bernardo e
eu, vovó Rute e o amor que nós temos
uma pela outra. Dominic chegou sem
alarde e foi se infiltrando em meus
desejos, sonhos e sentimentos. Nossa
experiência na mesma casa começou
como algo indesejado e agora,
simplesmente não quero que termine.
Observo a água. Alguns poucos
barcos pequenos pontilham o azul de
branco. Lagos me trouxe tantas coisas
boas até então, que sinto vontade de
confiar no poder dessa cidadezinha uma
vez mais e dar uma chance à minha mãe.
Tomo a direção da casa de
repouso, indo em busca da única que me
conhece bem, que conhece a ela e sabe
do nosso passado. A única que mesmo
com a cabecinha ruim em muitos
momentos, tem os melhores e mais
divertidos conselhos.
Não é muito rápido, demoro um
pouco a chegar lá andando, mas quando
a chamam e vejo seu sorriso, sei que fiz
a escolha certa em vir.
Nos sentamos no refeitório do
asilo, de frente uma para a outra.
— Oi, Robinha. Já está com
saudades? — Vovó brinca.
— Eu sempre estou com
saudades, vó. Mas eu vim por um
motivo diferente.
Seus olhos atenciosos me
encaram com seriedade, aguardando.
— Ela apareceu hoje na
confeitaria. Descobriu a mim e ao
Bernardo.
Não preciso explicar a quem me
refiro, vovó Rute entende perfeitamente.
— É mesmo, filha? E como ela
estava? — pergunta, abrindo um sorriso.
Elas sempre se deram bem.
— Bem, eu acho. Estava
chorando. Acho que conheceu o
Minduim antes, sem saber que era o neto
dela.
Vovó franze a testa, pensativa.
— Conheceu onde? Onde
Bernardo foi sem você? — pergunta.
Eu respondo com outro
questionamento.
— Vó, a senhora conheceu o pai
do Dom, ontem?
Ela balança a cabeça, afirmando
e vejo quando a compreensão a atinge.
— Ai, minha filha... É a mulher
dele? Madrasta do brotinho?
Faço que sim e vovó balança a
cabeça, assimilando tudo.
— Você deve estar chateada... —
Suas mãos franzidas pegam as minhas
sobre a mesa. — Falou com ela?
Faço que não.
— Eu disse que falaria depois,
mas a deixei conhecer Bernardo. Eles
ficaram na confeitaria quando saí
andando. Acha que devo escutar o que
ela tem a dizer, vovó?
Ela suspira.
— Eu sempre achei, querida. Já
te disse isso várias vezes, mas como
também sempre falo, minha prioridade é
você. Se não se sentir bem com isso,
preparada, tudo bem. Mas no fundo você
sabe a verdade...
Suspiro, sentindo as palavras
dela me encontrarem, o modo
complacente como fala sutilmente que
sempre estive errada quanto a afastar
minha mãe.
— E qual é a verdade, vó? —
pergunto, porque realmente não sei mais,
não confio nas decisões que tomei até
hoje.
— Foi um sofrimento muito
grande. Perder seu pai daquela maneira,
o Derek... E você a queria por perto,
tanto quanto ela queria, mas era tão
cedo... As feridas estavam tão abertas.
Você, minha filha, está voltando à vida
agora, passou cinco anos apenas
respirando. Sua dor, os machucados no
seu coração eram tão profundos que
precisava de um bode expiatório além
de si mesma, para suportar viver com o
sofrimento, e ela era a única que você
podia culpar.
Abaixo a cabeça, registrando sua
sabedoria e tento pensar como a mulher
que estou me tornando, não como a
casca sem vida que eu era.
— Fui injusta? — questiono por
fim e sinto o afago dela no dorso da
minha mão.
— Eu não diria isso. Sua mãe
poderia ter sido mais sincera quando
saiu de casa, mas eu a compreendo, ela
não queria ser aquela pessoa que se sai
bem atirando a culpa no outro, e você
idealizava tanto o Pedro.
Ergo os olhos pra ela, curiosa.
— Como assim, vó?
Seu suspiro é profundo e triste.
— Meu Pedro foi um excelente
pai e um filho maravilhoso. Como
marido, deixava a desejar. Do jeito dele,
acredito que a amava, mas eu o vi gritar
com ela várias vezes e as coisas ficaram
mais difíceis pra sua mãe quando você
foi estudar fora. Acho que você, Robin,
era o elo que Bárbara ainda tinha com
Pedro. Quando foi fazer faculdade e os
deixou sozinhos, eles não souberam ser
só um casal. Ela ficava sempre em casa,
sabe? Seu pai saía e a deixava, então os
boatos sobre ele e outras mulheres
começaram a surgir. Quando sua mãe o
deixou, já fazia muito tempo que os dois
não eram nem mesmo amigos.
Ouvir tudo aquilo me faz sentir
como se alguém pegasse as memórias do
meu pai e jogasse tinta em cima,
manchando tudo.
— Meu pai ficou arrasado
quando ela foi embora, vó — digo,
tentando encontrar sentido naquilo, me
negando a crer.
— Acho que ele se deu conta de
quanta besteira tinha feito, quando viu
que Bárbara não ia apenas deixa-lo, mas
tinha mesmo se apaixonado por outra
pessoa. Eles ainda eram casados e era
errado, mas eu não a julgaria tanto...
Meu pai e minha mãe. E eu não
enxerguei o que acontecia.
— Mas vó, a senhora nunca me
contou isso. Por que nunca disse?
— Você ouviria? Estava
decidida de que ela era a vilã. O Pedro
era ótimo, filha, mas não um santo.
Mesmo assim, era meu filho. Me dói ter
que te dizer que não era completamente
maravilhoso. Mas é assim, não?
Ninguém é ruim ou bom, apenas. Temos
as duas naturezas e com ele não era
diferente. Cometeu erros e isso fez com
que sua mãe também metesse os pés
pelas mãos.
— Eu acho que tem razão. Eu
não teria escutado antes...
— Antes de Dominic — ela
completa. — Ele te ajudou a ver, a
sentir, a ouvir, filha. Antes mesmo de
mudar seu estado civil, ele mudou seus
sentidos — diz, rindo do próprio
comentário.
Essa mulher possui uma
sabedoria de vida que me assombra.
— Eu vou conversar com ela,
vó. Já chega disso.
Meu celular vibra no bolso e o
retiro dali, vendo o visor se acender
com o nome de Dominic.
— Oi... — atendo.
— Robin, é a Alice. Você precisa
ir agora pro hospital, estamos correndo
pra lá com o Bernardo, ele ficou todo
esquisito e... venha rápido, por favor.
A voz dela é meio chorosa e isso
faz com que todos os alertas disparem
em meu cérebro.
Me levanto apavorada e vovó
Rute me encara curiosa.
— O que aconteceu, Alice? —
Já estou gritando, em desespero. — O
que houve com meu filho?
Ouço um barulho e então é a voz
de Dominic que me responde:
— Robin — ele chama, a voz
embargada e o pavor evidente em cada
sílaba. — Eu não sei o que aconteceu,
ele não consegue respirar, parece que o
ar não entra.
Sinto a bile subir para minha
garganta, enquanto o desespero vira
pânico.
— Amendoim. Fala pro médico
checar se ele comeu, eu estou indo.
Dominic... não deixa meu filho morrer.
Quando desligo o telefone, vovó
Rute está com a mão no peito,
completamente apavorada, sua face está
lívida e ela se levanta. Apenas para cair
inconsciente logo depois.

Eu nunca fui um homem


religioso. Acredito em Deus de um
modo meio que automático, sem pensar
muito a respeito, como a maioria das
pessoas, mesmo que não admitam.
Não me lembro qual a última vez
em que falei com Ele, provavelmente
quando minha mãe adoeceu, mas agora é
a única coisa que posso fazer.
Quando chegamos com meu
pequeno ao hospital, o rosto dele está
inchado e vermelho e os médicos
entraram com Bernardo correndo,
enquanto eu preenchia a ficha.
A recepcionista me perguntou
várias coisas e eu só conseguia pensar
em Bernardo e no que iria ser de mim se
algo mais grave acontecesse. Me
encostei no balcão, sentindo o ar me
faltar em reflexo ao que aconteceu com
ele.
Meu Deus, por favor, salva meu
filho...
Ele é meu. Assim como a mãe
dele e eu o coloquei em risco. Eu.
— Senhor... Pai... Por favor,
preciso que me passe as informações.
Volto ao momento presente e
pego o papel que ela me entrega. Tento
ler para preencher, mas minha visão está
turva, nublada. Percebo que estou
chorando e não consigo parar. Eu não
posso ter sido tão estúpido.
Amendoim.
Como fui tão burro, porra? Não
percebi que o apelido dele era por conta
de uma alergia. Estávamos chegando em
casa e Bernardo me pediu jujubas, mas
não tinha em lugar nenhum e eu...
— Moço, o senhor está borrando
o papel.
Seco o rosto, tentando colocar
minha cabeça pra funcionar, eu preciso
fazer alguma coisa. Penso em Robin. Eu
posso ficar devastado, mas se ela perder
Bernardo não vai sobreviver.
Se eu o perder, sabendo que foi
culpa minha, nunca vou me perdoar.
Rabisco o nome dele, da mãe e
os sintomas no papel e entrego de volta
à mulher.
— O senhor é o pai, certo? Pode
esperar naquela sala.
Eu apenas aquiesço e caminho
alguns passos no corredor, antes de
sentir minhas pernas cederem e me
sentar no chão. Afundo o rosto nas mãos,
meu coração está do tamanho de um
maldito amendoim, enquanto espero por
notícias e pela chegada dela.
Alice se senta ao meu lado e me
oferece um copo de água, que rejeito.
— Calma, Dom. Vai ficar tudo
bem... — ela diz.
Eu ergo o rosto e a encaro.
— Anafilaxia, Alice. Eles
disseram que pode ser fatal.
Ela abaixa os olhos, evitando me
encarar porque sabe o quão grave isso
pode ser. Sua mão aperta meu ombro.
— Liguei pro papai, achei que a
Bárbara iria querer vir pra cá.
Não respondo, porque nesse
momento avisto Robin, que entra pela
porta correndo. Os olhos vermelhos e
inchados demonstram o quanto está
amedrontada, e a expressão de horror
dela me faz sentir como se eu fosse a
pessoa mais indigna do mundo.
Ouço alguns soluços, um choro
sentido e apenas quando ela se ajoelha
diante de mim, me abraçando, é que
percebo que aquilo, aquele barulho, sai
do meu peito.
Mergulho em seu abraço, sem
conseguir olhar nos olhos da mulher que
amo. Porque eu amo. Se eu olhar, vou
vacilar porque eu não a mereço. Como
pude arriscar o que ela tem de mais
precioso com umas malditas balas?
— Calma, amor. Eles vão
resolver... — ela fala, mas ouço o pranto
em sua voz também.
— Eu... — Me esforço para
falar, sabendo que quando ela souber
que fui eu, jamais vai me olhar de novo.
— Fui eu, Robin. Ele queria jujubas e eu
comprei, mas eram aqueles amendoins
com casca colorida. Ele colocou uns
dois na boca e começou a engasgar.
Espero que ela se afaste, que
comece a gritar comigo e xingar, mas
Robin apenas chora baixinho me
abraçando.
— Vai dar certo. Eu devia ter
falado que ele era alérgico — ela diz.
— Já aconteceu antes, eles vão trazer
nosso Minduim de volta.
— Eu não quero chamar ele
assim mais... — falo, soando patético.
Robin apenas assente, me
entendendo.
— Eu sei, Dom. Mas ele gosta
de ser o Super Minduim.
Quando ergo o rosto um pouco,
vejo meu pai e Bárbara parados um
pouco à frente no corredor e Alice
conversando com os dois, contando o
que aconteceu.
— A vovó, Dom — Robin
continua falando em meio ao choro
sentido. — Viemos na ambulância, ela
passou mal quando ouviu sobre o
Bernardo e acho que... Acho que ela não
vai acordar.
Robin afunda o rosto em meu
peito e eu a abraço, estático. Como é
possível que a vida ameace tirar dela as
duas pessoas que mais ama no mundo
em uma única noite? Aperto seu corpo
contra o meu e ficamos assim por um
tempo, passando força um pro outro e
torcendo para que tudo dê certo.
Quando o choro dela se acalma,
me levanto e a ajudo a fazer o mesmo.
— Meu pai está ali — falo. —
Sua mãe, também.
Robin se vira e os vê. Bárbara
está chorando desconsolada, enquanto
meu pai a abraça.
Os dois se aproximam de nós,
junto com Alice, mas minha madrasta
não diz nada. Sei que está morrendo de
medo de que Robin a mande embora.
As duas se olham por um longo
momento e reconhecem a dor uma da
outra. Não existem palavras que façam
por elas o que precisam, que tragam o
alento necessário em um momento
delicado assim.
Não sei quem dá o primeiro
passo, mas elas se abraçam no meio do
caminho. Ouço os soluços entrecortados
de Robin e o choro desesperado e de
alívio ao mesmo tempo, de Bárbara.
Meu pai se afasta um pouco e
faço o mesmo, dando a elas privacidade
para se resolverem, se reconciliarem.
Eu sinto meu peito esmagado pelo pavor
de perder o filho que acabo de ganhar e
sei que para Bárbara, Robin é seu maior
tesouro. Imagino o quanto esse momento
é triste e confuso, porque enfim ela pode
abraçar a filha.
— Vai ficar tudo bem — meu pai
fala. — Sabe, Deus não seria cruel em
reunir vocês dois assim, salvar tantas
pessoas, mudar tanto as coisas para no
fim trazer uma desgraça como essa,
sobre nós.
Apenas o escuto em silêncio.
— Minha Bárbara já sofreu por
tempo demais e sua menina também.
Basta de sofrimento.
Começo a acreditar em milagres,
porque pouco depois o médico aparece,
com um sorriso de vitória.
Robin se aproxima de nós, ainda
amparada pelo abraço da mãe e juntos
ouvimos as boas novas:
— Podem ficar calmos. O
pequeno Bernardo foi estabilizado.
Chegou aqui apresentando edema de
glote e facial, mas como vieram muito
rápido, conseguimos o socorrer às
pressas. A medicação venosa de
corticoide e antialérgico foi bem
recebida pelo organismo.
— Posso entrar, doutor? —
pergunto preocupado. Preciso ver por
mim mesmo que ele está bem.
Robin me encara com um sorriso
no rosto. Esqueci por um momento que
ela deve ir vê-lo antes.
— Depois da mãe dele, claro.
O médico abre um sorriso,
achando graça no meu desespero.
— Podem entrar os dois. Ele
está dormindo porque a medicação dá
sono, é normal. Logo vai estar novinho
em folha. E na próxima, pai, evite as
balas.
Ele me repreende e a única coisa
que ouço é a palavra pai. Sorrio ao
perceber que todos aqui me veem como
pai dele.
— Vamos entrar e voltamos com
notícias — Robin diz aos outros,
aparentando um pouco mais de
tranquilidade. — Se me procurarem
sobre o estado da vovó, me chamem por
favor.
Só então os outros tomam
conhecimento de que dona Rute também
está em estado grave e a alegria pelo
bem estar de Bernardo é ofuscada pelo
receio do que pode acontecer com nossa
velhinha.
Seguro a mão de Robin e juntos
seguimos o médico para onde Bernardo
está.
Entramos no quarto e vejo que
seu corpo cansado agora já respira
quase normalmente e o inchaço no rosto
já retrocedeu bastante.
Me sento de um lado da maca
hospitalar, enquanto do outro, Robin fica
de pé na cabeceira. O observamos por
um tempo, compartilhando o alívio por
saber que vai ficar tudo bem, que não
perdemos nosso menino.

Quando cheguei ao hospital, em


meio ao pavor que me consumia, vi nos
olhos de Dominic a culpa que tentava
chegar até sua alma. Eu nadei em culpa
tanto tempo que conheço os sintomas.
Ela é uma coisa irracional
muitas vezes.
Dominic não podia saber sobre a
alergia se nunca a mencionamos, mas
ainda assim estava se corroendo. Meu
pânico era tanto, que não conseguia nem
mesmo me manter de pé sozinha, por
mais que da entrada do hospital até ali,
eu tenha firmado meus joelhos e
obrigado minhas pernas a caminharem.
Quando vi minha mãe, o meu
desespero refletido no rosto dela, nós
nos reconectamos. Não é algo
instantâneo, nossa relação não vai ser
íntima da noite para o dia. Precisamos
nos conhecer outra vez, mas o primeiro
passo é perdoar e ser perdoada. Estou
disposta a isso.
Depois que Dominic e eu
deixamos o quarto de Bernardo, ela me
pediu para conversar por alguns minutos
e descemos juntas até a lanchonete do
hospital, deixando os outros de
sobreaviso sobre vovó Rute.
Agora, minha mãe está sentada
diante de mim e nos encaramos por
alguns segundos. Ela na verdade se
parece muito comigo, ou eu com ela no
caso. Algumas rugas ao redor dos olhos
e traços mais acentuados, mas em geral
somos parecidas.
— Filha, eu senti tanto a sua
falta — começa a dizer. — Eu não
queria te deixar, não foi o que eu fiz,
Robin.
Eu aquiesço. Agora, depois de
tanto tempo, após vencer a culpa e a dor,
depois de conversar com minha avó e
entender mais sobre os fatos, eu entendo
que minha mãe não estava me
abandonando, apenas terminando um
casamento infeliz.
— Eu sei, mãe. Hoje eu sei...
Também senti sua falta, desde o início.
Foi muito difícil passar por tudo sem
você. Me desculpe por esconder que
tinha um neto...
Ela assente e estende a mão,
acariciando meu rosto.
— Descobri sobre ele umas
semanas atrás, mas não conseguia
descobrir onde você estava. Fui até
Cordilhéus essa semana, te procurar na
joalheria em que soube que trabalhava e
só então descobri que estava morando
aqui. Quando voltei, Henrique me
contou que tinha te visto, que tinha
certeza que era você.
— Mas você já conhecia
Bernardo...
Ela abre um sorriso ao escutar o
nome dele.
— Dominic o levou em casa
outro dia e nós brincamos juntos, foi tão
bom. Eu só não sabia que era meu neto...
É engraçado como Dom falou de você
tantas vezes e nunca disse seu nome.
— Não disse? — pergunto,
curiosa.
— Sempre dizia minha
namorada... Nem perguntei também, ele
tinha acabado de fazer as pazes com o
pai e nos vimos duas ou três vezes
apenas, mas ainda assim é estranho que
não tenha percebido antes.
Afirmo com um gesto, porque é
verdade.
— Dominic e Alice sabiam
sobre mim? — questiono.
— Sobre minha filha? Sabiam —
responde, ao me ver assentir. — Eles
sabiam por alto, eu não gostava de falar
a respeito porque ficava angustiada e
porque não queria que se intrometessem
em minhas tentativas de fazer as pazes
com você. Henrique sabia de tudo, seu
nome, sua aparência, o que fazia e
também contei a ele quando descobri
sobre meu neto, mas os dois apenas
tinham a noção de que eu tinha uma filha
e que não nos falávamos.
— Curioso... — digo, apenas.
Realmente o universo parece
estar fazendo um trabalho minucioso ao
brincar com os meros mortais, como
nós.
— Eu estava muito feliz por ele,
contente em ver como estava
apaixonado, mas nem imaginava que
pudesse ser você.
Abro um sorriso ao ouvir as
palavras dela. Apaixonado. Dominic
não se declarou dizendo isso, mas não
há outra maneira de interpretar o que
sentimos um pelo outro.
— É meio absurdo, sabe? —
falo. — Nos conhecemos há tão pouco
tempo e agora, ele tem Bernardo como
filho e eu...
— Você o ama. Eu sei, é assim
que acontece, nosso coração reconhece
o próprio lar.
Me sinto um pouco
envergonhada com isso. A julguei tanto
por seguir seu coração e aqui estou eu,
entregando o meu completamente.
— Não precisa ficar com receio,
sabe? Dominic também te ama. Você
sabe que aquele carro foi comprado com
a herança que recebeu da mãe dele? O
valor sentimental era enorme.
Fico confusa por um momento e
quando percebo que sozinha não consigo
acompanhar, pergunto:
— Eu sei sobre a herança, mas
como isso se relaciona com o que
sentimos?
Ela ergue as sobrancelhas,
estranhando a pergunta.
— Acha que ele o venderia para
realizar o sonho de qualquer pessoa?
Aos poucos o significado parece
penetrar meu cérebro embotado.
Engulo a seco, compreendendo o
gesto dele. Dominic vendeu o carro e
pagou pela confeitaria, fez isso por mim,
sem pedir nada em troca, sem se
vangloriar.
Abriu mão daquilo que era sua
herança, sua ligação com a mãe, para me
fazer feliz.

Estão todos reunidos na sala de


espera, esperando o médico que cuidou
da vovó Rute, quando chegamos.
Bernardo acordou pouco antes e Alice
está com ele agora.
O médico se aproxima e meu
coração dispara ao perceber sua
expressão perturbada.
Aperto a mão de Dominic e ele
me abraça, enquanto as lágrimas brotam
outra vez. Não sei se é possível, mas
sinto que vou definhar de tanto chorar.
Todos estão tensos, aguardando
as informações, mas os semblantes estão
caídos porque desde o princípio,
sabíamos que era improvável que ela
sobrevivesse a isso em sua idade
avançada.
— Quem trouxe a paciente Rute
Andrade Muniz? — O médico pergunta.
Ergo a mão, enquanto tento falar.
Não consigo, estou aterrorizada.
— Pode me acompanhar, por
favor? Vocês são a família? — ele se
dirige aos demais.
Eles aquiescem, até mesmo
Henrique.
— Então venham todos, prefiro
contar a vocês em um local mais
particular.
O médico se vira e começa a
afastar-se e nós o seguimos. Tento
preparar meu coração para ouvir as
notícias, mas não sei se vou suportar.
Entramos em um quarto vazio, ou
é o que penso a princípio. Olhando ao
redor percebo um lençol que divide o
cômodo ao meio, como uma cortina, e
atrás dela, avisto os pequenos pés de
vovó, completamente imóveis.
— Não... — O grito vem da
minha alma. Não posso perder minha
vovó Rute. Como vou viver nesse
mundo sem suas loucuras? Como vou
falar pro meu filho que perdeu sua
companheira de viagens espaciais?
Dominic me abraça forte e
sussurra palavras de consolo, enquanto
vejo seus olhos marejados também.
Estou desolada e o médico me
encara, a princípio com neutralidade e
depois, com evidente irritação.
— Ai meu Deus do céu, os
Iluminatti me pegaram! Robinhaaaa,
me ajuda!
A voz da velhinha irrompe na
sala e meu choro cessa imediatamente.
O que foi isso?
— Filha, me socorre, tem um
negócio no meu braço! Tão arrancando
meu sangue, esses demônios de três
olhos.
Olho para Dominic, que agora
sorri achando graça, e me solto de seus
braços, correndo para trás da cortina.
Vovó Rute está deitada parecendo bem
incomodada por ter sido pega na casa de
repouso e arrastada para cá pelos
malditos Iluminatti.
A abraço apertado e ela solta
uma risadinha meio sem jeito.
O médico abre a cortina e vejo
que todos estão rindo muito da situação.
— Bom, parece que o drama é
de família — ele diz, ainda bravo com
minha cena de novela mexicana, bastante
desnecessária pelo jeito. — Eu os
chamei aqui por dois motivos, um é que
essa senhora insiste que eu sou um
Iluminatti querendo o sangue dela e não
posso trabalhar desse jeito.
O homem está muito sério e fica
ainda mais quando a sala irrompe em
gargalhadas.
— Tive que tranquiliza-la sobre
o neto, uma enfermeira precisou tirar
uma foto do garoto para que ela
acreditasse que estava tudo bem. Agora,
isso de terceiro olho. Por favor, digam a
essa senhora que eu sou católico.
Rimos ainda mais e o médico
suspira, cansado.
— Ouçam, a paciente teve uma
síncope. Quando chegou, deduzimos
logo que fosse um AVC, mas ao
contrário do que supomos, ela se
recuperou rapidamente. Pedi alguns
exames, todos em meio a essa histeria
que podem ver, e constatamos que ela
sofreu um ataque isquêmico transitório.
Os sintomas são parecidos, mas o
resultado é completamente diferente. Ela
não tem sequelas e a tomografia do
crânio mostrou que não tem alteração
alguma.
— Quer dizer que ela não tem
nada? Está tudo bem? — Ouço Dominic
questionar.
— Mais ou menos, a glicose está
meio alta. Precisa maneirar no açúcar,
podem tomar conta disso?
— Vamos vigiar essa danadinha
— falo, sorrindo.
Um peso foi retirado de cima de
mim. Bernardo está bem, vovó Rute
aprontando das suas, Dominic e eu,
minha mãe...
A vida pode ser boa.
O médico nos deixa a sós e
minha mãe se aproxima, as duas tem uma
conversa rápida, se abraçam e falam
sobre como sentiram saudades. Tudo
está perfeito.
— Robinha, não sobrou um
alfajor daquele de E.T. aí, não?
Faz uma semana desde que vovó
Rute e o Minduim deixaram o hospital e
as coisas estão um pouco caóticas,
levando em conta tudo que mudou, mas
não poderia ser melhor.
Reabri a confeitaria na quarta-
feira, três dias após os incidentes e a
recuperação deles. Dominic e eu nos
revezamos nas tarefas de casa e
cuidados com Bernardo e vovó Rute,
primeiro no hospital e depois no
apartamento desde que tiveram alta.
O movimento de clientes tem
sido ótimo na confeitaria e Dominic me
ajuda sempre que pode sair mais cedo.
Alice está indo bem e parece gostar de
trabalhar comigo.
Hoje é nosso primeiro almoço
como uma família. Uma enorme família,
já que nesse momento seguimos para o
outro lado do lago a fim de almoçarmos
com nossos pais.
Dominic dirige meu uno velho,
mas não parece se importar muito com a
perda do Mustang. Quando avistamos os
portões e ele estaciona diante deles, me
viro no banco do passageiro, com uma
dose de sarcasmo saudável.
— Cresceu aqui? Pobre menino
rico... — brinco, usando a frase que ele
mesmo usou em nosso primeiro encontro
romântico.
Dominic ergue os óculos
escuros, direcionando sua melhor cara
de desprezo pra mim.
— Olha só, quer fazer o favor de
respeitar minhas origens humildes?
Os portões se abrem e entramos
na mansão. Quando descemos do carro,
uma pequena aglomeração nos espera
diante da porta.
Minha mãe sai sorridente, vindo
ao nosso encontro, Alice, Marta e claro,
vovó Rute e Bernardo que já estavam
aqui nos esperando vem logo atrás.
— Vamos entrar, venham... —
Ouvimos a voz de Henrique, que agora
também nos olha da porta, animado.
— Mamãnhê — Bernardo vem
correndo até mim. — Eu gostei muito de
ficar aqui, acho que pode ser mesmo
toooodo dia.
É domingo e decidimos abrir a
confeitaria outra vez, para atender
melhor a demanda de pessoas que
querem conhecer nosso novo espaço.
Com isso, seu Henrique se ofereceu para
buscar Bernardo e vovó para que
ficassem aqui até o horário do almoço.
— Todo dia, filho? Não está se
empolgando demais?
Ele balança a cabeça negando,
os cabelos fazendo uma auréola ao redor
da cabecinha.
— Vem, campeão — Dominic o
chama e Bernardo me deixa, indo pular
nos braços dele, que o ergue sobre os
ombros.
Entramos na casa e seguimos até
a cozinha. Estou admirada com o
tamanho da casa, os móveis caros e o
estilo de vida bem diferente do meu.
— É outro mundo, eu sei —
minha mãe sussurra, perto do meu
ouvido. — Mas eu juro que não escolhi
Henrique por isso.
Abro um sorriso pra ela.
— Eu não pensei que fosse essa
a razão. — Ao menos não agora, hoje.
— Ele te faz feliz?
Ela assente.
— É o que importa, mãe.
Quando questionei Dominic sobre o
carro, por ter vendido, ele me disse que
coisas não são importantes, pessoas sim.
É isso...
Percebo que ela está contente
com minha aceitação e com nossa
presença aqui. Nos sentamos a mesa e as
funcionárias dos Duarte colocam as
travessas de comida sobre ela.
Aos poucos todos começam a se
servir em meio a uma conversa
descontraída, que permeia todo o
almoço.
Já estamos na sobremesa — torta
de nozes, que trouxemos da Que Seja
Doce — quando Henrique leva a
conversa para algo menos trivial.
— Robin, falei com o Leonel da
Magic’s. Ele me disse que sua
indenização foi paga — diz, atraindo
minha atenção.
Paro o garfo a caminho da boca,
surpresa.
— Sério? Não tive nem tempo
de respirar essa semana e acabei não
verificando. Ele disse que ia mandar,
mas depois não me deu notícias.
— Pelo que me falou, não é nada
muito substancial, mas acho que ao
menos assim estão te apoiando, depois
de terem empregado aquele delinquente.
Aquiesço. Independentemente de
o valor ser irrisório ou não, o que
importa é que com esse pagamento estão
assumindo a responsabilidade.
— E o ex-gerente...
Henrique para no meio da frase.
Uma expressão de dor no rosto e se vira
para minha mãe, sentada ao seu lado.
— Por que me beliscou? —
pergunta.
— Vamos falar só de coisas
boas, querido — ela responde com um
sorrisinho meio sem graça ao ser
descoberta por todos.
Alice começa a rir, achando
graça, mas Henrique não se deixa abater.
— Mas é uma coisa boa! Eu ia
dizer que ele foi preso, roubou centenas
de milhares da empresa, desviando o
dinheiro de várias vendas, nem
registrando outros tantos produtos. Vai
mofar na cadeia por muito tempo...
— Então a joalheria vai fechar,
no shopping? — Estou curiosa. O dono
da rede, Leonel, foi bom comigo. Não
me parece justo perder uma de suas
lojas.
— Não, vamos colocar outro
gerente no lugar.
— Vamos? — É Alice que o
questiona.
— Propus tornar a filial dele em
uma franquia, é um bom investimento e
ele também ficou satisfeito.
Dominic está dando colheradas
de comida na boca de Bernardo, fazendo
sons altos, imitando um avião.
— UOOOOOONNNN... Mas
quem vai ficar na gerência? — ele
pergunta e volta a brincadeira porque
Bernardo já está com a boca
escancarada aguardando. —
UOOOOOOONNN...
— Ainda não sei, vou contratar
alguém — meu sogro diz, seu rosto
bastante concentrado no camafeu, o
quinto que come se eu estiver
calculando bem.
— O Minduinzinho sabe fazer o
próprio aviãozinho, Donzinho — vovó
Rute comenta, levando até Dominic pro
seu mundo de diminutivos.
Dominic fica meio sem jeito,
coça a cabeça por um instante como faz
quando nervoso ou envergonhado e
depois abre um sorriso lento, daqueles
que fazem meu coração disparar.
— Eu sei, vovó. Mas meu filho
não precisa fazer o próprio avião,
porque eu posso fazer pra ele. Não é,
Minduim? — pergunta. No fim, o
apelido perseverou.
Bernardo assente, contente e meu
coração se enche de amor. Os dois tem
vivido um momento de descoberta e
adaptação. Bernardo fala de Dominic
como sendo seu pai em todo canto e
Dominic o trata como filho e se sente o
paizão. Mas Bernardo ainda não o
chamou diretamente de pai nenhuma vez.
— Sabe — Alice é quem fala,
ela tem um sorriso de quem está
aprontando das suas. — Agora que
vocês dois definitivamente são um casal,
ouvi papai e a Bárbara conversando.
Desvio os olhos para os dois e
eles fogem, evitando o contato.
— Ouviu o que? — Dominic
também para o que está fazendo, para
escutar.
— Se a Robin quiser ficar aqui,
com o Bernardo e a vovó Rute, serão
todos bem-vindos. Assim vocês dois
vão poder passar pelo processo natural
de namoro, não é isso, pai?
Henrique está dedicando muita
atenção ao prato vazio, cutucando
alguma coisa com a ponta da faca.
— Isso não é da nossa conta,
claro. É que vocês já começaram as
coisas dividindo a casa e agora que
realmente estão juntos, talvez queiram ir
mais devagar. Então se for o caso, só
quero que saibam que existe a opção.
Minha mãe assente,
concordando.
— Isso, se quiserem fazer as
coisas diferente, podem ficar aqui. Eu
posso tomar conta da vovó Rute durante
o dia, não precisaria voltar pra casa de
repouso e meu neto também pode ficar
aqui na parte da manhã, antes da aula.
Sinto um ardor no peito, em
pensar, cogitar a possibilidade de ficar
longe de Dominic. Sei que o que eles
estão sugerindo é o mais sensato, afinal,
nos conhecemos e as coisas aconteceram
rápido demais, mas entre a minha razão
e minhas emoções, existe uma distância
quilométrica.
Dominic apenas espera que eu
diga alguma coisa, mas também não
expressa sua opinião, o que me deixa
mais no escuro. Eu não sei o que ele
pensa a respeito.
— Obrigada por oferecerem
essa alternativa — digo. — Vou pensar
com carinho.
— Eu adoraria te ter por perto,
Robin — Alice diz. — Eu nunca tive
uma irmã e agora, ganhei uma que
também é minha cunhada.
Abro um sorriso de leve, é o
melhor que posso fazer no momento.
Terminamos o almoço e
Bernardo vai com minha mãe brincar no
quintal, vovó Rute segue Marta para a
cozinha falando sobre assuntos em
comum, que eu honestamente não sei
quais são.
— Vem comigo — Dominic me
chama, estendendo a mão.
Aceito a oferta e pedimos
licença aos outros, nos afastando da
mesa e depois da casa.
A mansão é construída na beira
do lago, então saindo pelos fundos,
chegamos até as margens, onde há um
pequeno deque construído e um bonito
gramado. Dominic se senta no chão e me
puxa para o meio de suas pernas, me
abraçando logo que me acomodo.
Seu abraço é tão bom, seu cheiro
gostoso. Não quero ter que dormir longe
dele, me afastar depois de termos nos
aproximado a esse ponto.
— Docinho... — Sua voz
acaricia meu ouvido. — Vamos
conversar sobre isso, agora. Preciso
saber o que você quer, você quer morar
aqui com eles? Com sua mãe?
Sei que é egoísmo meu dizer
não, sabendo que minha avó pode ficar
muito melhor aqui. Mas Dominic merece
toda a verdade e por isso, entrego a ele
tudo aquilo que vai em meu coração:
— Você sabe como foi difícil
pra mim me abrir, falar sobre minha
vida. Então, por favor apenas escute
tudo até o final.
Sinto a cabeça dele se mover, o
queixo tocando meus cabelos no
movimento.
— Eu quero vovó Rute fora
daquele asilo, quero que possa ficar
com as pessoas que a amam. Quero que
Bernardo fique em casa, dormindo pelas
manhãs sem precisar ir pro trabalho
comigo todos os dias, porque não tem
quem fique com ele.
Coordeno meus pensamentos e
continuo:
— Mas eu quero estar com você,
quero dormir na sua cama todas as
noites, acordar e ver seu sorriso pelas
manhãs, compartilhar nossas refeições e
todos os outros momentos. Eu não sei
como ter todas essas coisas juntas, mas
eu não quero colocar essa distância
entre nós agora... Já fomos tão longe,
não concorda? — Não o deixo
responder, apenas prossigo: — Você e
Bernardo, nós dois... Me disse aquele
dia no consultório, que eu sou sua e
você é meu e apesar de nunca ter dito
com todas as letras, você me deu provas
mais que suficientes do que sente por
mim, Dom.
Sinto seus lábios beijando o topo
da minha cabeça e seus braços se
estreitam mais ao meu redor.
— Quero dizer isso, para que
fique registrado aqui e preciso ser a
primeira a dizer, porque não quero que
duvide nunca.
Me viro dentro de seus braços,
me perdendo no dourado dos olhos dele.
— Eu te amo, Dominic. Você
entrou nos meus dias, naquilo que eu
chamava de vida e me ressuscitou. Não
consigo imaginar passar meu tempo
longe de você, chegar em casa e não te
encontrar. Eu amo tanto você, tanto, que
se achar que precisamos dessa
liberdade, desse distanciamento para
mantermos uma relação mais natural,
vou entender e concordar.
As mãos dele cercam meu rosto,
em um afago.
— Docinho, nenhum de nós vai
sair daquele apartamento. Estamos indo
bem assim e financeiramente, as coisas
melhoraram pra nós. A confeitaria vai
bem, você recebeu algum dinheiro, meu
pagamento é bom e ainda tenho uma
sobra do carro, no banco. Vamos manter
vovó Rute perto de nós, pagar alguém
para ficar com os dois pela manhã e
fazer companhia a ela na parte da tarde.
Nós quatro vamos ficar juntos, sempre.
Estou sorrindo extasiada. A
felicidade é tanta que não cabe em mim
e acabo rindo, alto.
— Está feliz, é? — pergunta, se
divertindo.
Então fico séria, me esforço para
manter a expressão mais fechada.
— Gostei da proposta, mas eu
fiz aqui toda uma declaração e não ouvi
nada parecido — reclamo.
— O quê? — Se faz de
desentendido. — Se refere ao Eu te
amo, Dominic, não sei viver sem você e
seus músculos?
O empurro levemente, ainda
achando graça no deboche dele.
— Acha que se eu não te amasse,
teria vendido meu lindo carro? Teria
aberto mão de todas as minhas amantes,
incluindo a professora do nosso filho,
por sua causa?
Minha boca se abre, estou
espantada com a desfaçatez que estou
ouvindo.
— Aquela sem-vergonha, viu a
cara dela quando chegamos juntos na
escola?
Ele sorri, se achando o homem
mais lindo do mundo, o arrogante. Não
importa que seja verdade.
— Eu vi, sim, docinho. Colocou
minha amante em seu devido lugar.
Meu olhar para ele é quase
mortal.
— Primeiro, eu só te beijei
porque estava me despedindo, nem falei
com ela. Segundo, amante, se bem me
lembro, quem tem é homem casado.
Dominic concorda.
— Tudo bem, eu caso...
Me afasto em um impulso,
olhando para ele, tentando concluir se
ouvi direito.
— O que disse? — questiono,
perdendo a voz.
— Eu disse, que se para manter
as amantes, preciso ser casado, então eu
caso com você.
— Deixa de ser bobo, Dominic.
Ele dá de ombros.
— Por mim seria na próxima
semana, mas como você precisa
preparar uma festa e uma cerimônia,
ambas dignas dos seus doces, vou te dar
dez meses. Com isso vamos ter quase
um ano juntos.
Um riso nervoso me escapa.
— Você está falando sério?
— Muito. Eu quero que seja
oficialmente minha, sou um pouco
possessivo, sabe? Bernardo também,
vou dar um jeito nisso se puder. E vovó
Rute já é louca por mim.
Fico muda, absorvendo o que ele
diz e tentando confirmar que não é uma
piada.
— Vai se casar comigo para ter
amantes? — brinco. Mas é melhor ter
certeza.
— Vou me casar e garantir minha
única amante, pra sempre. Eu amo você,
docinho. Se ainda resta alguma dúvida.
A boca dele toma a minha antes
que eu diga qualquer coisa. O lago aos
fundos, os gritos e risadas de Bernardo
ecoando pelos jardins abertos... Esse é o
cenário do nosso felizes para sempre.
Dez meses depois...
Cordilhéus - MG,
Estamos na rodovia há algum
tempo, quando avistamos a cidadezinha
a distância. Robin insistiu em colocar
suas músicas no som do carro e claro,
acabei cedendo. Mas aí Bernardo a
persuadiu a colocar as dele e foi o
pequeno que acabou vencendo a batalha.
Não vou reclamar, porque cerca
de dois meses atrás, ele decidiu que a
galinha não faria mais parte do seu
repertório, e agora está na fase em que
músicas eletrônicas durante as quais
possa dançar e balançar os braços e a
cabeça, são muito mais interessantes.
Pelo menos as letras não são chatas e
cantadas naquelas vozes irritantes das
musiquinhas feitas pra crianças.
Quando o questionei sobre a
mudança no gosto, ele me disse que
agora já não é um menino médio, é
grande porque tem cinco anos. Menino
médio...
— Não vai mesmo me dizer
porque estamos indo pra Cordilhéus, um
dia antes do casamento? — Robin
interrompe minha divagação aleatória e
inútil.
— Não, senhora. Vai descobrir
quando chegarmos e pronto, eu disse que
é importante.
Ela suspira pesadamente. Está
adorável em sua irritação de noiva,
amanhã é nosso grande dia, finalmente
chegou. Não que eu esteja ansioso pelo
casamento em si, afinal, já dividimos a
mesma casa há um ano. Estou ansioso
para que passe logo, porque é muito
estressante e, ter Robin preocupada e
irritada com milhares de detalhes, é pior
ainda. Ela não fica adorável o tempo
todo.
Amanhã vamos nos casar, vovó
Rute e Bernardo vão passar quinze dias
com nossos pais, enquanto Robin e eu
viajamos em lua de mel para Paris,
presente do meu pai. Lá, ela fará um
curso de uma semana na Le Cordon Bleu
de algo que ela chama de pâtisserie, um
presente de Bárbara. Mas mesmo com
tudo indo tão bem, uma coisa me
incomodou todo esse tempo e por isso,
estamos indo a Cordilhéus.
— Vou ligar o ar, tá bom? — ela
avisa, se adiantando.
Por sorte o carro novo tem ar, o
uno antigo nem isso tinha. Robin me deu
o automóvel de presente, na mesma
semana em que recebeu a indenização,
assim como a confeitaria, é o tipo de
presente que serve a todos nós.
Não é um Mustang, claro. Mas é
confortável, funciona perfeitamente e
não é temperado, com diria meu filho.
Ela recebeu um bom dinheiro, não mais
que dez mil reais, mas foi o suficiente
para que, somado ao valor do carro
antigo, pudéssemos trocar por um
modelo bem melhor, e mais novo, e
também para que Robin pudesse alterar
drasticamente seu guarda-roupa.
Agora, ela usa vestidos e roupas
coloridas, bem ajustadas e femininas. Se
veste tão bem que é como se estivesse
em busca de compensar o tempo de
sobriedade. Além de linda e bem
arrumada, a personalidade forte que ela
construiu e a alegria com a qual encara
todos os momentos, fazem dela a mulher
mais apaixonante do mundo.
— Paiê, a gente já chegou? —
Bernardo me chama, impaciente.
— Quase lá — respondo, rindo
de orelha a orelha.
Tem uns oito meses que o
Minduim passou a me chamar de pai,
diretamente. Antes, falava de mim como
seu pai, mas não quando me gritava ou
pedia alguma coisa. Demorou um pouco,
mas era só uma questão de hábito,
porque na verdade já nos sentíamos
assim.
A vida com ele e vovó Rute é
sempre uma loucura e cada dia, uma
surpresa diferente pode acontecer. Como
o dia em que a encontrei de cochichos e
mãos dadas com o seu Antônio da
portaria.
De namorico aos noventa anos.
Pode?
Sei que o pobre homem vai
sentir falta dela quando nos mudarmos.
Finalmente estamos comprando uma
casa, com espaço pro Minduim e quem
sabe, para um São Bernardo. Gosto de
simbolismos. Era nosso plano desde o
início, comprar um imóvel quando
nossas finanças se estabilizassem e com
o sucesso da confeitaria, dos chocolates
reflexivos, que se tornaram uma febre na
cidade — alcançando até os munícipios
das redondezas, e minha agenda, cada
vez mais lotada principalmente por
causa dos versos, isso se tornou
possível bem rápido.
Entramos na cidade e paro o
carro um minuto, ligando o pisca-alerta
para redefinir nossa rota no GPS, antes
de prosseguirmos.
Quando saio do acostamento,
para a estrada, Robin se inclina, curiosa.
A expressão dela inicialmente é de
surpresa, mas em seguida captura minha
mão e em silêncio, seguimos até o
cemitério.
Robin trouxe uma cesta de
comida no carro e entrega um bombom
para Bernardo, que estava reclamando
de fome e me oferece um, o Alegria.
Estou nervoso e acabo o guardando no
bolso, para depois.
Ela é quem anda na frente, me
guiando até onde seu Pedro e Derek
foram enterrados, em lados opostos.
Primeiro vamos juntos ao túmulo do pai
dela. Algumas flores estão secas sobre
ele, já faz um tempo que ninguém vem
aqui.
Pedro Andrade Muniz, filho e
pai adorado.
Coloco sobre o túmulo um gorro
de lã e me afasto alguns passos,
encarando a placa pequena. Robin e
Bernardo estão ao meu lado em silêncio
total.
— Boa tarde, seu Pedro. —
Começo, me sentindo bastante estúpido,
mas fazendo o que senti necessidade
tantas vezes nos últimos meses. — Meu
nome é Dominic. Eu não sei o que o
senhor pode ver de onde está, mas
imagino que saiba de quem eu sou filho
e sei que isso pode fazer com que não
goste muito de mim. Mas já faz tanto
tempo.
Olho para Robin e ela acena, me
incentivando.
— Eu sou noivo da sua filha,
Robin. Aconteceu tudo por acaso, nos
conhecemos em uma situação incomum e
nos apaixonamos. Não vim falar antes
com o senhor, mas vamos nos casar
amanhã e antes disso, eu gostaria de
pedir a mão dela...
Robin se aproxima de mim, me
abraça pela cintura e fica quietinha
encostada no meu ombro, enquanto
Bernardo apenas dá a volta e segura
minha mão.
— Sei que se as coisas tivessem
sido diferentes, poderíamos agora nos
sentar, conversar com calma e o senhor
iria me explicar por que não sou a
melhor opção como genro, por causa do
meu pai, claro. Mas, poderia ser que nós
nem nos conhecêssemos, Robin poderia
ter se casado há muito tempo... — Agora
estou divagando. — Bom, seu Pedro,
quero apenas dizer que amo sua filha,
muito mesmo. Vou cuidar dela todos os
dias e me esforçar sempre para que
sejamos felizes, vou colocar todos os
sonhos dela, como meus e lutar para que
Robin seja e tenha tudo o que desejar.
Espero que o senhor me aceite e nos dê
sua benção.
Robin apenas se abaixa, coloca a
mão sobre o túmulo, mas não diz nada
em voz alta.
— Não vai me ajudar? —
pergunto, baixinho.
Ela me olha por entre algumas
lágrimas, mas parece achar tudo muito
divertido.
— Pai... — ela diz. — Eu sou
feliz, mais que jamais pensei que
pudesse ser. Dominic me ama e cuida de
mim. Ele parece estar com receio de que
o senhor o desaprove e sei lá, cometa
alguma maldade fantasmagórica contra
ele. — Mulher indecente. — Não
precisa se preocupar. Nós estamos e
vamos ficar bem.
Eu aquiesço, apesar da
brincadeira em um momento como esse,
ela falou o que devia.
— Ah, me lembrei de uma coisa
— digo. — Coloquei sobre o túmulo um
gorro, sua mãe me instruiu seis vezes de
que o deixasse aqui, para que não sinta
mais frio nas orelhas. Eu sei que pode
parecer estranho, mas o senhor sabe
como ela é... Nós voltaremos outro dia,
seu Pedro. Até mais.
Bernardo faz tchau, sem nem
mesmo entender bem o que está
acontecendo, segura a minha mão e
juntos, caminhamos até a outra lápide.
Estranhamente, me sinto muito
mais confortável ao me dirigir ao túmulo
de Derek. Eu sou pai agora, sei que ele
gostaria que alguém cuidasse de
Bernardo se não pudesse.
— Oi, Derek... — Robin
começa. — Quero te apresentar uma
pessoa — ela diz, entrando na minha. —
Esse é Dominic, meu noivo. Ele quer te
dizer algumas coisas...
Ela se afasta um pouco,
abraçando Bernardo pelos ombros,
enquanto eu chego mais perto.
— Vocês podem... me dar alguns
minutos? — peço.
Ela assente e os dois se afastam,
andando na direção da saída. Robin não
precisa de despedidas, ela já o fez há
muito tempo, isso é por eles, porque eu
gostaria que me considerassem, gostaria
que o homem que assumisse meu filho
tivesse a decência de falar comigo.
— E aí, cara? — Começo meio
sem jeito, falando pro vazio. — Bom, eu
conheci Robin em um momento difícil,
ela sofreu muito quando você partiu, foi
complicado pra ela lidar com Bernardo
sozinha, mas você deve saber disso. Nós
nos conhecemos quatro anos depois e eu
me apaixonei por ela, quase que de
imediato. Você sabe como ela é
incrível... As coisas foram além e é por
isso que estou aqui hoje.
Me abaixo diante da lápide,
tentando organizar meus pensamentos,
para que as frases sejam coesas como
espero.
— Bernardo aconteceu, sabe?
Um dia ele sorria pra mim, me pedindo
para subir nos meus ombros e de repente
em meio as nossas brincadeiras diárias,
ele foi ganhando espaço no meu
coração. Eu sei que ele é seu filho,
sempre vai ser. Mas hoje eu também sou
pai dele e sei que ele me considera
assim... Por isso vim te pedir, que olhe
por nosso filho sempre, de onde você
estiver, que cuide do nosso pequeno
Minduim e se puder levar isso numa
boa, melhor ainda. Eu quis agir direito.
Amanhã dou meu nome a Robin e quero
fazer o mesmo por Bernardo, fica
tranquilo que não substituir seu nome,
vou só adicionar o meu.
Uma brisa suave sopra por entre
as copas das árvores verdes e frondosas
e em minha credulidade e desejo,
imagino que seja a benção que vim
buscar.
— Obrigado. Eu prometo que
vou o amar muito e fazer o possível para
que ele se torne um homem de bem;
vamos ter orgulho do nosso filho, Derek.
E sobre a mãe dele, eu também a amo
além do que possa imaginar. De onde
estiver, fique em paz porque estou
cuidando de tudo por aqui. Sinto muito
por você. Por não ter tido a
oportunidade de viver com os dois, mas
vou fazer o que estiver ao meu alcance,
para que tenham a melhor vida possível.
Me levanto, pronto para ir
embora e meu olhar recai sobre o
epitáfio dele pela primeira vez.
Suas obras em vida, foram os
sentimentos que cultivou
As pessoas que amou
Agora na morte, nada mais
deseja
Que a alegria de quem ficou...

Com um sorriso, retiro o


chocolate que ainda está no meu bolso e
coloco ali, em um gesto um tanto
poético.

Alegria.

Fim.
Ingredientes:
125 g de manteiga sem sal em
temperatura ambiente
3/4 xícara de açúcar
1/2 xícara de açúcar mascavo
1 ovo
1 e 3/4 de xícara de farinha de trigo
1 colher (chá) de fermento em pó
300 g de meio amargo picado
1 colher (chá) de essência de baunilha.
Modo de Preparo:
Misture a manteiga, açúcar mascavo,
açúcar, essência de baunilha (chocolate
em pó, se for fazer cookies com base de
chocolate).
Adicione o ovo batido aos poucos e
misture bem.
Acrescente a farinha aos poucos e
misture bem (pode ser na mão ou na
batedeira planetária)
Por último, adicione o fermento e
misture só para incorporá-lo à massa.
Depois da massa bem misturada,
adicione o chocolate picado.
Forme bolinhas pequenas e asse em
forno preaquecido, sobre papel
manteiga, por aproximadamente 15 a 20
minutos (250° C).

Cookies podem matar a fome e trazer


união. Coloque os seus para assar e
convide pessoas queridas para
compartilharem a refeição.
Ingredientes:
200 g de manteiga em temperatura
ambiente
1 ovo
2 gemas
1 xícara (chá) de açúcar
5 xícaras (chá) de farinha de trigo
4 colheres (sopa) de mel
2 colheres (sopa) de fermento em pó
Meia colher (sopa) de bicarbonato de
sódio
Meia colher (sopa) de essência de
baunilha
Cobertura:
500 g de Chocolate

Modo de Preparo:
Em uma batedeira, bata a manteiga com
o açúcar, o ovo e as gemas. Reserve.
À parte, misture a farinha de trigo, o
mel, o bicarbonato de sódio, o fermento
em pó e a essência de baunilha.
Junte à mistura de manteiga.
Trabalhe bem a massa até ficar lisa e
macia. Deixe descansar por 30 minutos.
Abra com um rolo a massa entre dois
plásticos-filme, deixando-a com
espessura de 0,5 cm aproximadamente.
Com um cortador, recorte círculos de 5
cm de diâmetro.
Arrume-os em uma assadeira untada
com manteiga e polvilhada com farinha
de trigo.
Asse em forno médio (180 °C),
preaquecido. Por 8 minutos (sem dourar
muito).
Retire do forno e deixe esfriar na
própria assadeira, coberta com papel-
manteiga.
Depois de frios, una dois discos com
uma camada de doce de leite, retirando
o excesso. Reserve.
Cobertura:
Derreta o Chocolate conforme as
indicações da embalagem e banhe os
alfajores um a um.
Coloque-os sobre papel-alumínio ou
papel-manteiga e deixe secar.

Alfajor é um doce argentino. Combina


com dias frios e com família reunida.
Ingredientes:
1 Caixa de Leite Condensado
1 Caixa de Creme de Leite
100gr de Chocolate Meio Amargo
Picado
2 Colheres de Chocolate em Pó

Modo de Preparo:
Coloque todos os itens em uma panela e
leve ao fogo.
Mexa até desgrudar da panela, evitando
que o doce se queime.

Nos dias mais difíceis, algumas


colheradas podem te ajudar a sorrir.
Nos dias felizes, podem alargar o
sorriso.
Ingredientes:
4 ovos
4 colheres (sopa) de chocolate em pó
2 colheres (sopa) de manteiga
3 xícaras (chá) de farinha de trigo
2 xícaras (chá) de açúcar
2 colheres (chá) de fermento
1 xícara (chá) de leite

Ingredientes para Cobertura:


1 caixa pequena de leite condensado
1 lata de creme de leite com soro
7 colheres de chocolate em pó

Massa:
Em um liquidificador coloque os ovos, o
chocolate em pó, a manteiga, a farinha
de trigo,
o açúcar e o leite, depois bata por cinco
minutos.
Adicione o fermento e misture
calmamente com uma espátula.
Unte uma forma e coloque toda a massa
sobre ela. Leve para assar em forno
médio
(180 ºC) preaquecido por cerca de 40
minutos.

Dica da Robin:
Use uma forma alta, porque o bolo
cresce bastante ou coloque apenas 1
colher de
fermento.

Calda:
Aqueça a manteiga em uma panela e
misture o chocolate em pó até que esteja
homogêneo.
Acrescente o creme de leite e misture
bem até obter uma consistência cremosa.
Desligue o fogo e acrescente o açúcar

Uma fatia combina perfeitamente com


beijos açucarados e filmes gostosos
Ingredientes
Massa:
1 xícara de farinha de trigo
1 gema batida
100 g de manteiga sem sal
2 colheres (sopa) de açúcar
1 colher (sopa) de fermento em pó

Recheio:
700 ml de leite
4 colheres de amido de milho
2 gemas peneiradas
1 e 1/2 lata de leite condensado

Cobertura:
Morangos lavados e cortados ao meio
1 gelatina de morango

Modo de Preparo:
Massa:
Coloque a farinha em um vasilhame,
faça um buraco no centro do pó e
coloque todos os outros ingredientes.
Depois disso, mexa até a massa ficar
homogênea e bem lisinha.
Forre a assadeira com a massa, como se
já fosse uma torta.
Coloque no forno por 20 minutos ou até
começar a ficar douradinha nos lados e
depois, reserve.
Recheio:
Mexa todos os ingredientes na panela
até o creme se soltar por completo,
ficará com um sabor delicioso e uma
aparência incrível.
Deixe esfriar e jogue tudo na assadeira
com a massa já assada.
Cobertura:
Coloque os morangos um ao lado do
outro, até que feche por completo de
morangos em cima
Gelatina:
Depois de feita, deixe-a gelar até ficar
na consistência de um creme, ainda não
completamente endurecida.
Nesse ponto, coloque a gelatina aos
poucos em cima da torta, deixando os
morangos completamente cobertos e por
fim, coloque novamente para gelar.

Essa torta é ideal para reunir os


amigos e juntos, comemorarem um
momento especial. Tem gostinho de
celebração.
SOLIDÃO
Recheio:
300gm Chocolate Nobre
100gm Creme de Leite
10ml de licor de uva
Para rechear suas trufas, você deve
primeiro derreter o chocolate — usei o
belga, mas pode ser qualquer outro
chocolate nobre — utilizando o banho-
maria.
Faça em seguida a temperagem, que
consiste em aquecer o alimento e depois
resfriá-lo, dando um choque térmico que
te dará um resultado final maravilhoso.
O processo pode ser feito de três
formas, mas a indicada aqui hoje, é a
mais simples:
Divida seu chocolate em 3 partes e
derreta 2 delas no fogo, depois meça a
temperatura com um termômetro
culinário e observe se está acima de 37°
graus e abaixo de 42°, pois se passar
disso ele queima e aí não há mais o que
ser feito.
Temperatura correta? Agora, desligando
o fogo, coloque a parte que havia
reservado e misture até amornar sua
mistura.
Prontinho!
Agora pode colocar o CREME DE
LEITE.
Adicione o licor de uva, mexendo
sempre até incorporar.
Leve para gelar por oito horas, em um
recipiente vedado.
Passado o tempo, retire da geladeira e
faça bolinhas.

Cobertura:
Derreta em banho-maria, uma cobertura
de chocolate de qualidade, assim não
precisará fazer o processo de
temperagem outra vez.
Banhe as bolinhas na calda e coloque-as
sobre papel manteiga para não
grudarem.
Depois disso, pode deixar secar.

Para o chocolate reflexivo ANGÚSTIA


basta modificar o recheio.
Faça o processo normalmente, mas não
adicione a bebida.
Ao invés disso, em uma vasilha
pequena, coloque o coco ralado e pingue
algumas gotas de limão.
Depois misture no lugar do licor usado
no recheio anterior.

Para o chocolate reflexivo TRISTEZA,


faça um mousse bem durinho de
morango.
Utilizando:
1 LT Creme de leite
1 Lt Leite condensado
½ Bandeja de morango
Use forminhas, as quais você irá forrar
com a cobertura derretida e rechear com
o mousse, cobrindo em seguida e
aguardando que sequem.

Já se quiser fazer o ALEGRIA, faça


como no Tristeza, mas substitua os
morangos pelo suco de 1 maracujá.

Se sua pedida for PAIXÃO...


Faça o mousse com os mesmos
ingredientes acima, mas no lugar dos
morangos, coloque ½ xícara de chá de
pimenta rosa.
Garanto que ficam apaixonantes!

Ah, o AMOR! Se for o seu escolhido,


poderá fazer da seguinte maneira.
1 Lt de creme de leite
1 Lt de leite condensado

Mas ao invés de bater, leve ao fogo e


junte a mistura, algumas cerejas picadas.
Espere engrossar ao ponto de brigadeiro
e depois, leve à geladeira até esfriar.
Recheie seus bombons com o creme e
viva o amor!
Vamos começar como se deve!
Agradecendo primeiro a Deus, por me
dar a oportunidade de trabalhar com o
que mais amo no mundo, que são os
livros, por me abençoar com inspiração
e me dar vocês, leitoras (es)!
Em segundo lugar, agradeço a
quem chegou até aqui. Eu não seria
escritora, se vocês não fossem leitoras
(es). Por isso, agradeço muito por me
darem uma chance, acompanharem meu
trabalho e se apaixonarem pelos
personagens tanto quanto eu, em
especial as Ladies, que estão comigo
desde o começo e permanecem em nosso
grupo no whatsapp.
Agradeço a minha família, pelo
apoio e incentivo. Meu esposo, Gustavo
e meu pai, Aloísio, em especial. Mas
também aos demais que sempre me
ajudam no que preciso.
Um agradecimento especial para
minha assessora, Polliana Teixeira, pelo
empenho, por acreditar em mim e fazer
todo o possível para que minhas
histórias aconteçam.
Letti Oliver, meu anjo de luz que
já tem lugar cativo aqui. Pelos
conselhos, conversas madrugada
adentro, por ouvir minhas lamúrias, pela
diagramação maravilhosa e banners
incríveis.
Di Marroquim e Rômulo
Bartalini: agradeço por cuidarem do
meu amorzinho, lendo e relendo,
revisando e apontando coisas que
podiam ser melhoradas. A lapidação de
vocês foi fantástica.
Washington Rodrigues, meu
designer particular haha. Muito obrigada
pelo material de divulgação lindo que
preparou para esse livro, e mais
importante, por essa lindeza de capa.
Você é demais, eu sabia que iria arrasar!
Ju Barbosa, agradeço pelas
dicas de culinária, as receitas e os
toques, nossa Robin se tornou uma
confeiteira de primeira, graças a sua
ajuda.
Jéssica O. Carvalho. Dra°
Jéssica, que sempre me socorre quando
temos um personagem com problemas
médicos, obrigada por me ajudar a
trazer vovó Rute de volta e a salvar
Bernardo da alergia ao amendoim. Ufa!
Agradeço a todos os outros que
contribuíram com algum trabalho para
que este livro ficasse pronto: Sil Záfia e
Larissa Aragão, seus banners ficaram
lindos. E Olívia K., obrigada pelo
booktrailer mais maravilhoso que esse
Brasil já viu.
Quero também deixar registrado,
meu muito obrigada ao meu grupo de
parceiras, por vestirem literalmente o
avental e colocarem as mãos na massa.
Vocês são a melhor equipe que eu
poderia ter.
As meninas da minha campanha
de divulgação, pelo apoio de sempre.
Por serem incríveis e espalharem meus
livros por todo o país. Obrigada!
Sara Fidélis
Que bom, nos encontramos de
novo!
Como devem saber, meu nome é
Sara Fidélis. Tenho vinte e oito anos e
moro em Alfenas MG. Sou autora de
romances, contemporâneos e de época e
tenho vários livros lançados aqui na
plataforma e dois deles em formato
físico.
Se quiserem acompanhar meu
trabalho, conhecer mais sobre os
personagens e sobre os futuros projetos,
me acompanhem nas redes sociais.
Inclusive, estará rolando um
sorteio bem legal para os leitores deste
livro, comemorando o lançamento dele,
entre os dias 24/04/2020 a 24/05/2020.

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Sarafidelisautora@gmail.com
RITMO ENVOLVENTE – A
VIRGEM PROIBIDA (TRILOGIA
AMOR & RITMO – LIVRO 1)
Ashton Ray é o vocalista da
Dominium, uma das maiores bandas de
rock da atualidade e aproveita ao
máximo o que a vida de rockstar
oferece: festas, mulheres e brigas
também.
Em seu último excesso, Ash se
viu diante um problema maior, um
processo que pode destruir sua imagem
e a da banda.
Festas estão proibidas e
manchetes vetadas!
Julia Foster é uma mulher
determinada a ter o que deseja: uma
família e uma carreira de sucesso.
Grávida e trabalhando como
estagiária em uma grande firma de
advocacia, Julia vê as coisas saírem do
eixo ao ter que mudar sua vida para
vigiar o astro do rock arruaceiro e
auxiliar em sua defesa diante dos
tribunais.
Para vencer o caso ela precisará
mantê-lo na linha, porém, ao contrário
do que imagina, será muito mais
complicado controlar seus próprios
instintos.
Acompanhe a história desse
casal completamente oposto em meio a
muito rock, romance e bem... roupinhas
de bebê.
RITMO SENSUAL – A
VIRGEM PROIBIDA (TRILOGIA
AMOR & RITMO – LIVRO 2)
Josh Nicols é o baterista da
Dominium, mas apesar de todas as
loucuras advindas disso, é um homem
sensato e que pesa muito bem cada uma
de suas decisões.
Um passado doloroso, uma
família destruída...
Tudo isso apenas serviu de
material para moldar quem ele é e em
cada um dos momentos difíceis que
viveu, Ashton Ray, seu grande amigo,
esteve ao seu lado e a família dele se
tornou a sua própria.
Por isso, nada fica fácil quando
Josh começa a sentir-se atraído por
Anelyse Ray, a irmã virgem de seu
melhor amigo e a garota por quem
sempre jurou sentir apenas afeto
fraternal.
Mas, Anelyse o conhece como ninguém
e nada pode ser mais inevitável, que
uma mulher decidida.
O que fazer quando os dois lados
da balança têm o mesmo peso?
Quando a distinção do certo e do
errado, não é mais tão visível e o desejo
se torna mais forte que o senso de
lealdade?
Venha descobrir o amor com
Josh Nicols e seu Anjo impuro e
infernal.
O OGRO E A LOUCA –
TRILOGIA PAIXÕES
IMPROVÁVEIS (LIVRO 1)
Mathew Calston, o marquês de
Wheston vive recluso em sua mansão no
campo desde que acontecimentos em seu
passado o fizeram repensar a vida e
mudar completamente sua visão do
mundo e das pessoas.
A senhorita Nicole Smith, aceita
o cargo de governanta na mansão, porém
ela não esperava que houvesse tanto
trabalho para tão poucos criados.
Também não esperava conhecer
o patrão em circunstâncias impróprias
que o levassem a crer que ela era uma
louca, desvairada.
Mas foi o que aconteceu.
Agora, com a pior impressão
possível um do outro, eles terão que
aprender a conviver, superando a
aversão inicial e descobrindo um desejo
incontrolável que aumenta a cada
embate entre eles.
Será que a linda governanta
conseguirá colocar ordem, tanto na casa
quanto no coração desse marquês
turrão?
E ele, poderá manter seu juízo
diante dessa mulher que o tira do sério
com tantas loucuras?
Venha conhecer o marquês ogro
e sua governanta louca e se apaixonar
por este casal.
O HIGHLANDER E A
DEVASSA – TRILOGIA PAIXÕES
IMPROVÁVEIS (LIVRO 2)
A senhorita Juliette Smith
sempre se orgulhou de seguir seus
instintos e desejos.
Convencida de que nunca se
casará ou poderá desfrutar dos prazeres
dentro da proteção de um matrimônio,
ela decide conhecê-los com ninguém
menos que Lorde Gregor MacRae, o
libertino mais viril e belo no qual já pôs
os olhos.
Porém, contrariando as
expectativas da moça, um belo dote lhe
é cedido e junto com ele a oportunidade
de se casar.
Agora ela precisará atrair a
atenção de um cavalheiro disposto a se
comprometer, o que pode não ser nada
fácil quando se tem a lembrança de
olhos azuis e selvagens para assombrá-
la.
Lorde Gregor é imprudente e
adora ostentar suas conquistas
amorosas, mas não essa. Se possível
levará o segredo para o túmulo para não
perder os amigos que tanto estima.
Mas então, ela decide se casar e
a mera ideia de que todo aquele fogo
indomado estará nos braços de outro
homem faz com que o guerreiro
highlander que habita nele, desperte.
A senhorita Juliette Smith
sempre se orgulhou de seguir seus
instintos e desejos.
Convencida de que nunca se
casará ou poderá desfrutar dos prazeres
dentro da proteção de um matrimônio,
ela decide conhecê-los com ninguém
menos que Lorde Gregor MacRae, o
libertino mais viril e belo no qual já pôs
os olhos.
Porém, contrariando as
expectativas da moça, um belo dote lhe
é cedido e junto com ele a oportunidade
de se casar.
Agora ela precisará atrair a
atenção de um cavalheiro disposto a se
comprometer, o que pode não ser nada
fácil quando se tem a lembrança de
olhos azuis e selvagens para assombrá-
la.
Lorde Gregor é imprudente e
adora ostentar suas conquistas
amorosas, mas não essa. Se possível
levará o segredo para o túmulo para não
perder os amigos que tanto estima.
Mas então, ela decide se casar e
a mera ideia de que todo aquele fogo
indomado estará nos braços de outro
homem faz com que o guerreiro
highlander que habita nele, desperte.
O DUQUE E A FUGITIVA –
TRILOGIA PAIXÕES
IMPROVÁVEIS (LIVRO 3)
Maryelen Lorena Somerset, filha
do distinto duque de Beaufort, cresceu
sob a mão rígida de seus progenitores e
foi preparada desde o berço para um
casamento político que tornaria sua
família ainda mais poderosa.
Sebastian Cavendish, o filho
mais novo do duque de Devonshire
surge em sua vida e ao vê-lo Maryelen
sente que encontrou alguém especial.
Em meio ao florescer dos
sentimentos, descobrem que uma união
entre os dois não é bem quista pela
família da jovem e o destino com suas
intempéries os separa em uma sucessão
de tragédias.
Agora, anos depois, Sebastian é
o novo duque de Devonshire e um
reencontro inesperado o coloca frente a
frente com a moça que acreditava estar
morta ou algo ainda pior.
As circunstâncias não são
adequadas e a mulher que agora atende
pelo nome de Helen não é mais a menina
que um dia conheceu, mas uma fugitiva
que forjara a própria morte
impiedosamente.
Após um acidente que poderia
ter fatalmente lhe tirado a vida,
Sebastian tem um novo objetivo, um
motivo para persistir: encontrá-la e
descobrir quais outros segredos oculta e
por quais razões o deixou.

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