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Hugo Faccion Guimarães*1

Orientador: Euclides de Freitas Couto

REALIDADE ESCANCARADA: UMA ANÁLISE BOURDIEUSIANA DOS


QUADRINHOS ÁCIDOS

RESUMO: Os quadrinhos são uma forma divertida de passar uma mensagem e essa
mensagem pode ser interpretada de diversas maneiras. Os Quadrinhos Ácidos são uma
fonte instigante de nos alertar para os problemas da realidade em que vivemos. Com uma
linguagem simples e direta, o autor tenta fazer uma crítica social de diversos temas como:
racismo, machismo, redes sociais, etc. O artigo pretende dar conta de alguns desses
quadrinhos e partindo de Pierre Bourdieu, fazer uma análise dessa realidade representada
nos quadrinhos.

PALAVRAS-CHAVE: Quadrinhos, racismo, machismo, Bourdieu.

1
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São João del Rei - UFSJ
PROVOCANDO...
Atual, certeiro e para lá de ácido, Pedro Leite consegue unir boas críticas a traços
agradáveis, impulsionando a reflexão em nossas timelines. Como ele mesmo afirma: “Estes
não são quadrinhos para quem se ofende facilmente, extremistas políticos, fanáticos
religiosos ou fãs do Big Brother. São quadrinhos para pessoas que sabem rir de si mesmas e
entendem que uma crítica nem sempre precisa ser uma coisa chata”.2
A arte sequencial tem sido difundida a muito tempo em nossa cultura, sua
linguagem é um fator determinante para o sucesso dessa arte. Como qualquer outra arte, os
quadrinhos vêm se adaptando ao passar do tempo, deixando de lado seu caráter subjetivo e
passando a ser mais incisivo em suas críticas e reflexões. Para isso trataremos de dois eixos
temáticos trabalhados por Pedro Leite dos Quadrinhos Ácidos: racismo estrutural e
machismo.
Ao adentramos e analisarmos a sociedade brasileira, conseguimos perceber
elementos estruturais de nossa cultura. Esses elementos podem ser percebidos com um
olhar crítico, mas não é tão simples. O machismo por exemplo é uma herança de tempos
onde não havia Brasil, talvez nem dê para saber quando isso começou, mas o advento do
cristianismo e a ideia da criação servem de fundamentação para dominação masculina.
Bourdieu vai tratar essas fundamentações como esquemas que “naturalizam” o
poder de um sexo sobre o outro:
..esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram
como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das
variações e dos traços distintivos (por exemplo em matéria
corporal) que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo
tempo que as "naturalizam", inscrevendo-as em um sistema de
diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que
as previsões que elas engendram são incessantemente
confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo por todos os ciclos
biológicos e cósmicos. (BOURDIEU, 2012. p.16)

Ao partir dessa análise, conseguimos ferramentas para estudar o contexto atual e


suas relações de dominação. A mulher tem tido grandes vitórias durante décadas, mas isso
não significa que o machismo em seu aspecto mais profundo (dominação) tenha deixado de
existir, talvez tenha ganhado ainda mais impulso por se tratar de uma resistência ao
processo emancipatório da mulher.

2
https://www.hypeness.com.br/2014/09/quadrinhos-pra-la-de-acidos-fazem-reflexoes-sobre-a-sociedade/
Acesso: 07/12/2019.
Mary Del Priore na obra “História das Mulheres no Brasil”, vai demonstrar esse
aspecto da dominação por meio de mecanismos mais objetivos como a medicina:
Em Portugal, fisiologistas e médicos estudavam anatomia e
patologia tentando sobretudo, entender a natureza feminina. Eles
se perguntavam sobre os fins para os quais Deus teria criado a
mulher. A que princípios, indagavam, a natureza feminina
obedeceria? A medicina então praticada tinha por objetivo definir
uma normalidade que exprimisse o destino biológico da mulher.
(PRIORE, 2004)

Essas fundamentações dão a dominação masculina um aspecto de legitimidade e


criam raízes que enclausuram as mulheres em diversos sentidos da vida social. Ao abordar
esse tema, coloquemos então o primeiro quadrinho.

O primeiro fator de machismo explicito em nossa sociedade retratados nos


quadrinhos é o de estereotipização da mulher. É um elemento fundamental da dominação
masculina, ela cria um ponto diacrítico onde a tensão é gerada, forçando as mulheres a se
identificarem com certos padrões e desprezarem outros. Ou seja, se cria um padrão de
feminilidade, pautado em costumes muitas vezes religiosos de legitimação do poder
patriarcal, recebendo ainda mais legitimidade por parte de campos científicos. Uma vez
enquadrada, as mulheres se tornam parte da estrutura e delas se espera que cumpram seu
papel na reprodução dessa socialmente criada “norma”.
A divisão entre os sexos parece estar "na ordem das coisas",
como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a
ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em
estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes
são todas "sexuadas"), em todo o mundo social e, em estado
incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando
como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de
ação. (BOURDIEU, 2012. p.17)

O habitus é exatamente a reprodução da estrutura onde fomos criados por meio da


apropriação em sua forma mais basilar, a família. Se temos como costume a família nos
moldes patriarcais, onde o pai é o provedor da casa e regulador dos corpos, a mulher como
corpo ali presente é coagida a reproduzir essa estrutura, internalizando em seu
subconsciente e reforçando essa dominação.
Essa dominação perpassa os limites do lar e uma vez que vivemos em sociedade ela
vem a ser disseminada. Essa dinâmica da dominação masculina passou por mutações
durante os séculos e com o capitalismo tomou novos rumos. Esses rumos serão apontados
no próximo quadrinho.
Novamente vemos a mulher no centro de toda padronização e estereotipização.
Agora sendo difundida juntamente com a ideia de consumo, uma forma de reforçar o papel
da mulher na sociedade e com ela todo fetichismo da mercadoria.
Dentro dessa padronização podemos perceber todo o universo masculino difundido
na ideia do consumo. Todos os quadrinhos demonstram aspectos dessa realidade vivida
pelas mulheres, realidade que até mesmo o consumo feminino é voltado para evidenciar a
dominação masculina. Essa padronização foi amplamente difundida com a urbanização da
sociedade brasileira como vai pontuar Maria Ângela D’Incao:
...a ideia de intimidade se ampliava e a família, em especial a
mulher, submetia-se à avaliação e opinião dos “outros”. A
mulher de elite passou a marcar presença em cafés, bailes,
teatros e certos acontecimentos da vida social. Se agora era mais
livre - “a convivência social dá maior liberalidade às emoções”,
não só o marido ou o pai vigiavam seus passos, sua conduta era
também submetida aos olhares atentos da sociedade. Essas
mulheres tiveram de aprender a comportar-se em público, a
conviver de maneira educada.

Toda dinâmica que envolvia a mulher nessa “nova civilidade” era permeada por
uma violência simbólica brutal, onde a mulher só teria sua “liberdade” do confinamento
familiar, se soubesse “comportar-se” em público. Ou seja, a dominação masculina age de
forma tão desonesta, que barganha sobre a liberdade dos corpos das mulheres e atribuem a
essa barganha um caráter quase de “benevolência”.
Todas as áreas da ação social, sem exceção, mostram-se profundamente
influenciadas por complexos de dominação (WEBER, 2004. p.187). A dominação nas
relações sociais são mecanismos de poder que operam pela ótica dos “vencedores”, ou seja,
aqueles que diante dessas relações sociais são de alguma maneira dominados, são
“derrotados”. Mas essa ótica de vencedores e derrotados não é uma simples disputa por
poder onde na linha de saída todos estavam em igualdade, mas um resultado de séculos de
espoliação, segregação racial e sexual.
O resultado dessa espoliação e segregação nos trouxe até aqui. Com isso passemos
ao outro tema abordado pelos Quadrinhos Ácidos, racismo. O racismo é estrutural em nossa
cultura, sinal de que as raízes dessa cultura tem laços escravocratas firmemente fincados,
fazendo com que essa discussão seja varrida para debaixo do tapete social e tornando a luta
por respeito ainda mais árdua pela negritude brasileira.
O nosso passado reflete o nosso presente e vice-versa. Uma cultura de miscigenação
onde o negro foi introduzido como mão de obra escrava na sociedade, onde era um mero
produto. Essa visão torna ainda mais difícil a superação desse passado e somando isso a
vivencia direta com o negro, cria-se o ambiente propicio para a disseminação de um
racismo velado, onde o negro é vítima dos estigmas e da falta de respeito.
...“raça” é quase um enredo, um palco para debates de ordem
diversa. Se no exterior made in Brazil é sinônimo da reprodução
de nossos exóticos produtos culturais mestiços, dentro do país o
tema é quase um tabu. A não ser de maneira jocosa ou mais
descomprometida, até bem pouco tempo, quase não se tratava da
questão: livros não despertam interesse, filmes ou exposições
passam quase despercebidos. A situação aparece de forma
estabilizada e naturalizada, como se as posições sociais desiguais
fossem quase um desígnio da natureza, e atitudes racistas,
minoritárias e excepcionais: na ausência de uma política
discriminatória oficial, estamos envoltos no país de uma “boa
consciência”, que nega o preconceito ou o reconhece como mais
brando. (SCHWARCZ, 2012)

A autora demonstra bem o problema, uma naturalização do racismo assim como do


machismo, colocando ambos na ordem das coisas, uma normalização dos nossos
preconceitos.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre, 1930-2002. A dominação masculina / Pierre Kühner. - 11° ed. – Rio
de Janeiro Bourdieu tradução Maria Helena. Bertrand Brasil, 2012.
DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colônia: o corpo feminino. In: DEL PRIORE,
Mary (org.); História das mulheres no Brasil. 7. ed. – São Paulo: Contexto, 2004.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary (org.);
História das mulheres no Brasil. 7. ed. – São Paulo: Contexto, 2004.
SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro /
Jessé Souza. – Rio de Janeiro : LeYa, 2018.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na
sociabilidade brasileira / Lilia Moritz Schwarcz. — 1ª- ed. — São Paulo: Claro Enigma,
2012.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. vol.2 /
Max Weber; Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; Revisão técnica de
Gabriel Cohn - Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo, 2004.

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