Você está na página 1de 2

Quando aceitei o convite para fazer uma disciplina sobre Arte e Excrita – uma

escrita impossível, que ainda não se sabe bem o que é, talvez assim como nós
mesmos, por vezes objetos de investigação de nossa própria curiosidade – pensei
que conseguiria compreender melhor o estranho de nosso trabalho de analista.
Curiosamente, o primeiro encontro do qual participo me coloca em um lugar de
estranhamento. Sou chamado/interpelado a pensar sobre minha pesquisa.
Transexualidade: desconforto ou libertação? Meu corpo e minhas vivências não me
permitiriam responder a essa pergunta, mas a questão interessante sobre o lugar de
fala não pode ser a anulação de um discurso, a depender de quem o está
produzindo no processo enunciativo, e sim pensar sobre os efeitos de sentido que
emergem a partir da posição ocupada por cada sujeito no universo do discurso. É
possível dizer que um corpo, desde sempre inserido no universo do discurso, tem o
poder de questionar os limites da concepção binária, nos fazendo pensar sobre que
espaço é reservado para nós na sociedade? Na própria construção do processo de
subjetivação, seria o corpo a revolução ao nos ajudar a pensar a respeito das
normas de gênero, já tão ultrapassadas, mas que insistem em funcionar como um
sistema que nos obriga a acreditar que deve haver, obrigatoriamente, concordância
entre gênero, sexualidade e corpo? Escrever sobre isso não é tarefa simples. Não é
fácil expor a opacidade do texto, ou, como no caso da arte, a opacidade de outras
materialidades. O movimento de olhar cada vez mais e enxergar cada vez menos é
perturbador, mas perturbador no melhor dos sentidos. Talvez excrever seja
justamente isso: abraçar nossas afetações e incompletudes como constituintes do
nosso ser.

Excrever é, além de dar vazão a questões próximas e caras a nós mesmos,


um movimento de retorno e de furo. Furo, abertura, ruptura em nós mesmos, ao nos
depararmos com as complexidades e desafios que a vida nos obriga a enfrentar.
Retorno, porque é no espaço da excrita que se encontra a possibilidade de dizer o
que antes poderia ter sido dito, mas não foi, porque não era possível ou porque a
censura nos impelia a ficarmos calados. Escrita com x é, portanto, o impossível
atravessando a própria língua e o sujeito.
Escrever para ser livre talvez seja um dos traços mais especiais e
emblemáticos das autoras. Apesar das diferenças no modo como contam suas
histórias, por vezes com rupturas na construção sintática do texto, por vezes com
descontinuidades naquilo que compreendemos como escrita lógica, o que fica é o
convite à emancipação e à liberdade de poder manejar o espaço da escrita como
um lugar de possibilidades e provocações, contra o domínio masculino de um
sistema que impera e que, para poder funcionar, repousa sobre a exploração de
mulheres e de minorias sem direitos. A escrita feminina surge como uma resposta à
dominação cultural do homem, tão insistente em colocar mulheres em posição de
margem no mundo da literatura e também em outros eixos da sociedade. Traz para
a cena algo que inquieta a mim pessoalmente: o processo solitário, mas também
não completamente sozinho, da escrita. E ainda, sobre deixar de lado as
antecipações que criamos acerca do nosso próprio escrever, entendendo-se que,
apesar de a escrita exigir a força do nosso corpo, ela ainda pode nos salvar.

O indizível talvez seja a grande força propulsora da criação artística. Faz-se


arte porque há coisas que não se traduzem em palavras. Como sonhar uma
dissertação/tese?

Sonhar uma dissertação no susto abrupto de quando o sono e o sonho são


interrompidos? Sonhar uma dissertação no acordar, sob a forma de um desejo? Não
creio que perguntas tão emblemáticas e intimistas como essas possam ser
respondidas no meio do processo. Mas também não sei se me encontro na metade
de um processo que parece estar chegando ao fim. A sensação é aquela que
navega pelo corpo do analista como sangue vermelho que corre pelo corpo: o
movimento analítico não termina nunca. Sempre há o que se dizer. Sempre é
preciso que se diga alguma coisa, mas nunca qualquer coisa. Já nos alertava
Pêcheux a respeito da plurivocidade dos sentidos… E excrever mexeu comigo, me
afetou. Deixou a minha escrita como pedaços de um corpo, espalhado, mas que em
determinado ponto (talvez o ponto de fechamento do trabalho) se reúnem e formam
um corpo completo. "Completo" com as referidas aspas, com as marcas dos
encaixes, as rupturas da excrita como marcas simbólicas, no corpo e no texto,
produzindo sentidos em mim. Mudando a minha análise e me mudando porque
analiso.

Você também pode gostar