Você está na página 1de 4

LITERATURA, PARA QUÊ MESMO?!

Alckmar Santos

Literatura, para mim, é prazer! E quando digo “prazer”, significa que ela é, para mim,
objeto de desejo, ou seja, é aquilo que está sempre além de onde me ponho, de aonde
chego, de onde vejo. Como todo objeto de desejo, para que seja objeto de desejo, ele
está sempre mais adiante, pois, se o alcançasse, a posse anularia o desejo, o prazer
escorreria entre meus dedos e se perderia — areia que se mistura ao deserto sob meus
pés, para nunca mais ser reencontrada. Como todo gesto de desejo, meu desejo pela
Literatura nunca me permite chegar a uma posição definitiva. As imagens, as ideias, os
ritmos, os movimentos, as emoções que surpreendo em alguma obra literária que esteja
lendo, são sempre o preâmbulo de outras imagens, ideias, ritmos, movimentos,
emoções. Com a Literatura, sou um Sísifo feliz, o interminável do meu trabalho com ela
é que me garante estar sempre na posse de um prazer renovado, prazer que se
alimenta do desejo pelo que nunca estará comigo em definitivo, que está sempre ali,
enganosamente, ao alcance da mão. A Literatura me faz de bobo, ela finge que se deixa
tocar, para pôr-se à distância, rindo de mim que pensei que a dominava e me dei conta
de que toquei em mim mesmo, achando que era nela própria. É aí, então, que eu rio
com a Literatura e rio de mim, quando percebo que, pela enésima vez, fui logrado pelo
seu truque de sempre repetido. A Literatura não é um lugar para certezas definitivas,
para juízos preestabelecidos, para o medo de enganar-se. A precariedade das minhas
interpretações, dos sentidos que julgo entrever numa dada obra literária, não fazem
mais do que me mostrar minha própria precariedade. A provisoriedade das minhas
leituras me faz encarar com menos medo a provisoriedade do meu corpo finito e da
minha existência limitada. A Literatura é egoísta apenas na aparência: certo!, ela foge à
minha posse, se coloca sempre longe de mim, mas me concede a graça de vislumbrar
uma infinitude de sentidos. Eu já dizia acima: a Literatura é hostil às certezas. Melhor e
mais correto é dizer: as certezas são hostis à Literatura! Dogmas, ideologias, pré-
conceitos, tudo isso transforma em pó a riqueza incalculável que ela pode nos mostrar.

Tenho visto, nas últimas décadas, um empobrecimento melancólico dos estudos


literários. Há colegas na crítica e na teoria literária que se têm se esmerado em arrancar
tudo do nada. Pareço hermético e devo mesmo estar sendo! Convém explicar-me
melhor. Há muito que se tem utilizado o método da facilidade, do mínimo esforço, do
comodismo e da acomodação. É menos trabalhoso, bem menos!, chegar a uma obra
literária com interpretações já prontas, análises já concluídas, lições já preparadas a dar
ao nosso leitor. Muitos de nós fazem crítica literária como se contassem uma fábula ou
uma história exemplar, apenas para dar conta de uma moral prévia que deveria ser
descoberta somente no final. Essa gente não matou apenas as dúvidas, liquidou também
a alegria da descoberta. Suzi Sperber foi a pessoa que me ensinou a dar os primeiros
passos na vida literária universitária. Recém-saído de um curso de engenharia, eu era
um poço de certezas, rodeado, felizmente, de muitas dúvidas. As dúvidas, creio, me
salvaram de ser um arrogante dogmático. Suzi uma vez me disse que a Literatura era o
risco da liberdade. Fiquei com isso na cabeça esse tempo todo, nunca conseguindo (nem
querendo!) eliminar o enigmático da expressão meio proverbial que eu não sei de onde
ela tirou. Há colegas, então, que se têm dedicado a sufocar a própria liberdade e, não
contentes com isso, esforçam-se por limitar a liberdade alheia. Querem impor seu
método de trabalho com o literário que, de fato, é a negação de qualquer método.

Como fazem? É uma simplicidade aterradora. Não há mais necessidade de avaliar a


qualidade intrínseca de qualquer obra literária. Qualquer valor que se associe a elas é
extrínseco, vem de fora! Já vem pronto. Com isso, um romance ou um poema deixam de
ser objeto de discussão, de dúvida, de polêmica. Não se pode mais conversar sobre as
dúvidas que temos. Parece que passou a ser proibido discutir, por exemplo, com alunos
de ensino médio, se Capitu traiu ou não; o ponto de partida tem de ser a tirania exercida
pela classe de pessoa a que pertence Bentinho. Desses estudantes, tira-se o prazer das
descobertas que fazem quando os deixamos ir atrás das dúvidas. O personagem virou
cidadão empírico e sua existência ficcional é solenemente ignorada. É claro que isso
facilita enormemente o trabalho: entrar a ler um livro com conclusões já prontas evita o
incômodo com as dúvidas, afasta a perturbação trazida por nossas limitações como
leitores. Assim, para muitos colegas, o valor de uma obra está nas especificidades de
quem o escreveu, não nas particularidades construídas pela linguagem. Se o escritor
pertence a uma classe de pessoa que interessa ao crítico, a obra já passa a merecer
todos os elogios. E, se ela tem defeitos, esses são relidos em grade favorável e...
deixam de ser defeitos. Diante disso, me pergunto: para que dar-se o trabalho de ler?
Basta analisar o escritor: se ele atende aos critérios de interesse e de valoração do
crítico, já está analisada a obra! Aliás, parece que, com esse “método”, se atualizou a
boutade oswaldiana: em vez do “Não li e não gostei!”, chegou-se ao “Não li e gostei!”.
De fato, muitas críticas literárias que tenho visto têm-me parecido uma tentativa de
disfarçar que a obra não foi lida verdadeiramente. Outra pergunta me surge: para que
perdermos tempo em estudar teoria literária? Se o valor da obra está nos critérios
extrínsecos ligados ao escritor, por que gastarmos tempo e queimarmos pestanas com
algo que vai nos afastar dos critérios preestabelecidos? Estes já têm prontas respostas
para todas as questões, por que correr o risco da dúvida e da incerteza?! A Literatura é o
risco da liberdade, me disse a Suzi. Hoje tenho sentido que a literatura virou uma
liberdade em risco.

Fiquei me perguntando para quê, para quem escrevo isto! Para mim, evidentemente,
numa mistura de reflexão com desabafo, temperada de incômodos que venho sentindo
há bastante tempo. Seria para os colegas que critico aqui? Pode até ser, se eles não
empregarem comigo a mesma estratégia com que leem obras literárias, isto é, se não
decidirem de antemão o que eu sou e o que digo, transformando nossa possível
conversa em veredicto definitivo, sem mesmo prestar atenção honestamente ao que
escrevo aqui. Resumindo, então, para poder ir um pouco mais adiante, digo a vocês que
este escrito é mais um capítulo da luta que sempre busquei empreender contra o
dogmatismo, essa hipérbole perversa da certeza. Há dogmatismo nos críticos que se
põem diante de uma obra literária com análise, interpretação, explicação e conclusão já
prontas. Pergunto: isso é ler de verdade? Isso não é fazer do texto um mero pretexto
para confirmar o que já se sabe e que já se concluiu?! Em última análise, isso nem
mesmo é ler. Relembro Barthes: quem se impede de reler, obriga-se a ler em toda
parte, o tempo todo, a mesma história. Há também dogmatismo, quando se desprezam
os problemas que busco expressar aqui, tachando-as de insidiosos, querendo ler neles
falhas e pecados meus, a serem apontados com dedo acusador. Como fossem falhas e
pecados de quem pensou muito para falar, não falhas e pecados de quem fala muito
sem pensar. Então, só posso concluir que estou escrevendo para quem se permite a
autoironia de duvidar do que fez ontem, do que pensou há pouco. De quem se arrisca a
ler, de verdade, a obra literária que tem diante de si, de quem, sobretudo!, não tem
medo de ler criticamente sua própria leitura.

Millôr Fernandes dizia que livre-pensar é só pensar, a recusa em pensar de verdade é


que leva ao dogmatismo, ao imobilismo, aos equívocos que apontei aqui. Ora,
certamente alguns colegas, ao verem quem cito, Millôr Fernandes!, já nem se darão ao
trabalho de refletir sobre o que digo, afinal ele não está entre a classe de escritores que
despertam os interesses ideológicos em moda. Certamente, pensar dá trabalho, é um
exercício penoso e, por vezes, dolorido. Assim, para poupar dores a várias pessoas, não
escrevo para quem não quer pensar, não quer ter dúvidas. Gente que prefere uma
certeza já pronta e cômoda ao exercício do livre-pensar.

O mais triste de toda essa história é que hesitei durante muito tempo em escrever isso
que escrevi. Não estou absolutamente certo sobre nem mesmo uma letra que coloquei
nos parágrafos acima, mas quis expressar meus incômodos, querendo que eles sejam
corrigidos, se cometi equívocos, ou que sejam acolhidos, por quem os considerar
legítimos. O mais triste de toda essa história, é que muitos de nós têm tido receio de
expressar esses incômodos, pela reação inquisitorial que se tem levantado.

Você também pode gostar