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Capítulo 2 — Produção e crítica literária

• A arte de julgar
• Métodos de análise
• Sociocrítica
• Semiótica
• Crônica
• Conto
• Como produzir uma autobiografia?
"Para sermos capazes de ler sentimentos humanos descritos
em linguagem humana precisamos ler como seres humanos
— e fazê-lo plenamente. Somos mais do que ideologia, sejam
quais forem as nossas convicções."
Harold Bloom, crítico literário estadunidense.

A arte de julgar
CONVENHAMOS, ninguém gosta de receber uma crítica, mesmo os mais
cordiais. Isso porque essa palavra carrega uma imagem negativa. Criticar tem
aparência de censurar, apontar imperfeições, ir contra algo ou alguém. Mas esse
sentido antagônico não tem nada a ver com o significado original do termo.
Que tal irmos às raízes do vocábulo para entendê-lo?
Do latim, adjetivo criticus: arte de apreciar, arte de julgar.
Viu só como a palavra mudou de cara? De um significado pessimista à
semântica artística. Na literatura, julgar não é (ou não deveria ser) censurar;
tampouco se colocar como inimigo de outrem. Ao contrário, é apreciar
multiplamente e criteriosamente um texto, mostrando outra visão sobre ele.
O crítico literário é um arqueólogo das palavras; que escava o solo verbal a
fim de encontrar e avaliar "peças" textuais que outros leitores não conseguem
avaliar por falta de habilidades ou conhecimentos técnicos.
Por isso, esse analista deve ser criterioso, sempre embasando suas correções em
conhecimentos específicos e objetivos, não subjetivos. Quem pretende analisar
um texto não pode deixar, mesmo sendo amador, que sua subjetividade ou gosto
guie completamente seus paladares textuais na hora da observação literária,
como disse um dos maiores críticos literários do Brasil:
"O estudioso da literatura ou mesmo um amador não pode
dispensar o conhecimento adequado dos aspectos externos,
porque não lhe basta sentir e gostar de um texto."
Antonio Candido
Claro, não estou dizendo que uma avaliação será 100% isenta das nossas
emoções ou ideologias, por mais neutro que seja um avaliador. Contudo, para
enxergar novas possibilidades, experimentar outros sabores literários ou sentir
novas sensações textuais é necessário distanciar-se um pouco de si, para lançar
um novo olhar sobre o texto. A imparcialidade e a justiça prestigiam qualquer
atividade humana, seja na literatura ou na área de atuação de quem me lê agora.
Mas a tarefa de quem avalia não é fácil. O analisador é frequentemente
incompreendido, e, como dito no início deste capítulo, muitas vezes o crítico
literário é visto como um inimigo pelo escritor avaliado. Entretanto, quem se
propõe a julgar qualquer coisa enfrentará essa barreira pessoal e social. E aquele
que não ceder à pressão de ter que agradar o desagradável — conseguirá
desenvolver e dar utilidade à sua função. Afrânio Coutinho, um renomado
crítico do nosso país, falou a respeito disso:

Quem quer que se arrogue a função de dizer coisas


experimentará logo a reação. Conhecerá os olhares de
constrangimento, os sussurros significativos, os risinhos de
mofa, os silêncios reticenciosos, por vezes as reações
desabridas, os castigos exemplares, e as advertências
caridosas. Verá relações esfriarem, sentirá a boicotagem
silenciosa ou pública, viverá sempre à margem.
Além de apontar falhas estéticas ou estruturais no texto, o analista precisa ser
sensível para compreender a letra por trás da letra; entender o não escrito, ver o
não visto e ouvir o não dito, revelando as inadequações de tal forma que não
desestimule o escritor na estrada da escrita.
Longe disso, o crítico deve mostrar formas para melhorar, não parar. Ele é uma
espécie de guia literário, que facilita o entendimento de uma obra para os
leitores e para o próprio escritor, sugerindo novos caminhos para o autor trilhar
e obter sucesso nas próximas obras.
E mesmo as críticas mais incisivas, a meu ver, devem ser acompanhadas com
consideráveis doses de estímulos. Afinal, a Crítica Literária — como ramo fino
das ciências humanas — não pode ser desumana, hostil ou pedante. Para endossar
essa ideia, cito Alceu Amoroso Lima, grande nome da crítica brasileira:

Por vezes, ele abusa. [...] Gosta de falar com o dedo em riste e
toma a palavra, sozinho, nas reuniões, fazendo de qualquer
auditório alheio uma aula própria. Os que assim procedem,
esquecem que, quanto mais o homem sabe, mais sabe que não
sabe...
Neste capítulo, você obterá o conhecimento básico para produzir e analisar
crônicas, contos e autobiografia.
Antes, porém, no próximo tópico, vamos estudar um pouquinho mais sobre as
diversas formas de ver um texto do ponto de vista analítico, isto é, algumas
correntes de críticas literárias existentes. Vamos lá?
Métodos de Análise
DESDE os tempos de Platão até os dias de hoje, as abordagens teóricas da
crítica literária se multiplicaram. Há vários métodos de pensar e analisar um
texto. De acordo com o livro "Crítica literária", alguns são:
Crítica da genética.
Crítica temática.
Crítica da consciência.
Crítica do imaginário.
Fenomenologia.
A teoria feminista.
A teoria pós-colonial.
Formalismo.
Estilística.
Estética da Recepção.
O discurso das minorias.
Psicanalítica.
Determinista.
Impressionista.
Crítica semiótica.
Sociocrítica.
Etc.
Você já conhecia essas linhas de análise literária? Percebeu como pode ser
ampla a visão de um crítico sobre um texto? Já pensou no especialista que
estuda cada uma dessas correntes, memorizando-as e aplicando-as ao seu
minucio trabalho de analisador? Esse ofício, muitas vezes malvisto, deve ser
árduo, não é mesmo?

Mas fique tranquilo. Não o submeteremos a tal exaustão. Não detalharemos


cada linha da crítica. Ficaria inviável e até cansativo explicar cada uma delas
aqui. Nosso objetivo é basilar, isto é, passar as bases — de maneira prática e
clara — para você, estudante, analisar e criar seus próprios textos.
No tópico a seguir, falaremos brevemente sobre a semiótica, uma das técnicas
dos críticos e grandes escritores.
Semiótica
VOCÊ é cercado pela semiótica, sabia? Sem ela, o seu despertador não o faria
levantar pela manhã. No trabalho ou na faculdade, você não desenvolveria suas
atividades sem o auxílio dela. E as conversas nas redes socias? Seria a Torre de
Babel sem a semiótica! Ninguém entenderia ninguém.
Mas o que é semiótica?
Basicamente, ela é a ciência dos significados das coisas — da comunicação —
verbal e não verbal. Ela estuda o sentido de tudo que tem sentido para você. Por
exemplo, o barulho do seu despertador significa, em sua mente, que é hora de
acordar. Se o seu amigo contar um fato engraçado por mensagem instantânea, e
você der gargalhadas, do outro lado da tela, basta enviar-lhe um emoji
sorridente, e ele entenderá sua reação. Até aqui, a semiótica representou a
linguagem não verbal, isto é, elementos sonoros e visuais que produziram
sentidos em você.
Já no trabalho ou na faculdade, por exemplo, a escrita, a oralidade, os gestos, a
entonação, o silêncio, o olhar, o andar e até o sorriso podem passar mensagens
àqueles que o cercam, criando um ambiente amistoso ou não; facilitando ou
prejudicando a sua comunicação e produtividade profissional e acadêmica.
Por causa da multiplicidade e interdisciplinaridade da semiótica, pode parecer
difícil entender seu conceito. Como disse Lucia Santaella, uma das principais
intelectuais de Semiótica do país, esse campo de estudo é uma mistura de tudo
que possui representatividade e sentido para nós: a música, a dança, cerimônias
religiosas, pintura, mímica, teatro, circo, desenho, escultura, fotografia, vídeo,
cinema, mapas, gráficos, emojis, linguagem profissional ou tecnológica,
comunicação escrita ou oral, a semiótica está em tudo!
Na literatura, ela é representada pelas palavras, orações, parágrafos ou a forma
como um escritor organiza as sentenças. Textos literários são carregados de
polissemia, ou seja, vários significados. A letra não é vista de maneira tão literal
às vezes.
Graças à semiótica, é possível fazer trocadilhos, usar determinadas expressões
incomuns e até romper com certas regras gramaticais a fim de provocar
sentidos específicos no leitor. Como é o caso desta crônica de Machado de
Assis:
Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que
frequentam bondes. O desenvolvimento que tem tido entre
nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático,
exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos
passageiros.
art. I Dos encatarroados
Os encatarroados podem entrar nos bondes com a condição
de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no
caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que
não permita esta limitação, os encatarroados têm dois
alvitres: ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na
cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.
[...]
Art. II Da posição das pernas
As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os
passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente
as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros
lugares. [...]
Art. V Dos amoladores
Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus
negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro
indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se
ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo,
perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de
pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés. [...]
Crônica de 1883, Bala de Estalo.
Semioticamente falando, Machado usa uma fina e inteligente ironia para falar
do infortúnio de todo dia: o comportamento dos passageiros no transporte
coletivo. Mas, se alguém lê o texto friamente, rapidamente ou só procurando
defeitos gramaticais ou estilísticos verá um escritor intolerante zombando das
pessoas. Contudo, o nosso escritor era polido, didático e engraçado até quando
ensinava (ou alfinetava) a sociedade.
Ele usou recursos linguísticos que aproximam e transportam os leitores para um
bonde do século XIX. (Leia a crônica completa aqui.). Machado se coloca,
comicamente, como legislador social, dizendo que apresentará umas "regras
para uso dos que frequentam bondes". Com uma escrita próxima, leve e
confessional, própria de um cronista, ele cria proximidade com o leitor, como
quem fala com um amigo.
Se você se debruçar sobre esse trecho de Machado, encontrará mais palavras,
expressões e ideias semânticas. Por exemplo, para os gripados ou com tosses
prolongadas há duas escolhas "ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-
se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue." Claro,
Machado não está mandando os adoentados irem para o abismo, mas, sim, para
se tratarem "ou meterem-se na cama", e não andarem por aí. Tudo é questão de
captar o sentido da coisa.
Há uma série de elementos semióticos que despertam em nós múltiplos
significados durante a leitura desta crônica (principalmente porque a situação
nos transportes coletivos antigamente não é muito diferente de hoje...).
Além de ver o texto do ponto de vista técnico, o crítico literário ou analista
textual procura descobrir quais os recursos usados pelo escritor para dialogar
com a sociedade através do seu texto.
Sem a semiótica, pouco adiantará escrever um texto gramaticalmente correto e
linguisticamente perfeito se ele não despertar reações do leitor, isto é, se não
for significativo para ele. De que servem palavras lindas e eruditas, mas
ininteligíveis?
Dissemos isso no curso de Escrita Criativa 1, a importância de escrever para ser
entendido, não apenas exibido. Lembra quando estudamos a respeito do público
leitor? O escritor precisa avaliar quem serão os leitores dos seus textos e como
os lerão (nos blogs, no papel impresso, na timiline das redes sociais), para
escolher as palavras mais claras, que conquistem que lê.
Para isso, use e abuse da semiótica. Fale, dentro dos assuntos que domina e
gosta, de coisas significativas para o leitorado. Explicamos isso na aula
anterior, de emocionar as pessoas com fatos e sentimentos inteligentes, falando
à razão e à vida real de quem lê. Deu para entender a importância da semiótica?
Agora, vamos aprender um pouco sobre a crônica, um texto hibrido, que transita
entre literatura e jornalismo, entre as páginas impressas e as redes sociais.
Crônica
SE não fossem as crônicas registradas no Egito antigo, eu diria que a crônica é
um gênero brasileiro. Espia só: ela se adapta a tudo (jornal, livro, blog, rede
social, rádio, televisão...), tem uma dose considerável de humor, fala de todos
assuntos, transita em qualquer área do conhecimento e é tão escorregadia que
ninguém consegue classificá-la. Ou seja, é um texto mestiço — livre, leve e
solto.
Mas engana-se quem pensa que a crônica, por ser um gênero flexível, é fácil de
escrever. Ao contrário, é necessário conhecimento, técnica e muita prática para
redigir um texto tão versátil e, ao mesmo tempo, curto e original. A respeito
dessa dificuldade, leia a opinião de José de Alencar:

Obrigar um homem e percorrer todos os acontecimentos, a


passar do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer às
misérias e chagas da sociedade; e isto com a mesma graça,
finura e delicadeza. [...] O poeta glosa o mote, que lhe dão, o
músico fantasia sobre um tema favorito, o escritor adota um
título para seu livro ou artigo. Somente o folhetinista
(cronista) é que há de sair fora da regra, e ser uma espécie de
remédio para todos os males.
E o que Machado de Assis pensava sobre isso?
O folhetinista (cronista) é a fusão admirável do útil com o
fútil. [...], mas nem todos os dias são tecidos de ouro para
ele. Há os dias negros, adivinhem? o dia de escrever.
Passam-se séculos nas horas em que o cronista gasta à mesa
a construir sua obra (uma crônica). Ora, quando o espirito
está disposto, a coisa passa-se bem. Mas quando à falta de
assunto une-se a morbidez [...], é um suplício!
Os olhos negros que saboreiam essas páginas coruscantes de
lirismos e de imagens, mas sabem às vezes o que custa
escrevê-las.

No Brasil, a crônica que conhecemos hoje era chamada de folhetim no século


XIX. Tinham 2 tipos de folhetins nessa época: romance e variedade. As duas
espécies de textos eram publicadas nos rodapés dos jornais.
O folhetim-romance era uma história de ficção, com personagens, publicado em
capítulos separados em jornais. Muitos desses folhetins foram reunidos em
livros posteriormente e tornaram-se clássicos da nossa literatura, como "O
guarani", de José de Alencar e "O triste fim de Policarpo Quaresma", de Lima
Barreto.
Já o folhetim-variedade abordava todos os assuntos do país: política, artes,
problemas sociais, lutas de classes ou coisas corriqueiras, tudo em um texto a
fim de entreter o leitor. Era uma espécie de sedução verbal, ou seja, muitas
pessoas passaram e desenvolver o hábito da leitura através dos folhetins,
criando, assim, um público leitor no Brasil.
Também pudera! Com aqueles jornalistas, só não lia quem não sabia ler:
Machado de Assis, Olavo Bilac, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo e José de
Alencar foram alguns dos grandes cronistas do século XIX.
No próximo século, outros nomes enriqueceram a crônica brasileira, tornando
esse texto, que era efêmero, em duradouro: Clarice Lispector, Rachel de
Queiróz, Cecília Meireles, Mario de Andrade, Fernando Sabino, Millôr
Fernandes, Nelson Rodrigues, Drummond, Sério Porto e aquele que deu novas
formas e outros tons à crônica — Rubem Braga.
Mario de Andrade disse que, em meio as suas produções poéticas, a crônica era
uma "Verdadeira válvula de escape por onde eu desfadigava de mim", e
continuou dizendo: "Com ela eu brinco de escrever".
Mas como produzir uma crônica?
Nela predomina a primeira pessoa. O objetivo é justamente criar uma
proximidade com o leitor, como se fosse um amigo, como em uma conversa.
Esse caráter intimista, pessoal e até confessional não quer dizer que tudo é real
na crônica, pois, como um gênero hibrido, ela pode ser ficcional e verídica ao
mesmo tempo.
Além disso, deve ser um texto curto e claro; e, embora fale de coisas
profundas, o cronista deve abordá-las de um jeito leve, sem cansar o leitor, o
objetivo é torná-lo seu amigo, lembra? Nada de espantá-lo com uma leitura
longa, chata ou pesada. Como disse Olavo Bilac: "A palavra pesada abafa e
ideia leve".
Claro, não precisa ter, necessariamente, humor no texto, mas leveza, sim. Aliás,
entre as mulheres, não há cronistas conhecidas pelo seu bom humor, apenas
escritoras que redigiam crônicas com um tom existencial e preocupado com o
social, talvez, sejam essas as características das nossas cronistas, como é o caso
de Clarice Lispector e Rachel de Queiroz.
E este nosso trabalho de escrever? Meu Deus, como às vezes
é sórdido! Aquele riscar, aquela grosseria do texto primitivo,
aquele tatear atrás da palavra desejada e, ainda pior, da
combinação de palavras desejadas! Tanta beleza que a gente
sonhou, depois de posta do papel como ficou inexpressiva,
barata e normal!
Rachel de Queiroz

Seja por fala de assunto ou por querer evidenciar o ato de redigir, o cronista
frequentemente fala sobre o ato de "cronicar", isto é, de escrever:
Se houvesse apenas um modelo de boa escrita, tudo seria
monótono e previsível no mundo literário. Compraríamos um
livro sem expectativas, pois esse seria uma mera cópia
linguística de outros. Qual a graça disso?
Escrever é transformar e desnudar a língua. É amar e brigar
com a gramática, é insultar e se encantar pela sintaxe. É
aprender novos vocábulos ou criar outros, é acompanhar ou
infringir a pontuação por questão de estilo; é explorar o
âmago numa luta bravia a apaixonante pelas palavras.
Escrever é correr; é suar em busca da expressão mais
adequada ao texto, para, depois de encontrá-la, apagá-la; ela
não era tão compatível assim. E recomeça o árduo ofício de
reescrever.
Desfragmentos, Elaine Rodrigues.
A crônica saltou das páginas de jornais para a internet. Hoje você pode redigir
crônicas históricas, descritivas, políticas, didáticas, literárias e humorísticas na
sua rede social e fisgar leitores que procuram textos breves, acolhedores e
inteligentes.
Conto
HÁ milhares de artigos na internet tentando explicar o que é um conto, esse
gênero literário sucinto e antiguíssimo (4.000 a.C.). Mas apesar de ser um texto
curto e mais direto, o conto, assim como a crônica, não é tão fácil de escrever,
pois ele possui características literárias sutis e bem diferentes do romance.
Contudo, nem por isso é um gênero literário inferior ou um subproduto do
romance. Ao contrário, veja a importância que Machado de Assis deu a essa
narrativa:
[O conto] é um gênero difícil a despeito de sua aparente
facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal,
afastando-se dele os escritores e não lhe dando, penso eu, o
público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.
(Machado de Assis. Obras Completas, página 806)
Muito leitores têm vontade de escrever um texto literário, mas não sabem por
onde começar. E como o conto é uma narrativa mais “enxuta”, vale a pena
começar por ele. Então, aqui vão algumas dicas para a criação de um conto
literário.
1- Extensão textual: a narrativa é curta. O conto omite detalhes supérfluos e
precisa prender o leitor do começo ao fim, sem dar espaço para ele desistir da
leitura. Edgar Allan Poe, poeta e crítico literário americano, falou do efeito que
o conto precisa exercer sobre o leitor:
No conto, durante a leitura atenta, a alma do leitor está sob o
controle do autor, e não há espaço para nenhuma influência
externa […] podendo o conto ser lido de uma vez só.
Review of Twice-Told Tales, resenhas críticas de Edgar
Allan Poe.
2- Personagens: há poucas personagens. Se o conto tiver muitos personagens,
consequentemente ele terá muitas ações, e essa quantidade de eventos quebrará
aquele estado de tensão no qual o leitor precisa estar envolvido (falamos isso no
item anterior). Por essa razão, há uma quantidade limitada de personagens.
Veja o fragmento do conto O Trinfo, de Clarice Lispector:
O silêncio da casa estava explicado. Luisa estava só, desde a
sua partida. Tinham brigado. Ela, calada, defronte dele. Ele,
o intelectual fino e superior, vociferando, acusando‑a,
apontando‑a com o dedo. E aquela sensação já
experimentada das outras vezes em que brigavam: se ele for
embora, eu morro, eu morro. Ouvia ainda suas palavras.
‘— Você, você me prende, me aniquila! Guarde seu amor,
dê‑o a quem quiser, a quem não tiver o que fazer! Entende?
Sim! Desde que a conheço nada mais produzo! Sinto‑me
acorrentado. Acorrentado a seus cuidados, a suas carícias, ao
seu zelo excessivo, a você mesma! Abomino‑a! Pense bem,
abomino‑a! Eu…'
O Trinfo, Clarice Lispector.
Nesse conto, temos 3 envolvidos: Luisa, Jorge e o narrador. Além disso,
percebeu a velocidade do conto? Clarice estabelece uma atmosfera de tensão e
leva consigo o leitor em cada frase da narrativa, e isso o impede, geralmente, de
abandonar a leitura.
3- O espaço: o espaço é mais valorizado do que o tempo. Todo o enredo
acontece em apenas um local, como no exemplo do conto de Clarice, a narrativa
se passa somente na casa da protagonista. Isso ajuda a concentrar os elementos
da história.
4- O clímax literário: é o ponto mais alto da narrativa. E o autor já vai
deixando rastros desse momento desde o início do conto, assim, o leitor fica
curioso, “preso” aos acontecimentos. Repare como começa o referido conto de
Clarice:
O relógio bate 9 horas. Uma pancada alta, sonora, seguida de
uma badalada suave, um eco. Depois, o silêncio. […] Luísa
continua imóvel, estendida sobre os lençóis revoltos, os
cabelos espalhados no travesseiro. Um braço cá, outro lá,
crucificada pela lassidão. O calor do sol e sua claridade
enchem o quarto. Luísa pestaneja. Franze as sobrancelhas.
Faz um trejeito com a boca. Abre os olhos, finalmente, e
deixa‑os parados no teto.
O Trinfo, Clarice Lispector.
As características básicas do conto não são para restringir o escritor às regras,
ao contrário, elas são orientações para liberar a sua criação literária. As técnicas
não podem ser maiores que a criatividade e a liberdade de quem escreve. De
nada adianta decorar ou se prender às medidas do conto se o texto não tiver um
bom conteúdo? Ou como disse Machado:

“O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é


naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade
nos contos que os torna superiores aos outros.”
Livro Várias histórias, Machado de Assis.
Portanto, escreva; sejam contos, com personagens, ou crônicas, uma conversa
breve com o leitor. Não importa se, uma vez ou outra, o seu texto ultrapasse ou
esteja abaixo das técnicas apresentadas aqui. Apenas redija um pouco além do
costume.
Até aqui, falamos sobre como produzir e analisar textos híbridos e literários
(crônicas e contos), ficcionais, agora falaremos de texto não ficcional, isto é,
que retrata a vida real.
Como produzir uma autobiografia?
“A minha vida daria um livro!” Provavelmente você já disse isso, não é
mesmo? Então, que tal começar a escrever esse livro? O quê? Acha a sua
história desinteressante? Pensa que ninguém vai gostar ou acredita ser novo (a)
demais para isso? Engano seu!
Os fatos que parecem desimportantes para você podem inspirar muita gente. E
não precisa, necessariamente, escrever a fim de publicar seus escritos. Aliás,
fazer um livro não é só coisa de escritor oficial, é hábito de quem quer se
conhecer melhor, já que escrever é uma forma de autoconhecimento. E aí? Bora
escrever seu livro? (Meu papel aqui é incentivar as pessoas a escrevem rs.)
Mas como redigir uma autobiografia?
Para começo de conversa, controle a ansiedade; não tem como contar todos os
acontecimentos da sua vida, senão o seu livro vai ficar assim:
(Livro “Pátria Amada” tem 2,10 metros de altura, 7,5 toneladas e mais de 41 mil páginas.)

Mas se você não tem tempo nem espaço para um livro gigante desse, melhor
aprender algumas técnicas básicas de escrita autobiográfica, assim, poderá
produzir seu livro de memórias ou escrever sobre a história de alguém.
Escrever uma autobiografia envolve desde os detalhes
sobre a sua vida, assuntos que irão transformar a
compreensão dos leitores sobre eles — e
provavelmente sobre você também — até encontrar o
tom textual que envolva e sustente a curiosidade do
leitor.
Jornal The Guardian, coluna de escrita criativa.
Traduzido e adaptado.
1) Prepare-se para um reencontro. Procure-se. Ache a criança, o jovem, o
adulto, o alegre, o triste, o vencedor e o vencido que está dentro de você. A sua
memória pode te ajudar nisso. Mas se ela falhar, recorra às fotografias, aos
familiares, aos amigos. Pesquise-se. Sem conteúdo as técnicas de escrita não
valerão de nada.
2) Seja livre. Primeiro, anote o resultado da sua pesquisa. Sim! Nesse
momento, não se preocupe com organização textual. Registre tudo: coisas que
marcaram sua infância e juventude, conquistas e fracassos… Ah! e por falar em
fracassos, não esqueça que é uma autobiografia, não uma ficção de super-herói.
Fale das suas dores e derrotas também, isso é vida real.
Mauricio de Sousa, por exemplo, apesar de ser um cartunista e empresário
brasileiro famoso, contou, na sua autobiografia, que nunca se formou no
ginásio. Ele já tinha sido reprovado 3 vezes, e, na quarta vez, foi preso no dia da
prova final.
3) Defina um propósito para sua autobiografia. Agora, depois de pesquisar e
anotar sobre sua história, você percebeu que ela pode ser vista sobre vários
pontos: profissional, religioso, emocional, psicológico, social. E aí? Vai falar de
tudo um pouco? Ótimo! Mas precisa ter um propósito para relatar os
acontecimentos, ou seja, uma linha ideológica que ligará um fato ao outro. Quer
ver um exemplo?
"Últimos dias" é o livro autobiográfico de Liev Tolstói, um dos maiores
escritores do mundo. A obra é um compilado de textos, que conta a sua história
desde a juventude até a fase adulta, e em cada parte do livro, ele destaca sua
espiritualidade e as crises existenciais pelas quais passou durante a vida. Isso é
ter um objetivo autobiográfico. Sem contar que o propósito também “prende” o
leitor na história.
4) Escolha os acontecimentos mais relevantes. Você já tem um objetivo para
o seu livro, agora é hora de pegar todas as anotações e ver quais se encaixam no
seu propósito. Não se trata de escolher fatos grandiosos e desprezar
acontecimentos pequenos. Se escrever sobre o animalzinho de estimação que
você ganhou na infância está de acordo com o seu objetivo autobiográfico,
escreva. Mas se aquela experiência profissional no exterior não tem nada a ver
com a direção do seu livro, nem pense em escrever isso.
5) Organize o texto. Agora sim! Estamos quase terminando o seu projeto. Que
máximo! É hora de relaxar. SóQueNão! Dedique tempo e ordene seu texto. Ele
pode ser organizado cronologicamente (de acordo com o tempo dos
acontecimentos) ou tematicamente (separando os fatos por temas relacionados).
Essas estruturas textuais te ajudarão a encontrar a uniformidade do seu livro e a
perceber partes que ainda precisam ser cortadas ou acrescentadas.
Pronto! O seu livro tá pronto! Viu só como é bom escrever sobre si mesmo?
Claro, é difícil no começo, ainda mais se você não tem o hábito da escrita, mas
eu garanto: vale a pena tentar. Pode ser que, no caminho, você queira desistir
do projeto.
Fazer uma autobiografia, na maioria das vezes, é emocionalmente desgastante e
fisicamente cansativo. Mas se você resolver parar, guarde seus escritos.
PeloAmorGente, não jogue fora a sua vida. Um dia, vai que você decide voltar a
escrever a sua história, e, quem sabe, ela pode mudar outras vidas — inclusive a
sua também.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOOM, Harold. Como e por que ler? 1 ed. São Paulo: Objetiva, 2001.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos
decisivos. 1 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2014.
COUTINHO, Afrânio. Crítica e teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1987.
CURY, José Roberto Jamil. Alceu Amoroso Lima. Domínio Público.
Disponível em <
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4687.pdf> Acesso em: 8
de julho de 2019.
SILVA, Débora Teresinha Mutter da. et. al. Crítica Literária. 1 ed. Paraná:
Intersaberes, 2017.
SANTAELLA, Lúcia. Estética e semiótica. 1 ed. Paraná: Intersaberes, 2019.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 1 ed. São Paulo: Ática, 2006.
BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. Crônica: história, teoria e prática. 1 ed.
São Paulo: Scipione, 1993
ASSIS, Machado de. Crônicas escolhidas. 1 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2013.

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