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“Devemos ler autores cujo estilo pode ensinar a escrever; e pôr de lado
aqueles cujo estilo não ensina a escrever. Depois, há autores de quem se
pode e outros de quem não se pode assimilar os processos. Devem-se ler os
primeiros, de preferência aos segundos.”
Outro fator que enfatizo sempre, a metáfora, neste caso, na técnica do nome
da personagem: Felicité (em francês, felicidade). Vejam a força dessa
metáfora: Felicité tem um coração simples, mesmo sendo explorada, é fiel
à patroa. Tudo de maneira sutil, que seria estragada caso Flaubert caísse no
lugar comum de explicá-la. Literatura não se explica.
Ainda podemos notar uma voz estranha após o travessão “- que, no entanto,
não era uma pessoa agradável”, um comentário capturado pelo narrador, de
alguém que estivesse fofocando sobre a Sra. Aubain (iremos nos
aprofundar nisso quando falarmos dos tipos de narrador e vozes narrativas).
Notem que em poucas linhas é possível fazer uma análise profunda e direta
sobre a escrita. É isso que vocês devem buscar fazer, analisar cada verbo,
cada frase, as vozes das personagens, os discursos direto, indireto e indireto
livre; devem tentar perceber as funções e efeitos no texto. Estudem o estilo,
desconstruam, procurem referências nos livros de técnica (“Os Segredos da
Ficção”, de Carrero, tem capítulos muito mais bem detalhados sobre
tempos verbais, vozes, cenas, etc.). Aqui eu apenas quis mostrar como se
dá o processo de leitura de alguém com um pouco mais de experiência.
Esqueçam os gostos pessoais e leiam os grandes, os verdadeiramente
grandes. Estudem.
“De um modo geral é melhor começar por ler o que é simples, clássico,
sincero, puro, de pensamento e sentimento reto, para dar ao gosto e às
ideias a retidão e a clareza que são a base das grandes obras. Mas, quanto
à prática, para a assimilação técnica e proveito urgente, devemos ler
principalmente os autores que nos deixam ver os seus processos, em que
possamos discernir os meios de trabalho, os artifícios de estrutura, os
pormenores do estilo, a ciência da expressão; em que possamos avaliar o
esforço representado nas justaposições empolgantes; ver como se obtém a
intensidade e o relevo; o ponto, em que nos devemos colocar, para fazer
ressair as ideias: a habilidade necessária para ampliar, imprimir
movimento, etc. Saber ver é a grande palavra da escrita literária; e saber
como é preciso ver, é quase o mesmo que saber como é necessário
exprimir.”
03 – Tome notas
“A primeira condição para ler bem é portanto fixar o que se quer reter, e
tomar nota. Um livro que se deixa sem ter extraído dele alguma coisa é um
livro que não se leu.”
“Então, que deveremos pedir aos estudantes? É bem simples. Isto: Que
pensais deste estilo? Donde vem a sua força? Que diria, em tal caso, um
escritor ordinário? Por que processo de execução supondes que o autor
tenha atingido a concisão? Em que consiste a concisão? Que frases seriam
essas, se não fossem concisas? Como e porquê há vida em tal narrativa?
Que é o que constitui relevo de estilo? Reconstituí esses versos, para
mostrar como eles seriam, se não tivessem relevo. Em que é que o autor
faz dizer às personagens o que devem dizer, e que diriam elas, sem o
engenho do autor? Onde está o colorido desta narrativa? Onde está o
movimento? Onde supondes que haja transições? Qual é, na vossa
opinião, a passagem mais difícil de tratar? Que maleabilidade de espírito
se prova nesse fragmento? De que outra forma se poderia compor? etc.,
etc..”
A TÉCNICA NA FICÇÃO
Por Paulo Cantarelli / 11 de junho de 2018
Após várias postagens em nosso grupo do Facebook, não pude deixar de
notar que muita gente não vem lendo as recomendações bibliográficas
indicadas, que são bastante necessárias para que saibamos o que estamos
falando. É primordial estudarmos para sabermos falar, isto é, utilizar os
termos corretos para nos expressarmos. Do contrário podemos falar algo
que pode significar o oposto do que realmente queremos dizer. Também é
preciso entender o que é dito aqui, internalizar esse conhecimento,
estudando e escrevendo, não apenas concordando ou discordando, mas
testando na prática. Na criação literária é preciso experimentar.
– Sr. Roger – disse, a meia voz – eis um aluno que lhe recomendo; vai para
a quinta classe. Se a aplicação e o comportamento lhe forem bons, passará
para os maiores, por causa da idade.
Charles ficou admirado da alvura das unhas. Eram brilhantes, finas, mais
brunidas que os marfins de Diepe, e cortadas em forma de amêndoa. A
mão nem por isso era bonita; pouco pálida, talvez, e um tanto seca nas
falanges; além disso, comprida demais, e sem brandas inflexões de linhas
nos contornos. O que ela possuía de verdadeiramente belo eram os olhos;
apesar de castanhos, pareciam pretos por causa das pestanas; o olhar era
franco e de um arrojo cândido.”
“Como a casa era fria, ela tiritava mesmo ao comer, o que lhe descobria
um tanto os lábios carnudos, que costumava mordiscar em silêncio.
Charles, assim como o leitor, já está apaixonado pela srta. Rouault. Vamos
vendo as camadas construídas pelo narrador: primeiro as mãos, depois a
boca, o pescoço, os cabelos, orelhas, nuca, face. Camada por camada temos
a descrição física que nos revela o interesse de Charles.
Por fim, quando Charles procura por seu chicote, no parágrafo seguinte:
Não era gordo; era antes imenso e forte. Sua cabeça roçava (nas casas
habitadas pelos mortais comuns) o florão interior dos lustres, e seus dedos
podiam dobrar como papel as moedas de um ducado. Havia sempre, entre
a villa Salina e a loja do ourives, um contínuo vaivém a fim de se
consertarem os garfos e facas que sua ira contida, à mesa, fazia
frequentemente dobrar em arco. Aqueles dedos sabiam, aliás, usar de
extrema delicadeza, quando acariciavam ou manuseavam algo; disso se
recorda Maria Stella, sua mulher, e ainda os parafusos, aros e botões
esmerilados dos telescópios, óculos e ‘observadores de cometas’, que
enchendo, lá no alto da villa, seu observatório particular, não sofriam
qualquer dado sob o manuseio delicado.”
Era uma jardim para cegos. O olhar era constantemente ofendido, mas o
olfato podia extrair dele um prazer intenso, embora não sutil. As rosas
Paul Neyron, cujas estacas ele próprio adquirira em paris, tinham
degenerado. Primeiramente estimuladas, depois extenuadas pela seiva
vigorosa e indolente das terras sicilianas, queimadas por julhos
apocalípticos, haviam-se transformado numa espécie de couves cor-de-
carne, obscenas, que destilavam, porém, um aroma denso, quase
desonesto, que nenhum criador francês teria ousado esperar. O príncipe
levou uma delas ao nariz e foi como se aspirasse a coxa duma bailarina da
ópera. Bendicò, a quem em seguida a ofereceu, retraiu-se nauseado e
apressou-se em procurar sensações mais saudáveis no meio do estrume e
das lagartixas mortas.”
Uma descrição quase obscena, dotada duma Beleza que ressalta aos olhos e
aos sentidos. Isso, sim, é colorido e relevo. Temos os principais conflitos
do Leopardo, o Príncipe de Salina, nessa passagem do jardim: a decadência
da própria casa Salina e sua villa, a sensualidade e o caráter lascivo do
príncipe refletido na estátua da Flora e nas rosas Paul Neyron, tão vivas que
temos a impressão de tocá-las. Há também um sentimento de morte que
ronda o psicológico da personagem: montes de terra lembram túmulos de
gigantes, que seriam os ancestrais do Príncipe; o próprio jardim tem um ar
de cemitério. Logo em seguida, temos a seguinte cena:
Graciliano.
P.S: Você com certeza acha difícil ler isso. Estou escrevendo sentado num
banco, no fundo da livraria, muita gente em redor me chateando.
Devemos nos perguntar por que o culto à falsa originalidade tem um apelo
tão poderoso a nossas instituições culturais, de forma que todos os museus,
galerias de arte e teatros financiados com recursos públicos levam isso a
sério. Os primeiros modernistas ― Stravinsky e Schoenberg em música,
Eliot e Pound em poesia, Matisse em pintura e Loos em arquitetura ―
eram unidos pela crença de que o gosto popular havia se corrompido, que
sentimentalidade, banalidade e kitsch haviam invadido várias esferas da
arte e eclipsado suas mensagens. Harmonias tonais se corromperam pela
música popular, pintura figurativa foi vencida pela fotografia; rima e
métrica tornaram-se coisa de cartões de natal, e as mesmas histórias já
haviam sido contadas várias vezes. Tudo lá fora, no mundo das pessoas
ingênuas e irracionais, era kitsch.
Se engana quem pensa, por meu relato, que “Primeiro Amor” é uma leitura
lúdica; ao terminarmos, notamos que é, na realidade, uma leitura cruel. O
quadro do humano é pintado em toda sua beleza e decadência. As falas das
personagens são organizadas de maneira quase teatral. A ação dá-se em
torno das oposições de conflitos e das crises; isto é: vontades contrárias que
se acirram de tal modo a gerar uma perturbação, elemento que faz o
protagonista reagir ou, neste caso, hesitar. A hesitação através de
monólogos internos e cenários psicológicos é uma das peças chave em
“Primeiro Amor”. As vozes da narrativa, a fala de cada personagem, as
divagações do narrador, cada diálogo é o estalo de um chicote: rápido,
preciso, e que move a o texto adiante. É uma leitura obrigatória.
Mas o que é voz? Em teoria musical, voz é cada uma das partes numa
composição, isto é, cada uma das músicas interpretadas por instrumentos
individuais. Numa peça de Bach, por exemplo, é possível ouvirmos várias
vozes distintas e independentes, mas que formam uma composição
harmônica. Na literatura ocorre algo semelhante, podemos ler diferentes
personagens, com diferentes estilos, se manifestando ao longo do texto.
Então, podemos definir voz como o discurso de cada uma das personagens
de uma narrativa.
— A filha do Sr. Rouault, moça da cidade! Ora adeus! O avô era pastor e
eles até têm um primo que esteve a ponto de sentar-se no banco dos réus,
por causa de uma briga. Não valia a pena fazer tanto barulho, nem
mostrar-se aos domingos na igreja, de vestido de seda, como uma
condessa. Pobre velho, que, se não fossem as colzas do ano passado, ver-
se-ia muito atrapalhado para pagar suas dívidas atrasadas.
“E prosseguia:
— A filha do Sr. Rouault, moça da cidade! Ora adeus! O avô era pastor e
eles até têm um primo que esteve a ponto de sentar-se no banco dos réus,
por causa de uma briga. […]”
“Heloíse fizera-o jurar com a mão sobre o um livro de missa que não
voltaria lá […]”.
Aqui vemos uma única voz, a do narrador, que resume as falas de Heloíse e
Charles.
DISCURSO INDIRETO LIVRE (OU ESTILO INDIRETO LIVRE)
Eis a sofisticação máxima atingida por Flaubert, e que mudou para sempre
o romance moderno. O estilo indireto livre incorpora a voz da personagem
à voz do narrador, ambas confundem-se. Não há travessões nem verbos
dicendi, aspas, itálico, ou quaisquer marcações. É uma variante do estilo
indireto, com a diferença que, desta vez, é a personagem que entrecorta a
voz do narrador, não o contrário. Permite que entremos na mente das
personagens sem a necessidade de dizer “pensou Heloíse”, no trecho:
“Era disso que ele gostava; o que ele queria era moças da cidade! E
prosseguia:
Aqueles que encontram significados belos nas coisas belas são aqueles que
as cultivam. Para esses há esperança. Eles são os eleitos para quem as
coisas belas significam apenas beleza.
Droga, você toma uma liberdade com o passado e o futuro das pessoas que
acabam resultando em histórias irreais. Você, que sabe escrever melhor do
que ninguém — que diabo. Scott, pelo amor de Deus, escreva e escreva com
verdade, doa a quem ou a que doer, mas não faça essas concessões bobas.
Você escreveria um livro ótimo sobre o Gerald e a Sara, por exemplo, se
soubesse o bastante sobre eles e, se fosse verdade, eles não ficariam
chateados por muito tempo.
Em primeiro lugar, eu sempre disse que você não sabe pensar. Tudo bem,
vamos admitir que você sabe pensar. Mas digamos que não saiba; então
você tem de escrever, inventar a partir do que você conhece e respeitar os
antecedentes das pessoas. Em segundo lugar, faz tempo que você só escuta
as respostas para suas próprias perguntas. E com toda a sua capacidade, não
precisa fazer isso. É isso que seca um escritor (todos nós secamos. Não é
ofensa nenhuma), não escutar. Tudo vem daí. Ver, escutar. Você vê muito
bem. Mas parou de escutar.
É muito melhor do que eu estou dizendo. Mas não é tão bom quanto você é
capaz de fazer.
Você pode estudar Clausewitz e economia e psicologia e não vai lhe servir
de nada quando está escrevendo. Somos péssimos acrobatas, mas damos
bons saltos, e existem todos aqueles acrobatas que não saltam.
Pelo amor de Deus, escreva sem se preocupar com o que os caras vão dizer
ou se vai ser uma obra-prima ou não. Eu escrevo uma página de obra-prima
para cada noventa e uma páginas de merda. Tento jogar a merda no lixo.
Você acha que tem que publicar qualquer bosta para ganhar dinheiro para
viver. Tudo bem, mas se você escrever bastante e escrever bem, como sabe,
vai produzir a mesma quantidade de obras-primas (como dizemos em
Yale). Você não pode pensar que vai sentar e escrever uma obra-prima, e se
você se livrasse do Seldes e daqueles caras que quase o arruinaram e os
pusesse na rua, como você bem pode, e deixasse os espectadores gritarem
quando é bom e vaiarem quando não é, seria ótimo.
Esqueça sua tragédia pessoal. Nós todos estamos fodidos desde o começo e
você em especial tem de sofrer muito para ser um escritor sério. Mas
quando estiver sofrendo use o sofrimento — não trapaceie. Seja fiel a ele
como um cientista — mas não pense que uma coisa é importante porque
acontece com você ou com algum dos seus.
A essa altura não vou achar ruim se você me xingar. Nossa, é maravilhoso
ensinar os outros a escrever, a viver, a morrer, etc.
Vá em frente e escreva.
Ernest.
Essa definição não é inteiramente nova, muito menos é de todo minha; vem
da leitura dialética de vários autores, de filósofos, feito Aristóteles e São
Tomás de Aquino, a artistas feito James Joyce e T. S. Eliot. Não tenho
pretensões de que essa definição seja “completa”, no sentido mais restritivo
que os leigos atribuem à palavra, de “encerrar” uma discussão. Definir é,
primeiramente, estabelecer as bases mínimas para que uma discussão
sóbria possa ocorrer, delimitando o objeto de estudo. Por óbvio, nenhuma
definição pode abarcar todos os aspectos da realidade.
Para que algo seja arte, é preciso ainda um entendimento imediato de seu
significado. Por entendimento imediato, me refiro ao conhecimento
intuitivo das coisas, aquela percepção que, num relance, capta tanto o
conteúdo, a “mensagem” mais superficial da expressão, quanto a forma,
sem necessidade de intermediações intelectuais ou explicações. Nas
palavras de Croce: arte é tudo aquilo que toda a gente sabe o que é. Ou
costumava saber.
Agora podemos distinguir os reais elementos da arte e saber por que o Sr.
Marcel Duchamp não fez arte, mas fez uma “tremenda duma arte”. Assinar
o penico deveria ser claramente uma piada, mas, quando todos passaram a
reverenciar o sarro como a mais elevada expressão artística, termina a arte
e começa o desastre.
Então chegamos a um segundo ponto do questionamento: e o que é
Literatura? Muito se discutiu em torno dessa simples palavra e muitos —
quer por limitações intelectuais ou pela crença de se estar diante de algo tão
auto-evidente que careça de explicações — não chegam sequer a cogitar
uma definição para o que é Literatura. Outros não deram uma definição
satisfatória, ora frouxa, ora demasiado restrita. E, não tendo pretensões de
ignorá-las, nem levá-las em conta neste momento, tomo por partida o
mesmo ponto que Flaubert, que considerava a Literatura como algo dotado
de vida — e que talvez engolisse a própria vida —, cujo fim é a Beleza.
Logo, levando em conta minha definição de Arte, podemos dizer que
Literatura é a “expressão artística escrita”, seja em verso ou em prosa.
Portanto, a princípio, o que quer que esteja fora disso, não considero para
fins de estudo literário propriamente dito, leia-se, estudo artístico. Para
essas afirmações, há consequências complexas, que ficam de fora desta
breve reflexão; pretendo, antes, apresentar uma generalização das bases de
minhas investigações críticas e estéticas, não elaborar uma resposta
definitiva, ou fórmula preconcebida para solucionar de antemão todos os
problemas que possam surgir durante o percurso.
Um adendo: dizer que algo é uma obra de arte, ou que não é, jamais será
elogio ou demérito — talvez o seja caso o autor deseje ardentemente que
sua obra seja reconhecida como arte. Categorizar um objeto é apenas um
juízo de fato acerca da realidade objetiva. O mesmo se aplica à Literatura:
dizer que estamos diante de uma obra de arte literária, ou não, apenas nos
permite examinar o objeto tal qual ele realmente é.
Os Diálogos de Platão são belíssimos, mas são arte? Não do sentido das
belas-artes. Também não são Literatura, são Filosofia. E “Os Sertões”, de
Euclides da Cunha, é Literatura? Não. É uma obra jornalística, escrita com
o fim de informar e registrar, mais do que com um fim estético. Com isso,
podemos analisar a real beleza da obra, a beleza própria do ensaio, do
registro geográfico e sociológico, dos temas. Uma panela não é bela da
mesma maneira que uma mulher é bela; é preciso categorizar as coisas para
que possamos analisá-las e julgá-las de acordo com seus gêneros e
espécies.
Porém, quanto mais intelectualizada for uma obra, como é o caso da obra
literária, mais complexa pode se tornar essa distinção. É preciso que se
tenha uma boa dose de cultura e de intuição — leia-se, apreensão imediata
—, mais do que se utilizar de meros termos para ditar verdades
automáticas, respostas fáceis que ignoram tanto texto quanto contexto. É
preciso ser dialético no sentido mais socrático do termo.
Podemos ter diante de nós um “romance não ficcional” ou “romance
reportagem”, a exemplo de “A Sangue Frio”, de Truman Capote. Como
julgá-lo? O compromisso maior de Capote era com a realidade, com uma
reportagem. Porém, embora a história seja real (isto é, factual), Capote
também queria transmitir uma emoção estética, mais do que uma simples
notícia de jornal. Portanto, é justo que consideremos “A Sangue Frio” uma
obra de arte em sentido estrito ― a saber, o da técnica e elaboração, arte-
útil. O fim é documental, não de contemplação. Alguns defenderiam que se
trata de literatura propriamente dita, porém, mesmo com claras intenções
estéticas na feitura, “A Sangue Frio” continua tendo forte compromisso
com a realidade não-ficcional. Carpeaux chega a dizer, em sua
enciclopédica História da Literatura Ocidental, que o livro de Capote é
“mera reportagem, embora literalmente elaborada” sobre um assassinato.
Uma reportagem com alto valor artístico e literário, lida como se fosse
romance, o que lhe enriquece em seu próprio gênero, mas que continua
sendo obra de jornalismo, assim como o famoso “A Ilha de Sacalina”, de
Tchekhov.
A segunda pergunta, que Satanás talvez tenha feito a Adão, pode ter sido: é
arte, mas é boa arte?
Em “A arte da ficção”, John Gardner nos diz que há duas maneiras de pôr
fim à narrativa: “pela resolução, quando nenhum evento novo poderá mais
surgir… ou através de exaustão lógica”. Na primeira, podemos resolver os
conflitos de forma que nada novo poderá surgir além do que foi mostrado
― por exemplo, Édipo se cega e depois parte para o exílio, o que foi
preparado desde o início ―; na segunda, podemos chegar a um ponto em
que a narrativa atingiu o momento mais profundo da condição humana, de
forma que, após isso, a história só se repetiria. Não é um tipo de final
“binário” ― em que nós nos perguntamos: “será que Édipo irá conseguir
salvar Tebas da praga?”, onde as possiblidades são binárias, positivas ou
negativas, sim e não ―, mas é o tipo de final que requer que introduzamos,
desde a apresentação, a expectativa de que alguma revelação acontecerá ―
o que ocorre bastante nos contos de Flaubert, Tchekhov ou Joyce, onde
“nada” acontece. Nesse tipo de narrativa não há trama ― novamente, não o
enredo no sentido de montagem, mas do uso de reviravoltas e mudanças de
direção para fisgar o leitor ―, o que não quer dizer que não haja história,
nem que essa história não tenha sido estruturada cuidadosamente para
entregar ao leitor uma emoção estética forte no final através da epifania.
Através de suas cartas, vemos que ele passou conscientemente por todas os
níveis de problemáticas poéticas ao escrever Madame Bovary. Isso inclui a
montagem. Para começar, Flaubert não esconde as raízes aristotélicas, o
livro é dividido em três partes, que poderiam corresponder aos atos de uma
grande tragédia. Temos peripécias e reconhecimentos, mesmo que sutis,
Flaubert cuidadosamente nos introduz ao longo do livro todos os elementos
que levarão ao desfecho: o cafarnaum (armário) do farmacêutico Homais,
que contém o arsênico que Emma utilizará para se matar; o
deslumbramento material e as gastanças exageradas de Emma com coisas
que não pode pagar, o que levará a seu suicídio no final; até mesmo a doce
imbecilidade de Charles nos é apresentada de início. Flaubert utiliza várias
curvas dramáticas ao longo do livro: comumente aplica a estrutura
aristotélica em capítulos e cenas, de forma que temos a história principal, o
adultério de Emma, e inúmeras narrativas paralelas, ou “subtramas”, por
assim dizer ― cada uma com seus conflitos e resoluções que contribuem
em maior ou menor grau para a resolução narrativa principal.
PARTE I
[Apresentação]
1- Infância de Charles Bovary: o dia do estudante.
2- Primeiro casamento. Charles encontra Rouault e sua filha Emma; a
primeira esposa de Charles morre,
3- Charles pede Emma em casamento.
4- O casamento.
5- O novo lar em Tostes.
6- Um relato da infância de Emma e o seu mundo de fantasia secreta [aqui
começarmos a ter indícios do comportamento de nossa protagonista].
7- Emma fica entediada; convite para um baile pelo Marquês
d’Andervilliers.
8- O baile no Château La Vaubyessard [incidente inicial].
9- Emma segue modas, reclama de tédio a Charles, e eles decidem se
mudar; eles descobrem que ela está grávida; [a ação começa a ascender
lentamente nos eventos que levarão ao clímax].
PARTE II
PARTE III
Já sabemos que drama é diferente de literatura, que por sua vez também é
diferente de cinedramaturgia. Gosto do modelo de Freytag pois, embora
pensado para o teatro, ele não nos impõe acontecimentos que devam surgir
para manter a atenção do leitor: sabemos que devemos apresentar quem
age, depois deve haver um incidente, um conflito, depois a ação se eleva,
chega ao ápice, e vemos os resultados dessas ações. Bastante simples.
Porém isso não ocorre no cinema. Muitos escritores usam o clássico
“Manual do Roteiro”, de Syd Field, ou o completo “Story”, de Mckee, para
estruturarem suas narrativas. Quais seriam os riscos de se fazer isso?
Syd Field corrobora para o que já falamos aqui: a literatura tem portas
abertas para o plano de realidade subjetivo das personagens. Por isso
qualquer tentativa de adaptação de Madame Bovary para o cinema ou será
falha ou será infiel ao original: o que torna o livro interessante não é a
história ― elemento muito mais importante no cinema ―, mas a
montagem única, possível apenas na forma do romance. Um diretor
habilidoso, para não dizer genial, teria de representar a história com outras
técnicas. Field continua:
Isso não quer dizer que não haja intercâmbios entre livros e filmes,
Eisenstein, em seu “A forma do Filme”, faz uma das melhores análises
sobre montagem e construção de cena em Madame Bovary, logo no
primeiro capítulo do livro. O diretor russo costumava dizer que “montagem
é conflito”. Nenhuma arte é hermética, podemos e devemos aprender com
outras expressões artísticas, mas todo artista deve ter em mente onde
começa sua arte e termina as outras.
A TÉCNICA EM HOMERO
Por Paulo Cantarelli / 10 de julho de 2018
A pedidos, ressuscitei meu exemplar de “Odisseia”, pela finada editora
Cosac Naify, com excelente tradução de Christian Werner. Sobre essa
edição, é a que usarei para análise, e aviso: vale cada centavo. Recomendo
principalmente pelos prefácios e posfácios excelentes, que somam mais de
cem páginas e que ajudam muito na compreensão sobre a técnica e o
contexto em que “Odisseia” foi elaborada, assim como problemas
linguísticos de tradução do grego para o português. Aviso que o texto será
longo, mas não menos proveitoso para quem se interessa pelo assunto.
“And so, from hour to hour, we ripe and ripe, and then, from hour to hour,
we rot and rot; thereby hangs a tale.”
ANÁLISE
Este simples adjetivo, empregado desta forma, já nos revela que a seguir
virá uma cena importante para a compreensão da personagem, pois há uma
interpretação do que acontecerá. O epíteto nos dá o tom que a personagem
seguirá e frequentemente nos dará pistas da curva dramática desta, nos
indicando seu amadurecimento. Porém, há outros momentos em que certos
epítetos como “Odisseu-muitas-vias”, “Zeus-junta-nuvens” ou “Atena-
olhos-de-coruja” [para alguns tradutores, “olhos-glaucos”] servem apenas
para completar o hexâmero e manter a forma. Como não sou grande
estudioso da métrica, não poderei me aprofundar no assunto, além do mais
isso fugiria ao nosso propósito.
Por fim, entre os versos 325 e 334 temos a primeira aparição de Penélope,
em contraste com as descrições anteriores:
“Entre eles cantor cantava, bem famoso, e, quietos,
sentados ouviam. Dos aqueus cantava o retorno
funesto, que, desde Tróia, impôs-lhes Palas Atena.
Em cima, compreendeu no juízo seu inspirado canto
a filha de Ícaro, Penélope bem-ajuizada;
e a elevada escadaria de sua morada desceu,
não sozinha, mas com ela seguiam duas criadas.
Quando alcançou os pretendentes, divina mulher,
parou ao lado do pilar do teto, sólida construção,
após puxar, para diante da face, o véu reluzente;
e criadas devotadas, uma de cada lado, se postaram.”
Que gestos graciosos, que elegância. Tudo com enorme simplicidade, sem
pompa ou grandiloquência. A beleza desse trecho está na metáfora: os
pretendentes, que são vis e sórdidos, vivem no andar inferior do palácio,
enquanto Penélope, elevada espiritualmente, habita o andar de cima. Essa é
a diferença moral que os separa. Sem discurso, sem moralismo ou
filosofadas, apenas ações, simples e puras ações. Estas, diz Aristóteles, são
a alma da tragédia. Segundo Autran Dourado: a personagem é a metáfora
em movimento. Com isso, toda a cena da primeira aparição de Penélope
não é somente uma apresentação da personagem, mas a própria metáfora
em ação. A grande diferença entre mostrar e dizer reside nisto: as metáforas
se conectam com elementos que não estão necessariamente explícitos no
texto, mas em nossa capacidade interpretativa. Todo texto literário é uma
grande metáfora. O ponto primordial na literatura não é sobre o que o texto
nos diz, seu conteúdo material, mas o que o texto nos sugere, a experiência
estética contida nele.
Ninguém sabe bem de onde veio a palavra “kitsch”, embora fosse frequente
na Alemanha e Áustria no final do século XIX. Nem ninguém sabe
exatamente como definir a palavra. Mas todos reconhecem o kitsch quando
o encontram. A boneca Barbie, Bambi do Walt Disney, Papai Noel no
supermercado, Bing Crosby cantando “White Christmas”, fotos de poodles
com lacinhos no pelo. No natal somos cercados por kitsch ― clichês
antigos que perderam a inocência sem atingir a sabedoria. Crianças que
acreditam no Papai Noel devotam emoções reais à ficção. Nós, que
deixamos de acreditar, temos somente falsas emoções a oferecer. Mas o
fingimento é agradável. Sentimos que é bom fingir e, quando todos aderem
a ele, é como se não estivéssemos fingindo de forma alguma.
É claro, você pode utilizar os antigos estilos, mas você não pode leva-los a
sério. E se você os utilizar, ainda assim, o resultado continuará sendo kitsch
― bens padronizados, a preço de mercado, produzidos sem esforço e
consumidos sem pensar. Pintura figurativa se tornou coisa de cartões de
natal, a música, melosa e sentimental, e a literatura se desmantelou em
clichê. Kitsch é arte falsa, expressando falsas emoções, cujo propósito é
enganar o consumidor para que ele pense sentir algo profundo e sério,
quando na realidade não sente absolutamente nada.
Contudo, evitar o kitsch não é tão fácil quanto parece. Você pode tentar se
ultrajantemente vanguardista, fazendo algo que ninguém teria nem pensado
em chamar de arte ― talvez atropelando um ideal valorizado ou sentimento
religioso. Porém, como argumentei da última vez, isso também leva à
falsificação: falsa originalidade, falso significado e um novo tipo de clichê,
como podemos ver em tanta da jovem arte britânica. Você pode até posar
de modernista, mas isso não vai leva-lo necessariamente a atingir o que
Eliot, Schoenberg ou Matisse atingiram, que foi tocar o coração moderno
em suas mais profundas regiões. Modernismo é difícil. Requer competência
na tradição artística e a arte de sair da tradição para criar algo novo.
Joyce opta pelo gnômon, que é uma estrutura euclidiana de uma forma
geométrica gerada após a subtração dum paralelogramo menor da área de
outro paralelogramo maior. Agora imagine que temos dois quadrados e que
a subtração do quadrado menor deixa a área remanescente de um L, temos
um gnômon. Joyce utiliza essa proporção ― a da incompletude ― como
tema em “Dublinenses”. O tema da incompletude é refletido nos cenários,
imagens, situações e falas; é como se ele mostrasse apenas o L
remanescente de um todo. As personagens são, de certo modo, completas
nessa incompletude: o drama vem da falta.
Tomo estas palavras de Flaubert para mim ― e para toda minha visão
sobre a arte ― quase como axioma:
Em vez do autor apontar para si dizendo “olhe, caro leitor, como sou
inteligente!”, discretamente nos deixa pistas no texto, confiando que o
leitor irá captar a mensagem, símbolos e metáforas, sem nunca o
subestimar. De forma que narrativas assim seguem a linhagem de Flaubert,
na qual o autor não se intromete no próprio texto. Eu ainda sou dos que
concorda com Barthes ― não em tudo, só neste ponto ― ao dizer que o
autor está morto no momento em que o leitor recebe o texto. Não dirá mais
nada, o que há de ser dito está no papel e, depois de publicado, não deve ser
mudado. Nada se explica, o texto tem que se sustentar por si.
De ordinário o diálogo é bom, não inferior aos de Jorge Amado, José Lins,
Rachel de Queirós e alguns outros que sabem fazer conversas naturais,
coisas que só ultimamente apareceram. Na literatura antiga os diálogos
eram, com poucas exceções, pavorosos. A gente do “Floradas na Serra”
fala direito. Às vezes usa expressões inchadas e pedantes, mas, por
estranho que isto pareça, não nos enjoamos delas: provavelmente na
camada social que a romancista nos expõe, a palavra campanuda fica bem.
Registrando-a, a Sra. Diná Silveira de Queirós foi escrupulosa, como foi
escrupulosa e feliz na observação de abundantes minúcias que dão ao seu
livro enorme valor. Essas anotações só poderiam ser feitas por alguém de
bons olhos que tivesse estudado cuidadosamente a parte da pequena
burguesia que fornece os elementos essenciais da narrativa.
A Sera. Diná Silveira de Queirós conhece por dentro e por fora as suas
personagens. Não as foi buscar no romance francês nem no romance inglês:
achou-as aqui perto, em Abernéssia, na pensão de D. Sofia, uma casa de
moças tuberculosas. E reproduziu-as de tal jeito que o leitor se convenceu
de que ela é uma tuberculosa também.
“Tentemos explicar.
“Os cortes que [você] dá ao texto também nos oferece agilidade, leveza. É
isto que busco em meus textos.
A cena a que Bruno se refere ocorre após a morte duma personagem que
leva um tiro às margens do rio São Francisco. Isso me fez lembrar que
ainda não devo ter comentado mais amplamente a importância dos cortes
na narrativa, dentre eles um tipo de técnica especial chamada elipse
narrativa.
Bati na porta da vizinha: na casa dela, tudo normal. Deve ter fechado o
registro geral, disse ela. Eu? Não sei nem onde fica, faz pouco tempo que
moro aqui, sabe, e volto para casa só à noite. Meu Deus, mas quando o
senhor viaja uma semana não fecha a água e o gás? Eu não. Mas que
imprudência, me deixe entrar, vou lhe mostrar.
Abriu o gabinete da pia, mexeu em alguma coisa, e a água chegou. Está
vendo? Tinha fechado. Desculpe, sou tão distraído. Ah, vocês, single! Sai
de cena a vizinha, mais uma que agora fala inglês.
Raciocinemos. Cada efeito tem uma causa, pelo menos é o que dizem.
Descarto o milagre, não vejo por que Deus se preocuparia com o meu
chuveiro, nem é o mar Vermelho. Logo, para efeito natural, causa natural.
Ontem à noite, antes de me deitar, tomei um Stilnox com um copo d’água.
Logo, até aquele momento ainda havia água. Hoje de manhã já não havia.
Logo, meu caro Watson, o registro foi fechado de madrugada — e não por
você. Alguma pessoa, algumas pessoas estiveram em minha casa e
recearam que eu despertasse não com o barulho delas (seus passos eram
abafadíssimos), mas com o prelúdio da goteira, que também as
incomodava, e elas talvez até se perguntassem como é que eu não
acordava. Portanto, sendo espertíssimas, fizeram o que a minha vizinha
também teria feito, fecharam a água.
“Deve ter fechado o registro geral, disse ela. Eu? Não sei nem onde fica,
faz pouco tempo que moro aqui, sabe, e volto para casa só à noite. Meu
Deus, mas quando o senhor viaja uma semana não fecha a água e o
gás? Eu não. Mas que imprudência, me deixe entrar, vou lhe mostrar.
Abriu o gabinete da pia, mexeu em alguma coisa, e a água chegou. Está
vendo? Tinha fechado. Desculpe, sou tão distraído. Ah, vocês,
single! Sai de cena a vizinha, mais uma que agora fala inglês.”
Agora você pode me perguntar: bem, Paulo, como é que trabalho as vozes
no meu texto? A resposta é: não sei. Uma vez escolhidas as regras pelas
quais escreveremos, a graça é justamente sentar para escrever e ir
descobrindo, palavra por palavra, o ritmo das personagens. No final das
contas, não é a história o que mais interessa, mas a investigação do
humano: a minuciosa criação e desenvolvimento das personagens.
Não deixe que lhe digam que você está perdendo seu tempo quando está
olhando para o vazio. Não há outra maneira de conceber o mundo
imaginário.
A) Confuso
B) Impreciso
C) Pomposo
A maioria dos livros ruins terminam assim porque os autores são engajados
em tentar justificar a eles mesmos. Se um autor vaidoso é alcoólatra, então
o personagem mais simpaticamente retratado no livro será um alcóolatra.
Esse tipo de coisa é muito chato para quem está de fora. Se você pensa que
é racional, sábio, bom, uma maravilha com o sexo oposto, uma vítima das
circunstâncias, então você não se conhece bem o suficiente para escrever.
Eu parei de me levar a sério aos vinte e sete anos e desde então me vejo
como matéria prima. Eu me utilizo da mesma maneira que um ator utiliza a
si mesmo: todos os personagens ─ homens e mulheres, bons e maus ─ são
feitos de mim mesmo mais a observação.
Nada que tenha sido feito pode te dizer como fazer algo novo, mas se você
compreender a técnica dos mestres, terá uma maior chance de desenvolver
sua própria. Colocando em termos do xadrez: não houve ainda um grande
campeão enxadrista que não soubesse o jogo do campeão predecessor de
cor.
Não cometa o erro comum de tentar ler para ser bem informado. Ser bem
informado vai lhe tornar o brilho das festas, mas não vai ter absolutamente
nenhuma utilidade para você como escritor. Ler um livro para poder
conversar sobre ele não é a mesma coisa que compreendê-lo. É muito mais
útil ler alguns grandes romances de novo e de novo até que compreender o
que as fazem funcionar e como os escritores os construíram. Você tem que
ler o romance umas cinco vezes antes de poder vislumbrar a estrutura, o
que o torna dramático, o que dá ritmo e movimento. As variações de tempo
e andamento, por exemplo: o autor descreve um minuto em duas páginas,
depois avança dois anos em uma frase ─ por quê? Quando você descobre,
realmente aprendeu algo.
Cada escritor irá tomar por favoritos aquele de quem ele acha que pode
aprender mais, mas eu fortemente recomendo ficar longe de romances
vitorianos, que são crivados com hipocrisia e explodem de palavras
redundantes. Até George Eliot escreveu muito sobre muito pouco. Quando
você se sentir tentado a escrever mais do que deveria, leia contos de
Heinrich von Kleist, que disse mais com menos palavras do que qualquer
outro autor na história da literatura ocidental, com exceção talvez de
Pushkin e Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Eu
os leio regularmente, apenas algumas páginas por vez, junto a Swift e
Sterne, Shakespeare e Mark Twain. Ao menos uma vez ao ano eu leio
algumas obras de Pushkin, Gogol, Tolstói, Dostoiévski, Sendhal e Balzac.
Para minha mente estes romancistas do século XIX são os grandes mestres
da prosa, uma constelação de gênios insuperáveis assim como encontramos
na música de Bach a Beethoven, e eu tento aprender algo deles todo dia.
Essa é minha “técnica”.
Mesmo que você viva no fim do mundo, não há motivos para se sentir fora
da realidade. Se você tem uma boa biblioteca cheia de grandes escritores, e
se mantiver relendo-os, terá mais acesso aos segredos da literatura que
todos os pedantes culturais que comandam o cenário nas grandes cidades.
Eu conheci um crítico influente de Nova Iorque que nunca leu Tolstói e se
orgulhava disso. Então não perca seu tempo se preocupando com o que é
declarado a tendência do momento, o tema certo ou estilo certo, ou seja lá o
que esteja ganhando prêmios. Modas literárias mudam tão rápido quanto o
tamanho das saias. A única maneira de não ser deixado para trás e se
manter agarrado a si mesmo. Qualquer um que teve sucesso na literatura o
fez nos próprios termos.
Isso significa que não há propósito em se forçar a ter interesse em algo que
lhe entedia. Quando eu era jovem, perdi muito tempo tentando descrever
roupas e móveis. Eu não tinha o menor interesse em roupas e móveis, mas
Balzac sempre teve interesse apaixonado por essas coisas e conseguia
comunicar até a mim enquanto eu o lia, então pensei que tinha de dominar
a arte de escrever parágrafos excitantes sobre cristaleiras se quisesse me
tornar um bom romancista. Meus esforços estavam condenados e eu
acabava com todo o entusiasmo pelo que estava escrevendo.
Não é fácil, é claro, ser fiel ao que você realmente se importa; todos
gostaríamos de ser lembrados como alguém curioso sobre tudo. Quem
nunca compareceu a uma festa sem fingir interesse por algo? Mas quando
você escreve, tem de resistir à tentação, e quando ler o que escreveu, se
perguntar sempre: isso realmente me interessa? Eu realmente me importo?
É nessa fase que eu pondero sobre o capítulo por tempo suficiente para
aprendê-lo de cor ─ eu o recito palavra por palavra para quem estiver
disposto a ouvir ─ e se eu não lembrar de algo, geralmente acho que algo
não estava certo. A memória é boa crítica.
O estilo de Bukowski não poderia ser pior, como diz o próprio Carrero:
aquilo não é Literatura, é insulto. É um conjunto de “cunts, cums and
fucks” [bocetas, porras e fodas] pelo simples sensacionalismo de escrever
um palavrão. Isso revela o mau gosto do escritor — não que seja proibido o
uso de palavras mais grosseiras, obscenas. Palavrão pra mim é palavra fora
do lugar — e uma total falta de estilo. Na escrita dele, vemos poucas
imagens fortes (ou nenhuma), a maioria delas sendo clichês, como dizer
que a mulher era “loira, olhos azuis, pernão, bunda gostosa”… Uma total
falta de classe e originalidade. Qualquer tiozão ou pedreiro diria o mesmo.
Há apenas sensacionalismo, monólogos rasos e explicações. Os poemas
parecem sempre fragmentos de prosa dispostos em estrofes.
O telefone tocou naquela noite. Era Mercedes. Tinha conhecido ela numa
leitura de poesia em Venice Beach. Ela tinha uns 28 anos, corpo
interessante, ótimas pernas. Loira, de um metro e sessenta e poucos, olhos
azuis. O cabelo era longo e ligeiramente ondulado. Fumava o tempo todo.
Sua conversa era chata, seu sorriso estridente e falso quase sempre. Tinha
ido para a casa dela depois da leitura. […]
Não falamos muito. Fiquei bolinando as pernas dela.
Bebemos e fumamos por um bom tempo. Por fim, tiramos a roupa e fomos
para cama. Primeiro Mercedes, depois eu. Nos beijamos. Fiquei
saçaricando aquela boceta. Ela pegou no meu pau. Montei nela. Ela mesma
meteu meu pau lá dentro. Era bem apertadinha. Fiquei brincando um
pouco. Colocava e tirava, colocava e tirava, só a cabeça. Daí, devagarinho,
enfiei até o cabo. Sem pressa. Meti com força umas quatro ou cinco vezes.
Ela gemia, com a cabeça apoiada no travesseiro. “Ãããiii…”. Maneirei e
fiquei só bimbando de leve.
Noite abafada, os dois suando muito. Mercedes estava doida de cerveja e
maconha. Resolvi que o final seria esplendoroso, ia mostrar-lhe umas
coisinhas.
Continuei chacoalhando. Mais cinco minutos. Mais dez. Não conseguia
gozar. Comecei a fraquejar. Fiquei mole.
Mercedes não gostou:
– Continua! – pediu. – Ah, continua, baby!
Não deu mesmo. Rolei pro lado.
O calor estava insuportável. Enxuguei o suor com o lençol. Podia ouvir
meu coração bombando. Soava triste. No que Mercedes estava pensando?
A vida me fugiu, meu pau murchava.
Vemos aqui o total descaso com a forma, não há técnica, ritmo, beleza ou
profundidade existencial; há apenas mais uma descrição de um sexo. Não
há nenhum conflito psicológico da personagem a não ser o pau murcho —
e convenhamos que é muito fácil dizer que a qualidade está “no retrato de
um homem rude e materialista”. O verdadeiro realismo consiste em
representar tanto o belo quanto o feio — principalmente numa forma bela.
O conteúdo pode ser feio, imoral ou falso, mas a forma deve ser
irrepreensível.
A língua lambe
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
Nem preciso comentar esse poema, ele fala por si. Não há nenhuma alusão
direta ao sexo oral, mas sabemos perfeitamente o que se passa pelas
imagens (metáforas) e sons (aliterações).
CAPÍTULO I
A dor! A estupidez!
Não penses que meus miolos são apertados, igual aos do bode, pelas
raízes dos chifres. Flancos tremendo, olhos de pedra, ele encara tanto
quanto consegue ver do mundo e sente-o surgindo em si, enchendo-lhe o
peito assim como a neve derretida enche o leito seco dos riachos,
fervilhando-lhe as bolas inchadas e tortas, carregando os miolos com a
mesma inquietação que o fez sofrer ano passado, e no ano anterior a esse.
(Esqueceu-se de todos). Os quartos estremecem com a mesma ânsia
alegre, inconsciente, de montar o que quer que esteja por perto — a
tempestade se amontoando em torres negras ao oeste, um dócil toco de
árvore apodrecendo, alguma cabra de pernas abertas. Não consigo nem
olhar. “Por que essas criaturas não encontram alguma dignidade?”
pergunto ao céu. O céu não diz nada, previsivelmente. Faço careta, ergo o
dedo médio em desafio e dou chutinho obsceno. O céu me ignora, sempre
impassível. A ele eu também odeio, tanto quanto odeio os brotos dessas
árvores estúpidas, esses pássaros barulhentos.
Não, é claro, que eu me engane com pensamentos de que sou mais nobre.
Monstro sem sentido, ridículo, agachado nas sombras, fedendo a homens
mortos, crianças assassinadas e vacas martirizadas. (Não me orgulho nem
me envergonho disso, entenda. Mais uma vítima enfadonha, espiando os
acasalamentos que não foram feitos para serem observados). “Ah, coitado,
pobre esquisitão” eu grito e me abraço, e rio, deixando escorrer lágrimas
de sal, he he!, até cair arfando e soluçando. (É em maior parte fingimento)
O sol gira sem ordem acima, as sombras aumentam e diminuem como se
de propósito. Passarinhos, com um piado estridente, põe ovos. As ervas
tenras, dum amarelo inocente, espreitam do chão: as crianças dos mortos.
(Foi bem aqui, neste verde intenso, certa vez quando a lua estava
sepultada nas nuvens, que arranquei a cabeça do astuto velho Athelgard.
Aqui, onde as surpreendentes e minúsculas mandíbulas do açafrão
abocanham o sol de fim-de-inverno como se fossem as cabeças de
pequenas cobras d’água, aqui eu matei a velha de cabelos grisalhos cor-
de-ferro. Tinha gosto de urina e bile, que me fez cuspir. Doce adubo para
flores amarelas. Tais são as memórias dum salteador das sombras,
vagabundo dos confins da terra, andarilho do misterioso muro do mundo.)
“Aaaaaaaah!” eu grito, com outra rápida, sórdida careta para o céu,
observando melancolicamente como ele é, lembrando amargamente como
era, e lançando estupidamente as redes do amanhã. “Aargh! Iaaaah”,
cambaleio, esmago árvores. Desfigurado filho de lunáticos. Os carvalhos
corpulentos fitavam-me do alto, amarelado pela manhã, abaixo de
qualquer complexidade. “Não quis ofender”, eu digo, com um terrível
sorriso sicofântico, e cumprimento tocando a ponta dum chapéu
imaginário.
GARDNER: Certo. Eu acho que você está certo sobre eu estar mirando em
profissionais. Eu penso que provavelmente o tipo de pessoa que
normalmente leria meus livros também lerá esse livro, porque depois que
você constrói uma reputação com certos seguidores, eles meio que confiam
em você. Quer dizer, todas mulheres de advogados e todos médicos que
chegam em casa e leem alguns romances não são literatos profissionais,
mas leem livros. Eles veem meu nome num livro, pensam que talvez seja
interessante e pegam para ler. Muitas das cartas que recebi sobre On Moral
Fiction eram de pessoas que leram meus outros livros e não estão
acostumadas com ficção contemporânea, parte porque desistiram de ler. E
muita gente, aonde quer que eu vá ― e acredito que seja verdade para a
maioria ―, diz “eu só não leio mais ficção, leio não ficção”. E o motivo é
simples: a ficção se tornou chata, estúpida e deprimente, fajuta, em vários
sentidos. Sempre há bons escritores. Há grandes escritores, feito John
Fowles, a quem menciono em On Moral Fiction. Não há muitos além dele.
Mas é certo que esse livro foi escrito para profissionais. Critico livros como
aqueles de Tom Pynchon e John Barth, e de outras pessoas, livros tidos
como nobres e verdadeiras obras de arte quando, de fato, não são. Não são
tão bons. Têm erros bem específicos, falhas na execução e falhas na
concepção. São, às vezes, uma reflexão de personalidades que são
perdoáveis e amáveis na vida cotidiana, mas que não são tidas como
modelos porque não são lá tão bons como modelos humanos; e meu
protesto, realmente, não é ao fato de que esses autores existam, mas ao fato
de que os acadêmicos frequentemente os enaltecem. O que acontece numa
sala de aula é isto: você dá aula sobre um romance de alguém feito
Anthony Trollope, que é um tipo de romancista perfeito que, como alguns
dizem, nunca pisa fora da linha. Isto é, ele faz o trabalho bela, simples e
claramente e você tem que demorar na sala tanto quanto demora para os
garotos lerem o romance, certo? O que significa umas semanas se você os
apressar. Como Barchester Towers ― você não pode pedir para os garotos
na faculdade lerem e pensarem sobre esse livro em menos de duas semanas.
Então isso significa três aulas na primeira semana e três na segunda em que
você tem que falar sobre Barchester Towers. O problema é que não há nada
para dizer, porque é um livro perfeito. O estudante compreende como são
as personagens, o porquê de elas fazerem o que fazem, entende por que é
importante o que eles fazem e pensam que fazem, entende o cenário e
entende que é uma grande obra de arte. E você fica lá, parado, sem nada
para dizer. Por outro lado, você vai para a sala com Gravity’s Rainbow e
pode falar, falar, e falar porque há artimanhas por trás das artimanhas.
Sabe, você pode achar uma tropa da SS escondida em todo canto. Você
pode falar sobre história moderna e sobre existencialismo, você pode falar
sobre Freud, sobre Marx, e assim por diante. Há milhares e milhares de
coisas para se falar. O livro pode não ter uma boa história, pode ser
filosoficamente inconsistente, pode ser psicologicamente inconsistente,
pode ser exagerado, pode ser chato, pode ser maravilhoso também. Mas
seja qual for o caso, o fato é que assim é muito fácil ensinar. O resultado é,
quanto mais e mais cursos temos sobre literatura, que é o que está
acontecendo, mais e mais cursos são feitos sobre livros. O resultado é que
você tem mais e mais cursos sobre livros que são fáceis de ensinar, porque
são obscuros, estranhos ou alguma outra coisa. Você se afasta cada vez
mais da noção do que é um bom livro. É verdade que alguns grandes livros
são difíceis. Eu diria que Finnegans Wake leva um semestre inteiro para
ensinar mais ou menos bem. Diria que Ulysses é bem dificilzinho e um
grande livro, mesmo com algumas falhas. E também diria algo assim até
de O Retrato do Artista Quando Jovem. Diria que O Som e a Fúria é
divertido de se falar sobre em sala e é um grande livro. Mas há também
todos aqueles livros ― livro após livro após livro. Os trabalhos completos
de Dickens, se você der a um estudante poucas pistas de como Dickens
trabalhava, nunca mais vai ter que dizer mais nada. Três dias de aulas sobre
Dickens serão o suficiente, pois ele é um escritor maravilhoso, faz coisas
simbólicas interessantes e engenhosas, mas você pode destaca-las feito um
raio, e no resto do semestre fica sem mais nada para dizer. Então eu tenho
me posicionado contra o que está acontecendo nas salas de aula, uma
espécie de valoração dos romances pela dificuldade intelectual em
detrimento da arte. O que está realmente acontecendo são questões práticas:
como dar essa aula tendo redefinido a arte. Então a academia se distancia
mais e mais das pessoas que realmente leem. Os livros que todos sabem
que são maravilhosos e que amamos ler não estão na pauta das
universidades. Um exemplo, depois encerro esta questão. Provavelmente
um livro que influencia o povo americano mais do que qualquer outro é E o
Vento Levou. Sendo grande arte ou não, emocionou grande número de
pessoas, sendo algum tipo de arte. E eu argumentaria, como escritor, que
não é mal estruturado, que as frases são até bem-feitas, que de fato ele tem
o direito de estar entre os romances americanos mais importantes.
Certamente tenta contar a verdade sobre um período muito importante da
história americana e no mínimo cria personagens duradouras, como
sabemos pelo fato de toda garota que o lê tentar se modelar à imagem da
personagem principal do livro, pelo menos por um tempo. E ainda assim é
muito raro encontrar E o Vento Levou nas salas de aula, enquanto é normal
encontrar Finnegans Wake, embora poucas pessoas na América tenham
sido comovidas profundamente por qualquer coisa nesse livro.
The King’s Indian, outro romance ― na verdade não é bem um romance, é
um conjunto de contos terminando com uma novela, mas as histórias são
todas interligadas, ao menos na minha cabeça, e são todas sobre uma coisa:
é meu livro sobre estética e há certas questões fundamentais sobre como a
arte funciona e o que ela causa nas pessoas, nas pessoas e no mundo, que só
podem ser respondidas com uma demonstração ficcional. E o princípio
organizador nas três partes do livro são: primeiro, um punhado de histórias
negras em que pessoas sobrevivem por acidente, ou algo assim, depois
as Queen Louisa stories, nas quais há histórias loucas, felizes, absurdas,
depois a novela The King’s Indian. Quando você as termina, se sente como
uma daquelas pessoas e analisa isso e muda todo material concreto para
abstrato, tem um livro sobre estética.
Jason and Medeia, outro livro meu, é sobre uma série de polaridades que
estão no mito original e nos comentários sobre ele. É uma versão moderna
da mesma questão. Primeiro de tudo, a polaridade entre macho e fêmea.
Jasão é meio que arquetipicamente o masculino e Medeia o feminino e essa
é uma questão que se tornou bem interessante com o novo movimento
feminista e de libertação gay e tudo mais, onde sexualidade se torna outra
vez uma questão principal para a filosofia. Também é um livro sobre
intuição mística. Macho e fêmea novamente em termos de lobos cerebrais e
tal. Toda a polaridade entre macho e fêmea é a questão subjetiva de Jason
and Medeia, e quando você terminar o livro saberá tudo o que penso e eu
saberei tudo o que penso sobre o assunto. Eu não sabia, quando comecei, o
que eu iria pensar sobre essas coisas, mas trabalhando a história e tentando
contar a verdade, tentando dizer isto é o que ela faria, isto é o que ele faria,
isto é o que eles fariam, cheguei à conclusão, que é este livro. Cada livro
tem um assunto diferente. Tudo vai se somando. Todo o resultado soma a
um contínuo exame de método, uma visão geral de mundo, ou ordem
nacional, o que quer que eu queria chamar. Estou ciente de que cada livro é
sobre algo diferente e que é sempre sobre um dos questionamentos
fundamentais. Se eu descobrisse que estava fazendo um livro exatamente
igual ao outro que fiz antes, sobre o mesmo assunto, ficaria bastante
preocupado e provavelmente largaria o livro ou tentaria com todas forças
dizer o oposto do que disse da última vez. Se eu pudesse provar que mudei
de mentalidade, então estaria interessado, do contrário seria um livro
horrível.
GARDNER: Acho que meu livro favorito é The King’s Indian, mas eu
gosto bastante de The Sunlight Dialogues. Gosto muito, muito mesmo,
de Grendel, exceto por um pequeno erro técnico que me incomoda, mas a
maioria das pessoas não nota quando leem. Não vou dizer qual é. Gosto de
todos os meus livros porque praticamente durmo com eles até que eu esteja
pronto. Nickel Moutain me tomou vinte anos para escrever. Trabalhei nele
um pouco cada ano durante todo esse tempo. Trabalhava nele até não
conseguir mais vê-lo e depois colocava-o na gaveta por um tempo, quando
achava que dava conta de novo eu voltava e escrevia um pouco mais.
Quando acabei, já havia reescrito aquela coisa umas centenas de vezes. Eu
tinha episódios que introduzi, depois tirei, mudei personagens e mudei
todos os nomes. Quando acabei, eu realmente havia revirado o livro. Era
uma joia lapidada. Se era ruim depois de vinte anos de trabalho, então eu
deveria me levantar e desistir do negócio. Então, é assim com todos os
meus livros. Não os publico até ter resolvido os problemas. E acho que são
um bom entretenimento nas artes eruditas.
GARDNER: Sim, nunca publiquei nada que pense ser ruim. Publiquei um
conto uma vez que era tão estúpido que finjo que não existe, mas no geral
gosto das minhas coisas.
GARDNER: É.
GARDNER: Bem, ambas as coisas têm a ver com uma pergunta simples: a
história está contando uma história? Você é arrebatado quando lê, da
mesma forma que quando escutava “João e o pé de feijão” e “Branca de
Neve”, ou algo do tipo? Se a ficção está realmente funcionando bem, o
leitor se enrosca na cadeira e esquece o tempo. Sabe, você senta após o
almoço e, de repente, alguém está te sacudindo e perguntando se você vai
vir para o jantar e você não pensa sobre o fato de que se passaram cinco
horas ou coisa do tipo. Isso sempre acontece comigo quando leio o bom
Tolstói, até mesmo o mau Tolstói. Sempre me acontece quando leio
Faulkner. Se não acontece comigo, se me pego olhando em volta, olhando
o relógio imaginando o que devo fazer, então não acho que o autor
conseguiu. Acabou com o texto. Sendo assim, penso que o que o escritor
deve fazer é criar um sonho vívido e contínuo na mente do leitor. Vívido de
maneira que dê pistas o suficiente, com detalhes concretos e específicos
para que você tenha no que prender o sonho, e contínuo para que ele não te
distraia com alguma má escrita estúpida ou algo que te faça pensar no autor
em vez da cena. E então penso que quando está tudo acabado, o leitor irá
dizer se fiz isso ou não. Muitas vezes, particularmente nos filmes de hoje
em dia, você vai a um cinema, se diverte, vai para casa e pensa melhor.
Você não liga, não parece um bom filme, no final das contas. E nenhum
escritor que que isso aconteça a ele. Então melhor contar ao estudante que
isso irá acontecer e tentar ensina-lo a não deixar que aconteça.
GARDNER: Claro… Acho, de longe, que a melhor leitura este ano foi por
Susan Shreve… um conto. Susan é bem nova, o estilo tem altos e baixos.
Às vezes ela é absolutamente brilhante, às vezes é inacreditavelmente
terrível. A história que ela leu é simplesmente brilhante, eu creio.
Simplesmente… funciona por completo. E acho que essa será a maneira
que ela escreverá, cada vez mais. Acho que não há limites para o futuro
dela.
Então, qual a fonte desse encanto, e como julgamos se uma obra de arte o
possui? Três palavras resumem minha resposta: beleza, forma e redenção.
Nossa necessidade humana pela beleza não é algo de que podemos carecer
e ainda assim sermos pessoas completas. É uma necessidade decorrente de
nossa natureza moral. Podemos vagar por este mundo, alienados,
ressentidos, cheios de suspeitas e desconfianças. Ou podemos encontrar
nosso lar aqui, descansando em harmonia com os outros e com nós
mesmos. E a experiência da beleza nos guia pelo segundo caminho. Nos
diz que nosso lar é no mundo, que o mundo já é organizado em nossas
percepções como um lugar próprio para a vida de seres como nós. É o que
vemos nas paisagens de Corot, nas maçãs de Cezanne, ou nas botas
desamarradas de Van Gogh.
Embora seja verdade que muitos dos nossos críticos torçam o nariz
para best-sellers, o melhor exemplo de literatura popular de nossos dias, e
que também seja verdade que desconheçam, em maioria, as causas de
qualquer qualidade literária que seja, agindo mais ou menos feito Íon,
garanto que Chesterton não seria menos ávido em reclamar da falta de
teologia num livro sobre São Tomás de Aquino, ou falta de filosofia num
ensaio sobre Aristóteles. Em Arte, é preciso a todo custo defender o que há
de mais elevado; e o obeso polemista inglês defendia com unhas em dentes
apenas seu próprio mau gosto mórbido. Em literatura, a qualidade literária
(ou sua falta) é crucial para entendermos o tipo de educação ela pode nos
propiciar, direta ou indiretamente.
Uma ideia mais sólida de educação pela arte vem de Platão aos dias de
hoje, de modo que não devemos subestimar o valor da educação da
imaginação (ou pela imaginação), termo usado por Northrop Frye, ou
educação do imaginário, ideia amplamente difundida no Brasil por Olavo
de Carvalho, ainda que utilizada ad prostitutio pelo espectro político
conservador como pretexto para proselitismo ideológico e autopromoção.
Seja qual for o nome dado à teoria, com suas sutis nuanças de diferenças, a
educação imaginativa talvez seja a etapa mais básica e importante de uma
formação humana integral. Esse tipo de educação se dá, idealmente, desde
a tenra idade, através do contato com as coisas mais belas, portanto, mais
próximas dos universais. A privação da beleza durante as fases de
formação do indivíduo provoca uma patologia mental já conhecida pelos
gregos antigos: a apeirokalia. Aquele que não experimenta o que há de
mais belo desde a infância torna-se como que um raquítico intelectual, cuja
mente, por falta um arcabouço que lhe dê sustentação, é incapaz de
compreender os saberes mais elevados.
Porém, ainda que toda obra de arte contenha a moral como elemento
constitutivo, para a contemplação, não existe obra bem feita que seja moral
ou imoral, verdadeira ou falsa. Isso significa apenas dizer que o artista pode
mostrar objetos falsos e mesmo imorais, não afetando a qualidade estética
de seu trabalho. Há, contudo, certos erros de concepção de mundo, ou
cosmovisão, que afetam a qualidade da obra mediante uma espécie de
falsificação da realidade. O artista com a imaginação deformada, quer por
ideologia , quer por outra psicopatologia, não consegue perceber a
realidade, tornando-se incapaz de mostrar as coisas tais como são ou como
de fato elas chegam a sua percepção. A imaginação é como que turvada por
uma lente defeituosa, tornando indistinguível um enorme paquiderme de
uma pedra gigantesca. Há artistas que, apesar da loucura, tornam-se
grandes artistas justamente por domarem sua imaginação e suas patologias,
não sucumbindo a essas distorções; por outro lado, aquele que se força a
criar ideologicamente, como militante, logo corrompe seus dons artísticos,
perdendo até mesmo aquilo que julgava ter.
Uma anedota conta que o pintor realista pinta o que vê, o impressionista, o
que sente, mas o engajado, aquilo que o partido manda. Em outras palavras,
ele não está agindo segundo a moral de um verdadeiro artista, vendendo
seu dom por um prato de lentilhas. É preciso que o artista crie de seu
âmago, livrando-se de todos os pactos de hipocrisia social, expressando
sem medo de sanções o que julga ser verdadeiro. Senão uma verdade sobre
o homem, ele nos dá um “retrato do artista”, revelando as profundezas de
sua própria alma. Contudo, uma terceira forma de falsificação, que pode
surgir disso, significa a morte do escritor: uma espécie de autoplágio, a
repetição incessante dos mesmos temas e conflitos, histórias e estruturas
narrativas livro após livro. Geralmente, esse decaimento poético é
acompanhado de um solipsismo atroz, que de pouco em pouco engole o
mundo, restando apenas o eu suas sensações mais mesquinhas. O salto do
particular para o universal inexiste, restando apenas o particular pelo
particular: um sistema planetário inteiro em torno do próprio umbigo.
Por outro lado, se houver na vida desse indivíduo um bom leitor que seja
— pai, mãe, avô — dotado de sagacidade e clareza, capaz de se fazer
entender e transmitir alguma instrução a esse jovem leitor, há alguma
esperança de que a leitura, de fato, abra-lhe a mente para obras mais
elevadas. Aos que me interpelassem, acusando-me de elitismo, valendo-se
do fato de estarmos no Brasil, e que propagar a leitura já seria grande
avanço, respondo apenas que nem ao menos estou me referindo a uma
iniciação artística mais complexa, apenas a um mínimo de instrução e
exemplo no seio familiar.
A educação artística, em minha opinião, é sine qua non para o melhor
proveito das artes, e não é um elemento tão inacessível quanto se poderia
supor. Livros e críticas são mais acessíveis do que nunca, e um indivíduo
com força de vontade pode se valer de publicações como esta para se
autoeducar. Mas esse ímpeto dificilmente surgirá sem as condições
adequadas, e nossa sociedade precisamente as dificulta, embora não as
impeça de todo. Por isso a necessidade de uma nova geração de críticos e
escritores bem formados, alheios às porcarias ideológicas transmitidas
pelo mainstream da “cultura pop” ou das ruínas acadêmicas. É preciso
buscar certo purismo intelectual para compreender o mundo para além das
meras sombras. Para tal, é preciso blindar-se do efêmero, do particular, que
turvam a mente para o universal.
É preciso, portanto, lutar pelo direito de ser ofensivo, sem se esquecer que
se pode ser ofendido. Somente com tal liberdade será possível o
florescimento de novas ideias. Se a critica que estiver errada, podemos
ignorá-la ou rebatê-la; se estiver correta, podemos rechaçá-la de pronto, por
orgulho, mas podemos também levá-la em profunda consideração,
agradecendo nosso crítico por encontrar um erro, equívoco ou escotoma,
nos poupando tempo e esforços numa reformulação do pensamento ou da
obra. Mas, apesar das reveses, nunca haverá impedimentos àqueles que
honestamente busquem a verdade, o bem e a beleza, pois, já dizia o
evangelista: o Reino dos céus é arrebatado à força e são os violentos que o
conquistam.
É digno de nota que, felizmente, não é o que ocorre nos poemas de Borges;
porém basta uma breve lida em contos como “Biblioteca de Babel” para
notar que dificilmente o foco é o próprio Homem e, neste conto em
específico, dificilmente temos uma narrativa. Borges também possui
pouquíssima sofisticação no uso dos narradores ― algo que encontramos
fartamente em Homero ― e ama misturar narrativas com ensaio, há muita
grandiloquência e pouca beleza objetiva.
Para ilustrar, vejamos o Canto XIII da Ilíada (496-508). O poeta age como
um fotógrafo da natureza e das emoções humanas, nos impressionando com
cor e forma ― muitos dos grandes escritores, a quem consideramos
inovadores ímpares, a exemplo de Flaubert ou Hemingway, fazem uso
muito similar das técnicas.
“O rei Davi estava velho, avançado em idade, e por mais que o cobrissem
de roupas, não se aquecia. Seus familiares disseram-lhe: busquemos para
nosso senhor, o rei, uma donzela virgem que sirva o rei e tenha cuidado
dele, e durma em seu seio para que ele se aqueça. ”
― Primeiro Livro dos Reis, 1:1-2.
Com isso, não quero dizer que Gabo fez uma alegoria parcial ou total do
texto bíblico ― afirmar, por exemplo, que Aureliano Buendía é o rei Davi,
que Remédios, A Bela, é a Virgem Maria no momento da Assunção, ou
que, numa hipótese absurda, José Arcádio Buendía é alguma espécie de
Nabucodonosor aturdido por sonhos impossíveis ―, apenas mostro um
breve paralelo, intencional ou não, que está presente no resultado final.
Vemos o Coronel chegar à cidade envolto numa manta que nunca o aquece
(o que nos é dito depois) e acompanhado de mulheres que, ao contrário do
rei Davi, ele provavelmente possuiu na tentativa de se aquecer. Após
inúmeras sutis referências ― não citações escancaradas, mas detalhes
muito discretamente colocados na narrativa ― é impossível não suspeitar
de que Gabo se divertia ao nos deixar essas pequenas pistas e especulações
― e ao nega-las por completo depois, em entrevistas.
ARTE MORAL
Por Paulo Cantarelli / 1 de outubro de 2018
Ouvindo um debate entre os escritores John Gardner e William Gass, é
engraçado notar quanto os escritores pós modernos interpretam mal a moral
na ficção.
Gardner afirma, em seu “On Moral Fiction”, que toda arte é moral. Com
isso, ele quer dizer duas coisas:
I. Uma obra de arte moral é fiel a suas regras integrais e à tradição literária.
[Isto é, formalmente bem-feita. Assim, podemos inferir que é dever moral
do escritor dar o melhor de suas capacidades.]
A busca da beleza como ideal artístico deve ser incentivada, mas nunca
super-valorizada. Costumo dizer que a arte serve à beleza e a beleza à
condição humana. Beleza sem condição humana é um ídolo vazio e sem
vida feito o bezerro de ouro idolatrado pelos filhos de Israel. A busca pela
beleza, nesse sentido, basta ao verdadeiro artista, pois irá levar,
inevitavelmente — e digo por experiência própria — a algum
confrontamento maior sobre sobre os verdadeiros sentidos da existência.
Gardner de maneira alguma descarta a importância formal ou a deixa em
segundo plano — tanto que esse é o primeiro significado de “arte moral”
—, nem descarta algo que Gustave Flaubert, ao escrever, se questionava:
sim, o estilo está bom… Mas bom para quê?
Portanto, beleza, bem e verdade não se confundem — cada qual com seus
respectivos domínios e formas de julgamento. E essa independência é
ótima para o artista. Porém, daí a chegar à conclusão de que bem e verdade
estão completamente fora da obra de arte é um engano. Toda boa arte — a
literatura em especial — é constituída, além dos elementos formais, de
elementos materiais: a própria vida. E da vida não escapam bem, verdade e
beleza. Todo conflito, numa narrativa, é constituído com base nos dilemas
morais do ser humano: ser ou não ser, agir ou não agir, matar ou morrer?
O KITSCH
Desta vez vamos para o gênero que já foi considerado a mais alta literatura,
e que hoje foi reduzido, em grande parte, a uma prosa mesquinha, sem cor
nem brilho, entrecortada e distribuída aleatoriamente em “versos”. A
exemplo disso, temos Paulo Leminski, cujos poemas parecem mais frases
de efeito que muito bem poderiam ser tweets. Mas não é dele de quem irei
tratar hoje.
Vozes mulheres
Ecoou criança
ecoou lamentos
ecoou obediência
rumo à favela.
fome.
recolhe em si
recolhe em si
a fala e o ato
o eco da vida-liberdade.
Severino de Maria;
do finado Zacarias.
há muitos na freguesia,
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
já finados, Zacarias,
E se somos Severinos
a de tentar despertar
a de querer arrancar
O poema de Cabral, por outro lado, não aborda a condição nordestina, mas
a condição de toda a humanidade perante a morte e a miséria. Por serem
temas polêmicos, ou minimamente sensíveis nos dias de hoje, podemos
dizer que tratam-se de dois grupos étnicos e sociais que passaram (e
passam) por situações de preconceito e baixa qualidade de vida, os negros e
os nordestinos retirantes. Mas não há espaço para esse tipo de discussão na
literatura, não há espaço para o que quer que esteja fora dela.
João Cabral, se fosse um poeta ruim, diria: “Severino, filho miséria, não
tinha sobrenome, igual a todos os miseráveis da seca, oprimido pelos
coronéis etc., etc., etc…”; ao contrário diz: “O meu nome é Severino, como
não tenho outro de pia”, ou seja, Severino sem sobrenome ou outro nome
de batismo (de pia), Severino sem mais nada. O nome, depois do corpo,
talvez seja a coisa mais pessoal dum ser humano, tirando-nos o nome, não
temos identidade, desejos, esperanças; somos desumanizados, nos
tornamos apenas um pedaço de carne que não se distingue dos outros, parte
de uma massa. Em qualquer obra de ficção, o nome é uma metáfora para o
homem. O nome é o homem.
A diferença entre o grande poeta e o poeta menor é que o grande poeta não
tenta nos forçar a sentirmos compaixão ou terror, ele cria esses
sentimentos, nos joga diretamente nos horrores do eu-lírico, sentimos a
emoção estética. Ele não tenta nos convencer de quão a vida é árdua, ele
nos mostra. O que é o eco de revolta que Evaristo fala? Ou pior, o que é “o
eco da vida-liberdade”? Não sabemos, mas sabemos o que é a vida e a
morte severa que Cabral nos apresenta. Não sabemos o que a autora quis
dizer, podemos apenas imaginar um sentido não contido no texto, que não
está pintado. Não há som, forma ou cor. Evaristo transfere a emoção do
objeto (poema) para o sujeito (observador), coloca a uma emoção subjetiva,
emoção nervosa, no texto e apela para que o leitor se emocione. A poeta
não fala através das insígnias das coisas, das imagens concretas, como nos
lembra Ariano Suassuna em “Carrero e a Novela Armorial”:
[…] Homero e Dante pensavam e falavam através de imagens concretas,
de contornos nítidos e firmes, pois suas palavras eram verdadeiras
insígnias das coisas, insígnias que me apareciam como que desenhadas,
gravadas e iluminadas, ao passo que aqueles outros poetas eram
conceituais e meio abstratos. Descobri que tais poetas conceituais
empregavam mais palavras que imagens concretas. Diziam, por exemplo,
num poema, ‘a vida é cheia de mistérios’ e julgavam, com isso, que tais
palavras tinham eficácia suficiente para despertar em nós o sentido do
enigma da vida. Acontece que a palavra ‘alegria’, abstrata, não é o
suficiente para causar a sensação da alegria no leitor, assim como a
palavra ‘tristeza’ não basta para sugerir, no leitor que não está triste, o
sentimento que ela guarda.
POETA DO CU DA VIDA
A poeta também nos diz para esperar o “eco da vida-liberdade”. Cabral nos
deixa abismados com a perspectiva do futuro, de um lado há esperança, do
outro o gosto amargo da realidade:
— Severino, retirante,
é difícil defender,
teimosamente, se fabrica,
O INFERNO DO BELO
Por Paulo Cantarelli / 19 de novembro de 2018
Que certas belezas podem ser consideradas falsas e outras imorais, não há
dúvidas. Pela mesmo lógica, seria ainda possível admitir um feio
considerado moral ― talvez feito os querubinzinhos pintados a guache que
a vovó mantém ao lado da televisão coberta com uma renda de crochê ―,
porém o mais comum é que relacionemos o belo àquilo que é bom ou
verdadeiro. Quando educamos crianças, as elogiamos com um “que bonito”
quando fazem uma boa ação, e as repreendemos com um “que feio” quando
mentem ou fazem algo de errado. A beleza, em nossas consciências, está
atrelada ao que é bom e verdadeiro. Como consequência, numa sociedade
em que se tem dificuldades para se distinguir belo de feio, temos também
um problema em distinguir certo de errado.
É espantoso o fato de que, por onde se olhe, haja tantos ataques à beleza. A
afronta à beleza tradicional não se trata mais de um protesto contra as
cafonices e o kitsch da vovó octogenária, mas de algo muito mais cruel e
sinistro. Não há mais espaço no mundo para o belo, a hedionda fealdade
tornou-se norma na arquitetura, na literatura, nas artes plásticas e mesmo na
beleza humana. Prédios que mais parecem caixões, ruas cinzentas,
exposições que nada têm a ver com arte em museus, tatuagens dos pés à
cabeça e corpos expostos ao ridículo por qualquer coisa. A nudez mais
nada significa e a beleza humana foi reduzida ao corpo. E o corpo, talvez
aquilo que temos de mais particular neste mundo material, se perde em
banalidades, deformações e descuidos. A tal da “body positivity” tornou-se
uma desculpa para o desleixo, são tidos como características positivas
obesidade, diabetes e outros males que afligem o corpo. Há a guerra contra
a masculinidade, ações belas e nobres como o cavalheirismo, a defesa
daqueles que amamos, ou mesmo o heroísmo de outras épocas, perdem
espaço para atitudes mesquinhas e covardes. O Aquiles do Século XXI
seria vegano e fugiria do serviço militar obrigatório dizendo que suas
crenças pessoais não o permitem ir à guerra.
Mas por que destruir a beleza? Por que destruir um dos poucos elementos
que tornam a vida suportável? Porque uma vida sem beleza é uma vida sem
sentido. O homem entrega-se aos vícios e prazeres baratos, sem nada mais
o que apreciar. Perdemos contato com uma dimensão quase metafísica da
existência, para mergulharmos fundo no materialismo, viramos massa de
manobra.
Mas resposta não é tão simples. É preciso sempre ter em mente, durante a
leitura, que há dois principais aspectos da obra literária: o literário (formal)
e material (o vulgo “conteúdo”: temas, ideias filosóficas, registro
sociológico, política, etc.).
Vale salientar que a leitura cerrada e a leitura distante, assim como forma e
conteúdo, não se anulam, embora sigam uma ordem natural: a análise a
nível microscópico nunca estará completa antes que se distancie para o
nível macroscópico; e essa análise distante, por sua vez, também nunca
estará completa sem que antes tenha passado pelos pormenores do texto,
palavra-por-palavra. Isso se dá pela própria natureza do discurso poético:
Literatura, diria Henry James, não se restringe somente à arte, à feitura,
pois, num romance, podemos ter 99% de Literatura, mas sempre haverá 1%
de vida.
Estudar arte antiga tem, em si, algumas dificuldades. Essas areias pelas
quais caminharam os gigantes apaga os rastros. Poucas obras sobreviveram
ao tempo, principalmente no teatro e literatura. A exemplo de Sófocles,
apenas a Trilogia Tebana e mais quatro peças chegaram até nós. Outros não
tiveram tanta sorte. Seria como se soubéssemos que, no século XVI ou
XVII, existiu na Inglaterra um bardo chamado Shakespeare, cujas peças
Macbeth, Rei Lear e Hamlet chegaram até nós ― das trinta e sete que ele
escreveu. Em pintura, quase nada restou da arte antiga, já as esculturas, em
sua maioria, são réplicas que os endinheirados da época encomendavam
para enfeitar os jardins.
O que impressiona mais: o corpo comum do faraó sem muitos traços físicos
ou a escultura do Discóbolo, de Míron, com toda a musculatura bem
detalhada assim como movimento, expressão corporal e face? E que dizer
da escultura romana de Laocoonte, no Museu do Vaticano? É uma
experiência estética singular, aterradora. Nos perguntamos como pôde um
simples homem dar tal forma a um bloco de pedra, com tantos detalhes e
emoções como se dotado de vida.
Aqui cabe apontar um apanhado de regras bastante úteis para que se faça
uma leitura eficiente e inteligente de obras ensaísticas (ou obras
expositivas), com alguns breves comentários meus. Creio que todo bom
leitor chega a elas eventualmente e por conta própria, como foi meu caso,
mas não custa compartilhá-las por aqui. As regras têm muito a ver com a
humildade intelectual, e as com relação à etiqueta no exercício da crítica
são excelentes.
[Ou ‘o que foi dito é verdadeiro? Se for, e daí? Em que isso é relevante?’]
É importante notar que, como Adler diz, os bons livros nos propiciam um
grande diálogo atemporal entre as grandes questões da humanidade. Ao
começarem estudos, não entrem cheios de certeza e autoafirmações, vão
com calma, não acreditem em tudo o que lhes é dito se não lhes dão razões
para que acreditem, mas também não se deixem guiar pelas paixões e pelo
ego; às vezes, inúmeras vezes, é preciso admitirmos nossa própria
ignorância e nos desprendermos do que achamos que conhecemos. Essa é a
real humildade intelectual e a única maneira de se aprender algo
verdadeiramente.
Espero que as informações sejam úteis. Quem for iniciante nos estudos e
tiver mais interesse e, acima de tudo, quiser se aprofundar em leituras não
literárias, isto é, ensaios ou livros expositivos (técnica literária, filosofia,
etc…), recomendo a leitura de Adler em geral, não só de “Como ler livros”.
As regras acima são um apanhado bastante sucinto e creio que o bom leitor
já deve praticá-las naturalmente (ao menos em parte), mas também acredito
que sejam bastante úteis para quem quer se tornar mais consciente sobre
educação e sobre os próprios processos cognitivos.
Não li o livro por completo, mas, nos dois capítulos iniciais, nota-se que
“Claridade” é um livro afetado, melodramático e mais parece uma versão
mais gramaticalmente correta de “A Culpa é das Estrelas”. O falso lirismo
é de fazer vomitar desde o índice de capítulos:
Já notamos que se trata da história de um moço que perde a noiva. Até aí,
nada demais, porém temas emotivos requerem frieza. Você abre um
prólogo, nota que as descrições de cenário ou perfis são meramente físicos,
não apresentam nada de metafórico ou psicológico, há apenas uma natureza
morta trivial, como se o autor desse os detalhes por obrigação, não porque
há algo que nos ajude revelar o segredo das personagens.
Começa o romance:
Esse mau uso gera monotonia e, quando bem utilizado, pode gerar os mais
diversos efeitos. Ainda há os ecos, os verbos terminados em “ou”, mas nem
vou entrar em muitos detalhes. Essas terminações verbais tornam as frases
ainda mais monótonas: entrou, indicou, tomou, beijou, tocou… etc.
“Assim que Ricardo entrou no quarto, Nina sorriu e indicou que sentasse na
cadeira ao lado da cabeceira da cama”.
A única qualidade deste primeiro parágrafo é uma tentativa de uso de voz
de personagem em estilo indireto livre, mas que terminou caindo feito
explicação: “Estavam quentes, e a pulsação, alta. Ou seja, o habitual das
últimas semanas.”. Esse “ou seja… etc.” seria a voz do noivo, porém numa
observação tão banal que nem faz diferença.
— Ricardo, sua vida vai continuar sem mim. Aceite, é o óbvio. Você não
pode se transformar em uma espécie de noivo viúvo, um solteirão ferido
pela vida . Se ficar com pena de você mesmo, vai me decepcionar demais.
Seria ridículo.
— Devagar, moça! Quem a ouve falar assim pensa que você é uma pedra
de gelo! Não me esqueço de como a durona chorou de saudade, só porque
passou uns dias sem ver o sobrinho…
— Mas melhorei e não chorei mais. Pelo meu sobrinho, você me entende.
E pare de despistar, isso não tem nada a ver com que estou dizendo.
Nina tornou a olhá-lo com seriedade:
— Querido, não suporto pensar que você talvez fique por aí, largado, sem
buscar ninguém. Preso em um mundinho de recordações.
Se o autor fez algo de bom e mostra alguma qualidade após os dois
capítulos iniciais, não tenho como dizer. Não gosto de fazer análises de
livros que não li por inteiro, mas este é um dos casos que não tenho a
menor vontade de ler o resto das 500 páginas para descobrir. Só posso dizer
o mesmo que Autran Dourado: se o escritor não acertou nem nas primeiras
dez páginas, dificilmente acertará no resto.
Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos
anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo
ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir;
combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
Que rosto mediano, nem bonito nem feio é este? É o que eu diria num texto
sem cuidado, mas aqui cada palavra é absolutamente calculada. Machado, a
esta altura da vida de escritor, já sabia o que fazia. Podemos tecer uma
analogia com o que São Tomás de Aquino dizia sobre regra moral: toda e
qualquer regra moral é genérica e universal, e toda situação humana é
concreta e particular. Assim, em arte, no uso das técnicas não devemos
partir jamais do “dever ser” para dar um juízo estético pronto, mas da
análise do próprio caso concreto.
A regra geral é que comentários desviam o foco do leitor para algo que não
é a ação, fazendo uma observação sobre esse algo e correndo risco de
quebrar o sonho ficcional. Em mãos erradas, pode soar como explicação
desnecessária, mas aqui Machado usa-o como misdirection. Nos apresenta
uma Conceição casta e santa ― o próprio nome nos remete à Virgem Maria
― para depois desaparecer com ela. É aí onde reside um dos mais
interessantes truques de ilusionismo: Conceição se mostrará um tanto
diferente na noite de Natal.
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os
gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se
rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre
a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, como desalinho
honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora,
tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo;
essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava
algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a
posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a
mesa de permeio.
Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar
acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do
galo na Corte, e não queria perdê-la.
—Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a
semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem
Santo Antônio…
Para não perder fluidez e naturalidade, interrompendo o fluxo psicológico
da narrativa com travessões para expor algo que já foi conversado antes, ele
recorre ao discurso indireto puro e simples, tomando para o narrador o
diálogo e depois retomando as falas. Este uso de elipses é um recurso
recorrente na obra machadiana. A seguir, temos o perfil mais sensual de
Conceição:
A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele
momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis,
que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença
de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. […] e rindo para fazê-
la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os
olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um
tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava
um pouco a voz, ela reprimia-me:
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as
nossas caras.
O clima é de total cumplicidade entre amantes, ainda que essa paixão não
venha a se concretizar. Conceição já não é mais a mesma do início do
conto, uma recatada e sem graça senhora balzaquiana, mas uma mulher
sensual e ativa. Como o próprio Nogueira diz: “ela, que era apenas
simpática, ficou linda, ficou lindíssima”.
O FIM DA ARTE
Por Paulo Cantarelli / 8 de março de 2019
A primeira pergunta que qualquer artista se faz não é “por que a Beleza
importa?” ― com isso não pretendo diminuir o grandioso trabalho de
Roger Scruton, pelo contrário; ao esteta e ao crítico talvez esta questão seja
mais importante ― mas sim “o que é a beleza?”, “o que é verdadeiramente
belo?”, “o que é o feio?”, “por que é feio?”, e assim por diante. Quando
pensamos que obtivemos a resposta para alguma delas, vem outra pergunta:
mas o que eu percebo como belo é o mesmo belo que o seu belo? Então
entramos na questão de gosto. Gosto não se discute, dizem. Não se discute?
E por acaso não há gostos inferiores ou superiores, fundamentados em
elementos exteriores à psicologia do observador? O gosto (ou desgosto)
pode ser subjetivo ― nisso Kant nos lembra que uma investigação do gosto
seria uma investigação da subjetividade do observador, não
necessariamente do objeto ― porém o estudo sério da arte, e não da
psicologia de quem a vê, está mais ligado a alguns elementos exteriores que
interiores; cabe a nós, como críticos, ver o que ocorre de fora para dentro,
partir dos elementos objetivos às impressões subjetivas do que ocorre em
nossa alma durante, e mesmo depois, a contemplação do belo, do feio, do
grotesco ou do sublime. Já o artista, em geral, percorre o caminho oposto: é
um sentimento, uma inquietação no espírito, que o leva à angústia da
criação, partindo duma investigação do próprio âmago para o mundo
exterior. E assim nasce uma obra de arte, para ser breve.
Antes, uma anedota: é dito que, após uma palestra de Gilberto Freyre, o
lexicógrafo Antenor Nascentes teria corrigido um erro gramatical num dos
escritos do sociólogo. A resposta de Gilberto foi incisiva:
Cada macaco no seu galho, prega o ditado popular. Então assim deixemos
o estado das coisas: quem entende de filosofia, que fale de filosofia, quem
entende de teologia, que fale de teologia. Só não me venha não saber nada
de arte e querer posar de esteta. Por muito tempo, nós, escritores de ficção
brasileiros, como diria Autran Dourado, ficamos “parecendo aqueles
meninos de antigamente vestidos à marinheira, as pernas cabeludas de fora,
na mão direita o balão de gás colorido, na esquerda a mão protetora do
preceptor”, sempre muito quietinhos, subjugados aos teóricos, sem opinar
sobre o que fazemos e como fazemos, respondendo só quando perguntados.
Somente alguém, como eu disse, que dedique todo seu ser à arte poderá ter
um vislumbre do que ela significa, muito acima dos gostos e preferências
pessoais, crenças, culturas e tempo. Isso, no mais das vezes, significa pôr a
mão na massa, ter um quê de artista, porém nem sempre é necessário sê-lo.
A capacidade crítica é levemente independente da artística, isto é: há bons
artistas que dariam péssimos críticos e bons críticos que dariam péssimos
artistas. Obviamente um artista com um senso crítico muito fraco raramente
é um bom artista, mas isso é outra história. O importante não é quem fala,
mas o que se fala.
Dito isso, muita boa arte tem sido condenada por canalhice ou preconceito
tolo: não me importa se Gabriel García Márquez foi comunista, se Tolstói
ou Dostoiévski foram cristãos, se o que Dante escreveu está de acordo com
os santos doutores da Igreja, se Camus era ateu; o que importa é que cada
um desses autores, em suas épocas, recriou diversas experiências humanas
como eles as perceberam. Ou seja: não importa se a Revolução, Cristo, ou
o Nada são a verdade universal, importa que o sentimento sobre essas
experiências sejam verdadeiros e que, last but not least, estejam dotados de
uma forma artística de qualidade. Este é outro ponto de grande importância
de nossa breve investigação.
Sob minha perspectiva de artista, tenho plena consciência de que nem todos
enxergam a arte feito eu. Para os de minha classe, é impossível dissociar o
objeto, a obra de arte, de sua criação, da técnica. Noutro artigo, dei a
definição de arte como sendo “qualquer expressão inteligível, criada por
meio de técnica, que sirva a um fim estético”, deixando claro que mantive
de fora alguns outros aspectos por fins didáticos; afinal não pretendo ser
exaustivo nestes artigos, nem criar nenhuma filosofia estética. Poderíamos
incluir aí que essa expressão deverá não apenas ser inteligível, como
também precisa de uma forma final física, apreensível por um ou mais dos
sentidos ― algo mais ou menos implícito nos exemplos que usei de
expressão. Também notei que o uso da palavra inteligível causou certa
confusão para alguns leitores. Aqui ela não está num contexto filosófico
platônico, por exemplo, mas no sentido de algo que é facilmente
compreensível. Como diria Croce: arte é aquilo que toda a gente sabe o que
é. Se você demorar mais de dois segundos para identificar um objeto como
obra de arte, provavelmente não é arte. Retomei este ponto apenas para que
se tenha ideia do que eu estou falando quando digo a palavra arte. Agora
vamos para questões que concernem mais ao artista que ao esteta.
“A beleza expressa pelo artista não pode despertar em nós uma emoção
cinética ou uma sensação puramente física. Essa beleza desperta, ou deve
despertar, ou ainda induz, ou deve induzir, uma estase estética, um
sentimento ideal de pena ou de terror, uma estase causada, prolongada e
por fim dissolvida por aquilo que chamo de ritmo da beleza.” ― Stephen
Dedalus, em “O Retrato do Artista Quando Jovem”, de James Joyce.
Um erro gravíssimo, poderíamos dizer crasso, entre alguns pseudoestetas é
este: ignoram que a emoção estética é estática, não cinética; ou seja, não
move o observador para canto nenhum nem para ação alguma. Se
movermos o leitor a uma ação, não se trata mais de discurso poético, porém
de uma retórica enrustida. Se o leitor prestar a atenção na frase da
personagem de Joyce (que falava apenas para expor as ideias do autor),
note que o sentimento estético está nitidamente mais atrelado à forma,
ao ritmo da beleza, que à mensagem transmitida. Nisso entram os conceitos
tomistas de Integritas, Consonantia e Claritas, cuja explicação mais
detalhada e prática fica para outro momento. Em suma: a emoção estética
vem da forma, não das ideias; porém muitos, como eu disse anteriormente,
parecem se esquecer desse detalhe e nunca, ou quase nunca, expõe critérios
técnicos e verdadeiramente formais numa análise artística.
Mas antes, vale ressaltar que a teoria de São Tomás de Aquino é teológica,
ou seja: saímos do campo da arte. Isso não significa que não possamos
tomar alguns elementos emprestados para entendê-la; mas ao falarmos da
natureza teológica da beleza, já não estamos mais discutindo uma obra de
arte ou sua qualidade estética. Qualquer um que cometesse esse erro ―
ignorar a mudança no foco da discussão, da obra de arte e sua qualidade
para os mais altos desígnios do criador do universo ― provavelmente teria
a redação do Enem zerada por fuga ao tema. Não entrarei no mérito de
explicações teológicas acerca dos valores transcendentais, nem das
respostas de São Tomás de Aquino a algumas questões totalmente alheias à
Arte. Ao final das contas, a Beleza tem mais a ver com o que sentimos
(estética, do grego aesthesis, sentir) do que com a explicação fidedigna da
estrutura da realidade; sejam essas belezas consideradas “falsas” ou
“imorais”, se é que isso é possível. Mas para entender esse ponto, ainda é
preciso explicar as funções próprias da arte, coisa que faremos adiante.
Algo interessante notado por Joyce é que Aristóteles não chegou a definir
os sentimentos da catarse, apenas mencionou nominalmente. Para um
filósofo de tamanho porte, uma definição mais precisa de termos não deve
ter passado despercebida, mas infelizmente, nas anotações que vieram a
compor “Poética”, não se encontra a definição para os sentimentos de
compaixão (pena, piedade) e terror (pavor, medo). Temos de ser
pragmáticos e tomar de modo mais ou menos intuitivo o sentido dessas
emoções, portanto, qualquer um que se aproprie do termo catarse para dizer
que tal obra de arte é ruim porque não produz terror ou compaixão
provavelmente não sabe nem o que quer dizer com isso. Há diversos
sentimentos causados pela arte, que não se restringem à catarse, embora o
momento de catarse seja um dos mais elevados ― ou desastrosos ― da
arte, mais em específico das artes narrativas. Um romancista ou dramaturgo
inexperientes podem cair em derramamentos líricos nos pontos de maior
tensão e carga emocional, nos provendo com uma obra melodramática ou,
para usar a palavra comum, brega. Com isso, há alguns sentimentos, ou
intenções, que vão de encontro ao sentimento estético, são eles: desejo e
repulsa.
Recentemente publiquei o artigo “O Fim da Arte”, que tinha por intuito ser
a primeira parte de um artigo maior, a respeito das declarações que fiz
sobre o escritor britânico J. R. R. Tolkien. Houve a necessidade de, dado o
estado das coisas, esclarecer algumas questões confusas na mente do leitor
médio acerca do que é arte e quais suas funções. Questões que, em
qualquer ambiente intelectualmente saudável, não gerariam grande
polêmica nem careceriam de serem explicitadas. Aliás, no Brasil, perdeu-se
completamente o senso de proporções, de modo que escritores medíocres
são tidos como grande coisa e, não bastando a produção de matéria
digestiva em cenário nacional, ainda se importam tipinhos como Tolkien e
outros escritores menores que mais deformam do que educam a imaginação
do leitor, como se verá a seguir. A saber, qualquer escritor que julgo é
julgado pelo único parâmetro que importa: o da arte verdadeiramente
grande. Então, se você ainda não leu nenhum artigo anterior que escrevi
sobre o tema, recomendo que volte e os leia, pois não pretendo elencar
mais critérios do que os que eu já defini.
I – A DECADÊNCIA DA ARISTOCRACIA
II – ARTE E IMAGINAÇÃO
2. Objetividade total.
6. Cordialidade. [Sinceridade/Honestidade].”
Se você foi alfabetizado, deve ter notado a diferença. Temos uma belíssima
cena de abertura, bem construída. Todo o cenário humano nos remete ao
calor, à preguiça, as imagens colaboram para o sentimento estético do
texto, podemos ouvir o murmúrio dos elmos, que parecem com o do mar, e
cozinhamos brandamente com os cavaleiros em suas armaduras. Cada
adjetivo conta, há só descrições relevantes aos olhos. Há colorido
psicológico. Porém, antes de seguir para a comparação com um trecho de
Tolkien, direi como entra a metanarrativa neste livro: é apenas no capítulo
quatro, e não no primeiro, que Calvino coloca uma espécie de monólogo
em primeira pessoa ― que faz o papel do prólogo das narrativas antigas ―
de uma narradora até então desconhecida. Descobrimos ser uma freirinha
quem conta a história e que, ao longo da novela, faz uma série de breves
monólogos sobre escrita, pequenas pérolas que todo escritor ― e Calvino
não escapa disso ― gosta de deixar sobre as próprias visões de literatura.
Além de mais essa metalinguagem do escritor-narrador, ao final
descobrimos que a narradora era uma das personagens da história que
contava, o que causa uma peripécia (ou reviravolta). Ou seja: esse detalhe
altera completamente perspectiva do leitor sobre o texto, forçando-o a
reavaliar tudo o que foi lido.
Sempre que toco na questão de estilo, dizem: mas Tolkien escreveu para
crianças. E por acaso crianças são retardadas? As crianças gregas liam
Homero e Sófocles em sua formação, Tolstói e Flaubert foram criados à
base de Ilíada, Divina Comédia e Dom Quixote, além de Shakespeare e
outras grandes obras da literatura ocidental. Então por que diabos
começamos com essa mania de literatura infantil, ou infanto-juvenil? A
literatura, para crianças, deve apenas ter uma linguagem mais acessível,
sem que com isso perca sofisticação estética, de modo que um adulto possa
apontar as nuanças do texto para que ela compreenda ― aliás, hoje em dia
mesmo os adultos são incapazes de interpretar uma linha, sequer, da ação
duma narrativa.
A própria trilogia dos Nossos Antepassados (da qual faz parte O Cavaleiro
Inexistente), de Calvino, poderia ser considerada para crianças, já que
possui o tom fantástico e inocente de contos de fadas. Só que são livros
cuja qualidade estética é tão boa que não notamos que também podem ser
lidos por crianças. Mesmo o já citado Grendel, de Gardner, foi lançado nos
Estados Unidos como ficção adulta e, na Inglaterra, literatura infantil. O
autor nunca deixou claro, tanto nos escritos não ficcionais quanto em
entrevistas, qual era o “público alvo” do livro, apenas menciona que
crianças e jovens não deveriam encontrar problemas em lê-lo.
Haldir led Frodo before them, and the Lord welcomed him in his own
tongue. The Lady Galadriel said no word but looked long upon his face.
Légolas gemeu:
― Um balrog!
― A Ruína de Durin!
Gandalf perdeu o equilíbrio e se apoiou no cajado:
― Agora eu entendo.”
Percebemos um pouco melhor a cena, mas isso é enxugar gelo. Não tenho
nenhuma intenção de corrigir o que já foi escrito, este é só um exercício
para demostrar como alguns problemas poderiam ser evitados. Agora, a
título de comparação, leremos em uma cena aleatória de Homero, em
Ilíada:
Em pé, sobre a borda do círculo em ruínas, puderam ter uma boa visão de
toda a região em volta, pois a maior parte das terras era vazia e sem
acidentes, com a exceção de trechos de florestas distantes, na direção sul,
além dos quais via-se, aqui e ali, o brilho de águas distantes. Abaixo de
onde estavam, nesse lado sul, a Velha Estrada se estendia como uma fita,
vindo do oeste e descrevendo curvas que subiam e desciam, até
desaparecer atrás de uma serra escura no leste. Nada se movia nela.
De lá, viam toda a região. A terra era vazia e sem acidentes, com a
exceção das florestas ao sul, além das quais via-se, aqui e ali, o brilho de
águas distantes. Abaixo, a Velha Estrada se estendia feito uma fita, vinda
do oeste e descrevendo curvas que subiam e desciam, até desaparecer
atrás de uma serra escura no leste. Nada se movia nela. Seguindo-a, via-se
as Montanhas: os sopés eram escuros e atrás deles se erguiam sombras
mais altas, e atrás destas, os picos brancos, luzindo contra as nuvens.”
Bem mais direto, porém ainda não ideal. Como podemos ver, Tolkien se
perde nas próprias descrições, vários cortes e elas poderiam se tornar um
momento de beleza e contemplação, transmitindo o sentimento das
personagens. Porém temos só uma sombra muito vaga disso, as imagens
são ofuscadas por palavras que sobram e construções sintáticas confusas ou
repetitivas, gordura que poderia ser queimada sem medo de desperdício.
Não é à toa que há os que se impressionam, e até mesmo gostam das
descrições de Tolkien, porém a estes faltam parâmetros por não terem lido
coisa melhor.
Após este artigo, é provável que o leitor pense que não gosto da história de
“O Senhor dos Anéis”. Pelo contrário, acho ótima, porém nem só de
história vivem os livros, como veremos adiante. A história, dizia Autran
Dourado, é o artifício que os escritores usam para bater a carteira do leitor.
Porém nem como enredista Tolkien serve: as ações do livro são muito
dispersas, mal estruturadas, as personagens ficam muito distantes umas das
outras em “As Duas Torres” e “O Retorno do Rei”. Pode-se argumentar
que é intencional, algo para o leitor sentir distância entre os núcleos
narrativos, porém o diretor Peter Jackson conseguiu uma montagem muito
boa dos acontecimentos da trama ― e até com certo parentesco homérico,
arrisco dizer ― ao intercalar as várias linhas de ações da narrativa de modo
que o espectador assista aos filmes sem perder a empatia pelas
personagens. Esse tipo de estruturação dá ao espectador ou leitor uma
melhor percepção temporal da narrativa, isso quando os eventos se passam
simultaneamente, é claro. Grandes romancistas costumam prestar atenção
nisso, é um elemento importante para não se perder o ritmo. Em “Ilíada”
isto se dá com a mudança das perspectivas entre os núcleos dramáticos, de
modo que nós pairamos pela narrativa, de uma personagem a outra, indo do
Olimpo a Tróia numa passada de versos.
Posto que a história seja boa, convém admitir que a literatura não se
sustenta só com ela. O que subsiste num romance, novela ou conto é a
exposição da condição humana, a investigação do humano. Literatura de
verdade não é ― como já expus anteriormente ― a defesa ou crítica de
ideias, ideologias, moral ou imoralidade; nem uma mera aventura mal
escrita cheia de reviravoltas.
A grandeza de um livro não pode ser medida em fatores feito a trama, esta
é apenas atrativo para leitores ingênuos. O escritor não é só um contador de
histórias; dizer que é só isso seria um retrocesso, embora, paradoxalmente,
não exista narrativa sem história. Sem ela, há cenários, monólogos ou
chatice ― o que deve ser o caso em 2/3 de “O Senhor dos Anéis” ― mas
não uma narrativa propriamente dita. A história é um pretexto para se
escrever; o problema começa quando o escritor se preocupa demais em
meramente contar uma história e se esquece de escrevê-la da melhor
maneira possível.
O bom leitor lerá um romance não somente por se identificar com uma
personagem ou pela história ― não que isso não possa acontecer ―, mas
pela capacidade sedutora do autor, pela construção da narrativa, o jogo de
palavras, de cenas, o cuidado com a forma, a boa frase, limpeza e clareza
no estilo, pelos conflitos internos e externos das personagens, pela
montagem, Técnica, etc. Não enxergar esses elementos é estar cego para a
derradeira arte. Nabokov estava certo: somente crianças podem ser
desculpadas por se identificarem com os personagens de um livro ou
sentirem prazer com histórias de aventura mal escritas. Ou dementes.
A entrevista que se segue incorpora três das feitas com John Gardner ao
longo de sua última década de vida. Após entrevistá-lo em 1971, Frank
McConnell escreveu que o autor, de 39 anos na época, era um dos mais
originais e promissores dos jovens romancistas americanos. Seus primeiros
romances — The Resurrection (1966), The Wreckage of
Agathon (1970), Grendel (1971), and The Sunlight Dialogues (1972) —
representaram, aos olhos de muitos críticos e resenhistas, uma nova e
excitante fase na empreitada da escrita moderna, uma consolidação de
recursos dos romances contemporâneos e um salto adiante — ou para trás
— num humanismo restabelecido. Pode-se encontrar, em seus livros, três
grandes traços da ficção contemporânea: a elegante narrativa experimental
de Barth ou Pynchon, o hiperrealismo gótico de Joyce Carol Oates e
Stanley Elkin, e história intelectual e cultural de Saul Bellow. Feito tantas
personagens da ficção contemporânea, as de Gardner são homens à beira
do abismo, homens confrontados com a consciência de que estão vivendo
uma vida que parece ser determinada, não por livre-arbítrio, mas por
grandes mitos, ficções cósmicas às quais devem controlar (ex: Ebeneezer
Cooke, em Sot-Weed Factor, de Barth, ou Tyrone Slothrop em Gravity’s
Rainbow, de Pynchon); mas as personagens de Gardner são filósofos no
limite, herdeiros, todos, dos grandes debates sobre autenticidade e má-fé
que caracterizam nossa era. Em Grendel, por exemplo, o herói-monstro é
iniciado numa visão sartreana do niilismo por um antigo, e evidentemente
erudito, dragão: um mito falando sobre a vacuidade de todos os mitos —
“Fazedores de teorias… Eles mapeariam até as estradas para o Inferno com
essas teorias malucas, essas listas deles, de daqui-até-a-lua-e-de-volta-de-
novo, repletas de detalhes inúteis. Insanidade; a insanidade mais simples
jamais concebida!”. Seus heróis — feito todos os homens — são filósofos
prestes a morrer; e a descoberta que geralmente fazem — central para a
energia criativa da ficção de Gardner — é que a morte da consciência
finalmente justifica a própria consciência. Os mitos, cuja artificialidade os
escritores contemporâneos tão avidamente têm insistido em expor,
tornaram-se novamente, nos trabalhos de Gardner, reais e cheios de vida,
sem jamais perder o caráter moderno de ficcionalidade.
JOHN GARDNER
ENTREVISTADOR
Você tem sido chamado de “romancista filosófico”. O que acha desse
rótulo?
GARDNER
Não sei se ser um romancista filosófico é melhor que ser de algum outro
tipo, mas acho que não há muita dúvida quanto a isso, de certa maneira, é
isso que eu sou. O material de um escritor é o que ele se importa, e eu gosto
de filosofia do mesmo jeito que alguns gostam de política ou jogos de
futebol, ou de objetos voadores não identificados. Eu leio um homem feito
Collingwood, ou mesmo Brand Blanchard, ou C. D. Broad, e fico excitado
— até nervoso —, cheio de suspense. Eu leio um homem feito Swinburn,
sobre tempo e espaço, e se torna profundamente relevante, para mim, se a
estrutura do espaço muda grandes massas próximas. É como se eu
realmente pensasse que a filosofia vai resolver as grandes questões da vida
— o que, às vezes, pensando sobre isso, ela realmente faz, ao menos para
mim. Provavelmente não com tanta frequência, mas eu gosto da ilusão. A
tentativa de Blanchard em fazer uma demonstração lógica de que
realmente há uma moral humana universal, ou o turbilhão de teorias, de
vários malucos pomposos, de que o universo está se estabilizando em vez
de se afastar — essas coisas são ótimas de se encontrar por aí. Interessantes
e instigantes, quer dizer, feito sapos falantes. Eu coleto mais material na
seção de filosofia duma livraria universitária que na de seção de ficção, e
eu leio mais frequentemente livros de filosofia que romances. Então, claro,
eu sou “filosófico”, embora o que escreva não seja, de modo algum,
filosofia pura. Eu invento histórias. O significado surge da necessidade,
para manter as coisas claras, feito quebras de parágrafo e pontuação. E, se
eu puder acrescentar, meus amigos são todos artistas e críticos, não
filósofos. Filósofos — exceto pelos poucos que são meus amigos — bebem
cerveja, assistem a jogos de futebol e derrotam suas esposas e filhos pela
fraudulenta tirania da lógica.
ENTREVISTADOR
GARDNER
ENTREVISTADOR
GARDNER
Nunca fui cheio de amores pelo realismo por conta de certas coisas que o
realismo parece me obrigar. Com realismo, você tem que gastar duzentas
páginas provando que alguém vive em Detroit, para que só então algo
absolutamente convincente possa acontecer. Mas o valor dos sistemas das
pessoas envolvidas é o que interessa, não o fato deles viverem no
quilômetro quatorze da estrada. Em minhas primeiras ficções, eu tentava
me afastar o máximo que pude do realismo, porque a maneira mais fácil de
se chegar ao coração do que se quer dizer é pegando emprestado a história
de alguém, particularmente uma história não realista. Quando você conta a
história de Grendel, ou de Jasão e Medeia, você tem que terminá-la do jeito
que ela termina — tradicionalmente, mas você pode fazê-lo do seu próprio
jeito. O resultado é que o escritor chega a um entendimento de coisas sobre
o mundo moderno à luz da história da consciência humana; ele a entende
um pouco mais profundamente, e se diverte bem mais escrevendo-a.
ENTREVISTADOR
GARDNER
Gustave Flaubert produziu até agora apenas quatro livros e todos eles
subsistirão. E provável que apenas um seja qualificado de obra-prima,
entretanto os outros certamente merecerão tanto quanto esse o mesmo
epíteto.
II
As pessoas que tudo julgam sem nada saber, e que, assim que aparece um
livro de um gênero novo e desconhecido, apressam-se em colocar nele,
como um cartaz, a tolice de seu julgamento que acreditam eterno,
proclamaram em alto e bom som, quando da publicação de Madame
Bovary, que Flaubert era um realista, o que, em seu espírito, significava
materialista.
Desde a origem dos tempos, o público francês bebia com deleite o meloso
xarope dos romances inverossímeis. Esse público amava os heróis, as
heroínas e as coisas que jamais se vêem na vida, pela única razão de que
essas coisas são irrealizáveis. Chamavam de idealistas os autores desses
livros, simplesmente porque se mantinham sempre a distâncias
incomensuráveis das coisas possíveis, reais, materiais. Quanto a idéias, eles
as tinham talvez ainda menos que seus leitores. Veio Balzac, e de início,
mal lhe deram atenção. Era, entretanto, um inovador singularmente
poderoso e fértil e um dos mestres do futuro, escritor imperfeito, sem
dúvida, para quem a frase era um obstáculo, mas criador de personagens
imortais que ele fazia moverem-se como através de uma lente de aumento,
tornando-as por isso mesmo mais impressionantes e de certa maneira mais
verdadeiras que a realidade! Madame Bovary aparece e provoca uma
confusão geral. Por quê? Porque Flaubert é um idealista mas também e
sobretudo um artista e seu livro era além disso um verdadeiro livro; porque
o leitor, sem se dar conta, sem saber, sem compreender, sofreu a influência
todo-poderosa do estilo, a luz da arte que ilumina todas as páginas desse
livro.
Com efeito, a primeira qualidade de Flaubert que para mim salta aos olhos,
assim que se abre uma de suas obras, é a forma, esta coisa tão rara nos
escritores e tão despercebida do público; digo despercebida, mas sua força
domina e penetra aqueles que menos acreditam nela, como o calor do sol
aquece um cego que entretanto não lhe vê a luz.
Flaubert não tem seu estilo, mas tem o estilo, ou seja, as expressões e a
composição que ele emprega para formular um pensamento qualquer, são
sempre aquelas que convêm absolutamente a esse pensamento, uma vez
que seu temperamento se manifesta pela precisão e não pela singularidade
da palavra.
III
“Sem estilo, não há livro”, este poderia ser seu lema. Com efeito, ele pensa
que a primeira preocupação de um artista deve ser criar o belo; pois, sendo
a beleza uma verdade em si mesma, o que é belo é sempre verdadeiro,
enquanto que o que é verdadeiro pode nem sempre ser belo. E por belo eu
não entendo o belo moral, os nobres sentimentos, mas o belo plástico, o
único que os artistas conhecem. Uma coisa muito feia e repugnante pode,
graças a seu intérprete, revestir-se de uma beleza independente dela
própria, enquanto que o pensamento mais verdadeiro e mais belo
desaparece fatalmente nas fealdades de uma frase mal feita. É preciso
acrescentar que uma parte do público detesta até a palavra “forma”, como
sempre se detesta aquilo que se é incapaz de compreender.
A imensa diferença que há entre eles está, efetivamente, toda aí: é que
Flaubert é um grande artista e a maioria dos outros não o é. Ele permanece
impassível acima das paixões que agita. Ao invés de ficar no meio da
multidão, isola-se em uma torre para considerar o que se passa sobre a
terra, e, não tendo mais as cabeças dos homens a limitar-lhe a visão, capta
melhor os conjuntos, tem proporções mais definidas, um plano mais
estável, horizontes mais amplos.
Também constrói sua casa, mas conhece os materiais que deve empregar e
rejeita os outros sem hesitação. Eis porque sua obra é absoluta, e não se
poderia tirar dela uma parcela sem destruir a harmonia total: enquanto se
pode fazê-lo em Balzac, em Stendhal, em outros: e bem perspicaz seria
aquele que percebesse isso.
IV
Ele não pensa, como alguns, que a inteligência e a inspiração, que o acaso e
o temperamento sejam suficientes para escrever um livro, que a informação
seja inútil e a longa pesquisa desprezível, porque ele é da antiga estirpe das
pessoas que sabiam muito. Ao invés de ignorar que o mundo existia antes
de 1793, e que se sabia escrever antes de 1830, meditou como Pantagruel
sobre todos os doutores de outrora. Conhece a história melhor que muitos
professores, porque a aprendeu em muitos livros onde eles não a vão
buscar; e, para suas obras, estudou a maioria das ciências, apenas acessíveis
aos especialistas. Melhor que os velhos sábios arqueados, ele conhece a
genealogia das cidades mortas e dos povos desaparecidos, com seus usos,
seus costumes, os tecidos com que se vestiam e as iguarias excêntricas que
preferiam. Domina a Bíblia protestante; o Corão, como um dervixe. Sabe
como decorrem umas das outras as crenças, as filosofias, as religiões e as
heresias. Explorou minuciosamente todas as literaturas, anotando passagens
de muitos livros desconhecidos, uns porque são raros, outros porque não
são lidos. Conhece os escritores de talento quase ignorados que
ocasionaram a decadência dos povos, os comentaristas e os bibliógrafos, os
livros profanos assim como os livros sagrados, as vidas dos santos, dos
padres da Igreja e os autores que os homens pudicos não ousam nomear.
Em certo dia de indignação e de cólera, organizou, para nos comunicar, um
volume inteiro com os lapsos dos escritores sem estilo, os barbarismos dos
gramáticos, os erros dos falsos cientistas, todas as vaidades e todo o
ridículo que passaram despercebidos e com os quais ele esbofeteará o
mundo.
V
Ele acha que é o bastante publicar seus escritos, e sempre manteve sua
pessoa bem afastada da popularidade, desdenhando a publicidade ruidosa
dos panfletos, as propagandas oficiosas e as exibições de fotografias nas
vitrinas de tabacarias, ao lado de um criminoso famoso, de um príncipe
qualquer e de uma jovem célebre.
Enfim, para contentar as pessoas que sempre querem ter detalhes pessoais,
eu lhes direi que ele bebe, come e fuma exatamente como elas; que é alto, e
que, quando passeia com seu grande amigo Ivan Turgueniev, eles parecem
um par de gigantes.
“[1] Nasci numa devota família Católica Romana, e passei grande parte
de meus primeiros dez anos entre gentis monges franciscanos. [2] Meu pai
era diretor de uma escola católica e um organista de igreja reconhecido,
um ativo e talentoso jovem que também tinha a energia e inclinação para
liderar a guarda local no distrito e participar da política. Apoiando o
regime autoritário pró-clerical do Almirante Horthy, ele era o tipo de
conservador que também era antifascista,[3] e, alarmado com a ascensão
de Hitler ao poder na Alemanha, usou sua influência e autoridade para
banir as reuniões do Partido Nazista da Hungria. [4] Em 1935, quando eu
tinha dois anos de idade, ele foi esfaqueado até a morte por um
adolescente nazista, escolhido por não ter dezoito anos e por não poder
ser executado por assassinato. [5] Após o funeral, minha mãe fugiu do
horror da perda indo para a cidade grande mais próxima, a primeira
cidade milenar da Hungria, cujo nome não vou lhe atormentar lembrando.
Ela alugou um amplo apartamento de segundo andar numa das ruas
principais da cidade,[6] uma rua estreita com igrejas barrocas e lojas em
voga, apenas a alguns minutos a pé do monastério franciscano que eu
costumava visitar antes de ter idade para ir para a escola. [7] Os serviços
de meu pai à Igreja e sua morte repentina, e o fato de que haviam muitos
padres em ambos os lados de nossa família, me enterneceram aos monges
franciscanos, e eu era sempre um convidado bem-vindo ao monastério.”
Em 1 temos uma cena indireta, em 2 o narrador monta um perfil
psicológico sobre cena, entre 3 e 5 temos novamente cenas indiretas, em 6
um breve cenário sobre cena, e novamente uma narrativa indireta em 7.
Nisso se constitui o jogo de cena-sobre-cena desta abertura. A cena, devo
lembrar, é a personagem somada a uma ação e a uma sequência (C = P + A
+ S); como definido por Raimundo Carrero, em “A Preparação do
Escritor”. As técnicas sobre-cena são a justaposição de algo a uma cena. Se
temos um cenário no meio de uma cena, trata-se de um cenário sobre cena,
não de um cenário puro. Somadas às cenas indiretas, que já possuem um
andamento rápido, as variações sobre-cena são ainda mais aceleradas.
Mas em que se constitui a cena indireta? A cena indireta não é nada mais
do que o velho dizer. Aqui o leitor pode estar confuso: mas o correto não
seria mostrar, não dizer? A princípio, sim, é preciso mostrar e não dizer,
porém às vezes é preciso dizer para não mostrar detalhes enfadonhos. É
saber o que, como e quando dizer, seguindo sempre a pulsação da narrativa.
Transpondo para a linguagem cinematográfica, seria equivalente à cena de
ângulo aberto (ou plano aberto, long shot), em que a câmera está distante
do objeto retratado, de modo que este ocupa pouco espaço do campo de
visão, ao contrário de um ângulo fechado (plano fechado, close-up), onde
temos mais detalhes. Os objetos são mostrados, porém a câmera não
enquadra diretamente em nenhum deles, nos dando uma visão geral.
Um desses temas que paira sobre e através da obra é a fragilidade dos laços
humanos, tão bem descrita em “Amor Líquido”, de Zygmunt Bauman ―
àqueles que torcerem o nariz ou revirarem os olhinhos à menção desse
nome: tomem um chá de camomila. Não vemos mais o “De almas sinceras
a união sincera / Nada há que impeça: amor não é amor / Se quando
encontra obstáculos se altera / Ou se vacila ao mínimo temor” de que nos
fala Shakespeare, a realidade é outra: nos tempos líquidos, como bem
observa Bauman, o homem pós moderno tem dificuldade em manter
vínculos duradouros ― em outras palavras, responsabilidades. András, em
suas aventuras e desventuras amorosas, aprende que não se aprende a amar
como quem aprende a tocar piano ou falar uma nova língua: cada parceira é
uma experiência encantadora, estranha e, no mais das vezes, imprevisível.
“Ela havia chegado antes de mim e estava pela piscina, no biquini azul,
seus cabelos loiros mais pálidos que o sol de inverno reluzindo pelo domo
de vidro congelado. Estranhos a encaravam e conhecidos a
cumprimentavam com reverentes olás. […] Sugeri que nos deitássemos de
bruços, nossos braços dobrados, cotovelo com cotovelo. Não sei como não
notei antes: havia um longo número tatuado no antebraço dela. Deve ter
visto meus olhos arregalarem, pois respondeu antes que eu pudesse lhe
perguntar qualquer coisa.
― Não sabia? Não sou uma intelectual, então adivinho que é bastante
difícil dizer que sou judia.
Para mim, para os cineastas que conheço e que vim a amar e respeitar, para
meus amigos que começaram a fazer filmes na mesma época que eu,
cinema era sobre revelação – revelação estética, emocional e espiritual.
Era sobre personagens – a complexidade das pessoas e suas contraditórias,
por vezes paradoxais, naturezas; a maneira como elas podem machucar-se
umas às outras ou amar-se umas às outras e, de repente, confrontarem-se
consigo mesmas.
Então, podem perguntar, qual meu problema? Por que simplesmente não
deixar os filmes de super-heróis e outras franquias em paz? A razão é
simples. Em muitos lugares, ao redor deste país e do mundo, franquias de
filmes são agora a principal escolha se você quiser ver algo nas telonas. É
um tempo perigoso para a exibição de filmes, e há menos cinemas
independentes do que nunca. A equação se inverteu e o streaming tornou-se
o principal sistema de entrega dos filmes. Ainda assim, não conheço um
único cineasta que não queira planejar filmes para as telonas, ser projetado
diante do público nas salas de cinema.
Isso inclui a mim, e falo como alguém que acabou de terminar um filme
para Netflix. Isso, e somente isso, nos permitiu fazer “O Irlandês” do modo
que precisávamos fazer, e por isso serei sempre grato. Temos uma janela
teatral, o que é ótimo. Eu gostaria que o filme fosse mostrado nas telonas
por mais tempo? Claro que gostaria. Mas não importa com quem você faz o
filme, o fato é que as telas dos multiplexes estão abarrotadas de filmes de
franquia.
Mas, podem argumentar, eles não podem ir para casa e assistir o que
querem na Netflix, iTunes ou Hulu? Claro – em qualquer lugar, menos nas
telonas, onde o cineasta pretendia que o filme fosse visto.
Certamente não estou sugerindo que filmes deveriam ser uma forma de arte
subsidiada, ou que eles já foram. Quando o sistema de estúdios de
Hollywood estava vivo e bem, a tensão entre artistas e quem administrava o
negócio era constante e intensa, porém era uma tensão produtiva que nos
deu alguns dos maiores filmes já feitos – nas palavras de Bob Dylan, os
melhores eram “heroicos e visionários”.
OS OLHARES DE SALAMMBÔ
Por Paulo Cantarelli / 9 de janeiro de 2020
O efeito, para o espectador, deve ser uma espécie de assombro. Como tudo
isto foi feito? É o que se deve dizer, e sentir-se esmagado sem saber por
quê.
Mais do que os literatos das línguas mortas, com seus ouvidos e olhos
mortos, seus corações mortos por uma noção morta de arte, Flaubert
entendeu a Arte Antiga. Entendeu que o espírito da Arte era também o
ethos de todo um povo, o que nos gregos se compreendia das praias
mediterrâneas ao topo do Olimpo; o homem grego estava em comunhão
com a natureza, sensível e inteligível unidos feito a carne aos ossos, e o
mundo era a própria Grécia. Não nos resta mais que o pó e as ruínas desses
povos antigos, feito os ossos de monstros antediluvianos meio enterrados
na areia. Em “Salammbô”, tudo é grandioso e nos faz tremer ante a visão
fantasmagórica desses gigantes que há muito não caminham sobre a terra.
Uma vez provada sua teoria, Flaubert resolveu ceder às inclinações mais
pessoais, que clamavam mais ao épico que ao dramático, mais à pompa que
ao banal. Foi assim que surgiu, em 1857, sob título provisório de
“Cartago”, a obra que viria ser o grande épico do romance, a ponto de
rivalizar com Homero. Com a estréia de “Salammbô ”, em 1862, pela
primeira vez o cego sentiu pisarem-lhe os calcanhares das sandálias
II – Nós, Cartago
Os únicos erro de tradução neste trecho, se é que podemos dizer assim, são
a repetição desnecessária da palavra “chefe”, no terceiro parágrafo, e o som
de “com coturnos” [comcô], que é feio e desagradável . Originalmente,
Flaubert escreveu “le maître était absent” [mestre, ou chefe], para se
referir a Amílcar, depois “les capitaines, portant des cothurnes de bronze”
[os capitães, portando coturnos de bronze] para se referir aos comandantes
subordinados a Amílcar. Flaubert não se permitiria a uma repetição
desnecessária nem a um som rude; e isto, que por si parece apenas um
detalhe, é digno de nota. No restante, o tradutor manteve ritmo e
paragrafação originais, buscando reproduzir as palavras justas para as
frases, e transpondo de forma satisfatória os sons e cores do texto em
francês. Agora, vamos ao que interessa.
Flaubert abre o romance com “C’était à Mégara”, mas por que “estava-se
em Megara”? Por que não um “ils étaient”, um eles estavam? Com esse
início, Flaubert revela a impessoalidade da história que irá contar.
Salammbô, ao contrário do que o título pode sugerir, não é o ponto de vista
central do romance; este é dividido principalmente entre ela, Mâtho,
guerreiro líbio, o general Amílcar Barca e os povos que habitam Cartago. A
filha ficcional de Amílcar, contudo, é o fio condutor que une o romance e
todos os seus núcleos; todos os acontecimentos e causalidades são
consequências diretas ou indiretas de suas ações, como veremos na última
frase do livro, da qual trataremos mais adiante. Ela, qual uma Helena
cartaginesa, irá mover os homens à guerra.
Este início tão sutil seria estragado pelos “romancistas históricos”, feito
Walter Scott, ou qualquer outro escritor menor. Qualquer outro teria
escrito: “no ano de 241 a. C., um ano após a batalha de Érice, fizeram um
festim para os mercenários comandados por Amílcar Barca…”.
Felizmente, o mestre de Rouen não é Walter Scott. Ele nos diz tudo o que é
preciso para o contexto de forma elegante desde o início, aliás, com um
jogo de perspectivas singular, como num jogo de câmeras: estava-se
em Megara, nos arredores de Cartago, nos jardins de Amílcar. Nos
aproximamos sutil e gradualmente do jardim, os soldados participavam
dum grande festim… Os chefes, portando coturnos de bronze… O ângulo
da narrativa começa aberto, em Megara, nos subúrbios (faubourg) e, como
numa visão panorâmica, mostra que está-se em Cartago. Em seguida, este
ângulo vai se fechando até mostrar pequenos detalhes nos jardins de
Amílcar, em close, a exemplo dos coturnos de bronze. Cinema antes do
cinema, como notou o cineasta russo Serguei Eisenstein, ainda ao analisar a
montagem de “Madame Bovary”, em “A Forma do Filme”.
IV – Tânita, a Lua
Atrás dela, de cada lado, duas longas filas de homens pálidos, vestidos
com fatos brancos de franjas vermelhas, que caíam a direito sobre os pés.
Não tinham barba, não tinham cabelo, não tinham sobrancelhas. Nas
mãos onde brilhavam anéis seguravam liras enormes e cantavam todos,
com uma voz aguda, um hino à divindade de Cartago. Eram os sacerdotes
eunucos do templo de Tânita que Salammbô chamava muitas vezes a sua
casa.
O cabelo, empoado com uma areia violeta e preso à moda das virgens
cananéias, fazia-a parecer maior. Fios de pérolas presos às têmporas
desciam até os cantos da boca, rosada como uma romã aberta. Tinha
sobre o peito um conjunto de pedras luminosas, que imitavam pela sua
combinação as escamas de uma moreia. Os braços, guarnecidos de
diamantes, saíam nus da túnica sem mangas, guarnecida de flores
vermelhas sobre o fundo negro.
Salammbô fala a língua sagrada dos deuses e todas as línguas dos homens,
prova-se o avatar de Tânita na terra, inclusive alegando vir duma linhagem
mítica, como veremos na passagem a seguir:
Depois, Salammbô, sem parar, contou como Melkart, após ter vencido
Masisabal, colocou na proa do navio a cabeça cortada:
― A cada batimento das vagas, afundava-se na espuma; o sol
embalsamou-a; fez-se mais dura do que o ouro; os olhos nunca deixaram
de chorar, e as lágrimas caíam continuamente na água.
Cantou tudo isto no velho idioma cananeu que os bárbaros não entendiam.
Perguntavam a si próprios o que é que ela lhes poderia estar a dizer com
os gestos terríveis com que acompanhava o discurso […].
Contudo, o canto de Salammbô nos avisa: esta não será uma história feliz.
V – Fim de Festa
Nenhum olhava para ela como o jovem chefe númida que estava na mesa
dos comandantes, entre os soldados de sua nação. Tinha tantos dardos à
cintura que formavam uma bossa sob a capa, atada às têmporas com uma
tiara de couro. O tecido, que se abria sobre os ombros, envolvia em
sombra o rosto, e a única coisa que se via era a chama dos seus olhos.
[…] Há seis meses que Narr’Havas ali vivia, mas nunca tinha visto
Salammbô; e, sentado nos calcanhares, com a barba a tocar a haste dos
dardos, olhava para ela, de narinas frementes, como um leopardo
escondido nos bambus.
― Bebe! ― ordenou.
Há poucos comentários acerca deste perfil, que fala por si. Aliás, a
habilidade de artesão de Flaubert é tamanha que a apresentação das
personagens é extremamente sutil: os nomes não são citados num primeiro
momento, mas apenas quando já estamos imersos em suas psicologias.
Uma mulher, um jovem chefe númida, um líbio de estatura colossal; o
pronome indefinido define a sutileza dos perfis. Na cena, vemos que
Mâtho, ao contrário de Narr’Havas, é destemido, grandioso, está na
claridade, à vista de todos. Assim, Flaubert tece a imensa tapeçaria de
“Salammbô”, com os mais variados tipos humanos e situações; através do
contraponto, nos dá contraste entre as personalidades e os sentimentos.
Uma observação interessante é que Mâtho carrega um colar de luas de
prata ao peito, o que pode ser uma indicação de que levará Salammbô ― a
representação terrena de Tânita, a Lua ― próxima do coração pelo resto da
vida. Continuando a cena, para o momento em que os ânimos se exaltam:
― Que casamento?
Mâtho arrancou-o imediatamente; mas não tinha armas, estava nu; por
fim levantando com os dois braços a pesada mesa, arremessou-a a
Narr’Havas, no meio de uma multidão que se precipitava entre eles. Os
soldados e os númidas estavam tão juntos que não podiam puxar pelas
espadas. Mâtho avançava dando grandes cabeçadas. Quando levantou a
cabeça, Narr’Havas tinha desaparecido. Procurou-o com os olhos.
Salammbô tinha partido também.
Olhou para o palácio e viu, lá em cima, a porta vermelha com a cruz preta
que se fechava. Começou a correr.
Olhou para o palácio e viu, lá em cima, a porta vermelha com a cruz preta
que se fechava. Começou a correr
Este jogo ocorre tantas e inúmeras vezes que não pode ser acidental.
Flaubert, pelo estudo da técnica, desenvolveu um jogo de pontos de vista e
elipses extremamente sofisticado. Vejamos um terceiro exemplo, que
ocorre no capítulo final do livro, onde o olhar de Mâtho encontra o de
Salammbô:
[02] Tinha-se levantado logo que ele dera o primeiro passo; depois, à
medida que ele se aproximava tinha avançado um pouco até à borda do
terraço; [03] e daí a pouco, todas as coisas exteriores desapareceram e
ela só via Mâtho. Tinha-se feito silêncio em sua alma ― [4] um desses
abismos onde o mundo inteiro desaparece sob a pressão de um único
pensamento, de uma recordação, de um olhar. [5] Este homem que
avançava para ela a atraía.
Uma manhã encontrou-a por trás da cama de peles de boi, enrolada sobre
si própria, mais fria do que o mármore, com a cabeça escondida num
monte de vermes. Salammbô acorreu aos gritos, a escrava ficou
surpreendida com sua insensibilidade.
[04] A filha de Amílcar já não fazia jejuns com tanto fervor. […] O pai
vinha muitas vezes ao seu quarto. Sentava-se nos coxins e olhava para ela
com uma expressão quase comovida. […] Uma noite em que se
encontravam os dois, Taanach apareceu assustada. Estava no pátio um
velho com uma criança e queria ver o sufete.
Iddibal entrou sem se prostrar. Trazia pela mão um rapazinho com uma
capa de pele de cabra; e tirando o capuz que lhe cobria o rosto, disse:
[06] Teria talvez dez anos e não era mais alto que uma espada romana.
abaixo:
Agora que fiz uma leitura próxima ao texto, posso me permitir a leitura
distante, uma análise mais simbólica. Para compreendermos “Salammbô”,
temos de ter em mente um mundo pré-cristão , onde a influência dos
profetas judeus era mínima e os cultos antigos celebravam, a ponto da
exaltação soberba e monstruosa, a sacralidade do profano; a própria vida
orgânica era adorada, idolatravam-se as forças elementares do sangue e da
fertilidade, o próprio conceito de morte e ressurreição se perfazendo no
retorno periódico das estações, da passagem do tempo físico, exaltando-se
forças instintivas e irracionais, de modo bastante distinto do Logos cristão,
que sacralizaria a vida de maneira mais integral e racional, a comunhão
com o divino ocorrendo também de forma mais espiritual e pura. Como
bem se sabe, a simbologia e crença dos cristãos é de que o Cordeiro de
Deus foi sacrificado pelos pecados do mundo, não sendo necessário
derramamento de mais sangue inocente para se religar a Deus ― o
sacramento da eucaristia sendo a renovação, simbólica e literal, do
momento do sacrifício e ressurreição de Cristo. No mundo de “Salammbô”,
presenciamos o terror dos sacrifícios antigos. O “tornar sacro”, para a
apaziguar a cólera dos baals, é custoso, como podemos ver na cena do
holocausto: o filho mais velho de cada família de Cartago é queimado vivo
no altar de Moloch; os cânticos e tambores dos sacerdotes encobrem os
gritos vindos da barriga do ídolo de bronze, enquanto os incensos
mascaram o cheiro de carne queimada. Parece Dante, mas é Flaubert:
Todavia o apetite do deus não se apaziguava. Queria mais. Para lhe dar
mais, empilhavam-nos nas mãos [da estátua] com uma corrente grossa por
cima, que os segurava. Os devotos no princípio tinham querido contá-los,
para verem se o número correspondia aos dias do ano solar; mas puseram
outros; e era impossível distingui-los no movimento vertiginoso dos braços
horríveis. Isto demorou muito tempo, indefinidamente, até à noite. As
paredes interiores tomaram um brilho mais sombrio. Viu-se então a carne
que ardia. Alguns julgavam mesmo reconhecer cabelos, membros, corpos
inteiros.
Uma visão digna do Inferno. Ao recriar este mural antigo, parte imaginado,
parte inspirado, Flaubert causou um forte choque de valores, e sofreu
ataques de religiosos, como relata a Théophile Gautier, em carta de abril de
1863:
Sou vítima do ÓÓÓDIO DOS PADRES, tenho sido amaldiçoado por estes
em duas igrejas: Saint-Clotilde e a da Trindade. Acusam-me de ser o
inventor de travestimentos obscenos, e de querer recriar
o paganismo (sic).
Correram para lá. Era um leão, com os quatro membros pregados a uma
cruz como um criminoso. A juba enorme caía-lhe sobre o peito, e as duas
patas anteriores cobertas de pelos enormes, estavam estendidas como as
duas asas de uma ave. As costelas sobressaíam uma a uma sob a pele
estendida; os membros posteriores, pregados um ao outro, estavam um
pouco subidos e sangue negro, correndo por entre os pelos, tinha formado
estalactites na parte de baixo da cauda, que pendia direita ao longo da
cruz. Os soldados divertiam-se; chamavam-lhe de cônsul e cidadão de
Roma e deitavam-lhe pedras aos olhos para fazerem voar as moscas.
Salammbô, pelo excesso de virtudes que lhe são atribuídas, se crê digna de
entrar no misterioso território reservado apenas aos eunucos. Schahabarim,
aliás, é a face sombria de Tânita, enquanto as virtudes da baalet se
manifestam através de Salammbô. Os defeitos associados à noite parecem
se manifestar mais fortemente no sacerdote: é ele quem maquina
ardilosamente a infiltração de Salammbô no acampamento de Mâtho, para
recuperar o manto sagrado de Tânita, evento que culminará em fatalidade
para ambas as personagens. O excesso é um dos temas flaubertianos por
natureza; ou melhor, a noção de que privação, ou inibição, cria excessos.
Vemos este questionamento de “Madame Bovary” a “A Lenda de São
Julião Hospitaleiro”, escrito cerca de quinze anos depois de “Salammbô”.
Salammbô é acometida por uma melancolia muito similar à de São Julião,
um desejo sacrílego que é o seu próprio destino, e que lhe será fatal, como
pudemos ver no diálogo com o sumo sacerdote.
Já ao final deste ensaio ― que está mais para uma apologia, aos moldes
socráticos ―, lembrei-me de consultar a enciclopédica “História da
Literatura Ocidental”, de Otto Maria Carpeaux. Encontrei algumas
observações que merecem ser discutidas, antes de dar fim a esta
investigação; além do mais, já adentramos profundamente no reino da
forma, de modo que podemos discutir o conteúdo material.
Flaubert tem a cabeça épica, sabe dar aos assuntos certa permanência
supra-histórica e supra-atual que Balzac, historiador de sua sociedade,
não possui. ‘Madame Bovary’ e ‘Un coeur simple’, mesmo localizados
exatamente em casas parisienses ou lugares da Normandia, passam-se em
todos os tempos e países da história e do mundo. A distância entre as
pessoas e fatos reais que forneceram o assunto ao romancista, e os
personagens e acontecimentos do plano novelístico é incomensurável. Essa
‘distância épica’ é resultado do estilo de Flaubert.
Mas Literatura não pertence ao mundo dos fatos ou pessoas reais; saímos
do mundo histórico e vamos ao mundo imaginado: enquanto a vida não
possui explicação, ou por vezes careça de sentido, o que Bovary ou Homais
fazem é resultado de regras ficcionais manifestadas sutilmente através das
causalidades da trama, do arranjo de detalhes salientes e prováveis. Daí
vem o “realismo” ― termo execrado por ele ― de Flaubert. Caso tivesse
partido estritamente de um caso particular ou buscado um registro, a
exemplo de Balzac, terminaria, talvez, com um retrato histórico mais
datado; e, por consequência, as personagens não passariam de caricaturas.
É o que ele escreve em resposta ao Monsieur Cailleteaux, em junho de
1857:
Não, senhor, nenhum modelo posou para mim. ‘Madame Bovary’ é pura
invenção. Todos os personagens são completamente imaginados, e Yonvill-
l’Abayye é uma região que não existe, tal como Rieulle, etc. O que não
impede que aqui, na Normandia, queiram descobrir em meu romance uma
multidão de alusões. Se eu tivesse procedido assim, meus retratos seriam
menos parecidos, porque eu teria em vista as personalidades, e eu quis, ao
contrário, reproduzir tipos.
Por ser deselegante xingar os mortos, e até por certo bom senso, é preciso
ignorar o crítico e explicar por que estas afirmações são falsas ― para não
dizer estúpidas. Em primeiro lugar, é estúpida a ideia “de arte pela arte”, e
mais estúpido ainda atribuir essas ideias a Flaubert; primeiro porque ele
nunca utilizou o termo “l’art pour l’art”, segundo porque o suposto “ideal
científico” flaubertiano, e isso se nota nas cartas, é um símile, uma mera
comparação, uma figura de linguagem, como, por exemplo, ele diz a
Louise Colet, em 12 de outubro de 1853:
É preciso fazer crítica como se faz história natural, com ausência de ideia
moral. Não se trata de declamar sobre esta ou aquela forma, mas sim de
expor em que ela consiste, como ela se liga a uma outra e por que ela vive.
[…] Quando se tratar, durante algum tempo, a alma humana com a
imparcialidade que se põe nas ciências físicas para estudar a matéria,
será dado um passo imenso. É o único meio para a humanidade se colocar
um pouco acima de si própria. Ela se verá então francamente, puramente,
no espelho de suas obras.
“Você é feliz por poder trabalhar sem pressa, graças a suas rendas”. Os
confrades me jogam na cara, continuamente, os três vinténs de renda que
me impedem precisamente de morrer de fome. Isto é mais fácil do que me
imitar. Entendo por viver como eu o seguinte: 1º) morar no campo durante
três quartos do ano; 2º) sem mulher (ponto bastante delicado, mas
considerável), sem amigo, sem cavalo, sem cachorro, em suma, sem
nenhum dos atributos da vida humana; 3º) e olhar como nada tudo o que
está fora da obra por si mesma. O sucesso, o tempo, o dinheiro, e a
publicação estão relegados no fundo de meu pensamento a horizontes
muito vagos e perfeitamente indiferentes. Tudo isso me parece estúpido e
indigno (repito a palavra indigno) de emocionar o cérebro.
Este é um ponto que precisava ser defendido, pois já ouvi, em pleno século
XXI, as mesmas reclamações ordinárias de outros colegas escritores. Que
morras na miséria, alma mesquinha, que tua tinta se apague e tua obra seja
consumida pelas traças! Esta deveria ser a praga rogada contra aqueles que
querem viver de arte, mas não para a arte. Continuando o que dizia
Carpeaux:
Daí o parnasianismo de Flaubert […]; na poesia arqueológica de
Salammbô, Flaubert realizou o seu ideal de romance cientificamente
documentado, realizando o ideal de “poesia científica” do parnasianismo,
mas experimentando também a desgraça da doutrina: Salammbô é um
romance arqueológico sem sentido histórico, um romance sem sentido
humano. “C’etait à Megara…”, eis a frase magnificamente musical com
que a obra começa; mas que nos importa o que aconteceu em Megara? E
quem sabe se aconteceu realmente assim em Megara? O problema do
romance histórico, colocado nos devidos termos, pela primeira vez, por
Manzoni, foi resolvido por Flaubert, e em sentido negativo. A tentativa da
reconstituição do passado, em Salammbô, foi desmentida pela
impossibilidade de verificar exatamente o que “aconteceu em Megara.
O leitor que teve a disposição de ler este ensaio em sua totalidade, desde o
início, já deve ter notado que Carpeaux não leu “Salammbô” para além da
frase inicial, “C’etait à Megara”, pois, se o tivesse, saberia exatamente que
“o que aconteceu em Megara” ― não na Megara real, histórica, mas na
Megara imaginada ― é o que nos importa. Como assim, não há nada de
humano em “Salammbô”? Após todo o mural construído pelo artista, ainda
precisamos ouvir asneiras da crítica, desde 1863, diga-se de passagem.
Quem disse que a intenção de Flaubert era escrever um “romance
arqueológico”?
Aliás, devo dizer, antes que acusem-me de ódio a Carpeaux: ele era ótimo
ensaísta ― e, nisto, muito melhor do que como apenas crítico ― divagando
com profundidade nos temas levantados pela ficção; e o faz bela e
maravilhosamente nos “Ensaios Reunidos”, numa abordagem distante feito
um cometa. Esta, sim, uma leitura proveitosa para o artista em formação,
porém com mais experiência. O que proponho aqui é que esqueçamos um
pouco os astros e pisemos os pés na lama, na argila com a qual a arte é
feita. Em suma, “História da Literatura Universal” é uma obra ― quando
não meramente informativa, de consulta ― para curiosos.
Agora, resta-nos filosofar sobre a existência das águias.
XI – Águias Existem
Você sabe quantos, até agora, com quantos volumes sobre Cartago eu me
entupi? Cerca de 100! E acabo, em quinze dias, de engolir os 18 tomos
da Bíblia de Cahen*! Com notas e tomando notas!
Tanta pesquisa material, nas mãos dum artista, só poderia resultar numa
riqueza tremenda de detalhes. Não se engane, não há exposição neles. O
verdadeiro escritor precisa estar imerso em temas, precisa de conteúdo
material para dar forma, do mesmo modo que o escultor precisa do
mármore para esculpir suas obras. Na carta de agosto de 1857 a Ernest
Feydeau, diz Flaubert:
Não é função do poeta realizar um relato exato dos eventos, mas sim
daquilo que poderia acontecer e que é possível dentro da probabilidade ou
necessidade. O historiador e o poeta não se diferenciam pelo fato de um
usar prosa e o outro, versos. […] A diferença está no fato de o primeiro
relatar o que aconteceu realmente, enquanto o segundo, o que poderia ter
acontecido. Consequentemente, a poesia é mais filosófica e mais séria do
que a história, pois a poesia se ocupa mais do universal, ao passo que a
história se restringe ao particular.
Mais de doi mil anos depois, ainda tentam atribuir funções de historiador
ao artista. Mesmo sem compromisso histórico, Flaubert se comprometeu
em dar detalhes precisos o suficiente para serem verossímeis ― a ponto de
fazer uma viagem de três meses ao norte da África, em 1858, para ver as
ruínas de Cartago. Em dezembro de 1862 responde uma longa carta ao
crítico Sainte-Beuve, que, tão descontente que estava, escreveu três artigos
seguintes condenando “Salammbô”, principalmente pela questão
arqueológica. Flaubertus dixit:
Deixemos a verdade das mentiras de lado: por enquanto, quero falar sobre
elefantes. Desde o início de “Salammbô”, fiquei fascinado com os cenários,
os baals de trinta metros, os templos com telhado de ouro, os diamantes do
tamanho de laranjas. Belíssimo. Mas cadê os elefantes? Aníbal Barca foi
conhecido por marchar sobre Roma com 50 deles, imagine uma guerra em
Cartago. A primeira aparição dos paquidermes de guerra é absolutamente
fantástica:
Este momento acontece após umas boas cem páginas de leitura, sempre
num crescendo: Flaubert mostra o fosso dos elefantes, menciona que os
sufetes de Cartago os armam, mostra um ou outro animal isoladamente. Até
a primeira batalha campal. E, se a maioria dos escritores corre ante o
trabalho de simplesmente imaginar cenas de guerra, Flaubert as encara de
pena em punho, com vontade de ferro, e escreve-as magistralmente.
Perdoe, leitor, se soo demasiadamente empolgado: é porque este romance
me empolga, e espero que também empolgue aqueles que o lerem depois
deste ensaio. Talvez o fim da Literatura seja algo ligeiramente menos nobre
do que os filósofos pensam: não para educar, não para registrar as
experiências humanas possíveis, muito menos para servir de propaganda
ideológica; serve tão somente para o prazer. Prazer estético, uma satisfação
emocional e intelectual. Se outras coisas acontecem ao lermos boa ficção,
são secundárias.
Isso me lembra que, certa vez, um escritor medíocre, cujo nome não quero
lembrar-me, disse que Flaubert era um ótimo estilista, porém não
compreendia o humano. Nos resta a lição: o homem moderno nada entende
de estilo, e menos ainda sobre o próprio homem.
Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e
grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da
casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora
mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há
no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é
habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-
lo entender é preciso remontar à origem da situação.
A partir deste ponto, há poucos comentários do onisciente linguarudo, a
narrativa sendo contada, em sua maior parte, pela perspectiva de Garcia. A
única dos três protagonistas cujo ponto de vista não será abordado é Maria
Luísa. Teremos um vislumbre do olhar de Fortunato apenas nos últimos
parágrafos. Machado, creio que por insegurança, preferiu atenuar a elipse
que se segue, para que o leitor comum pudesse compreender melhor a
analepse narrativa ― vulgo flashback ― que ocorrerá. O comentário em
negrito, acima, não faz falta, de modo que teríamos:
No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e
saiu; Garcia saiu atrás dele.
Ainda mais intrigante: a tragédia se revela uma comédia, através duma
farsa, e Fortunato perde o interesse. Garcia segue-o, evidentemente
perplexo com a figura que fez-lhe impressão. Começamos a nos questionar
vagamente sobre quem é aquele homem e por que ele age daquela maneira,
a tal causa secreta.
Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a
cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao
obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do
nome, rua e número.
― Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o
convalescente.
Agora, uma mudança ― das poucas que há no conto ― de ponto de vista.
Veremos um jogo único de perspectivas: a narrativa é dada a Gouveia, o
convalescente, que relata o caso a Garcia e este, por fim, fará um breve
monólogo sobre a situação.
No fim contou ele próprio [Fortunato] a visita que o ferido lhe fez, com
todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos
silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la.
Por eliminação, o ponto de vista só pode ser de Gouveia, que contou a
história a Garcia; o narrador não poderia tê-la relatado à personagem. E é
de Garcia o breve falso monólogo interior que se segue, e cujo ponto de
vista é esclarecido apenas no parágrafo posterior:
Era uma mocinha de dezessete anos, parecendo dezenove, mais baixa que
alta, rosto amorenado, olhos negros e travessos. Aqueles olhos, expressão
fiel da alma de Carlota, contrastavam com o olhar brando e velado do
marido. Os movimentos da moça eram vivos e rápidos, a voz argentina, a
palavra fácil e correntia, toda ela uma índole, mundana e jovial.
Subjetivo demais: olhos negros e travessos, expressão fiel da alma, etc. No
contexto do conto ― diferentemente do que analisamos aqui ―, não vemos
o que isso quer dizer, não sentimos. A comparação é válida para notarmos
como a escrita de Machado evoluiu em alguns anos, de 1878, data de
publicação de “O Machete”, a 1885, quando foi publicado “A Causa
Secreta”. A discrepância se torna mais evidente quando o narrador
descaradamente força o contraste, explicitando-o. Em “A Causa Secreta”,
com o autor mais maduro, esse contraste se revela nas ações. Aqui também
teremos um comentário, mas, desta, pelo viés de Garcia, sobre a diferença
moral entre marido e mulher. É ele quem pensa, não o narrador:
Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma
dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte
da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e
confinavam na resignação e no temor.
Logo após, Garcia relata como conheceu Fortunato, e este conta-lhe a
história que já foi relatada por Gouveia. Surge um excelente uso de vozes
internas da narrativa, um discurso direto no corpo do texto, com uma breve
instância de enunciação na voz do narrador ― “concluiu ele” ― que,
estivesse ausente, poderia ter se caracterizado como discurso indireto livre.
― Valeu o quê?
Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não
conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo,
a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia.
Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava
os cáusticos.
depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda
trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se
que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o
marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas.
Provavelmente por insegurança, Machado resolve explicitar a montagem
do conto; o que incomoda um pouco, mas, sem dúvida alguma, não a
diminui. Toda a disposição dos acontecimentos, das potências e das
causalidades é exemplar. Aristotelismo encarnado.
― Já vai.
Fortunato ― ironia do nome ― se revela quem é. Livre das aparências, do
jogo de falsidades que ergueu em torno de si, deixa trespassar a índole
predatória que se esconde sob a máscara de homem caridoso, à semelhança
de certas criaturas abissais que se escondem nas sombras, expondo à luz
somente um simulacro de seres indefesos, apenas para capturar presas
menores. O falso não se choca com o fato de ter sido desmascarado: finge
uma irritação protocolar. Garcia segue em mais um monólogo, intercalado
com as ações sórdidas do enfermeiro, até que, após três parágrafos de
agonia, o rato morre:
tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a
máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até
deixar um bagaço de ossos.
Garcia, que cuidou de os vigiar, agora observa Fortunato, que recebeu a
notícia como um golpe. De um parágrafo a outro, a mulher cheia de vida
decai, murcha e morre. Fortunato, sabemos, parece se deliciar naquela
morte lenta, ainda que tivesse afeição à esposa:
Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e
dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora
magra e transparente, devorada de febre e minada de morte.
Garcia não contém o desprezo:
Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não
deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao
ressentimento.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas
então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não
puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor
calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara,
saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito
longa, deliciosamente longa.
A voz de Fortunato se mescla, em discurso indireto livre, à voz do
narrador; um riso doentio que triunfa ao final. E, com o tríptico “longa,
muito longa, deliciosamente longa”, Machado fecha o conto com uma
chave de ouro estilística: dois advérbios, um de intensidade e outro de
modo ― muito e deliciosamente ―, acentuando a sensação causada pela
repetição do adjetivo longa. Longa, muito longa, deliciosamente longa,
num crescendo. É a vitória do desespero e das dores do mundo; desta vez, o
mal prevalece.
Em face de tudo o que foi exposto e analisado, faltam-me elogios mais
eloquentes: só posso concluir dizendo que, por esse trabalho de ourivesaria,
qualquer escritor merece uma estátua de doze metros e um mausoléu de
mármore. Este é um conto que não deixa a desejar a nenhum romance, por
extenso que seja, no uso das técnicas e no desenvolvimento psicológico das
personagens: a habilidade de artesão vem para alinhavar as causas íntimas e
secretas que se passaram na mente do artista. A Arte não nasceu para
mostrar-nos o mundo fielmente qual ele é, qual desejamos que ele fosse, ou
como deveria ser; tão somente existe para nos revelar a impressão de uma
mente criadora. E Machado nos revela, cena após cena, perfil após perfil, o
segredo de uma alma monstruosa.
A Literatura é feita dos detalhes, a tal ponto que o artista precisa estar num
determinado estado de espírito – poroso à realidade do mundo, das coisas e
dos homens – para que possa criar. Há pouco mais de um ano não publico
mais artigos de Literatura, e os programas do Podcast Entender Ficção
seguem o mesmo rumo. Por quê? Simples: desisti de ser um intelectual
público.
É preciso, para que nosso meio intelectual seja minimamente decente, uma
verdadeira fogueira das vaidades. Mesmo aqueles, artistas ou não,
propensos a algum talento – ou, pior, com talento real – terminam se
perdendo numa orgia dantesca de soberba e leviandade. Nada novo sob o
sol. Também testemunhei casos tristes de quem tivesse muito potencial,
mas se deixou desanimar pelo ambiente, acreditando haver apenas duas
possibilidades: ou corromper-se bajulando e sendo bajulado, ou ser
ostracizado por dizer verdades inconvenientes. Já a nossa Crítica, por sua
vez, é infantil e emocional, afetiva: apega-se demasiadamente ao
subjetivismo e descarta toda objetividade. Julga-se obras literárias com
pesos e medidas diferentes, as que convirem: ao amigo (ou ideologia
amiga), tudo, ao inimigo, nem a lei. Exalta-se muita porcaria e condena-se
o que é bom por pura canalhice. Seja como for, não tenho esperanças de
que o meio literário melhore. Se há mais alguém que faça um trabalho de
excelência, atualmente, desconheço.
Virtudes são volúveis: uma vez pensado ou arrogado-se tê-las, somem. São
difíceis de se adquirir, fáceis de se perder. E por isso resolvi me distanciar
do “debate”, para manter em mim a humanidade necessária para continuar
meu ofício de escritor. É que, ao se deparar com tipos vis e asquerosos, é
difícil não cair na maledicência, no escárnio, no ressentimento, na
resignação forçada por um sentimento de superioridade ferida. Em suma: o
mal existe no mundo e, ao nos depararmos com ele, temos de ter cuidado
para que, crendo combatê-lo, não nos transformemos nele utilizando-nos de
seus meios. A corrupção da alma é tentadora.
Até logo,
Ângelo Monteiro
Se, apesar de me manter relativamente recluso do dito debate intelectual,
sem me pronunciar sobre nada propriamente novo, numa espécie de
ascetismo compulsório aos olhos do público, as hordas bucéfalas
continuam a pisotear meu jardim, nada posso fazer senão enxotá-las.
“Na Ilíada, o coito entre os homens não é vivido na cama, mas sim no
campo de batalha, onde não é ao falo, mas a um mortífero objeto fálico,
que incumbe a penetração: a lança. […] O caráter de violência sexual no
manejo da lança salta aos olhos claramente das palavras de Idomeneu no
Canto XIII […] ao delinear uma oposição entre o covarde e o ‘homem
sério’ […] como alguém que anseia pela ‘cópula’ do combate.”
A crítica literária é uma ponte que liga o leitor mais simples, com um
menor grau de cultura adquirida, a um grau mais elevado de interpretação
das grandes obras; não é tarefa dos próprios autores elucidarem aquilo que
parece obscuro, sobre seu próprio trabalho, aos do público, mas dever do
crítico. Este, sim, tem seu papel pedagógico, e tanto melhor o crítico
quanto maiores forem sua bagagem, sensibilidade – isto é, capacidade de
perceber as mais sutis matizes do objeto estético, invisíveis a observadores
inaptos – e seus parâmetros de juízo. Sendo a crítica um juízo de valor, é
impossível que se faça sem uma base objetiva e hierárquica de comparação.
Ezra Pound nos exemplifica, em seu “ABC da Literatura”, os tipos de
escritores que um crítico, ou estudante sério de Literatura, se deparará:
*[sei da preferência pela empresa de ser chamada pelo artigo feminino “a”,
mas mantenho minha concordância ideológica com gênero das duas
palavras que compõem o nome.]
É preciso que se diga, para que não incorramos em simplificações, que uma
narrativa alegórica não é a mesma coisa que um elemento alegórico, ou
aspecto alegórico do texto. Estes podem ocorrer ao longo da narrativa para
aludir esporádica e intencionalmente a um aspecto ou outro da realidade
não literária, o “mundo real”, sem prejuízo para os méritos artísticos do
texto literário, desde que não restrinja a liberdade interpretativa do leitor.
Há uma longa discussão sobre onde termina uma metáfora e onde começa
uma alegoria, mas, em suma: a metáfora é polissêmica e a alegoria possui
apenas um único sentido pretendido pelo autor, que norteará a interpretação
do texto.
Em Orwell, a personagem não age por si, é uma marionete nas mãos do
autor, que escreve uma mera crítica distópica ao stalinismo. Talvez o
socialista Orwell obtivesse mais êxito em outro gênero literário. Vejamos
um contraexemplo a Orwell, um trecho de “Ana-Não”, romance político do
comunista espanhol Agustín Gómez-Arcos, que, apesar de não ser de todo
irrepreensível, atingiu êxito onde o outro falhou:
Olavo de Carvalho
Já me debrucei, anteriormente, sobre as problemáticas entre moral e ficção.
É dever moral do artista – afirmei no artigo “Arte Moral” – realizar uma
obra bem-feita, residindo a moralidade justamente no fazer bem, e a
imoralidade no fazer mal. Também expus que a moral é parte constitutiva
da própria Arte, mais precisamente sua causa material: assim como a argila
é a causa material do boneco de argila; para ser sucinto, os temas, as ideias
filosóficas, as percepções de mundo e cosmovisões são a causa material de
uma obra, seu conteúdo. Desse modo, toda a forma de uma obra de arte é
arquitetada justamente para melhor conter esse “algo” que lhe serve de
tema. Relembrando novamente Aristóteles, a matéria prima para a narrativa
é o deslizamento entre o vício e a virtude.
Há coisas que não se separam na realidade, a não ser por motivos didáticos:
ao confrontar forma e conteúdo na Arte, podemos exaltar mais um aspecto,
ora outro, para melhor examinar dialeticamente as propriedades de uma
obra. O problema ocorre justamente na premissa de que um anulará o
outro, ou o sobrepujará de modo antagônico. Ao nos depararmos com uma
obra “bem escrita”, mas sem conteúdo, feito carne sem sangue, estamos
diante de beletrismo puro e simples; já quando nos deparamos com uma
obra com muito conteúdo e nenhuma estrutura decente que o comporte,
estamos diante de um tecido adiposo inútil, sem ossos ou músculos. Em
ambos os casos, uma “sandice tópica”, como diria Nabokov.
Dito isso, não podemos nos esquecer que o Esteta, ou todo aquele que
pretenda sê-lo, deve ser um filósofo em sua natureza, sendo a Filosofia, nas
palavras do filósofo Olavo de Carvalho, é a “busca da unidade do
conhecimento na unidade da consciência, e vice-versa”. Enfatizo o
verbo buscar, pois esse processo nunca estará completo durante o tempo de
vida de um filósofo, ou de qualquer ser humano. A onisciência a Deus
pertence, resta ao homem perambular pelo pó em busca de algum sentido
que o guie. Nossas percepções, memórias e mesmo instintos, são de
natureza fragmentária; precisamos de um esforço constante para
mantermos o conhecimento do que sabemos, enquanto expandimos os
horizontes da consciência com novos dados adquiridos pela experiência,
seja ela real ou imaginativa. Tanto o Esteta, quanto o Crítico, quanto o
Artista precisam ter esse ideal de busca pela verdade, que se manifestará a
seu próprio modo em cada um dos campos de estudo.
Não sou Esteta, ainda, no sentido que não atingi o patamar de oferecer
alguma contribuição para o campo da Filosofia Estética; o sou com E
minúsculo, esteta, apreciador da Beleza, um dândi. Em suma: este que vos
fala não diz nada de novo nessa disciplina, e tem um longo caminho a
trilhar para construir “um pensamento próprio”, por assim dizer. Talvez na
velhice meus leitores vejam algum livro sobre o assunto, porém, no
presente momento, limito-me a explicar as teorias que assimilei e que mais
me parecem explicar a realidade concreta, não as que servem a uma mera
conveniência dogmática. Primeiramente sou um Artista que busca explicar
as coisas da maneira mais exata possível, seguindo o exemplo de Flaubert,
me valendo, ora ou outra, de alguma bagagem filosófica adquirida no
estudo da Estética, estudo esse muitíssimo benéfico e introdutório para
outros campos da Filosofia.
MACHADO DÁ AS CARTAS
Por Paulo Cantarelli / 10 de maio de 2022
“Almost any story is almost certainly some kind of lie.”
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que
fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe
dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: ‘A
senhora gosta de uma pessoa…’ Confessei que sim, e então ela continuou
a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo
de que você me esquecesse, mas que não era verdade…”
Apesar de alguns deslizes no uso do narrador, que destoa do corpo da
narrativa (Machado por vezes utiliza um tipo intrometido, que talvez
pretendesse retratar o ponto de vista de Camilo), o momento de abertura
aparenta ser apenas o encontro de um jovem casal, e a moça, Rita, temendo
que o namorado a esquecesse, desata a falar de suas angústias. Machado
flerta com o melodrama, com o lugar-comum, mas isso serve apenas para
plantar sutilmente as primeiras pistas de que a situação não era tão simples
assim:
“Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe
queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso,
quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois,
repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela
podia sabê-lo, e depois…”
Após resumir todo o melodrama possível do encontro através de um
discurso indireto (isto é, que poderia ocorrer nas mãos de um mau escritor),
Machado cita, pela primeira vez, o nome do marido de Rita, Vilela, através
de um discurso indireto livre. Detalhe que passa despercebido pelo leitor
num primeiro contato com texto, mas que adiciona uma pitada de
causalidade – palavra tão querida por Aristóteles –, que dá unidade e
verossimilhança ao texto.
— Onde é a casa?”
Desta forma, temos a seguinte montagem:
2. Cena [Camilo pegou-lhe nas mãos, etc.]; 2.1 Discurso Indireto [Jurou
que lhe queria muito, etc.], 2.2 Indireto livre [Vilela podia sabê-lo, etc.]
“Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe
que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. […]”
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela
seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra
a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo
preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No
princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama
formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de
advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a
bordo recebê-lo.”
Machado, outra vez parece não saber exatamente como prosseguir a
narrativa e se utiliza do narrador intrometido para explicar a transição do
caminho que seguirá, porém, uma mudança de tempo narrativo através
do corte da cena (elipse) para o flashback (analepse) teria sido mais
eficiente. Camilo olha a casa da cartomante enquanto vai embora e lembra
de Vilela:
Teria sido uma solução mais simples, sem recorrer ao narrador intrometido
ou a explicações, pois a mente humana muitas vezes opera por associações
sem lógica aparente, então, nada mais natural que a mente da personagem
também seguir o mesmo padrão. O leitor entenderia. A despeito desse
detalhe, somos presenteados com um brilhante jogo de tempos narrativos:
Machado dá as cartas e dispõe os acontecimentos com sutileza, de modo
que nós, leitores, mal podemos vislumbrar onde tudo vai dar. O autor,
então, cria uma narrativa indireta, voltando no tempo e dando toda a
cronologia necessária ao leitor para que se entenda a situação dramática:
amigos de infância separados pelas circunstâncias, mas que tempos depois
se reencontram e voltam a conviver. Somos poupados das partes chatas da
vida e vemos apenas o que realmente interessa:
“Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e
foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os
olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou,
pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez
passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo.
Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.”
Embora a menção ao carro de Apolo destoe um pouco, é admissível que
esse fosse um pensamento de um jovem romântico do século XIX, sendo
um uso mais razoável que as citações diretas de Shakespeare ou Da Ponte.
Uma solução seria ter mencionado, en passant, que a personagem
consumira as obras citadas, então não haveria dúvidas em relação ao ponto
de vista. Quanto ao carro de Apolo, a escolha beira o mau gosto, mas não
chega a sê-lo. Machado prossegue no flerte com a vulgaridade e termina
optando por uma manobra arriscada, porém mais bem-sucedida, ao
descrever a primeira relação carnal entre os amantes:
“Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma
serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos
num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e
subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas
a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou
que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços
dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem
padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um
do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.”
O símile da serpente resume as cenas de sedução e os sentimentos de
Camilo, encurralado por uma mulher mais velha e mais experiente, ele
mesmo, porém, tentado pela luxúria. A cena de sexo, claro, implícita no
“mas a batalha foi curta e a vitória delirante”. E Machado, novamente,
parece zombar do romantismo: “e aí foram ambos, estrada fora”. Faltaria
apenas um ‘e viveram felizes para sempre’, mas, claro, felicidade nunca fez
boa literatura. Algo haverá de acontecer para turvar a felicidade
extraconjugal: eis que, sem perder sequer duas linhas com os pormenores
do adultério, nos deparamos com uma reviravolta; surge uma carta
anônima.
“Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve
medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de
Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era
uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências
prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse
também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os
obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.”
Começam as mudanças de rumo no enredo, ainda que para um todo
previsível (o que não é o mesmo que óbvio): a traição será descoberta.
Mais uma vez, o tema do engano retorna de maneira leve, na forma de
outro autoengano: Camilo, vendo a imoralidade dos próprios atos, prefere
afastar-se de Vilela não apenas para não ser pego, mas para não quebrar a
própria imagem que tem de si. Após isso, retornamos na cronologia para
onde o conto começou:
“Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante
para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo.
Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz
repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas.”
Agora podemos perceber com mais clareza a montagem estrutural do
conto: Machado embaralhou a ordem dos fatos, de modo que começamos
não pelo início da narrativa, mas pelo meio. Estamos em plena ação
ascendente, depois retornamos ao começo da estória para entendermos
melhor o que se passa, conforme a estrutura no diagrama abaixo:
Em ordem normal, a narrativa seria: 1. Apresentação > 2. Conflito > 3.
Resolução.
3. No princípio de 1869 , voltou Vilela da província, onde casara com uma
dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de
advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a
bordo recebê-lo.
4. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis
6. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos.
8. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa
sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na
véspera consultar uma cartomante.
Dizia-se, nos velhos tempos, que todos os anos Thor circundava a Terra-
Média, derrotando os inimigos da Ordem. Ele envelhecia, ano após ano, e
o círculo ocupado pelos deuses e homens minguava. O deus da sabedoria,
Odin, foi até o rei dos ogros, o imobilizou numa chave de braço e exigiu a
resposta para como a Ordem triunfaria sobre o Caos.
– Dê-me seu olho esquerdo – disse o rei dos ogros, – e lhe direi.
– Agora me diga.
O ogro respondeu:
Didatismo e verdadeira arte são imiscíveis, nos diz John Gardner em seu
clássico “On Moral Fiction”. Além disso, ninguém nos garante que o
didatismo será moral. A arte moral – aquela fiel a suas leis integrais e
tradição, e que, por outro lado, promove a moralidade através do confronto
entre o observador e o “conteúdo” retratado – põe a prova valores e suscita
sentimentos verdadeiros sobre o melhor e o pior da ação humana.
Como escritor, acredito no poder moralizador da Arte. Ela ensina, não pela
força da imposição do autor, mas através do hábito da contemplação e
reflexão do leitor. Não escrevo, nem jamais escreverei, algo que julgasse
falso ou mau, cujo balanço moral não trouxesse uma ordem superior em
face à morte e ao desespero. Ao menos, creio, é isso o que as grandes obras
nos mostram. Quando homens valorosos e bons, ainda que não sejam
grandes, se corrompem, tornam-se o maior dos tiranos; e quando os
grandes homens falham ao tentar feitos grandiosos – descomunais até para
si mesmos – a isso chamamos de tragédia. As ações de uma narrativa
somam-se ou subtraem-se e, como resultado, o acabamento da forma
termina por restaurar o equilíbrio moral. O destino trágico – a morte – é um
sacrifício necessário para a renovação do mundo ficcional; a forma dotada
de beleza, através da contemplação estética, se torna um fator de redenção
em nossas próprias vidas, uma chama face a treva e ao caos da destruição
do mundo. Arte destituída de suas bases metafísicas não é arte; tampouco o
é quando destituída de seus elementos formais. Em Arte, não há forma sem
conteúdo e vice-versa: a bifurcação cartesiana logrou não só ciência e
filosofia, mas também as artes. E para livrar-se do engodo, é preciso prestar
atenção com os dois olhos.
Aliás, por que não falar da esquerda, criticar seus autores com mais ênfase?
Por dois motivos. Primeiro, pelo simples fato de que a argumentação – para
não dizer debate – é impossível: a inteligência esquerdista já foi corroída
por ideologias e histerias a ponto que não se discute mais a realidade. A
direita – mesmo em seu espectro político, de liberais a conservadores –,
ainda que esteja aquém do debate estético, tende a concordar que há
ciências e artes que transcendem a mera política do dia, ideologias e
mesmo dogmas religiosos. Segundo, porque as obras da esquerda, no geral,
caíram de nível, mas algumas das que chegam a premiações não são tão
ruins quanto as obras dos conservadores. Não digo que prestem, mas são
menos piores. Essas afirmações são severas, mas não as faço por aversão;
aquele que tiver ouvidos, ouça.
Tendo em vista o que considero como arte imoral, não a concepção tacanha
de arte cujo conteúdo seria despudoradamente imoral, chega de abstrações.
Não tome o leitor minhas palavras por mera retórica inflamada:
adentraremos, neste e nos próximos ensaios, num pequeno museu
patológico do que vem sendo publicado no espectro conservador da direita;
em específico, espécimes da “plêiade de gênios” posta em circulação pelo
filósofo Olavo de Carvalho, cujas ideias empolgadas acerca de literatura,
embora não menos desastrosas, geraram um miríade de sintomas mórbidos.
Não tratarei de casos antigos que já examinei, feito o melodrama
“Claridade”, exemplar em inépcia literária a ponto de se classificar o autor
como daqueles que confunden el culo con las témporas, para utilizar a
expressão de uma das personagens de García Márquez.
CONSERVADORES IDEOLÓGICOS
Sinopse
Voltaremos ao mimetismo amador depois, façamos antes uma anamnese
das crenças implícitas no método que o autor diz aderir.
Creio que o Sr. Fontana, em seu mimetismo servil, não tivesse consciência
das implicações da “forma balzaquiana” que julgou como perfeita para seu
“objetivo maior”, ingenuamente crendo se tratar essa forma de mero
capricho estilístico, como se o estilo não fosse resultado direto de uma
determinada cosmovisão, sujeita a ideologias de seu tempo e contexto
histórico. Vejamos o resultado do “estudo de costumes com o método do
século XIX e a matéria-prima do século XXI”.
Mas nada melhor que a ação pura – os bons e velhos diálogos – para
mostrar o que este livro é uma verdadeira obra prima do delírio humano:
— Vocês têm que entender uma coisa: foda-se a tese, foda-se o “valor
acadêmico”! — acentuou as duas últimas palavras com uma nota de
deboche, fez um sinal de aspas com os dedos no ar — A maioria é uma
merda mesmo. Então que se foda! Que-se-fo-da! Entendam que a
universidade não é neutra, cara. A universidade é um instrumento na luta
de classes; é um aparelho reprodutor da ideologia da classe dominante;
precisa ser tomada pelas forças populares.
— O que ela tem que fazer, então? Eu falo pra ela.
— A coisa é simples, porra. Se for dos nossos, aprova, se não for, não
precisa nem ler, caralho. Não pode ser boazinha. Direito natural, Tomás
de Aquino, Aristóteles, essa bobajada toda, reprova na hora! — vituperou
entre os dentes, para não ser ouvido por mais ninguém.
FORA FORO DE SP
E logo em seguida:
#OLAVOTEMRAZÃO
– Oscar Wilde
Tudo o que é escasso é valioso; contudo, há produtos do gênio humano que
são inestimáveis: a Eneida de Virgílio, a Appassionata de Beethoven, o
Davi de Michelangelo, a Catedral de Notre-Dame de Paris, de anônimos
construtores para sempre eternizados em seu trabalho na pedra. Nenhuma
dessas obras, embora passíveis quantificação em ouro, podem ser medidas
na dimensão do espírito humano. Dinheiro algum compra a genialidade,
embora permita as condições materiais para desenvolvimento do talento; e
é estranho notar que justamente quando estamos mais abastados, quando
não falta conforto, informações ou meios de ação, não observamos o
nascimento de novos artistas, escritores, filósofos ou pensadores; ao menos
não os de alta estirpe. Em termos estritamente materiais, a civilização
nunca esteve melhor, em termos espirituais, nunca fomos tão pobres e
inférteis. E essa infertilidade é apenas sintoma de um mal maior.
Meus leitores conhecem bem os alertas que faço contra a
subintelectualidade insurgente que vem crescendo no Brasil, nos últimos
anos, pelas mídias sociais. Subintelectualidade numerosa, porém fraca e
autoritária; sendo esse autoritarismo fruto justamente de sua impotência
moral e mental, que se revela na tentativa impor suas pseudoideias
malformadas na base do grito e da histeria, não do livre-debate racional,
justo e ordenado. Embora se arrogue de possuir as qualidades mais escassas
do espírito humano — virtudes, maestria, inteligência, erudição — essa
subintelectualidade carece de feitos e obras que as comprovem. Quando
cobrada, tergiversa ou calunia quem lhes fez a cobrança. O Homo
Mediocris julga-se superior a todos, sem jamais precisar provar seu próprio
talento, ou ser consistente no que diz; muda de opinião como se mudasse
de roupa, opina sobre tudo, conhecedor do universo e além. Na realidade,
não é preciso ser coisa alguma, basta a manifestação verbal de certos
valores, o mero parecer e aparecer diante da plateia inapta. Onde quer que
se olhe — literatura, filosofia, economia — a investigação da realidade deu
lugar à retórica midiática. O surgimento do Homo Mediocris e sua
proliferação massiva só se tornou possível numa era de imediatismo e
hedonismo.
Quando me perguntam por que ando sumido do Entender Ficção, por que
não gravo mais podcasts ou vídeos, a resposta é simples: não sou blogueiro
(ou seu primo mais velho, já datado, o jornalista). Meu trabalho não é
agradar ao público, ou mesmo desagradá-lo; é simplesmente escrever as
melhores obras que eu puder, enquanto artista, ou, enquanto teórico,
investigar a veracidade da crítica literária e seus juízos de valor. Essa
tarefa, por si, não é acessível à maior parte da população, por vezes, nem
mesmo linguisticamente. Num país com quase um terço de analfabetos
funcionais, não me espanto mais quando algum leigo não entende o que
estou dizendo — oral ou textualmente — sequer em nível sintático.
Quando algum objetor opera em nível semântico, já é quase um milagre;
resta, depois de entender o que digo, entender do que estou falando. No
mais das vezes, o pretenso entendido cria uma barafunda de interpretações
propositalmente confusas sobre o que foi dito, por vezes utilizando-se ele
mesmo dos argumentos que deseja “refutar”. Nessas situações, mais
abundantes do que eu gostaria de ter testemunhado em minha vida, resta
lembrar do sábio conselho de Virgílio a Dante, na Comédia: non ti noccia
la tua paura, não deixe que teu temor te tolha, ignore a confusão do
demônio e siga teu caminho. Ou, como bem traduziu Ítalo Eugênio Mauro,
“não discrepe tua mente da razão”, pois Pappe Satàn aleppe nada significa.
Esse é apenas um dos motivos pelos quais meu trabalho não é, nem nunca
poderia ser, voltado para as massas.
A Alta Cultura pode ser acessível a todos, materialmente falando: aquelas
obras inestimáveis podem ser virtualmente consumidas pelas pessoas de
qualquer classe social, de qualquer espectro político ou origem geográfica.
Isso não significa que serão compreendidas, tampouco que a mera
apreensão eleve o leitor ou apreciador ao patamar de quem as produziu.
Não hesitaríamos em meter na cela do hospício um psicótico que, por
conseguir cantarolar as cantatas de Bach, se julgasse o próprio Bach, mas,
por algum motivo, qualquer semiletrado, capaz de repetir Louis Lavelle ou
Olavo de Carvalho, é tido como autoridade de alguma coisa. Sendo esse
último pensador, aliás, responsável por arrebentar — além da extinta
hegemonia esquerdista — os juízos do populacho conservador.