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TEXTOS DO ENTENDER FIÇÃO

COMO LER E O QUE LER


Por Paulo Cantarelli / 28 de maio de 2018
Diz Albalat em “A formação do estilo”: “Ler é estudar, linha a linha, uma
obra literária”, e a seguir reforça o que já havia dito em “A arte de escrever
em 20 lições”:

“Devemos ler autores cujo estilo pode ensinar a escrever; e pôr de lado
aqueles cujo estilo não ensina a escrever. Depois, há autores de quem se
pode e outros de quem não se pode assimilar os processos. Devem-se ler os
primeiros, de preferência aos segundos.”

Ele também reitera em 20 lições:

“É preciso ler os mestres, mas que mestres? Vamos tratar de indicá-los,


sem nos preocuparmos com os assuntos, com o lado social ou moral, com o
valor filosófico ou com a influência das obras, tendo aqui em vista apenas a
profissão, a arte de escrever, o proveito imediato que se pode tirar da
leitura.”

Quando indicamos um autor, em geral nos baseamos nesses critérios.


Raimundo Carrero costuma dizer que o leitor é ingênuo; ingênuo, pois não
conhece as técnicas narrativas, nem está preocupado em identificá-las. Ao
leitor, resta a experiência estética planejada pelo escritor, os saltos na alma,
as emoções, a ânsia por saber o que se passará. Nada disso é útil para nós,
escritores. Precisamos ler com atenção, nos demorar em cada página até
compreender todas as técnicas utilizadas, assimilando-as até que estejam
impregnadas no sangue.

As técnicas compartilhadas neste site já dão a qualquer aspirante a escritor


noções básicas de como analisar uma passagem literária. Por exemplo,
quando se fala em tempo psicológico e do ritmo: cenas e ações dão fluidez
à narrativa, descrições e monólogos diminuem a velocidade, dando uma
chance do leitor respirar. Avaliem esse jogo de andamentos como numa
melodia. Temos as cenas diretas e as cenas indiretas, como é explicado em
“A preparação do escritor”, de Carrero. Na cena direta o narrador mostra,
na indireta o narrador nos conta, resumindo os fatos. Tomaremos de
exemplo o início de “Um Coração Simples”, de Flaubert:

“Durante meio século, as burguesas de Pont-l’Évêque invejavam a sra.


Aubain por causa de sua empregada Felicité.
Por cem francos, ela cozinhava e fazia a limpeza, costurava, lavava,
passava ferro, sabia arrear um cavalo, cuidar das galinhas, fazer manteiga, e
continuava fiel à patroa – que, no entanto, não era uma pessoa agradável.”

Prestemos atenção em cada frase, é um trecho fantástico. Reparem no uso


dos tempos verbais: aqui Flaubert usou o pretérito imperfeito, o tempo mais
perfeito que existe. Por quê? A ação não tem início nem fim: Felicité
“cozinhava e fazia a limpeza, costurava, lavava”, quando as ações
começaram e terminaram? A resposta é: nunca. Não sabemos, o imperfeito
nos dá uma leveza, as ações tornam-se vagas, eternas. Foi Proust quem
primeiro notou isso na prosa de Flaubert. Felicité nunca terminava de
trabalhar, era explorada pela patroa.

Outro fator que enfatizo sempre, a metáfora, neste caso, na técnica do nome
da personagem: Felicité (em francês, felicidade). Vejam a força dessa
metáfora: Felicité tem um coração simples, mesmo sendo explorada, é fiel
à patroa. Tudo de maneira sutil, que seria estragada caso Flaubert caísse no
lugar comum de explicá-la. Literatura não se explica.

Ainda podemos notar uma voz estranha após o travessão “- que, no entanto,
não era uma pessoa agradável”, um comentário capturado pelo narrador, de
alguém que estivesse fofocando sobre a Sra. Aubain (iremos nos
aprofundar nisso quando falarmos dos tipos de narrador e vozes narrativas).

E temos, é claro, a cena indireta, que, como já disse, é o narrador contando


ao invés de mostrar: ” as burguesas de Pont-l’Évêque invejavam a sra.
Aubain”, “e continuava fiel à patroa”, “que, no entanto, não era uma pessoa
agradável “; em geral, diríamos para reconstruir frases assim, criando cenas
detalhadas, mostrando a inveja das burguesas, a fidelidade da empregada
ou o caráter desagradável da patroa, porém, neste caso, por ser um trecho
extremamente rápido e sutil, feito com o propósito de jogar o leitor na
história, nós aprendemos a como dizer em vez de mostrar. Descrições
vazias sem a psicologia das personagens não valem de nada, descrever cada
mínima ação torna-se maçante, daí recorremos à cena indireta. As
descrições e ações devem ter impacto e relevo, um significado profundo.
Do contrário, devemos retirá-las do texto.

Notem que em poucas linhas é possível fazer uma análise profunda e direta
sobre a escrita. É isso que vocês devem buscar fazer, analisar cada verbo,
cada frase, as vozes das personagens, os discursos direto, indireto e indireto
livre; devem tentar perceber as funções e efeitos no texto. Estudem o estilo,
desconstruam, procurem referências nos livros de técnica (“Os Segredos da
Ficção”, de Carrero, tem capítulos muito mais bem detalhados sobre
tempos verbais, vozes, cenas, etc.). Aqui eu apenas quis mostrar como se
dá o processo de leitura de alguém com um pouco mais de experiência.
Esqueçam os gostos pessoais e leiam os grandes, os verdadeiramente
grandes. Estudem.

5 CONSELHOS DE ALBALAT PARA MELHORAR SUA LEITURA


Por Paulo Cantarelli / 8 de junho de 2018
Frequentemente nos aconselham a ler mais. Porém como ler? E quais
autores devemos dar prioridade? Antoine Albalat, em “A arte de escrever
em 20 lições” nos dá alguns conselhos precisos tanto para os leitores
quanto escritores.

01 – Leia apenas os melhores

“Mas, que autores deveremos escolher? Aqui é que as opiniões divergem.


Em primeiro lugar, para se formar a aptidão, para se possuir lance de
olhos literário, completo, para despertar as faculdades criadoras e as
disposições imaginativas, é necessário absolutamente ler muito, ler todos
os bons autores, que possamos ler. Depois, escolhem-se os melhores e,
entre os melhores, não os primeiros, nem ainda os mais puros e os mais
simples, mas aqueles que estão em mais relação com as nossas tendências,
principalmente aqueles que nos podem aproveitar diretamente, aqueles
que se podem assimilar, porque há autores que são assimiláveis e outros
que o não são.”

02 – Preze pela clareza dos autores

“De um modo geral é melhor começar por ler o que é simples, clássico,
sincero, puro, de pensamento e sentimento reto, para dar ao gosto e às
ideias a retidão e a clareza que são a base das grandes obras. Mas, quanto
à prática, para a assimilação técnica e proveito urgente, devemos ler
principalmente os autores que nos deixam ver os seus processos, em que
possamos discernir os meios de trabalho, os artifícios de estrutura, os
pormenores do estilo, a ciência da expressão; em que possamos avaliar o
esforço representado nas justaposições empolgantes; ver como se obtém a
intensidade e o relevo; o ponto, em que nos devemos colocar, para fazer
ressair as ideias: a habilidade necessária para ampliar, imprimir
movimento, etc. Saber ver é a grande palavra da escrita literária; e saber
como é preciso ver, é quase o mesmo que saber como é necessário
exprimir.”
03 – Tome notas

“A primeira condição para ler bem é portanto fixar o que se quer reter, e
tomar nota. Um livro que se deixa sem ter extraído dele alguma coisa é um
livro que não se leu.”

04 – Se pergunte onde reside a força do texto

“Então, que deveremos pedir aos estudantes? É bem simples. Isto: Que
pensais deste estilo? Donde vem a sua força? Que diria, em tal caso, um
escritor ordinário? Por que processo de execução supondes que o autor
tenha atingido a concisão? Em que consiste a concisão? Que frases seriam
essas, se não fossem concisas? Como e porquê há vida em tal narrativa?
Que é o que constitui relevo de estilo? Reconstituí esses versos, para
mostrar como eles seriam, se não tivessem relevo. Em que é que o autor
faz dizer às personagens o que devem dizer, e que diriam elas, sem o
engenho do autor? Onde está o colorido desta narrativa? Onde está o
movimento? Onde supondes que haja transições? Qual é, na vossa
opinião, a passagem mais difícil de tratar? Que maleabilidade de espírito
se prova nesse fragmento? De que outra forma se poderia compor? etc.,
etc..”

05 – Deixe a análise ideológica para trabalhos filosóficos e foque nos


méritos literários

“Poderíamos enumerar um longo questionário deste gênero, visando


essencialmente a arte de escrever. O mister, o talento, e atirando para o
segundo plano a apreciação das ideias, dos sentimentos e dos
pensamentos, o que é contudo necessário e que tem também a sua
importância. É neste sentido prático que se deve dirigir o julgamento e as
opiniões de um aluno, em vez de restringir o seu espírito a um trabalho de
ideologia.”

A TÉCNICA NA FICÇÃO
Por Paulo Cantarelli / 11 de junho de 2018
Após várias postagens em nosso grupo do Facebook, não pude deixar de
notar que muita gente não vem lendo as recomendações bibliográficas
indicadas, que são bastante necessárias para que saibamos o que estamos
falando. É primordial estudarmos para sabermos falar, isto é, utilizar os
termos corretos para nos expressarmos. Do contrário podemos falar algo
que pode significar o oposto do que realmente queremos dizer. Também é
preciso entender o que é dito aqui, internalizar esse conhecimento,
estudando e escrevendo, não apenas concordando ou discordando, mas
testando na prática. Na criação literária é preciso experimentar.

Nosso primeiro postulado é que não analisamos um livro pela história. A


função das técnicas (não da Técnica, com T maiúsculo, o ofício do escritor)
é a de ferramenta, o uso da linguagem para um fim. Não é mais que um
meio, sendo o fim a melhor forma de se desenvolver o estilo do texto; em
outras palavras, a melhor forma de se contar uma história. Também em
outra postagem falei que a história não nos interessa, é verdade. Porém a
história é um dos cinco pilares da narrativa, de acordo com o formalismo
russo, sem os quais não há literatura. São estes:

Personagem, História (antiga Estória ou Fábula), Narrador, Tempo e


Espaço (Para fins didáticos, lembrar PENTE). Então, por que devemos
esquecer a história? Ou melhor, o que é história? É o mesmo que enredo?

História é uma série de eventos cronológicos puros, diz Forster. Enredo é


uma série de eventos cronológicos mais a causalidade. Por exemplo: o rei
morreu. Eis uma história. O rei morreu assassinado e a rainha de suicidou
de tristeza. Este é um enredo, uma história com causa e efeito. Uma história
é movida pela pergunta: e então?; o enredo por: e por quê?; numa história
queremos saber o que vem depois, num enredo é preciso inteligência para
se perguntar a causa de algo. Histórias de Conan Doyle, Agatha Christie ou
qualquer mero escritor policial nos move pela curiosidade pura e simples
sobre o que vem a seguir. Os motivos do assassino são menos relevantes
que o assassinato. Já quando lemos “Angústia”, de Graciliano Ramos, ou
“Crime e Castigo”, de Dostoiévski, o menos importante é o assassinato; nos
é relevante a condição humana que fez culminar no crime. O assassinato do
pai, o velho Fíodor Pávlovich Karamazov, em “Irmãos Karamazov” é uma
metáfora para a morte de Deus, para a discórdia entre os homens, não uma
mera trama policial. Cito Graciliano e Dostoiévski por pegarem um
elemento de romance policial, o crime, para fazerem uma metáfora do
humano.

É nisto que consiste parte de nossas inquietações. Para Foster, o enredo é


como você apresenta a história, transformando-a em arte (o que difere do
conceito de trama). Já Raimundo Carrero usa a nomenclatura “montagem”.
Enredo ou montagem, no que proponho aqui, é como nós transformamos a
mais simples das histórias em algo belo. Não se mede uma narrativa pela
quantidade de peripécias (vulgo plot-twist) ou pela grandiosidade da
história, mas pela maneira como autor a escreveu. Em suma: o que nos
importa é como a história é contada, não o quê ela conta. O tema e história
são conteúdos materiais, não literários, e por isso aspectos impróprios de
nossos estudos. Qualquer tema é interessante, basta se dedicar a ele por
tempo o suficiente.

Tirando a história, o que temos de belo para admirar na escrita? Qual


emoção estética resta? A história nos distrai de partes mais profundas do
processo criador. Já falei que dizer que um escritor é um contador de
histórias é uma regressão; somos isso e ao mesmo tempo não somos mais:
evoluímos. Um diretor de cinema, um roteirista, quadrinista, compositor de
óperas, todos eles contam histórias, mas o que os diferencia? Não só a
mídia, o meio em que cada um trabalha, mas também a poética, as técnicas
de criação. Um escritor não vai contar uma história da mesma maneira que
um cineasta ou dramaturgo pelo simples motivo de que o meio é diferente.
Cada mídia tem sua poética. E quando tocamos em poética, tocamos em
Arte.

Mais do que o meio, a Técnica (Ofício) é o domínio da arte. Os medievais


tinham menos problemas em ver a relação entre técnica e arte, já que para
eles “arte é a reta razão do fazer” (definição que tem um dedinho, ou todos
os cinco, em Aristóteles). Nesse sentido, a própria palavra Arte vem do
latim, Ars, técnica. Ou seja, embora o objeto da arte não seja a técnica em
si, é impossível realizá-lo sem alguma técnica. É preciso ter muita
intimidade com as técnicas, conhecê-las bem. Não basta, para o escritor,
saber um ou outro nome de técnica, sem ter domínio sobre ela; do contrário
estamos falando de tecnicismos bestas, malabarismos verbais e
exibicionismos. Tomemos o exemplo dos artesãos: não basta conhecer os
nomes a as funções dos instrumentos do carpinteiro, para fazer um móvel
tem de se saber como utilizá-los. Em arte, não se cria sem domínio técnico,
poético, sem o ofício.

Com isso, as técnicas não significam um entendimento ou interpretação dos


críticos sobre o texto. Elas são os próprios meios pelos quais o autor se
utilizou para escrever. O uso delas é, na maior parte das vezes, consciente,
busca uma função e um efeito, mesmo que haja algumas interpretações
divergentes do sentido original ou que o escritor não tenha total noção do
alcance delas. Não é porque nós não conseguimos identificar a técnica de
um autor (ou até ele mesmo) que ele não utilize nenhuma; e o uso de
técnicas significa a escolha e operação de muitas regras. É o que nos
lembra Adler, em “Como ler livros”:

“A propósito, nem todos entendem que ser uma artista consiste em


executar operações de acordo com regras. As pessoas apontam para o
pintor ou escultor altamente criativo e dizem: ‘ele não segue regras. Está
fazendo uma obra de arte totalmente original, algo que nunca foi feito
antes, algo para o qual não há regras’. Mas elas falham ao não
perceberem as regras que o artista está seguindo. Não há regras finais,
inquebráveis, estritamente falando, para se fazer uma pintura ou
escultura. Mas há regras que o pintor e escultor precisam seguir, sob pena
de não conseguirem fazer aquilo que planejaram. Não importa a
originalidade da obra de arte, não importa se poucas ‘regras’ parecem ser
obedecidas na execução da obra — o que importa é que o artista tem que
estar apto a reproduzi-la. Essa é a arte — habilidade técnica — da qual
nos falando.”

Crítica não é o mesmo que criação. A criação literária é um processo


consciente de saber (ou procurar saber) a razão de ser em cada palavra no
texto, cada elemento da narrativa, enquanto se escreve. É uma habilidade
que demora tempo e experiência para se desenvolver, junto à criação de
parâmetros.

Portanto, chegamos a um segundo postulado: não avaliamos um livro pelo


sucesso comercial, mas pelo êxito; o quão bem o escritor conseguiu atingir
seu propósito. Isto ainda será tema de outras discussões, mas por ora,
tomemos o exemplo de Kafka: era um autor anônimo quando morreu,
vindo à posteridade como um grande gênio pelo êxito que obteve. Ou
Flaubert que era um escritor massacrado pela crítica e quase caiu
esquecimento após a morte, não fosse Proust. Por outro lado, temos
inúmeros best-sellers esquecidos por não terem obtido êxito e, por isso, não
são admirados por gerações posteriores; não possuem a beleza necessária
para perdurarem por si.

Podemos concluir que, para o escritor, dominar a técnica é dominar a


escrita.

A SEDUÇÃO DE EMMA BOVARY


Por Paulo Cantarelli / 11 de junho de 2018 
Em “Madame Bovary“, de Gustave Flaubert, Emma toma para si o espaço
da narrativa quase que por completo. Ela é uma personagem sedutora, que
aparece com muita sutileza, ao contrário de Charles, o marido estúpido e
bonachão, que, apesar dessa estupidez, é o personagem mais nobre do livro.
A diferença entre os dois é notável. Vejamos como ambas as personagens
são apresentadas ao leitor, de forma que suas personalidades são sutilmente
transmitidas pela técnica.

“Estávamos em aula, quando entrou o diretor, seguido de um novato,


vestido modestamente, e um servente sobraçando uma grande carteira. Os
que dormiam despertaram e puseram-se de pé como se os tivessem
surpreendido no trabalho.
O diretor fez sinal para sentarmo-nos; depois, voltando-se para o
professor:

– Sr. Roger – disse, a meia voz – eis um aluno que lhe recomendo; vai para
a quinta classe. Se a aplicação e o comportamento lhe forem bons, passará
para os maiores, por causa da idade.

A um canto, atrás da porta, mal podíamos ver o novato.. Era um rapaz do


campo, de quinze anos mais ou menos, mais alto que qualquer um de nós,
os cabelos rentes sobre a testa, como um sacristão de aldeia, um aspecto
compenetrado e acanhadíssimo. Embora não fosse espaduo, a jaqueta
verde de botões pretos, muito apertada nas ombreiras, devia incomodá-lo
bastante. Pela abertura das mangas, viam-se dois punhos vermelhos,
acostumados à nudez. As pernas enfiadas em meias azuis, saíam-lhe
dumas calças amareladas muito repuxadas pelos suspensórios. Calçava
uns sapatos grosseiros, mal engraxados, reforçados com pregos.”

No parágrafo acima, o primeiro do livro, Charles entra na sala chamando a


atenção de todas as outras personagens. Nota-se que a descrição é de um
garoto ridículo, vestido numa roupa apertada, em seu primeiro dia de aula
numa turma de estudantes mais novos que ele. O narrador faz o perfil
psicológico de Charles através da descrição, mais adiante, de seu chapéu:

“O boné era uma dessas coisas complicadas, que reúnem elementos do


chapéu de feltro, chapéu redondo, fêz turco, gorro de peles, barrete de
algodão, enfim, um desses pobres objetos cuja muda fealdade possui a
mesma profundeza de expressão que o rosto de um idiota. Ovoide,
guarnecido de barbatanas de baleia, começava por três peças circulares;
depois separados por uma franja vermelha, alternavam-se losangos de
veludo e de pele de coelho, e em seguida uma espécie de saco terminando
num polígono cartonado e coberto por um bordado complicadíssimo, do
qual pendiam, na ponta de um cordão comprido e muito fino, umas
pequenas borlas de fio de ouro. Era novo; a pala reluzia.”

Essa é a técnica, como bem alude Nabokov, em “Lições de literatura”, da


narrativa por camadas: “a imagem é construída camada por camada, fileira
por fileira, aposento por aposento, caixão fúnebre por caixão fúnebre”.

A veremos ao longo do livro em todos os capítulos. Neste caso, o boné é a


perfeita metáfora de Charles e de toda sua vida: um pobre objeto “cuja
muda fealdade possui a mesma profundeza de expressão que o rosto de um
idiota”. Este é Charles. Através das camadas vemos a psicologia da
personagem.
Já Emma aparece aos poucos através da visão do jovem médico e vai
tomando relevância “camada por camada” da narrativa. Primeiro é tratada
pelo narrador, do ponto de vista de Charles, como “uma moça”, depois
como “a moça”, “Srta. Rouault”, e “Emma”.

Ela aparece, no capítulo II, como um figura distante, aproximando-se aos


poucos, nos seduzindo com suas nuances e personalidade reservada:

“Uma moça, vestindo um merinó azul guarnecido de folhos, apareceu à


porta da casa, para receber Bovary, a quem fez entrar na cozinha, onde
crepitava um bom lume.”

E após dois parágrafos:

“[…] a moça tratava de coser chumaços. Como levasse muito tempo à


procura da caixa de costura, o pai impacientou-se; ela não respondeu,
mas ao costurar picava os dedos e nervosamente os levava à boca para
chupar.

Charles ficou admirado da alvura das unhas. Eram brilhantes, finas, mais
brunidas que os marfins de Diepe, e cortadas em forma de amêndoa. A
mão nem por isso era bonita; pouco pálida, talvez, e um tanto seca nas
falanges; além disso, comprida demais, e sem brandas inflexões de linhas
nos contornos. O que ela possuía de verdadeiramente belo eram os olhos;
apesar de castanhos, pareciam pretos por causa das pestanas; o olhar era
franco e de um arrojo cândido.”

Aqui, trata-se do olhar da personagem, técnica que consiste em mostrar o


mundo pelos olhos da personagem, não do narrador em terceira pessoa. Em
analogia, passamos do ângulo de câmera aberta para o subjetivo, em
primeira pessoa. Temos o discurso indireto livre de Charles, pois Flaubert
matou o narrador onisciente, de forma que os adjetivos “bonita” ou “belo”
não poderiam ter sido ditos pelo narrador, mas somente pela personagem.
Veja: “Charles ficou admirado da alvura das unhas.”, esta é a voz do
narrador. Agora temos a voz de Charles, que segue até o fim do parágrafo,
nos contando o que ele viu: “Eram brilhantes, finas, mais brunidas que os
marfins de Diepe […]”

Voltando a nosso ponto, Emma passou de “uma moça” para “a moça”, se


aproximando de Charles e do Leitor. Vamos criando uma imagem mais
nítida da moça. Após dois parágrafos, temos outra aproximação:

“A senhorita Rouault não gostava da aldeia […]”.


Apos isso, Charles nota mais uma vez a fisionomia de Emma, e temos mais
um perfil físico:

“Como a casa era fria, ela tiritava mesmo ao comer, o que lhe descobria
um tanto os lábios carnudos, que costumava mordiscar em silêncio.

O pescoço saía-lhe de um colarinho branco e voltado. Os cabelos, cujos


bandós pretos pareciam inteiriços, de tão lisos, repartiam-se-lhe no meio
da cabeça, por uma risca fina seguindo a curva do crânio em duas porções
que deixavam ver apenas o lóbulo da orelha, antes de juntar-se em trança
abundante na nuca, de onde partiam em ondulações em direção às frontes,
coisa que o médico de aldeia viu pela primeira vez na vida. Tinha faces
rosadas e trazia, como os homens, enfiada entre dois botões do corpete,
uma luneta de tartaruga”.

Charles, assim como o leitor, já está apaixonado pela srta. Rouault. Vamos
vendo as camadas construídas pelo narrador: primeiro as mãos, depois a
boca, o pescoço, os cabelos, orelhas, nuca, face. Camada por camada temos
a descrição física que nos revela o interesse de Charles.

Por fim, quando Charles procura por seu chicote, no parágrafo seguinte:

” – Está procurando por algo? – perguntou ela.

– O meu chicote, se faz favor. – respondeu ele.

E pôs-se a remexer em cima da cama, atrás da porta e por debaixo das


cadeiras: o chicote tinha caído no chão, entre os sacos e a parede. Emma,
avistando-o, curvou-se sobre os sacos de trigo. Charles, por galantaria,
correu, e como se estendesse também o braço no mesmo movimento, sentiu
o peito tocar as costas da moça, curvada debaixo dele. Ela endireitou-se,
muito corada, olhou para ele por cima do ombro e entregou-lhe o
chicote.”

Temos a aproximação completa de Emma, que já é tratada pelo primeiro


nome. A cena, em si, é uma representação de como será todo o
relacionamento do casal: algo constrangedor e desajeitado. Charles
precipita-se sobre Emma e, atrapalhando-se, a “encoxa”. É uma cena
ridícula, e este sentimento de vergonha que faz Emma corar será o mesmo
que ela carregará com relação a Charles ao longo do Romance; o mesmo
ocorre com a admiração dele por ela, que se manterá a mesma até o fim.

O COLORIDO PSICOLÓGICO EM LAMPEDUSA


Por Paulo Cantarelli / 14 de junho de 2018 
“O Leopardo“, ou “il Gattopardo”, em italiano, é a obra-prima do escritor
Tomasi di Lampedusa, que em seu único romance consegue retratar o
espírito duma Sicília tradicional oitocentista em face de uma mudança
radical: a unificação italiana, troca do poderio burbônico pelo saboiano; e o
gradual declínio da nobreza. Esta última, aliás, vivenciada pelo autor,
Príncipe da casa de Lampedusa.

Sendo um dos livros favoritos de Mario Vargas Llosa, “O Leopardo” nos


traz muito mais do que um plano de fundo histórico revolucionário; temos
o colorido duma Sicilia há muito esquecida. O aspecto sociológico do
Romance é, e sempre deve ser, incidental. Llosa nos lembra, em “A Orgia
Perpétua”, que a sociedade romanesca é sempre, não importa quão
fidedigna seja, produto da mente do escritor. Cada um tem uma maneira
própria de enxergar o mundo, e esse elemento subjetivo passa para nossos
escritos. A sociedade de “Madame Bovary” é um reflexo das percepções de
Flaubert; a Yoknapatawpha de Faulkner é um reflexo do sul estadunidense
que ele conhecia; o mesmo ocorre com a Sicília de Lampedusa: ela é única,
a união entre mundo objetivo e mundo subjetivo.

O importante não é notar o aspecto social ou filosófico recriado num


romance, mas como eles se apresentam. Nos interessa mais o colorido,
aquilo que ressalta aos nossos olhos. Albalat nos ensina que não se deve
mostrar todos os detalhes dum objeto a ser descrito, mas apenas o que há de
mais extraordinário e belo nele. Do contrário, temos um atlas geográfico,
no caso de cenários, ou um retrato-falado, nos perfis físicos.

Vejamos um perfil físico-psicológico que nos revela alguns detalhes da


sociedade retratada por Lampedusa:

“Entretanto, o príncipe levantou-se: sob o impacto de seu peso de gigante,


o soalho estremecia. Por um momento, seus olhos claros refletiram o
orgulho daquela efêmera confirmação de seu domínio sobre as coisas.

Depois, posou o enorme missal vermelho que estivera na sua frente


durante a recitação do rosário e guardou o lenço em que apoiara o joelho;
uma réstia de mau-humor turvou-lhe o olhar quando viu a pequena nódoa
de café que, desde a manhã, havia ousado quebrar a vasta brancura do
colete.

Não era gordo; era antes imenso e forte. Sua cabeça roçava (nas casas
habitadas pelos mortais comuns) o florão interior dos lustres, e seus dedos
podiam dobrar como papel as moedas de um ducado. Havia sempre, entre
a villa Salina e a loja do ourives, um contínuo vaivém a fim de se
consertarem os garfos e facas que sua ira contida, à mesa, fazia
frequentemente dobrar em arco. Aqueles dedos sabiam, aliás, usar de
extrema delicadeza, quando acariciavam ou manuseavam algo; disso se
recorda Maria Stella, sua mulher, e ainda os parafusos, aros e botões
esmerilados dos telescópios, óculos e ‘observadores de cometas’, que
enchendo, lá no alto da villa, seu observatório particular, não sofriam
qualquer dado sob o manuseio delicado.”

Algumas frases poderiam ser repreensíveis, numa primeira vista:


eloquentes demais, um narrador aparentemente linguarudo e o uso de
parênteses (em Literatura, deve-se evitá-los, eles soam como um sussurro,
um comentário à parte do texto). Porém, fora uma ou duas incoerências
narrativas no livro todo ― uma alusão direta ao carrinho de bebê de
Eisenstein e um avião à jato, pelo narrador, que quebram a imersão da
narrativa ―, o Estilo de Lampedusa nos transmite os fatos com uma
extrema elegância pertinente ao ponto de vista das personagens, nobres
oitocentistas. O estilo, como sempre repito ― e como repetia meu mestre
― , é das personagens, não do autor. Está tudo muito bem encaixado.

O texto possui relevo, a sensação de que há profundidade e profluência. O


leitor comum terá a impressão quase subliminar de que há algo de errado
na história. O escritor, por outro lado, sabe que essa inquietação (o conflito)
se transmite através do uso dos cenários e perfis metafóricos. Tudo parece
desproporcional para o tamanho do príncipe, o que nos revela um constante
sentimento de inadequação, não somente física, mas psicológica. Tudo
reflete a pequenez moral e espiritual daqueles que o cercam. O constante
vaivém entre a Villa Salina nos mostra o descaso do príncipe com a vida
material, em contraste com o cuidado que ele possui com o que lhe
interessa: mulheres e astronomia.

A decadência da sociedade, e da própria família Salina, nos é revelada


através do vaivém dos criados, que correm ao ourives para consertar
talheres de prata, e por meio de outros cenários humanos ou físicos.

Vejamos o cenário metafórico do jardim da Villa Salina, no qual chegam o


Princípe e Bendicò, o cão de estimação:

“Precedido de um Bendicò excitadíssimo, desceu a pequena escada que


levava ao jardim. Encerrado entre três muros e um dos lados da villa, a
clausura emprestava-lhe um ar de cemitério, acentuado ainda mais pelos
montículos paralelos que ladeavam os pequenos canais de irrigação e que
lembravam túmulos de gigantes macérrimos. Na argila avermelhada as
plantas cresciam em espessa desordem; as flores surgiam aos deus-dará e
as sebes de murta pareciam ali dispostas mais para impedir que para
orientar os passos. Ao fundo, uma Flora, manchada por líquenes de um
negro amarelado, exibia, com resignação, os seus encantos mais
seculares; de cada um dos lados um banco sustentava uma almofada
bordada, comprida e enrolada, talhada, também ela, de mármore cinzento.
A um canto, o ouro de uma acácia era a própria alegria intempestiva. De
todos aqueles torrões emanava uma sensação de beleza logo amortecida
pela indolência.

Mas o jardim, refreado e macerado entre aquelas barreiras, exalava


perfumes untuosos, carnais, levemente pútridos, como os líquidos
destilados das relíquias de certos santos; o perfume apimentado dos
cravos sobrepunha-se ao aroma convencional das rosas e ao oleoso das
magnólias que se concentravam nos cantos. Leve, levemente percebia-se
ainda o perfume da hortelã-pimenta misturado ao aroma infantil da acácia
e ao cheiro adocicado da murta. O odor de alcova das primeiras flores das
laranjeiras do pomar transbordava por cima do outro muro.

Era uma jardim para cegos. O olhar era constantemente ofendido, mas o
olfato podia extrair dele um prazer intenso, embora não sutil. As rosas
Paul Neyron, cujas estacas ele próprio adquirira em paris, tinham
degenerado. Primeiramente estimuladas, depois extenuadas pela seiva
vigorosa e indolente das terras sicilianas, queimadas por julhos
apocalípticos, haviam-se transformado numa espécie de couves cor-de-
carne, obscenas, que destilavam, porém, um aroma denso, quase
desonesto, que nenhum criador francês teria ousado esperar. O príncipe
levou uma delas ao nariz e foi como se aspirasse a coxa duma bailarina da
ópera. Bendicò, a quem em seguida a ofereceu, retraiu-se nauseado e
apressou-se em procurar sensações mais saudáveis no meio do estrume e
das lagartixas mortas.”

Uma descrição quase obscena, dotada duma Beleza que ressalta aos olhos e
aos sentidos. Isso, sim, é colorido e relevo. Temos os principais conflitos
do Leopardo, o Príncipe de Salina, nessa passagem do jardim: a decadência
da própria casa Salina e sua villa, a sensualidade e o caráter lascivo do
príncipe refletido na estátua da Flora e nas rosas Paul Neyron, tão vivas que
temos a impressão de tocá-las. Há também um sentimento de morte que
ronda o psicológico da personagem: montes de terra lembram túmulos de
gigantes, que seriam os ancestrais do Príncipe; o próprio jardim tem um ar
de cemitério. Logo em seguida, temos a seguinte cena:

“Para o príncipe, porém, aquele jardim perfumado foi causa de obscuras


associações de ideias. ‘Agora, sim, cheira bem, mas um mês atrás…’

Recordava a repugnância que as baforadas adocicadas haviam espalhado


por toda a villa antes que tivesse sido removida a causa: o cadáver de um
jovem soldado do Quinto Batalhão de Caçadores que, ferido na
escaramuça de San Lorenzo, contra as tropas rebeldes, tinha vindo
morrer, sozinho, debaixo de um limoeiro. Haviam-no encontrado de
bruços, no meio do trevo espesso, o rosto mergulhado no sangue e nos
vômitos, as unhas cravadas na terra, coberto de formigas; sob as
bandoleiras os intestinos violáceos haviam formado uma poça de lama.
Tinha sido Russo, o guarda, que, encontrando aquela coisa desfeita,
voltara-a, cobrira-lhe o rosto com seu lenço vermelho e, com um pau, lhe
metera as entranhas para dentro do rasgão no ventre e cobrira depois a
ferida com as abas azuis do capote, cuspindo continuamente de nojo, não
precisamente em cima, mas bastante perto do cadáver. Tudo isto com uma
habilidade cuidadosa. ‘O fedor destas pestes não para nem quando estão
mortos’, dizia. E isso fora tudo o que comemorara aquela morte solitária.

Quando os camaradas sonolentos o vieram tirar (sim, haviam-no


arrastado pelos ombros até a carreta, o que fez com que a estopa do
boneco saísse outra vez para fora), foi acrescentado ao rosário da tarde
um De Profundis pela alma do desconhecido. E como a consciência das
senhoras ficou satisfeita com isto, não se voltou a falar no assunto.

O príncipe foi raspar um pouco de líquen dos pés da Flora e começou a


passear de um lado para o outro. O sol poente projetava-lhe a sombra
sobre os canteiros fúnebres.”

Aqui temos a técnica da justaposição de imagens: a cena anterior do jardim,


bela, contrasta com o soldado morto, uma cena feia. Porém Feiúra tratada
com cuidado artístico, uma morte feia recriada de modo belo. A
justaposição de imagens é uma técnica que visa causar conflitos na alma do
leitor pela oposição das imagens, alternando entre o feio e o belo.

A inquietação do príncipe é visível, mais à frente saberemos qual o motivo:


seu sobrinho, Tancredi, a quem ele ama mais que os próprios filhos, está
envolvido com os revolucionários garibaldinos. O príncipe teme pela vida
do sobrinho e pela ruína da própria família caso haja a mudanças no
regime. Aqui a guerra nos é apresentada de pouco em pouco, assim como
suas implicações políticas: burguesia e nobreza na briga pela
sobrevivência.

A cena do soldado morto no jardim tem incrível semelhança com o poema


“O Adormecido no Vale”, de Rimbaud, além de ser um prelúdio dos
conflitos e das mudanças. Notem que o autor não nos descreve tudo: não
sabemos exatamente cada detalhe fisionômico das personagens, nem
precisamos; apenas o que é relevante nos é relatado. Não sabemos como se
parece Russo, o guarda, apenas que carrega um lenço vermelho. O soldado,
idem, apenas que possuía um rasgo no abdômen, pelo qual caíam as tripas,
e que vestia um capote azul (a cor dos Bourbon). E só. O mesmo do jardim:
não sabemos quantos metros quadrados tem, nem a descrição minuciosa da
organização (ou desorganização) das plantas. Temos apenas a impressão
daquilo que ressalta aos olhos, somente o extraordinário nos é relatado. O
ordinário todos conhecemos, este não precisa de descrição. Uma boa
descrição, segundo Tchekhov, é aquela que podemos enxergar como se
fosse uma pintura ao fecharmos os olhos, e para isso temos que evitar ao
máximo qualquer sobrecarga estética.

Ao escrever, devemos sempre utilizar uma simbologia metafórica ou


psicológica por trás duma cena e sempre ter em mente isto: o escritor deve
contentar-se em dizer pouco, escolhendo os detalhes mais fortes. As
melhores descrições não são as que dizem mais, mas as que nos causam a
emoção mais forte.

ARTE É SANGUE, É CARNE – CONSELHOS DE ESCRITA DE


GRACILIANO RAMOS À IRMÃ
Por Paulo Cantarelli / 17 de junho de 2018
Rio, 23 de novembro de 1949.

Marili: mando-lhe alguns números do jornal que publicou o seu conto.


Retardei a publicação: andei muito ocupado estive alguns dias de cama, a
cabeça rebentada, sem poder ler. Quando me levantei, pedi a Ricardo que
datilografasse a Mariana e dei-a ao Álvaro Lins. Não quis metê-la numa
revista: essas revistinhas vagabundas inutilizam um principiante. Mariana
saiu num suplemento que a recomenda. Veja a companhia. Há uns cretinos,
mas há sujeitos importantes. Adiante. Aqui em casa gostaram muito do
conto, foram excessivos. Não vou tão longe. Achei-o apresentável, mas, em
vez de elogiá-lo, acho melhor exibir os defeitos dele. Julgo que você entrou
num mau caminho. Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda,
com as complicações interiores de menina habituada aos romances e ao
colégio. As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase inteiramente
selvagens. Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você
não bate bilros nem lava roupas. Só conseguimos deitar no papel os nossos
sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada.
As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o
que somos. E você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe,
apresente-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é
necessária, é claro. Mas se lhe faltar técnica, seja ao menos sincera. Diga o
que é, mostre o que é. Você tem experiência e está na idade de começar. A
literatura é uma horrível profissão, em que só podemos principiar tarde;
indispensável muita observação. Precocidade em literatura é impossível:
isto não é música, não temos gênios de dez anos. Você teve um colégio,
trabalhou, observou, deve ter se amolado em excesso. Por que não se fixa
aí, não tenta um livro sério, onde ponha as suas ilusões e os seus
desenganos? Em Mariana você mostrou umas coisinhas suas. Mas – repito
– você não é Mariana. E – com o perdão da palavra – essas mijadas curtas
não adiantam. Revele-se toda. A sua personagem deve ser você mesma.
Adeus, querida Marili. Muitos abraços para você.

Graciliano.

P.S: Você com certeza acha difícil ler isso. Estou escrevendo sentado num
banco, no fundo da livraria, muita gente em redor me chateando.

A FALSIFICAÇÃO DA ARTE – POR ROGER SCRUTON


Por Paulo Cantarelli / 18 de junho de 2018
“Sê verdadeiro a ti mesmo”, disse Polônio, de Shakespeare, “jamais serás
falso a ninguém”. Viva na verdade, aconselha Václav Havel. “Deixe que a
mentira venha ao mundo”, escreveu Soljenítsin, “mas não através de mim”.
Quão a sério devemos levar essas afirmações e como as obedecemos?

Há dois tipos de inverdade: a mentira [lying] e a falsidade [faking]. A


pessoa que mente fala aquilo que não acredita; a pessoa que finge fala
aquilo que acredita, porém só enquanto aquilo lhe for conveniente.

Qualquer um pode mentir, basta dizer algo com a intenção de enganar.


Fingir, no entanto, é uma conquista. Para fingir é necessário convencer as
pessoas, incluindo você mesmo. O mentiroso finge estar chocado quando
suas mentiras são expostas, mas esse fingimento é parte da mentira; o falso,
entretanto, realmente se choca quando é desmascarado, já que ele criou, ao
redor de si, um círculo de confiança do qual ele mesmo é membro.

Em todas as eras as pessoas mentiram para evitar as consequências dos


próprios atos. E o primeiro passo na educação moral é ensinar as crianças a
não contarem lorotas. Mas o falso é um fenômeno social, mais proeminente
em alguns períodos que em outros. Há muito pouca falsidade na sociedade
descrita por Homero, ou por Chaucer; na época de Shakespeare, contudo,
poetas e dramaturgos começam a ter um forte interesse nesse novo tipo
humano.

Em Rei Lear, de Shakespeare, as irmãs malvadas Goneril e Regan


pertencem a um mundo de falsas emoções, persuadindo a si mesmas e ao
próprio pai de que elas sentem o amor mais profundo, quando, na verdade,
elas não têm coração. Porém elas não sabem que não têm coração: se
soubessem, não poderiam agir tão descaradamente. A tragédia em Rei Lear
começa quando as pessoas verdadeiras ―  Kent, Cordelia, Edgar,
Gloucester ―  são tirados de cena pelos falsos.

O falso é uma pessoa que reconstruiu a si mesma visando ocupar outra


posição social que não lhe seria natural. Assim é o Tartuffe de Molière, um
impostor que se apossa duma casa através da exibição duma piedade
calculada. Assim como Shakespeare, Molière notou que a falsidade vai até
o coração da pessoa envolvida nela. Tartuffe não é simplesmente um
hipócrita que finge ter ideais nos quais não acredita; ele é uma pessoa
fabricada, que acredita nos próprios ideais, já que é tão ilusório quanto eles.

A falsidade de Tartuffe era uma questão de hipocrisia religiosa. Com o


declínio da religião, durante o século XIX, surgiu um novo tipo de
falsificação. Os pintores e poetas românticos voltaram as costas à religião e
buscaram a salvação pela arte. Eles acreditavam no gênio do artista, dotado
duma capacidade especial de transcender a condição humana de maneiras
criativas, quebrando todas as regras para atingir uma nova ordem da
experiência.

A arte tornou-se uma avenida para o transcendental, os portões para um


conhecimento elevado. Originalidade, então, tornou-se o teste que
distinguia a verdadeira arte da falsa. É difícil generalizar em que consistia
essa originalidade, mas temos exemplos o suficiente: Ticiano, Beethoven,
Goethe, Baudelaire. Mas esses exemplos nos ensinam que originalidade é
difícil: não pode ser tirada do ar, mesmo havendo alguns prodígios naturais,
como o caso de Rimbaud e de Mozart, que parecem fazer exatamente isso.
Originalidade demanda aprendizado, trabalho duro, a maestria de um meio
e, acima de tudo, a sensibilidade aguçada e abertura para experiências que
têm o sofrimento e solidão como preço.

Obter o status de um artista original não é fácil. Porém numa sociedade


onde a arte é reverenciada com o mais alto prestígio social, as recompensas
são enormes. Então há um motivo para falsifica-la. Artistas e críticos se
unem para se incluir neste esquema: os artistas posando de criadores de
maravilhas transgressoras, os críticos como os juízes incisivos da
verdadeira vanguarda.

Desse modo, o famoso urinol de Duchamp se tornou um paradigma para


artistas modernos. É assim que se faz, dizem os críticos, pegue uma ideia,
exiba, chame de arte e finja que é. O truque foi repetido com as caixas de
sabonete de Andy Warhol e, depois, com os tubarões e vacas em conserva
de Damien Hirst. Em ambos os casos os críticos se juntaram como galinhas
em torno de um ovo recém posto, inescrutável, e assim o falso é projetado
ao público com todo o aparato para que seja aceito como arte de verdade.
Tão poderoso é o ímpeto para a falsidade coletiva que é raro, hoje, ser
finalista do Turner Prize sem produzir algum objeto ou situação que se
mostre ser arte só porque ninguém o conceberia como tal, até que os
críticos tenham dito que é.

Gestos originais do tipo introduzido por Duchamp não podem realmente


ser repetidos ― como piadas que só podem ser feitas uma vez. Portanto, o
culto à originalidade rapidamente leva à repetição. O hábito de fingir se
torna tão enraizado que nenhum julgamento é certeiro, exceto o julgamento
de que o que está diante de nós é a “arte de verdade” e não uma fraude
completa, o que o torna um julgamento falsificado. Tudo o que sabemos,
no fim, é que tudo é arte, porque nada é.

Devemos nos perguntar por que o culto à falsa originalidade tem um apelo
tão poderoso a nossas instituições culturais, de forma que todos os museus,
galerias de arte e teatros financiados com recursos públicos levam isso a
sério. Os primeiros modernistas ― Stravinsky e Schoenberg em música,
Eliot e Pound em poesia, Matisse em pintura e Loos em arquitetura ―
eram unidos pela crença de que o gosto popular havia se corrompido, que
sentimentalidade, banalidade e kitsch haviam invadido várias esferas da
arte e eclipsado suas mensagens. Harmonias tonais se corromperam pela
música popular, pintura figurativa foi vencida pela fotografia; rima e
métrica tornaram-se coisa de cartões de natal, e as mesmas histórias já
haviam sido contadas várias vezes. Tudo lá fora, no mundo das pessoas
ingênuas e irracionais, era kitsch.

O modernismo foi a tentativa de reconquistar o sincero, o verdadeiro, o


arduamente obtido, da praga da falsa emoção. Não há dúvidas de que os
primeiros modernistas obtiveram êxito nessa empreitada, nos presenteando
com obras de arte que mantém o espírito humano vivo nas novas
circunstâncias da modernidade, e que estabelecem a continuidade das
grandes tradições de nossa cultura. Mas o modernismo abriu caminho para
rotinas de falsidade: a árdua tarefa de manter a tradição se provou menos
atraente que as maneiras baratas de a rejeitar. Em vez da vida dedicada ao
estudo que Picasso levou, para apresentar a face da mulher moderna numa
linguagem moderna você pode simplesmente fazer o que Duchamp fez e
pintar um bigode na Mona Lisa.

O fato interessante, contudo, é que o hábito de falsificar a arte surgiu do


medo da falsificação. A arte modernista foi uma reação contra as emoções
falsas e aos clichês da cultura popular. A intenção era varrer para longe a
pseudo-arte que nos amortece com mentiras sentimentais e colocar a
realidade, a realidade da vida moderna, com a qual somente a arte pode
lidar, em seu devido lugar. Assim, por muito tempo tem se assumido que
não podem haver criação autêntica na esfera da alta arte que não seja, de
algum modo, um “desafio” para as complacências de nossa cultura pública.
Arte tem que ofender, vinda do futuro totalmente armada, insurgindo-se
contra o gosto burguês pelo conformado e confortável, que são
simplesmente outros nomes para kitsch e clichê. Mas o resultado disso é
que a ofensa se torna um clichê. Se o público se tornou imune ao choque de
tal forma que somente um tubarão morto em formol irá despertar um breve
espasmo de ultraje, então o artista precisa fazer um tubarão morto em
formol ― este, ao menos, é um gesto autêntico.
Portanto cresceu ao redor dos modernistas uma classe de críticos e
empresários, que se oferecem para explicar por que não é uma perda de
tempo encarar uma pilha de tijolos, sentar quieto e suportar dez minutos de
barulho excruciante, ou estudar um crucifixo imerso em urina. Para
convencer a si mesmos de que são verdadeiros progressistas, esses novos
empresários se cercam de outros da própria espécie, promovendo-os a
todos os comitês relevantes para seus status, e esperando serem promovidos
em troca. Assim surgiu o establishment modernista ― o círculo interno de
críticos que formam a medula de nossas instituições culturais e que
comercializam “originalidade”, “transgressão” e “abertura de novos
caminhos”. Esses são os termos de rotina usados pelos burocratas dos
conselhos de arte e dos museus que fazem parte do establishment, sempre
que eles querem gastar dinheiro público em algo que nunca sonhariam em
ter exposto em suas salas de estar. Mas esses termos são clichês, já que são
coisas as quais eles costumam idolatrar. Assim, a fuga do clichê termina
em clichê e a tentativa de ser genuíno termina em falsificação.

Se a reação contra emoção falsa leva à falsificação da arte, como


descobrimos a verdadeira arte? Essa questão eu explorarei em minhas
próximas duas conversas.

PRIMEIRO AMOR POR TURGUÊNIEV


Por Paulo Cantarelli / 21 de junho de 2018
Meu primeiro contato com a literatura russa foi com Dostoiévski, que serve
de porta de entrada à Rússia para leitores do mundo inteiro. Depois vieram
Gógol, Pushkin, Tchekhov e, inevitavelmente, Tolstói. De todos, hoje
considero Dostoiévski o menor em aspecto de estilo e qualidade artística
(ainda falaremos mais disso para o fim da indignação geral), embora
admita sua grandiosidade temática e filosófica.

Um dos últimos autores em minha lista, na época, a quem não conhecia e,


definitivamente, teria lido com muito prazer antes de me debruçar sobre
“Crime e Castigo”, era Ivan Turguêniev. Por indicação do escritor
Raimundo Carrero, comprei um exemplar de “Primeiro Amor” (Editora
Penguin), cujo título que não me agradou de início, assim como “A
Educação Sentimental”, de Flaubert. Tanto que evitei a leitura por algum
tempo.

Porém, para minha surpresa, não encontrei nada de melodramático nessa


narrativa de pouco mais de cem páginas. Pelo contrário: Turguêniev tem
uma prosa afiadíssima, incisiva, precisa e bela, assim como a de seu amigo
e admirador, Gustave Flaubert.

“Eu caminhava de cabeça baixa. De repente, ouvi vozes; olhei para o


outro lado da cerca — e fiquei petrificado. Um espetáculo estranho
apareceu diante de meus olhos.

A poucos passos de mim, numa clareira, entre arbustos verdes de


framboesas, estava uma menina alta e formosa, num vestido de listras cor-
de-rosa e com um lencinho branco na cabeça; em torno dela se
aglomeravam quatro jovens, e ela batia alternadamente na testa deles com
pequeninas flores cinzentas […]. Minha espingarda escorregou e caiu no
chão, esqueci tudo, devorei com o olhar aquela cintura esbelta, o pescoço,
as mãos bonitas, os cabelos louros, ligeiramente despenteados por baixo
do lencinho branco, os olhos inteligentes semicerrados, as pestanas e a
face tenra abaixo delas…”

Na cena acima vemos, através de um perfil físico-psicológico, as primeiras


manifestações de interesse ao sexo oposto, o primeiro deslumbramento e
espanto diante de uma beleza idealizada, além dum primeiro erotismo
singelo (a moça estava sendo cortejada por rapazes).

As descrições de Turguêniev são leves e sonoras; líricas sem falsificação:


temos a objetividade da prosa somada ao lado psicológico (subjetivo) do
narrador em primeira pessoa. Isso nos dá a leveza e o impacto do texto. São
descrições que pensam: vemos cenários psicológicos aliados a pequenos
monólogos interiores que seduzem o leitor ao longo da narrativa.

Através dos olhos de Vladimir Petróvich, numa regressão aos seus


dezesseis anos de idade, vemos a angústia, a alegria e, acima de tudo, a dor
da hesitação no primeiro amor de um jovem. Não só isso, vislumbramos
um pouco o estilo de vida russo. As relações sociais da Rússia Czarista, pós
abolição da servidão pelo Czar Alexandre II, em 1861 – ato que libertou
mais de 20 milhões de servos que viviam sob regime de escravidão velada
–, são retratadas com maestria em breves cenas, que dão atmosfera e tom à
novela: crianças trabalhando em uma fábrica de papel de parede ou uma
velha pobre que morre na última cena, por exemplo. Também são
retratadas a decadência da nobreza e ascensão de uma burguesia
acostumada a cargos públicos e regalias adquiridas por mérito – como
assim em “A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói.

Se engana quem pensa, por meu relato, que “Primeiro Amor” é uma leitura
lúdica; ao terminarmos, notamos que é, na realidade, uma leitura cruel. O
quadro do humano é pintado em toda sua beleza e decadência. As falas das
personagens são organizadas de maneira quase teatral. A ação dá-se em
torno das oposições de conflitos e das crises; isto é: vontades contrárias que
se acirram de tal modo a gerar uma perturbação, elemento que faz o
protagonista reagir ou, neste caso, hesitar. A hesitação através de
monólogos internos e cenários psicológicos é uma das peças chave em
“Primeiro Amor”. As vozes da narrativa, a fala de cada personagem, as
divagações do narrador, cada diálogo é o estalo de um chicote: rápido,
preciso, e que move a o texto adiante. É uma leitura obrigatória.

VOZES NARRATIVAS E O DISCURSO INDIRETO LIVRE


Por Paulo Cantarelli / 25 de junho de 2018 
Hoje é dia de aprofundar um pouco mais nas técnicas literárias. Falaremos
sobre o discurso indireto livre e vozes narrativas.

Mas o que é voz? Em teoria musical, voz é cada uma das partes numa
composição, isto é, cada uma das músicas interpretadas por instrumentos
individuais. Numa peça de Bach, por exemplo, é possível ouvirmos várias
vozes distintas e independentes, mas que formam uma composição
harmônica. Na literatura ocorre algo semelhante, podemos ler diferentes
personagens, com diferentes estilos, se manifestando ao longo do texto.
Então, podemos definir voz como o discurso de cada uma das personagens
de uma narrativa.

Nós conhecemos bem o discurso direto na literatura, que é quando a voz do


narrador e da personagem se distinguem, de forma que a voz da
personagem é dada independentemente da voz do narrador, porém poucos
conhecem ou sabem utilizar o discurso indireto livre, que mescla as vozes
narrativas. Falaremos mais adiante no jogo de vozes e na polifonia, mas
antes, devemos aprender a identificá-las. Tomaremos por exemplo uma
passagem de Madame Bovary, com as três formas de estilo: direto, indireto
e indireto livre. Neste trecho, localizado no final do Capítulo II, temos o
ponto de vista da primeira esposa de Charles Bovary, Holoíse:

“E passou a destestá-la instintivamente. A princípio procurou alívio nas


indiretas, que Charles não entendia; depois em reflexões e incidentes, a
que ele não dava importância com medo de alguns tempestade; finalmente,
em apóstrofes à queima roupa, às quais ele não sabia o que responder.
Qual era o motivo que ele continuava a ir nos Berteaux, uma vez que
Rouault já estava curado e ainda não pagara! Ah! É que lá havia uma
pessoa que sabia conversar, uma pessoa prendada, uma briga inteligência.
Era disso que ele gostava; o que ele queria era moças da cidade! E
prosseguia:

— A filha do Sr. Rouault, moça da cidade! Ora adeus! O avô era pastor e
eles até têm um primo que esteve a ponto de sentar-se no banco dos réus,
por causa de uma briga. Não valia a pena fazer tanto barulho, nem
mostrar-se aos domingos na igreja, de vestido de seda, como uma
condessa. Pobre velho, que, se não fossem as colzas do ano passado, ver-
se-ia muito atrapalhado para pagar suas dívidas atrasadas.

Fatigado, Charles deixou de ir aos Berteaux. Heloíse fizera-o jurar com a


mão sobre o um livro de missa que não voltaria lá; isto depois de muitos
soluços e muitos beijos, numa grande explosão de amor.”
DISCURSO DIRETO

Tem esse nome pois reproduz direta e literalmente as palavras


pronunciadas pelas personagens. Na narrativa tradicional, convém que
essas falas sejam precedidas por travessão e introduzidas pelos verbos
dicendi, embora na narrativa moderna ambos sejam dispensáveis. No
exemplo de Mme. Bovary, temos a fala direta de Heloíse:

“E prosseguia:

— A filha do Sr. Rouault, moça da cidade! Ora adeus! O avô era pastor e
eles até têm um primo que esteve a ponto de sentar-se no banco dos réus,
por causa de uma briga. […]”

Neste ponto temos a nítida voz da personagem separada da do narrador,


que enuncia a mudança de voz com o “e prosseguia”.
DISCURSO INDIRETO

Aqui o narrador reproduz na própria voz o que as personagens disseram ou


dizem. É precedido pela preposição “que”. Ex: disse que, falou que, contou
que, etc…

No texto, vemos o discurso indireto em:

“Heloíse fizera-o jurar com a mão sobre o um livro de missa que não
voltaria lá […]”.
Aqui vemos uma única voz, a do narrador, que resume as falas de Heloíse e
Charles.
DISCURSO INDIRETO LIVRE (OU ESTILO INDIRETO LIVRE)

Eis a sofisticação máxima atingida por Flaubert, e que mudou para sempre
o romance moderno. O estilo indireto livre incorpora a voz da personagem
à voz do narrador, ambas confundem-se. Não há travessões nem verbos
dicendi, aspas, itálico, ou quaisquer marcações. É uma variante do estilo
indireto, com a diferença que, desta vez, é a personagem que entrecorta a
voz do narrador, não o contrário. Permite que entremos na mente das
personagens sem a necessidade de dizer “pensou Heloíse”, no trecho:

“finalmente, em apóstrofes à queima roupa, às quais ele não sabia o que


responder. Qual era o motivo que ele continuava a ir nos Berteaux, uma
vez que Rouault já estava curado e ainda não pagara! Ah! É que lá havia
uma pessoa que sabia conversar, uma pessoa prendada, uma briga
inteligência. Era disso que ele gostava; o que ele queria era moças da
cidade! E prosseguia:”

Em “finalmente, em apóstrofes à queima roupa, às quais ele não sabia o


que responder”, temos a voz do narrador. Porém a partir de “Qual era o
motivo que ele continuava a ir nos Berteaux”, temos a voz de Heloíse, na
forma de seus pensamentos. Não há enunciação, mas temos uma pista de
que é a voz dela em:

“Era disso que ele gostava; o que ele queria era moças da cidade! E
prosseguia:

— A filha do Sr. Rouault, moça da cidade! […]”

Momento algum foi mencionada a expressão “moças da cidade”, de forma


que Holoíse não poderia saber o que o narrador estava pensando, logo, esta
é a voz dela.

O discurso indireto livre não se confunde com o falso monólogo interior


nem com a falsa terceira pessoa, como gostam os americanos de dizer. O
falso monólogo interior e a falsa terceira pessoa são recursos parecidos,
porém distintos, de que trataremos em outro momento. Por ora, isto basta.

OSCAR WILDE, O CRIADOR DE COISAS BELAS


Por Paulo Cantarelli / 28 de junho de 2018 
Recentemente, enquanto pesquisava algumas obras em meu acervo, me
deparei com “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde. Faz bastante
tempo desde que o li pela primeira vez, então decidi reler alguns trechos e
relembrar dos inúmeros fatores que fizeram dessa obra um cânone da
literatura universal, um livro que deve ser lido não só pela ousadia
temática, mas principalmente pelo equilíbrio estético. É a Estética como
objetivo da arte que, assim como Flaubert, Wilde defendia; e que defendeu
tão bem no prefácio à segunda edição de seu único romance.

O prefácio foi escrito em resposta aos críticos de arte que recriminaram “O


Retrato de Dorian Gray” como sendo imoral e depravado. Wilde, mediante
censura dos editores, dividiu algumas partes da versão original, de 1890,
com 13 capítulos, excluiu outras e criou novas cenas e personagens para
amenizar o conteúdo polêmico, tendo a versão de 1891 20 capítulos. Ele,
assim como outros devotos da Estética, acreditava que a Arte possui um
valor intrínseco, não tendo imoralidades; é amoral: seu propósito – se é que
existe – serve apenas à Beleza. Lembrando que, quando falamos em
Beleza, falamos de tudo aquilo que é belo, feio ou sublime; e que ao ser
observado causa algum nível de movimentação interna (emoção) na alma
do observador.

Isso nos leva a um conceito muito importante para a Filosofia da Estética: o


de que toda arte é inútil. Ou seja, não serve para mudar o mundo, para
moralizar ou educar; mas apenas para ser contemplada. A verdadeira
função do escritor não é ser o juiz do mundo, como nos ensina Tchekhov,
numa carta: “deixemos aos jurados julgá-los, a minha função é apenas
mostrar como eles [os personagens] são”.

A tradução a seguir é da edição bilíngue da Editora Landmark, 2012, SP:


PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO REVISADA PELO AUTOR E PUBLICADA EM
ABRIL DE 1891 PELA WARD, LOCK AND BOWDEN COMPANY

O artista é o criador de coisas belas. Revelar a arte e ocultar o artista é o


objetivo da arte. O crítico é aquele que pode traduzir de outro modo, ou
em um novo material, as suas impressões sobre as coisas belas.

As formas mais elevadas ou baixas da crítica é um modo de autobiografia.


Aqueles que encontram significados feios nas coisas belas são corruptos e
sem serem encantadores. Isto é um defeito.

Aqueles que encontram significados belos nas coisas belas são aqueles que
as cultivam. Para esses há esperança. Eles são os eleitos para quem as
coisas belas significam apenas beleza.

Não existem fatos morais ou imorais em um livro. Os livros são apenas


bem ou mal escritos. Isto é tudo.
O ódio do século 19 pelo Realismo é a raiva de Calibã ao ver o seu
próprio rosto diante de um espelho.

O ódio do século 19 pelo Romantismo é a raiva de Calibã ao não poder


ver o seu próprio rosto em um espelho. A vida moral dos homens constitui
partes do tema usado por um artista, mas a moralidade da arte consiste do
uso perfeito de um meio imperfeito. Nenhum artista deseja provar nada.
Mesmo as coisas que são verdadeiras podem ser provadas. Nenhum artista
possui compreensão da ética. Uma compreensão ética em um artista é um
maneirismo imperdoável de estilo. Do mesmo modo, nenhum artista é
mórbido. O artista pode expressar todas as coisas. O pensamento e a
linguagem são os instrumentos artísticos de uma arte. O vício e a virtude
são os materiais artísticos para a arte. A partir do ponto de vista da forma,
a tipologia de todas as artes é a arte do músico. Do ponto de vista do
sentimento, o ofício do ator é a tipologia. Toda arte em si é superfície e
símbolo. Aqueles que vão além da superfície o fazem sob seu próprio risco.
Aqueles que desvendam o símbolo o fazem sob seu próprio risco. É o
espectador e não a vida que a Arte realmente espelha. A diversidade de
opinião sobre o trabalho da arte demonstra que o trabalho é novo,
complexo e vital. Quando os críticos divergem, o artista permanece de
acordo com si mesmo. Nós podemos perdoar um homem por tornar algo
útil, mesmo que ele não a admire. A única desculpa para se produzir algo
inútil é aquilo que se admira intensamente.

Toda forma de Arte é completamente inútil.


INVENTAR, MAS INVENTAR COM VERDADE – CARTA DE HEMINGWAY A
FITZGERALD
Por Paulo Cantarelli / 29 de junho de 2018
Caro Scott,

Gostei e não gostei. Começa com aquela descrição maravilhosa da Sara e


do Gerald (droga, o Dos [Passos] levou o livro e eu fiquei sem referência.
Portanto, se eu errar…). Depois você começa a brincar com eles, fazendo-
os vir de onde não vieram, transformando-os em outras pessoas, e você não
pode fazer isso, Scott. Se está escrevendo sobre pessoas reais não pode
mudar os pais delas (elas são frutos dos pais e do que acontece com elas)
não pode mostrá-las fazendo coisas que não fariam. Você pode escrever
sobre você ou sobre mim ou sobre Zelda ou Pauline ou Hadley ou Sara ou
Gerald, mas tem de mantê-los como de fato são e mostrá-los fazendo o que
realmente fariam. Não pode mudar ninguém. Inventar é ótimo, mas você
não pode inventar nada que não aconteceria na realidade.
É isso que se espera de nós em nossos melhores momentos — inventar — 
mas inventar com tanta verdade que acabe mesmo acontecendo.

Droga, você toma uma liberdade com o passado e o futuro das pessoas que
acabam resultando em histórias irreais. Você, que sabe escrever melhor do
que ninguém — que diabo. Scott, pelo amor de Deus, escreva e escreva com
verdade, doa a quem ou a que doer, mas não faça essas concessões bobas.
Você escreveria um livro ótimo sobre o Gerald e a Sara, por exemplo, se
soubesse o bastante sobre eles e, se fosse verdade, eles não ficariam
chateados por muito tempo.

Há passagens maravilhosas e ninguém escreve uma história tão bem quanto


você, mas você inventou demais nesta aqui. Sem necessidade.

Em primeiro lugar, eu sempre disse que você não sabe pensar. Tudo bem,
vamos admitir que você sabe pensar. Mas digamos que não saiba; então
você tem de escrever, inventar a partir do que você conhece e respeitar os
antecedentes das pessoas. Em segundo lugar, faz tempo que você só escuta
as respostas para suas próprias perguntas. E com toda a sua capacidade, não
precisa fazer isso. É isso que seca um escritor (todos nós secamos. Não é
ofensa nenhuma), não escutar. Tudo vem daí. Ver, escutar. Você vê muito
bem. Mas parou de escutar.

É muito melhor do que eu estou dizendo. Mas não é tão bom quanto você é
capaz de fazer.

Você pode estudar Clausewitz e economia e psicologia e não vai lhe servir
de nada quando está escrevendo. Somos péssimos acrobatas, mas damos
bons saltos, e existem todos aqueles acrobatas que não saltam.

Pelo amor de Deus, escreva sem se preocupar com o que os caras vão dizer
ou se vai ser uma obra-prima ou não. Eu escrevo uma página de obra-prima
para cada noventa e uma páginas de merda. Tento jogar a merda no lixo.
Você acha que tem que publicar qualquer bosta para ganhar dinheiro para
viver. Tudo bem, mas se você escrever bastante e escrever bem, como sabe,
vai produzir a mesma quantidade de obras-primas (como dizemos em
Yale). Você não pode pensar que vai sentar e escrever uma obra-prima, e se
você se livrasse do Seldes e daqueles caras que quase o arruinaram e os
pusesse na rua, como você bem pode, e deixasse os espectadores gritarem
quando é bom e vaiarem quando não é, seria ótimo.

Esqueça sua tragédia pessoal. Nós todos estamos fodidos desde o começo e
você em especial tem de sofrer muito para ser um escritor sério. Mas
quando estiver sofrendo use o sofrimento — não trapaceie. Seja fiel a ele
como um cientista — mas não pense que uma coisa é importante porque
acontece com você ou com algum dos seus.

A essa altura não vou achar ruim se você me xingar. Nossa, é maravilhoso
ensinar os outros a escrever, a viver, a morrer, etc.

Eu gostaria de conversar pessoalmente com você sóbrio. Você estava tão


bêbado em N.Y. que não fomos a lugar algum. Você não é uma
personagem trágica. Eu também não sou. Tudo o que somos é escritores e
tudo o que temos de fazer é escrever. Você é a criatura que mais precisava
de disciplina no trabalho e foi casar justamente com uma mulher que tem
ciúmes do seu trabalho, que quer competir com você e está destruindo
você. Não é fácil e eu achei que Zelda era louca assim que a vi pela
primeira vez e você complicou ainda mais as coisas se apaixonando por ela,
e naturalmente você é um pinguço. Mas não é mais pinguço que o Joyce e a
maioria dos bons escritores. Mas Scott, os bons escritores sempre voltam.
Sempre. Agora você é duas vezes melhor do que quando se achava
maravilhoso. Tudo o que você precisa fazer é escrever de verdade e não se
preocupar como o que vai acontecer.

Vá em frente e escreva.

De qualquer modo eu gosto um bocado de você e queria ter a oportunidade


de conversar com você de vez em quando. A gente passou bons momentos
conversando. Lembra daquele cara que estava morrendo em Neuilly e nós
fomos visitar? Ele esteve aqui no inverno. Canby Chambers, um cara
danado de bom. Passou muito tempo com o Dos. Agora ele está muito bem,
mas um ano atrás esteve muito doente. Como vai a Scotty? E a Zelda? A
Pauline manda beijos. Estamos todos bem. Ela vai para Piggott passar duas
semanas com o Patrick. Depois traz o Bumby. Nós pegamos um bom
barco. É uma longa história. Difícil de escrever.

Seu amigo de sempre

Ernest.

Escrito no envelope: E The Sun e o cinema? Alguma possibilidade? Não


falei nada sobre as partes boas. Você sabe como são boas. Você tem razão
quanto ao livro de contos. Eu queria ter continuado. Com o último que
publiquei na Cosmopolitan teria sido um sucesso.

É BONITO, MAS É ARTE?


Por Paulo Cantarelli / 2 de julho de 2018
Quando o brilho de um sol recém-nascido caiu primeiro no verde e dourado
do Éden,
Nosso pai Adão sentou-se sob a Árvore e arranhou com um pedaço de pau
o molde;
E o primeiro esboço rude que o mundo viu foi alegria para seu poderoso
coração,
Até que o Diabo sussurrou atrás das folhas: É bonito, mas é Arte?
Diria Sócrates que toda sabedoria começa pela definição de termos.
Portanto, convém esclarecer desde o princípio alguns termos tais quais eu
os utilizo; e não me refiro apenas a palavras, mas principalmente a coisas.

Quando digo a palavra  “arte”, tenho por referente as belas-artes, não as


artes úteis, e dou-lhe uma definição bastante simples: arte é qualquer
expressão inteligível, gerada por técnica, que vise a um fim estético.

Essa definição não é inteiramente nova, muito menos é de todo minha; vem
da leitura dialética de vários autores, de filósofos, feito Aristóteles e São
Tomás de Aquino, a artistas feito James Joyce e T. S. Eliot. Não tenho
pretensões de que essa definição seja “completa”, no sentido mais restritivo
que os leigos atribuem à palavra, de “encerrar” uma discussão. Definir é,
primeiramente, estabelecer as bases mínimas para que uma discussão
sóbria possa ocorrer, delimitando o objeto de estudo. Por óbvio, nenhuma
definição pode abarcar todos os aspectos da realidade.

Reservo-me, neste breve escrito, a uma delimitação breve, porém


pragmática, levando em conta a época em que escrevo, num mundo onde
tudo em volta induz à loucura, ao esquecimento da consciência e da
realidade, onde se parece impossível chegar na mais simples constatação do
que seja belo ou feio. Agora, aos pormenores de minha definição.Arte é
expressão, pois é manifestação do pensamento e do sentimento. Contudo,
um mero grito também pode ser uma expressão, seja de raiva, de pavor ou
de alegria. Uma folha de papel amassado poderia igualmente ser
considerada outra expressão — um senhor, na fila da repartição pública,
que amassa um documento na cara do burocrata, uma mulher cortejada que
amassa e joga fora uma carta de amor. Agora, digamos que eu
impassivelmente amassasse uma  folha de papel azul, depois outra, de
papel branco, e uma terceira, de papel vermelho. Eu poderia dizer que esta
é uma novíssima obra de arte moderna, em que o vermelho  representa o
sangue do povo morto pelos regimes totalitários, o branco a paz mundial,
esmagada pelo século XXI, e o azul seria a esperança.
Dei um significado ao papel amassado que só existe em minha mente, já
um observador desavisado poderia interpretá-lo de uma representação
disforme da bandeira da França, enquanto a faxineira talvez pensasse que
alguém jogou lixo no chão outra vez. Carece, dentre outros fatores,
inteligibilidade na expressão.

Para que algo seja arte, é preciso ainda um entendimento imediato de seu
significado. Por entendimento imediato, me refiro ao conhecimento
intuitivo das coisas, aquela percepção que, num relance, capta tanto o
conteúdo, a “mensagem” mais superficial da expressão, quanto a forma,
sem necessidade de intermediações intelectuais ou explicações. Nas
palavras de Croce: arte é tudo aquilo que toda a gente sabe o que é. Ou
costumava saber.

Diferentemente do papel amassado, isolado de um gesto que lhe dê


significado, podemos distinguir um grito de dor dum grito  de raiva ou
medo, por exemplo. São expressões inteligíveis. Mas mesmo sendo
inteligível e carregado de emoção, o grito, ato consciente ou involuntário,
não possui técnica. Então, a Sra. Yoko Ono irá nos  desculpar: gritar num
palco de museu, em Nova Iorque ou onde quer que seja, pode ser qualquer
coisa — inclusive lavagem de dinheiro —, menos arte. Acredito que
indivíduos com a soma total de neurônios maior do que dois deverá
perceber este fato sem quaisquer problemas.

Agora, imaginemos outra situação, mais corriqueira, em que nos


deparamos com uma  fotografia: tomemos por exemplo o retrato 3×4 da
carteira de motorista. Temos uma expressão, temos inteligibilidade e temos
uma  técnica. Podemos, inclusive, ter um retoque digital para torná-la mais
bela. Sorrateiramente surge a pergunta que Satanás, por entre as folhas, fez
a Adão, no poema de Kipling: é bonito, mas é arte?O que separa uma
fotografia artística de um mero registro? O fim estético. A finalidade
estética mudará desde o intuito inicial da expressão até as técnicas
utilizadas na fotografia o que, obviamente, influirá na forma; um fotógrafo
artístico tentará transmitir seu próprio olhar subjetivo, acentuando detalhes
que somente ele enxergou numa determinada cena através das lentes, nos
revelando uma faceta da experiência e da condição humana. O fim estético
é o que separa a arte do mero registro cotidiano e efêmero.

Agora podemos distinguir os reais elementos da arte e saber por que o  Sr.
Marcel Duchamp não fez arte, mas fez uma “tremenda duma arte”. Assinar
o penico deveria ser claramente uma piada, mas, quando todos passaram a
reverenciar o sarro como a mais elevada expressão artística, termina a arte
e começa o desastre.
Então chegamos a um segundo ponto do questionamento: e o que é
Literatura? Muito se discutiu em torno dessa simples palavra e muitos —
quer por limitações intelectuais ou pela crença de se estar diante de algo tão
auto-evidente que careça de explicações — não chegam sequer a cogitar
uma definição para o que é Literatura. Outros não deram uma definição
satisfatória, ora frouxa, ora demasiado restrita. E, não tendo pretensões de
ignorá-las, nem levá-las em conta neste momento, tomo por partida o
mesmo ponto que Flaubert, que considerava a Literatura como algo dotado
de vida — e que talvez engolisse a própria vida —, cujo fim é a Beleza.
Logo, levando em conta minha definição de Arte, podemos dizer que
Literatura é a “expressão artística escrita”, seja em verso ou em prosa.
Portanto, a princípio, o que quer que esteja fora disso, não considero para
fins de estudo literário propriamente dito, leia-se, estudo artístico. Para
essas afirmações, há consequências complexas, que ficam de fora desta
breve reflexão; pretendo, antes, apresentar uma generalização das bases de
minhas investigações críticas e estéticas, não elaborar uma resposta
definitiva, ou fórmula preconcebida para solucionar de antemão todos os
problemas que possam surgir durante o percurso. 

Um adendo: dizer que algo é uma obra de arte, ou que não é, jamais será
elogio ou demérito — talvez o seja caso o autor deseje ardentemente que
sua obra seja reconhecida como arte. Categorizar um objeto é apenas um
juízo de fato acerca da realidade objetiva. O mesmo se aplica à Literatura:
dizer que estamos diante de uma obra de arte literária, ou não, apenas nos
permite examinar o objeto tal qual ele realmente é.

Os Diálogos de Platão são belíssimos, mas são arte? Não do sentido das
belas-artes. Também não são Literatura, são Filosofia. E “Os  Sertões”, de
Euclides da Cunha, é Literatura? Não. É uma obra  jornalística, escrita com
o fim de informar e registrar, mais do que com  um fim estético. Com isso,
podemos analisar a real beleza da obra, a  beleza própria do ensaio, do
registro geográfico e sociológico, dos temas. Uma panela não é bela da
mesma maneira que uma mulher é bela; é preciso categorizar as coisas para
que possamos analisá-las e julgá-las de acordo com seus gêneros e
espécies.

Porém, quanto mais intelectualizada for uma obra, como é o caso da obra
literária, mais complexa pode se tornar essa distinção. É preciso que se
tenha uma boa dose de cultura e de intuição — leia-se, apreensão imediata
—, mais do que se utilizar de meros termos para ditar verdades
automáticas, respostas fáceis que ignoram tanto texto quanto contexto. É
preciso ser dialético no sentido mais socrático do termo.
Podemos ter diante de nós um “romance não ficcional” ou “romance
reportagem”, a exemplo de “A Sangue Frio”, de Truman Capote. Como
julgá-lo? O compromisso maior de Capote era com a realidade, com uma
reportagem. Porém, embora a história seja real (isto é, factual), Capote
também queria  transmitir uma emoção estética, mais do que uma simples
notícia de  jornal. Portanto, é justo que consideremos “A Sangue Frio” uma
obra de arte em sentido estrito ― a saber, o da técnica e elaboração, arte-
útil. O fim é documental, não de contemplação. Alguns defenderiam que se
trata de literatura propriamente dita, porém, mesmo com claras intenções
estéticas na feitura, “A Sangue Frio” continua tendo  forte compromisso
com a realidade não-ficcional. Carpeaux chega a dizer, em sua
enciclopédica História da Literatura Ocidental, que o livro de Capote é
“mera reportagem, embora  literalmente elaborada” sobre um assassinato.
Uma reportagem com alto valor artístico e literário, lida como se fosse
romance, o que lhe enriquece em seu próprio gênero, mas que continua
sendo obra de jornalismo, assim como o famoso “A Ilha de Sacalina”, de
Tchekhov.

Ou ainda poderiam me perguntar: e a Arquitetura? Não é arte? Sim, é arte,


porém de outro tipo, que mencionei no primeiro parágrafo, as Artes  Úteis.
Não utilizo o termo “Belas-Artes” segundo a historiografia da  arte
tradicional ― por esse prisma, prosa de ficção não seria nem  considerada
Belas-Artes. Roger Scruton nos ajuda a elucidar essa  questão, nos
lembrando que a Arquitetura “se distingue das outras formas  de arte pelo
senso de função, pela qualidade regional, pela técnica,  pelo caráter público
e impessoal, e sua permanência entre as artes decorativas”. Ou seja, a
Arquitetura é mais próxima do artesanato (artes-úteis ou aplicadas), que das
belas-artes, as artes mais “finas”. E por finas, não me refiro ao refinamento,
sentido atribuído pelos dicionários, mas à origem etimológica da
palavra, finis, do latim, fim. Obras cujo fim encontra-se no próprio objeto.

É preciso lembrar, ainda, que a utilidade não se confunde com a deturpação


filosófica do utilitarismo, tampouco a própria utilidade anula as qualidades
estéticas. A própria Estética é o estudo da  Beleza, seja ela dentro do campo
da Arte ou não. Como  já ressaltei, existem belos ensaios, belas retóricas,
belas equações matemáticas, belas ideias, belas paisagens, belas mulheres;
contudo, não apreciamos nenhuma dessas belezas como obras de arte.

A segunda pergunta, que Satanás talvez tenha feito a Adão, pode ter sido: é
arte, mas é boa arte?

RECEITA DE BOLO DA NARRATIVA: ESTRUTURAS


LITERÁRIAS
Por Paulo Cantarelli / 5 de julho de 2018
“Para a construção da obra de arte ficcional ― romance, novela, conto ― o
autor deve procurar definir, em princípio, o efeito que a história produzirá
no leitor. Isso é decisivo. Não basta contar uma história, torna-se necessário
encontrar a intimidade, o segredo mais profundo, a verdadeira essência.
Costuma-se dizer que todas as histórias já foram contadas. Sim, já foram
contadas todas as histórias lineares. No entanto, as verdadeiras histórias são
aquelas que se revelam no nosso sangue, com o nosso conhecimento de seu
mistério e solidão, porque toda história é uma só e toda nossa solidão
pertence somente a nós, a cada um ― só, isoladamente, solidão. Aí reside a
nossa possível grandeza ― não para os olhos do mundo, mas para a
inquietação do nosso sangue.” ― Raimundo Carrero
I – CONTAR UMA HISTÓRIA

Contar histórias. É isso que um escritor faz, muitos diriam. É claro,


escrever é contar uma história, correto? Errado. Seria o mesmo que dizer
que seres humanos são iguais a chimpanzés, compartilham muitas
características: olhos, pernas, mãos, polegares, 99% do DNA. Porém dizer
que somos iguais não é verdade, as diferenças são gritantes, pois somos
criaturas diferentes. O mesmo ocorre entre um contador de histórias e um
escritor, roteirista, poeta, etc.; já discutimos as diferenças entre contar uma
história e escrever um conto, romance, poema, peça de teatro ou roteiro de
cinema, porém abordarei novamente esses temas. Contar uma história é o
primeiro passo para escrever uma narrativa ― Forster diria que esta é a
espinha dorsal de qualquer tipo de narrativa, o nível mais básico, ao qual
não é preciso muita inteligência e sofisticação, necessitando-se apenas de
uma sequência cronológica de fatos. Não há narrativa sem história ― ou
estória, como prefiro ―, de forma que contar histórias é algo tão
rudimentar que chega a ser quase inerente ao homem. Será que é? Fazemos
isso intuitivamente? Ao andarmos por qualquer sertão da vida,
encontramos contadores de causos, violeiros, repentistas, gente que
certamente nunca leu a “Poética”, de Aristóteles, mas sabe estruturar uma
narrativa digna dos dramaturgos gregos. Porém o que é uma habilidade
facilmente assimilada por alguns ― assimilada, sim, pois entramos em
contato com inúmeras histórias, seja através da tradição oral, religiosa,
livros, filmes, novelas de televisão, etc. ― por outros não é algo facilmente
internalizado.

Recentemente reencontrei alguns textos guardados de vários alunos que


passaram pela Oficina de Criação Literária de Raimundo Carrero. Não
pude deixar de notar que a maioria das pessoas ao começarem a escrever
não sabem como estruturar uma narrativa básica. Isto é: não sabem onde
fica o começo, o meio e o fim. Como assim? Será um ser humano tão
estúpido a esse ponto? Não. Às vezes sim, mas neste caso não é estupidez.
Alguns não sabem exatamente o que mostrar no início, no meio e no fim;
têm alguma ideia da teoria, mas não conseguem desenvolver uma narrativa
que se sustente por si, tendo dificuldades em ordenar os fatos, criar
conexões entre os acontecimentos e dar-lhes desfecho. Um dos principais
trabalhos do romancista é criar ordem a partir do caos: temos cenas, ideias,
sentimentos, referências, influências, medos, paixões, inúmeros fatores
confusos, conscientes ou inconscientes, que habitam nossa imaginação e
que devemos selecionar e ordenar para coloca-los no papel. Este é o
primeiro de muitos passos na escrita literária, a simples elaboração de uma
história, depois daremos cor, estilo, som, forma, montagem, pontos de
vista, técnica ― após a eclosão damos vida ao texto.

Aqui me proponho a analisar a estrutura narrativa básica, os velhos três


atos. Outros modelos surgiram, principalmente após o Formalismo Russo e
Estruturalismo Francês, porém, por mais sofisticados que sejam os modelos
propostos por Vladmir Propp, Barthes, Greimas ou Todorov, não creio que
sejam úteis para nos ajudar a escrever melhor ― neste momento algum
acadêmico das letras, em seu gabinete universitário, deve estar repuxando
os cabelos e berrando contra esse ultraje. Claro, são excelentes textos
críticos, ótimos na teoria e até úteis em casos bastante específicos, mas aqui
visamos a prática, a tal da poética. E, na prática, nada melhor do que ter em
mente um modelo simples que direcione nossa imaginação sem tolher a
liberdade criativa.

A estrutura da história tradicional funciona quase da mesma maneira nos


maiores clássicos da literatura, não importando muito a ordem cronológica
da narrativa. Quando começamos a ler uma ficção, somos forçados a ver
situações e tipos humanos com os quais já nos deparamos antes. A história,
como dissemos, é a espinha dorsal de uma narrativa e montamos todo o
resto da escrita sobre ela. No início, somos apresentados às personagens e a
uma situação: ao lermos uma história policial, temos um detetive sendo
chamado ao local do crime; enquanto numa história de amor temos o
primeiro encontro de um casal. Depois um conflito ou uma complicação
surge: o corpo é achado numa sala fechada por dentro, ou o casal se
demonstra atrapalhado à primeira vista. A ação na história se eleva e segue
para o clímax do conflito (ou confronto), o detetive procura por pistas,
entrevista testemunhas, é ameaçado pelo assassino ou por alguém que o
protege, ou os amantes se estranham se desentendem. Ao fim, temos as
resoluções: o detetive soluciona os crimes, ou descobre a identidade do
criminoso, enquanto os amantes superam as dificuldades ou se separam.
Certamente podemos pensar em inúmeras histórias com tal estrutura, e, ao
fim, podemos ter resultados como “O Nome da Rosa” e “Madame Bovary”,
ou algo com pouco ou nenhum valor artístico, como “O Código Da Vinci”
e “50 Tons de Cinza”.

Analisar narrativas simplesmente pelo tema tratado, o vulgo “gênero” ―


falo da invenção de mercado ―, é um erro. Poucos, por exemplo,
pensariam em “Édipo Rei” como uma história policialesca: temos o
mistério de um crime a ser desvendado e um investigador, o que por si a
classificaria uma narrativa policial. Evidentemente não é o crime a causa
secreta da peça, mas a condição humana por trás dele ― e suas
consequências. A título de curiosidade, alguns teóricos apontam a história
de Caim e Abel como a primeira narrativa policial da humanidade: temos
novamente um crime a ser desvendado, sendo o criminoso Caim e o
investigador Deus ― uma investigação que, sendo o detetive onipotente e
onisciente, dura pouco.

Já admitimos que saber contar uma história é fundamental, básico, mesmo


que o conteúdo dessa história seja irrelevante. A estrutura nada mais é do
que um padrão, desses tão facilmente identificáveis na natureza. Não é (ou
não deveria ser) receita de bolo, que, caso seguida à risca, promete não
deixar o ritmo desandar e prender o leitor até o fim ― um efeito almejado
por todos os escritores ―; não faz milagres, nem garante a escrita de um
bom livro ― o máximo que pode fazer é dar alguma clareza, ajudar um
escritor que se encontre com a pergunta “e agora, o que fazer, para onde a
história segue?”. Não mais que isso.
II – ESTRUTURA CLÁSSICA

Esse modelo de estrutura em três atos foi primeiro codificado por


Aristóteles em “Poética”, onde ele nomeia e define os principais elementos
que compões a tragédia ― atenção a este detalhe, Aristóteles fala
objetivamente sobre a tragédia, embora deixe muitos conceitos estéticos
subentendidos no texto, que são parte da arte não objetiva. Até hoje, cerca
de 2300 anos após a morte do estagirita, ainda falamos de uma narrativa
com proporções aristotélicas. Não é a intenção discutir agora os aspectos
estéticos de “Poética”, mas basta dizer que, dentro da perspectiva
estrutural, ele foi o primeiro a dizer que uma narrativa precisa basicamente
de “um início, um meio e um fim”, isto é, “apresentação, conflito e
resolução”. Também foi o primeiro a indicar que os eventos na narrativa
devem ser causalmente conectados e contidos em si, e que ― reforço, na
tragédia ― o final deve proporcionar um fechamento e catarse.

Aristóteles também fala pela primeira vez nos conceitos de protagonista e


antagonista, quando os dois principais personagens estão em disputa um
com o outro. Não que haja a necessidade, como em ficção de mercado, de
um vilão e um mocinho. Aristóteles determinava o “agon” como o núcleo
de conflito/crise (daí a palavra agonia), sendo o protagonista quem move
esse agon adiante e o antagonista qualquer um que impeça a resolução
dessa crise ou a intensifique. Muitas narrativas modernas, em romance
principalmente, nem antagonistas propriamente dito possuem, sendo essa
função por vezes atribuída a uma circunstância do destino. Grande parte
das características descritas no modelo original de Aristóteles levam em
conta aspectos próprios do teatro grego, que isso fique bem claro. Lembro-
me agora de um conto de Julio Cortázar, “Ninguém tem culpa”, no qual o
protagonista é um sujeito apressado que deseja apenas trocar de roupa, e o
antagonista é o seu pulôver, que termina por derrota-lo de maneira
inusitada, fazendo-o cair pela janela do décimo segundo andar enquanto
tentava vesti-lo ― algo nem um pouco convencional.

Vejamos, na teoria, como se procederia o modelo estrutural aristotélico


clássico, na tragédia antiga, segundo “Poética”:

ATO I: Prólogo (apresentação do conflito e das personagens), Párodo


(entrada do coro)
ATO II: Episódio, Estásimo (comentário do coro), Episódio 2, Estásimo 2,
etc… Ao final deste ato devem ocorrer a peripécia (reviravolta no enredo,
ou “plot-twist”) e anagnórise (reconhecimento, quando as pistas deixadas
ao longo da narrativa se conectam)
ATO III: Êxodo. No terceiro ato deve ocorrer a catástrofe (a resolução
trágica) e o desfecho (fim).

Agora vejamos essa estrutura na prática, numa tragédia grega. Tomemos


rapidamente o já mencionado “Édipo Rei”, de Sófocles, como exemplo:

ATO I: Anúncio da praga e promessa de Édipo em dar fim ao sofrimento


do povo tebano.
ATO II: (sequência de episódios, excluindo os estásimos) o Corifeu diz a
Édipo: ache o assassino de Laio; Édipo amaldiçoa o assassino de Laio;
Tirésias acusa Édipo; Édipo e Creonte brigam; Jocasta conta a história do
assassinato de Laio, menciona a encruzilhada de três estradas, que faz
Édipo duvidar e chamar o pastor; um mensageiro de corinto chega e diz
que Pólibo não é pai de Édipo (peripécia); o pastor chega e ouvimos a
história dele, que confirma a do mensageiro (anagnórise); Édipo e Jocasta
notam as abominações que cometeram.
ATO III: Relato do suicídio de Jocasta e da cegueira auto infligida de
Édipo, que se cega (catástrofe); Édipo se despede dos filhos e de Creonte;
Édipo pede por exílio; Édipo parte para o ostracismo e a praga acaba.

III – ROMANCES QUE DEVERIAM SER PEÇAS DE TEATRO


Notem que a premissa básica da estrutura aristotélica é: apresentamos as
personagens e o princípio do conflito, depois haverá o confrontamento, que
é que quando as personagens agem, se movem para resolver o conflito, que
chega ao fim com um desfecho. É um diagrama sobre a ação pura, isto é,
ações físico-objetivas, não psicológico-subjetivas. Com ação pura, me
refiro à alma da tragédia, porém no romance, temos mais coisas além de
ações puras: há o jogo de cenas, cenários, perfis, jogos de pontos de vista,
dentre outras funções próprias e exclusivas da prosa de ficção.

Por isso, Forster nos adverte, em “Aspectos do Romance“, que é inútil


aplicar fielmente o “processo tripartite de complicação, crise e solução que
Aristóteles expôs de maneira tão convincente. Um ou outro [personagem]
se levanta e obedece, e o resultado é um romance que deveria ter sido uma
peça de teatro. Contudo, nem todos reagem. Preferem ficar sentados num
canto, ruminando seus pensamentos ou algo assim, e o enredo (que imagino
como uma espécie de alto funcionário governamental) fica preocupado com
a falta de espírito público deles […] É uma frase bem conhecida: ‘colaborar
com o enredo!’. No drama, as pessoas até a aceitam, por necessidade; mas
até que ponto ela é necessária ao romance?”.

Após isso, Forster faz a distinção entre história e enredo ― ao qual


chamamos de montagem para evitar confusões com a palavra trama, aquele
tipo de história um pouco mais rebuscada, adorada pelo mercado, e cheia
de reviravoltas ―, que seria “a estória como uma narrativa de eventos
dispostos conforme a sequência do tempo. O enredo também é uma
narrativa de eventos, na qual a ênfase recai sobre a causalidade. ‘O rei
morreu, e depois a rainha morreu’ é uma estória. ‘O rei morreu, e depois a
rainha morreu de desgosto’ é um enredo. A sequência do tempo é mantida,
mas o senso de causalidade a ofusca.”

Causalidade é a palavra-chave, aquele senso de conexão proposto por


Aristóteles. Na montagem iremos escolher quais cenas mostrar, quais
pontos de vista utilizar, técnicas a serem aplicadas; nos afastamos da
cronologia e entramos no tempo psicológico das personagens. Décadas da
história podem se passar em duas linhas dentro da narrativa de um conto,
ou dois minutos podem levar uma página inteira. O escritor nos embala
conforme o ritmo do texto, nos seduz, paira sobre um único acontecimento,
leva-nos do presente para o passado, nos dá lampejos do futuro, isso tudo
faz parte da montagem. Ele não está completamente ligado ao que
chamamos anteriormente de ação pura, ou físico-objetiva, desse universo
concreto ao qual a prosa de ficção é unida ao drama. Temos também a
nossa disposição o mundo psicológico-subjetivo, que não segue as regras
tradicionais do teatro ou do roteiro de cinema.
IV – UMA MELHORIA ARISTOTÉLICA: A PIRÂMIDE DE FREYTAG

Muito mudou no mundo e na dramaturgia desde que Aristóteles nos ditou a


Poética. Por exemplo, o modelo do teatro clássico foi substituído, não mais
era o teatro um rito religioso em homenagem a Dionísio, como costumava
ser nos primórdios, nem ao menos era apresentado ao ar livre, com a
presença de um coro; o teatro passou a ser apresentado a portas fechadas,
Shakespeare e tantos outros dramaturgos passaram a utilizar quatro, cinco,
seis atos em suas peças. O modelo antigo tornou-se ultrapassado, porém
algo dele se manteve em todas as formas posteriores: a razão. A lógica e
proporção aristotélicas persistem como genes originais da narrativa, sendo
algumas delas mais fiéis, outras menos, mas todas possuem esse elemento
em comum, mesmo que de forma não convencional.

Foi o que o dramaturgo e escritor alemão Gustav Freytag notou. Em “A


técnica no drama” (Die technik des dramas), ele nos descreve um modelo
baseado em Aristóteles. Esse modelo é um dos mais tradicionais em
oficinas quando o assunto é estruturação literária por causa de sua
simplicidade ― também é bastante popular nos EUA… não que isso valha
muito ― e segue sete aspectos básicos. Como o nome sugere, o diagrama
tem o formato de uma pirâmide ― por vezes um triângulo ―, começa pela
base, a partir da apresentação, depois ocorre um incidente inicial, a ação se
acirra (ação ascendente) em direção ao clímax, o momento de maior tensão
ou drama, depois a ação descende, temos a resolução e terminamos com
um desfecho (onde, no romance, nos é mostrado o que houve com as
personagens). Caso dividíssemos essas etapas em atos, teríamos o ato I até
o incidente inicial, o ato II entre a ação ascendente e ação descendente, o
ato III, por fim, na resolução e desfecho. O diagrama exemplifica bem:

Agora irei detalhar suas partes:

APRESENTAÇÃO: é a parte da história que introduz as personagens e nos


ambienta narrativa ― somos apresentados à atmosfera do romance.
INCIDENTE INICIAL: o evento que começa a crise e inicia o conflito
principal. É a parte final da apresentação onde começamos a traçar uma
linha com os desejos, aflições e conflitos internos da personagem.
AÇÃO ASCENDENTE: é o que corresponderia ao início do segundo ato,
onde a tensão começa a ser construída e vai aumentado gradativamente, as
personagens fazem planos, criam expectativas, agem, se frustram, a vida
entra em seus caminhos e cria obstáculos.
CLÍMAX: é o momento mais dramático da história, onde a tensão chega ao
máximo. Não precisa ser uma única cena, no romance esse momento pode
se estender por quantas páginas o escritor conseguir manter a tensão.
AÇÃO DESCENDENTE: este tipo de ação deriva diretamente do clímax, é
a sequência lógica que leva diretamente para a resolução.
RESOLUÇÃO: o modo como o conflito ou a crise são ou não resolvidos.
Notem que uma não solução, isto é, a permanência do estado das coisas,
continua sendo uma resolução que levará ao desfecho.
DESFECHO: o final da história, onde as coisas voltam à ordem natural,
seja ela com a ordem antiga restaurada ou uma nova ordem instaurada.
Nessa fase nós costumamos ver o destino das personagens de um romance.

Ao final da narrativa, deveremos ter verossimilhança e satisfação. Com


isso, quero dizer que as ações devem ser plausíveis dentro das
possibilidades da narrativa, e os conflitos devem ser resolvidos por meios
satisfatórios, isto é, sem o famoso “Deus Ex Machina”, quando o autor
introduz um novo elemento não apresentado antes para dar fim à narrativa.

Em “A arte da ficção”, John Gardner nos diz que há duas maneiras de pôr
fim à narrativa: “pela resolução, quando nenhum evento novo poderá mais
surgir… ou através de exaustão lógica”. Na primeira, podemos resolver os
conflitos de forma que nada novo poderá surgir além do que foi mostrado
― por exemplo, Édipo se cega e depois parte para o exílio, o que foi
preparado desde o início ―; na segunda, podemos chegar a um ponto em
que a narrativa atingiu o momento mais profundo da condição humana, de
forma que, após isso, a história só se repetiria. Não é um tipo de final
“binário” ― em que nós nos perguntamos: “será que Édipo irá conseguir
salvar Tebas da praga?”, onde as possiblidades são binárias, positivas ou
negativas, sim e não ―, mas é o tipo de final que requer que introduzamos,
desde a apresentação, a expectativa de que alguma revelação acontecerá ―
o que ocorre bastante nos contos de Flaubert, Tchekhov ou Joyce, onde
“nada” acontece. Nesse tipo de narrativa não há trama ― novamente, não o
enredo no sentido de montagem, mas do uso de reviravoltas e mudanças de
direção para fisgar o leitor ―, o que não quer dizer que não haja história,
nem que essa história não tenha sido estruturada cuidadosamente para
entregar ao leitor uma emoção estética forte no final através da epifania.

Vamos a um exemplo prático, cujo conteúdo da história é quase irrelevante


e até mesmo banal.
VI – UM ROMANCE SOBRE NADA

Flaubert é reconhecido por muitas coisas, mas as pessoas não costumam se


referir a ele como um grande “enredista” ― desta vez no sentido de trama
―, o que nos leva a pensar que ele não preparou a história. Será que a
estrutura de Madame Bovary é tão desprovida assim de planejamento? Ou
seria essa mais uma sofisticação de Flaubert, pegar uma história risível, até
mesmo lugar-comum, com um tema igualmente comum (adultério), e
organizá-la de modo que os fatos pareçam ocorrer ao leitor de maneira
extremamente orgânica?

Através de suas cartas, vemos que ele passou conscientemente por todas os
níveis de problemáticas poéticas ao escrever Madame Bovary. Isso inclui a
montagem. Para começar, Flaubert não esconde as raízes aristotélicas, o
livro é dividido em três partes, que poderiam corresponder aos atos de uma
grande tragédia. Temos peripécias e reconhecimentos, mesmo que sutis,
Flaubert cuidadosamente nos introduz ao longo do livro todos os elementos
que levarão ao desfecho: o cafarnaum (armário) do farmacêutico Homais,
que contém o arsênico que Emma utilizará para se matar; o
deslumbramento material e as gastanças exageradas de Emma com coisas
que não pode pagar, o que levará a seu suicídio no final; até mesmo a doce
imbecilidade de Charles nos é apresentada de início. Flaubert utiliza várias
curvas dramáticas ao longo do livro: comumente aplica a estrutura
aristotélica em capítulos e cenas, de forma que temos a história principal, o
adultério de Emma, e inúmeras narrativas paralelas, ou “subtramas”, por
assim dizer ― cada uma com seus conflitos e resoluções que contribuem
em maior ou menor grau para a resolução narrativa principal.

É impossível analisar todas as sutilezas da montagem do livro num único


artigo ― a técnica das camadas, as imagens, perfis, cenários, hesitações,
jogos de vozes, etc. ―, logo vamos abordar apenas a história, desprovida
de todo o resto, observando a seguir o ordenamento cronológico.
Descartaremos também, por ora, a causalidade e subjetividade dos
acontecimentos de Madame Bovary. Vejamos o que acontece se aplicarmos
o diagrama de Freytag:

PARTE I

[Apresentação]
1- Infância de Charles Bovary: o dia do estudante.
2- Primeiro casamento. Charles encontra Rouault e sua filha Emma; a
primeira esposa de Charles morre,
3- Charles pede Emma em casamento.
4- O casamento.
5- O novo lar em Tostes.
6- Um relato da infância de Emma e o seu mundo de fantasia secreta [aqui
começarmos a ter indícios do comportamento de nossa protagonista].
7- Emma fica entediada; convite para um baile pelo Marquês
d’Andervilliers.
8- O baile no Château La Vaubyessard [incidente inicial].
9- Emma segue modas, reclama de tédio a Charles, e eles decidem se
mudar; eles descobrem que ela está grávida; [a ação começa a ascender
lentamente nos eventos que levarão ao clímax].

PARTE II

1- Descrição do Yonville-l’Abbaye: Homais, Lestiboudois, Binet,


Bournisien, Lheureux.
2- Chegada dos Bovary; Emma conhece Léon Dupuis, escrevente do
advogado.
3- Emma dá a luz a Berta, a visita na casa da ama com Léon.
4- Um jogo de cartas; amizade de Emma com Léon cresce.
5- Viagem para ver o linho; Emma está resignada com a sua vida.
6- Emma visita o padre Bournisien; Berta é ferida; Léon viaja a Paris.
7- A mãe de Charles a proíbe de ler; a sangria do colono de Rodolphe;
Rodolphe conhece Emma.
8- O comício sobre agricultura; Rodolphe corteja Emma.
9- Seis semanas mais tarde Rodolphe regressa e saem a cavalo, ele a seduz
e o caso começa.
10- Emma encontra Binet no caminho, Rodolphe fica nervoso; uma carta
de seu pai faz Emma se arrepender.
11- Operação no pé torto de Hippolyte; M. Canivet tem que amputá-lo;
Emma volta para Rodolphe.
12- Extravagâncias de Emma; briga com a mãe de Charles; planos para
fugir [começamos a caminhar mais e mais em direção ao clímax].
13- Rodolphe foge; Emma cai gravemente doente.
14- Charles é assolado por contas; Emma fica religiosa; Homais e
Bournisien discutem.
15- Emma encontra Léon na ópera de Lucia de Lammermoor.

PARTE III

1- Emma e Léon conversam; visita a catedral de Rouen.


2- Emma vai a casa de Homais; o pai de Bovary morreu.
3- Ela visita Léon em Rouen.
4- Ela recomeça as “lições de piano”, às quintas-feiras.
5- Encontros com Léon; Emma começa a mexer nas contas.
6- Emma torna-se visivelmente ansiosa; dívidas fora de controle [clímax].
7- Emma pede dinheiro a várias pessoas.
8- Rodolphe não pode ajudá-la; ela engole arsênico e morre [aqui ocorreria
a catástrofe na tragédia grega, que corresponde à resolução].
[daqui em diante, temos o desfecho]
9- Preparativos para o funeral de Emma; chegada de Rouault.
10- O funeral;
11- Charles descobre as traições de Emma, perdoa a ela e a Rodolphe,
depois morre; Berta vai morar com uma tia e tem que trabalhar para seu
sustento; Homais é condecorado.

V – ROMANCES QUE DEVERIAM SER ROTEIROS DE CINEMA

Comumente o aspirante a escritor irá se deparar com vários modelos de


estrutura ― recentemente eu mesmo encontrei maluquice em dez atos
montados em sequência Fibonacci ― sendo a maioria delas para roteiros de
cinema. Parece que poucos iniciantes buscam os formalistas russos e
estruturalistas franceses que citei ao início de nossa investigação, talvez por
serem acadêmicos em excesso ― aqui, mais uma vez, nosso literato
universitário se debate de raiva, agora me xingando com palavrões e
exigindo meu currículo e títulos.

Já sabemos que drama é diferente de literatura, que por sua vez também é
diferente de cinedramaturgia. Gosto do modelo de Freytag pois, embora
pensado para o teatro, ele não nos impõe acontecimentos que devam surgir
para manter a atenção do leitor: sabemos que devemos apresentar quem
age, depois deve haver um incidente, um conflito, depois a ação se eleva,
chega ao ápice, e vemos os resultados dessas ações. Bastante simples.
Porém isso não ocorre no cinema. Muitos escritores usam o clássico
“Manual do Roteiro”, de Syd Field, ou o completo “Story”, de Mckee, para
estruturarem suas narrativas. Quais seriam os riscos de se fazer isso?

Na linguagem do cinema, precisamos de vários elementos próprios do


roteiro para manter o ritmo e a ação do filme, elementos que não irei me
aprofundar aqui. Precisa-se dos chamados “plot-points” e “turning-points”
para manter o espectador atento ― mesmo nos filmes mais artísticos, e por
artísticos, não digo chato, mas bem feito, como seria o exemplo de “O
Poderoso Chefão” ―, o roteirista irá apresentar “beats” para dar atmosfera
ao roteiro, haverá senso de urgência, etc., etc., etc. Qualquer um notaria que
não são técnicas de romance ― qualquer um com bom senso. Muitos
escritores por aí usam e abusam desse tipo de estrutura; o resultado não
poderia ser diferente: livros que deveriam ter sido roteiro de cinema, como
o já citado “O Poderoso Chefão”, de Mario Puzo, que também era roteirista
de Hollywood.
Diz Syd Field na primeira página do primeiro capítulo de seu livro:

“O que é um roteiro? Bem, não é um romance e certamente não é uma peça


de teatro. Se você olha um romance e tenta definir sua natureza essencial,
nota que a ação dramática, o enredo, geralmente acontece na mente da
personagem principal. Privamos, entre outras coisas, de pensamentos,
sentimentos, palavras, ações, memórias, sonhos, esperanças, ambições e
opiniões do personagem. Se outros personagens entram na história, o
enredo incorpora também seu ponto de vista, mas a ação sempre retorna ao
personagem principal. Num romance, a ação acontece na mente do
personagem, dentro do universo mental da ação dramática.”

Syd Field corrobora para o que já falamos aqui: a literatura tem portas
abertas para o plano de realidade subjetivo das personagens. Por isso
qualquer tentativa de adaptação de Madame Bovary para o cinema ou será
falha ou será infiel ao original: o que torna o livro interessante não é a
história ― elemento muito mais importante no cinema ―, mas a
montagem única, possível apenas na forma do romance. Um diretor
habilidoso, para não dizer genial, teria de representar a história com outras
técnicas. Field continua:

“Neste caso [no teatro], a ação da peça ocorre na linguagem da ação


dramática; que é falada. Filmes são diferentes. O filme é um meio visual
que dramatiza um enredo básico; lida com fotografias, imagens, fragmentos
e pedaços de filme: um relógio fazendo tique-taque, a abertura de uma
janela, alguém espiando, duas pessoas rindo, um carro arrancando, um
telefone que toca. O roteiro é uma história contada em imagens, diálogos e
descrições, localizada no contexto da estrutura dramática.”

Isso não quer dizer que não haja intercâmbios entre livros e filmes,
Eisenstein, em seu “A forma do Filme”, faz uma das melhores análises
sobre montagem e construção de cena em Madame Bovary, logo no
primeiro capítulo do livro. O diretor russo costumava dizer que “montagem
é conflito”. Nenhuma arte é hermética, podemos e devemos aprender com
outras expressões artísticas, mas todo artista deve ter em mente onde
começa sua arte e termina as outras.

VI – SEM TRAMA E SEM FINAL E OUTRAS ESTRUTURAS

Anteriormente, citei alguns autores que escrevem sobre “nada” ― além de


Flaubert, Tchekhov e Joyce, sendo que os últimos dois não são o que se
pode chamar de fiéis à estrutura. Será mesmo? Já vimos que uma narrativa
sem trama não significa uma narrativa sem estrutura.
Tchekhov costumava dizer ele mesmo que escrevia sem trama e sem final.
Sem trama, como já vimos, pois não dependia meramente de elementos da
história para prender a atenção do leitor; e sem final, pois a resolução do
conflito de seus contos geralmente não é binária; terminavam sem uma
solução positiva ou negativa, e o desfecho continua igual à crise; em suma,
o mundo parece continuar igual, embora as personagens passem por uma
transformação interna, no plano subjetivo. No mundo das ações objetivas
nada acontece.

Ainda analisando Tchekhov, devemos atentar para um fato: até agora


falamos sobre a estrutura em peças de teatro e em romances, cuja extensão
é significativamente maior que um conto. E neste, como ela funcionaria?
Caberia a estrutura de apresentação, conflito e resolução? Eis algo
interessante: dependerá da extensão e do efeito a ser causado pelo autor.
Em razão do estilo econômico, Tchekhov muitas vezes cortava a
apresentação e o desfecho das histórias, nos deixando com o conflito ― ou
crise. Isso joga o leitor diretamente no momento central: entramos na
narrativa através de uma cena sem sermos apresentados formalmente ao
conflito, que já está em andamento, e o descobrimos pela ação; é como se
subíssemos num trem em movimento, no meio da via-férrea, e pulássemos
dele antes de chegar na estação final. Por vezes isso por si basta e funciona
perfeitamente. Em outras, Tchekhov nos dá contos maiores, com direito aos
três atos completos, como ocorre em “O Beijo” ou “Enfermaria Número
Seis”. Tudo é absolutamente calculado. Para Tchekhov, qualquer elemento
apresentado ao leitor na narrativa deve ter significado. “Se no primeiro ato
uma pistola é mostrada na parede, ela deve disparar no terceiro ato” ― nem
que seja para matar o narrador.

Falando em narrador, podemos ter uma estrutura em contraponto ― em


música, sobrepor uma melodia a outra ―, que é quando se conta uma
história através de múltiplos pontos de vista, que se alternam entre as
personagens. Pode ser utilizada com a polifonia ― onde diversas
personagens falam em primeira pessoa, como em “Enquanto Agonizo”, de
Faulkner ―, em falsa terceira pessoa ― quando a escrita é na terceira
pessoa, mas o ponto de vista em primeira, como em “Vidas Secas” ―, ou
qualquer tipo de estrutura que mescle pontos de vista narrativos ao longo
da montagem. Esse tipo de montagem também ocorre em “Madame
Bovary”, e já adentramos num nível mais técnico da ficção.

Podemos ter as estruturas em fractal ― também chamada de narrativa em


rio ―, a qual já mencionei sem nomear, que é quando uma narrativa tem
diversas pirâmides de Freytag em diversos níveis: da história principal para
as subtramas, destas para as cenas; da mesma forma que num rio temos o
rio principal e os afluentes, todos se juntam em algum ponto e correm para
o mar. Muitos romances utilizam essa estrutura: Madame Bovary, Anna
Karenina, Guerra e Paz, Dom Quixote, O Nome da Rosa, Abril
Despedaçado, O Leopardo, dentre outros.

Na realidade, é muito difícil um romance moderno não possuir uma


estrutura híbrida: temos jogos de ponto de vista com pequenas subtramas;
ou inversão da ordem em que as coisas são contadas, começando pelo final
(estrutura em espiral); ou ainda contar uma história completamente fora de
ordem, como fez Cortázar, em “O Jogo de Amarelinha”, onde o leitor
segue as indicações do autor de como ler o livro, podendo também seguir a
ordem tradicional das páginas, assim obtendo dois resultados ― dois
livros, diria Cortázar ― diferentes. A pirâmide de Freytag costuma ser
aplicada em sua forma mais pura em novelas ou contos. Neles o número de
personagens é reduzido, não temos tantos núcleos dramáticos, nem tantas
histórias paralelas.

VII – UM ADENDO: A JORNADA DO VAGABUNDO

Você a perceberá a estrutura de romances, contos, filmes ou peças de teatro


sem esforço; como dissemos no início, é um modelo tão natural que parece
inerente ao homem. Até mesmo Joseph Campbell, com sua má interpretada
teoria da jornada do herói, diz, na primeira entrevista de “O Poder do
Mito”, que esta consiste basicamente em “departure, fullfilment and
return”, isto é: partida, realização (ou execução) e retorno. A estrutura
mitológica difere da artística ― Campbell se propôs a analisar a estrutura
do monomito, o mito primordial perdido que origina todas as histórias, o
qual ele não define, mas Frye diz ser a queda do homem do paraíso;
Campbell não teve a absoluta pretensão de criar um modelo completamente
literário, mas antropológico, de uma história há muito perdida e cujos
fragmentos estavam espalhados pelos mitos e narrativas que permeiam a
imaginação do homem ao redor do mundo ―, mesmo assim encontramos
aquele mesmo gene compartilhado do qual já falamos, ainda que diluído e
remodelado: a estrutura aristotélica. Obviamente, muito pode ser
aproveitado para criação de personagens e de cenas, principalmente nos
aspectos simbólicos e metafóricos do enredo. Mas quem vende a jornada
do herói como sendo a estrutura literária, ou como a fórmula mágica para
uma “escrita envolvente”, não passa de duas coisas: um vagabundo que tem
preguiça de estudar e um mau caráter que tenta vender uma receita de bolo.

VIII – MINHA EXPERIÊNCIA COMO ESCRITOR

Os processos de estruturação de histórias costumam ser bastante pessoais, e


eu raramente penso conscientemente em estruturas enquanto escrevo;
penso intuitivamente nelas antes ou depois de escrever o primeiro
rascunho; primeiro para saber o que fazer, depois para checar se o texto
tem coerência interna e funciona por si; ou então porque tive alguma ideia
de estruturação diferente para a montagem. Um dos trabalhos mais árduos
do escritor é saber o que dizer e quando dizer.

Meu conselho é: entenda como a estrutura funciona e não pense muito


nisso. Há outras camadas da narrativa mais profundas e mais relevantes que
a história. Afinal, como diz a frase de Carrero na epígrafe: todas as
histórias lineares já foram contadas. Os modelos aqui apresentados
dependem de muito tato e experiência ― igual a tudo na escrita ―, e não
são regras que farão sua escrita funcionar, pois, como sabemos, ela
depende de muitos outros fatores. Modelos estruturais podem apenas ajudar
um pouco a iluminar nosso caminho, úteis quando nos deparamos com a
questão: “e agora, o que acontece na minha história?”; ou então quando
temos problemas em encontrar o conflito.

Certa vez ao escrever meu conto “Pedro” (disponível no grupo do


facebook), me deparei com essa problemática. Eu possuía uma imagem e
algumas cenas, porém faltava algo. Então notei que havia a apresentação,
mas não havia um incidente inicial, e a ação existente tentava caminhar
para o clímax ― sem êxito. Eu possuía a história de um padre que se
recusava a confessar uma senhora e depois se autoflagelava. Por quê?
Faltava a causalidade. Qual era o conflito? Eu não sabia a origem. E qual
seria o desfecho ou a resolução? Eu mostrava apenas um padre sobre cacos
de vidro, rezando prostrado, e o conto encerrava. Faltava algo. Foi então
que passei três dias pesquisando, lendo a bíblia, reportagens, biografias,
vida de santos, fui até a uma missa ― mesmo sendo ateu ― e conversei
com o padre, amigo da família, soube como era a vida dele, a rotina, visões
de mundo e o dia-a-dia da paróquia. Tudo para conseguir entender melhor a
mente de minha personagem. Anotei passagens bíblicas, trechos de uma
reportagem sobre filhas de padres não reconhecidas legalmente e
escondidas por seus pais, orações que ouvi na missa, etc. Foi só aí que o
resto da história eclodiu. E com a história foi possível elaborar melhor a
montagem: notei que o narrador não era Pedro, mas Jesus Cristo; o conflito
de Pedro era ter perdido a fé por conta da própria impotência diante do
mundo; desprezado pela filha e em face de uma doença terminal, sente-se
abandonado e só, mesmo ironicamente tendo sido acompanhado por Jesus
ao longo do conto. Vale fazer de tudo para se achar o conflito e se
aprofundar no mundo subjetivo da personagem.

A história pode ser simples ou complexa, planejada ou espontânea, ter


peripécias e reconhecimentos ou não, ter uma trama ou falar sobre nada, ser
minimalista ou extensa; não importam os caminhos tomados, onde há uma
narrativa, há uma estrutura, por mínima que seja. Ao escolhermos a forma
de romance, conto, roteiro, ou peça teatral, estamos escolhendo também
uma estrutura. De um modo ou outro somos apresentados a um conflito e
vemos seu desenrolar até alguma resolução. Sem conflito, raramente temos
uma narrativa; e se tivermos, provavelmente não será das mais
interessantes.

A TÉCNICA EM HOMERO
Por Paulo Cantarelli / 10 de julho de 2018
A pedidos, ressuscitei meu exemplar de “Odisseia”, pela finada editora
Cosac Naify, com excelente tradução de Christian Werner. Sobre essa
edição, é a que usarei para análise, e aviso: vale cada centavo. Recomendo
principalmente pelos prefácios e posfácios excelentes, que somam mais de
cem páginas e que ajudam muito na compreensão sobre a técnica e o
contexto em que “Odisseia” foi elaborada, assim como problemas
linguísticos de tradução do grego para o português. Aviso que o texto será
longo, mas não menos proveitoso para quem se interessa pelo assunto.

ALGUNS PONTOS IMPORTANTES

Antes de começar, um pedido: não leiam a versão em prosa, esta


empobrece o texto, embora pareça mais fácil de assimilar. A forma pode
parecer um pouco complicada, no início, porém vale a pena o esforço.
Deve-se lembrar sempre que o caráter de Odisseia, assim como Ilíada, é
diferente de outras epopeias, pois ao contrário de Virgílio, Dante ou
Camões, por exemplo, a epopeia homérica não foi feita para a leitura, mas
para a canção. O texto era elaborado para que os aedos (poetas-cantores,
similares aos bardos e trovadores) cantassem a epopeia. Por isso
determinadas fórmulas linguísticas eram usadas de forma a facilitar a
performance do poema. Temos que lembrar sempre que o romance
moderno tem uma técnica diferente para cada romance, isto é: cada livro
tem seu próprio estilo, que o leitor só descobrirá página por página. No
épico oral grego, não. Este se baseava na forma da canção dos aedos e da
tradição da recitação, uma fórmula carregada de significado para os
ouvintes da época.

Infelizmente essa tradição se perdeu no tempo, de forma que temos de


contar com as habilidades dos tradutores para compreender certas nuances
do texto original, já que a linguagem da Odisseia era literária, diferente dos
discursos de Platão, por exemplo. Essa linguagem literária muda conforme
os séculos e se altera, também, conforme as traduções; ao ler Shakespeare,
por exemplo, temos de nos lembrar que existe certa métrica, uma cadência
e ritmo nas falas das personagens para facilitar a atuação em palco.
Fora as traduções (das quais já falamos), mesmo a evolução da língua pode
prejudicar o entendimento do texto, continuemos com Shakespeare, pois
sobre ele ainda temos mais informações disponíveis. Certa vez, estive no
Globe Theatre, em Londres, onde assisti a uma apresentação da peça “As
You Like It” no sotaque original (muito diferente do sotaque britânico
atual). A personagem Jaques, na cena VII do segundo ato, diz:

“And so, from hour to hour, we ripe and ripe, and then, from hour to hour,
we rot and rot; thereby hangs a tale.”

[E assim, de hora em hora, amadurecemos e amadurecemos, e então, de


hora em hora, apodrecemos e apodrecemos; e lá vem história.]

Porém, a mudança de sotaque nos priva da piada original (uma piada de


400 anos, eu sei). No inglês da época, “hour” (hora) tinha a mesma
pronúncia de “whore” (puta), e “ripe” (amadurecer) de “rape” (estupro ou
violação). Então, ao invés de ter o sentido acima, o trocadilho seria algo
como “de puta em puta, estupramos e estupramos, de puta em puta,
apodrecemos e apodrecemos”. Então, se um falante nativo do inglês
moderno não consegue captar todas as nuances de Shakespeare, que nasceu
há 400 anos, imagine um grego moderno com Homero, que era mais ou
menos do século oito antes de Cristo.

ANÁLISE

Infelizmente, muitos fatores ficarão de fora deste breve estudo do texto


homérico. Vamos nos focar na construção de cena e na simplicidade, na
criação de imagens e metáforas. Eu poderia escolher inúmeros trechos
épicos, ou marcantes na história, porém não é esta que iremos analisar.
Escolhi o Canto I para estudo, pois qualquer um, mesmo que não tenha lido
a obra inteira, poderá compreender o contexto. Também vale lembrar que
sempre devemos analisar o texto conforme a época. Por exemplo, ao
analisar Tolstói, eu tenho quer ter por parâmetro o que foi feito antes dele e
na época dele. Contudo, não devemos nunca deixar de avaliar como
poderíamos escrever o texto hoje em dia, seja cortando adjetivos, dando
mais fluidez às cenas ou adaptando o contexto. Para o escritor, a leitura é
também um exercício de escrita.

Um caráter interessante da obra é a uma espécie de chave interpretativa,


muito próxima de uma instância de enunciação, que é quando o narrador
nos dá uma palavra para interpretar o que está acontecendo. Segundo
Joseph Campbell, este seria um dos aspectos que distinguem o dramático
do épico. Diz ele, em “Mythic words, modern worlds”:
“O Dramático apresenta um objeto [aquilo que é testemunhado] em
imediata relação com o sujeito [testemunha]”.

“O Épico apresenta o objeto mediante relação entre sujeito e objeto.”

Isto é, no Épico a obra é apresentada mediante o comentário do autor, a


interpretação deste sobre a obra. No dramático, não, temos ações puras e
simples, como no teatro. Voltando ao ponto, as chaves de interpretação em
Odisséia nos sugerem o sentido de determinada cena ou personagem
através de adjetivos ou epítetos-substantivos (frases utilizadas no lugar dos
nomes das personagens, como “muitas-vias”, que é utilizado em lugar de
Odisseu, no primeiro verso do épico). Tomemos por exemplo nossa
primeira visão de Telêmaco, (canto 1, verso 113), quando este irá falar com
Atenas, que chegou disfarçada de Mentes em Ítaca:

“Primeiro a vê-la foi o deiforme Telêmaco”

Este simples adjetivo, empregado desta forma, já nos revela que a seguir
virá uma cena importante para a compreensão da personagem, pois há uma
interpretação do que acontecerá. O epíteto nos dá o tom que a personagem
seguirá e frequentemente nos dará pistas da curva dramática desta, nos
indicando seu amadurecimento. Porém, há outros momentos em que certos
epítetos como “Odisseu-muitas-vias”, “Zeus-junta-nuvens” ou “Atena-
olhos-de-coruja” [para alguns tradutores, “olhos-glaucos”] servem apenas
para completar o hexâmero e manter a forma. Como não sou grande
estudioso da métrica, não poderei me aprofundar no assunto, além do mais
isso fugiria ao nosso propósito.

O próximo ponto é o jogo de vozes, que é sofisticadíssimo, principalmente


se levarmos em conta a época em que o texto foi escrito. Homero dá ênfase
aos discursos (falas) das próprias personagens, de forma que ora temos a
voz do narrador, o poeta inspirado pela musa, ora temos a personagem em
si. Em outras palavras, em vez de nos contar o que as personagens estão
sentindo, deixa o jogo de vozes à solta. Vejamos o Canto 1, versos 113 a
118:

“Primeiro a vê-la foi o deiforme Telêmaco


sentado entre pretendentes, agastado no coração,
no íntimo mirava o destino do pai: ao voltar um dia,
fizesse esses pretendentes pela casa se dispersar,
retornasse ele mesmo sua prerrogativa e regesse sua casa.”
Nesse trecho, temos primeiro a voz do narrador, de “primeiro” a “pai”, logo
depois temos a voz de Telêmaco, num breve monólogo interior do jovem
que almeja a volta do pai, que expulsará os pretendentes da mãe.
Continuemos dos versos 119 a 124:
“Nisso refletia, sentado entre os pretendentes, e viu Atena.
Foi logo ao pórtico, indignado no ânimo
por um hóspede tardar nos portões. Parado perto,
apertou-lhe a mão direita, tomou a lança brônzea
e, falando, dirigiu-lhe palavras plumadas:
Saudação, estranho, por nós serás acolhido. Depois,
após tomar parte no jantar e enunciarás o que precisas.”

Aqui temos a primeira cena. Lembrando a definição de cena: personagem +


ação + sequência. Temos também um diálogo direto. Notem que este trecho
tem mais velocidade que o monólogo. As cenas e diálogos dão velocidade
ao texto, enquanto monólogos e cenários retém o fluxo narrativo. Ainda
temos uma instância de enunciação (interpretação da fala da personagem):
“dirigiu-lhe palavras plumadas”, o que, segundo o tradutor Christian
Werner, pode tanto se referir ao voo das aves quanto o das flechas, ou seja,
o narrador está nos dizendo que Telêmaco, impaciente, recebeu o visitante
e mandou-o entrar depressa. Aqui há outra diferença entre o romance
moderno e a epopeia: no romance moderno devem-se evitar ao máximo as
instâncias de enunciação, devido à onisciência do narrador, dentre outras
questões; porém, na epopeia, estas são necessárias para a canção dos aedos
e para a compreensão dos ouvintes, é algo característico do gênero épico,
como dissemos, que o autor indique as interpretações.

Após alguns versos, temos um cenário humano, que nos mostra a


selvageria dos pretendentes de Penélope. Atenas e Telêmaco estão
reunidos, entre os versos 136 e 153, quando chegam os pretendentes:
“Uma criada despejou água – trazida em jarra
bela, dourada – sobre bacia prateada
para que se lavassem; ao lado estendeu polida mesa.
Governanta respeitável trouxe o pão e pôs na frente,
e, junto, muitos petiscos, oferecendo o que havia.
O trinchador tomou e dispôs gamelas com carnes

de todo tipo, e junto deles punha taças douradas;


e para eles o arauto vinha, amiúde, escançar.
E entraram os arrogantes pretendentes. Então esses
em ordem sentaram-se em cadeiras e poltronas.
Para eles os arautos vertiam água nas mãos,
e pão as escravas, à frente, amontoavam em cestas,
e moços preencheram ânforas com bebida
e a todos distribuíram após verter as primícias nos cálices.
E eles esticavam as mãos sobre os alimentos servidos.
Mas após apaziguar o desejo por bebida e comida,
aos pretendentes interessou, no peito, outra coisa,
canto e dança, esses, o suplemento do banquete.”

Temos um cenário humano que, através da descrição das ações humanas,


nos passa a sensação de fartura no palácio de Ítaca, porém, ao mesmo
tempo, os pretendentes representam a decadência, igual a gafanhotos, que
de pouco em pouco destroem a lavoura de que se alimentam. No texto,
notem que tudo tem tom, função e efeito; essa é uma regra universal.

Por fim, entre os versos 325 e 334 temos a primeira aparição de Penélope,
em contraste com as descrições anteriores:
“Entre eles cantor cantava, bem famoso, e, quietos,
sentados ouviam. Dos aqueus cantava o retorno
funesto, que, desde Tróia, impôs-lhes Palas Atena.
Em cima, compreendeu no juízo seu inspirado canto
a filha de Ícaro, Penélope bem-ajuizada;
e a elevada escadaria de sua morada desceu,
não sozinha, mas com ela seguiam duas criadas.
Quando alcançou os pretendentes, divina mulher,
parou ao lado do pilar do teto, sólida construção,
após puxar, para diante da face, o véu reluzente;
e criadas devotadas, uma de cada lado, se postaram.”

Que gestos graciosos, que elegância. Tudo com enorme simplicidade, sem
pompa ou grandiloquência. A beleza desse trecho está na metáfora: os
pretendentes, que são vis e sórdidos, vivem no andar inferior do palácio,
enquanto Penélope, elevada espiritualmente, habita o andar de cima. Essa é
a diferença moral que os separa. Sem discurso, sem moralismo ou
filosofadas, apenas ações, simples e puras ações. Estas, diz Aristóteles, são
a alma da tragédia. Segundo Autran Dourado: a personagem é a metáfora
em movimento. Com isso, toda a cena da primeira aparição de Penélope
não é somente uma apresentação da personagem, mas a própria metáfora
em ação. A grande diferença entre mostrar e dizer reside nisto: as metáforas
se conectam com elementos que não estão necessariamente explícitos no
texto, mas em nossa capacidade interpretativa. Todo texto literário é uma
grande metáfora. O ponto primordial na literatura não é sobre o que o texto
nos diz, seu conteúdo material, mas o que o texto nos sugere, a experiência
estética contida nele.

O PODER DURADOURO DO KITSCH – POR ROGER SCRUTON


Por Paulo Cantarelli / 14 de julho de 2018
No início do século XX as artes entraram num período de revolução. Chega
de escapismo, diziam os modernistas. A arte deve mostrar a vida moderna
como ela é.  Somente dessa maneira ela pode nos dar real consolação. O
ornamento é crime, declarou o arquiteto Adolf Loos, e todas aquelas
fachadas barrocas que se alinham nas ruas de Viena, encrustadas de
saliências e floreios desprovidos de sentido, são tremendas negações do
mundo em que vivemos. Todas nos dizem que a beleza pertence a um
passado já extinto. Diante dessa mensagem, Loos se propôs a descobrir
uma beleza mais pura: beleza que pertence à vida moderna e a enaltece.

O contemporâneo de Loos, Arnold Schoenberg se rebelou contra a música


romântica tardia da qual ele era mestre, dizendo que música tonal havia se
tornado banal e que escrever da maneira antiga levava a clichês musicais.
Schoenberg agiu para reinventar a linguagem da música, esperando
recuperar a pureza e precisão de Mozart ou Bach. Eliot e Pound se
rebelaram contra os poemas contos-de-fadas de Housman e Walter de La
Mare. A missão do poeta, insistiam, não é prover sonhos nostálgicos, mas
nos acordar para a realidade. A verdadeira poesia nos mostra as coisas
como elas são e o referencial do poeta precisa ser reconstruído para que
isso seja possível. O resultado não será fácil de entender. Mas, diferente do
escapismo da poesia dos vitorianos, valerá a pena de ser entendido.

Nos ataques aos modos antigos de fazer as coisas, uma palavra em


particular entrou em circulação. Essa palavra era “kitsch”. Uma vez
introduzida, ela pegou. Qualquer coisa que você faça, não pode ser kitsch.
Esse se tornou o preceito modernista em qualquer meio. Num famoso
ensaio publicado em 1939, o crítico americano Clement Greenberg contou
a seus leitores que só existem duas possibilidades disponíveis ao artista
agora. Ou você pertence ao avant-garde, desafiando os antigos caminhos
da pintura figurativa, ou você produz kitsch. E o medo do kitsch é uma das
razões da ofensividade compulsiva de tanta arte produzida hoje. Não
interessa se seu trabalho é obsceno, chocante, perturbador ― enquanto não
seja kitsch.

Ninguém sabe bem de onde veio a palavra “kitsch”, embora fosse frequente
na Alemanha e Áustria no final do século XIX. Nem ninguém sabe
exatamente como definir a palavra. Mas todos reconhecem o kitsch quando
o encontram. A boneca Barbie, Bambi do Walt Disney, Papai Noel no
supermercado, Bing Crosby cantando “White Christmas”, fotos de poodles
com lacinhos no pelo. No natal somos cercados por kitsch ― clichês
antigos que perderam a inocência sem atingir a sabedoria. Crianças que
acreditam no Papai Noel devotam emoções reais à ficção. Nós, que
deixamos de acreditar, temos somente falsas emoções a oferecer. Mas o
fingimento é agradável. Sentimos que é bom fingir e, quando todos aderem
a ele, é como se não estivéssemos fingindo de forma alguma.

Anões de jardim… Os favoritos das vovós quando o assunto é kitsch.


O romancista tcheco Milan Kundera fez uma famosa observação. “O
kitsch”, ele escreveu, “faz duas lágrimas correrem numa rápida sucessão. A
primeira diz: como é bom ver crianças correndo na grama! A segunda diz:
como é bom se comover, junto a toda humanidade, com crianças correndo
na grama!”. Kitsch, em outras palavras, não é sobre a coisa observada, mas
sobre o observador. Ele não o convida a se sentir comovido pela boneca
que você está vestindo tão ternamente, mas a você mesmo vestindo a
boneca. Todo sentimentalismo é assim: redireciona a emoção do objeto
para o sujeito, como que para criar uma fantasia da emoção sem o real
custo de senti-la. O objeto kitsch te encoraja a pensar “olhe para mim
sentido isso ― quão bom eu sou e quão amável!”. É por isso que Oscar
Wilde, se referindo a uma das cenas de morte mais nauseantes de Dickens,
disse que “um homem precisa ter um coração de pedra para não rir da
morte da Pequena Nell”.

E é por isso, resumidamente, que os modernistas têm tanto horror ao kitsch.


Arte, eles creem, perdeu, durante o curso do século XIX, a habilidade de
distinguir a emoção precisa e real de seu substituto auto satisfatório. Na
pintura figurativa, em música tonal, em poemas clichês de amor heroico e
glória mítica, descobrimos a mesma doença: o artista não está explorando o
coração do homem, mas criando um substituto inflável, depois colocando-o
à venda.

É claro, você pode utilizar os antigos estilos, mas você não pode leva-los a
sério. E se você os utilizar, ainda assim, o resultado continuará sendo kitsch
― bens padronizados, a preço de mercado, produzidos sem esforço e
consumidos sem pensar. Pintura figurativa se tornou coisa de cartões de
natal, a música, melosa e sentimental, e a literatura se desmantelou em
clichê. Kitsch é arte falsa, expressando falsas emoções, cujo propósito é
enganar o consumidor para que ele pense sentir algo profundo e sério,
quando na realidade não sente absolutamente nada.

Contudo, evitar o kitsch não é tão fácil quanto parece. Você pode tentar se
ultrajantemente vanguardista, fazendo algo que ninguém teria nem pensado
em chamar de arte ― talvez atropelando um ideal valorizado ou sentimento
religioso. Porém, como argumentei da última vez, isso também leva à
falsificação: falsa originalidade, falso significado e um novo tipo de clichê,
como podemos ver em tanta da jovem arte britânica. Você pode até posar
de modernista, mas isso não vai leva-lo necessariamente a atingir o que
Eliot, Schoenberg ou Matisse atingiram, que foi tocar o coração moderno
em suas mais profundas regiões. Modernismo é difícil. Requer competência
na tradição artística e a arte de sair da tradição para criar algo novo.

Esse é um dos motivos para o surgimento de uma nova empreitada artística


a qual chamo de “kitsch preventivo”. A severidade dos modernistas é tanto
difícil quanto impopular, então os artistas começaram não a rejeitar o
kitsch, mas a abraça-lo da mesma maneira que Andy Warhol, Allen Jones e
Jeff Koons. A pior coisa é produzir kitsch inconscientemente. Muito
melhor é produzir kitsch deliberadamente, pois então não é kitsch de forma
alguma, mas um tipo de paródia sofisticada. Kitsch preventivo coloca aspas
ao redor do verdadeiro kitsch e espera, assim, salvar a credibilidade
artística. Pegue uma estátua de porcelana de Michael Jackson acariciando
seu chimpanzé, Bubbles, adicione cores bregas e uma camada de verniz.
Arrume as figuras na postura de Madonna e criança, dê-lhes expressões
sentimentais como se desafiassem o espectador a vomitar e o resultado será
tão kitsch que não poderia ser kitsch em nenhuma circunstância. Jeff Koons
deve querer dizer algo a mais, nós pensamos, algo mais profundo e sério
que falhamos em perceber. Talvez esta obra de arte seja uma crítica ao
kitsch, de forma que, sendo tão explicitamente kitsch, ela se torna meta-
kitsch, por assim dizer.

Ou então pegue Allen Jones, cuja arte, atualmente exposta na Royal


Academy, consiste em formas femininas contorcidas em mobília, bonecas
com as partes sexuais explícitas através das roupas de baixo, visões
desagradáveis, vulgares e infantis, da mulher, o todo tão inflado de falsos
sentimentos quanto qualquer modelo de passarela fútil. De novo o resultado
é um kitsch tão óbvio que não pode ser kitsch. O artista tem que estar nos
dizendo algo sobre nós mesmos ― sobre nossos desejos e luxúrias ― e nos
forçando a confrontar o fato de que nós gostamos do kitsch, enquanto ele
despeja desdém no kitsch assentando-o com uma espátula. No lugar de
nossos ideais imaginários em molduras douradas, ele nos oferece lixo de
verdade entre aspas.
O kitsch preventivo é o primeiro elo duma corrente. O artista finge se levar
a sério, os críticos fingem julgar o produto dele e o establishment
modernista finge promove-lo. E no final de todo esse fingimento, alguém
que não sabe distinguir a arte verdadeira da falsa decide que deve compra-
la. Só neste ponto a corrente de fingimento chega a um fim e o verdadeiro
valor desse tipo de arte se revela; ou seja: valor monetário. Até neste ponto
o fingimento é importante. O comprador precisa continuar acreditando que
o que ele compra é arte real e, assim, intrinsecamente valiosa, uma
barganha a qualquer preço. Do contrário o preço refletiria o fato óbvio de
que qualquer um― até para o comprador ― poderia ter falsificado tal
produto. A essência das falsificações [fakes] é que elas não são realmente
elas, mas substitutos delas mesmas. Iguais a objetos vistos em espelhos
paralelos, elas se repetem ad infinitum e a cada repetição o preço aumenta
um pouco, ao ponto em que um balão no formato de cachorro por Jeff
Koons, que qualquer criança poderia ter concebido e algumas até mesmo
manufaturado, atinge o maior preço na história a ser pago pelo trabalho
dum artista vivo ― tirando o fato, é claro, de que ele não é um.
OPRIMIDOS PELA SUTILEZA
Por Paulo Cantarelli / 15 de julho de 2018
“Flaubert considerava que a obra de arte só existia por meio de sua
expressão, e nos desafiava a nomear qualquer outra forma de medir esta
existência que não fosse uma estupidez. Afirmava que o estilo era,
portanto, uma parte inalienável dela, e considerava que a beleza, o
interesse e a distinção dependiam tanto dele para emergir quanto uma
carta no correio depende do envelope endereçado. ”

―  Henry James no prefácio à edição inglesa de Madame Bovary.

Estava no sofá relendo algumas páginas de um ensaio de Cortázar ― em


específico “Alguns aspectos do conto” ― e possivelmente ouvindo algum
quarteto inusitado de Borodin quando recebi um texto crítico sobre Joyce e
Hemingway. O autor, cuja identidade desconheço até agora, já que o texto
me foi repassado, começa até com uma boa análise de dois conceitos
importante na obra dos dois autores, respectivamente, o gnômon e o
iceberg. Essas teorias dizem respeito ao que o escritor deixa de fora do
texto ficcional, contribuindo para aumentar o espectro de interpretação do
leitor.

Joyce opta pelo gnômon, que é uma estrutura euclidiana de uma forma
geométrica gerada após a subtração dum paralelogramo menor da área de
outro paralelogramo maior. Agora imagine que temos dois quadrados e que
a subtração do quadrado menor deixa a área remanescente de um L, temos
um gnômon. Joyce utiliza essa proporção ― a da incompletude ― como
tema em “Dublinenses”. O tema da incompletude é refletido nos cenários,
imagens, situações e falas; é como se ele mostrasse apenas o L
remanescente de um todo. As personagens são, de certo modo, completas
nessa incompletude: o drama vem da falta.

Já Hemingway opta pela teoria do iceberg (ou da omissão), que consistia


em mostrar a subjetividade das personagens através de aspectos superficiais
e objetivos, numa narrativa condensada e enxuta, cujo sentido seria
implícito e sugerido, surgindo apenas após a reflexão do leitor ― que
nunca deixa de ser um coautor da obra. É bem como o nome sugere: 90%
do conteúdo está numa camada mais profunda. Basta ler “Um Lugar Limpo
e Bem Iluminado” para entender essa dimensão nos contos de Hemingway.

Ambas teorias têm propósitos e funções muito parecidas, tanto que


poderíamos dizer que são nomenclaturas diferentes para quase a mesma
coisa. Mas voltando ao texto crítico que recebi, o autor incógnito reclamava
justamente da sutileza dos dois escritores, dizendo que sempre achou esse
estilo “meio charlatão, protegido pelo monopólio que a sutileza criou sobre
as apreciações literárias”. E ainda que “ambos os autores têm certa paixão
pela banalidade”, fazendo depois colocações um tanto negativas do suposto
“banal” ― que é apenas um tema, como tantos outros. Mas ora, o grande
artista surge da observação do que há de surpreendente no comum e não é
necessário que as personagens sejam sempre nobres heróis em situações
extraordinárias, que comem ambrosia e cagam bolas de mármore ― se
forem, ótimo, mas não julgo autores pelo tema, pois, como a Flaubert, isso
me parece estupidez. O tema não importa, ele faz parte de nossas
inclinações subjetivas e vivências: cada um tem as suas. Suponha que,
sendo ateu, um crítico valorizasse mais Camus pela obra existencialista
ateísta e desprezasse Tolstói pelo caráter fortemente cristão. O mesmo
valeria para a situação inversa: é uma idiotice sem limites. O tema, no final
das contas, não importa para o julgamento artístico: não há temas vis nem
nobres; há no máximo temas mais difíceis de serem trabalhados que outros.
Tanto o banal quanto o extraordinário são temáticas, assim como quaisquer
outras, cuja qualidade virá sempre do tratamento estético.
Pouco depois um dos nossos leitores me mandou outro texto, desta vez um
prefácio dum livro de Lovecraft, enaltecendo justamente alguns dos pontos
que fazem deste autor, mestre apenas da fantasia tresloucada, um péssimo
escritor. Este texto posso citar diretamente, pois sei a identidade de quem o
escreveu:

“Outra má compreensão que assombra a obra do autor é a ideia de que


ele seria um escritor muito criativo, porém tecnicamente limitado, que
apelava para adjetivações e arcaísmos a fim de disfarçar tais limitações. É
inegável que Lovecraft tem muitos vícios como escritor, mas ele os explora
conscientemente para gerar o desconforto e a angústia que seus contos
carregam. Os adjetivos, que em muitas passagens parecem se empilhar até
o infinito, cumprem o papel de minar internamente as extensas descrições
de Lovecraft. O monstro é descrito como inominável, blasfemo, ciclópico e
hediondo, uma descrição que nada descreve. E isso é maravilhoso. ”

―  Prefácio de Ramon Mapa a “H.P. Lovecraft, Medo Clássico Volume


I”, da Darkside Books.

Eis uma coisa engraçada: tenho notado que, no cenário da literatura


mundial ― não só a nacional ―, as pessoas estão cada vez mais cegas aos
detalhes sutis do texto e ao cuidado artístico. Aparentemente é uma
cegueira parcial e noturna. Parcial porque elas parecem perceber apenas
vultos e contornos, noturna pois talvez ninguém tenha lhes dado luz o
suficiente para ver essas qualidades com mais nitidez. Há vários que
percebem essas sutilezas sem enxergar de fato, como os exemplos acima
nos mostram, vendo as coisas de modo distorcido.

Sob esses tortos olhares, a qualidade artística passou a ser opressão e a


sutileza uma maneira do escritor lançar obras incompletas ― o que pode
ocorrer em artistas ruins que tentam se passar por sutis sem sê-lo ― porque
ele não explicou as coisas como o leitor preguiçoso gostaria. Ele, o escritor,
cometeu o pior dos pecados: nos obrigou a pensar. É por essas e outras que
é mais fácil interpretar uma obra de Dostoiévski do que de Joyce: o
primeiro tem a mão de ferro do narrador onisciente sobre o texto, nos
concede explicações ― hoje um tanto antiquadas ― sobre a interpretação e
filosofia por trás do enredo; o segundo nos deixa à nossa própria mercê
num mar de palavras, metáforas e signos desconhecidos, prontos para
serem descobertos através do olhar das personagens.

Para os oprimidos pela sutileza, a falta de habilidade, se for “consciente”,


parece anular a realidade. Na prática, não há diferença entre o “não saber” e
o “saber, mas não conseguir aplicar”. Se o autor sabe que o uso de
adjetivos tão abstratos e subjetivos prejudica o texto e, ainda assim, os usa
despudoradamente  seguindo sequências e sequências de “indescritíveis,
inomináveis, hediondos, horríveis e indecifráveis”, isso só quer dizer que
na prática ele escreve mal ― utilizar um desses adjetivos, apenas, já seria
um movimento arriscado, mas que poderia funcionar a depender da
situação, pois na arte tudo pode e nada pode: dependerá exclusivamente da
habilidade do artista. Não ser preciso e não saber o que é precisão dá no
mesmo. É a má escrita preventiva, para pegar o termo “kitsch preventivo”
de Scruton: eu sei que é ruim, mas não consigo fazer de outra maneira,
portanto estou absolvido de meus pecados pela minha incompetência
consciente.

Tomo estas palavras de Flaubert para mim ― e para toda minha visão
sobre a arte ―  quase como axioma:

“O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada,


um livro sem amarra exterior, que se sustentaria pela força interna de seu
estilo, como a terra, sem estar sustentada, se mantém no ar, um livro que
não teria quase tema, ou pelo menos que o tema fosse quase invisível, se é
que pode haver. As obras mais belas são as que têm menos matéria; mais a
expressão se aproxima do pensamento, mais a palavra cola em cima e
desaparece, maior é a beleza. Eu creio que o futuro da arte está nestes
caminhos. ”

― Carta de Flaubert a Louise Colet, Croisset, 16 de janeiro de 1852.

Entender a sutileza não é fácil, mas é extremamente compensador,


causando um prazer sem igual, um pacto secreto de confiança entre autor e
leitor. É quase como observar pela primeira vez o quadro de Velásquez “As
Meninas” e, lentamente, notar que não se trata de uma espécie de
autorretrato do próprio Velásquez pintando as princesas de Espanha, mas
sim do ponto de vista do próprio rei posando para uma pintura do artista ―
o que pode ser confirmado ao percebermos, ao fundo, um espelho
refletindo as figuras do rei e da rainha.

Em vez do autor apontar para si dizendo “olhe, caro leitor, como sou
inteligente!”, discretamente nos deixa pistas no texto, confiando que o
leitor irá captar a mensagem, símbolos e metáforas, sem nunca o
subestimar. De forma que narrativas assim seguem a linhagem de Flaubert,
na qual o autor não se intromete no próprio texto. Eu ainda sou dos que
concorda com Barthes ― não em tudo, só neste ponto ― ao dizer que o
autor está morto no momento em que o leitor recebe o texto. Não dirá mais
nada, o que há de ser dito está no papel e, depois de publicado, não deve ser
mudado. Nada se explica, o texto tem que se sustentar por si.

É assim que os maus artistas são oprimidos pela sutileza.


O ROMANCE DAS TUBERCULOSAS – CRÍTICA DE GRACILIANO
RAMOS
Por Paulo Cantarelli / 17 de julho de 2018
O romance de estreia da Sra. Diná Silveira de Queirós merece um ataque.
Primeiramente a jovem paulista não escreve bem: “Letícia olhou para a fila
de palmeiras, para a estrada que subia para longe, para lugares
escondidos para sempre”.

Eu não devia falar em semelhantes coisas, aludir às receitas fáceis da


cozinha literária, mostrar ao público a inadvertência de alguém que, no
preparo de duas linhas, meteu a mão na lata das preposições e escaroçou
um período com repetições desnecessárias. Isto é um simples reparo, feito
apenas porque, nos tempos confusos em que vivemos, as questões de
técnicas, pelo menos no Brasil, tendem a desaparecer.

Em segundo lugar as personagens masculinas de “Floradas na Serra” não se


mexem convenientemente e usam linguagem postiça. Uma somente
consegue dar-nos leve impressão de realidade, uma de pouco movimento e
pouca fala: Moacir, que entra moribundo na história e sai morto. Estive há
dias comentando isso com José Lins [do Rego]. Por que será que só Moacir
nos comove? É que ele deixou de ser homem, pensa o autor do “Banguê”,
tornou-se uma criatura sem sexo, agitado pela dispneia, afogado
constantemente em hemoptises. Acho que José Lins tem razão.

Entre os fantoches de calças, infelizmente numerosos, há um medonho: o


escritor que aparece, vago e mudo, na página 73 e se retira, sempre mudo e
sempre vago, na página 184. Esse indivíduo estragou várias passagens, e
muitas vezes fechei o volume, indignado com o colega absurdo que não
encontrei no jornal, na revista, na livraria, no café. O que se deu comigo, na
vida, deu-se com os outros ,na ficção: a extravagante personagem é
procurada no fim do livro, com insistência, mas ninguém a descobre.
Naturalmente. Todos reconhecem afinal que ela não existe.

Julgarão talvez que pretendo malsinar “Floradas na Serra”. Desejo


exatamente o contrário: estou entusiasmado com muita coisa ótima que
essa obra contém. E, afirmando que ela merece um ataque, estou certo de
que é uma novela bastante forte para resistir a qualquer investida. Não
poderia fazer um elogio maior a uma estreia. A Sra. Diná Silveira de
Queirós dispensa as amabilidades que se oferecem a principiantes, as
fórmulas vistosas com que a crítica nacional enrola substâncias frágeis.

Esse pequeno romance pode ser pegado brutalmente , sacudido, escovado


com força, examinado ao sol – e ganhará com isto. Ficará dele meia dúzia
de figuras admiráveis, perfeitamente caracterizadas: Elza, Belinha, Lucília,
Letícia, Turquinha, Firmina. Até os tipos secundários, D. Matilde, a mulher
da pensão, a mãe que não beijava os filhos, estão muito bem lançados. A
morte de Belinha e a reunião das moças no quarto de Firmina são páginas
excelentes.

De ordinário o diálogo é bom, não inferior aos de Jorge Amado, José Lins,
Rachel de Queirós e alguns outros que sabem fazer conversas naturais,
coisas que só ultimamente apareceram. Na literatura antiga os diálogos
eram, com poucas exceções, pavorosos. A gente do “Floradas na Serra”
fala direito. Às vezes usa expressões inchadas e pedantes, mas, por
estranho que isto pareça, não nos enjoamos delas: provavelmente na
camada social que a romancista nos expõe, a palavra campanuda fica bem.
Registrando-a, a Sra. Diná Silveira de Queirós foi escrupulosa, como foi
escrupulosa e feliz na observação de abundantes minúcias que dão ao seu
livro enorme valor. Essas anotações só poderiam ser feitas por alguém de
bons olhos que tivesse estudado cuidadosamente a parte da pequena
burguesia que fornece os elementos essenciais da narrativa.

A Sera. Diná Silveira de Queirós conhece por dentro e por fora as suas
personagens. Não as foi buscar no romance francês nem no romance inglês:
achou-as aqui perto, em Abernéssia, na pensão de D. Sofia, uma casa de
moças tuberculosas. E reproduziu-as de tal jeito que o leitor se convenceu
de que ela é uma tuberculosa também.

NARRADORES: TIPOS BÁSICOS


Por Paulo Cantarelli / 20 de julho de 2018
As questões do narrador vão muito além da pergunta “devo escrever em
primeira ou terceira pessoa?”. Este é um dos pilares da literatura, ao qual
devemos prestar bastante atenção. Meus artigos, vale lembrar, não são por
si suficientes para compreender plenamente a teoria dos narradores, é
necessário que vocês pesquisem nas fontes citadas.

Devemos lembrar, sempre, que o narrador é uma personagem. Sempre. Até


mesmo quando é inominado. E é a personagem mais importante do livro,
quem constrói toda a narrativa e o jogo de cenas. Diz Vargas Llosa na
terceira parte de “A Orgia Perpétua“:

“O narrador é sempre um personagem inventado, um ser fictício, como


todos os outros personagens cuja história ele ‘conta’, mas é o mais
importante deles porque a maneira como age – mostrando-se ou
escondendo-se, atrasando-se ou saindo em disparada, sendo explícito ou
evasivo, falastrão ou taciturno, brincalhão ou sério – determina se os
outros personagens irão nos convencer da sua verdade ou nos impedir de
crer nela, levando-nos a vê-los como marionetes ou caricaturas. O
comportamento do narrador é fundamental para a coerência interna de
uma história, o que, por sua vez, é um fator essencial para a existência do
seu poder de persuasão. “

Temos por consenso que Flaubert matou o velho narrador onisciente


tradicional. Mas que narrador seria esse? O narrador que vê tudo e sabe
tudo, me diriam por óbvio. Mas o que significa essa onisciência? Quem é
esse narrador? Llosa nos dá a resposta em “A Tentação do Impossível“:

“O personagem principal de ‘Os Miseráveis’ não é o monsenhor


Bienvenu, nem Jean Valjean, nem Fantine, nem Gavroche, nem Marius,
nem Cosette, mas sim aquele que os conta e inventa, um narrador
linguarudo e que surge continuamente entre as suas criaturas e o leitor.
Presença constante, arrebatadora, a cada passo ele interrompe o relato
para opinar, às vezes em primeira pessoa e sob um nome que nos faz
acreditar que é o próprio Victor Hugo, sempre em voz alta e cadenciada,
para interpolar reflexões morais, associações históricas, poemas,
lembranças íntimas, para criticar a sociedade e os homens em suas
grandes intenções ou suas pequenas misérias, para condenar seus
personagens ou elogiá-los. […] Suas características mais óbvias são a
onisciência, a onipotência, a exuberância, a visibilidade, a egolatria.”

Devo salientar – por honestidade intelectual – que a análise de Llosa, no


contexto em que foi feita, é mais elogiosa ao narrador onisciente e toda
essa grandiloquência – coisa que o próprio Llosa dispensa em seus
romances. Porém, devemos convir que esse o narrador, o narrador cuja
mão-de-ferro pesa sobre os textos de Vitor Hugo e Dostoiévski, é
antiquado justamente por ser intrometido e linguarudo, um reflexo do autor
no texto.

Sigo a filosofia flaubertiana de que num romance não deve haver


derramamentos líricos, grandiloquência, reflexões ou personalidade de um
autor ausente (que não faz parte do mundo ficcional). É como o próprio
Flaubert escreve a Louise Colet: “Eu quero que não haja no meu
livro um só movimento, uma só reflexão do autor”. Em outras palavras:
trata-se de um procedimento inverso, partir do texto para o autor. O autor
deve descobrir o ritmo e pulsação do romance, o estilo que brota das
personagens, devemos ouvir nossos textos da mesma maneira que
Michelangelo teria sentado diante dum bloco de mármore para ouvi-lo até
descobrir a forma escondida sob a rocha; e assim nasceu David. Citando
Raimundo Carrero: “escritor não tem estilo, quem tem estilo é a
personagem”.
Vamos a “Os Miseráveis”, de Hugo:

“Tentemos explicar.

É realmente necessário que a sociedade olhe para essas coisas, já que é


ela que produz. Jean Valjean, como dissemos, era um ignorante, mas não
um imbecil. A luz natural brilhava nele. O infortúnio, que também possui a
sua claridade, aumentou um pouco a luz que havia naquele espírito.
Apesar dos castigos, das correntes, do calabouço do cansaço, do sol
ardente da galés, da cama de taboas, ele voltou-se para sua consciência e
refletiu.”

Para revelar o personagem Jean Valjean, o narrador onisciente tradicional


não conhece reservas, fala demais, diz, diz, diz, hesita em mostrar, sempre
dramatizando, apelando ao melodrama e ao sentimentalismo. E acima de
tudo: o narrador onisciente julga. Julga tudo e todos, diz ao leitor o que
interpretar. A diferença deste narrador para o narrador moderno é gritante.

Diz Carrero em “A Preparação do Escritor”:

“É natural que o leitor confunda, quase sempre, o narrador com o autor.


E – muito mais ainda – é natural que o autor se confunda com o narrador.
Às vezes nem conhece mesmo a diferença. Ou, se conhece, não admite.
Acredita-se narrador, envolve-se, joga-se no texto que é seu apenas na
aparência, interfere. Mas há uma verdade absoluta: narrador não é autor.
Autor não é narrador.”

Podemos agora classificar os narradores, inicialmente conforme Vargas


Llosa:

I. Narrador-personagem: narra na primeira pessoa do singular, ponto de


vista este em que o espaço do narrador coincide com o espaço narrado.

II. Um narrador onisciente tradicional (ou narrador filósofo), que narra


na terceira pessoa e ocupa um espaço distinto e independente do espaço
onde ocorre a narrativa. É externo a ela.

III. O narrador oculto (ou onisciente invisível): parece narrar apenas as


impressões momentâneas e visíveis naquele único instante. A princípio não
reflete, não questiona, não indaga, não entra na mente das personagens, e
é classificado por Vargas Llosa, em “A Orgia Pérpétua”, como relator
invisível na subdivisão de M. Bovary e na companhia do relator filósofo.

Sobre o narrador oculto, diz Carrero:


“Aparentemente, narrador oculto pensa, questiona e reflete mas, tudo
numa ‘falsa terceira pessoa’ – narrativa em terceira pessoa com técnica
de primeira – através do ‘olhar do personagem’ com foco nos cenários –
natural, humano, psicológico e metafórico – em que mostra suas
preocupações, questionamentos, perspectivas… O melhor exemplo é Vidas
Secas, de Graciliano Ramos, em que os personagens realizam ‘falsos
monólogos’ a cada capítulo. Ou simplesmente na primeira pessoa,
utilizando as mesmas técnicas.”

Há outras teorias sobre narradores, como a do narrador ambíguo, ou em


segunda pessoa, de Llosa. Futuramente nos aprofundaremos mais em
outros tipos de narradores e nas técnicas mencionadas (falsa terceira
pessoa, monólogo interior, etc.).

O DELICADO JOGO DAS TESOURAS: UMBERTO ECO E O CORTE


NARRATIVO
Por Paulo Cantarelli / 26 de julho de 2018 
Há um adágio, quase lugar comum, no mundo da escrita que é o “mostre,
não diga”, porém poucas pessoas expõe exatamente o que se deve mostrar.
Recentemente o leitor Bruno Andrion me escreveu, mandando uma breve
análise de um conto que publiquei em nosso grupo do Facebook, e fez uma
observação interessante:

“Os cortes que [você] dá ao texto também nos oferece agilidade, leveza. É
isto que busco em meus textos.

Ex: ‘Graúnas voaram, o sangue avermelhou a terra, o São Francisco fez


silêncio. Serena puxou o menino, correram ladeira acima debaixo de tiro’. ”

A cena a que Bruno se refere ocorre após a morte duma personagem que
leva um tiro às margens do rio São Francisco. Isso me fez lembrar que
ainda não devo ter comentado mais amplamente a importância dos cortes
na narrativa, dentre eles um tipo de técnica especial chamada elipse
narrativa.

Em primeiro lugar, precisamos ter em mente que o tempo da narrativa


nunca deverá ser cronológico, mas psicológico ou metafórico; isto é: os
acontecimentos e a ação nunca devem ser dados pela passagem do tempo
comum, cronológico, mas de acordo com o estado mental das personagens.
Não é preciso mostrar todas as ações ― o que é um erro do principiante
que segue à risca o adágio “mostre, não diga”. Mostra absolutamente tudo e
em excesso. É preciso selecionarmos cada acontecimento de forma que
apenas os mais relevantes tragam os conflitos internos das personagens e
representações metafóricas à tona.
A elipse narrativa ocorre justamente quando autor se utiliza de um corte
para esconder algum fato, quando o narrador omite algum detalhe, como
uma cena, cenário ou informação, para envolver o leitor no enredo, ainda
possibilitando outras interpretações sobre o mesmo fato. Tudo isso sem
quebrar a continuidade da ação e dando-lhe grande velocidade. Também
pode ocorrer quando há o chamado corte direto, a mudança duma cena para
outra sem transição.

Considero o mestre da elipse, na literatura nacional, o escritor Dalton


Trevisan, embora todos os grandes escritores a utilizem em maior ou menor
grau. Escolhi tomar um exemplo mais simples, de Umberto Eco, no livro
“Número Zero” ― uma narrativa com grande primor técnico, já notável
nos primeiros capítulos, com uma abertura genial, porém que torna-se um
tanto repetitiva ao longo da leitura; mesmo assim continua sendo um livro
primorosamente bem escrito.

Eco é mestre em “mostrar sem mostrar de fato” e, em “Número Zero” e “O


Cemitério de Praga”, narra através de narradores dúbios ―  assim como
Machado em Dom Casmurro ―  sem revelar as coisas como de fato
aconteceram, apenas insinua, deixando detalhes subentendidos nas
entrelinhas e montando lentamente a causalidade da trama.

Tendo isso mente, vejamos a elipse em ação nesse início de “Número


Zero”, logo na primeira cena, de maneira sutil, nos sugerindo um caminho
narrativo diverso do comum. O leitor ingênuo não pensaria que nada na
cena tem relação ao enredo, porém só depois irá notar o que se passa
realmente, quando está completamente imerso na trama sem sequer
perceber que foi seduzido.

Sábado, 6 de junho de 1992, 8 horas

Hoje de manhã não saía água da torneira.

Blop blop, dois arrotinhos de recém-nascido, mais nada.

Bati na porta da vizinha: na casa dela, tudo normal. Deve ter fechado o
registro geral, disse ela. Eu? Não sei nem onde fica, faz pouco tempo que
moro aqui, sabe, e volto para casa só à noite. Meu Deus, mas quando o
senhor viaja uma semana não fecha a água e o gás? Eu não. Mas que
imprudência, me deixe entrar, vou lhe mostrar.
Abriu o gabinete da pia, mexeu em alguma coisa, e a água chegou. Está
vendo? Tinha fechado. Desculpe, sou tão distraído. Ah, vocês, single! Sai
de cena a vizinha, mais uma que agora fala inglês.

Nervos sob controle. Não existe poltergeist, só em filme. E não é que eu


seja sonâmbulo, porque mesmo se fosse sonâmbulo não saberia da
existência daquele registro, senão o teria usado desperto, porque o
chuveiro vaza e estou sempre correndo o risco de passar a noite em claro,
ouvindo o tempo todo aquela goteira, parece que estou em Valldemossa.
Na verdade, muitas vezes acordo, me levanto e vou fechar a porta do
banheiro e a outra, entre o quarto e a entrada, para não ficar ouvindo
aquele pinga-pinga danado. Não pode ter sido, sei lá, um contato elétrico
(o manípulo do registro, como diz a própria palavra, funciona
manualmente), nem um rato, que mesmo se tivesse passado por lá não
teria força para movimentar o bregueço. É uma roda de ferro das antigas
(tudo neste apartamento conta no mínimo cinquenta anos), ainda por cima
enferrujada. Portanto, era preciso uma mão. Humanoide. E não tenho
chaminé por onde pudesse passar o orangotango da rua Morgue.

Raciocinemos. Cada efeito tem uma causa, pelo menos é o que dizem.
Descarto o milagre, não vejo por que Deus se preocuparia com o meu
chuveiro, nem é o mar Vermelho. Logo, para efeito natural, causa natural.
Ontem à noite, antes de me deitar, tomei um Stilnox com um copo d’água.
Logo, até aquele momento ainda havia água. Hoje de manhã já não havia.
Logo, meu caro Watson, o registro foi fechado de madrugada — e não por
você. Alguma pessoa, algumas pessoas estiveram em minha casa e
recearam que eu despertasse não com o barulho delas (seus passos eram
abafadíssimos), mas com o prelúdio da goteira, que também as
incomodava, e elas talvez até se perguntassem como é que eu não
acordava. Portanto, sendo espertíssimas, fizeram o que a minha vizinha
também teria feito, fecharam a água.

– Número Zero, Umberto Eco, páginas 11 e 12 (Editora Record, 2015, 2ª


edição).

A frase de abertura, ” hoje de manhã não saía água da torneira “, lembra


uma crônica ―  porém só lembra. Ela dá início a um evento narrativo
importante para a história, que é a possível invasão do apartamento do
narrador, porém Eco abre mão da dramaticidade e suspense tradicionais e
comuns, nos surpreendendo ao longo desse trecho. Somente depois, no
terceiro parágrafo, o leitor é levado a repensar o que acabou de ler, algo
que secretamente impulsiona a história. A temática está integrada ao enredo
por elipse.

E outro detalhe: notou que o narrador não delimita a própria fala da de


outras personagens? Além de esconder na elipse uma conversa inteira e
“tomar” a fala da vizinha?

“Blop blop, dois arrotinhos de recém-nascido, mais nada.”, repare que,


aqui, Eco descreve ligeiramente a frustração do personagem diante da falta
d’água. Já em “Bati na porta da vizinha: na casa dela, tudo normal.”, ele
esconde um diálogo através da elipse. O “na casa dela, tudo normal” é
ocultação do diálogo, de forma que isso não se caracteriza como Discurso
Indireto propriamente dito. Ele opta pelo diálogo interno sem sinais
gráficos, caracterizado pela frase seguinte: “Deve ter fechado o registro
geral, disse ela.”. O que marca o Discurso Direto é o “disse ela”.

O Discurso Indireto acontece quando o narrador se apropria do que a


personagem falou, tirando-lhe a liberdade de se expressar diretamente. O
D.I. costuma se caracterizar pelos verbos de elocução ―  que anunciam a
fala, como os famosos: ” Fulano perguntou (…)” ou ” disse Sicrano (…)”
― seguidos da conjunção “que”. Já no Discurso Direto as personagens
falam perceptivelmente por si mesmas, através de marcação por verbos de
elocução e sinais gráficos―  seja com travessões ou aspas ― ou
dispensando os sinais gráficos. Quando o texto é corrido, sem quebra de
parágrafos, chamamos o diálogo no corpo do texto de diálogo interno.

O diálogo utilizado por Eco pode facilmente ser confundido com um


Discurso Indireto Livre (ou ainda Estilo Indireto Livre), técnica muito
sofisticada, criada por Flaubert, sendo uma das mais difíceis de se dominar
e das mais dinâmicas que existem. Já o discutimos em outro artigo. No
Indireto Livre, a voz do narrador e personagem se confundem. Isso permite
que os acontecimentos sejam narrados simultaneamente, de forma fluida,
estando as vozes das personagens inseridas no discurso do narrador de
forma integral e direta, sem marcações de diálogo ou verbos de elocução,
confundindo propositalmente a voz do narrador e das personagens.

Observe com mais calma o Diálogo Interno:

“Deve ter fechado o registro geral, disse ela. Eu? Não sei nem onde fica,
faz pouco tempo que moro aqui, sabe, e volto para casa só à noite. Meu
Deus, mas quando o senhor viaja uma semana não fecha a água e o
gás? Eu não. Mas que imprudência, me deixe entrar, vou lhe mostrar.
Abriu o gabinete da pia, mexeu em alguma coisa, e a água chegou. Está
vendo? Tinha fechado. Desculpe, sou tão distraído. Ah, vocês,
single! Sai de cena a vizinha, mais uma que agora fala inglês.”

Viu? Diferenciei a tipografia nas falas dos personagens só para ilustrar


melhor, deixando as da vizinha em negrito e as do narrador-personagem no
diálogo apenas em itálico. A sutileza está na mudança de tom, em não
indicar início ou fim das falas de um ou de outro. O autor é forçado a
trabalhar as vozes das personagens, ou seja, suas personalidades, a maneira
como se expressam, para que o leitor consiga distinguir com clareza quem
é quem.

Agora você pode me perguntar: bem, Paulo, como é que trabalho as vozes
no meu texto? A resposta é: não sei. Uma vez escolhidas as regras pelas
quais escreveremos, a graça é justamente sentar para escrever e ir
descobrindo, palavra por palavra, o ritmo das personagens. No final das
contas, não é a história o que mais interessa, mas a investigação do
humano: a minuciosa criação e desenvolvimento das personagens.

OS DEZ MANDAMENTOS DO ESCRITOR – POR STEPHEN


VIZINCZEY
Por Paulo Cantarelli / 29 de julho de 2018
Este texto foi escrito em resposta ao pedido de Raymond Lamont-Brown,
editor da Writer’s Monthly, que me pediu algo “cheio de som, um conselho
prático para gente que, em muitos casos, é novata no negócio da escrita”.

1. NÃO BEBERÁS, FUMARÁS OU USARÁS DROGAS

Para ser um escritor você precisa de todos os miolos que tem.

2. NÃO TERÁS HÁBITOS DISPENDIOSOS

Um escritor é nascido do talento e tempo ─ tempo para observar, estudar,


pensar. Então você não pode perder uma hora que seja ganhando dinheiro
para supérfluos. A menos que tenha dado a sorte de nascer rico, é melhor se
preparar para viver sem tantos bens de consumo. É verdade, Balzac se
sentia especialmente inspirado ao se endividar para comprar coisas, mas a
maior parte das pessoas que têm hábitos caros tendem a falhar como
escritores.

Aos vinte e quatro anos, depois da derrota da Revolução Húngara, me


encontrei no Canadá com cerca de cinquenta palavras de inglês. Quando
me dei conta disso, notei que eu era um autor sem língua, peguei um
elevador para o topo de um arranha-céu na rua Dorchester em Montreal,
pretendendo pular. Olhando para baixo, lá de cima, com medo de morrer e
ainda mais medo de quebrar a coluna e passar  resto da vida numa cadeira
de rodas, decidi me tornar um escritor inglês, ao invés. No final, aprender a
escrever em outra língua foi menos difícil que escrever algo bom, e vivi à
beira da pobreza por seis anos antes de escrever “Em louvor das mulheres
maduras”.

Não poderia ter feito isso se me importasse com roupas e carros ─ e, de


fato, se a única alternativa que tivesse visto não fosse o topo daquele
arranha-céu. Alguns escritores imigrantes que conheci tomaram empregos
de garçons ou vendedores para economizar dinheiro e criar “uma base
financeira” para eles mesmos antes de tentarem viver de escrever; um deles
agora é dono duma cadeia de restaurantes e é mais rico do que eu jamais
seria, mas nem ele nem os outros voltaram à escrita. Você tem que se
decidir o que é mais importante: viver bem ou escrever bem. Não se
atormente com ambições contraditórias.

3. DEVERÁS SONHAR E ESCREVER, E ESCREVER E


REESCREVER

Não deixe que lhe digam que você está perdendo seu tempo quando está
olhando para o vazio. Não há outra maneira de conceber o mundo
imaginário.

Eu nunca sento em frente a uma página em branco para inventar algo.


Sonho acordado com meus personagens, as vidas deles, os conflitos, e
quando a cena já aconteceu em minha imaginação e eu sei o que meus
personagens sentiram, disseram ou fizeram, pego a caneta e papel e tento
reportar o que eu testemunhei.

Quando eu termino de escrever e digitar meu testemunho, leio de novo e


noto que a maior parte do que escrevi é:

A)    Confuso

B)    Impreciso

C)    Pomposo

D)    Simplesmente inverossímil

Então o rascunho digitado serve como uma espécie de relatório do que eu


imaginei, e eu volto para sonhar a coisa toda melhor.
Foi essa forma de trabalho que me fez notar, quando estava aprendendo
inglês, que meu maior problema não era a língua, mas, como sempre,
acertar as coisas em minha cabeça.

4. NÃO DEVERÁS SER VAIDOSO

A maioria dos livros ruins terminam assim porque os autores são engajados
em tentar justificar a eles mesmos. Se um autor vaidoso é alcoólatra, então
o personagem mais simpaticamente retratado no livro será um alcóolatra.
Esse tipo de coisa é muito chato para quem está de fora. Se você pensa que
é racional, sábio, bom, uma maravilha com o sexo oposto, uma vítima das
circunstâncias, então você não se conhece bem o suficiente para escrever.

Eu parei de me levar a sério aos vinte e sete anos e desde então me vejo
como matéria prima. Eu me utilizo da mesma maneira que um ator utiliza a
si mesmo: todos os personagens ─ homens e mulheres, bons e maus ─ são
feitos de mim mesmo mais a observação.

5. NÃO DEVERÁS SER MODESTO

Modéstia é uma desculpa para descuidos, preguiça e autoindulgência;


pequenas ambições requerem pequenos esforços. Nunca conheci um bom
escritor que não estivesse tentando ser um grande escritor.

6. PENSARÁS CONTINUAMENTE NOS VERDADEIRAMENTE


GRANDES

“Os trabalhos de um gênio são regados com as lágrimas dele”, escreveu


Balzac em “Ilusões Perdidas”. Rejeição, escárnio, pobreza, falhas, a
constante luta contra próprias limitações ─  estes são os principais eventos
na vida da maior parte dos grandes artistas, e se você aspira o mesmo
destino que eles, deve se fortalecer aprendendo sobre eles.

Nenhum de nós tem a chance de conhecer muitos escritores pessoalmente,


mas podemos estar na companhia deles se lemos suas memórias, diários e
cartas. Evite biografias, contudo ─ especialmente as biografias
dramatizadas em filme ou série de televisão. Quase tudo o que chega a
você sobre artistas pela mídia é mera bobagem, escritos por articulistas
preguiçosos que não têm a menor ideia do que é tanto arte ou trabalho duro.
Um bom exemplo é o filme “Amadeus”, que tenta nos convencer que era
fácil ser um gênio igual a Mozart e muito difícil ser uma mediocridade
igual a Salieri.

Leia as cartas de Mozart, ao invés. Assim, como específica literatura sobre


a vida de escritor, eu recomendaria “Um quarto só seu”, de Virginia Woolf,
o prefácio de Shaw para “A dama negra dos sonetos”, “Martin Eden”, de
Jack London, e, acima de tudo, “Ilusões Perdidas”, de Balzac.

7. NÃO PASSARÁS UM DIA SEM LER ALGO GRANDIOSO

Em minha adolescência estudei para ser maestro, e de meu treino musical


eu adquiri o hábito que penso essencial para todo escritor: o constante,
diário estudo das obras-primas. A maioria dos músicos profissionais sabem
centenas de partituras de cor; a maioria dos escritores, por outro lado, têm
apenas uma vaga lembrança dos clássicos ─ o que é um motivo para haver
mais músicos habilidosos que escritores habilidosos. Um violinista que
tivesse a proficiência da maior parte dos escritores publicados nunca
encontraria uma orquestra para tocar. A verdade é que apenas absorvendo
obras perfeitas, a específica maneira que os grandes mestres imaginaram
como desenvolver um tema, construir uma frase, um parágrafo, um
capítulo, você poderá aprender tudo o que há sobre técnica.

Nada que tenha sido feito pode te dizer como fazer algo novo, mas se você
compreender a técnica dos mestres, terá uma maior chance de desenvolver
sua própria. Colocando em termos do xadrez: não houve ainda um grande
campeão enxadrista que não soubesse o jogo do campeão predecessor de
cor.

Não cometa o erro comum de tentar ler para ser bem informado. Ser bem
informado vai lhe tornar o brilho das festas, mas não vai ter absolutamente
nenhuma utilidade para você como escritor. Ler um livro para poder
conversar sobre ele não é a mesma coisa que compreendê-lo. É muito mais
útil ler alguns grandes romances de novo e de novo até que compreender o
que as fazem funcionar e como os escritores os construíram. Você tem que
ler o romance umas cinco vezes antes de poder vislumbrar a estrutura, o
que o torna dramático, o que dá ritmo e movimento. As variações de tempo
e andamento, por exemplo: o autor descreve um minuto em duas páginas,
depois avança dois anos em uma frase ─  por quê? Quando você descobre,
realmente aprendeu algo.

Cada escritor irá tomar por favoritos aquele de quem ele acha que pode
aprender mais, mas eu fortemente recomendo ficar longe de romances
vitorianos, que são crivados com hipocrisia e explodem de palavras
redundantes. Até George Eliot escreveu muito sobre muito pouco. Quando
você se sentir tentado a escrever mais do que deveria, leia contos de
Heinrich von Kleist, que disse mais com menos palavras do que qualquer
outro autor na história da literatura ocidental, com exceção talvez de
Pushkin e Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Eu
os leio regularmente, apenas algumas páginas por vez, junto a Swift e
Sterne, Shakespeare e Mark Twain. Ao menos uma vez ao ano eu leio
algumas obras de Pushkin, Gogol, Tolstói, Dostoiévski, Sendhal e Balzac.
Para minha mente estes romancistas do século XIX são os grandes mestres
da prosa, uma constelação de gênios insuperáveis assim como encontramos
na música de Bach a Beethoven, e eu tento aprender algo deles todo dia.
Essa é minha “técnica”.

8. NÃO DEVERÁS VENERAR LONDRES, NOVA IORQUE OU PARIS

Frequentemente conheço aspirantes a escritor que vivem no meio do nada e


que acreditam que as pessoas que vivem nas capitais da mídia têm alguma
informação especial sobre arte que eles não possuem. Eles leem as resenhas
de jornal, assistem programas de arte na televisão para saber o que é
importante, o que arte realmente é, quais intelectuais dar importância. O
provinciano é geralmente uma pessoa inteligente e talentosa que termina
acreditando na noção de algum jornalista ou acadêmico sobre o que
constitui excelência literária e trai o próprio talento por mímicos imbecis
cujo único talento é se exibir.

Mesmo que você viva no fim do mundo, não há motivos para se sentir fora
da realidade. Se você tem uma boa biblioteca cheia de grandes escritores, e
se mantiver relendo-os, terá mais acesso aos segredos da literatura que
todos os pedantes culturais que comandam o cenário nas grandes cidades.
Eu conheci um crítico influente de Nova Iorque que nunca leu Tolstói e se
orgulhava disso. Então não perca seu tempo se preocupando com o que é
declarado a tendência do momento, o tema certo ou estilo certo, ou seja lá o
que esteja ganhando prêmios. Modas literárias mudam tão rápido quanto o
tamanho das saias. A única maneira de não ser deixado para trás e se
manter agarrado a si mesmo. Qualquer um que teve sucesso na literatura o
fez nos próprios termos.

9. ESCREVERÁS PARA AGRADAR A SI MESMO

Nenhum escritor jamais conseguiu agradar leitores que não estivessem


aproximadamente no mesmo nível de inteligência dele, que não
compartilhassem a mesma atitude básica diante da vida, morte, sexo,
política e dinheiro. Dramaturgos são sortudos: com ajuda dos atores eles
podem ampliar o apelo para além do círculo de espíritos semelhantes.
Ainda assim, há apenas alguns anos li a mais ácida das resenhas dos jornais
americanos sobre “Medida por medida” ─ a peça, em si, não a produção!
Se Shakespeare não agrada todo mundo, por que você deveria tentar?

Isso significa que não há propósito em se forçar a ter interesse em algo que
lhe entedia.  Quando eu era jovem, perdi muito tempo tentando descrever
roupas e móveis. Eu não tinha o menor interesse em roupas e móveis, mas
Balzac sempre teve interesse apaixonado por essas coisas e conseguia
comunicar até a mim enquanto eu o lia, então pensei que tinha de dominar
a arte de escrever parágrafos excitantes sobre cristaleiras se quisesse me
tornar um bom romancista. Meus esforços estavam condenados e eu
acabava com todo o entusiasmo pelo que estava escrevendo.

Agora só escrevo sobre o que me interessa. Não me importo com o tema: o


que quer que seja que eu não consiga parar de pensar sobre ─  esse é meu
tema. Stendhal disse que literatura é a arte de deixar de fora, e eu deixo de
fora tudo o que não me afeta como importante. Eu mostro pessoas somente
nos termos das próprias ações, declarações, pensamentos, sentimentos, que
me chocaram/intrigaram/fascinaram/divertiram.

Não é fácil, é claro, ser fiel ao que você realmente se importa; todos
gostaríamos de ser lembrados como alguém curioso sobre tudo. Quem
nunca compareceu a uma festa sem fingir interesse por algo? Mas quando
você escreve, tem de resistir à tentação, e quando ler o que escreveu, se
perguntar sempre: isso realmente me interessa? Eu realmente me importo?

Se você se satisfizer ─  o verdadeiro você, não alguma versão pedante de si


mesmo como a mais nobre das pessoas que se importa somente com as
crianças famintas da África ─ então terá a chance de escrever um livro que
agradará milhões. Isto porque não importa quem você é, há milhões de
pessoas no mundo que são mais ou menos parecidas com você. Mas
ninguém quer ler um romancista que não é honesto com o que escreve. O
pior best-seller tem uma coisa em comum com um grande romance: ambos
são autênticos.

10. SERÁS DIFÍCIL DE AGRADAR

A maioria dos livros novos que li parecem inacabados. O escritor se


satisfez em deixar as coisas mais ou menos certas e foi embora fazer algo
novo. Para mim, escrever se torna realmente excitante quando eu volto a
algum capítulo alguns meses depois que o terminei. Nessa fase eu olho para
ele não como autor, mas como leitor ─ e não importa quanto eu tenha
reescrito o capítulo originalmente, eu ainda posso achar frases vagas,
adjetivos inexatos ou redundantes. De fato, eu descubro cenas inteiras que,
embora verdadeiras, não adicionam nada à minha compreensão das
personagens ou da história, então podem ser cortadas.

É nessa fase que eu pondero sobre o capítulo por tempo suficiente para
aprendê-lo de cor ─ eu o recito palavra por palavra para quem estiver
disposto a ouvir ─ e se eu não lembrar de algo, geralmente acho que algo
não estava certo. A memória é boa crítica.

UMA LEITURA PARA ADOLESCENTES REBELDES, CHARLES


BUKOWSKI (+18)
Por Paulo Cantarelli / 1 de agosto de 2018
AVISO: ESTE ARTIGO CONTÉM LINGUAGEM OBSCENA

Recentemente o leitor Lucas Martins perguntou, num post de nosso grupo


no Facebook, sobre o escritor Charles Bukowski. Como a minha resposta
séria ficaria longa demais, foi melhor escrever um breve artigo sobre o
assunto. Não é um autor que valha a pena discutir, meu intuito é somente
sanar a curiosidade de alguns de vocês.

O problema de Bukowski é que ele é pornográfico. E não, não é pelo


conteúdo, mas pela forma. Henry Miller e Raimundo Carrero também
tratam de temas parecidos, principalmente no tocante à devassidão. Porém,
Bukowski, ao tratar do mesmo assunto, não possuía nenhum
aprofundamento psicológico da personagem, como veremos mais à frente.

O estilo de Bukowski não poderia ser pior, como diz o próprio Carrero:
aquilo não é Literatura, é insulto. É um conjunto de “cunts, cums and
fucks” [bocetas, porras e fodas] pelo simples sensacionalismo de escrever
um palavrão. Isso revela o mau gosto do escritor — não que seja proibido o
uso de palavras mais grosseiras, obscenas. Palavrão pra mim é palavra fora
do lugar — e uma total falta de estilo. Na escrita dele, vemos poucas
imagens fortes (ou nenhuma), a maioria delas sendo clichês, como dizer
que a mulher era “loira, olhos azuis, pernão, bunda gostosa”… Uma total
falta de classe e originalidade. Qualquer tiozão ou pedreiro diria o mesmo.
Há apenas sensacionalismo, monólogos rasos e explicações. Os poemas
parecem sempre fragmentos de prosa dispostos em estrofes.

Tudo o que ele escreve parece mais uma confissão autobiográfica


desprovida de valor literário; uma espécie de pseudo-realismo. Vamos a um
exemplo concreto, no romance “Mulheres”:

O telefone tocou naquela noite. Era Mercedes. Tinha conhecido ela numa
leitura de poesia em Venice Beach. Ela tinha uns 28 anos, corpo
interessante, ótimas pernas. Loira, de um metro e sessenta e poucos, olhos
azuis. O cabelo era longo e ligeiramente ondulado. Fumava o tempo todo.
Sua conversa era chata, seu sorriso estridente e falso quase sempre. Tinha
ido para a casa dela depois da leitura. […]
Não falamos muito. Fiquei bolinando as pernas dela.
Bebemos e fumamos por um bom tempo. Por fim, tiramos a roupa e fomos
para cama. Primeiro Mercedes, depois eu. Nos beijamos. Fiquei
saçaricando aquela boceta. Ela pegou no meu pau. Montei nela. Ela mesma
meteu meu pau lá dentro. Era bem apertadinha. Fiquei brincando um
pouco. Colocava e tirava, colocava e tirava, só a cabeça. Daí, devagarinho,
enfiei até o cabo. Sem pressa. Meti com força umas quatro ou cinco vezes.
Ela gemia, com a cabeça apoiada no travesseiro. “Ãããiii…”. Maneirei e
fiquei só bimbando de leve.
Noite abafada, os dois suando muito. Mercedes estava doida de cerveja e
maconha. Resolvi que o final seria esplendoroso, ia mostrar-lhe umas
coisinhas.
Continuei chacoalhando. Mais cinco minutos. Mais dez. Não conseguia
gozar. Comecei a fraquejar. Fiquei mole.
Mercedes não gostou:
– Continua! – pediu. – Ah, continua, baby!
Não deu mesmo. Rolei pro lado.
O calor estava insuportável. Enxuguei o suor com o lençol. Podia ouvir
meu coração bombando. Soava triste. No que Mercedes estava pensando?
A vida me fugiu, meu pau murchava.
Vemos aqui o total descaso com a forma, não há técnica, ritmo, beleza ou
profundidade existencial; há apenas mais uma descrição de um sexo. Não
há nenhum conflito psicológico da personagem a não ser o pau murcho —
e convenhamos que é muito fácil dizer que a qualidade está “no retrato de
um homem rude e materialista”. O verdadeiro realismo consiste em
representar tanto o belo quanto o feio — principalmente numa forma bela.
O conteúdo pode ser feio, imoral ou falso, mas a forma deve ser
irrepreensível.

Vejamos agora Raimundo Carrero, em “A minha alma é irmã de Deus”:

[…] Não se lembrava segundo a lembrança, mas porque Absalão vinha,


pessoalmente, soprar no seu ouvido. Se lembrava de acordo com o
esquecimento. E o que ele estava dizendo? Ele dizia, ele dizia, não, ele diz
agora, que passara a noite anterior mergulhado na Bíblia, uma leitura
sagrada e fantasiosa, que o atormentou, que o agitou. Daí a necessidade que
sentiu de abrir as porteiras do mundo. Ele disse: Porteira do mundo? Sim,
ele está repetindo para ninguém esquecer: Porteira do mundo. Para entrar
na vida o homem não precisa passar pela Porteira do Mundo, ali no corpo
da mulher?
E em vez de ir à igreja, procurar um padre, procurar um pastor, de se
confessar, dirigiu-se ao cabaré com o tio Lourenço, ele só queria alimentar
minha fé, e se trancou no quatro com uma mulher, de cujo nome só vai aos
poucos lembrando. Desculpe, mas antes de entrar no quarto com a mulher,
você se batizou ou foi batizado no reino da putaria? […] Ele está querendo
dizer que para atingir a santidade é preciso antes conhecer o outro lado, o
lado escuro, o lado do lodo e do lixo, o homem sangrando nos pecados, no
reino da putaria. Ah, meu Deus, tira esta palavra dos meus lábios.
O trecho que acabamos de ler é bastante complexo, a começar pelo uso de
estilo indireto livre para confundir as vozes das personagens. O contexto é
que Camila, a protagonista, está se lembrando na memória (ou num
espasmo de loucura) de um diálogo com outra personagem, Absalão.
Vemos a devassidão, mas sem pornografia (choque). Temos no sexo o
afloramento de outros conflitos psicológicos da personagem e de outros
temas ainda mais complexos, como a relação entre sagrado e profano, o
fascínio e tormento causados pelo pecado. Resumindo: Carrero fala de
putaria sem ser pornográfico.

Para completar, vai um poema erótico de Carlos Drummond de Andrade:

A língua lambe
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
Nem preciso comentar esse poema, ele fala por si. Não há nenhuma alusão
direta ao sexo oral, mas sabemos perfeitamente o que se passa pelas
imagens (metáforas) e sons (aliterações).

No final das contas, Bukowski é uma leitura para adolescentes rebeldes e


adultos reprimidos. Como dizia Ariano Suassuna – remontando a um
pensador que agora não me recordo – , se você pintar o cachorro mais
perfeito do mundo, estará apenas botando mais um cachorro no mundo.
Bukowski, ao representar o sexo sem nenhum valor ou criatividade
artísticos, está fazendo só mais uma cena de sexo. No final das contas, é
preciso muita classe para falar de putaria.

LITERATURA FANTÁSTICA INESPERADA: “GRENDEL”, DE JOHN


GARDNER
Por Paulo Cantarelli / 15 de agosto de 2018
Inúmeras vezes, após o infame “caso Tolkien” (que será abordado
novamente em breve com um novo artigo), muita gente vem me perguntar:
então, que tipo de “literatura fantástica” presta? Você indica algum livro?
Ou condena a todos? Nenhuma presta? Tem algum que se salve?

Bem, recomendo Ítalo Calvino, Kafka, García Márquez, Juan Rulfo…


Porém alguns dizem “ah, mas isso é realista demais”. Bom, não sei onde
uma armadura que anda sozinha, um homem transformado em inseto ou
um vilarejo povoado pelas almas dos mortos são considerados “realistas”…
Há uma diferença fundamental entre literatura fantástica e literatura de
fantasia. Por ora, basta saber que fantástico é tudo aquilo oposto ao mundo
real e que nisso também se encaixa a fantasia, que é o tema onírico, do
mundo de contos de fadas, onde vivem cavaleiros e dragões, mas deixemos
isso para uma análise mais profunda sobre literatura fantástica em geral.

O sujeito talvez estivesse falando dessa fantasia baseada em mitologia


nórdica, dessas histórias habitadas por fadas, gnomos e elfos. Alguns até
acham que tenho preconceitos com esse tipo de tema. Negativo, não ligo
para temas, mas para o trato artístico. Confesso que não é uma temática que
eu vá procurar por vontade própria, até porque não é de nosso folclore e
nossa cultura, de nosso ethos (podem discordar, mas até onde sei, o Brasil é
um país latino e não fica na Escandinávia). Eu até havia procurado, mas
nunca encontrei um livro com essa temática que fosse tratado com
qualidade literária (com isso, me refiro a livros acima da média). Todos os
autores com que me deparei, nacionais ou não, se entregam àquela
imaginação desenfreada, sem técnica e sofisticação, que encontramos em
Tolkien e C. S. Lewis.

Recentemente estava relendo alguns trechos de “A Arte da Ficção”, de


John Gardner, e notei que nunca havia lido nenhum romance do autor.
Resolvi procurar por algum e me deparei com “Grendel”. Me chamou a
atenção, pois até onde eu sabia, Grendel era o trol da lenda de Beowulf. O
romance é a história do monstro narrada por ele mesmo.
Gardner não se preocupa em fazer uma mera aventura, nem deixa a
imaginação disparar feito louca. Ele nos mostra a condição humana através
do estilo e da técnica; utiliza Grendel não como monstro, guardião de
tesouros, arquétipo de alguma teoria mitológica ou estrutural, como mero
obstáculo de enredo para um herói, mas como metáfora existencial.
Grendel representa todo o niilismo e vazio na vida dos homens. Nas
primeiras cenas, o vemos dar uma dedada para o céu, simbolizando seu
ateísmo (sem que o autor precise dizê-lo); é um início metafórico,
carregado de simbolismo: Grendel observa bodes da montanha em época
de acasalamento. Ele demonstra repulsa à vida mansa dos animais e ao
modo como se conformam (ou se mostram acomodados) perante a
natureza. Obviamente, os bodes são uma metáfora para os homens, seus
desejos brutos e falta de ambição. Longe de irracional, como é de se
esperar de um monstro, Grendel é um ser cheio de abismos psicológicos,
que gosta de falar consigo mesmo, por mais que pareça querer afastar o
mundo (o que o torna incrivelmente humano). Não se trata de hipóteses, de
meras especulações sobre mundos impossíveis e imaginários, nem de
alegoria, mas do retrato dos dilemas humanos sob forma de metáfora.

Nada, numa boa narrativa, deve ser apenas um acontecimento cronológico,


mas psicológico. Deve mostrar-nos algo do mundo subjetivo das
personagens. E Gardner sabia disso. Não temos cenas com descrições
infinitas de mundo, somente para tentar “encantar o leitor” com um mapas
geográficos imaginários. Notem que o próprio Grendel, inicialmente, mal
tem uma descrição: sabemos que ele tem chifres e é peludo somente porque
ele mesmo solta essas pistas em certos momentos. Ele nos narra o que está
acontecendo a seu redor enquanto mistura ao cenário e às cenas um
monólogo cheio de imagens vivas que tanto saltam aos olhos (e que
também são, de certa forma, cruéis). Mistura a delicadeza das flores de
açafrão com os cadáveres de suas vítimas trucidadas.

A versão em português que encontrei é horrível, então decidi eu mesmo


traduzir o início do livro. Perceba as imagens (que às vezes são até mesmo
duma beleza obscena), as quais tentei reescrever em português com maior
fidelidade possível:

CAPÍTULO I

O velho bode para olhando morro abaixo, do topo do amontoado de


rochas, estupidamente triunfante. Pisco. Encaro em horror. “Xô!”,
sussurro. “Volta pra tua caverna, volta para teu curral – ou o que seja”.
Empina a cabeça feito um rei avançado em idade, meio demente,
considera as opções, decide me ignorar. Pisoteio. Martelo o chão com os
punhos. Atiro-lhe uma pedra do tamanho dum crânio. Nem se mexe. Ergo
meus dois punhos cheios de pelos para os céus e deixo escapar um urro
tão indescritível que a água sob meus pés congela súbita e até eu mesmo
fico perturbado. Mas o bode continua lá; a temporada de acasalamento
está diante de nós. E assim começa o décimo segundo ano de minha guerra
idiota.

A dor! A estupidez!

“Ah, bom”, suspiro e dou os ombros, me arrasto de volta para as árvores.

Não penses que meus miolos são apertados, igual aos do bode, pelas
raízes dos chifres. Flancos tremendo, olhos de pedra, ele encara tanto
quanto consegue ver do mundo e sente-o surgindo em si, enchendo-lhe o
peito assim como a neve derretida enche o leito seco dos riachos,
fervilhando-lhe as bolas inchadas e tortas, carregando os miolos com a
mesma inquietação que o fez sofrer ano passado, e no ano anterior a esse.
(Esqueceu-se de todos). Os quartos estremecem com a mesma ânsia
alegre, inconsciente, de montar o que quer que esteja por perto — a
tempestade se amontoando em torres negras ao oeste, um dócil toco de
árvore apodrecendo, alguma cabra de pernas abertas. Não consigo nem
olhar. “Por que essas criaturas não encontram alguma dignidade?”
pergunto ao céu. O céu não diz nada, previsivelmente. Faço careta, ergo o
dedo médio em desafio e dou chutinho obsceno. O céu me ignora, sempre
impassível. A ele eu também odeio, tanto quanto odeio os brotos dessas
árvores estúpidas, esses pássaros barulhentos.

Não, é claro, que eu me engane com pensamentos de que sou mais nobre.
Monstro sem sentido, ridículo, agachado nas sombras, fedendo a homens
mortos, crianças assassinadas e vacas martirizadas. (Não me orgulho nem
me envergonho disso, entenda. Mais uma vítima enfadonha, espiando os
acasalamentos que não foram feitos para serem observados). “Ah, coitado,
pobre esquisitão” eu grito e me abraço, e rio, deixando escorrer lágrimas
de sal, he he!, até cair arfando e soluçando. (É em maior parte fingimento)
O sol gira sem ordem acima, as sombras aumentam e diminuem como se
de propósito. Passarinhos, com um piado estridente, põe ovos. As ervas
tenras, dum amarelo inocente, espreitam do chão: as crianças dos mortos.
(Foi bem aqui, neste verde intenso, certa vez quando a lua estava
sepultada nas nuvens, que arranquei a cabeça do astuto velho Athelgard.
Aqui, onde as surpreendentes e minúsculas mandíbulas do açafrão
abocanham o sol de fim-de-inverno como se fossem as cabeças de
pequenas cobras d’água, aqui eu matei a velha de cabelos grisalhos cor-
de-ferro. Tinha gosto de urina e bile, que me fez cuspir. Doce adubo para
flores amarelas. Tais são as memórias dum salteador das sombras,
vagabundo dos confins da terra, andarilho do misterioso muro do mundo.)
“Aaaaaaaah!” eu grito, com outra rápida, sórdida careta para o céu,
observando melancolicamente como ele é, lembrando amargamente como
era, e lançando estupidamente as redes do amanhã. “Aargh! Iaaaah”,
cambaleio, esmago árvores. Desfigurado filho de lunáticos. Os carvalhos
corpulentos fitavam-me do alto, amarelado pela manhã, abaixo de
qualquer complexidade. “Não quis ofender”, eu digo, com um terrível
sorriso sicofântico, e cumprimento tocando a ponta dum chapéu
imaginário.

Nem sempre foi assim, claro. Chegou a ser pior.

Não importa, não importa.

A corça na clareira enrijece à vista de minha feiura, depois lembra-se de


que tem pernas e vai embora. Isso me irrita. “Preconceito cego!”, grito às
réstias de luz onde meio segundo atrás ela estava. Contorço os dedos e
fecho a cara. “Ah, a injustiça de tudo”, digo e balanço a cabeça. É fato
que eu nunca matei um cervo em toda a minha vida, e nunca irei. Vacas
têm mais carne e, trancadas nos currais, são mais fáceis de pegar. É
verdade, talvez, que eu sinta certa repulsa por cervos, mas não mais
repulsa do que sinto por outras coisas naturais – menos homens. Mas
cervos, assim como coelhos e ursos e até os homens, podem fazer, a
respeito de minha raça, distinções nada delicadas. Esta é a alegria deles:
veem toda a vida sem observa-la. Afundados nela feito caranguejos na
lama. Exceto os homens, é claro. Não estou no humor, ainda, para falar
dos homens.

Algo bastante interessante é como Gardner trabalhou para criar a


personalidade de Grendel. Assim que lemos o texto, notamos o caráter
filosófico da personagem, o que é explicado pelo autor em algumas
entrevistas:

“Em Grendel  eu queria analisar as grandes ideias da civilização


ocidental – que me parecem ser umas… doze? – e analisa-las pela voz do
monstro, com a história já contada, com várias atitudes filosóficas (as de
Sartre em particular), e ver o que eu poderia fazer, ver se eu conseguiria
me superar.” –  Conversations With John Gardner, Allan Chavkin.

“Usei Grendel para representar os posicionamentos filosóficos de Sartre.


Muito de Grendel foi emprestado de trechos de O Ser e o Nada.” –  John
Gardner: Literary Outlaw, Barry Silesky.
“Sartre é um horror intelectualmente, figurativamente e moralmente, mas
é uma maravilha de escritor e tudo o que ele diz você acredita, ao menos
na hora, pela maneira como ele diz. O que aconteceu em Grendel foi que
eu tive a ideia de representar o monstro de Beowulf como Jean-Paul
Sartre, e tudo o que Grendel diz, Sartre, de um jeito ou de outro, disse.”
– Where Philosophy and Fiction Meet: An Interview with John
Gardner, Chicago Review.

Já ataquei algumas vezes a ênfase do discurso filosófico em detrimento da


qualidade literária – não é um ataque à filosofia na literatura, mas ao
descaso artístico sob alegação de que os temas são bons filosoficamente. 
Aqui, Gardner nos dá um excelente exemplo de como incorporar a filosofia
ao texto através da Técnica.  Como devo ter dito antes: filosofia e temas
são conteúdos materiais, que existem em todo romance, mas que não são
responsáveis pela qualidade literária e artística do texto. Também é
interessante salientar que Gardner, nessas declarações, nos deixa claro que
não necessariamente concorda com as ideias de Sartre – assim como eu e,
provavelmente, muitos dos meus leitores -, mas vê que essas mesmas
questões existencialistas podem ser um conteúdo dramático de alta
qualidade. Dessa maneira, a forma abarca de tal modo o conteúdo
filosófico que não precisamos concordar com ele, nem debatê-lo (isso fica
para o campo da retórica, dialética ou lógica). O escritor, em literatura, não
está preocupado em convencer ninguém; ele só representa. Basta sentar e
apreciar a obra, as reflexões virão por si.

ENTREVISTA COM JOHN GARDNER – GARGOYLE MAGAZINE,


1978
Por Paulo Cantarelli / 20 de agosto de 2018
Entrevistadores Joyce Renwick e Howard Smith, tradução de Paulo
Cantarelli.

John Gardner nasceu em 1933 [morto em 1982 num acidente de


motocicleta]. Homem de muitos talentos, recentemente ganhou o
Armstrong Prize por sua radionovela “The Temptation Game”, autor de
sete romances “The Ressurrection”, “The Wreckage of Agathon”,
“Grendel”, “The Sunlight Dialogues”, “Nickel Mountain”, “October Light”
e “In The Suicide Mountains” [a maioria sem tradução para o português].
Também é contista, poeta e crítico, que fez de tudo, de letras de rock a
trabalhos acadêmicos sobre Chaucer. Seu livro mais recente é o
controverso “On Moral Fiction” [Sobre Ficção Moral] (Basic Books,
1978). Acadêmico da Guggenheim Memorial Foundation, John Gardner
ensinou Inglês Antigo e Medieval e/ou Escrita Criativa em Oberlin, San
Francisco State University, Southern Illinois University, George Mason
University, SUNY em Binghamton, e na Bread Loaf Writer’s Conference.
Esta entrevista foi feita em 25 de agosto de 1978, na Bread Loaf.

ENTREVISTADORES: John, você critica acadêmicos pela


intelectualização excessiva da ficção e por escreverem ficção para outros
acadêmicos. Ainda assim, em On Moral Fiction você parece mirar
justamente nesse nicho em vez de seu público normal. Por quê?

GARDNER: Certo. Eu acho que você está certo sobre eu estar mirando em
profissionais. Eu penso que provavelmente o tipo de pessoa que
normalmente leria meus livros também lerá esse livro, porque depois que
você constrói uma reputação com certos seguidores, eles meio que confiam
em você. Quer dizer, todas mulheres de advogados e todos médicos que
chegam em casa e leem alguns romances não são literatos profissionais,
mas leem livros. Eles veem meu nome num livro, pensam que talvez seja
interessante e pegam para ler. Muitas das cartas que recebi sobre On Moral
Fiction eram de pessoas que leram meus outros livros e não estão
acostumadas com ficção contemporânea, parte porque desistiram de ler. E
muita gente, aonde quer que eu vá ― e acredito que seja verdade para a
maioria ―, diz “eu só não leio mais ficção, leio não ficção”. E o motivo é
simples: a ficção se tornou chata, estúpida e deprimente, fajuta, em vários
sentidos. Sempre há bons escritores. Há grandes escritores, feito John
Fowles, a quem menciono em On Moral Fiction. Não há muitos além dele.
Mas é certo que esse livro foi escrito para profissionais. Critico livros como
aqueles de Tom Pynchon e John Barth, e de outras pessoas, livros tidos
como nobres e verdadeiras obras de arte quando, de fato, não são. Não são
tão bons. Têm erros bem específicos, falhas na execução e falhas na
concepção. São, às vezes, uma reflexão de personalidades que são
perdoáveis e amáveis na vida cotidiana, mas que não são tidas como
modelos porque não são lá tão bons como modelos humanos; e meu
protesto, realmente, não é ao fato de que esses autores existam, mas ao fato
de que os acadêmicos frequentemente os enaltecem. O que acontece numa
sala de aula é isto: você dá aula sobre um romance de alguém feito
Anthony Trollope, que é um tipo de romancista perfeito que, como alguns
dizem, nunca pisa fora da linha. Isto é, ele faz o trabalho bela, simples e
claramente e você tem que demorar na sala tanto quanto demora para os
garotos lerem o romance, certo? O que significa umas semanas se você os
apressar. Como Barchester Towers ― você não pode pedir para os garotos
na faculdade lerem e pensarem sobre esse livro em menos de duas semanas.
Então isso significa três aulas na primeira semana e três na segunda em que
você tem que falar sobre Barchester Towers. O problema é que não há nada
para dizer, porque é um livro perfeito. O estudante compreende como são
as personagens, o porquê de elas fazerem o que fazem, entende por que é
importante o que eles fazem e pensam que fazem, entende o cenário e
entende que é uma grande obra de arte. E você fica lá, parado, sem nada
para dizer. Por outro lado, você vai para a sala com Gravity’s Rainbow e
pode falar, falar, e falar porque há artimanhas por trás das artimanhas.
Sabe, você pode achar uma tropa da SS escondida em todo canto. Você
pode falar sobre história moderna e sobre existencialismo, você pode falar
sobre Freud, sobre Marx, e assim por diante. Há milhares e milhares de
coisas para se falar. O livro pode não ter uma boa história, pode ser
filosoficamente inconsistente, pode ser psicologicamente inconsistente,
pode ser exagerado, pode ser chato, pode ser maravilhoso também. Mas
seja qual for o caso, o fato é que assim é muito fácil ensinar. O resultado é,
quanto mais e mais cursos temos sobre literatura, que é o que está
acontecendo, mais e mais cursos são feitos sobre livros. O resultado é que
você tem mais e mais cursos sobre livros que são fáceis de ensinar, porque
são obscuros, estranhos ou alguma outra coisa. Você se afasta cada vez
mais da noção do que é um bom livro. É verdade que alguns grandes livros
são difíceis. Eu diria que Finnegans Wake leva um semestre inteiro para
ensinar mais ou menos bem. Diria que Ulysses é bem dificilzinho e um
grande livro, mesmo com algumas falhas. E também diria algo assim até
de O Retrato do Artista Quando Jovem. Diria que O Som e a Fúria é
divertido de se falar sobre em sala e é um grande livro. Mas há também
todos aqueles livros ― livro após livro após livro. Os trabalhos completos
de Dickens, se você der a um estudante poucas pistas de como Dickens
trabalhava, nunca mais vai ter que dizer mais nada. Três dias de aulas sobre
Dickens serão o suficiente, pois ele é um escritor maravilhoso, faz coisas
simbólicas interessantes e engenhosas, mas você pode destaca-las feito um
raio, e no resto do semestre fica sem mais nada para dizer. Então eu tenho
me posicionado contra o que está acontecendo nas salas de aula, uma
espécie de valoração dos romances pela dificuldade intelectual em
detrimento da arte. O que está realmente acontecendo são questões práticas:
como dar essa aula tendo redefinido a arte. Então a academia se distancia
mais e mais das pessoas que realmente leem. Os livros que todos sabem
que são maravilhosos e que amamos ler não estão na pauta das
universidades. Um exemplo, depois encerro esta questão. Provavelmente
um livro que influencia o povo americano mais do que qualquer outro é E o
Vento Levou.  Sendo grande arte ou não, emocionou grande número de
pessoas, sendo algum tipo de arte. E eu argumentaria, como escritor, que
não é mal estruturado, que as frases são até bem-feitas, que de fato ele tem
o direito de estar entre os romances americanos mais importantes.
Certamente tenta contar a verdade sobre um período muito importante da
história americana e no mínimo cria personagens duradouras, como
sabemos pelo fato de toda garota que o lê tentar se modelar à imagem da
personagem principal do livro, pelo menos por um tempo. E ainda assim é
muito raro encontrar E o Vento Levou nas salas de aula, enquanto é normal
encontrar Finnegans Wake, embora poucas pessoas na América tenham
sido comovidas profundamente por qualquer coisa nesse livro.

ENTREVISTADORES: John, você já mencionou frequentemente, em suas


palestras e em conversas comigo no passado, que uma das metas do
romancista é explorar e recriar o mundo, estabelecer basicamente um
código moral, como você explica em On Moral Fiction ― você sente que
há algum tema ou senso moral consistentes que ligam todos os seus
trabalhos? Ou cada um deles são componentes separados que tratam de
diferentes ideias?

GARDNER: Eu acho que há um tema geral que é a metafísica de John


Gardner, uma espécie de metafísica artística intuitiva. Penso que cada livro
pega uma parte diferente da metafísica e a trabalha de modo distinto.

O romance Grendel, como me parece, é essencialmente um romance sobre


fé e razão. A Grendel é dada, de novo e de novo, a oportunidade de crer em
alguma coisa que a civilização ocidental estima como um valor. Por
exemplo, heroísmo é um dos temas levantados pelo livro explicitamente.
Um jovem de nome Unferth decide que será um herói. Somente pela fé ele
acredita em heróis ―  embora não tenha realmente pensado no assunto ―
e deseja morrer por esse princípio. Grendel, que não acredita em nada ―
por isso que ele é um monstro ―, caçoa-o e o faz duvidar da ideia de
heroísmo. Ele dá todos os bons argumentos, como, por exemplo, somente
os jovens são heroicos, eles só saem porque são estúpidos e correm ladeira
acima em direção à metralhadora. Ou, heroísmo é um reflexo automático,
não uma reação do livre-arbítrio, e assim por diante… Grendel recebe a
oportunidade de acreditar no amor. Freud pode provar, se você estiver
aberto para escutar as provas de que o amor não existe, que é uma ilusão. É
uma necessidade mútua ou algo do tipo. Qualquer valor que temos pode ser
racionalizado para fora da existência, raciocinado para fora da existência.
Em algum ponto você terá que dizer “não me importo e aqui estou”. Mas
até o último momento do romance, Grendel é incapaz de fazer esse salto,
então ele o faz porque é meio que empurrado do limite e levado a isso.
Então é um livro sobre fé.

The King’s Indian, outro romance ―  na verdade não é bem um romance, é
um conjunto de contos terminando com uma novela, mas as histórias são
todas interligadas, ao menos na minha cabeça, e são todas sobre uma coisa:
é meu livro sobre estética e há certas questões fundamentais sobre como a
arte funciona e o que ela causa nas pessoas, nas pessoas e no mundo, que só
podem ser respondidas com uma demonstração ficcional. E o princípio
organizador nas três partes do livro são: primeiro, um punhado de histórias
negras em que pessoas sobrevivem por acidente, ou algo assim, depois
as Queen Louisa stories, nas quais há histórias loucas, felizes, absurdas,
depois a novela The King’s Indian. Quando você as termina, se sente como
uma daquelas pessoas e analisa isso e muda todo material concreto para
abstrato, tem um livro sobre estética.

Jason and Medeia, outro livro meu, é sobre uma série de polaridades que
estão no mito original e nos comentários sobre ele. É uma versão moderna
da mesma questão. Primeiro de tudo, a polaridade entre macho e fêmea.
Jasão é meio que arquetipicamente o masculino e Medeia o feminino e essa
é uma questão que se tornou bem interessante com o novo movimento
feminista e de libertação gay e tudo mais, onde sexualidade se torna outra
vez uma questão principal para a filosofia. Também é um livro sobre
intuição mística. Macho e fêmea novamente em termos de lobos cerebrais e
tal. Toda a polaridade entre macho e fêmea é a questão subjetiva de Jason
and Medeia, e quando você terminar o livro saberá tudo o que penso e eu
saberei tudo o que penso sobre o assunto. Eu não sabia, quando comecei, o
que eu iria pensar sobre essas coisas, mas trabalhando a história e tentando
contar a verdade, tentando dizer isto é o que ela faria, isto é o que ele faria,
isto é o que eles fariam, cheguei à conclusão, que é este livro. Cada livro
tem um assunto diferente. Tudo vai se somando. Todo o resultado soma a
um contínuo exame de método, uma visão geral de mundo, ou ordem
nacional, o que quer que eu queria chamar. Estou ciente de que cada livro é
sobre algo diferente e que é sempre sobre um dos questionamentos
fundamentais. Se eu descobrisse que estava fazendo um livro exatamente
igual ao outro que fiz antes, sobre o mesmo assunto, ficaria bastante
preocupado e provavelmente largaria o livro ou tentaria com todas forças
dizer o oposto do que disse da última vez. Se eu pudesse provar que mudei
de mentalidade, então estaria interessado, do contrário seria um livro
horrível.

ENTREVISTADORES: Há algum dos seus livros em você ficou satisfeito


porque conseguiu o que queria atingir, ou um que do seu próprio ponto de
vista seja o melhor que você já escreveu em termos de ter conseguido
expressar o que você queria expressar?

GARDNER: Acho que meu livro favorito é The King’s Indian, mas eu
gosto bastante de The Sunlight Dialogues. Gosto muito, muito mesmo,
de Grendel, exceto por um pequeno erro técnico que me incomoda, mas a
maioria das pessoas não nota quando leem. Não vou dizer qual é. Gosto de
todos os meus livros porque praticamente durmo com eles até que eu esteja
pronto. Nickel Moutain me tomou vinte anos para escrever. Trabalhei nele
um pouco cada ano durante todo esse tempo. Trabalhava nele até não
conseguir mais vê-lo e depois colocava-o na gaveta por um tempo, quando
achava que dava conta de novo eu voltava e escrevia um pouco mais.
Quando acabei, já havia reescrito aquela coisa umas centenas de vezes. Eu
tinha episódios que introduzi, depois tirei, mudei personagens e mudei
todos os nomes. Quando acabei, eu realmente havia revirado o livro. Era
uma joia lapidada. Se era ruim depois de vinte anos de trabalho, então eu
deveria me levantar e desistir do negócio. Então, é assim com todos os
meus livros. Não os publico até ter resolvido os problemas. E acho que são
um bom entretenimento nas artes eruditas.

ENTREVISTADORES: Então você está bastante satisfeito com cada


trabalho que fez?

GARDNER: Sim, nunca publiquei nada que pense ser ruim. Publiquei um
conto uma vez que era tão estúpido que finjo que não existe, mas no geral
gosto das minhas coisas.

ENTREVISTADORES: John, a maioria das pessoas o conhecem como


escritor, mas você também passa grande parte do tempo como professor
universitário. Você era originalmente um medievalista e agora gasta a
maior parte das energias ensinando em cursos de escrita. Poderia nos dizer
por que você tem que fazer isso quando obviamente deve ter vendido livros
o suficiente para não precisar mais ensinar?

GARDNER: Certo. Eu não vendi livros o suficiente para parar de ensinar.


Na verdade… porque eu sempre tive problemas financeiros. Demora tanto
para escrever um romance que, mesmo que você ganhe muito dinheiro,
você não ganha nada igual ao que pessoas com trabalho estável, de
US$25.000 por ano, ganham. O máximo que ganhei foi US$80.000 e
demorou vinte anos para escrever o livro, então não é uma remuneração tão
boa. Eu ensinava literatura medieval e coisas do tipo porque precisava me
sustentar na escrita. Ensinei literatura medieval por dois motivos. Um é que
eu amo esse tipo de história. Na idade média, é claro, eles tinham todos os
tipos de história que eu naturalmente conto, histórias sobre dragões,
cavaleiros, donzelas, tudo o que Dante faz, todas as coisas caricaturescas à
la Walt Disney que Chaucer faz, e assim vai. Escolhi isso em parte porque
metade do tempo em que se está ensinando idade média, o que se ensina é
linguagem e isso nunca muda, então você não precisa preparar aulas e, se
trabalhar bem, como eu fiz, você as prepara de modo que tenham duração
de três horas na segunda à noite e está livre pelo resto da semana para
escrever. Então era uma maneira de me sustentar e escrever ficção, que era
o que eu realmente queria fazer, porque nenhum artista sério no país
consegue se viver disso. Acho que na hora em que você vê um artista se
sustentando realmente bem, você está olhando para um artista de meia
idade que de alguma forma passou por anos de fome ou está olhando para
um fingido. Não sei, pode não ser verdade. Deve haver alguma exceção
gritante, mas normalmente ganhar o suficiente para viver disso demora para
sempre. Então após me estabelecer de maneira que pudesse me sustentar,
não muito bem, mas para que sustentasse minha ficção, mudei para ensinar
escrita criativa durante meio expediente, depois no expediente completo e
continuei fazendo isso porque ensinar a escrever é difícil. Muitas pessoas
podem escrever belamente e não sabem o que fazem. Escrevem meio que
intuitivamente. Podem retrabalhar a cena até que sintam que está certa e
quando veem o escrito dum estudante, não sabem o que dizer a ele, exceto,
bem, reescreva isso, ou isto não está bom, o que seja. Alguns, umas poucas
pessoas, são capazes de mostrar as técnicas da ficção e mostrar o que você
está fazendo de errado e, se você é uma dessas pessoas, meio que deve isso
aos estudantes.

ENTREVISTADORES: Então você sente que pode ensinar uma pessoa a


escrever?

GARDNER: É.

ENTREVISTADORES: Como você faz isso?

GARDNER: Bem, meu método básico é, primeiro de tudo, usar exercícios


para desenvolver as habilidades que escritor amador, ou iniciante, não sabe
que precisa. A maior parte da escrita envolve técnicas que não são
mencionadas nos cursos de literatura porque críticos literários olham a
escrita do outro extremo, sabe o que isso significa? Em vez de: como o
texto é criado? Então, é claro, os alunos do curso começam a escrever
contos e romances e eu os critico de perto, dou questões teóricas e, com
sorte, os livro da necessidade de falarem comigo. Eventualmente eles
internalizam minhas informações.

ENTREVISTADORES: Há dois pontos, John, que você frequentemente


menciona a escritores iniciantes ou jovens escritores, o primeiro é que
quando se está escrevendo uma história, você tem que tentar preservar o
sonho que criou em sua ficção na mente do leitor. O segundo, que acho ser
relacionado a isso, é que você geralmente pergunta às pessoas, quando elas
terminam uma história ou depois de ler uma, por que alguém deveria ler
isso? Poderia explicar como essas ideias refletem nas suas próprias atitudes
com relação à ficção e por que são tão importantes para jovens escritores?

GARDNER: Bem, ambas as coisas têm a ver com uma pergunta simples: a
história está contando uma história? Você é arrebatado quando lê, da
mesma forma que quando escutava “João e o pé de feijão” e “Branca de
Neve”, ou algo do tipo? Se a ficção está realmente funcionando bem, o
leitor se enrosca na cadeira e esquece o tempo. Sabe, você senta após o
almoço e, de repente, alguém está te sacudindo e perguntando se você vai
vir para o jantar e você não pensa sobre o fato de que se passaram cinco
horas ou coisa do tipo. Isso sempre acontece comigo quando leio o bom
Tolstói, até mesmo o mau Tolstói. Sempre me acontece quando leio
Faulkner. Se não acontece comigo, se me pego olhando em volta, olhando
o relógio imaginando o que devo fazer, então não acho que o autor
conseguiu. Acabou com o texto. Sendo assim, penso que o que o escritor
deve fazer é criar um sonho vívido e contínuo na mente do leitor. Vívido de
maneira que dê pistas o suficiente, com detalhes concretos e específicos
para que você tenha no que prender o sonho, e contínuo para que ele não te
distraia com alguma má escrita estúpida ou algo que te faça pensar no autor
em vez da cena. E então penso que quando está tudo acabado, o leitor irá
dizer se fiz isso ou não. Muitas vezes, particularmente nos filmes de hoje
em dia, você vai a um cinema, se diverte, vai para casa e pensa melhor.
Você não liga, não parece um bom filme, no final das contas. E nenhum
escritor que que isso aconteça a ele. Então melhor contar ao estudante que
isso irá acontecer e tentar ensina-lo a não deixar que aconteça.

ENTREVISTADORES: Há autores que você escutou, John, na conferência


Bread Loaf, que você gostaria de recomendar para leitura?

GARDNER: Claro… Acho, de longe, que a melhor leitura este ano foi por
Susan Shreve… um conto. Susan é bem nova, o estilo tem altos e baixos.
Às vezes ela é absolutamente brilhante, às vezes é inacreditavelmente
terrível. A história que ela leu é simplesmente brilhante, eu creio. 
Simplesmente… funciona por completo. E acho que essa será a maneira
que ela escreverá, cada vez mais. Acho que não há limites para o futuro
dela.

Acho que as histórias de Stanley Elkin são típicas Stanley Elkin, e


maravilhosas, sabe, a imaginação simplesmente brota e você não pode
pará-lo, é um imaginador brilhante. Discordo dele filosoficamente sobre a
vida, em si, e acho que se você está errado filosoficamente, suas histórias
terminam vazias. Se você acredita, Stanley meio que argumenta que Deus
fez uma bagunça terrível, porque… isso rende uma boa história. Eu diria
filosoficamente que a melhor história a se contar é uma com o amor como
motivação principal. E na obra de Stanley… Amor é uma ilusão. Acho, no
entanto, que não importa quão engraçada ou vívida seja a história, você
sempre sai pensando “isto não é verdade”. Não é o que acontece na história
de Susan. É verdade que Stanley, é claro, é um velho profissional, e que
pode escrever muito mais que Susan, ou até mesmo mais que eu. Mas ele
está errado.
COMO IDENTIFICAR ARTE DE VERDADE? – POR ROGER
SCRUTON
Por Paulo Cantarelli / 23 de agosto de 2018
O mundo da arte, eu afirmei, está cheio de falsificações. Falsa
originalidade, falsa emoção e falso conhecimento dos críticos ― essas
coisas estão todas ao nosso redor em tamanha abundância que dificilmente
sabemos aonde olhar para encontrar a arte de verdade. Ou talvez não haja
arte de verdade? Talvez o mundo da arte seja só um grande fingimento, no
qual todos participamos já que, afinal, não há custos reais, exceto para
aqueles como Charles Saatchi, rico o suficiente para esbanjar dinheiro com
lixo? Talvez qualquer coisa seja arte se alguém diz que é. “Tudo é questão
de gosto”, eles dizem. Mas não há nada a se dizer em resposta? Não temos
nenhuma maneira de distinguir arte verdadeira da falsa, ou dizer por que a
arte importa e de que maneira? Farei algumas afirmações positivas.

Primeiro, contudo, precisamos ignorar os fatores que distorcem nosso


juízo. Pinturas e esculturas podem ser adquiridas, compradas e vendidas.
Logo, há um vasto mercado para elas e, tenham ou não tenham valor,
certamente têm um preço. Oscar Wilde definiu o cínico como aquele que
sabe o preço de tudo e o valor de nada. E o mercado da arte é
inevitavelmente controlado por cínicos. Puro lixo se acumula em nossos
museus, em maioria porque há uma etiqueta com preço. Não se pode ter
uma sinfonia ou um romance da mesma maneira que você tem um Damien
Hirst. O resultado é que há muito menos falsificação de sinfonias e
romances do que nas artes visuais.

As coisas são distorcidas também nos meios de patrocínio oficial. Os


Conselhos de Arte existem para subsidiar artistas, escritores e músicos cuja
obra é importante. Mas como os burocratas decidem que algo é importante?
A cultura diz-lhes que uma obra é importante se é original e se o público
não gosta dela. Além do mais, se o público gostasse, qual a necessidade de
subsídio?  Patrocínio oficial, assim, inevitavelmente favorece obras que são
obscuras, excruciantes ou vazias, em vez daquelas que têm encanto real e
duradouro.

Então, qual a fonte desse encanto, e como julgamos se uma obra de arte o
possui? Três palavras resumem minha resposta: beleza, forma e redenção.

Para muitos artistas e críticos, beleza é uma ideia desacreditada. Denota


cenas água com açúcar e melodias cafonas que agradam a vovó. A
mensagem dos modernistas, de que arte precisa mostrar a vida como ela é,
implica para muitos que, se você visar a beleza, termina com kitsch. No
entanto, isso é um erro. O kitsch diz o quão bom você é. Oferece
sentimentos fáceis no que é barato. A beleza te diz para parar de pensar em
si mesmo e acordar para o mundo dos outros. Diz: olhe isto, escute isto,
estude isto ― pois há algo mais importante do que você. O kitsch é um
meio para a emoção barata. A beleza, um fim em si mesma. Obtemos a
beleza colocando nossos interesses de lado e deixando o mundo surgir em
nós. Há várias maneiras de fazê-lo, mas a arte é sem dúvidas a mais
importante, já que nos apresenta a imagem da vida humana ― nossa
própria vida e tudo o que a vida significa para nós ― e nos pede para olhar
para ela diretamente, não pelo que podemos receber, mas pelo que temos a
oferecer. Pela beleza, a arte limpa o mundo de nossa obsessão por nós
mesmos.

Nossa necessidade humana pela beleza não é algo de que podemos carecer
e ainda assim sermos pessoas completas. É uma necessidade decorrente de
nossa natureza moral. Podemos vagar por este mundo, alienados,
ressentidos, cheios de suspeitas e desconfianças. Ou podemos encontrar
nosso lar aqui, descansando em harmonia com os outros e com nós
mesmos. E a experiência da beleza nos guia pelo segundo caminho. Nos
diz que nosso lar é no mundo, que o mundo já é organizado em nossas
percepções como um lugar próprio para a vida de seres como nós. É o que
vemos nas paisagens de Corot, nas maçãs de Cezanne, ou nas botas
desamarradas de Van Gogh.

Isso nos leva à segunda palavra importante: forma. A verdadeira obra de


arte não é bela no sentido em que um animal, uma flor ou uma extensão de
campo são belos. Ela é uma coisa criada conscientemente, na qual a
necessidade humana por forma triunfa sobre a aleatoriedade dos objetos.
Nossas vidas são fragmentadas e dispersas ― coisas começam em nossos
sentimentos sem encontrar conclusão. Muito pouco nos é revelado de
maneira que seu significado seja completamente compreendido. O tema
duma fuga de Bach parece se desenvolver por si, numa harmonia própria,
preenchendo o espaço musical e movendo-se logicamente para um
encerramento. Mas não é um exercício matemático. Todo tema em Bach é
impregnado de emoção, movendo-se com o ritmo da vida interior do
ouvinte. Bach te leva para um espaço imaginário, apresentando, nesse
espaço, uma imagem de tua própria plenitude. De modo semelhante,
Rembrandt pegará os matizes da tez de um rosto idoso e mostrará como
cada um deles captura algo da vida interior, de maneira que a harmonia
formal das cores convirjam na completude e unidade da pessoa. Em
Rembrandt vemos caráter integrado num corpo que se desintegra. E somos
levados à reverência.
Perfeição formal não pode ser atingida sem conhecimento, disciplina e
atenção ao detalhe. As pessoas estão começando a entender isso. A ilusão
de que a arte flui de nós, e de que o único propósito das escolas de arte é
nos ensinar a como abrir as torneiras, não é mais crível.  Já se foram os dias
em que você criava rebuliço por embrulhar um prédio em poliestireno, feito
Christo, ou sentar ao piano em silêncio por quatro minutos e trinta e três
segundos feito John Cage. Para ser realmente moderno, você precisa criar
obras de arte que peguem a vida moderna, em toda sua desconexão, e lhes
dê plenitude e resolução, assim como fez Philip Larkin em seu grande
poema “The Whitsun Weddings”. Tudo bem que um compositor encha
suas peças com sons dissonantes e acordes confusos feito Harrison
Birtwistle, mas se ele não sabe nada de harmonia e contraponto, o resultado
será barulho aleatório, não música. Tudo bem que um pintor jogue tinta na
tela feito Jackson Pollock, mas o conhecimento real das cores vem do
estudo do mundo natural e da descoberta de nossas próprias emoções
refletidas nos matizes secretos das coisas, assim como Cezanne encontrou
paz e conforto num prato com maçãs.

Se olharmos para os verdadeiros apóstolos da beleza em nosso tempo ―


penso em compositores feito Henri Dutilleix e James Macmillan, pintores
feito David Inshaw e John Wonnacott, poetas feito Ruth Padel e Charles
Tomlinson, na prosa de escritores feito Ítalo Calvino e Georges Perec ―
somos imediatamente atingidos pelo imenso trabalho árduo, o isolamento
dedicado ao estudo e a atenção aos detalhes que caracterizaram seus
ofícios. Na arte, a beleza tem que ser conquistada e o trabalho é mais árduo
quanto mais a idiotice ao redor cresce. Mas a tarefa vale a pena, e isso me
traz à terceira palavra importante: redenção.

Em face ao pesar, imperfeição e efemeridade de nossos afetos e deleites,


nos perguntamos: Por quê? Precisamos de reconforto. Olhamos para a arte
em busca da prova de que a vida neste mundo tem sentido e que o
sofrimento não é tão em vão quanto frequentemente parece ser, mas parte
necessária de um todo muito maior e redentor. Tragédias nos mostram o
triunfo da dignidade sobre a destruição e da compaixão sobre o desespero.
De um modo que será sempre misterioso, elas dotam o sofrimento com um
acabamento formal e assim restauram o equilíbrio moral. O herói trágico
completa-se pelo seu destino. Sua morte é um sacrifício, e esse sacrifício
renova o mundo. A tragédia nos lembra de que a beleza é uma presença
redentora em nossas vidas. É a face do amor, reluzindo em meio à
desolação.  Não deveríamos nos surpreender por muitas das obras mais
belas da arte moderna terem surgido em reação ao ódio e crueldade. Os
poemas de Akhmatova, os escritos de Pasternak, a música de Shotakovich
― tais trabalhos lançaram luz na escuridão totalitária e mostraram amor em
meio à destruição. Algo similar pode ser dito dos “Quatro Quartetos” de
Eliot, do “Réquiem da Guerra” de Britten, da capela de Matisse em Vence.
Os modernistas surgiram porque artistas, escritores e músicos se ativeram à
visão de beleza como uma presença redentora em nossas vidas. E essa é a
diferença entre uma verdadeira obra de arte e a falsificação. Arte de
verdade é uma obra do amor. Arte falsa é uma obra do engano.
A FERRO E FOGO: O DEVER DO CRÍTICO
Por Paulo Cantarelli / 11 de setembro de 2018
“Desde a época de João Batista até o presente, o Reino dos céus é
arrebatado à força e são os violentos que o conquistam. ” ― Mateus
11:12

Do estudante no ensino fundamental, ao pós-doutor em letras, ou mesmo o


mais vendido dos autores best-sellers, todos repetem ad nauseam o adágio
“ler faz bem”. Mas faz bem exatamente para quê? E ao quê? Como nos
lembra John Gardner, no clássico “A Arte da Ficção”, em todos os níveis
educacionais ouvimos a recomendação de qualquer tipo de leitura, como se
fosse uma dose diária de vitamina C, cujo mero consumo nos faz bem por
si só. Contudo, em nível intelectual, mesmo pequenas doses de má
literatura, ou má filosofia, podem ser bastante nocivas para a inteligência;
em doses cavalares, podem destruí-la por completo.

Ainda assim, muitos argumentam que qualquer tipo de leitura é, sim,


bastante saudável, pois abre portas para outro tipo de leitura, supostamente
mais elevada. Os críticos esnobam a literatura popular, nos dizem, e com
isso afastam o grande público da cultura. Mas até onde isso seria verdade?
G. K. Chesterton abre “O Defensor”, no artigo “Em Defesa dos Folhetins”,
com as seguintes palavras:

“Um dos mais estranhos exemplos do nível ao qual a vida comum é


subestimada é no exemplo da literatura popular, cuja grande maioria
descrevemos, com muita satisfação, como vulgar. A novela do garoto pode
ser ignorante num sentido literário, o que é somente a mesma coisa que
dizer que um romance moderno é ignorante no sentido químico, ou
econômico, ou astronômico; mas ele não é vulgar intrinsecamente ― é o
verdadeiro centro de milhões de imaginações flamejantes. ”

Embora seja verdade que muitos dos nossos críticos torçam o nariz
para best-sellers, o melhor exemplo de literatura popular de nossos dias, e
que também seja verdade que desconheçam, em maioria, as causas de
qualquer qualidade literária que seja, agindo mais ou menos feito Íon,
garanto que Chesterton não seria menos ávido em reclamar da falta de
teologia num livro sobre São Tomás de Aquino, ou falta de filosofia num
ensaio sobre Aristóteles. Em Arte, é preciso a todo custo defender o que há
de mais elevado; e o obeso polemista inglês defendia com unhas em dentes
apenas seu próprio mau gosto mórbido. Em literatura, a qualidade literária
(ou sua falta) é crucial para entendermos o tipo de educação ela pode nos
propiciar, direta ou indiretamente.

Como bom aristotélico extremista, acredito que a arte é um bem em si


mesma, cujo valor é estético, feito para a contemplação, não para o
didatismo, a propaganda ou a pornografia. Contudo, isso não significa, de
modo algum, que a apreciação da obra de arte não possa acarretar em
reflexões para fora de seu campo; basta rememorar alguns dos grandes
livros da humanidade, a começar por Platão, para constatar o sem-número
de reflexões filosóficas, sociais e históricas motivadas por situações
retratadas em obras de ficção ou poemas. Essas reflexões são consequência
natural da contemplação estética da verdadeira Beleza, que reverbera na
alma humana na forma de uma espécie de assombro que desperta verdades
inatas e universais adormecidas no homem. Não obstante, para o estudo da
arte, o que realmente interessa à análise é puramente o problema artístico
da forma: como o artista tratou de transmutar o conteúdo, as vivências, os
temas e as filosofias em arte. Mas não em qualquer arte: a boa arte;
idealmente a excelente.

As demais ligações culturais podem, e devem, ser apontadas numa fase


posterior à análise: a crítica propriamente dita. A crítica literária preocupa-
se, ou deveria se preocupar, não apenas em traduzir a experiência do crítico
— a rigor, um leitor mais experiente — ao leitor médio, ou espectador
comum, sem iniciação artística. Ela deve criar pontes entre esse leitor
médio e uma cultura superior, expondo vínculos e relações antes ocultas;
deve “puxá-lo para cima”. Não há ignorante que seja bom leitor e sabemos
que este último busca sempre “se educar” através da arte, conscientemente
ou não, obtendo alguma compreensão da vida mediante a contemplação da
beleza, ao se confrontar com o “mistério” apresentado pelo discurso
poético. Donde podemos deduzir a importância da educação — ou
formação — que a arte pode nos propiciar.

Uma ideia mais sólida de educação pela arte vem de Platão aos dias de
hoje, de modo que não devemos subestimar o valor da educação da
imaginação (ou pela imaginação), termo usado por Northrop Frye, ou
educação do imaginário, ideia amplamente difundida no Brasil por Olavo
de Carvalho, ainda que utilizada ad prostitutio pelo espectro político
conservador como pretexto para proselitismo ideológico e autopromoção.
Seja qual for o nome dado à teoria, com suas sutis nuanças de diferenças, a
educação imaginativa talvez seja a etapa mais básica e importante de uma
formação humana integral. Esse tipo de educação se dá, idealmente, desde
a tenra idade, através do contato com as coisas mais belas, portanto, mais
próximas dos universais. A privação da beleza durante as fases de
formação do indivíduo provoca uma patologia mental já conhecida pelos
gregos antigos: a apeirokalia. Aquele que não experimenta o que há de
mais belo desde a infância torna-se como que um raquítico intelectual, cuja
mente, por falta um arcabouço que lhe dê sustentação, é incapaz de
compreender os saberes mais elevados.

Tomemos imaginação pela capacidade de construir modelos possíveis da


experiência humana, de forma mais simples: é nosso “órgão” de empatia.
Através da imaginação temos uma consciência maior sobre nossos atos,
como nossos desejos e vontades afetariam o universo ao nosso redor caso
postos no campo da ação, compreendemos melhor nosso lugar no mundo,
além de percebermos melhor a inelegibilidade das coisas nele (em outras
palavras, nossa inteligência, no sentido de percepção da realidade). Nesse
sentido, toda ficção especulativa é pura perda de tempo, mas isso é assunto
para outro momento. Por ora, basta saber que quanto mais a literatura se
afasta do eixo humano ― o plano das ações e dos sentimentos humanos ―
e se abstrai para o eixo temático ― o plano tanto da imaginação
desenfreada quanto de reflexões filosóficas ou sociológicas ―, mais ela se
afasta de sua natureza literária.

A personagem é o alicerce da boa ficção: sobre ela se ergue o aspecto


psicológico e existencial da narrativa. É dela que derivamos o valor
humano da obra, e a educação moral propiciada pela arte se revela na
contemplação dos conflitos humanos, na representação da ação, não através
de reflexões e explicações impostas pelo autor, ainda que descaradamente
disfarçado de narrador onisciente. É vivendo imaginativamente os conflitos
internos, desejos e angústias das personagens, que tiramos lições da arte,
seja por meio do exemplo ou conta-exemplo. Mediante a experiência
imaginativa em confronto com nossas próprias vivências e percepções
sobre a vida, podemos conhecer uma verdade inerente às boas obras.
Conhecer, já dizia já dizia Aristóteles, provoca uma espécie de prazer no
ser humano; e a arte, igualmente como algo a ser conhecido, provoca um
duplo deleite: estético e intelectivo, que não se distinguem na realidade. Se
o que é mostrado ou apreendido é fútil, dificilmente será belo, portanto,
indigno de ser conhecido, experienciado.

Ainda nesse sentido, também devemos lembrar Horácio, para quem a


poesia é um modo singular de educar com deleite; vence o poeta que
melhor unir o útil ao agradável. Mas, para propiciar esse docere cum
delectare, o artista precisa de uma vida de preparo. Nem todos estão
dispostos à dedicação e disciplina quase marcial à arte, além da educação
intelectual ― visto que nossas limitações morais e filosóficas limitam
nossa obra e capacidade técnica, afetando diretamente, é claro, a
cosmovisão retratada. Nenhum ignorante tampouco produziu algo que
preste. Por outro lado, para se possa ensinar deleitado, o artista não pode
mirar na didática, do contrário, termina com uma obra retórica, anti-
poética; de igual forma ele não pode mirar na beleza em si, pois terminará
com algo artificial e afetado. Isso se dá pela mania de querer enfeitar — e
só se enfeita aquilo que está feio. O verdadeiro artista vive na Beleza, suas
ações devem estar em conformidade com o que é belo, bom e verdadeiro,
num exercício diário de excelência, para que possa ter êxito. Ao se doar à
obra, num total esquecimento de si, ele se torna um receptáculo para a
Beleza do mundo — a qual não cria, apenas descobre como parte da
Criação — e transmite da melhor maneira possível suas experiências reais e
imaginárias em linguagem poética, abarcando o indizível numa gama de
impressões e emoções, objetivas ou subjetivas, que de outro modo não
poderiam ser expressas. O sonho ficcional criado pela arte, seu efeito
mágico, se quebra quando o artista tenta explicar e interpretar sua obra ao
observador; por isso, não há nada mais chato que um artista metido a
crítico de sua própria obra: ele não respeita o direito à livre interpretação do
espectador, confinando para sempre os significados de seu trabalho num
cercadinho semântico. Toda poesia é uma profunda investigação do
humano, o “fator moralizador” surgindo na consciência do observador em
meio ao palácio de signos e símbolos que, quanto mais ele adentra, mais
descobre os sentidos e significados ocultos arquitetados pelo artista.

Porém, ainda que toda obra de arte contenha a moral como elemento
constitutivo, para a contemplação, não existe obra bem feita que seja moral
ou imoral, verdadeira ou falsa. Isso significa apenas dizer que o artista pode
mostrar objetos falsos e mesmo imorais, não afetando a qualidade estética
de seu trabalho. Há, contudo, certos erros de concepção de mundo, ou
cosmovisão, que afetam a qualidade da obra mediante uma espécie de
falsificação da realidade. O artista com a imaginação deformada, quer por
ideologia , quer por outra psicopatologia, não consegue perceber a
realidade, tornando-se incapaz de mostrar as coisas tais como são ou como
de fato elas chegam a sua percepção. A imaginação é como que turvada por
uma lente defeituosa, tornando indistinguível um enorme paquiderme de
uma pedra gigantesca. Há artistas que, apesar da loucura, tornam-se
grandes artistas justamente por domarem sua imaginação e suas patologias,
não sucumbindo a essas distorções; por outro lado, aquele que se força a
criar ideologicamente, como militante, logo corrompe seus dons artísticos,
perdendo até mesmo aquilo que julgava ter.
Uma anedota conta que o pintor realista pinta o que vê, o impressionista, o
que sente, mas o engajado, aquilo que o partido manda. Em outras palavras,
ele não está agindo segundo a moral de um verdadeiro artista, vendendo
seu dom por um prato de lentilhas. É preciso que o artista crie de seu
âmago, livrando-se de todos os pactos de hipocrisia social, expressando
sem medo de sanções o que julga ser verdadeiro. Senão uma verdade sobre
o homem, ele nos dá um “retrato do artista”, revelando as profundezas de
sua própria alma. Contudo, uma terceira forma de falsificação, que pode
surgir disso, significa a morte do escritor: uma espécie de autoplágio, a
repetição incessante dos mesmos temas e conflitos, histórias e estruturas
narrativas livro após livro. Geralmente, esse decaimento poético é
acompanhado de um solipsismo atroz, que de pouco em pouco engole o
mundo, restando apenas o eu suas sensações mais mesquinhas. O salto do
particular para o universal inexiste, restando apenas o particular pelo
particular: um sistema planetário inteiro em torno do próprio umbigo.

Por conta dos inúmeros aspectos acidentais que circundam a obra — as


circunstâncias de cada autor, o gosto individual, a parte inconsciente e
involuntária da escrita, o mistério oculto de nossa existência, que foge ao
campo da técnica e que compõe o próprio ser do artista, junto a todos os
seus medos, anseios, amores e paixões que definem os temas de cada artista
individual, cujas inclinações não podem ser de todo controladas, apenas
direcionadas e refinadas — é impossível formular uma lei estética que dite
sumariamente quais temas, estilos, conteúdos e técnicas um artista poderá
abordar, ou de qual forma eles deverão ser abordados. O êxito nessas
escolhas depende exclusivamente de capacidade artística, do gênio
individual. Toda lei estética é geral e abstrata, manifestando-se em cada
caso particular de modos diferentes. É preciso que um bom crítico encontre
a regra particular de cada obra — sua ordem interna— e a hierarquize
conforme uma ordem externa superior; a tradição universal. Ele deverá
levar em conta o que já foi feito de melhor naquele determinado campo, e
avaliar os méritos do artista sem preconceitos ou opiniões elogiosas de
segunda mão.

Aqui vemos mais claramente o papel da crítica literária para a educação do


leitor: o bom crítico é necessariamente alguém com muita leitura, que
relacionará as obras catalogadas ao longo de anos de estudo, decifrando,
traduzindo as mais diversas nuances do texto literário. Só assim ele
revelará ao leitor o que se pode tirar de melhor de um livro. É preciso
sempre se ter em mente que o dever do crítico é em relação aos leitores,
não necessariamente a seus pares ou artistas; a estes últimos, ele tem pouca
ou nenhuma serventia, já que os criadores das obras-primas souberam
executá-las. Não há crítico no mundo que possa ensinar um verdadeiro
artista a criar, justamente por não saber fazê-lo ou nunca tê-lo feito. Mais
úteis são as opiniões de outros artistas que, dominando a disciplina da
forma, lançam-se num mar dialético, sistematicamente analisando obras de
seu ofício, obtendo por resultado uma espécie de crítica quase que
acidental, mas voltada mais a seus pares, os outros artistas, que ao público
leitor.

Existe, portanto, uma relação simbiótica entre crítico e leitor: um existe


perfeitamente para o outro, perdendo o crítico sua razão de ser quando
começa a querer agradar seus pares — outros críticos, ou criticastros —,
em vez de iluminar as mentes dos leitores com seu gênio analítico, seu
poder de síntese e seu refinamento estético. O verdadeiro erudito não é
aquele capaz de tagarelar sobre infinitas obras e curiosidades acadêmicas;
mas aquele capaz de achar um fio condutor no emaranhado da realidade,
inteligindo pontos de outro modo ocultos, sem sua interferência,
explicando-os de modo singelo ao leigo. O público leitor, por sua vez,
definha na falta daquela opinião letrada que deveria guiá-lo para longe dos
manguezais de mediocridade e mau gosto literário.

Assim, o crítico exerce uma função não de todo agradável ao artista:


explicar o porquê das coisas serem como são. Algo que para o espírito
criador é tão evidente quanto a leveza dos pássaros, não é tão óbvio quanto
ele próprio pensa: e ele perde a paciência de explicar seus gostos e
preferências artísticas aos leigos. Por isso, a maior parte dos gênios
artísticos prefere a resignação e o silêncio. O crítico, para ele, exerce uma
função execrável comparada à altura de seus voos literários. Mas ele sabe
que precisa do crítico, principalmente por não ser sua função explicar sua
própria obra; e tampouco deveria fazê-lo, pois não interessa ao público o
que o artista quis dizer, mas o que ele efetivamente disse.

Os críticos observam a literatura de um extremo e os escritores do outro,


não num cabo de guerra, mas num jogo de cooperação por amor à arte.
Nenhum crítico pode entender a angústia criativa, nem nenhuma filosofia
oferece dimensão do que o ofício exige ao artista, apenas a prática ensina
isso. Embora todos os escritores devam ser críticos em algum nível, ainda
que acidentalmente, o crítico puro não é um artista. A atividade crítica
demanda sua dose de dedicação intelectual, que extenua o intelecto para a
criação artística; e aqui digo como artista: é dispendioso exercer ambas as
funções ao mesmo tempo. Faço-o — e digo sem medo de ser injusto ou
tomado por soberbo — por inexistir crítica literária séria na República de
Banânia.

É preciso que se forme uma nova geração de críticos, conscientes de seu


dever social, que propague a verdadeira literatura entre os leitores; não
enterrados em suas tocas subterrâneas, falando apenas para sua
congregação de toupeiras, ou recluso numa alta torre de marfim, onde o
próprio oxigênio, essencial a circulação de ideias, é escasso. Nos tempos
em que vivemos, a formação dos leitores é uma obrigação moral que beira
o trabalho do evangelista, pois o contato com a Beleza, fornecido pela
Literatura, tem papel fundamental na manutenção do tecido da civilização.
Quando best-sellers e passatempos de minuto se tornam as principais obras
em circulação, é sintoma de que a sociedade padece de uma profunda
enfermidade espiritual e toda uma dimensão metafísica da realidade se
perde, dando espaço ao mero entretenimento. Nesse cenário, algo se perdeu
no decorrer das décadas; a Cultura não é algo estático, que uma vez
estabelecida, perdura pela eternidade, feito uma pedra. Ela precisa de
zelotes que a defendam e passem-na à geração posterior. Cada geração da
humanidade tem apenas duas obrigações fundamentais: se formar e passar
seu conhecimento — no qual se confunde também o das gerações
anteriores — adiante. Quando esse elo se parte, basta apenas duas ou três
gerações para que se caia novamente mais completa barbárie; abismo para
a qual, acredito, estamos rumando desde a segunda metade do século XX.

O folhetim, centro de milhões de imaginações flamejantes, é apenas a


fagulha que reduzirá Alexandria às cinzas. Dificilmente as gerações mais
jovens pegarão um bom livro, ficcional ou não, daqueles que abalam as
estruturas interiores do ser por livre e espontânea vontade. Nenhum
adolescente, que não tenha uma estante munida de bons livros em casa,
acorda com o desejo de ler “Guerra e Paz” ou “Crítica da Razão Pura”. Se
tudo o que se tem à mão são livros comerciais, subliteratura de gênero, tais
como aventuras policialescas, distopias políticas socialistas enrustidas,
fantasias tresloucadas onde o herói sempre será salvo no último minuto por
forças ocultas sem que nada de mal jamais lhe ocorra, o jovem se corrompe
a partir da própria imaginação, que posteriormente se tornará vontade e
moldará suas ações. Sem quem o tire dessas circunstâncias, salvo um forte
gênio e vontade pessoal, o meio encerrará a mente desse leitor num mar de
mediocridade, sucumbindo-lhe a inteligência.

Por outro lado, se houver na vida desse indivíduo um bom leitor que seja
— pai, mãe, avô — dotado de sagacidade e clareza, capaz de se fazer
entender e transmitir alguma instrução a esse jovem leitor, há alguma
esperança de que a leitura, de fato, abra-lhe a mente para obras mais
elevadas. Aos que me interpelassem, acusando-me de elitismo, valendo-se
do fato de estarmos no Brasil, e que propagar a leitura já seria grande
avanço, respondo apenas que nem ao menos estou me referindo a uma
iniciação artística mais complexa, apenas a um mínimo de instrução e
exemplo no seio familiar.
A educação artística, em minha opinião, é sine qua non para o melhor
proveito das artes, e não é um elemento tão inacessível quanto se poderia
supor. Livros e críticas são mais acessíveis do que nunca, e um indivíduo
com força de vontade pode se valer de publicações como esta para se
autoeducar. Mas esse ímpeto dificilmente surgirá sem as condições
adequadas, e nossa sociedade precisamente as dificulta, embora não as
impeça de todo. Por isso a necessidade de uma nova geração de críticos e
escritores bem formados, alheios às porcarias ideológicas transmitidas
pelo mainstream da “cultura pop” ou das ruínas acadêmicas. É preciso
buscar certo purismo intelectual para compreender o mundo para além das
meras sombras. Para tal, é preciso blindar-se do efêmero, do particular, que
turvam a mente para o universal.

Hoje, qualquer ignorante é capaz de produzir conteúdos para a internet,


arrogando-se de autoridade devido às métricas de suas redes sociais, como
se ser ouvido por um número maior ou menor de pessoas fosse sinônimo de
qualidade. Apesar das facilidades, o aliteratado sequer se preocupam em
construir uma obra, pois a mediocridade vive de publicidade, não de
trabalhos duradouros: parecer traz mais lucros do que o ser. Enquanto isso,
o gênio pode publicar seu pensamento com a mesma facilidade, apesar de
correr o risco de ter a voz abafada pelos gritos dissonantes da turba dos
medíocres, que vencem momentaneamente pela quantidade. Ele terá de se
fazer ouvir ou pela força, ou pela paciência, perdurando numa espécie de
resignação até que as fraudes sejam relegadas ao mutismo do
esquecimento.

Por isso, é indispensável que tanto o crítico quanto o artista desenvolvam


uma ética de trabalho impecável, preocupando-se mais com seu êxito
intelectual, seu brilho pessoal e único que o guiará — e aos seus liderados
— pela selva escura das mentiras, feiuras e maldades, na qual um
intelectual prova seu valor. Por onde olhe, forças corruptoras tentarão
dissuadi-lo da verdade, bondade e beleza, sendo optar pelos seus inversos o
caminho mais fácil para sobreviver. Em determinado ponto, ambos se
depararão, de um lado, com o mercado editorial dos best-sellers, com seu
público amplo e promessas de dinheiro fácil; do outro lado,
o establishment, composto mais ou menos pelos mesmas empresas
editoriais, porém com um verniz de vanguardismo e engajamento
descarado. São apenas duas cabeças da mesma hidra. Optar pelas pelas
glórias mundanas é o mesmo que ser engolido pelo monstro, o que significa
a morte eterna do gênio. O que não quer dizer que o verdadeiro talento seja
condenado a uma existência de impopularidade e incompreensão, mas que
não deve se vender nem se deixar dissuadir pela agitação do mundo.
Quantos livros, das prateleiras de mais vendidos, não foram vítimas do
tempo voraz? E de quantos críticos badalados, alegria para aquele mesmo
banquete de traças, se ouve falar? O que perdura é o talento individual,
independente das honrarias: Liev Tolstói perdeu o primeiro Nobel para
Sully Prudhomme. Hoje, quem é Tolstói e quem é Prdudhomme? Um
prêmio nada significa; é vento que vai e volta sobre seus giros. A Tolstói
foi destinada singular imortalidade conferida a poucos, justamente pelo
peso de suas obras; já o parnasiano Prudhomme foi imortalizado apenas em
placas de ruas francesas que ostentam seu nome, despertando interesse de
uns poucos críticos arqueológicos.

Hoje, os prêmios brasileiros — sejam quais fores: cágados, jabutis ou


outros quelônios — são incapazes de reconhecer a qualidade de uma obra.
Isso se dá tanto pela esterilidade intelectual da crítica quanto pela
impotência literária dos escritores: não há obra-prima que seja reconhecida
por uma jurados ineptos, salvo à sorte; tampouco há juri, ainda que
capacitado, capaz de transformar merda em ouro, por dourados que sejam
os louros.

Por fim, acima de tudo, é urgente quebrar o monopólio da política de boa


vizinhança, tão caro ao brasileiro, incapaz de ouvir críticas sem levá-las
como insultos personalíssimos. O crítico não deveria temer ressentimentos
ou represálias e boicotes, mesmo que a quebra daquela política signifique
que ouvirá respostas atravessadas, para sempre mal-afamado em certos
círculos de influência. Ser benquisto por farsantes é caro aos alpinistas
sociais. Ao verdadeiro intelectual, não. O homem vulgar pode se chocar
com a opinião alheia, principalmente dos estudiosos, cujos vastos
horizontes do conhecimento sequer lhe seriam possíveis de imaginar; já o
intelectual não tem esse direito, não pode se indignar com a opinião alheia,
salvo os casos de verdadeiras atrocidades morais contra a humanidade. Ele
deve tentar compreender as coisas com a mais fria dialética, sem
pedantismos e afetações afrescalhadas. E deve dizer a verdade, que com
certeza ofenderá a muitos. Onde houver críticas, a ofensa não é somente
um risco: é uma probabilidade estatística.

É preciso, portanto, lutar pelo direito de ser ofensivo, sem se esquecer que
se pode ser ofendido. Somente com tal liberdade será possível o
florescimento de novas ideias. Se a critica que estiver errada, podemos
ignorá-la ou rebatê-la; se estiver correta, podemos rechaçá-la de pronto, por
orgulho, mas podemos também levá-la em profunda consideração,
agradecendo nosso crítico por encontrar um erro, equívoco ou escotoma,
nos poupando tempo e esforços numa reformulação do pensamento ou da
obra. Mas, apesar das reveses, nunca haverá impedimentos àqueles que
honestamente busquem a verdade, o bem e a beleza, pois, já dizia o
evangelista: o Reino dos céus é arrebatado à força e são os violentos que o
conquistam.

LITERATURA FANTÁSTICA E FANTASIA


Por Paulo Cantarelli / 19 de setembro de 2018 
Recentemente recebi, por nosso grupo do Facebook, uma pergunta do
Paulo Bastos:

Sou aluno do COF e o Professor Olavo [de Carvalho] não é entusiasta do


realismo mágico de Gabriel García Márquez e Jorge Luís Borges, entre
outros. Em suma, para OC ou se faz realismo ou fantasia. Entendo o ponto
dele. Por outro lado, toda vez que leio Cem Anos de Solidão, identifico-me
com um personagem diferente. Eles têm profundidade psicológica. Bom,
gostaria de saber a opinião de vocês, que são mais entendidos no assunto.
Há algum tempo venho adiando o artigo sobre Literatura Fantástica. Não
custa relembrar a definição de real e fantástico na literatura dada por
Vargas Llosa em “Cartas a um jovem escritor”:

“Chamemos de real ou realista (por oposição a fantástico) todas as


pessoas, coisas ou acontecimentos identificáveis e comprováveis através
da nossa própria experiência de mundo e rotulemos de fantástico tudo o
que não se encaixa nessa categoria. A noção de fantástico, assim, abrange
todo um leque de níveis distintos: o mágico, o miraculoso, o lendário, o
mítico, etc.”
Discussões sobre meras tipologias das subcategorias de fantástico não nos
interessam para compreendermos a qualidade literária de uma obra.
Todorov e sua “Introdução à literatura fantástica” que me desculpe, mas a
classificação de coisas que não existem é de pouca serventia prática para os
escritores; deixemo-la aos críticos. Posto isso de lado, pouco interessa se
estamos diante do absurdo, do maravilhoso, da fantasia, do mítico, do
surreal. O que interessa é notar o que há de realidade nas delicadas
filigranas tecidas pelo fantástico, a condição humana transmitida.

Eis o problema na prosa de alguns escritores ― nisso incluo Tolkien e


mesmo Jorge Luís Borges ― que se apaixonam demais pelo tema: a
fantasia é o objeto de suas investigações literárias, o humano apenas um
fator. Eles movem o eixo da ficção das personagens para o cenário,
situações ou temas, entregam-se à fantasia tresloucada, à imaginação
desvairada, à pura especulação. Tolkien estava mais interessado em
construir um atlas fictício, cheio de línguas e geografia imaginárias,
cartógrafo, linguista e historiador dum mundo que não existe. Asimov se
perdia na masturbação mental das especulações de mecanismos científicos
igualmente inexistentes, sem mencionar o desleixo com o estilo.

É digno de nota que, felizmente, não é o que ocorre nos poemas de Borges;
porém basta uma breve lida em contos como “Biblioteca de Babel” para
notar que dificilmente o foco é o próprio Homem e, neste conto em
específico, dificilmente temos uma narrativa. Borges também possui
pouquíssima sofisticação no uso dos narradores ― algo que encontramos
fartamente em Homero ― e ama misturar narrativas com ensaio, há muita
grandiloquência e pouca beleza objetiva.

Minhas afirmações têm consequências graves, mas são originadas nos


problemas de estilo e forma dos textos dos autores citados ― de modo que
o mais justo seria um exame mais detalhado dos erros particulares de cada
caso isolado. Mas adianto: se a forma tivesse sido tratada com esmero
técnico, esses problemas não existiriam.

Falando em Homero, devemos remeter sempre ao pai-de-todos quando o


assunto é Técnica. Nele encontramos esquemas sofisticados que vão desde
a construção de cenas às vozes narrativas. Também em Homero
encontramos a primeira das tragédias ― a saga de Aquiles ― e a primeira
fantasia. No caso específico de Ilíada, a despeito de ser classificada com
narrativa mítica ou lendária, há sempre um realismo muito forte, embora
não seja um realismo mágico ― que, segundo David Lodge, acontece
“quando eventos maravilhosos e impossíveis ocorrem no que, de outro
modo, pareceria ser uma narrativa realista”. Como eu disse, a tipologia aqui
não nos interessa, e sim como o tema ― ou elemento ― fantástico se
apresenta no texto modificando tanto a técnica quanto a estrutura da obra
em suas próprias raízes.

Para ilustrar, vejamos o Canto XIII da Ilíada (496-508). O poeta age como
um fotógrafo da natureza e das emoções humanas, nos impressionando com
cor e forma ― muitos dos grandes escritores, a quem consideramos
inovadores ímpares, a exemplo de Flaubert ou Hemingway, fazem uso
muito similar das técnicas.

À volta do cadáver de Alcátoo arremeteram uns contra os outros

com lanças compridas; em torno dos peitos o bronze

ecoava de modo medonho ao alvejarem-se uns aos outros

na multidão. Acima dos outros, dois homens belicosos,

Enéias e Idomeneu, ambos iguais de Ares, desejavam


reciprocamente rasgar a carne do outro com o bronze afiado.

Foi Enéias que primeiro arremessou contra Idomeneu;

mas este, olhando-o de frente, evitou a brônzea lança,

e o dardo de Eneias cravou-se, fremente, na terra,

pois fora em vão que o arremessara da mão possante.

Porém Idomeneu arremessou e atingiu Enômao no meio

do ventre; fendeu a superfície da couraça e para fora fez o bronze

entornar os intestinos. Tombou na poeira e agarrou a terra.


Nos impressiona o realismo, o detalhe das descrições e a ausência completa
de ornamentos no texto (penduricalhos). Temos uma economia que revela o
essencial. Também nos impressiona, como em outros trechos, a
humanidade dos heróis perante a morte: alguns investem contra o inimigo
até as últimas forças, outros se valem de emboscadas para escapar, e ainda
há os que fogem ― a exemplo do Canto V (55-58), em que Escamândrio
vira-se para correr e Menelau o mata pelas costas:

“Mas o Atrida Menelau, famoso lanceiro,

acertou-lhe com a lança nas costas enquanto fugia,

no meio dos ombros, empurrando-a até sair pelo peito.

Tombou de cara no chão e sobre ele ressoaram as armas.”


Sobre as ações e comportamentos humanos em Homero, nos lembra Emile
Victor Rieu, na introdução inglesa de 1950 da “Ilíada”:

“O interesse principal de Homero é o estudo dos seres humanos e deuses


humanos. Ele se dispõe a rejeitar ou atenuar o grotesco e o paranormal. A
bela Helena não saiu de um ovo e, à parte uma referência perfunctória ao
Julgamento de Páris, foi sua fragilidade humana e a de seu sedutor que
provocaram a Guerra de Troia. O tratamento que ele dá aos deuses e a
suas muitas intervenções e resgates na batalha está muito a par com isso.
[…] Em suma, Homero se inclina a pairar sobre o nosso lado da linha que
separa o narrador natural do sobrenatural ― não que eu, no que me diz
respeito, me recuse a transpô-la de quando em quando, orientado por
semelhante guia. ”
Ou seja, as situações fantásticas servem apenas de pretexto para nos evocar
a condição humana. Gabriel García Márquez é um perfeito exemplo disso.
Além da técnica impecável de “Cem Anos de Solidão” ― que merece uma
análise à parte ―, temos as mais variadas e universais personagens, que
poderíamos encontrar no passado de qualquer família mundo afora. Sem
contar os diversos e discretos paralelos bíblicos ― feito o implacável
dilúvio que assola Macondo por cinco anos ―, além do final arrebatador,
em que Aureliano Babilônia se confronta com uma revelação profética da
eternidade; e compreende, por fim, a inevitável queda dos Buendía. É um
romance que nos faz entender o peso do sangue e do tempo sobre uma
família, e o quanto estamos fadados a cometer os mesmos erros de nossos
antepassados. A menos, claro, que compreendamos isso. [Qualquer mera
coincidência com a Análise do Destino ― Schicksalsanalyse ―, do
psiquiatra húngaro L. Szondi, é pura semelhança…]

Vejamos como Gabriel García Márquez monta com perfeição a causalidade


dentro do romance, misturando realidade e fantasia, com um frio
sobrenatural que aflige o Coronel Aureliano Buendía. Começa como mera
menção, apenas um detalhe, que será desenvolvido algumas páginas
depois:

[…] quando o Coronel Aureliano Buendía voltou a Macondo, o


desconcerto se transformou em espanto. Até Úrsula se surpreendeu com o
quanto havia mudado. Chegou na calada, sem escolta, embrulhado numa
manta apesar do calor, e com três amantes que instalou numa mesma casa,
onde passava a maior parte do tempo estendido numa rede.
A imagem é bastante nítida, então Gabo, numa técnica bastante homérica
de ação retardada ― isto é, mostrar um acontecimento e depois voltar a
suas origens ― nos dá uma cena do Coronel Aureliano retornando a
Macondo após dezenas de revoluções frustradas, depois volta a narrativa ao
motivo do Coronel estar naquela situação, tempos antes, durante uma
reunião dos revolucionários:

Então, um capitão muito jovem que sempre se havia distinguido pela


timidez levantou o dedo cauteloso:

— É muito simples, coronel — propôs — nós temos de matá-lo.

O Coronel Aureliano Buendía não se assustou com a frieza da proposta, e


sim com a forma como ela se antecipou uma fração de segundo ao seu
próprio pensamento.

— Não esperem que eu dê essa ordem — disse. E não a deu, realmente.


Mas quinze dias depois o General Teófilo Vargas foi despedaçado a golpes
de facão numa emboscada, e o Coronel Aureliano Buendía assumiu o
poder central. Na mesma noite em que a sua autoridade foi reconhecida
por todos os comandos rebeldes, acordou sobressaltado, pedindo aos
gritos uma manta. Um frio interior que lhe rachava os ossos e o
mortificava inclusive em pleno sol impediu-lhe de dormir bem por vários
meses, até que se transformou num hábito. A embriaguez do poder
começou a se decompor em faixas de tédio. Procurando um remédio
contra o frio, mandou fuzilar o jovem oficial que propôs o assassinato do
General Teófilo Vargas. As suas ordens eram cumpridas antes de serem
anunciadas, mesmo antes que ele as concebesse, e sempre iam muito mais
longe do que ele se atreveria a fazê-las chegar. Extraviado na solidão do
seu imenso poder, começou a perder o rumo.
Temos o frio sobrenatural que assalta o Coronel Aureliano ― além das
ordens cumpridas sem que sejam proferidas que abalam a consciência ―,
um frio fantástico, mas não fantasioso; é um frio metafórico. Não à toa
outra personagem, o Coronel Gerineldo Márquez, diz pouco antes: “Cuide
do coração, Aureliano, você está apodrecendo vivo. ”

As ordens não proferidas são pretexto para paranoias e neuroses, já o frio é


provocado pelas atrocidades que o Coronel Aureliano cometeu na guerra. É
através dessa situação fantástica que temos uma manifestação física e
literal (na realidade literária) do remorso, embora o que a personagem
manifeste conscientemente seja apenas rancor e frustração. Os “eventos
maravilhosos e impossíveis”, nesta situação, nos mostram sentimentos
provenientes de experiências bastante realistas e possíveis.

Gabo conhecia muito bem as maiores narrativas da humanidade e, durante


a leitura, não pude deixar de notar uma pequena semelhança com esta
passagem bíblica:

“O rei Davi estava velho, avançado em idade, e por mais que o cobrissem
de roupas, não se aquecia. Seus familiares disseram-lhe: busquemos para
nosso senhor, o rei, uma donzela virgem que sirva o rei e tenha cuidado
dele, e durma em seu seio para que ele se aqueça. ”
― Primeiro Livro dos Reis, 1:1-2.
Com isso, não quero dizer que Gabo fez uma alegoria parcial ou total do
texto bíblico ― afirmar, por exemplo, que Aureliano Buendía é o rei Davi,
que Remédios, A Bela, é a Virgem Maria no momento da Assunção, ou
que, numa hipótese absurda, José Arcádio Buendía é alguma espécie de
Nabucodonosor aturdido por sonhos impossíveis ―, apenas mostro um
breve paralelo, intencional ou não, que está presente no resultado final.
Vemos o Coronel chegar à cidade envolto numa manta que nunca o aquece
(o que nos é dito depois) e acompanhado de mulheres que, ao contrário do
rei Davi, ele provavelmente possuiu na tentativa de se aquecer. Após
inúmeras sutis referências ― não citações escancaradas, mas detalhes
muito discretamente colocados na narrativa ― é impossível não suspeitar
de que Gabo se divertia ao nos deixar essas pequenas pistas e especulações
― e ao nega-las por completo depois, em entrevistas.

Talvez isso tudo pareça um pouco absurdo ou forçado a alguns leitores,


mas garanto que ainda estou em meu direito de leitor, dentro dos limites de
interpretação do texto. É por isso que, em literatura, a metáfora geralmente
é superior ao discurso. Enquanto o discurso limita, mesmo que muitas
vezes feito habilmente sob forma de monólogo, nos expondo unidades de
pensamento (ideias) linear e logicamente, a metáfora expande nossos
limites interpretativos. É o velho adágio “uma imagem vale mais do que
mil palavras”. Isso se dá pelo fato de que a metáfora trabalha com símbolos
e signos concretos que não são a semelhança de algo (símile), mas são esse
algo integralmente e em sua essência, ou seja: o “isto é aquilo” ― como
disse Aristóteles, “a aplicação de um nome que pertence a outra coisa”.

A questão talvez fique mais clara com o clássico parágrafo inicial de “A


metamorfose”, de Kafka:

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa


encontrou-se metamorfoseado num inseto monstruoso. ”
Talvez um escritor mais realista tivesse escrito:
Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa
encontrou-se como se metamorfoseado num inseto monstruoso.
O como se é um símile, uma analogia. Não temos mais a literalidade,
perdemos grande parte da força narrativa. Claro, o símile tem seu lugar de
destaque, mas nos momentos certos. Ao criar a imagem dum sujeitinho
medíocre metamorfoseado num inseto, Kafka dá um passo além, avança e
muito no significado do texto. O fantástico nos dá novas possibilidades de
reinterpretar a condição humana. Não desmereço, com isso, o
consagrado to be or not to be, ou o to die, to sleep, to sleep, perchance to
dream. Obviamente, o velho Hamlet e seu monólogo sobre suicídio e
depressão têm beleza ímpar, mas devemos convir que é muito mais fácil
imitar Shakespeare do que ser Shakespeare ― e tentar criar uma imagem
nova. Kafka nos dá outros caminhos interpretativos, além da grande ironia
de que a maior das metamorfoses ocorre com a família Samsa, e não com o
próprio Gregor, que, mesmo sendo fisicamente um inseto, é moralmente
superior em relação a pai, mãe e irmã, as verdadeiras baratas da casa.

Seja por eventos maravilhosos e impossíveis em meio ao que deveria ser


uma história realista, ou ainda pelo surrealismo duma abrupta metamorfose,
o fato é que o fantástico tanto nos maravilha quanto nos aterroriza,
inquietando algo antes dormente nas profundezas da alma humana: um
sentimento que remonta a um tempo imemorial em que deuses caminham
em meio a guerreiros. O escritor pode sempre ― e muito bem ― se utilizar
desses elementos para criar novas possibilidades narrativas, porém os
dilemas morais representados no fantástico serão sempre desdobramento de
dilemas concretos originados na experiência do mundo real. Em literatura
todo tema é válido, desde que sirva a uma profunda investigação do
humano.

ARTE MORAL
Por Paulo Cantarelli / 1 de outubro de 2018 
Ouvindo um debate entre os escritores John Gardner e William Gass, é
engraçado notar quanto os escritores pós modernos interpretam mal a moral
na ficção.

Gardner afirma, em seu “On Moral Fiction”, que toda arte é moral. Com
isso, ele quer dizer duas coisas:

I. Uma obra de arte moral é fiel a suas regras integrais e à tradição literária.
[Isto é, formalmente bem-feita. Assim, podemos inferir que é dever moral
do escritor dar o melhor de suas capacidades.]

II. Ela promove moralidade.


[Ou seja, provoca por si só — sem a necessidade de didatismo — uma
análise profunda do observador sobre seus próprios valores em confronto
com os da obra contemplada.]

Diante disso, o escritor William Gass tentou rebater os argumentos dizendo


que a função da arte é a beleza — o que é uma absoluta verdade. Porém
não notou que ambos estavam se referindo a aspectos diferentes da
literatura, sem que houvesse uma discordância real. Gardner fala em um
sentido muito mais amplo e muito além análise da técnica do texto ou do
momento da escrita em si: ele se refere à própria cosmovisão necessária
para ser um escritor.

A busca da beleza como ideal artístico deve ser incentivada, mas nunca
super-valorizada. Costumo dizer que a arte serve à beleza e a beleza à
condição humana. Beleza sem condição humana é um ídolo vazio e sem
vida feito o bezerro de ouro idolatrado pelos filhos de Israel. A busca pela
beleza, nesse sentido, basta ao verdadeiro artista, pois irá levar,
inevitavelmente — e digo por experiência própria — a algum
confrontamento maior sobre sobre os verdadeiros sentidos da existência.
Gardner de maneira alguma descarta a importância formal ou a deixa em
segundo plano — tanto que esse é o primeiro significado de “arte moral”
—, nem descarta algo que Gustave Flaubert, ao escrever, se questionava:
sim, o estilo está bom… Mas bom para quê?

Acontece que a grande dificuldade linguística que surge quando falamos de


arte é que é preciso fazer abstrações — isto é, separar intelectualmente
aquilo que, na realidade, não se separa. Quando criticamos uma obra de
arte, devemos analisa-la de modo mais didático possível: tratar de cada
aspecto em isolado, dos mais superficiais aos mais profundos, na esperança
de que o leitor conseguirá juntar o todo — o que nem sempre ocorre.

Então Gardner perguntou a Gass: diante de dois trabalhos com estilo


impecável, sendo que um deles lhe pareça falso e outro verdadeiro — no
qual o escritor deu o melhor de si tentado expressar algo que sente
verdadeiramente em cada palavra —, qual dos dois você escolheria?

A resposta de Gass, obviamente, foi a segunda opção.

Isso também explica o porquê de alguns clássicos impróprios — como eu


chamo — serem clássicos: narrativas cujas propriedades formais são falhas,
e que até se desviam das funções originais do discurso poético para provar
um ponto ou ideia, caem na retórica, porém se sustentam numa experiência
verdadeira e única da vida. Em outras palavras: não são os méritos
propriamente — ou exclusivamente — literários que devem ser levados em
conta nesse tipo de leitura caso queira se extrair algo do livro. Isso pode
explicar a consagração de autores feito Balzac, Dostoiévski ou mesmo, no
âmbito nacional, Lima Barreto, mas creio que nunca encontrarei explicação
para autores em que a situação inversa ocorre: trabalhos tidos como
consagrados que, teoricamente, têm um acabamento formal impecável sem
verdade alguma — se é que isso é possível, boa forma sem conteúdo —,
feito os poetas parnasianos cujos versos mais parecem bolhas de sabão:
bonitas, porém vazias. Deste segundo tipo, nossa literatura está lotada.

Quando dizemos que a moral não se confunde com a beleza para a


apreciação artística, isso é verdade, basta dar uma lida em narrativas
clássicas: de Édipo a Hamlet, de Ilíada a Madame Bovary, suspendemos
momentaneamente nosso próprio juízo moral para entrarmos na pele das
personagens, julgamos e sentimos o mundo através do olhar delas,
independente de concordarmos ou não com suas ações.

Portanto, beleza, bem e verdade não se confundem — cada qual com seus
respectivos domínios e formas de julgamento. E essa independência é
ótima para o artista. Porém, daí a chegar à conclusão de que bem e verdade
estão completamente fora da obra de arte é um engano. Toda boa arte — a
literatura em especial — é constituída, além dos elementos formais, de
elementos materiais: a própria vida. E da vida não escapam bem, verdade e
beleza. Todo conflito, numa narrativa, é constituído com base nos dilemas
morais do ser humano: ser ou não ser, agir ou não agir, matar ou morrer?

Há belezas que, de certo modo, poderiam ser consideradas falsas e, até


mesmo, imorais, mas não é porque as tragédias de Édipo e Hamlet são
hediondas que vamos deixar de nos compadecer por eles; não é porque
Emma Bovary é adúltera que iremos condená-la. As tragédias dessas
personagens são belas e continuarão sendo, pois a moral, a verdade e seus
inversos, dotados dum acabamento formal, se transformam num objeto de
beleza e contemplação.

A FALSIFICAÇÃO DO LIRISMO NO POEMA


Por Paulo Cantarelli / 7 de novembro de 2018 
Antes de começar a análise, gostaria de lembrar de que não sou poeta,
portanto tudo o que eu disser será da perspectiva puramente crítica, de
leitor e não criador, ao contrário dos demais artigos sobre prosa de ficção,
em que me posiciono como escritor. Métrica e forma específicas do Poema
não serão abordadas diretamente, assim como outros problemas próprios de
sua criação poética. Não que isso seja uma defesa ao verso livre
inconsequente e inconsciente, de modo algum, é simplesmente que não me
atento tanto para esses detalhes, nem os conheço tão profundamente.
Conhecê-los intimamente é dever do poeta. O poeta deve, sim, saber todas
as formas do poema, assim como suas dificuldades, e unir esses elementos
aos princípios estéticos que aqui apresento. Certos aspectos gerais da arte
não objetiva, esses princípios estéticos, são aplicados em qualquer gênero
literário (prosa, poesia ou teatro). E a principal regra da Literatura é: uma
imagem vale mais do que mil palavras.

O KITSCH

No sentido empregado aqui, o lirismo não é sinônimo de “prosa poética”


que Rimabud ou Guimarães Rosa deram. Lirismo aqui é o lirismo
comedido, político, raquítico e sifilítico, como dizia Manuel Bandeira. Esse
tipo de lirismo — melhor dizendo falso lirismo — é um sentimentalismo,
uma falsificação da arte que redireciona a emoção do objeto para o sujeito,
criando uma falsa sensação de emoção, sem o real preço de criá-la. É muito
próximo, ou idêntico, ao Kitsch, definido muito bem por Milan Kundera:

O Kitsch nos provoca duas lágrimas contínuas. A primeira diz: como é


bom ver crianças correndo na grama! A segunda diz: como é bom nos
emocionarmos, junto a toda humanidade, por ver crianças correndo na
grama!

SOM, FORMA E COR

Desta vez vamos para o gênero que já foi considerado a mais alta literatura,
e que hoje foi reduzido, em grande parte, a uma prosa mesquinha, sem cor
nem brilho, entrecortada e distribuída aleatoriamente em “versos”. A
exemplo disso, temos Paulo Leminski, cujos poemas parecem mais frases
de efeito que muito bem poderiam ser tweets. Mas não é dele de quem irei
tratar hoje.

Vamos ao caso de Conceição Evaristo:

Vozes mulheres

A voz da minha bisavó

Ecoou criança

nos porões do navio.

ecoou lamentos

de uma infância perdida. A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos


com rimas de sangue

fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.

Hoje, com o mundo cheio de escritores envolvidos em militâncias,


movimento disso e daquilo, a literatura sofreu, tornou-se engajada. Isso,
como já repeti várias vezes, é arte imprópria (Benedetto Croce nem de arte
chamaria, embora não seja este o caso, Evaristo é poeta e nos cabe julgá-la
pelo mérito do trabalho). Não nos interessa se a poeta é do movimento
negro, branco, indígena, asiático, hétero, homossexual, transexual,
pansexual, pobre, rico, burguês, proletário. Nos interessa a condição
humana; e com isso qualquer marxismo, criticismo social ou outra
ideologia são convidados a se retirar da análise da obra de Arte. Para isso
temos a Estética, que é universal por tratar do humano em sua forma mais
pura; ao poeta cabe o Universal, aquilo que é compartilhado por toda
humanidade.

Antes de continuar a crítica a Evaristo, façamos uma análise comparada


com “Morte e Vida Severina”, de João Cabral. O poema começa assim:

— O meu nome é Severino,


como não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

como há muitos Severinos

com mães chamadas Maria,

fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:

há muitos na freguesia,

por causa de um coronel

que se chamou Zacarias

e que foi o mais antigo

senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo

ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino

da Maria do Zacarias,

lá da serra da Costela,

limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:

se ao menos mais cinco havia

com nome de Severino

filhos de tantas Marias


mulheres de outros tantos,

já finados, Zacarias,

vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra,

no mesmo ventre crescido

sobre as mesmas pernas finas

e iguais também porque o sangue,

que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte Severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte Severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos


iguais em tudo e na sina:

a de abrandar estas pedras

suando-se muito em cima,

a de tentar despertar

terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar

alguns roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam

melhor Vossas Senhorias

e melhor possam seguir

a história de minha vida,

passo a ser o Severino

que em vossa presença emigra.

Em contrapartida ao que acabamos de ler em Cabral, o poema “Vozes


Mulheres”, de Conceição Evaristo, não aborda a condição humana, assim
como na maioria dos poemas dela. Aborda a condição feminina-negra, que
poderia ser uma condição completamente válida de ser explorada, não fosse
um fator que falta: a transcendência; o aspecto universal de que tanto falo.

O poema de Cabral, por outro lado, não aborda a condição nordestina, mas
a condição de toda a humanidade perante a morte e a miséria. Por serem
temas polêmicos, ou minimamente sensíveis nos dias de hoje, podemos
dizer que tratam-se de dois grupos étnicos e sociais que passaram (e
passam) por situações de preconceito e baixa qualidade de vida, os negros e
os nordestinos retirantes. Mas não há espaço para esse tipo de discussão na
literatura, não há espaço para o que quer que esteja fora dela.

João Cabral, se fosse um poeta ruim, diria: “Severino, filho miséria, não
tinha sobrenome, igual a todos os miseráveis da seca, oprimido pelos
coronéis etc., etc., etc…”; ao contrário diz: “O meu nome é Severino, como
não tenho outro de pia”, ou seja, Severino sem sobrenome ou outro nome
de batismo (de pia), Severino sem mais nada. O nome, depois do corpo,
talvez seja a coisa mais pessoal dum ser humano, tirando-nos o nome, não
temos identidade, desejos, esperanças; somos desumanizados, nos
tornamos apenas um pedaço de carne que não se distingue dos outros, parte
de uma massa. Em qualquer obra de ficção, o nome é uma metáfora para o
homem. O nome é o homem.

Ao se comparar com o poema de Evaristo, vemos no poema dela o tão


falado lirismo (falsificado): “A voz de minha avó / ecoou obediência / aos
brancos-donos de tudo” ou “A voz de minha mãe / ecoou baixinho revolta /
no fundo das cozinhas alheias / debaixo das trouxas / roupagens sujas dos
brancos”.

De fato, são inegáveis os efeitos da escravidão até os dias de hoje, porém


também o é o das secas que assolam o nordeste e do regime autoritário dos
coronéis, que ainda se perpetua nos descasos políticos. Então, João Cabral
nos mostra esse traço cultural: “Mas isso ainda diz pouco: / há muitos na
freguesia, / por causa de um coronel / que se chamou Zacarias / e que foi o
mais antigo / senhor desta sesmaria”.

Vemos os traços de sentimentalismo naquela: “A minha voz ainda / ecoa


versos perplexos / com rimas de sangue / e / fome”. A palavra “perplexo”,
assim como outras expressões utilizadas anteriormente, como “brancos-
donos-de-tudo” ou “ecoou baixinho de revolta”, nos revelam demais, nos
transmitem a opinião da autora acerca do texto (e bastante ressentimento).
Tudo bem, que retrate a fome, as injustiças e o racismo, mas o faça com
imagens! “Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida: / na mesma
cabeça grande / que a custo é que se equilibra, / no mesmo ventre crescido /
sobre as mesmas pernas finas / e iguais também porque o sangue, / que
usamos tem pouca tinta.”. Que metáfora, qualquer outro teria dito “a fome
que nos assola nos tornou raquíticos, nos afinou o sangue”, mas o
verdadeiro poeta acha uma maneira de fugir do comum, de nos rasgar a
alma através do verso.

A diferença entre o grande poeta e o poeta menor é que o grande poeta não
tenta nos forçar a sentirmos compaixão ou terror, ele cria esses
sentimentos, nos joga diretamente nos horrores do eu-lírico, sentimos a
emoção estética. Ele não tenta nos convencer de quão a vida é árdua, ele
nos mostra. O que é o eco de revolta que Evaristo fala? Ou pior, o que é “o
eco da vida-liberdade”? Não sabemos, mas sabemos o que é a vida e a
morte severa que Cabral nos apresenta. Não sabemos o que a autora quis
dizer, podemos apenas imaginar um sentido não contido no texto, que não
está pintado. Não há som, forma ou cor. Evaristo transfere a emoção do
objeto (poema) para o sujeito (observador), coloca a uma emoção subjetiva,
emoção nervosa, no texto e apela para que o leitor se emocione. A poeta
não fala através das insígnias das coisas, das imagens concretas, como nos
lembra Ariano Suassuna em “Carrero e a Novela Armorial”:
[…] Homero e Dante pensavam e falavam através de imagens concretas,
de contornos nítidos e firmes, pois suas palavras eram verdadeiras
insígnias das coisas, insígnias que me apareciam como que desenhadas,
gravadas e iluminadas, ao passo que aqueles outros poetas eram
conceituais e meio abstratos. Descobri que tais poetas conceituais
empregavam mais palavras que imagens concretas. Diziam, por exemplo,
num poema, ‘a vida é cheia de mistérios’ e julgavam, com isso, que tais
palavras tinham eficácia suficiente para despertar em nós o sentido do
enigma da vida. Acontece que a palavra ‘alegria’, abstrata, não é o
suficiente para causar a sensação da alegria no leitor, assim como a
palavra ‘tristeza’ não basta para sugerir, no leitor que não está triste, o
sentimento que ela guarda.

POETA DO CU DA VIDA

E ainda há um erro gravíssimo, Conceição Evaristo não tem cuidado com o


trato artístico das palavras, a mot juste em que Flaubert tanto falava. Ainda
na frase “eco da vida-liberdade”, além do lirismo, carrega um cacófato: “é
cu da vida”. O som da vogal “O” se assemelha muito com o da vogal “U”,
neste caso específico. O mesmo erro ocorre no título da tradução dum livro
que, em português, se chama “Hibisco Roxo” [Purple Hibiscus]. Total falta
de tato. Quem traduziu não notou que, ao falarmos, temos um “cu roxo” no
meio do título. Com um riso a imersão é quebrada, perde-se o leitor, o
drama acaba junto ao efeito e a força pretendidos pelo escritor. Esse é o
problema do cacófato. Literatura, sobretudo o poema, é som.

POETA OU JUIZ DO MUNDO?

Também convém lembrar que a Literatura não tem uma “mensagem” a


transmitir, seja qual for. Como nos lembra Tchekhov, não é o escritor quem
deve resolver os problemas do mundo, nossa missão é apenas retratar o
humano da melhor forma possível. Deixemos a crítica social para o ensaio,
e que a política ou militância fique de fora da arte. Reitero: quanto mais
sentimentalmente envolvido com o tema o autor estiver, mais fria deve ser
a escrita.

A literatura transforma o homem, redime-o através da Beleza, mesmo que


esta Beleza retrate o Feio. Mais angustiante do que a vida severa é a morte,
que é certa. Porém a Arte nos lembra dessa redenção pela Beleza, o único
consolo em face à desolação num mundo de feiura. Lembrem-se de que o
subtítulo de “Morte e Vida Severina” é “Auto de Natal Pernambucano”.

Em ambos os poemas, temos um final “positivo”, no sentido de trazer


esperança. Porém o de Conceição Evaristo nos diz isso, meramente, sem
que haja no discurso poético imagens fortes. Atribuir a qualidade do poema
meramente ao tema “ousado”, o racismo, é um erro. Releiam o final: ” A
voz de minha filha / recolhe todas as nossas vozes / recolhe em si / as vozes
mudas caladas / engasgadas nas gargantas.A voz de minha filha / recolhe
em si / a fala e o ato / O ontem – o hoje – o agora. / Na voz de minha filha /
se fará ouvir a ressonância / o eco da vida-liberdade.”; quantas já não foram
escritas as imagens da voz presa na garganta, ou vozes caladas, ou ainda
dizer “o ontem, o hoje, o agora”, etc., etc., etc…. As imagens não têm tanta
força (talvez tenha para quem possui pouca leitura), falta originalidade. A
autora nos diz o que pensar, o que interpretar. O poema de Conceição
Evaristo pode até denunciar as questões do racismo, pode, sim, ser um grito
contra as injustiças, a maneira que ela encontrou de se expressar; mas o
fato é que o poema não nos ajuda em nada a entender a condição humana
da maneira em que foi exposta.

A poeta também nos diz para esperar o “eco da vida-liberdade”. Cabral nos
deixa abismados com a perspectiva do futuro, de um lado há esperança, do
outro o gosto amargo da realidade:

— Severino, retirante,

deixe agora que lhe diga:

eu não sei bem a resposta

da pergunta que fazia,

se não vale mais saltar

fora da ponte e da vida;

nem conheço essa resposta,

se quer mesmo que lhe diga

é difícil defender,

só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é

esta que vê, Severina

mas se responder não pude

à pergunta que fazia,


ela, a vida, a respondeu

com sua presença viva.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida Severina.

O INFERNO DO BELO
Por Paulo Cantarelli / 19 de novembro de 2018
Que certas belezas podem ser consideradas falsas e outras imorais, não há
dúvidas. Pela mesmo lógica, seria ainda possível admitir um feio
considerado moral ― talvez feito os querubinzinhos pintados a guache que
a vovó mantém ao lado da televisão coberta com uma renda de crochê ―,
porém o mais comum é que relacionemos o belo àquilo que é bom ou
verdadeiro. Quando educamos crianças, as elogiamos com um “que bonito”
quando fazem uma boa ação, e as repreendemos com um “que feio” quando
mentem ou fazem algo de errado. A beleza, em nossas consciências, está
atrelada ao que é bom e verdadeiro. Como consequência, numa sociedade
em que se tem dificuldades para se distinguir belo de feio, temos também
um problema em distinguir certo de errado.

É espantoso o fato de que, por onde se olhe, haja tantos ataques à beleza. A
afronta à beleza tradicional não se trata mais de um protesto contra as
cafonices e o kitsch da vovó octogenária, mas de algo muito mais cruel e
sinistro. Não há mais espaço no mundo para o belo, a hedionda fealdade
tornou-se norma na arquitetura, na literatura, nas artes plásticas e mesmo na
beleza humana. Prédios que mais parecem caixões, ruas cinzentas,
exposições que nada têm a ver com arte em museus, tatuagens dos pés à
cabeça e corpos expostos ao ridículo por qualquer coisa. A nudez mais
nada significa e a beleza humana foi reduzida ao corpo. E o corpo, talvez
aquilo que temos de mais particular neste mundo material, se perde em
banalidades, deformações e descuidos. A tal da “body positivity” tornou-se
uma desculpa para o desleixo, são tidos como características positivas
obesidade, diabetes e outros males que afligem o corpo. Há a guerra contra
a masculinidade, ações belas e nobres como o cavalheirismo, a defesa
daqueles que amamos, ou mesmo o heroísmo de outras épocas, perdem
espaço para atitudes mesquinhas e covardes. O Aquiles do Século XXI
seria vegano e fugiria do serviço militar obrigatório dizendo que suas
crenças pessoais não o permitem ir à guerra.

Falando em crenças, a religião ― leia-se cristianismo ― tornou-se


maligna. Não interessa quão grandes tenham sido as contribuições dessa
tradição para as artes. Uma obra como “O Divino e o Humano”, de Tolstói,
seria vaiada pelos críticos sob acusações de moralismo. O melhor é
mergulhar um crucifixo em urina e profanar objetos sacros da religião (dos
outros… contanto que esse outro seja homem e branco). Sob pretexto de
progredir, o mundo terminou por regredir.

Mas por que destruir a beleza? Por que destruir um dos poucos elementos
que tornam a vida suportável? Porque uma vida sem beleza é uma vida sem
sentido. O homem entrega-se aos vícios e prazeres baratos, sem nada mais
o que apreciar. Perdemos contato com uma dimensão quase metafísica da
existência, para mergulharmos fundo no materialismo, viramos massa de
manobra.

O templo da beleza foi profanado, o feio veio vingar-se dos séculos de


dominação e opressão do belo, e agora quer ser reconhecido como belo. A
realidade é maligna, é preciso livrar-se de todas as influências, é preciso
criar um inferno para o belo, para utilizar a expressão de Karl Rosenkranz.
O mundo está em desequilíbrio. Para a beleza, tanto o belo quanto o feio
são manifestações naturais, pois o mundo não é nem de todo feio, nem de
todo belo. A revolta contra a beleza não é somente uma revolta contra o
bom e o verdadeiro. A revolta contra a beleza é, no final das contas, uma
revolta contra a realidade.

TIPOS DE LEITURA, FORMA E CONTEÚDO


Por Paulo Cantarelli / 24 de novembro de 2018
Os escritores iniciantes, em geral, me vêm com esta pergunta: o que é mais
importante, forma ou conteúdo?

Primeiro é preciso saber que, em literatura, há basicamente dois tipos de


leitura: próxima (ou cerrada) e distante. Níveis micro e macroscópico.

A leitura próxima é a que utilizo sempre como ponto de partida quando


faço minhas análises. Pego um trecho, analiso o estilo, as imagens, as
unidades ficcionais (ex: construção de cena, cenário, diálogos,
personagens, etc.), tudo relacionado à poética, e faço um juízo de quão bem
executadas foram as técnicas. Depois, ao fim da narrativa, busco me
distanciar e partir para as reflexões que o texto implica, o que só é possível
após ter uma visão mais ampla, sempre investigando o ‘como’.

Agora chegamos à pergunta inicial: forma ou conteúdo?

Mas resposta não é tão simples. É preciso sempre ter em mente, durante a
leitura, que há dois principais aspectos da obra literária: o literário (formal)
e material (o vulgo “conteúdo”: temas, ideias filosóficas, registro
sociológico, política, etc.).

Obviamente, trata-se duma abstração necessária para enxergarmos melhor


o fenômeno literário, pois tudo acontece ao mesmo tempo no texto. É por
isso que Albalat nos lembra que, na prática, não há distinção entre
conteúdo e forma para o juízo artístico. Para que o conteúdo seja relevante,
é preciso que tenha boa forma. Isso implica uma clara hierarquia que o
artista precisa ter mente para obter êxito. É claro, como eu já disse outras
vezes, nem todos os clássicos são clássicos por serem bem escritos, alguns
autores registram alguma experiência humana ‘relevante’ de forma
expositiva, em monólogo de ideias; isso basta aos críticos e filósofos. Mas
não basta ao artista. Nós, artistas, precisamos saber ‘como’ escreveremos
algo, como passaremos para o papel todas aquelas emoções e impressões
confusas e vagas que permeiam nossa mente, transformando o monólogo
lógico e filosófico numa metáfora.

Vale salientar que a leitura cerrada e a leitura distante, assim como forma e
conteúdo, não se anulam, embora sigam uma ordem natural: a análise a
nível microscópico nunca estará completa antes que se distancie para o
nível macroscópico; e essa análise distante, por sua vez, também nunca
estará completa sem que antes tenha passado pelos pormenores do texto,
palavra-por-palavra. Isso se dá pela própria natureza do discurso poético:
Literatura, diria Henry James, não se restringe somente à arte, à feitura,
pois, num romance, podemos ter 99% de Literatura, mas sempre haverá 1%
de vida.

Ao analisarmos o ‘como’, buscamos entender de tudo o que o texto nos


revela sobre como artista atingiu determinados efeitos; e isso não anula o
conteúdo. E isso é tudo.

ARTE GREGA E TRADIÇÃO


Por Paulo Cantarelli / 4 de dezembro de 2018 
Em pouco mais de duzentos anos os artistas gregos desenvolveram técnicas
que imprimiram vida em blocos de mármore, fazendo-os parecer corpos
humanos de carne e osso. Alguns historiadores da arte chamam esse
período, entre VII e V a.C., de Grande Despertar ou Revolução Grega,
tamanha foi a ruptura com qualquer forma de arte antes vista no mundo.
Mas esse despertar não aconteceu por geração espontânea.

A cultura grega bebeu diretamente das águas do Nilo. Quando o Partenon


de Atenas foi erguido, a Grande Pirâmide de Quéops já estava em ruínas. É
possível notar a sofisticação dos egípcios na arte, principalmente nas
esculturas. Podemos dizer que o busto de Nefertiti (1345 a.C.) ou a estátua
do faraó Menkauré com a rainha Khamerernebti (2490-2472 a.C.) retratam
a realidade tão bem quanto as esculturas gregas. Obras notáveis,
principalmente se levarmos em conta a idade. É possível perceber a
semelhança entre as tradições, e talvez um observador pouco atento possa
até mesmo confundi-las, basta uma olhada em algumas esculturas gregas
arcaicas, a exemplo de Kouros (590-580 a.C.), ou Cléobis e Bitão (615-590
a.C.).

Os gregos mantiveram a tradição egípcia, na qual um artista não era


reconhecido como um por ser “original”, mas por dominar a perfeição
técnica. Isso leva à evolução natural do conhecimento artístico: hoje
sabemos mais sobre a feitura da arte do que em qualquer momento
histórico, e ainda assim desprezamos esse conhecimento. Nunca antes no
mundo se teve acesso a tantas técnicas, modelos, exemplos, críticas da arte,
teorias estéticas, manuais. O homem moderno contenta-se em admirar a
própria sombra na areia, ignorando as pegadas dos gigantes que vieram
antes.

Estudar arte antiga tem, em si, algumas dificuldades. Essas areias pelas
quais caminharam os gigantes apaga os rastros. Poucas obras sobreviveram
ao tempo, principalmente no teatro e literatura. A exemplo de Sófocles,
apenas a Trilogia Tebana e mais quatro peças chegaram até nós. Outros não
tiveram tanta sorte. Seria como se soubéssemos que, no século XVI ou
XVII, existiu na Inglaterra um bardo chamado Shakespeare, cujas peças
Macbeth, Rei Lear e Hamlet chegaram até nós ― das trinta e sete que ele
escreveu. Em pintura, quase nada restou da arte antiga, já as esculturas, em
sua maioria, são réplicas que os endinheirados da época encomendavam
para enfeitar os jardins.

O dito “padrão de beleza grego” de fato não necessariamente representa a


realidade da época, embora isso devesse ser óbvio. Primeiro, por muitas
das esculturas terem um fim mais estético do que documental, ao contrário
dos retratos egípcios. E segundo porque raramente o gosto dos artistas se
encontra com o gosto das pessoas comuns. Se tomássemos pinturas de
Picasso, feito a Mulher Nua Com Colar, como um exemplo da beleza real
do século XX, bastaria uma breve olhada nas revistas de moda ou
concursos de beleza da época para notar o real padrão da sociedade. Mas
por que o ideal do artista não corresponderia sempre à realidade? No caso
de Picasso, ele preferiu a caricatura, o feio e colérico ao belo e harmonioso.
Trata-se duma escolha estética consciente. Se você dissesse a ele “credo,
isto está horrível”, provavelmente Picasso lhe responderia um muito
obrigado.

Já no caso dos gregos, a explicação é bastante simples: além da exaltação


dos valores apolíneos e da cultura bélica, o artista grego encontrou nos
corpos atléticos a melhor maneira de aprimorar a expressão artística, a
técnica. Não se trata ― como na cabeça de alguns historiadores ideológicos
ou loucos, feito a britânica Mary Beard ― de uma alienação da realidade,
já que a arte não deve satisfações a esta. Ainda assim, existem obras gregas
ditas mais realistas, cujos exemplares são raros, como a escultura em
bronze do pugilista em repouso (330-50 a.C). Podemos ver um lutador
veterano, surrado, nariz quebrado, repleto de cicatrizes, o corpo abatido,
decadente. Porém mesmo nessas obras não há uma quebra na técnica,
apenas no padrão do objeto representado. Trata-se de arte do feio, não arte
feia.

O que impressiona mais: o corpo comum do faraó sem muitos traços físicos
ou a escultura do Discóbolo, de Míron, com toda a musculatura bem
detalhada assim como movimento, expressão corporal e face? E que dizer
da escultura romana de Laocoonte, no Museu do Vaticano? É uma
experiência estética singular, aterradora. Nos perguntamos como pôde um
simples homem dar tal forma a um bloco de pedra, com tantos detalhes e
emoções como se dotado de vida.

Tudo o que é belo é conquistado através de muito esforço, seja o corpo e


habilidades atléticas, seja a perfeição técnica na arte. Os detratores da
beleza a invejam pois são incapazes de cultivar algo que não seja preguiça
e inveja.

“COMO LER LIVROS”, DE MORTIMER ADLER: REGRAS DA


LEITURA DE ENSAIOS E ETIQUETA INTELECTUAL
Por Paulo Cantarelli / 10 de dezembro de 2018
Recentemente, após muitas perguntas e pedidos, resolvi dar uma lida
completa em “Como Ler Livros”, de Mortimer Adler. Mantenho o que
disse sobre leitura literária apontada por Adler: quando muito visa apenas a
história (estória). Há uma confusão de fatores próprios e impróprios, Adler
utiliza pressupostos de análise retórica na análise poética. Ele também
atribui ao discurso poético, em prosa de ficcional, a única função de narrar
fatos, apenas distinguindo a Ficção da História devido a veracidade desses
fatos, o que pode causar certos mal-entendidos e interpretações superficiais
do texto literário, além de outras consequências desastrosas, mas não é este
o ponto.

Em “Como Ler Livros”, Adler nos dá quatro tipos de leitura: elementar,


informativa, analítica e sintópica. A leitura elementar se dá num nível
básico de alfabetização funcional, a informativa numa leitura superficial, a
analítica no entendimento dum livro e a sintópica na análise de muitos
livros com um mesmo tópico em comum para solucionar ou estudar uma
questão. Quem tiver mais interesse na base teórica, recomendo a leitura do
livro.

Aqui cabe apontar um apanhado de regras bastante úteis para que se faça
uma leitura eficiente e inteligente de obras ensaísticas (ou obras
expositivas), com alguns breves comentários meus. Creio que todo bom
leitor chega a elas eventualmente e por conta própria, como foi meu caso,
mas não custa compartilhá-las por aqui. As regras têm muito a ver com a
humildade intelectual, e as com relação à etiqueta no exercício da crítica
são excelentes.

I – PRIMEIRO ESTÁGIO DA LEITURA ANALÍTICA: REGRAS PARA


DESCOBRIR O CONTEÚDO.

[Em outras palavras, este estágio se resume a ‘o livro é sobre o quê?’]

1. Classifique o livro de acordo com o tipo e o assunto.


2. Diga sobre o que é o livro como um todo, com a máxima brevidade
possível.
3. Enumere as partes principais [do livro] em sua devida ordem e
relação, e delineie essas partes assim como delineou o todo.
4. Defina o problema (ou problemas) que o autor buscou solucionar.
II – SEGUNDO ESTÁGIO DA LEITURA ANALÍTICA: REGRAS PARA
INTERPRETAR O CONTEÚDO

[‘O que está sendo dito, e como?’]

5. Entre em acordo com o autor, interpretando as palavras-chave do


livro.
6. Apreenda as proposições principais, estudando as frases mais
importantes.
7. Identifique os argumentos, encontrando-os ou construindo-os com
base em sequências de frases.
8. Determine os problemas que foram resolvidos e os que não foram
resolvidos; quanto a estes últimos, verifique se o autor está ciente de
que não conseguiu resolvê-los.
III – TERCEIRO ESTÁGIO DA LEITURA ANALÍTICA: REGRAS
PARA CRITICAR O CONTEÚDO

[Ou ‘o que foi dito é verdadeiro? Se for, e daí? Em que isso é relevante?’]

[Estas regrinhas são muito úteis, principalmente quando se tenta manter a


civilidade]

A – PRECEITOS DA ETIQUETA INTELECTUAL

9. Não critique até que tenha completado o delineamento e a


interpretação do livro. (Não diga que concorda, discorda ou que
suspende o julgamento até que tenha dito ‘entendi’.) [Realmente
devo concordar com isso, pior que alguém que discorda sem
entender é alguém que concorda sem fazer a menor ideia do que o
outro quis dizer.]
10.Não discorde de maneira competitiva. [Famoso discordar para provar
que está certo, e não para buscar a verdade dos fatos. Não há para
quê vencer um debate se você tem dúvidas de que está realmente
certo.]
11.Demonstre que reconhece a diferença entre conhecimento e opinião
pessoal apresentando boas razões para qualquer julgamento crítico
que venha a fazer.
B – CRITÉRIOS ESPECIAIS PARA O EXERCÍCIO DA CRÍTICA

[Notem que todas as regras seguintes começam com ‘MOSTRE ONDE O


AUTOR…’]

12.Mostre onde o autor está desinformado.


13.Mostre onde o autor está mal informado.
14.Mostre onde o autor foi ilógico.
15.Mostre onde a análise ou a explicação do autor está incompleta.
(Nota: dos quatro últimos critérios, os três primeiros servem para casos em
que há discórdia [discordância]. Se não servirem, então você tem de
concordar com o livro, ao menos em parte, embora possa suspender o
julgamento do todo com base no último critério) [Isso foi Adler quem
disse, não eu.]

É importante notar que, como Adler diz, os bons livros nos propiciam um
grande diálogo atemporal entre as grandes questões da humanidade. Ao
começarem estudos, não entrem cheios de certeza e autoafirmações, vão
com calma, não acreditem em tudo o que lhes é dito se não lhes dão razões
para que acreditem, mas também não se deixem guiar pelas paixões e pelo
ego; às vezes, inúmeras vezes, é preciso admitirmos nossa própria
ignorância e nos desprendermos do que achamos que conhecemos. Essa é a
real humildade intelectual e a única maneira de se aprender algo
verdadeiramente.

Espero que as informações sejam úteis. Quem for iniciante nos estudos e
tiver mais interesse e, acima de tudo, quiser se aprofundar em leituras não
literárias, isto é, ensaios ou livros expositivos (técnica literária, filosofia,
etc…), recomendo a leitura de Adler em geral, não só de “Como ler livros”.
As regras acima são um apanhado bastante sucinto e creio que o bom leitor
já deve praticá-las naturalmente (ao menos em parte), mas também acredito
que sejam bastante úteis para quem quer se tornar mais consciente sobre
educação e sobre os próprios processos cognitivos.

MELODRAMA E FALSIFICAÇÃO DO LIRISMO NO ROMANCE:


CLARIDADE, DE RENATO MORAES
Por Paulo Cantarelli / 17 de dezembro de 2018 
Me perguntaram mais cedo o que acho do romance “Claridade”, de Renato
Moraes. Respondi que não encontrei valor artístico algum na obra, então,
questionado pelo motivo, escrevi um comentário que achei por bem postar
como artigo independente.

Não li o livro por completo, mas, nos dois capítulos iniciais, nota-se que
“Claridade” é um livro afetado, melodramático e mais parece uma versão
mais gramaticalmente correta de “A Culpa é das Estrelas”. O falso lirismo
é de fazer vomitar desde o índice de capítulos:

“Parte I – Rompendo aos poucos o casulo 1. O noivado de um solteirão 2.


Conhecendo uma viúva e suas filhas 3. Quanto pode acontecer em um
casamento 4. Um amigo e as agruras de duas garotas 5. Planejando escapar
de armadilhas”

Já notamos que se trata da história de um moço que perde a noiva. Até aí,
nada demais, porém temas emotivos requerem frieza. Você abre um
prólogo, nota que as descrições de cenário ou perfis são meramente físicos,
não apresentam nada de metafórico ou psicológico, há apenas uma natureza
morta trivial, como se o autor desse os detalhes por obrigação, não porque
há algo que nos ajude revelar o segredo das personagens.

Começa o romance:

Assim que Ricardo entrou no quarto do hospital, Nina sorriu e indicou


com um gesto que ele se sentasse na cadeira, ao lado da cabeceira da
cama. Ele lhe tomou as mãos e as beijou. Estavam quentes, e a pulsação,
alta. Ou seja, o habitual das últimas semanas. Tocou delicadamente o
rosto dela com os lábios e arrumou-lhe os cabelos longos, que caíam na
frente. Foi correspondido com uma mirada afetuosa e cansada.
É um início gramaticalmente correto, mas sem nenhuma qualidade técnica,
a composição de cena é lugar comum, as próprias frases não possuem
muito ritmo, as vírgulas são gramaticais e não estéticas. O estilo se enrola
no que Othon Garcia classifica como frase de ladainha devido ao mau uso
da conjunção “E”:

“Nina sorriu E indicou… Ele lhe tomou as mãos E as beijou. Estavam


quentes, E a pulsação, alta… E arrumou-lhe…”.

Esse mau uso gera monotonia e, quando bem utilizado, pode gerar os mais
diversos efeitos. Ainda há os ecos, os verbos terminados em “ou”, mas nem
vou entrar em muitos detalhes. Essas terminações verbais tornam as frases
ainda mais monótonas: entrou, indicou, tomou, beijou, tocou… etc.

Outro ponto é que a primeira frase já nos revela demais:

Assim que Ricardo entrou no quarto do hospital, Nina sorriu e indicou


com um gesto que ele se sentasse na cadeira, ao lado da cabeceira da
cama.
O autor revela muito, quer mostrar tudo de uma vez, que estão no hospital,
que a noiva está doente e já nos diz logo o que irá acontecer mesmo no
título do capítulo, “É difícil acreditar que ela se foi”. A primeira frase é
alongada, poderia ser apenas:

“Assim que Ricardo entrou no quarto, Nina sorriu e indicou que sentasse na
cadeira ao lado da cabeceira da cama”.
A única qualidade deste primeiro parágrafo é uma tentativa de uso de voz
de personagem em estilo indireto livre, mas que terminou caindo feito
explicação: “Estavam quentes, e a pulsação, alta. Ou seja, o habitual das
últimas semanas.”. Esse “ou seja… etc.” seria a voz do noivo, porém numa
observação tão banal que nem faz diferença.

O autor preza sempre por frases mais complicadas do que complexas.


Olhando mais de perto o próximo parágrafo, podemos notar que as
descrições não têm vida:

Os olhos da jovem estavam fundos, órbitas que saltavam de duas covas


rodeadas por olheiras pronunciadas, que se destacavam ainda mais
naquela magreza quase inacreditável. Sua pele tinha embranquecido pela
falta de sol. Por um privilégio singular, continuava bonita — para
Ricardo, era impossível que ela deixasse de sê-lo —, como se seus traços
delicados e perfeitos não admitissem a derrocada.
Fora que narradores que substantivem as personagens (ex: a jovem, a
mulher, a doente, etc.) já soem normalmente afetados, ou soem como se
fosse um octogenário quando chamam de “o jovem” ou “a jovem”, essa
substantivação é inútil principalmente por haver apenas DUAS
personagens no quarto.

O uso do pronome possessivo “sua” também não é algo recomendado em


geral pela ambiguidade, embora neste caso possa parecer mais bem
encaixado, pois sabemos que a pele é a pele dela, não dele. O único
problema desse uso é que “sua pele” é sonoramente feio por se assemelhar
ao verbo suar. Há inúmeras outras maneiras de construir essa frase. “Havia
embranquecido pela falta de sol” seria uma solução.
Mas a imagem inteira é lugar comum, moribundos de olhos fundos
saltando das órbitas, com olheiras profundas. E o que seria essa beleza?
Esses “traços delicados e perfeitos” que não admitiam derrocada? O que
isso significa? Nada. Apenas afetação. O autor tenta nos impressionar
diante duma tela em branco. Primeiro nos apresenta uma imagem feia
lugar-comum, depois tenta evocar uma beleza que não existe no texto.

Os diálogos conseguem ser piores: prosaicos, desinteressantes e


melodramáticos. Parecem saídos da novela das nove:

— Ricardo, sua vida vai continuar sem mim. Aceite, é o óbvio. Você não
pode se transformar em uma espécie de noivo viúvo, um solteirão ferido
pela vida . Se ficar com pena de você mesmo, vai me decepcionar demais.
Seria ridículo.
— Devagar, moça! Quem a ouve falar assim pensa que você é uma pedra
de gelo! Não me esqueço de como a durona chorou de saudade, só porque
passou uns dias sem ver o sobrinho…
— Mas melhorei e não chorei mais. Pelo meu sobrinho, você me entende.
E pare de despistar, isso não tem nada a ver com que estou dizendo.
Nina tornou a olhá-lo com seriedade:
— Querido, não suporto pensar que você talvez fique por aí, largado, sem
buscar ninguém. Preso em um mundinho de recordações.
Se o autor fez algo de bom e mostra alguma qualidade após os dois
capítulos iniciais, não tenho como dizer. Não gosto de fazer análises de
livros que não li por inteiro, mas este é um dos casos que não tenho a
menor vontade de ler o resto das 500 páginas para descobrir. Só posso dizer
o mesmo que Autran Dourado: se o escritor não acertou nem nas primeiras
dez páginas, dificilmente acertará no resto.

O FEITIÇO DA MISSA DO GALO


Por Paulo Cantarelli / 25 de dezembro de 2018
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora”. Assim
começa “Missa do Galo”, de Machado de Assis. Posso dizer que este conto
obteve sobre mim um efeito singular, uma espécie de efeito névoa similar
ao produzido pela novela “Sylvie”, de Gérard de Nerval ― embora esta
seja muito mais fraca em termos de estilo. Por muito tempo também não
pude compreender que efeito mágico era este causado por Machado, que
surge feito uma bruma e nos entorpece ao longo da narrativa.

Não é à toa que é chamado de Bruxo do Cosme Velho. Machado é


realmente um bruxo, brinca com as dimensões temporais do texto, nos
fazendo viajar décadas ao passar duma linha ou nos detém num único
segundo ao longo dum parágrafo inteiro. É um enganador nato, a começar
pelo título, que nada tem a ver com o tema central do conto ― coisa que
vemos também em “Dom Casmurro”, onde a personagem central é Capitu.
A tal missa é apenas a desculpa para a sedutora conversa entre uma senhora
balzaquiana e um jovem. Mas voltemos ao parágrafo inicial:

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos
anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo
ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir;
combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

Aqui Machado, como se por feitiçaria, já nos dispõe o tempo narrativo.


Começa com uma frase curiosa, atiçando nossa curiosidade e antecipando a
conversa que será o núcleo do conto, sem nunca revelar o conteúdo. Logo
após, temos uma digressão, saímos da noite de natal em que o conto se
passa e voltamos no tempo através dum jogo de cenas indiretas sobre cenas
indiretas, isto é, o narrador nos diz muito rapidamente os acontecimentos.
Lembrando que uma cena, segundo Raimundo Carrero, é composta por
personagem, ação e sequência. O jogo de cena-sobre-cena nos dá rapidez,
veja os movimentos da narrativa:

1. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que


fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas.
2. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem
quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a
estudar preparatórios.
3. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com
os meus livros, poucas relações, alguns passeios. [etc.]

Assim segue-se até o final do parágrafo, uma sequência de acontecimentos


que servem para apresentar as personagens e a situação em que se
encontram, reitero, sem jamais explicá-los. A predominância de verbos no
pretérito imperfeito nos dá uma sensação de rotina e hábito: “Vivia
tranquilo” perpetua melhor a tranquilidade vivida pelo personagem do que
“vivi tranquilo”. Quando essa ação começa e quando termina? Não
sabemos. O mesmo podemos ver em “Meneses trazia amores com uma
senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana”.
Detalhes pequenos, mas que cumprem uma função e efeito no conto.

Agora vem uma parte interessante, o próximo parágrafo, o terceiro, é por


completo um comentário ― técnica que, se utilizada pelas mãos erradas,
pode cair em maus gostos. Seria estranho, muito estranho, Machado, após
tamanha habilidade técnica, se dispor a comentários que revelem tanto a
personagem e, de certo modo, pareçam mesmo de mau gosto, exaltando as
qualidades de Conceição e, inclusive, dando descrições vagas:

Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão


facilmente suportava os esquecimentos do marido. […] Tudo nela era
atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio.
Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém,
perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.

Que rosto mediano, nem bonito nem feio é este? É o que eu diria num texto
sem cuidado, mas aqui cada palavra é absolutamente calculada. Machado, a
esta altura da vida de escritor, já sabia o que fazia. Podemos tecer uma
analogia com o que São Tomás de Aquino dizia sobre regra moral: toda e
qualquer regra moral é genérica e universal, e toda situação humana é
concreta e particular. Assim, em arte, no uso das técnicas não devemos
partir jamais do “dever ser” para dar um juízo estético pronto, mas da
análise do próprio caso concreto.

A regra geral é que comentários desviam o foco do leitor para algo que não
é a ação, fazendo uma observação sobre esse algo e correndo risco de
quebrar o sonho ficcional. Em mãos erradas, pode soar como explicação
desnecessária, mas aqui Machado usa-o como misdirection. Nos apresenta
uma Conceição casta e santa ― o próprio nome nos remete à Virgem Maria
― para depois desaparecer com ela. É aí onde reside um dos mais
interessantes truques de ilusionismo: Conceição se mostrará um tanto
diferente na noite de Natal.

Somente no quarto parágrafo retornamos à tão falada noite. Temos uma


cena direta, mais detalhada, cena no sentido mais geral, de John Gardner:
um fluxo de ação intacta entre um incidente no tempo e outro. A ação
dentro dela é intacta pois não inclui grandes lapsos temporais ou saltos dum
cenário a outro. Aqui, Machado aproveita para aprofundar ainda mais a
atmosfera do texto. Lembra-se que eu disse que alguns elementos poderiam
ser considerados de mau gosto? Um escritor menos técnico cairia nos
derramamentos líricos dum Jovem Werther, dramalhões e outros artifícios
baratos e cafonas. Aqui não. A história é uma memória de quando o
narrador contava apenas dezessete anos e lia livros mal escritos do
romantismo, mas as ações e detalhes são friamente calculados,
selecionados por um narrador do futuro, mais velho e maduro, cheio duma
nostalgia que permeia cada parágrafo. A primeira aparição de Conceição
vai se concretizando exatamente numa atmosfera romântica, sem os
devidos exageros do movimento literário:

Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei


a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
[…] entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um
roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de
visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras.

Discreta, Conceição chega sorrateira, um vulto de roupão branco arrastando


as chinelinhas no meio da noite. Mais e mais, vamos prestando atenção nos
detalhes. Após conceição fazer uma síntese do leitor brasileiro até os dias
de hoje ― “Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de
tempo” ―, Nogueira, o narrador, a observa com mais cuidado:

Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os


olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez
em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando
acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em
seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o
queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim
os grandes olhos espertos.

Não é a mera descrição física das ações da personagem, mas o cuidado no


olhar de um garoto para com uma figura romântica, adorando todos os
gestos, ainda que não tenha se dado conta disso. A passada de língua nos
lábios já mostra uma sensual sinuosidade nas ações de Conceição.
Observamos com o olhar típico dos homens jovens e inexperientes, que não
sabem interpretar as atitudes do sexo oposto.

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os
gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se
rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre
a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, como desalinho
honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora,
tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo;
essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava
algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a
posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a
mesa de permeio.

Agora é tarde, já estamos encantados por Conceição, que de vulto passa a


ser mulher completa e formidável, não em todos os absolutos detalhes, mas
somente naquilo que importa: nos gestos, nas ações ambíguas. O Bruxo do
Cosme velho vai lentamente lançando o feitiço no leitor. Conceição age
como quem não quer nada, prestando-se inclusive a small talks, que
confundem leitor e narrador: mas afinal, o que essa mulher quer?, nos
perguntamos. Machado nos revela o conflito interno da personagem através
duma breve frase, ao dizer que Conceição estava “entre a janela da rua e a
porta do gabinete do marido”, ou seja, ela estava entre o adultério, a janela
da rua, que se abre aos encantos do mundo, e a fidelidade, representada
pelo gabinete do marido no interior da casa. Coisa de grande artesão.
Machado ainda tem habilidade para não deixar as falas repetitivas, como
podemos ver nesse diálogo:

Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar
acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do
galo na Corte, e não queria perdê-la.

—É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

—Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a
semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem
Santo Antônio…
Para não perder fluidez e naturalidade, interrompendo o fluxo psicológico
da narrativa com travessões para expor algo que já foi conversado antes, ele
recorre ao discurso indireto puro e simples, tomando para o narrador o
diálogo e depois retomando as falas. Este uso de elipses é um recurso
recorrente na obra machadiana. A seguir, temos o perfil mais sensual de
Conceição:

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da


mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas
as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito
claros, e menos magros do que se poderiam supor.

Os braços, caro leitor do Século XXI, costumavam ser um elemento


sensual, assim como as pernas, no século XIX. Algo mais discreto que uma
olhadela no decote, evidentemente, mas ainda assim sensual.

A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele
momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis,
que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença
de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. […] e rindo para fazê-
la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os
olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um
tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava
um pouco a voz, ela reprimia-me:

—Mais baixo! Mamãe pode acordar.

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as
nossas caras.

O clima é de total cumplicidade entre amantes, ainda que essa paixão não
venha a se concretizar. Conceição já não é mais a mesma do início do
conto, uma recatada e sem graça senhora balzaquiana, mas uma mulher
sensual e ativa. Como o próprio Nogueira diz: “ela, que era apenas
simpática, ficou linda, ficou lindíssima”.

A seguir, ambos conversam sobre os quadros na parede. Algo que poderia


passar, para o leitor desatento, como mais um small talk, é na realidade um
contraponto, ou cena justaposta, onde temos o conflito interno de
Conceição metaforizado nas pinturas:

— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar


outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste
homem. Um representava “Cleópatra”; não me recordo o assunto do
outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me
pareciam feios.

— São bonitos, disse eu.

— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia


duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou
de barbeiro.

— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e


namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras
bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso, mas
eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos
quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha,
muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu
quero. Está no meu oratório.

Cleópatra, imortalizada pela sensualidade e devassidão, além de mais outra


pintura vulgar ― que talvez poderíamos tomar pela amante do marido,
agora reduzido a “Chiquinho”, desconhecida pelo narrador ―, figuras
manchadas, em contraste com as imagens santas imaculadas que Conceição
deseja pôr na parede da sala. A metáfora se torna mais clara: manter-se fiel
ao marido, mesmo que este esteja dividindo cama com outra, ou consumar
a sedução do jovem hóspede? Nenhuma palavra é dita explicitamente nesse
sentido, mas podemos inferi-las através das ações.

Na sequência, mais outra cena indireta, em que temos de volta a imagem de


uma conceição mais pura, por assim dizer. A conversa começa a morrer, a
mulher está entediada ou envergonhada, olhando à toa para as paredes. O
jovem se inquieta, ambos ficam inteiramente calados, ele ouve um único
rumor, “um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela
espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo”. Seria esse
rumor reflexo da consciência de Nogueira rendo-lhe o juízo, e em conflito
com o amor do qual não conseguia falar? Acho uma interpretação bastante
plausível. Logo em seguida, a conversa é encerrada de vez pelas pancadas
na janela, aos gritos de “Missa do Galo!”, que os trazem de volta à
realidade.  Mais adiante, na igreja, Nogueira se deparará com o conflito
moral, sutilmente apontado por Machado numa única frase: “durante a
missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o
padre”.
O romantismo se acaba com um roer de rato e um vizinho inconveniente ―
ou anjo salvador ― a chamar para a Missa do Galo, que enfim acontece. E
Conceição volta a se transformar em vulto ao entrar “pelo corredor dentro,
pisando de mansinho” para nunca mais voltar. Ela já perdera a graça, o
desejo morre junto ao impedimento: o marido agora falecido. É tarde, é
tarde, o Bruxo do Cosme velho já trabalhou seu feitiço.

O FIM DA ARTE
Por Paulo Cantarelli / 8 de março de 2019

As vísceras e as pernas serão lavadas com água. E o sacerdote queimará


tudo isso no altar. É um holocausto; oferta preparada no fogo, de aroma
agradável ao Senhor. […] Ele retirará o papo com o seu conteúdo e
jogará no lado leste do altar, onde ficam as cinzas. ― Levítico 1:9 e 1:16.
Esta antiga mania que qualquer um, pelo simples hábito de ler livros, possa
se achar merecedor do título de crítico literário ― ou um mero observador
de quadros e estátuas se julgar crítico de arte ― denota no mínimo certa
falta de bom senso. Seria quase o mesmo que alguém, após ler Platão e
Aristóteles, se intitular filósofo apenas por se identificar com os valores e
pensamentos dos livros que leu; não necessitando dedicar todo seu viver,
agir e pensar à filosofia. O mesmo ocorre com a arte: é preciso entregar-se
a ela de corpo e alma, comungar da Beleza como se dela dependesse a
salvação do mundo. Não estou mandando ninguém abandonar a fé, pelo
contrário, proponho apenas holocausto de algumas vacas sagradas, e
destiná-las a seu lugar de origem: às cinzas.

I – ENGAJADOS COM SINAL TROCADO

A primeira pergunta que qualquer artista se faz não é “por que a Beleza
importa?” ― com isso não pretendo diminuir o grandioso trabalho de
Roger Scruton, pelo contrário; ao esteta e ao crítico talvez esta questão seja
mais importante ― mas sim “o que é a beleza?”, “o que é verdadeiramente
belo?”, “o que é o feio?”, “por que é feio?”, e assim por diante. Quando
pensamos que obtivemos a resposta para alguma delas, vem outra pergunta:
mas o que eu percebo como belo é o mesmo belo que o seu belo? Então
entramos na questão de gosto. Gosto não se discute, dizem. Não se discute?
E por acaso não há gostos inferiores ou superiores, fundamentados em
elementos exteriores à psicologia do observador? O gosto (ou desgosto)
pode ser subjetivo ― nisso Kant nos lembra que uma investigação do gosto
seria uma investigação da subjetividade do observador, não
necessariamente do objeto ― porém o estudo sério da arte, e não da
psicologia de quem a vê, está mais ligado a alguns elementos exteriores que
interiores; cabe a nós, como críticos, ver o que ocorre de fora para dentro,
partir dos elementos objetivos às impressões subjetivas do que ocorre em
nossa alma durante, e mesmo depois, a contemplação do belo, do feio, do
grotesco ou do sublime. Já o artista, em geral, percorre o caminho oposto: é
um sentimento, uma inquietação no espírito, que o leva à angústia da
criação, partindo duma investigação do próprio âmago para o mundo
exterior. E assim nasce uma obra de arte, para ser breve.

Muitos argumentarão que a arte serve a algum propósito específico, é claro.


Alguns gramáticos metidos a esteta ou sacerdotes que querem
instrumentalizar a arte para a catequese ― ou uma mistura demoníaca dos
dois, por que não? ― que me perdoem, mas arte não é um mero veículo
para a moral, filosofia, ideologias ou valores de quem quer que seja; fazê-lo
seria tão somente a mesmíssima coisa que confundir a carroça com a carga,
cocheiro com os cavalos e, por que não, com o destino da estrada. A arte,
para o artista, é o valor em si. Ou, como diria Flaubert, le vrais, le beau, le
bien, s’equivalent pour l’artiste. Com isso, não quer dizer que a arte não
carregue outros valores ou nenhum valor externo a ela mesma ― portanto
não venha ninguém me acusar do analfabetismo de “arte pela arte” ―,
porém, para que eu não me repita, basta mencionar que isso já foi discutido
em outros artigos. Devemos condenar qualquer teoria estética autoritária e
raquítica que negue ao artista o direito da criação individual, ao obscuro, à
intuição e à escolha dos valores que ele representará na obra. Para aqueles
tipos que tentam impor uma finalidade à arte, que não seja a beleza, e que
veem imoralidade nas coisas verdadeiramente belas, não há salvação. São o
exato oposto dos engajados que utilizam a arte como propaganda da
revolução: muda-se apenas o sinal. Mas a propaganda é ainda outro fator
que trataremos adiante.

Antes, uma anedota: é dito que, após uma palestra de Gilberto Freyre, o
lexicógrafo Antenor Nascentes teria corrigido um erro gramatical num dos
escritos do sociólogo. A resposta de Gilberto foi incisiva:

“Meu caro Antenor, perdoe o equívoco, pois nós, escritores, somos os


pilotos da língua portuguesa. Vocês, gramáticos, são os mecânicos.”

Cada macaco no seu galho, prega o ditado popular. Então assim deixemos
o estado das coisas: quem entende de filosofia, que fale de filosofia, quem
entende de teologia, que fale de teologia. Só não me venha não saber nada
de arte e querer posar de esteta. Por muito tempo, nós, escritores de ficção
brasileiros, como diria Autran Dourado, ficamos “parecendo aqueles
meninos de antigamente vestidos à marinheira, as pernas cabeludas de fora,
na mão direita o balão de gás colorido, na esquerda a mão protetora do
preceptor”, sempre muito quietinhos, subjugados aos teóricos, sem opinar
sobre o que fazemos e como fazemos, respondendo só quando perguntados.
Somente alguém, como eu disse, que dedique todo seu ser à arte poderá ter
um vislumbre do que ela significa, muito acima dos gostos e preferências
pessoais, crenças, culturas e tempo. Isso, no mais das vezes, significa pôr a
mão na massa, ter um quê de artista, porém nem sempre é necessário sê-lo.
A capacidade crítica é levemente independente da artística, isto é: há bons
artistas que dariam péssimos críticos e bons críticos que dariam péssimos
artistas. Obviamente um artista com um senso crítico muito fraco raramente
é um bom artista, mas isso é outra história. O importante não é quem fala,
mas o que se fala.

Dito isso, muita boa arte tem sido condenada por canalhice ou preconceito
tolo: não me importa se Gabriel García Márquez foi comunista, se Tolstói
ou Dostoiévski foram cristãos, se o que Dante escreveu está de acordo com
os santos doutores da Igreja, se Camus era ateu; o que importa é que cada
um desses autores, em suas épocas, recriou diversas experiências humanas
como eles as perceberam. Ou seja: não importa se a Revolução, Cristo, ou
o Nada são a verdade universal, importa que o sentimento sobre essas
experiências sejam verdadeiros e que, last but not least, estejam dotados de
uma forma artística de qualidade. Este é outro ponto de grande importância
de nossa breve investigação.

II – ESCLARECENDO AS DEFINIÇÕES DE ARTE

“O que distingue a obra de arte de outras manifestações do espírito


humano é exatamente o fato de que ela consiste numa forma, não apenas
que ela tem uma forma. […] A presença duma forma fisicamente
alcançável é o que define a obra de arte, portanto nós dizemos: a forma é
a finalidade da obra da arte. Se não chegou à forma, não tem obra de arte
nenhuma, tem apenas uma ideia, um projeto.” ― Olavo de Carvalho, aula
400 do Curso Online de Filosofia.
Como era de se esperar, a voz do professor Olavo de Carvalho é sempre um
alívio no meio desse burburinho dos infernos que é o debate intelectual no
Brasil. Porém essa afirmação levanta outra questão, que pode facilmente
ser subestimada quando falamos de estética: em que consiste a forma
artística? Quais são seus elementos? Como ela se estrutura? Não é algo tão
simples de se responder num breve artigo, principalmente porque a poética,
a criação, a feitura de cada arte possui técnicas, meios e princípios
diferentes: estes são os princípios da arte objetiva, ligados entre as diversas
artes apenas pelos princípios da arte não objetiva (estética). Aliás, seria um
erro dizer que a estética trata apenas da beleza nas artes. Tamanho é seu
campo de atuação, que podemos dizer tanto que uma ideia é bela, que uma
equação matemática é bela, quanto podemos dizer que uma mulher ou uma
estátua são belas; e com isso nos deparamos com um problema da própria
linguagem: utilizamos a mesma palavra para descrever o sentimento muito
peculiar que todas essas coisas nos transmitem. Porém é com certa
irresponsabilidade que pretensos críticos literários tratam da forma da
literatura, sem nunca de fato entrar em seus reais elementos, apenas falando
do tema ou reflexões sobre o tema.

Sob minha perspectiva de artista, tenho plena consciência de que nem todos
enxergam a arte feito eu. Para os de minha classe, é impossível dissociar o
objeto, a obra de arte, de sua criação, da técnica. Noutro artigo, dei a
definição de arte como sendo “qualquer expressão inteligível, criada por
meio de técnica, que sirva a um fim estético”, deixando claro que mantive
de fora alguns outros aspectos por fins didáticos; afinal não pretendo ser
exaustivo nestes artigos, nem criar nenhuma filosofia estética. Poderíamos
incluir aí que essa expressão deverá não apenas ser inteligível, como
também precisa de uma forma final física, apreensível por um ou mais dos
sentidos ― algo mais ou menos implícito nos exemplos que usei de
expressão. Também notei que o uso da palavra inteligível causou certa
confusão para alguns leitores. Aqui ela não está num contexto filosófico
platônico, por exemplo, mas no sentido de algo que é facilmente
compreensível. Como diria Croce: arte é aquilo que toda a gente sabe o que
é. Se você demorar mais de dois segundos para identificar um objeto como
obra de arte, provavelmente não é arte. Retomei este ponto apenas para que
se tenha ideia do que eu estou falando quando digo a palavra arte. Agora
vamos para questões que concernem mais ao artista que ao esteta.

III – A CAUSA SECRETA

Ainda sobre a perspectiva do artista, imaginemos a seguinte situação: uma


mulher, um repórter, um inspetor de polícia e um artista, digamos, contista,
entram num bar e se deparam com um defunto. Era o marido da mulher.
Encontramos uma cena brutal de assassinato: o morto estatelado no chão, a
cabeça aberta, sangrando, estourada por uma bala.  A viúva, coitada, se
debruça sobre o marido, não importa quantas vezes o policial diga não
toque no corpo. Para ela, aquele fato altera para sempre o estado das coisas,
sua vida não se distingue da dor que sente no momento. Para o policial,
trata-se de mais um dia de serviço, assim como para o repórter. Só o
celerado escritor aparenta estar calmo, vagando em busca de um retrato
humano, enquanto todos os outros se desesperam. A viúva não possui
distanciamento algum daquela cena, como dissemos: trata-se de sua própria
vida. Ela se pergunta por quê? por quê?, enquanto abraça o corpo do
amado, pergunta que será compartilhada de diferentes modos por nossos
outros personagens. O policial se pergunta o como, investiga a cena,
somente depois tenta achar um mero motivo para a infração da lei, afinal
isso poderia ser um agravante, atenuante ou mesmo excludente de ilicitude,
em caso de legítima defesa. Descobre, perguntando ao garçom, o que se
passara: o vizinho da vítima entrou no bar e matou-a com um tiro de
revólver na cabeça, à queima-roupa. O policial registra tudo com a maior
objetividade possível, enquanto o repórter trata de sacar a câmera e bater as
fotos dos ângulos mais chocantes que encontra; é que ele deve impressionar
a audiência do tabloide para vender mais exemplares. Um tem o dever de
imparcialidade, o outro de parcialidade velada. Nosso contista está sentado
na última mesa do bar, apenas observa o desenrolar da cena e se
perguntando o porquê enquanto toma um copo de cerveja. Se pergunta qual
o mistério daquela morte. Seria bala? Não, a bala foi a causa eficiente, ou
motora, o objeto que perpetrou o crime. E qual seria o intuito do crime, a
causa final? Uma nova testemunha surge, a esposa do vizinho, e revela que
o falecido mantinha relações extraconjugais com ela, ao menos é o que o
policial relata no boletim de ocorrências. O jornalista escreve extra, extra,
corno mata melhor amigo com tiro na testa! Temos dois graus de
parcialidade, a viúva e o repórter, sujeitos às paixões imediatas, relatam os
fatos de jeitos diferentes (uma por estar profundamente comovida e o outro
por tentar comover a todo custo); e um grau mais imparcial, o do policial,
que deverá fazer um relato mais objetivo o possível, sem apresentar juízos
precipitados. O bar se esvazia, a viúva é carregada para fora e o carro do
IML chega para levar o corpo embora num saco de lixo. Mas quanto ao
nosso escritor? Enquanto, para os outros, aquele crime parece ter sido
revelado, o escritor está por revelar a outra causa daquela morte. A bala não
poderia ter sido a causa que ele procura, como vimos, esta é a causa
instrumental, eficiente. O policial conteve-se com um como, a descrição
minuciosa das circunstâncias materiais do crime e de uma leve motivação,
a causa final. O repórter descreveu em todas as minúcias da causa material
e, digamos, escreveu um artigo ideológico alertando a população sobre os
riscos das armas de fogo. Trata-se de ideologia e pornografia
(sensacionalismo) para vender jornal, de uma propaganda anti-
armamentista. O escritor busca a causa secreta: o que levaria um amigo a
trair o outro? E o que levaria esse outro a matá-lo em retaliação? Valeria
uma mulher tamanha dor? O que seria da esposa? A causa secreta é a
mortalidade humana, o mistério da morte, a condição de sofredor humano,
atormentado diante do inevitável e do hediondo. A causa secreta é o que
transcenderá o particular em universal, é o segredo mais íntimo do homem,
que ele só revela quando Deus não está olhando. O escritor investigará a
causa secreta por trás das motivações do assassino e da vítima; afinal, quem
tira uma vida não pode ser nem continuar mais o mesmo. Ou será que não?
Há redenção para os pecados? Há consequências? Seria tudo permitido? E
se tudo é permitido ainda haveria consequências? O escritor lembra-se do
que lhe pareceu um sorrisinho de canto de boca da amante, lembra-se do
jeito da viúva ao chorar, do modo como o sangue maculava a roupa branca
do morto, olha além da forma do crime e da instrumentalidade, põe-se sob
outra pele e outro olhar, pergunta-se por que cada um agiu como agiu,
procura alternativas; e atinge a causa secreta. O objeto de investigação não
é mais o assassinato, mas a condição humana, nossa natureza, a maneira
como nós somos feitos, somada a uma situação em específico. E assim
nasce a centelha da criação: o escritor encontra uma nova forma (o conto)
para transmitir essas impressões, esses sentimentos e valores com que se
deparou ao investigar a causa secreta. Esta sim, beleza cruel e trágica, a
“causa final” daquele conto.

IV – ARTE PRÓPRIA E ARTE IMPRÓPRIA

“A beleza expressa pelo artista não pode despertar em nós uma emoção
cinética ou uma sensação puramente física. Essa beleza desperta, ou deve
despertar, ou ainda induz, ou deve induzir, uma estase estética, um
sentimento ideal de pena ou de terror, uma estase causada, prolongada e
por fim dissolvida por aquilo que chamo de ritmo da beleza.” ― Stephen
Dedalus, em “O Retrato do Artista Quando Jovem”, de James Joyce.
Um erro gravíssimo, poderíamos dizer crasso, entre alguns pseudoestetas é
este: ignoram que a emoção estética é estática, não cinética; ou seja, não
move o observador para canto nenhum nem para ação alguma. Se
movermos o leitor a uma ação, não se trata mais de discurso poético, porém
de uma retórica enrustida. Se o leitor prestar a atenção na frase da
personagem de Joyce (que falava apenas para expor as ideias do autor),
note que o sentimento estético está nitidamente mais atrelado à forma,
ao ritmo da beleza, que à mensagem transmitida. Nisso entram os conceitos
tomistas de Integritas, Consonantia e Claritas, cuja explicação mais
detalhada e prática fica para outro momento. Em suma: a emoção estética
vem da forma, não das ideias; porém muitos, como eu disse anteriormente,
parecem se esquecer desse detalhe e nunca, ou quase nunca, expõe critérios
técnicos e verdadeiramente formais numa análise artística.

Mas antes, vale ressaltar que a teoria de São Tomás de Aquino é teológica,
ou seja: saímos do campo da arte. Isso não significa que não possamos
tomar alguns elementos emprestados para entendê-la; mas ao falarmos da
natureza teológica da beleza, já não estamos mais discutindo uma obra de
arte ou sua qualidade estética. Qualquer um que cometesse esse erro ―
ignorar a mudança no foco da discussão, da obra de arte e sua qualidade
para os mais altos desígnios do criador do universo ― provavelmente teria
a redação do Enem zerada por fuga ao tema. Não entrarei no mérito de
explicações teológicas acerca dos valores transcendentais, nem das
respostas de São Tomás de Aquino a algumas questões totalmente alheias à
Arte. Ao final das contas, a Beleza tem mais a ver com o que sentimos
(estética, do grego aesthesis, sentir) do que com a explicação fidedigna da
estrutura da realidade; sejam essas belezas consideradas “falsas” ou
“imorais”, se é que isso é possível. Mas para entender esse ponto, ainda é
preciso explicar as funções próprias da arte, coisa que faremos adiante.

Algo interessante notado por Joyce é que Aristóteles não chegou a definir
os sentimentos da catarse, apenas mencionou nominalmente. Para um
filósofo de tamanho porte, uma definição mais precisa de termos não deve
ter passado despercebida, mas infelizmente, nas anotações que vieram a
compor “Poética”, não se encontra a definição para os sentimentos de
compaixão (pena, piedade) e terror (pavor, medo). Temos de ser
pragmáticos e tomar de modo mais ou menos intuitivo o sentido dessas
emoções, portanto, qualquer um que se aproprie do termo catarse para dizer
que tal obra de arte é ruim porque não produz terror ou compaixão
provavelmente não sabe nem o que quer dizer com isso. Há diversos
sentimentos causados pela arte, que não se restringem à catarse, embora o
momento de catarse seja um dos mais elevados ― ou desastrosos ― da
arte, mais em específico das artes narrativas. Um romancista ou dramaturgo
inexperientes podem cair em derramamentos líricos nos pontos de maior
tensão e carga emocional, nos provendo com uma obra melodramática ou,
para usar a palavra comum, brega. Com isso, há alguns sentimentos, ou
intenções, que vão de encontro ao sentimento estético, são eles: desejo e
repulsa.

Nas palavras de James Joyce, ditas por Stephen Dedalus:

“Os sentimentos excitados pela arte imprópria são cinéticos, desejo ou


repulsa. O desejo nos compele a possuir, a ir para alguma coisa; a repulsa
nos compele a abandonar, a partir duma dada coisa. As artes que o
excitam, pornográficas ou didáticas, são, por conseguinte, artes
impróprias. A emoção estética (sempre emprego o termo geral) é, por
conseguinte, estática. O espírito fica detido e suspenso acima do desejo e
da repulsa.”
Ficam nítidos aqui os conceitos de arte própria e imprópria, isto é: a arte
com intenção estética, que serve às funções próprias da arte, e arte com
intuitos diversos, que servem a funções impróprias à arte. Mas como saber
quais são os aspectos próprios da obra de arte? Em primeiro lugar, sua
forma. Este conceito é mais claro para artistas, pois nossa classe é a que
lida diariamente com o real problema da forma e conteúdo: saber como
expressar o que estamos sentindo. A arte imprópria também é mais
discernível por seu fim: chocar, pregar, atrair, repelir, etc. É perceptível a
falta de cuidado estético ou mesmo a intenção do autor em provar um ponto
ou criticar algo, a exemplo de “1984”, de George Orwell, e outras distopias
políticas. Ou mesmo ― e agora muitos católicos irão me apedrejar ―
Georges Bernanos e sua catequese de pároco de aldeia. Os digníssimos
catequistas ou propagandistas políticos que me perdoem: vocês ocupam o
mesmo lugar nas profundezas do inferno da arte. Deixemos o engajamento
para os jovens desmiolados e o moralismo para as velhinhas fofoqueiras de
igreja; o artista de verdade tem mais com o que se preocupar.

Outra questão digna de nota é que é impossível prever a reação do


observador diante de uma obra de arte, seja ela própria ou imprópria. É
claro, uma literatura engajada que incita o leitor a alguma ação terá mais
chances de persuadi-lo a fazer algo, mas como saberemos se ele concordará
com o que está sendo dito e ainda sairá da inércia para o campo da ação?
Somente crianças podem ser desculpadas por se deixarem influenciar por
uma obra de ficção ― ou desajustados mentais que, tomando-se por
Raskolnikov, resolvem matar velhinhas mundo afora. Não há nexo nenhum
em atrelar a qualidade de um romance à qualidade das ações que o
observador fez ou deixou de fazer após a leitura. Por exemplo, eu mesmo
nunca diria que “Os Sofrimentos do Jovem Werther” é um livro
ruim porque várias pessoas se mataram depois de ler. As pessoas se
mataram porque o livro é ruim, mas não podemos culpar Goethe pelas
mortes, apenas pela má escrita.

Voltando ao conceito de arte própria, que foi retirado de Aristóteles, em


“Poética”:

“Muito melhor seria se a tragédia, ainda que precária neste aspecto


[moral], possuísse uma narrativa e estrutura dos atos. […] A narrativa é o
princípio e, por assim dizer, a alma da tragédia, enquanto o caráter moral
não passa de secundário […] a tragédia é imitação da ação e é, sobretudo,
em virtude da ação que ela representa os agentes. Em terceiro lugar vem o
pensamento, isto é, a capacidade de dizer o que é pertinente e apropriado,
o que nos discursos formais é função da política e da retórica”.
Talvez os moralistas de plantão comecem a arrancar os cabelos e barbas,
dizendo que a arte é um veículo de valores; uma arte sem valores é uma
arte nula. De fato, toda arte de verdade carrega valores, e não há arte sem
moral, a moral é um elemento constituinte do próprio conflito retratado
pelo artista, porém se observarmos as palavras de Aristóteles, notamos uma
certa hierarquia: primeiro a forma da tragédia (narrativa e estrutura dos
atos, os elementos estéticos, próprios), depois vêm os temas e retórica.
Acontece que, na visão de minha classe, a dos artistas, nós costumamos
fazer a diferenciação entre “conteúdo formal” (como se diz) e “conteúdo
material” (aquilo que se diz), se assim eu puder colocar. O conteúdo
formal, ou literário, de Madame Bovary é o jogo de vozes, os discursos
indiretos livres, os cenários metafóricos ou psicológicos, a montagem, o
enredo e todas as sutis filigranas que fazem parte da técnica narrativa de
Flaubert. Já o conteúdo material seriam: temas (amor e ódio, religião e
cientificismo, castidade e adultério), a história (sequência de
acontecimentos puros e simples que compõe o enredo ou trama), juízos
morais, filosofias, em suma, tudo aquilo que se conhece vulgarmente por
“conteúdo” da obra literária. Sem essa distinção, é impossível saber o que é
de fato literatura per se e o que é uma discussão filosófica ― ou
sociológica, histórica, etc. ― gerada a partir da literatura. Em geral,
quando entramos no tema, saímos da arte.

Para o verdadeiro artista, o velho conflito entre “forma e conteúdo” não


passa de uma discussão de caipiras, pois ele sabe que, na prática, não há
nenhuma concorrência: uma obra malfeita não pode ser boa arte por ter
“bom conteúdo”; nem pode ser considerada bem-feita se o artista der
tratamento fútil e pouco original ao tema, mesmo que esse seja considerado
fútil como é o caso do tema de nossa Bovary. Toda boa arte agrada tanto no
nível intelectual quanto no nível estético. O conteúdo, a história e os temas
não passam de uma desculpa para que o artista crie. E criando é que ele se
expressa: não somos nobres filósofos, santos ou profetas, temos apenas
algumas coisas belas a dizer ― isto se fizermos um bom trabalho. O que
ocorre é que, vez por outra, aquilo que os artistas dizem ou mostram é algo
tão belo e verdadeiro sobre a condição humana, transmitido com tanta
sinceridade, que altera nossa própria percepção da realidade: notamos
novos padrões e tipos humanos, ou mesmo situações, aos quais nossos
olhos estavam cegos.

TOLKIEN E A DEFORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO


Por Paulo Cantarelli / 19 de março de 2019
“Os livros não são escritos para quem gosta de poemas que fazem alguém
chorar, ou, em prosa, adora personagens nobres. Somente crianças podem
ser desculpadas por se identificarem com os personagens de um livro ou
sentirem prazer com histórias de aventura mal escritas.” ―  Vladimir
Nabokov

Recentemente publiquei o artigo “O Fim da Arte”, que tinha por intuito ser
a primeira parte de um artigo maior, a respeito das declarações que fiz
sobre o escritor britânico J. R. R. Tolkien. Houve a necessidade de, dado o
estado das coisas, esclarecer algumas questões confusas na mente do leitor
médio acerca do que é arte e quais suas funções. Questões que, em
qualquer ambiente intelectualmente saudável, não gerariam grande
polêmica nem careceriam de serem explicitadas. Aliás, no Brasil, perdeu-se
completamente o senso de proporções, de modo que escritores medíocres
são tidos como grande coisa e, não bastando a produção de matéria
digestiva em cenário nacional, ainda se importam tipinhos como Tolkien e
outros escritores menores que mais deformam do que educam a imaginação
do leitor, como se verá a seguir. A saber, qualquer escritor que julgo é
julgado pelo único parâmetro que importa: o da arte verdadeiramente
grande. Então, se você ainda não leu nenhum artigo anterior que escrevi
sobre o tema, recomendo que volte e os leia, pois não pretendo elencar
mais critérios do que os que eu já defini.

I – A DECADÊNCIA DA ARISTOCRACIA

“Literatura é feita por quem gosta de literatura e para quem gosta de


literatura de verdade. O resto mais é ‘literatura’ de pacotilha ou best-
seller, matéria digestiva, passatempo de pessoas não muito exigentes.
Sempre foi assim, é elitismo mesmo.” ― Autran Dourado

A Antiguidade e a Idade Média são notórias por terem produzido as


maiores mentes da humanidade. Pensadores de primeira ordem: Platão,
Aristóteles, Plotino, Cícero, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho; e
artistas do porte de Homero, Sófocles, Eurípedes, Virgílio, Dante, Chaucer.
Porém, a educação era algo para poucos, o que significa que ela e a arte
eram aristocráticas. Uma pequena elite, ao longo de toda a história, foi
responsável por manter a cultura ocidental e, em alguns períodos, foi ela
mesma a principal consumidora dessa cultura. Afinal de contas, o que
importa não é a plateia nem os aplausos, mas a contribuição, ainda que
pequena, para aquele grande mosaico que veio antes de nós e se perpetuará
até o fim dos tempos.

A prensa de Gutenberg iniciou uma revolução inevitável: os livros se


tornaram acessíveis. Os monges copistas não teriam de se preocupar em
serem os principais bastiões do saber de toda humanidade, o conhecimento
tornara-se facilmente replicável. Em poucas horas poderia se reproduzir
centenas de livros prontos para a leitura. Com a massificação do ensino,
conseguimos a alfabetização em massa, o acesso a muitas informações
antes indisponíveis à maioria das pessoas. Com isso, a educação deixou de
ser aristocrática, a alfabetização tornou-se comum a todos. Sem dúvidas um
grande avanço, a educação tornou-se, pela primeira vez, “democrática”. E
com todos sendo educados, todos começam a dar pitaco no que deveria ser
ensinado. Assim a educação se tornou mais resumida e pragmática,
raquítica, protética feito os membros postiços dos amputados de guerra.
Hoje, o sentido de educação está cada vez mais ligado a uma série de
protocolos formais do que, como diria o filósofo Olavo de Carvalho, a
distinguir o que merece ser mantido, ensinado, daquilo que deve ser
esquecido e descartado.

Os tipos de valores que antes constituíam a alta cultura mudaram, e assim


todos os valores que formam os pensadores maiores ― ou artistas maiores
― somem, ou tornam-se cada vez mais escassos. Restam, no mundo,
poucos escritores preocupados com a grande arte ou que realmente a
fazem. Na realidade, sempre houve poucos bons escritores e podemos
afirmar sem medo que mais de nove décimos do que se produziu na história
da literatura possui pouco ou nenhum valor artístico. A maior parte do que
se encontra hoje, nos prêmios ou no mercado, é absoluto lixo: histórias pré-
fabricadas, feito qualquer dos livros mais recentes de um Raphael Montes
ou Eduardo Spohr, todas pornografia ou, no caso dos Jabutis, pornografia
sofisticada. Isso é o que tem sido empurrado goela abaixo nos leitores hoje
em dia. E é nesta categoria que se encontram os escritos de Tolkien: a
masturbação mental de uma mente supostamente criativa.

II – ARTE E IMAGINAÇÃO

A primeira coisa que dizem quando se fala em J. R. R. Tolkien é: ah, mas


ele é grande criador de mundos. Será mesmo? Bem, ele criou inúmeras
línguas e dialetos para colocar no livro. Sim, é verdade, porém a pergunta
que ninguém aparentemente faz é: e que diabos isso acrescenta ao valor
artístico? Pelo que sei, élfico tem tanto valor literário quanto o esperanto.
Isso é filologia, não literatura. Esses idiomas inventados para obras
ficcionais são, no máximo, o exercício criativo de um estudioso das
línguas, mas não dum artista. E pensar que há quem se dedique a aprender
essas baboseiras sem valor cultural algum, melhor seria se dedicar ao grego
e ler Homero no original, e aí, sim, ver uma verdadeira obra de arte.

Isso é resultado de uma cultura de imbecilização gerada pela “Cultura


Pop”: hordas de nerds obesos, que não foram alfabetizados direito, com
seus louvores a ficções científicas, distopias, utopias, mundos fictícios
duma idade média que em nada se assemelha ao medievo de Dante, ou de
heróis fictícios de pura masturbação especulativa, seja Marvel ou DC
Comics, que substituíram Aquiles e Odisseu no imaginário popular sem
nada acrescentar de valor. Wolverine é elevado ao nível de Hamlet (ou, no
caso, talvez Shakespeare que tenha sido rebaixado). Não me leve a mal, eu,
feito qualquer um, vou ao cinema, vejo os besteiróis de entretenimento,
porém não me esqueço de que é apenas entretenimento. Na realidade, vou
cada vez menos ao cinema, pois para assistir porcaria, basta ligar a
televisão e assistir à “Sessão da Tarde” (é uma perda de tempo menos
custosa que ler um livro ruim, talvez por isso filmes ruins façam tanto
sucesso). Não é à toa que filmes do calibre de “A Favorita”, de Lanthimos,
tenham perdido espaço para obras menores, a exemplo de “Pantera Negra”.
Mais do que politização do cinema, há a total falta de senso crítico e
estético de quem julga. E no meio desse tiroteio tresloucado, nós,
brasileiros, perdemos nossa identidade, não incorporamos mais apenas o
mais alto da cultura estrangeira, mas nos deixamos dominar pelo pior do
gosto médio.

Mas voltando ao ponto: e a Terra-Média? A mesmíssima coisa: Tolkien


tornou-se um geógrafo, cartógrafo, lexicógrafo, sociólogo e historiador de
um mundo impossível. Já disse em outro artigo, e repito: esses tipos de
autores movem o eixo da ficção, das personagens para o cenário, situações
ou temas, entregam-se à fantasia tresloucada, à imaginação desvairada, à
pura especulação. Quanto mais a obra literária se afasta do eixo do
humano, e mais especulativa se torna, pior fica. A fantasia, essa imaginação
sem controle, é o objeto das investigações literárias desse tipo de escrita, o
humano apenas um fator. Imaginação tem mais a ver com a capacidade de
conceber os modelos possíveis da experiência humana, diria Northrop Frye,
e nenhum dos cenários ou descrições de Tolkien contribuem para o
enriquecimento da psicologia ou pontos de vista das personagens. Nem
mesmo o cenário é original, ao menos para quem já leu Beowulf ou
as Edas nórdicas, ou mesmo assistiu a qualquer ópera wagneriana de Der
Ring des Nibelungen. Falta aos fãs de Tolkien parâmetros. Aliás, quantos
deles você já não ouvir dizer: “as personagens são rasas”, “as descrições
muito longas”, “há muitos eventos sem importância” e, last but not least,
“eu quase morri de tédio até chegar na festa do Bilbo”? Sejamos sinceros,
Tolkien passa longe de ser bom escritor.

III – FANTASIA TRESLOUCADA

Antes de tocar no ponto das descrições e “construção de mundo”, convém


lembrar uma carta de Tchekhov ao irmão:

“A ‘Cidade do Futuro’ é um tema excelente, tanto por sua novidade


quanto pelo interesse. Acho que, se a preguiça não bater, escreverás
bastante bem, mas és preguiçoso como o diabo gosta! A ‘Cidade do
Futuro’ será uma obra de arte somente nas seguintes condições:

1. Ausência de intermináveis palavrórios de caráter político, social e


econômico.

2. Objetividade total.

3. Veracidade nas descrições de personagens e objetos.


4. Brevidade máxima.

5. Ousadia e originalidade; foge dos chavões.

6. Cordialidade. [Sinceridade/Honestidade].”

Moscou, 10 de maio de 1886, de Anton Tchekhov a Aleksandr Tchekhov

A título de curiosidade, essas regras definem, até hoje, a problemática de se


escrever ficção científica ou distópica com alta qualidade artística, o que
ainda não acredito ter sido feito, à exceção de alguns escritos de Ítalo
Calvino. Essas regras também se aplicam a qualquer criação de mundo
fictício. Eu ainda adicionaria ao item 01 a ausência de palavrórios sobre a
geografia, história ou qualquer tema inconveniente para o fluxo narrativo,
em qualquer tipo de ficção.

À primeira vista, as descrições de Tolkien podem enganar, brilham feito


joias falsas, pois, ao nos aproximarmos, notamos que o texto não possui
força alguma. São muitas palavras para se dizer pouco, pura fantasia, nada
se vê, realmente ou, quando se vê, essas descrições não possuem caráter
psicológico ou metafórico para a narrativa. Se o autor mostra algo no texto,
esse algo deve ter tom, função ou efeito, como já nos ensina Poe. Se o autor
mostra uma pistola em cima da mesa, ele deverá usá-la nem que seja para
matar o narrador.

IV – O NARRADOR JOGADO DO ABISMO

Um aspecto que devemos abordar é o narrador e a metanarrativa ― ou,


como os tolkienianos gostam de chamar, mise en abyme, ou narrativa em
abismos. Uma metanarrativa nada mais é do que uma narrativa dentro de
outra, feito caixas chinesas, porém, para que isso tenha algum valor
artístico, é preciso que as narrativas internas acrescentem à narrativa
principal, que elas se conectem entre si. Sempre que abrimos um diálogo e
temos uma personagem contando uma história, temos também uma
mudança de narrador e de narrativa. Portanto não há nada demais, nem
mesmo de sofisticado, em simplesmente escrever uma narrativa dentro de
outra. Tudo depende do trato e habilidade artísticos.

Agora, o que os devotos de Tolkien afirmam é que existem um “autor


externo” e vários “autores internos” (que seriam as personagens) num tal de
“Livro Vermelho”, que seria de onde os relatos dos escritos são retirados.
Melhor deixar o autor explicar, como faz no prólogo de “O Senhor dos
Anéis”:
“Em grande parte, este livro trata de hobbits, e através de suas páginas o
leitor pode descobrir muito da personalidade deles e um pouco de sua
história. Informações adicionais podem ser obtidas na seleção feita a
partir do Livro Vermelho do Marco Ocidental, já publicada sob o título de
O Hobbit. Essa história originou-se dos primeiros capítulos do Livro
Vermelho, escritos pelo próprio Bilbo, o primeiro hobbit a se tornar
famoso no mundo todo, e chamados por ele de Lá e de Volta Outra Vez,
porque relatavam a sua viagem para o Leste e sua volta: uma aventura
que mais tarde envolveria todos os hobbits nos grandes acontecimentos
daquela Era relatados aqui.”

Sim, esse é o início do livro. Aliás, se há um prólogo no livro, pode pular,


não é importante, do contrário o autor teria deixado a ação correr solta, sem
explicar. O que os analfabetos literários chamam de “autor externo”, neste
caso, não é nada mais que o velho narrador onisciente clássico, que já
deveria estar mortinho desde a publicação de Madame Bovary, em 1856.
Para quem supostamente segue alguma tradição, Tolkien está bem atrasado.
É o tipo de narrador que se intromete, dá pitaco, explica e explica e explica.
Literatura não se explica, já dizia Aristóteles que a ação é a alma da
narrativa; é pela ação que devemos deixar que as personagens se revelem.
Além disso, o narrador, em obras ficcionais, nunca é o autor. Pode ser no
máximo um alter ego, mas nunca é o autor, ao contrário do que acontece
em textos não ficcionais. Em literatura, o narrador é sempre uma das
personagens do livro, e talvez a mais importante. A título de comparação,
recomendo a leitura do artigo “Uma Literatura Fantástica Inesperada:
‘Grendel’, de John Gardner”, para ver como um escritor de verdade trata
um tema, ainda que em situações impossíveis.

Então o “autor externo” seria o próprio Tolkien que, no universo ficcional,


teria traduzido os escritos para o inglês moderno? Com o perdão da
palavra: que caralhos isso acrescenta algo à narrativa? Em nada. Para um
analfabeto literário, a linha entre encontrar as reais qualidades artísticas de
um texto e inventá-las é tênue.

Tudo bem que, como há de se constar, o prólogo era um recurso estilístico


usado na Idade Média ― até mesmo na antiguidade o narrador de Odisseia
canta brevemente às musas ― porém isso era mais costume que uma
técnica real. A exemplo de “Tirant Lo Blanc” e “Dom Quixote”, ou mesmo
outras novelas de cavalaria, o autor costumava endereçar um breve prólogo
ao leitor para explicar a narrativa. Em geral isso é ruim, além de
desnecessário ― aqui não estou sendo anacrônico, pois é preciso ter algum
senso crítico mesmo lendo os clássicos, para incorrer em seus acertos, não
nos erros; ao menos se você for um artista. Poucos se lembram do prólogo
do Quixote, mas certamente todo leitor se lembra do início derradeiro: “En
un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme”. Perdoamos
os erros da época, porém esses prólogos são apenas uma apresentação do
narrador heterodiegético (nome feio para um narrador de fora do espaço e
tempo do que está sendo narrado, ou narrador em terceira pessoa), e não
uma narrativa dentro da outra, afinal, o que sabemos sobre o universo do
narrador? Nada. Há alguma relevância nele? Nenhuma. Na arte, toda
repetição é nula. O uso que Tolkien faz desse recurso estilístico é nulo para
efeitos de metanarrativa ou arte, diferentemente de Umberto Eco, em “O
Nome da Rosa”, que abre o prólogo com um narrador em primeira pessoa,
Adso de Melk, já velho, para recontar uma história que viveu na juventude.
Aqui temos dois tempos e espaços narrativos se mesclando com um
narrador que transita entre ambos.

Um exemplo ainda melhor é o do uso feito por Ítalo Calvino, em “O


Cavaleiro Inexistente”, que por sinal é uma novela de cavalaria moderna,
belíssima homenagem a essa tradição e com moldes fantásticos. Calvino
começa a montar uma história com o ponto de vista de um narrador relator,
que mostra os pontos de vista das personagens sem se intrometer,
inicialmente pairando acima das tropas de Carlos Magno:

“Sob as muralhas vermelhas de Paris perfilava-se o exército da França.


Carlos Magno ia passar em revista os paladinos. Encontravam-se ali
havia mais de três horas; fazia calor, era uma tarde de começo de verão,
meio encoberta, nebulosa; quem usava armadura fervia como se estivesse
em panelas em fogo baixo. É provável que, naquela fila imóvel, de
cavaleiros, alguém já houvesse perdido os sentidos ou cochilasse, mas a
armadura os mantinha empertigados na sela de modo uniforme. De
repente, três agudos de corneta: as plumas dos penachos agitaram-se pelo
ar parado como depois de uma rajada de vento, e logo silenciou aquela
espécie de rumor do mar que se ouvira até então, e era, deu para sentir,
um ressoar das gargantas metálicas dos elmos. Finalmente, vislumbraram-
no avançando lá do fundo, Carlos Magno, num cavalo que parecia maior
que o natural, com a barba no peito, mãos no arção da sela. Reina e
guerreia, guerreia e reina, faz e desfaz, parecia um tanto envelhecido
desde a última vez que aqueles guerreiros o tinham visto.”

Se você foi alfabetizado, deve ter notado a diferença. Temos uma belíssima
cena de abertura, bem construída. Todo o cenário humano nos remete ao
calor, à preguiça, as imagens colaboram para o sentimento estético do
texto, podemos ouvir o murmúrio dos elmos, que parecem com o do mar, e
cozinhamos brandamente com os cavaleiros em suas armaduras. Cada
adjetivo conta, há só descrições relevantes aos olhos. Há colorido
psicológico. Porém, antes de seguir para a comparação com um trecho de
Tolkien, direi como entra a metanarrativa neste livro: é apenas no capítulo
quatro, e não no primeiro, que Calvino coloca uma espécie de monólogo
em primeira pessoa ― que faz o papel do prólogo das narrativas antigas ―
de uma narradora até então desconhecida. Descobrimos ser uma freirinha
quem conta a história e que, ao longo da novela, faz uma série de breves
monólogos sobre escrita, pequenas pérolas que todo escritor ― e Calvino
não escapa disso ― gosta de deixar sobre as próprias visões de literatura.
Além de mais essa metalinguagem do escritor-narrador, ao final
descobrimos que a narradora era uma das personagens da história que
contava, o que causa uma peripécia (ou reviravolta). Ou seja: esse detalhe
altera completamente perspectiva do leitor sobre o texto, forçando-o a
reavaliar tudo o que foi lido.

V – UM LIVRO PARA CRIANÇAS?

Sempre que toco na questão de estilo, dizem: mas Tolkien escreveu para
crianças. E por acaso crianças são retardadas? As crianças gregas liam
Homero e Sófocles em sua formação, Tolstói e Flaubert foram criados à
base de Ilíada, Divina Comédia e Dom Quixote, além de Shakespeare e
outras grandes obras da literatura ocidental. Então por que diabos
começamos com essa mania de literatura infantil, ou infanto-juvenil? A
literatura, para crianças, deve apenas ter uma linguagem mais acessível,
sem que com isso perca sofisticação estética, de modo que um adulto possa
apontar as nuanças do texto para que ela compreenda ― aliás, hoje em dia
mesmo os adultos são incapazes de interpretar uma linha, sequer, da ação
duma narrativa.

A própria trilogia dos Nossos Antepassados (da qual faz parte O Cavaleiro
Inexistente), de Calvino, poderia ser considerada para crianças, já que
possui o tom fantástico e inocente de contos de fadas. Só que são livros
cuja qualidade estética é tão boa que não notamos que também podem ser
lidos por crianças. Mesmo o já citado Grendel, de Gardner, foi lançado nos
Estados Unidos como ficção adulta e, na Inglaterra, literatura infantil. O
autor nunca deixou claro, tanto nos escritos não ficcionais quanto em
entrevistas, qual era o “público alvo” do livro, apenas menciona que
crianças e jovens não deveriam encontrar problemas em lê-lo.

Mais um exemplo, Liev Tolstói escreveu inúmeras fábulas para crianças


pequenas, em fase de alfabetização, sem jamais tratá-las feito idiotas, nem
explicando todos os detalhes da narrativa. Se tem dúvidas sobre isso, leia
“De Quanta Terra Precisa um Homem”, que é um ápice na literatura
universal. Mesmo com a linguagem simples, a montagem das cenas, as
descrições, os diálogos, monólogos interiores, tudo é disposto de modo que
a criança possa refletir sobre a história que lê, e não somente se entreter
numa narrativa sem futuro. Literatura não é vitamina C, não lemos “porque
faz bem”. Lemos para nos inquietarmos, para conhecermos o humano em
nós, e creio que crianças não são muito diferentes disso. Dê Tolkien e
Asimov para uma criança ou jovem ― embora a adolescência já seja um
período muito tardio para se começar a ler, isso deveria ser um hábito do
berço ― e dez anos depois é provável que eles tenham lido apenas Tolkien
e Asimov. Dê historinhas de ficção policial e terror, que eles ficarão para
sempre em Agatha Christie e Stephen King. Agora dê um clássico, dê um
livro realmente duradouro, com experiências humanas verdadeiras e
dilemas morais realmente profundos, não baboseiras de entretenimento, e
você estará formando um homem superior, que entrou em contato com
aqueles grandes valores já desaparecidos, consciente dos grandes
problemas da vida e do significado da própria existência. Ler literatura não
faz bem. Faz mal. É tão tóxica, e embriaga tanto quanto absinto, que nos
faz vomitar as entranhas de nossa própria alma na busca de sentido.

VI – FALTA DE ESTILO, OU: DANDO BOAS VINDAS AOS


CONVIDADOS NA LÍNGUA

Flaubert costumava dizer que tudo era estilo. De criação do enredo e


disposição das cenas, à sintaxe das frases e escolha dos adjetivos, tudo é
estilo. E sob uma perspectiva realmente técnica, não podemos dizer que
Tolkien foi sequer um grande artista. No programa Entender Ficção nº 03,
dissequei alguns trechos tão ingênuos ― para não dizer ridículos ― aos
quais farei breve menção e, adiante, seguiremos com mais outras passagens
escolhidas aleatoriamente.

A primeira coisa a se mostrar é que Tolkien é um mestre em criar imagens


sem imagens, talvez só perdendo o primeiro lugar para o escrevente H. P.
Lovecraft, porém Shittycraft, com o perdão do trocadilho, está tão afundado
nas profundezas abissais da pseudoliteratura que seria injustiça lançar
Tolkien ao mesmo círculo do inferno literário. Notamos que Tolkien não
sabe nem mesmo o básico do estilo em língua inglesa, pois escreve frases
que constantemente nos deixam perdidos no texto. É total falta de trato
artístico, como podemos notar neste trecho do capítulo VII:

Haldir conduziu Frodo à presença deles, e o Senhor deu-lhe boas vindas


em sua própria língua. A Senhora Galadriel não disse uma palavra, mas
ficou observando longamente seu rosto.

Haldir led Frodo before them, and the Lord welcomed him in his own
tongue. The Lady Galadriel said no word but looked long upon his face.

“Haldir conduziu Frodo”, tudo certo. “E o senhor deu-lhe boas-vindas”.


Deu boas vindas a quem? Haldir ou Frodo? Podemos entender pelo
contexto que é Frodo, mas “o Senhor deu-lhe boas-vindas em sua própria
língua”? Ele deu um beijo na boca do convidado, por acaso? Não é à toa
que surgiu um clima pesado e a “Senhora Galadriel não disse uma palavra,
mas ficou observando longamente seu rosto [seu de quem?]”. Aliás, o
tradutor deveria ter evitado a locução verbal “ficou olhando” e utilizado
“observou”. Em se tratando de estilo, quanto mais simples, melhor.

Erros desse tipo ―  e em tamanha abundância ― são tão básicos que


fariam Henry James espancar qualquer escritor de língua inglesa que
tentasse se utilizar do título de artista sem antes corrigi-los. Que tipo de
escritor é esse que vive num mundinho onde não há trocadilhos, cacófatos
ou ambiguidades? Foram três ambiguidades em vinte e seis palavras. O
pior é que literalmente podemos abrir o livro em qualquer página que os
erros brotam feito tubérculos. Não é preciso esforço nenhum para encontrá-
los, vejamos um trecho do capítulo V:

“A multidão de orcs se abriu, e se amontoou do lado, como se eles


próprios estivessem com medo. Alguma coisa vinha atrás. Não se podia
ver o que fosse: era como uma grande sombra, no meio da qual havia uma
forma escura , talvez humanóide, mas maior; poder e terror pareciam
estar nela e ao seu redor.”

Notamos a imprecisão do escritor logo de início. Por que “como se eles


próprios estivessem com medo”? Não adianta dizer que é a perspectiva dos
protagonistas, o suspense será quebrado na oração seguinte em “alguma
coisa vinha atrás”. Então uma frase precisa pediria por “estavam com
medo”. A seguir, o narrador diz que não se via o que era que vinha, mas
que era como uma grande sombra com [sic] uma forma escura no meio.
Não preciso nem comentar sobre pleonasmos e redundâncias, não é
mesmo? A descrição brilha feito ouro dos tolos e, igualmente, não tem
valor literário nenhum. Parece apresentar algo, porém logo vemos que o
autor disse, disse, disse e não falou nada. Palavrório desgraçado. E ainda,
mesmo não podendo ver nada, conseguia-se ver que a sombra talvez fosse
um humanoide e “poder e terror pareciam estar nela e ao seu redor”, seja lá
o que isso signifique. Próximo parágrafo:

“A figura veio para a extremidade do fogo e a luz se apagou, como se uma


nuvem tivesse coberto tudo. Então, com um movimento rápido, pulou por
sobre a fissura. As chamas bramiram para saudá-la, e se ergueram à sua
volta; uma nuvem negra rodopiou subindo no ar. A cabeleira esvoaçante
se incendiou, fulgurando. Na mão direita carregava uma espada como
uma língua de fogo cortante; na mão esquerda trazia um chicote de muitas
correias.”
Mais uma descrição que parece que dará em algo, mas não mostra nada. A
precisão se perde com a quantidade de símiles, tantas em tão poucas linhas.
O uso do símile não é proibido, apenas advirto contra o excesso. Além do
mais, mais adiante o narrador dirá que havia literalmente uma nuvem negra
ali, então a símile não se faz necessária. O “com um movimento rápido,
pulou sobre a fissura” poderia ser simplesmente “pulou sobre a fissura”. Os
espertinhos de plantão não venham me dizer que são erros de traduções,
pois se dá o mesmo em inglês. Na realidade, um escritor de verdade saberia
dispor a ordem das ações de tal modo que as imagens se tornassem mais
nítidas, porém sabemos que Tolkien não pertence a essa categoria. Melhor
seria algo como: “A figura chegou à extremidade do fogo e pulou sobre a
fissura, a luz se apagou e uma nuvem negra cobriu tudo, as chamas se
ergueram para saudá-la”. Ainda não seria o ideal, mas manter alguma
linearidade nas ações do sujeito da oração dá mais clareza à frase. Apenas
no final temos alguma nitidez, embora eu questione a necessidade de dizer
em qual mão estava o que. Mas agora, o créme de la créme:

— Ai! Ai! — gemeu Legolas. — Um balrog! Um balrog vem vindo!

Gimli olhou com os olhos esbugalhados.

— A Ruína de Durin — gritou ele, deixando cair o machado e cobrindo o


rosto.

— Um balrog! — murmurou Gandalf. — Agora eu entendo. — Perdeu o


equilíbrio e se apoiou no cajado. — Que má sorte! E eu já estou exausto!

Não sei se carece de algum comentário sobre esse diálogo extremamente


verossímil… Aliás, essa é uma palavra que o autor não conhecia,
verossimilhança. Alguns vão argumentar que é um livro para crianças, mas
isso lá é hora de alívio cômico? Numa das cenas de maior tensão no livro? 
E sim, em inglês está escrito: ‘Ai! ai!’ wailed Legolas. ‘A Balrog! A Balrog
is come!’.

Além da falta de tato dramático, há inúmeras instâncias de enunciação


marcando as falas ― os “gemeu Légolas”, e etc. ―, que cortam o fluxo do
diálogo. Uma possível sugestão de correção seria:

Légolas gemeu:

―  Um balrog!

Gimili cobriu o rosto, deixando cair o machado, e gritou:

― A Ruína de Durin!
Gandalf perdeu o equilíbrio e se apoiou no cajado:

― Agora eu entendo.”

Percebemos um pouco melhor a cena, mas isso é enxugar gelo. Não tenho
nenhuma intenção de corrigir o que já foi escrito, este é só um exercício
para demostrar como alguns problemas poderiam ser evitados. Agora, a
título de comparação, leremos em uma cena aleatória de Homero, em
Ilíada:

“Foi então em Iloneu que Peneleu enterrou a lança,

debaixo do sobrolho, nas raízes dos olhos,

ejetando o próprio olho: a ponta penetrou direita

através do olho e da garganta; tombou para trás,

esticando ambos os braços. Mas Peneleu desembainhou

a espada afiada e desferiu-lhe um golpe no pescoço,

decapitando-lhe a cabeça com o elmo. No olho estava

ainda a lança potente; e levantando-a como uma papoula

mostrou-a aos Troianos […].”

― Ilíada, tradução de Frederico Lourenço, Canto XIV, versos 493-500

Homero é tão maravilhoso que podemos abrir em qualquer página e,


literalmente, encontrar uma descrição belíssima . Podemos ver a perfeita
construção da cena e mesmo a repetição da palavra olho causa inquietação
no leitor. Não sei se o tradutor Frederico Lourenço utilizou
conscientemente a palavra “sobrolho”, pois esta possui a palavra “olho”
dentro dela, gerando ainda mais tensão na frase por meio das repetições no
som. Além disso, o estilo homérico é originalmente oral e em versos. Mas
podemos ver com clareza cada detalhe da cena sem que nada sobre. Caso
haja qualquer alteração, a estrutura desaba. Falando em estrutura, este será
nosso penúltimo tópico.

VII – ATLAS IMPOSSÍVEL

Agora uma breve comparação do cenário puramente natural de Tolkien


com o cenário psicológico utilizado por Calvino. Deixarei um trecho do
capítulo XI:
“No flanco oeste do Topo do Vento encontraram uma reentrância coberta,
em cuja parte inferior havia um pequeno vale côncavo, com as encostas
cobertas de capim. Ali deixaram Sam e Pippin e o pônei e todas as
mochilas e bagagens. Depois de meia hora de escalada dificultosa,
Passolargo atingiu a coroa da colina; Frodo e Merry o seguiam, cansados
e sem fôlego. A última subida era íngreme e pedregosa.

No topo encontraram, como Passolargo tinha dito, um grande círculo, de


uma construção antiga de pedra, agora ruindo, ou coberta pelo mato
havia muito tempo. M as no centro um monte de pedras quebradas tinham
sido empilhadas, fazendo lembrar uma construção tumular. Estavam
enegrecidas, como se pela ação do fogo. Em volta dessas pedras, a turfa
estava queimada até as raízes e em todo o interior do círculo o mato
estava chamuscado e murcho, como se chamas tivessem varrido o topo da
colina: mas não havia sinal de qualquer coisa viva.

Em pé, sobre a borda do círculo em ruínas, puderam ter uma boa visão de
toda a região em volta, pois a maior parte das terras era vazia e sem
acidentes, com a exceção de trechos de florestas distantes, na direção sul,
além dos quais via-se, aqui e ali, o brilho de águas distantes. Abaixo de
onde estavam, nesse lado sul, a Velha Estrada se estendia como uma fita,
vindo do oeste e descrevendo curvas que subiam e desciam, até
desaparecer atrás de uma serra escura no leste. Nada se movia nela.

Seguindo com os olhos a linha da Estrada em direção ao leste, viram as


Montanhas: os sopés mais próximos eram escuros e sombrios; atrás deles
se erguiam formas cinzentas mais altas, e atrás destas, por sua vez,
ficavam altos picos brancos, luzindo contra as nuvens.”

Perdoe pela extensão, eu mesmo sinto como se batesse em cachorro morto,


porém é preciso tecer esses comentários exaustivamente, para que não surja
mais ninguém com um “mas”. Quantas vezes o autor terá que dizer que as
personagens estão ao norte, sul, leste, oeste? De que me adianta saber as
coordenadas se não há nenhum detalhe que torne isso relevante? Não é
proibido dizer “ao norte” ou “ao sul”, desde que haja algum sentido
narrativo. As personagens vão do sul para o norte e, ao olhar para o sul,
lembram-se de casa? Tudo bem, é um uso válido, mas não é necessário dar
os pontos cardeais e subcolaterais o tempo todo, principalmente se eles não
dão nem clareza nem acrescentam em nada. E quantas vezes é preciso
repetir palavras? Quantas vezes já lemos imagens que se repetem sem
necessidade? Essas repetições desnecessárias são feias. Em inglês, algumas
delas são suprimidas, outras não, mas são poucas. O próprio autor utilizou
“Weathertop” como o nome do local e, logo em seguida escreve “On
the top they found”. É preciso ter ouvido para os ecos. São muitos ruídos,
muitas imprecisões dentro das frases, de modo que isso quebra a imersão
do leitor atento.  Uma reconstrução possível seria:

No flanco do Topo do Vento encontraram uma reentrância coberta, com as


encostas cheias de capim. Ali deixaram Sam, Pippin, o pônei e bagagens.
Depois de meia hora de escalada dificultosa, Passolargo atingiu a coroa
da colina; a última subida era íngreme e rochosa, Frodo e Merry o
seguiam sem fôlego. Lá encontraram, como Passolargo tinha dito, um
grande círculo de pedra em ruínas, coberto pelo mato havia muito tempo.
No centro, um monte de pedras empilhadas que lembravam um túmulo.
Pareciam enegrecidas pelo fogo e, ao redor, a turfa estava queimada até
as raízes, o mato chamuscado e murcho, como se chamas tivessem varrido
o topo da colina. Não havia sinal de qualquer coisa viva.

De lá, viam toda a região. A terra era vazia e sem acidentes, com a
exceção das florestas ao sul, além das quais via-se, aqui e ali, o brilho de
águas distantes. Abaixo, a Velha Estrada se estendia feito uma fita, vinda
do oeste e descrevendo curvas que subiam e desciam, até desaparecer
atrás de uma serra escura no leste. Nada se movia nela. Seguindo-a, via-se
as Montanhas: os sopés eram escuros e atrás deles se erguiam sombras
mais altas, e atrás destas, os picos brancos, luzindo contra as nuvens.”

Bem mais direto, porém ainda não ideal. Como podemos ver, Tolkien se
perde nas próprias descrições, vários cortes e elas poderiam se tornar um
momento de beleza e contemplação, transmitindo o sentimento das
personagens. Porém temos só uma sombra muito vaga disso, as imagens
são ofuscadas por palavras que sobram e construções sintáticas confusas ou
repetitivas, gordura que poderia ser queimada sem medo de desperdício.
Não é à toa que há os que se impressionam, e até mesmo gostam das
descrições de Tolkien, porém a estes faltam parâmetros por não terem lido
coisa melhor.

VIII – QUANDO O FILME É MELHOR QUE O LIVRO

Após este artigo, é provável que o leitor pense que não gosto da história de
“O Senhor dos Anéis”. Pelo contrário, acho ótima, porém nem só de
história vivem os livros, como veremos adiante. A história, dizia Autran
Dourado, é o artifício que os escritores usam para bater a carteira do leitor.
Porém nem como enredista Tolkien serve: as ações do livro são muito
dispersas, mal estruturadas, as personagens ficam muito distantes umas das
outras em “As Duas Torres” e “O Retorno do Rei”. Pode-se argumentar
que é intencional, algo para o leitor sentir distância entre os núcleos
narrativos, porém o diretor Peter Jackson conseguiu uma montagem muito
boa dos acontecimentos da trama ― e até com certo parentesco homérico,
arrisco dizer ― ao intercalar as várias linhas de ações da narrativa de modo
que o espectador assista aos filmes sem perder a empatia pelas
personagens. Esse tipo de estruturação dá ao espectador ou leitor uma
melhor percepção temporal da narrativa, isso quando os eventos se passam
simultaneamente, é claro. Grandes romancistas costumam prestar atenção
nisso, é um elemento importante para não se perder o ritmo. Em “Ilíada”
isto se dá com a mudança das perspectivas entre os núcleos dramáticos, de
modo que nós pairamos pela narrativa, de uma personagem a outra, indo do
Olimpo a Tróia numa passada de versos.

Peter Jackson também cortou inúmeras ações inúteis e, visualmente, deu


novos significados a cenários já conhecidos pelos leitores. Convenhamos, a
versão cinematográfica é melhor que o livro.

IX – HISTÓRIA É PARA FAZER BOI DORMIR

Posto que a história seja boa, convém admitir que a literatura não se
sustenta só com ela. O que subsiste num romance, novela ou conto é a
exposição da condição humana, a investigação do humano. Literatura de
verdade não é ― como já expus anteriormente ―  a defesa ou crítica de
ideias, ideologias, moral ou imoralidade; nem uma mera aventura mal
escrita cheia de reviravoltas.

A narrativa literária é um conjunto complexo que não se limita somente à


história (eventos temporais lineares que a compõem), que é a espinha
dorsal sobre a qual o escritor irá construir uma estrutura para transmitir
uma mensagem estética. Assim, no meio do caminho, ele recria a
experiência humana nas mais variadas formas possíveis. É desse ponto, da
verdadeira beleza, do humano, que a obra de Tolkien cai pelas bases: é um
épico construído em cima do deslumbramento duma mente criativa sem
controle, um castelo erguido sobre a areia. Como eu disse antes, há uma
mudança do eixo humano para o linguístico, geográfico, temático, etc. Os
cenários não são mostrados como reflexo da psique das personagens ou
manifestação de uma metáfora, nem as personagens são de grande
profundidade.

A grandeza de um livro não pode ser medida em fatores feito a trama, esta
é apenas atrativo para leitores ingênuos. O escritor não é só um contador de
histórias; dizer que é só isso seria um retrocesso, embora, paradoxalmente,
não exista narrativa sem história. Sem ela, há cenários, monólogos ou
chatice ― o que deve ser o caso em 2/3 de “O Senhor dos Anéis” ― mas
não uma narrativa propriamente dita. A história é um pretexto para se
escrever; o problema começa quando o escritor se preocupa demais em
meramente contar uma história e se esquece de escrevê-la da melhor
maneira possível.

O bom leitor lerá um romance não somente por se identificar com uma
personagem ou pela história ― não que isso não possa acontecer ―, mas
pela capacidade sedutora do autor, pela construção da narrativa, o jogo de
palavras, de cenas, o cuidado com a forma, a boa frase, limpeza e clareza
no estilo, pelos conflitos internos e externos das personagens, pela
montagem, Técnica, etc. Não enxergar esses elementos é estar cego para a
derradeira arte. Nabokov estava certo: somente crianças podem ser
desculpadas por se identificarem com os personagens de um livro ou
sentirem prazer com histórias de aventura mal escritas. Ou dementes.

JOHN GARDNER – ENTREVISTA AO THE PARIS REVIEW – 1979


Por Paulo Cantarelli / 24 de junho de 2019
Entrevistado por Paul F. Ferguson, John R. Maier, Sara Matthiessen,
Frank McConnell, tradução de Paulo Cantarelli.

A entrevista que se segue incorpora três das feitas com John Gardner ao
longo de sua última década de vida. Após entrevistá-lo em 1971, Frank
McConnell escreveu que o autor, de 39 anos na época, era um dos mais
originais e promissores dos jovens romancistas americanos. Seus primeiros
romances — The Resurrection (1966), The Wreckage of
Agathon (1970), Grendel (1971), and The Sunlight Dialogues (1972) —
representaram, aos olhos de muitos críticos e resenhistas, uma nova e
excitante fase na empreitada da escrita moderna, uma consolidação de
recursos dos romances contemporâneos e um salto adiante — ou para trás
— num humanismo restabelecido. Pode-se encontrar, em seus livros, três
grandes traços da ficção contemporânea: a elegante narrativa experimental
de Barth ou Pynchon, o hiperrealismo gótico de Joyce Carol Oates e
Stanley Elkin, e história intelectual e cultural de Saul Bellow. Feito tantas
personagens da ficção contemporânea, as de Gardner são homens à beira
do abismo, homens confrontados com a consciência de que estão vivendo
uma vida que parece ser determinada, não por livre-arbítrio, mas por
grandes mitos, ficções cósmicas às quais devem controlar (ex: Ebeneezer
Cooke, em Sot-Weed Factor, de Barth, ou Tyrone Slothrop em Gravity’s
Rainbow, de Pynchon); mas as personagens de Gardner são filósofos no
limite, herdeiros, todos, dos grandes debates sobre autenticidade e má-fé
que caracterizam nossa era.  Em Grendel, por exemplo, o herói-monstro é
iniciado numa visão sartreana do niilismo por um antigo, e evidentemente
erudito, dragão: um mito falando sobre a vacuidade de todos os mitos —
“Fazedores de teorias… Eles mapeariam até as estradas para o Inferno com
essas teorias malucas, essas listas deles, de daqui-até-a-lua-e-de-volta-de-
novo, repletas de detalhes inúteis. Insanidade; a insanidade mais simples
jamais concebida!”. Seus heróis —  feito todos os homens — são filósofos
prestes a morrer; e a descoberta que geralmente fazem — central para a
energia criativa da ficção de Gardner — é que a morte da consciência
finalmente justifica a própria consciência. Os mitos, cuja artificialidade os
escritores contemporâneos tão avidamente têm insistido em expor,
tornaram-se novamente, nos trabalhos de Gardner, reais e cheios de vida,
sem jamais perder o caráter moderno de ficcionalidade.

O trabalho de Gardner pode muito bem representar o novo


“conservadorismo”, que alguns notaram no cenário atual. Porém, é um
conservadorismo altamente original, e, ao menos no caso de Gardner, de
profunda autoridade perante a sua própria vida. Quando ele foi professor
convidado no curso “Formas Narrativas”, na Universidade de
Northwestern, parte dos estudantes se surpreendeu ao descobrir um escritor
moderno — e em ascensão — entusiasta, não apenas de Homero, Virgílio,
Apolônio de Rodes e Dante, mas profundamente preocupado com as
controvérsias críticas em volta desses autores, e os erros em suas traduções
inglesas. Como a entrevista a seguir deixa claro, o  trabalho de Gardner,
sua afeição por escrita antiga e a tradição metafísica é, no mínimo, maior
que as explosões e involuções da ficção moderna. Ele é, no mais amplo
sentido da palavra, um literato.

“É como se Deus tivesse me colocado na terra para escrever”, Gardner


observou uma vez. E escrever, ou pensar sobre escrita, toma-lhe muito do
dia. Trabalha, ele mesmo diz, geralmente em três ou quatro livros ao
mesmo tempo, permitindo que os enredos moldem e definam uns aos
outros, numa “polinização-cruzada”.

Sara Matthiessen descreve Gardner na primavera de 1978 (os trabalhos


publicados até essa época incluíam October Light; On Moral Fiction estava
prestes a ser publicado). Matthiessen chegou, com uma amiga, para
entrevistá-lo na Breadloaf Writer’s Colony, em Vermont: “Após batermos
algumas vezes, ele abriu a porta, parecia exausto e acabara de acordar.
Vestido numa camisa de cetim púrpura, mangas boca-de-sino e gola-rolê, e
em jeans, ele parecia uma figura exótica: os cabelos, de um branco fora do
comum, passando os ombros, e de altura média, ele parecia uma
encarnação da era medieval, central aos estudos dele. ‘Entrem logo’, ele
disse, embora não houvesse ninguém a quem ele preferiria ver, fora Sally e
eu, e nos levou a uma sala fria e bem iluminada, parcamente guarnecida por
uma mobília de madeira. Nos ofereceu meias extra contra o frio. John
acendeu o cachimbo e sentou-se para conversar”.
ENTREVISTADOR

Você já trabalhou em diferentes áreas: prosa, ficção, verso, crítica,


resenhas, livros acadêmicos, livros para crianças, audiodramas para rádio; e
escreveu um libreto para uma ópera recentemente produzida. Poderia falar
sobre esses diferentes gêneros? Qual foi o mais prazeroso de trabalhar?

JOHN GARDNER

O que me parece mais importante é o romance. Você cria um mundo


completamente novo num romance e lida com valores que, de outra
maneira, não conseguiria pôr num conto. O problema é que, já que
romances são um mundo completamente novo, não dá para escrevê-los o
tempo todo. Depois que se termina uma novela, leva alguns anos para
concentrar o bastante de vida e de pensamentos sobre coisas para ter algo a
dizer, ou quaisquer questões claras para se trabalhar. Você precisa se
manter ocupado, então é divertido fazer as outras coisas. Eu resenho livros
quando estou sem dinheiro, o que estou sempre. Não pagam muito, mas te
mantêm indo. Resenhas são interessantes porque é preciso se manter de
olho no que é bom e no que é ruim nos livros de uma sociedade tão alterada
pela publicidade, relações públicas e etc. Escrever resenhas não é algo
realmente analítico, é, principalmente, um conjunto de reações rápidas —
alegrias e cóleras. Certamente, nunca escrevi uma resenha sobre livros que
eu não pense que são dignos de resenha, livros ruins, batidos, a menos que
seja um livro ruim muito na moda. Já, sobre livros infantis, os escrevi
porque as crianças estavam crescendo e eu, de vez em quando, escrevia
uma história para elas, de presente de Natal, e, depois que eu tive algum
sucesso, algumas pessoas leram essas histórias e disseram que deveriam ser
publicadas. Eu gosto delas, é claro. Não daria porcaria para meus filhos. Eu
também escrevi livros acadêmicos e artigos. A razão é que eu ensinei
coisas feito Beowulf e Chaucer por muito tempo. Quando você dá aulas
sobre um poema, ano após ano, você nota, ou convence a si mesmo, que
você conhece o poema e algumas pessoas o interpretaram um pouco errado.
É natural que isso ocorra com qualquer poema, mas, ao longo do tempo em
que ensinei cursos de literatura, notei que ocorre especialmente com
poemas medievais e clássicos. Quando a visão crítica geral interpreta
terrivelmente mal um poema, você sente que tem que ajeitar isso. Os
estudos sobre Chaucer, desde os anos 50, são bem estranhos: feito aquela
teoria de que Chaucer é um acadêmico frio e empombado de Oxford,
evitando toda a carnalidade e cupidez. Não é verdade. Então, uma análise
próxima é útil. Mas escrever romances —  e talvez um libreto de ópera — é
o tipo de escrita que mais me satisfaz; o resto é entretenimento.

ENTREVISTADOR
Você tem sido chamado de “romancista filosófico”. O que acha desse
rótulo?

GARDNER

Não sei se ser um romancista filosófico é melhor que ser de algum outro
tipo, mas acho que não há muita dúvida quanto a isso, de certa maneira, é
isso que eu sou. O material de um escritor é o que ele se importa, e eu gosto
de filosofia do mesmo jeito que alguns gostam de política ou jogos de
futebol, ou de objetos voadores não identificados. Eu leio um homem feito
Collingwood, ou mesmo Brand Blanchard, ou C. D. Broad, e fico excitado
— até nervoso —, cheio de suspense. Eu leio um homem feito Swinburn,
sobre tempo e espaço, e se torna profundamente relevante, para mim, se a
estrutura do espaço muda grandes massas próximas. É como se eu
realmente pensasse que a filosofia vai resolver as grandes questões da vida
— o que, às vezes, pensando sobre isso, ela realmente faz, ao menos para
mim. Provavelmente não com tanta frequência, mas eu gosto da ilusão. A
tentativa de Blanchard em fazer uma demonstração lógica de que
realmente há uma moral humana universal, ou o turbilhão de teorias, de
vários malucos pomposos, de que o universo está se estabilizando em vez
de se afastar — essas coisas são ótimas de se encontrar por aí. Interessantes
e instigantes, quer dizer, feito sapos falantes. Eu coleto mais material na
seção de filosofia duma livraria universitária que na de seção de ficção, e
eu leio mais frequentemente livros de filosofia que romances. Então, claro,
eu sou “filosófico”, embora o que escreva não seja, de modo algum,
filosofia pura. Eu invento histórias. O significado surge da necessidade,
para manter as coisas claras, feito quebras de parágrafo e pontuação. E, se
eu puder acrescentar, meus amigos são todos artistas e críticos, não
filósofos. Filósofos — exceto pelos poucos que são meus amigos — bebem
cerveja, assistem a jogos de futebol e derrotam suas esposas e filhos pela
fraudulenta tirania da lógica.

ENTREVISTADOR

Mas, na medida em que você é um “romancista filosófico”, o que é que


você faz?

GARDNER

Escrevo romances, livros sobre pessoas, e o que eu escrevo é filosófico


somente num sentido limitado. Os dramas humanos que me interessam —
me incitam à excitação e, vagamente, ao vislumbre — são sempre
enraizados em questões filosóficas sérias. Isto é, eu me entedio com
enredos que dependam exclusivamente de traços psicológicos ou
sociológicos dos protagonistas — meros melodramas de saudável contra
doentio —, histórias que, sutilmente, ou de outro modo, apenas pregam.
Arte como a sabedoria de Marcus Welby,  M. D. Granted, a maioria dos
grandes heróis da ficção é, no mínimo, um pouco doida, de Aquiles ao
Capitão Ahab, mas os problemas que fazem grandes heróis agirem são os
problemas que nenhum homem são jamais teve. Aquiles, nos momentos
nobres e sãos, define todo o código moral de Ilíada. Porém, com a
violência e cólera engatilhadas pela guerra, as paixões humanas
sobrepujam a razão de Aquiles e o tornam o maior criminoso de toda a
ficção — elas são problemas tão grandes quanto para pessoas ordinárias. O
mesmo com o desejo de Ahab de perfurar a Máscara, abrir caminho à força
ao conhecimento absoluto. Ahab é louco, então ele realmente tenta; mas a
Máscara nos espreita, a todos nós. Então, quando escrevo uma ficção,
seleciono minhas personagens e ambientação, e assim por diante, porque
elas têm o peso, ao menos para mim, de alguma antiga questão filosófica
sem resposta. E, quando eu coloco as coisas em ação, me preocupo sempre
com descobertas inesperadas —  descobertas filosóficas de verdade. Mas
ao mesmo tempo estou preocupado — mais preocupado — com o que
essas descobertas fazem às personagens que as descobrem, e às pessoas ao
redor delas. É isso o que me torna não um filósofo, mas um romancista.

ENTREVISTADOR

O romance Grendel é a releitura da história de Beowulf, só que do ponto


de vista do monstro.  Por que um escritor americano do século vinte
abandonaria a pegada realista e tomaria emprestado esse material lendário
para a base de um romance?

GARDNER

Nunca fui cheio de amores pelo realismo por conta de certas coisas que o
realismo parece me obrigar. Com realismo, você tem que gastar duzentas
páginas provando que alguém vive em Detroit, para que só então algo
absolutamente convincente possa acontecer. Mas o valor dos sistemas das
pessoas envolvidas é o que interessa, não o fato deles viverem no
quilômetro quatorze da estrada. Em minhas primeiras ficções, eu tentava
me afastar o máximo que pude do realismo, porque a maneira mais fácil de
se chegar ao coração do que se quer dizer é pegando emprestado a história
de alguém, particularmente uma história não realista. Quando você conta a
história de Grendel, ou de Jasão e Medeia, você tem que terminá-la do jeito
que ela termina —  tradicionalmente, mas você pode fazê-lo do seu próprio
jeito. O resultado é que o escritor chega a um entendimento de coisas sobre
o mundo moderno à luz da história da consciência humana; ele a entende
um pouco mais profundamente, e se diverte bem mais escrevendo-a.
ENTREVISTADOR

Mas por que especificamente Beowulf?

GARDNER

Algumas histórias são mais interessantes que outras. Beowulf é uma


história interessantíssima. Ela te dá algumas imagens visualmente
maravilhosas, feito o dragão. Tem suecos olhando além das colinas e
assustando todo mundo. Tem salões de hidromel. Tem Grendel e a mãe
dele. Eu realmente acredito que um romance tem de ser um banquete para
os sentidos, algo prazeroso. Uma das melhores coisas que aconteceu ao
romance, nos últimos anos, é que ele enriqueceu. Pense num livro
feito Chimera ou The Sot-Weed Factor — eles podem não ser livros muito
bons, mas pelo menos são experiências ricas. Para mim, escritores feito
John O’Hara são interessantes somente do jeito que filmes ou obras de
televisão são interessantes; não tem nada num romance de John O’Hara que
não pudesse estar facilmente num filme. De outro lado, não há animador,
ou ninguém, que possa criar uma imagem de Grendel tão interessante
quanto a da cabeça do leitor: Grendel é um monstro, e em primeira pessoa,
pois somos todos, de algum modo, monstros, presos em nossa própria
linguagem e hábitos emocionais. Grendel expresse sentimentos que
sentimos — grandes hostilidades, frustrações, descrenças, e assim por
diante, para que o leitor, projetando seu próprio monstro, projete um
monstro que é, para ele, o perfeito show de horrores. Não tem modo de se
fazer isso pela televisão ou filmes, onde se está vendo sempre o tipo de
romance realista que O’Hara escreveu… Gregory Peck, caminhando pela
rua. É só mais do mesmo, para mim. Há outras coisas que são interessantes
em O’Hara, e eu não quero colocá-lo demais para baixo, mas eu prefiro
outro tipo de ficção: quero o efeito que um audiodrama de rádio ou um
romance nos dão em seu melhor.

Originalmente publicado em The Art of Fiction No. 73, The Paris


Review, primavera de 1979.

FLAUBERT, O ESCRITOR DA ARTE SUPERIOR – GUY DE


MAUPASSANT
Por Paulo Cantarelli / 23 de julho de 2019
De tempos em tempos, entre os escritores que deixarão seu nome para a
posteridade, acham-se alguns que conquistam um lugar especial pela
perfeição e pela raridade de suas obras. Outros, paralelamente, produzem
abundantemente, misturando o raro ao banal, o original ao comum,
forçando o crítico e o leitor a um trabalho considerável para separar o que
deve permanecer do que deve desaparecer. Mas os primeiros, por uma
criação laboriosa e paciente, produzem uma obra absoluta, perfeita no
conjunto e nos detalhes. E, se todas as obras desses autores não obtêm junto
ao público um sucesso absolutamente igual, há sempre pelo menos um de
seus livros que fica na história das letras com o rótulo de obra-prima, tal
qual os quadros dos grandes mestres colocados no “Salon Carré” do
Louvre.

Gustave Flaubert produziu até agora apenas quatro livros e todos eles
subsistirão. E provável que apenas um seja qualificado de obra-prima,
entretanto os outros certamente merecerão tanto quanto esse o mesmo
epíteto.

Todos leram Madame Bovary, Salammbô, L’Education Sentimentale (A


Educação Sentimental) e La Tentation de Saint Antoine (A Tentação de
Santo Antônio); todos os jornais fizeram com tal freqüência a análise
dessas obras, que não tenho a intenção de recomeçá-la. Quero falar da obra
de Flaubert de uma maneira geral, e aí buscar coisas que o público todo
talvez não tenha visto até agora.

II

As pessoas que tudo julgam sem nada saber, e que, assim que aparece um
livro de um gênero novo e desconhecido, apressam-se em colocar nele,
como um cartaz, a tolice de seu julgamento que acreditam eterno,
proclamaram em alto e bom som, quando da publicação de Madame
Bovary, que Flaubert era um realista, o que, em seu espírito, significava
materialista.

Em seguida, ele publicou Salammbô, um poema inspirado na antigüidade e


Saint Antoine, uma quintessência das filosofias; nada mudou; jornalistas
competentes o haviam batizado de materialista e materialista ele continuou
para os cérebros rudimentares das pessoas bem pensantes.

Não cabe aqui relatar a história do romance moderno e explicar todas as


causas da emoção profunda provocada pela aparição do primeiro livro de
Flaubert. Ser-me-á suficiente ressaltar a mais importante delas.

Desde a origem dos tempos, o público francês bebia com deleite o meloso
xarope dos romances inverossímeis. Esse público amava os heróis, as
heroínas e as coisas que jamais se vêem na vida, pela única razão de que
essas coisas são irrealizáveis. Chamavam de idealistas os autores desses
livros, simplesmente porque se mantinham sempre a distâncias
incomensuráveis das coisas possíveis, reais, materiais. Quanto a idéias, eles
as tinham talvez ainda menos que seus leitores. Veio Balzac, e de início,
mal lhe deram atenção. Era, entretanto, um inovador singularmente
poderoso e fértil e um dos mestres do futuro, escritor imperfeito, sem
dúvida, para quem a frase era um obstáculo, mas criador de personagens
imortais que ele fazia moverem-se como através de uma lente de aumento,
tornando-as por isso mesmo mais impressionantes e de certa maneira mais
verdadeiras que a realidade! Madame Bovary aparece e provoca uma
confusão geral. Por quê? Porque Flaubert é um idealista mas também e
sobretudo um artista e seu livro era além disso um verdadeiro livro; porque
o leitor, sem se dar conta, sem saber, sem compreender, sofreu a influência
todo-poderosa do estilo, a luz da arte que ilumina todas as páginas desse
livro. 

Com efeito, a primeira qualidade de Flaubert que para mim salta aos olhos,
assim que se abre uma de suas obras, é a forma, esta coisa tão rara nos
escritores e tão despercebida do público; digo despercebida, mas sua força
domina e penetra aqueles que menos acreditam nela, como o calor do sol
aquece um cego que entretanto não lhe vê a luz.

O público entende geralmente por “forma” uma certa sonoridade das


palavras dispostas em períodos harmoniosos, com começos de frases
imponentes e finais melodiosos. Em razão disso, esse público quase nunca
duvidou da arte imensa contida nos livros de Flaubert. Nele, a forma é a
própria obra: ela é como uma seqüência de moldes diferentes que dão
contorno à idéia, esta matéria com que são moldados os livros. Ela lhe
fornece a graça, a força, a grandeza, todas aquelas qualidades que, por
assim dizer, dissimuladas no próprio pensamento, só aparecem com o
auxílio da expressão. Variável ao infinito como as sensações, as impressões
e os sentimentos diversos, ela adere a eles, tornam-se inseparáveis.
Amolda-se a todas as suas manifestações, trazendo-lhes a palavra sempre
precisa e única, a medida, o ritmo particular para cada circunstância, para
cada efeito, e cria por esta indissolúvel união o que os literatos chamam de
estilo, muito diferente daquele que se admira oficialmente.

Com efeito, chama-se geralmente estilo uma forma particular de frase


própria a cada escritor, tal qual um molde uniforme em que ele molda todas
as coisas que quer exprimir. Deste modo há o estilo de Pedro, o estilo de
Paulo e o estilo de Jacques.

Flaubert não tem seu estilo, mas tem o estilo, ou seja, as expressões e a
composição que ele emprega para formular um pensamento qualquer, são
sempre aquelas que convêm absolutamente a esse pensamento, uma vez
que seu temperamento se manifesta pela precisão e não pela singularidade
da palavra.
III

“Sem estilo, não há livro”, este poderia ser seu lema. Com efeito, ele pensa
que a primeira preocupação de um artista deve ser criar o belo; pois, sendo
a beleza uma verdade em si mesma, o que é belo é sempre verdadeiro,
enquanto que o que é verdadeiro pode nem sempre ser belo. E por belo eu
não entendo o belo moral, os nobres sentimentos, mas o belo plástico, o
único que os artistas conhecem. Uma coisa muito feia e repugnante pode,
graças a seu intérprete, revestir-se de uma beleza independente dela
própria, enquanto que o pensamento mais verdadeiro e mais belo
desaparece fatalmente nas fealdades de uma frase mal feita. É preciso
acrescentar que uma parte do público detesta até a palavra “forma”, como
sempre se detesta aquilo que se é incapaz de compreender.

Portanto Flaubert é antes de tudo um artista, isto é, um autor impessoal. Eu


desafiaria quem quer que fosse, depois de ter lido suas obras, a adivinhar o
que ele é na vida particular, o que pensa e o que diz em suas conversas de
cada dia. Sabe-se o que devia pensar Dickens, o que devia pensar Balzac.
Eles aparecem a todo momento em seus livros; mas vocês imaginam o que
era La Bruyàre, o que podia dizer o grande Cervantes? Flaubert jamais
escreveu a palavra eu. Ele nunca vem conversar em público no meio de um
livro, ou saudar esse público no final, como um ator no palco; e não
escreve prefácios. É o apresentador de marionetes humanas que devem
falar por sua boca, enquanto ele não se dá o direito de pensar por elas; e é
preciso que não se percebam os cordões ou se reconheça a voz.

Filho de Apuleio, de Rabelais, de La Bruyère, de Cervantes, irmão de


Gautier, ele tem bem menos parentesco com Balzac, apesar do que se tem
dito a esse respeito, e ainda menos com o filósofo Stendhal.

Flaubert é o escritor da arte difícil, simples e complicada ao mesmo tempo:


complicada pela composição erudita, elaborada, que dá a suas obras um
caráter impressionante de imutabilidade; simples na aparência, de tal forma
simples e natural que um burguês, com a ideia que tem de estilo, nunca
poderá exclamar ao lê-lo “Eis, com efeito, frases bem redigidas”.

Ele adivinha exatamente como Balzac, vê exatamente como Stendhal e


como muitos outros; mas se exprime com mais precisão do que eles,
melhor e com mais simplicidade: apesar das pretensões de Stendhal de
mostrar uma simplicidade que, em suma, não passa de um estilo seco, e
apesar dos esforços de Balzac para escrever bem, esforços que culminam
muito freqüentemente neste exagero de imagens falsas, de perífrases
inúteis, de relativos, de “quem”, de “que”, que culminam no embaraço de
um homem que, tendo cem vezes mais materiais do que o necessário para
construir uma casa, usa tudo porque não sabe escolher, e edifica uma obra
imensa, mas menos bela e menos durável do que se tivesse sido mais
arquiteto e menos pedreiro, mais artista e menos pessoal.

A imensa diferença que há entre eles está, efetivamente, toda aí: é que
Flaubert é um grande artista e a maioria dos outros não o é. Ele permanece
impassível acima das paixões que agita. Ao invés de ficar no meio da
multidão, isola-se em uma torre para considerar o que se passa sobre a
terra, e, não tendo mais as cabeças dos homens a limitar-lhe a visão, capta
melhor os conjuntos, tem proporções mais definidas, um plano mais
estável, horizontes mais amplos.

Também constrói sua casa, mas conhece os materiais que deve empregar e
rejeita os outros sem hesitação. Eis porque sua obra é absoluta, e não se
poderia tirar dela uma parcela sem destruir a harmonia total: enquanto se
pode fazê-lo em Balzac, em Stendhal, em outros: e bem perspicaz seria
aquele que percebesse isso.

IV

Ele não pensa, como alguns, que a inteligência e a inspiração, que o acaso e
o temperamento sejam suficientes para escrever um livro, que a informação
seja inútil e a longa pesquisa desprezível, porque ele é da antiga estirpe das
pessoas que sabiam muito. Ao invés de ignorar que o mundo existia antes
de 1793, e que se sabia escrever antes de 1830, meditou como Pantagruel
sobre todos os doutores de outrora. Conhece a história melhor que muitos
professores, porque a aprendeu em muitos livros onde eles não a vão
buscar; e, para suas obras, estudou a maioria das ciências, apenas acessíveis
aos especialistas. Melhor que os velhos sábios arqueados, ele conhece a
genealogia das cidades mortas e dos povos desaparecidos, com seus usos,
seus costumes, os tecidos com que se vestiam e as iguarias excêntricas que
preferiam. Domina a Bíblia protestante; o Corão, como um dervixe. Sabe
como decorrem umas das outras as crenças, as filosofias, as religiões e as
heresias. Explorou minuciosamente todas as literaturas, anotando passagens
de muitos livros desconhecidos, uns porque são raros, outros porque não
são lidos. Conhece os escritores de talento quase ignorados que
ocasionaram a decadência dos povos, os comentaristas e os bibliógrafos, os
livros profanos assim como os livros sagrados, as vidas dos santos, dos
padres da Igreja e os autores que os homens pudicos não ousam nomear.
Em certo dia de indignação e de cólera, organizou, para nos comunicar, um
volume inteiro com os lapsos dos escritores sem estilo, os barbarismos dos
gramáticos, os erros dos falsos cientistas, todas as vaidades e todo o
ridículo que passaram despercebidos e com os quais ele esbofeteará o
mundo.
V

Os jornalistas não conhecem seu rosto.

Ele acha que é o bastante publicar seus escritos, e sempre manteve sua
pessoa bem afastada da popularidade, desdenhando a publicidade ruidosa
dos panfletos, as propagandas oficiosas e as exibições de fotografias nas
vitrinas de tabacarias, ao lado de um criminoso famoso, de um príncipe
qualquer e de uma jovem célebre.

É acessível apenas a um pequeno grupo de amigos, literatos, pelos quais é


querido como nunca se é por um colega e como raramente se é por um
parente, porque ele suscita afeições profundas à sua volta. Mas, como não
expõe sua pessoa à curiosidade das multidões, ávidas em observar homens
conhecidos como se estivessem em vitrinas, à semelhança de um animal
estranho em sua jaula, lendas circulam em torno de sua casa, e é bem
provável que, entre seus concidadãos, alguns o acusem seriamente de ter
abominado a burguesia, o que seria, de qualquer maneira, tão verdadeiro
quanto o famoso jantar de charcutaria, na casa de Sainte-Beuve, numa
Sexta-Feira Santa, jantar que, pela pena de jornalistas bem informados, mas
principalmente bem inspirados, acabou por tornar-se uma intolerável e
enfadonha “lenga-lenga”.

Enfim, para contentar as pessoas que sempre querem ter detalhes pessoais,
eu lhes direi que ele bebe, come e fuma exatamente como elas; que é alto, e
que, quando passeia com seu grande amigo Ivan Turgueniev, eles parecem
um par de gigantes.

GUY DE VALMONT (pseudônimo de Guy de Maupassant)

Artigo publicado originalmente no La République des Lettres, 23 de


outubro de 1876. Traduzido por Betty Joyce, em “Gustave Flaubert“, de
Guy de Maupassant, Editora Pontes, 1990, Campinas-SP.

O FRANCISCANO NO HARÉM DAS QUARENTONAS


Por Paulo Cantarelli / 24 de agosto de 2019
[Senhorita, este catálogo é
o das belas que amou meu patrão;
um catálogo que eu mesmo fiz.
Observe, leia comigo.]

― Leporello, em Don Giovanni, de Mozart.


Se o Don Juan de Mozart conquista as mulheres mais velhas apenas pelo
prazer de pô-las na lista, András Vajda o faz por puro amor. Aliás, é por aí
que se encerram as semelhanças entre Don Giovanni e o protagonista de
“Em Louvor das Mulheres Maduras: As Recordações Amorosas de András
Vajda”, de Stephen Vizinczey. Somente outro livro me causou tamanho
assombro diante dos amores da juventude, tema tão difícil: “Primeiro
Amor”, de Ivan Turguêniev, embora este seja de outra natureza, mais
singela e cruel. As recordações amorosas de András datam do pré Segunda
Guerra, na Hungria, passando pelo regime soviético e indo ao início dos
anos 60 na América do Norte, no Canadá e EUA.  

Somos assombrados pela estranheza e sedução da palavra, o narrador nos


guia por uma narrativa não linear, ao melhor estilo de “Memórias Póstumas
de Brás Cubas” ― um dos livros favoritos de Vizinczey. “Em Louvor das
Mulheres Maduras” é um grande solilóquio, isto é: um longo discurso
ilinear e ilógico, entrecortado por cenas e reflexões, mesclando o tempo
cronológico com o psicológico nas memórias do narrador em primeira
pessoa, que ora se perde em deliciosas digressões, ora nos dá pontadas
agudas de reflexões filosóficas. Técnica, sem dúvida, complexa e perigosa
por se aproximar do ensaio e da crônica. O autor que opta por este caminho
deve ter total domínio poético e saber criar um monólogo artístico, e não
puramente filosófico. E deverá fazê-lo nos emocionando através de
metáforas e imagens, tendo pulso firme para não cair em filosofadas
baratas, nem explicações gratuitas.

A princípio, o romance não me chamou atenção: imagens parcas e cenas


aparentemente não muito desenvolvidas, embora interessantes e até bem
escritas; porém, ao passar de algumas páginas, notei que o autor dominava
A Técnica.  Là ci darem la mano, là mi dirai di sì, e de pouco em pouco o
leitor é seduzido. A narrativa mantém seu tom e estilo, o narrador nunca é
intrometido demais ou antipático, mesmo tendo uma personalidade um
pouco pretensiosa. O uso das cenas indiretas é abundante, dando
velocidade e leveza à prosa. Na primeira página da narrativa propriamente
dita, após a apresentação dispensável do narrador ― atenção, narrador, não
autor ―, temos o primeiro jogo de cena-sobre-cena, onde marquei cada
núcleo do movimento narrativo com um numeral:

“[1] Nasci numa devota família Católica Romana, e passei grande parte
de meus primeiros dez anos entre gentis monges franciscanos. [2] Meu pai
era diretor de uma escola católica e um organista de igreja reconhecido,
um ativo e talentoso jovem que também tinha a energia e inclinação para
liderar a guarda local no distrito e participar da política. Apoiando o
regime autoritário pró-clerical do Almirante Horthy, ele era o tipo de
conservador que também era antifascista,[3] e, alarmado com a ascensão
de Hitler ao poder na Alemanha, usou sua influência e autoridade para
banir as reuniões do Partido Nazista da Hungria. [4] Em 1935, quando eu
tinha dois anos de idade, ele foi esfaqueado até a morte por um
adolescente nazista, escolhido por não ter dezoito anos e por não poder
ser executado por assassinato. [5] Após o funeral, minha mãe fugiu do
horror da perda indo para a cidade grande mais próxima, a primeira
cidade milenar da Hungria, cujo nome não vou lhe atormentar lembrando.
Ela alugou um amplo apartamento de segundo andar numa das ruas
principais da cidade,[6] uma rua estreita com igrejas barrocas e lojas em
voga, apenas a alguns minutos a pé do monastério franciscano que eu
costumava visitar antes de ter idade para ir para a escola. [7] Os serviços
de meu pai à Igreja e sua morte repentina, e o fato de que haviam muitos
padres em ambos os lados de nossa família, me enterneceram aos monges
franciscanos, e eu era sempre um convidado bem-vindo ao monastério.”
Em 1 temos uma cena indireta, em 2 o narrador monta um perfil
psicológico sobre cena, entre 3 e 5 temos novamente cenas indiretas, em 6
um breve cenário sobre cena, e novamente uma narrativa indireta em 7.
Nisso se constitui o jogo de cena-sobre-cena desta abertura. A cena, devo
lembrar, é a personagem somada a uma ação e a uma sequência (C = P + A
+ S); como definido por Raimundo Carrero, em “A Preparação do
Escritor”. As técnicas sobre-cena são a justaposição de algo a uma cena. Se
temos um cenário no meio de uma cena, trata-se de um cenário sobre cena,
não de um cenário puro. Somadas às cenas indiretas, que já possuem um
andamento rápido, as variações sobre-cena são ainda mais aceleradas.

Mas em que se constitui a cena indireta? A cena indireta não é nada mais
do que o velho dizer. Aqui o leitor pode estar confuso: mas o correto não
seria mostrar, não dizer? A princípio, sim, é preciso mostrar e não dizer,
porém às vezes é preciso dizer para não mostrar detalhes enfadonhos. É
saber o que, como e quando dizer, seguindo sempre a pulsação da narrativa.
Transpondo para a linguagem cinematográfica, seria equivalente à cena de
ângulo aberto (ou plano aberto, long shot), em que a câmera está distante
do objeto retratado, de modo que este ocupa pouco espaço do campo de
visão, ao contrário de um ângulo fechado (plano fechado, close-up), onde
temos mais detalhes. Os objetos são mostrados, porém a câmera não
enquadra diretamente em nenhum deles, nos dando uma visão geral.

Na abertura deste romance, temos o mínimo de informação necessária para


que o leitor seja imerso no fluxo narrativo: não é como em escritores feito
Dickens, Dostoiévski ou Balzac ― este último outra grande inspiração de
Vizinczey ― que tentam explicar inúmeros contextos sociológicos,
históricos, filosóficos e psicológicos das personagens antes de iniciar a
narrativa. Duvida? Pegue o início de “Irmãos Karamázov” e constate que a
história de verdade começa depois de umas cinquenta páginas. Aliás, é
notável a quantidade de temas políticos sutilmente retratados ao longo de
“Em Louvor das Mulheres Maduras”, temas que nunca são foco principal,
apenas o pano de fundo de um palco minuciosamente montado para a
atuação do Humano. A sutileza impera na prosa de Vizinczey: passamos
por guerras e revoluções ― comunistas e do sexo ― entre inúmeros
matizes da política e da alma humana. Um livro, como disse Northrop Frye
em elogio à estreia do autor, “escrito com grande lucidez e charme… Uma
sobreposição de sobretons”. Os temas são tratados com a frieza devida e,
em momentos de pura sobriedade ― sobriedade é a palavra que melhor
definirá este romance ―, temos uma cena como esta, que se segue à
anterior, de grande lirismo e ternura, sem apelar ao sentimentalismo:

“Eles [os monges franciscanos] me ensinaram a ler e a escrever, me


contaram sobre a vida dos santos e dos grandes heróis da história
húngara, contaram das cidades longínquas onde estudaram ― Roma,
Paris, Viena ―, mas, acima de tudo, eles ouviam o que quer que eu
quisesse dizer. Então, em vez de ter um pai, eu cresci com uma ordem
inteira deles; tinham sempre um sorriso acolhedor e compreensivo para
mim, e eu costumava andar pelos corredores frescos e largos do
monastério como se fosse dono do lugar”. 
Barroco, cheio de inquietações na carne e no espírito, o jovem András
Vajda sente desde criança os mistérios do sexo oposto, em especial o
mundo das mulheres maduras, amigas de sua mãe, as quais ele observa
com uma curiosidade mística. “Às vezes ainda penso que ser um monge
franciscano num harém de mulheres de quarenta anos seria a melhor
maneira de se viver”, declara o Vajda mais velho ao rememorar a infância.
Vizinczey habilmente constrói relações entre a sexualidade ― não apenas o
sexo como mero ato masturbatório a dois ― e outros temas. Basta saber
que alguns dos títulos, dentre os dezoito capítulos, são: “Sobre fé e
amabilidade”, “Sobre guerra e prostituição” ou “Sobre ser vão e
desesperançoso no amor”.

Um desses temas que paira sobre e através da obra é a fragilidade dos laços
humanos, tão bem descrita em “Amor Líquido”, de Zygmunt Bauman ―
àqueles que torcerem o nariz ou revirarem os olhinhos à menção desse
nome: tomem um chá de camomila. Não vemos mais o “De almas sinceras
a união sincera / Nada há que impeça: amor não é amor / Se quando
encontra obstáculos se altera / Ou se vacila ao mínimo temor” de que nos
fala Shakespeare, a realidade é outra: nos tempos líquidos,  como bem
observa Bauman, o homem pós moderno tem dificuldade em manter
vínculos duradouros ― em outras palavras, responsabilidades. András, em
suas aventuras e desventuras amorosas, aprende que não se aprende a amar
como quem aprende a tocar piano ou falar uma nova língua: cada parceira é
uma experiência encantadora, estranha e, no mais das vezes, imprevisível. 

Seja pela perda da noção transcendental do amor ― o impulso criativo da


vida, que se dirige à geração e nascimento do belo, como nos lembra a
profetisa Diotima no diálogo socrático ― seja por medo da solidão, a
negação dessa transcendência, dessa responsabilidade inerentemente
atrelada ao dom da vida, leva-nos a nos ilhar na mais profunda solidão. No
capítulo “Sobre O Mortal Pecado Da Preguiça”, András divaga sobre como
a masturbação é a manifestação máxima do pecado da preguiça somado à
luxúria: negamos esse impulso criador, em busca da multiplicação da
espécie, da quebra da solidão, e nos contentamos com uma autossatisfação
fácil e barata. É uma revolução sexual, porém “do tipo mais solitário”.

Mais do que julgar, o narrador é um poeta-filósofo ― sim, András é um


poeta e um estudante de filosofia, posteriormente professor ― que tenta
entender o mundo, situações e circunstâncias que vivenciou:

“Rejeitamos a moralidade religiosa deles porque ela colocava o homem


contra seus próprios instintos, pesava sobre ele com um fardo de culpa
pelos pecados que, na realidade, eram apenas o trabalho de leis naturais.
Ainda assim, nos redimimos perante a criação: pensamos em nós mesmos
como falhas ao invés de renunciarmos à nossa crença na possibilidade da
perfeição. Nos agarramos à esperança do amor eterno ao negar até
mesmo sua validade temporária.”
Esse tipo de reflexão é sempre acompanhada, ao longo da narrativa, de um
humor sutil que contrapõe a seriedade filosófica, como neste perfil físico de
outro trecho:

“Boby tinha trinta e quatro anos e era maravilhosa de se contemplar,


especialmente em seu biquíni azul; possuía seios tão salientes e uma bunda
tão empinada que geralmente eu sentia vontade de arrancá-los e levá-los
para casa.”
Que homem nunca teve tal sentimento diante da manifestação da beleza
feminina? Um perfil físico simples, lírico e sem exageros. A sobriedade é o
elemento faz com que “Em louvor das Mulheres Maduras” não caia na
pornografia, a exemplo dos problemas que já apontei no artigo “Uma
Leitura Para Adolescentes Rebeldes, Charles Bukowski”. Há outras
descrições mais sensuais que deixo de fora desta análise para não me
estender mais do que o necessário, e não por pudor ― afinal, a única nudez
realmente comprometedora é a da mulher sem quadris, já dizia Nelson
Rodrigues. Uma das cenas mais comoventes do romance é quando
descobrimos que a dona dessa sensualidade era uma judia sobrevivente de
Auschwitz, oito anos antes. Após algum tempo, temos uma digressão na
voz de Boby, que conta ao amante o que lhe aconteceu, e, mais uma vez,
Vizinczey introduz com classe e muita leveza uma mudança de tema
drástica, os sobretons elogiados por Frye. Ficamos tão chocados quanto o
narrador:

“Ela havia chegado antes de mim e estava pela piscina, no biquini azul,
seus cabelos loiros mais pálidos que o sol de inverno reluzindo pelo domo
de vidro congelado. Estranhos a encaravam e conhecidos a
cumprimentavam com reverentes olás. […] Sugeri que nos deitássemos de
bruços, nossos braços dobrados, cotovelo com cotovelo. Não sei como não
notei antes: havia um longo número tatuado no antebraço dela. Deve ter
visto meus olhos arregalarem, pois respondeu antes que eu pudesse lhe
perguntar qualquer coisa.

― Não sabia? Não sou uma intelectual, então adivinho que é bastante
difícil dizer que sou judia.

― Não consigo nem imaginar você vivendo num campo de concentração.

― Auschwitz; cento e vinte e sete dias e quatro horas.”


Vizinczey domina o contraponto com perfeição, tornando o romance um
jogo de antíteses e contrastes ainda mais barroco, sem nunca ser simplista.
Por exemplo, a dualidade entre masculino e feminino permeia a obra desde
o início, e a profundidade dos relacionamentos de András se liquefaz a cada
nova amante, nas quais encontrará uma conexão diferente, porém menos
profunda que com a anterior. Sua primeira amante de carne e espírito é
Maya, vizinha de prédio, que lhe ensina os mistérios gloriosos e dolorosos
do sexo. Testemunhamos a multiplicidade de sentidos assumidos pela
palavra amor nos tempos pós-modernos, e de sua inevitável diluição,
situação explicitada por Maya num breve diálogo com András, onde ela lhe
diz: “você aprenderá que o amor raramente dura e que é possível amar
mais de uma pessoa ao mesmo tempo”. Se isto é falso ou verdadeiro, é fora
do ponto desta análise; porém conseguimos ver muito bem as
consequências morais deste postulado. Seria uma especulação plausível
dizer que o nome Maya está atrelado à filosofia hindu, significando “a
ilusão do mundo físico”, ou “a irrealidade dos fenômenos”. Boa metáfora
para uma personagem de inevitável transitoriedade.

Também é Maya a musa que incentiva o poeta András a apreciar a Grande


Literatura ao emprestar-lhe clássicos, que servem de pretexto para as visitas
do jovem amante. A título de curiosidade, é interessante ser uma figura
feminina a apresentar a beleza artística ao personagem, pois sempre
enxerguei a fruição da arte como uma atividade que requer
majoritariamente ― não exclusivamente ― um alinhamento com o lado
feminino da existência, isto é: estar de coração aberto ao sentimento
transmitido pelo artista, com uma certa ingenuidade; já a criação artística
requer disciplina militar, um traço caracteristicamente masculino, severo.
Da perspectiva criativa, a compreensão e concepção de toda a Grande Arte
reside em saber alternar entre esses dois pólos quando necessário: o artista
não pode ser compassivo com a própria obra do mesmo modo que uma mãe
acolhe o filho no seio; nem pode ele ser excessivamente rígido ao apreciar
trabalhos alheios, impondo irrefletidamente a própria maneira de lidar com
o ofício. O mesmo se dá em outras áreas da vida, tanto homens quanto
mulheres precisam alterar seus estados psicológicos ao exercerem esta ou
aquela atividade, mas isto está fora desta investigação. O que desejo expor
é que esta dualidade ― masculino-feminino, ying-yang, luz-sombra ―  é
crucial para a compreensão de “Em Louvor das Mulheres Maduras”.

O feminino é sempre retratado como aquela força que arrasta os homens


feito as tempestades; uma beleza brutal. Da virgem à mãe, da casta à
adúltera, da frígida à cálida, temos um amplo mural do feminino, todo um
lado sensível e volúvel do coração. Vida e morte estão presentes em um
nível oculto: o sexo como o impulso para aquelas belas criaturas com as
quais desejamos procriar, os orgasmos como a petite mort, a união e a
separação dos corpos, o flerte e o término; energia feminina como aquela
que demanda e a masculina como a que provê. András é o masculino, o
engenho e o viço diante da calma impassível da mulher madura, oceano
adormecido que já consolidou as potências das marés revoltas de outrora.
Na falta da figura paterna, assassinada pelos nazistas, András se inspira em
outras figuras masculinas que aparecem ao longo da narrativa: os padres,
um oficial americano durante a ocupação da Áustria, o marido de sua
primeira amante, uma amigo que conquistou uma mulher de maneira
inusitada, os heróis e mártires históricos da Hungria ― estes últimos,
talvez, juntos à alguma lembrança nacionalista paterna, o inspiraram a
pegar em armas contra a tirania soviética, durante uma revolta fracassada
que resultou na morte ou exílio de muitos húngaros que combateram o
regime comunista. 

Nos é relatada uma vida da infância ao início da decadência corporal:


presenciamos do amor inocente de uma criança às primeiras investidas
sexuais e descobertas adolescentes, do auge do vigor à primeira disfunção
erétil ― que, curiosamente, ocorre numa inversão de pólos entre energia
masculina e feminina. Este acontecimento simbólico encerra o livro e
marca o fim da juventude, dando início às aventuras de um homem de
meia-idade.  Porém, esta, como diz o narrador, é outra história. Nos resta
apenas o louvor às mulheres maduras.
Nota: os excertos de “In Praise of Older Women: The Amorous
Recollections of András Vajda” utilizados neste ensaio foram traduzidos
por mim, a partir da edição original inglesa revisada pelo autor.

FILMES DA MARVEL NÃO SÃO CINEMA. DEIXE-ME EXPLICAR –


MARTIN SCORSESE
Por Paulo Cantarelli / 6 de novembro de 2019 
Tradução por Paulo Cantarelli

Quando eu estava na Inglaterra, início de outubro, dei uma entrevista à


revista Empire. Me perguntaram sobre filmes da Marvel. E eu respondi. Eu
disse que tentei assistir a alguns e que eles não são para mim, que parecem
mais parques temáticos do que os filmes tais quais os conheci e amei ao
longo de minha vida, e que, no final, não acho que sejam cinema.

Alguns parecem ter tomado a última parte de minha resposta como um


insulto, ou evidência de ódio pela Marvel, de minha parte. Se o intuito é
caracterizar minhas palavras sob essa luz, não há nada que eu possa fazer
para impedir.

Muitos filmes de franquia são feitos por pessoas de considerável talento e


habilidade artística. Nota-se na tela. O fato que os filmes em si não me
interessam é uma questão pessoal de gosto e temperamento. Eu sei que, se
eu fosse mais jovem, se eu tivesse amadurecido num tempo posterior, eu
poderia ter sido entusiasmado por esses filmes e talvez até quisesse eu
mesmo fazer um. Mas eu cresci no meu tempo e desenvolvi um senso de
filmes – ou do que eles eram e poderiam ser – tão distante do universo
Marvel quanto nós, na terra, estamos de Alfa Centauro.

Para mim, para os cineastas que conheço e que vim a amar e respeitar, para
meus amigos que começaram a fazer filmes na mesma época que eu,
cinema era sobre revelação – revelação estética, emocional e espiritual. 
Era sobre personagens – a complexidade das pessoas e suas contraditórias,
por vezes paradoxais, naturezas; a maneira como elas podem machucar-se
umas às outras ou amar-se umas às outras e, de repente, confrontarem-se
consigo mesmas.

Era sobre confrontar o inesperado na tela e na vida que ele dramatizava e


interpretava, e sobre expandir o senso do que era possível na forma da arte.
E isto era primordial para nós: era uma forma de arte. Houve algum debate
sobre isso na época, então nós defendemos o cinema como um igual à
literatura, música ou dança. E nós passamos a entender que a arte podia ser
encontrada em muitos lugares diferentes e em várias formas – em
“Capacete de Aço”, por Sam Fuller, e “Persona”, por Ingmar Berman, no
“Dançando Nas Nuvens”, por Gene Kelly e Stanley Donen, e “Scorpio
Rising”, por Kenneth Anger, em   “Vivre Sa Vie”, por Jean-Luc Godard, e
“Os Assassinos”, por Don Siegel.

Ou nos filmes de Alfred Hitchcock – suponho que se pode dizer que


Hitchcock era sua própria franquia. Ou que ele era nossa franquia. Cada
novo filme de Hitchcock era um acontecimento. Estar num cinema lotado
na estreia de “Janela Indiscreta” foi uma experiência extraordinária: era um
acontecimento criado pela química entre público e filme em si, e era
eletrizante.

E, de certa maneira, alguns filmes de Hitchcock também eram parques


temáticos. Penso em “Pacto Sinistro”, no qual o clímax se passa num
carrossel em um parque de diversões real, e em “Psicose”, ao qual assisti
numa sessão à meia-noite no dia de estreia, uma experiência que nunca
esquecerei. As pessoas iam para se surpreender e se emocionar, e nunca
eram desapontadas.

Sessenta ou setenta anos depois, continuamos a assistir àqueles filmes e nos


maravilhar com eles. Mas seriam os suspenses e os choques que que nos
fazem vê-los novamente? Creio que não. As cenas de set em “Intriga
Internacional” são deslumbrantes, porém não seriam mais que uma
sucessão de composições dinâmicas, elegantes, e de cortes, sem as emoções
dolorosas ao centro da história, ou sem o absoluto sentimento
de desorientação da personagem de Cary Grant.

O clímax de “Pacto Sinistro” é um feito, porém é a interação entre duas


personagens principais e a performance profundamente perturbadora de
Robert Walker que ressoa ainda hoje.

Alguns dizem que os filmes de Hitchcock tinham uma mesmice neles, e


talvez seja verdade – o próprio Hitchcock se questionava sobre isso. Porém
a mesmice das franquias de hoje é algo totalmente diferente. Muitos
elementos que definem o cinema como o conheço estão nos filmes da
Marvel. O que não está lá é a revelação, mistério ou genuíno perigo
emocional. Nada está em risco. Os filmes são feitos para satisfazer um
conjunto específico de demandas, e são projetados como variações de um
número finito de temas.
Eles são continuações no nome, porém são refilmagens em espírito, e tudo
neles é oficialmente sancionado porque não há outra maneira. Esta é a
natureza das franquias de filmes modernas: pesquisadas no mercado,
testadas na audiência, examinadas, modificadas, reexaminadas e
remodificadas até estarem prontas para o consumo.

Em outras palavras, elas são tudo o que os filmes de Paul Thomas


Anderson ou Claire Denis, ou Spike Lee, ou Ari Aster, ou Kathryn Bigelow
ou de Wes Anderson não são. Quando assisto a um filme de um desses
cineastas, eu sei que verei algo absolutamente novo e serei levado a áreas
inesperadas, talvez até mesmo inomináveis, da experiência. Meu senso do
que é possível ao contar histórias através de imagens em movimento e sons
irá se expandir.

Então, podem perguntar, qual meu problema? Por que simplesmente não
deixar os filmes de super-heróis e outras franquias em paz? A razão é
simples. Em muitos lugares, ao redor deste país e do mundo, franquias de
filmes são agora a principal escolha se você quiser ver algo nas telonas. É
um tempo perigoso para a exibição de filmes, e há menos cinemas
independentes do que nunca. A equação se inverteu e o streaming tornou-se
o principal sistema de entrega dos filmes. Ainda assim, não conheço um
único cineasta que não queira planejar filmes para as telonas, ser projetado
diante do público nas salas de cinema.

Isso inclui a mim, e falo como alguém que acabou de terminar um filme
para Netflix. Isso, e somente isso, nos permitiu fazer “O Irlandês” do modo
que precisávamos fazer, e por isso serei sempre grato. Temos uma janela
teatral, o que é ótimo. Eu gostaria que o filme fosse mostrado nas telonas
por mais tempo? Claro que gostaria. Mas não importa com quem você faz o
filme, o fato é que as telas dos multiplexes estão abarrotadas de filmes de
franquia.

E se me disserem que é uma mera questão de oferta e procura, de dar às


pessoas o que elas querem, irei discordar. É um problema do gênero o-ovo-
ou-a-galinha. Se é dado às pessoas apenas um tipo de coisa, e apenas esse
tipo de coisa é vendido, é claro que elas irão querer mais desse tipo de
coisa.

Mas, podem argumentar, eles não podem ir para casa e assistir o que
querem na Netflix, iTunes ou Hulu? Claro – em qualquer lugar, menos nas
telonas, onde o cineasta pretendia que o filme fosse visto.

Nos últimos vinte anos, como todos sabemos, a indústria cinematográfica


mudou em todas as frontes. Mas a mudança mais sinistra aconteceu
sorrateiramente e sob as sombras da noite: a gradual, porém constante,
eliminação do risco. Muitos filmes, hoje, são perfeitos produtos
manufaturados para consumo imediato. Muitos são feitos por times de
indivíduos talentosos. Todos iguais, falta algo essencial ao cinema: a visão
unificadora de um artista individual. Porque, é claro, o artista individual é o
fator mais arriscado de todos.

Certamente não estou sugerindo que filmes deveriam ser uma forma de arte
subsidiada, ou que eles já foram. Quando o sistema de estúdios de
Hollywood estava vivo e bem, a tensão entre artistas e quem administrava o
negócio era constante e intensa, porém era uma tensão produtiva que nos
deu alguns dos maiores filmes já feitos – nas palavras de Bob Dylan, os
melhores eram “heroicos e visionários”.

Hoje, aquela tensão se foi, e há alguns no ramo com absoluta indiferença à


própria questão da arte e uma atitude em relação à história do cinema que é
tanto desdenhosa quanto autoritária – uma combinação letal. A situação,
infelizmente, é que temos dois campos separados: há o entretenimento
audiovisual global, e há o cinema. Eles ainda se cruzam de tempos em
tempos, mas isso está se tornando cada vez mais raro. E temo que a
predominância financeira de um está sendo usada para marginalizar e até
mesmo menosprezar a existência do outro.

Para quem sonha em fazer cinema, ou está apenas começando, a situação


neste momento é brutal e inóspita à arte. E o ato de simplesmente escrever
estas palavras me preenche com uma terrível tristeza.

Texto por Martin Scorsese, originalmente publicado no The New York


Times, em 04/11/2019. Tradução de Paulo Cantarelli.

OS OLHARES DE SALAMMBÔ
Por Paulo Cantarelli / 9 de janeiro de 2020
O efeito, para o espectador, deve ser uma espécie de assombro. Como tudo
isto foi feito? É o que se deve dizer, e sentir-se esmagado sem saber por
quê.

— Flaubert, em carta a Louise Colet, 9 de dezembro de 1852

I – Mais Clássico que os Clássicos

Mais do que os literatos das línguas mortas, com seus ouvidos e olhos
mortos, seus corações mortos por uma noção morta de arte, Flaubert
entendeu a Arte Antiga. Entendeu que o espírito da Arte era também o
ethos de todo um povo, o que nos gregos se compreendia das praias
mediterrâneas ao topo do Olimpo; o homem grego estava em comunhão
com a natureza, sensível e inteligível unidos feito a carne aos ossos, e o
mundo era a própria Grécia. Não nos resta mais que o pó e as ruínas desses
povos antigos, feito os ossos de monstros antediluvianos meio enterrados
na areia. Em “Salammbô”, tudo é grandioso e nos faz tremer ante a visão
fantasmagórica desses gigantes que há muito não caminham sobre a terra.

Durante o século XIX, tido como o século de ouro da Literatura, temos


uma impressionante galeria de escritores: Tolstói, Balzac, Dostoiévski,
Dickens, Hugo, Stendhal. Grandes nomes que, sem dúvida, constituem um
ponto culminante na história da ficção; porém no plano do conteúdo. À
exceção de Tolstói, que vislumbrou a verdadeira Arte com a maturidade,
todos os outros são pequenos no campo da criação rigorosamente artística,
a saber, o único que importa. Este juízo, por si, soará absurdo à maioria dos
leitores, porém, como a Arte não é democrática, exercerei todos os
privilégios que minha aristocracia artística me permite. Há dois séculos,
chamam de absurdo o que deveria ser óbvio: que o que faz a boa escrita é o
estilo. Temos a impressão de ter de pedir desculpas por dizer “o céu é
azul”. 

Estilo, aqui, não se engane, não é a frase bonitinha, as palavrinhas


estranhas e estúpidas balbuciadas por beletristas, o ritmo raquítico,
desprovido de substância, ossos sem carne, forma sem conteúdo ― tal
coisa, para o verdadeiramente Belo, na Arte, não existe, nem existirá. O
estilo do artista é toda uma maneira de ver o mundo através da forma. Se o
artista é fútil, a criatura não fugirá ao criador. Toda real Beleza artística
apraz tanto ao inteligível quanto ao sensível.  É nesse nível que trabalha o
artista superior. E o grande nome de toda a história do Romance chama-se
Gustave Flaubert, e é chegado o momento de pôr termo a algumas
injustiças, senão históricas, estéticas. Flaubert, por muito tempo, foi tido ―
e ainda o é, por alguns ― como um escritor menor. Porém a verdade é que
ele, e somente ele, reina triunfante ao lado de Homero. Me acusarão de
sectarismo, de idolatria; mas apenas esses dois escritores são dignos de
culto. Homero com as duas obras que fundamentaram toda a Literatura
Ocidental, Flaubert com seus seis livros que trouxeram a verdadeira Arte
de volta dos mortos. Com a escrita de “Madame Bovary”, a história da
literatura muda por completo.  É uma revolução do tipo mais sutil e
duradoura, uma revolução formal, não temática. Muitos subestimam este
romance pela escolha de temas burgueses, os quais Flaubert, mais do que
ninguém, odiava. Nós, artistas, não controlamos nossos temas, eles são algo
irresistível, uma força indômita e terrível; algo que nos arrasta para as
profundezas de nosso ser e nos consome, feito o fogo consome mariposas
no escuro. As escolhas dos temas de Bovary não são provas de um amor
pelo fútil por parte do autor; são resultado de um profundo tormento: la
bêtise humaine. Eis seu verdadeiro intento: se é possível escrever as coisas
banais do mundo numa forma bela, é possível escrever sobre qualquer
coisa. Não há temas vis nem nobres, há apenas o estilo.

Uma vez provada sua teoria, Flaubert resolveu ceder às inclinações mais
pessoais, que clamavam mais ao épico que ao dramático, mais à pompa que
ao banal. Foi assim que surgiu, em 1857, sob título provisório de
“Cartago”, a obra que viria ser o grande épico do romance, a ponto de
rivalizar com Homero. Com a estréia de “Salammbô ”, em 1862, pela
primeira vez o cego sentiu pisarem-lhe os calcanhares das sandálias

A impressão que “Salammbô” deixa na alma do leitor é, de fato: como tudo


isto foi feito? Por um lado, ao terminarmos o romance, ainda sentimos suas
reverberações por um longo período, como se acabássemos de presenciar
uma grande ópera de Verdi; por outro, é como se, completada a leitura,
tivéssemos diante de nós um monstruoso e belo painel de Bosch. Flaubert
pegou o que havia de mais bonito e de mais feio, de mais divino e de mais
hediondo que há no mundo; refinou esse material, de novo e de novo,
através do estilo, até que obtivesse um extrato puro da própria Beleza. Uma
Beleza plástica e impessoal, resplandecente e fria feito o mármore de Paros,
que os antigos escultores usavam para fazer obras eternas; foi através desse
procedimento rigoroso ― e que por vezes o levava a desmaios e febres,
exaurindo-lhe os nervos por completo ― que Flaubert tornou-se mais
Clássico que os Clássicos.

II – Nós, Cartago

Uma das inovações feitas em “ Madame Bovary ” foi o uso da técnica do


Narrador Plural, ao início do primeiro capítulo: “Nous étions à l’étude,
quand le proviseur entra” [Estávamos em aula, quando o diretor entrou]. O
leitor inexperiente logo pensa se tratar de um erro de Flaubert, pois, após
alguns parágrafos, a narrativa assume o foco de terceira pessoa,
abandonando por completo a primeira pessoa do plural, e passa a utilizar
múltiplos narradores ocultos. Flaubert opta por mostrar um ponto de vista
anônimo de quem testemunhou a infância de Charles Bovary, nos
aproximando da intimidade das personagens, depois lançará vozes que
transitarão livremente no texto, ora em discurso indireto livre, ora em falsa
terceira pessoa. Somente então teremos o Narrador Múltiplo.

Aqui entra um breve esclarecimento: discurso indireto livre não é o mesmo


que falsa terceira pessoa. Há uma confusão, mesmo entre autores
consagrados, sobre os limites de uma técnica e de outra devido à
ambiguidade que ambas carregam, além do fato de que uma técnica
geralmente está em companhia da outra. O discurso indireto livre ocorre
quando há uma mudança não anunciada na voz do narrador para a voz das
personagens, e vice-versa; as vozes transitam livremente no texto. O ponto
de vista e o foco narrativo mudam sutilmente para a primeira pessoa,
porém, ainda assim, a técnica em Flaubert baseia-se na sutileza e
ambiguidade do texto. Explico: foco narrativo é a técnica utilizada (1ª, 2ª
ou 3ª pessoa), e o ponto de vista é a ideologia, por assim dizer, da
personagem, seu olhar subjetivo. Com James Joyce e outros mestres do
século XX, o discurso indireto livre tornou-se menos ambíguo, tendo usos
mais ousados ― ou mais óbvios ― que em Flaubert; porém o princípio
continua o mesmo: há a mudança do foco narrativo e do ponto de vista,
ainda que sutis. Na falsa terceira pessoa, ocorre algo similar: o foco
narrativo permanece no narrador em terceira pessoa e o ponto de vista
muda para a primeira pessoa. Uma das maneiras mais simples de se
descobrir uma falsa terceira pessoa é pensando: quem está vendo ou
relatando isto, e sob qual perspectiva? Frequentemente podemos substituir
o ele pelo eu, sem grandes alterações de sentido na frase; por
isso falsa terceira pessoa. Escrita em primeira pessoa com técnica de
terceira. 

Em “Salammbô”, vemos uma variação da técnica do narrador plural, agora


abordado com foco narrativo em terceira pessoa do plural, eles, em vez de
primeira pessoa do plural, nós. Trata-se duma falsa terceira pessoa do
plural. Esse tipo de narrador será mesclado ao uso de múltiplos narradores
ao longo do texto; isto é, as próprias personagens, cujos pontos de vista se
revelarão aos poucos através da técnica do narrador relator (ou onisciente
oculto), que nada opina, servindo apenas de condutor das vozes narrativas,
feito um maestro que rege a orquestra sem jamais emitir um único som. O
engenho do narrador em falsa terceira pessoa do plural se torna bastante
evidente no capítulo XIII, “Moloch”, onde transitamos entre o ponto de
vista dos bárbaros e o dos cartagineses:

Os bárbaros não tinham necessidade de uma circunvalação da costa da


África, ela pertencia-lhes. Para tornar mais fácil a aproximação das
muralhas, foram demolidas as trincheiras que limitavam o fosso. A seguir,
Mâtho dividiu o exército em grandes semicírculos, de forma a cercar
melhor Cartago.[…]

E, alguns parágrafos depois, o ponto de vista de Cartago:

Os cartagineses também se preparavam.

Amílcar tinha-lhes dado nova confiança ao anunciar-lhes que a água das


cisternas chegava para cento e vinte e três dias. Esta afirmação, sua
presença no meio deles, […] trouxeram-lhes a esperança. Cartago
superou seu abatimento; os que não eram de origem cananéia foram
levados pelo entusiasmo dos outros.

Numa escrita em primeira pessoa, os parágrafos começariam assim: 

“Nós bárbaros não tínhamos necessidade de uma circunvalação da costa


da África; ela pertencia-nos.” e “Nós cartagineses também nos
preparávamos. Amílcar tinha-nos dado nova confiança ao anunciar-nos
que a água das cisternas chegava para cento e vinte e três dias. Esta
afirmação, sua presença no meio de nós, […] trouxeram-nos a
esperança.”

Portanto, uma cena escrita em falsa terceira pessoa do plural, não a


intromissão de um narrador onisciente, como poderia parecer numa
primeira leitura.

III – Nos Jardins de Amílcar

Começamos o romance com um elegante: “C’était à Mégara, faubourg de


Carthage, dans les jardins d’Hamilcar”; ou, como veremos na tradução de
Pedro Reis ― muito boa, a despeito de alguns vários problemas de
tipografia e pequenos erros de tradução ―, pela Otto Pierre Editores:

Estava-se em Megara, nos arredores de Cartago, nos jardins de Amílcar.

Os soldados que comandara na Sicília participavam dum grande festim


para celebrar o aniversário da batalha de Eryx, e, como o chefe estava
ausente e eram muitos, comiam e bebiam com toda a liberdade.

Os chefes, com coturnos de bronze, estavam no caminho do meio, debaixo


de um toldo purpúreo de franjas douradas, que se estendia das paredes
das cavalariças até o primeiro terraço do palácio; os soldados tinham-se
espalhado por entre as árvores, no meio das quais se distinguiam vários
edifícios de telhado plano, lagares, celeiros, arrecadações, padarias e
arsenais, com um pátio para elefantes, fossas para os animais ferozes, uma
prisão para os escravos.

Os únicos erro de tradução neste trecho, se é que podemos dizer assim, são
a repetição desnecessária da palavra “chefe”, no terceiro parágrafo, e o som
de “com coturnos” [comcô], que é feio e desagradável . Originalmente,
Flaubert escreveu “le maître était absent” [mestre, ou chefe], para se
referir a Amílcar, depois “les capitaines, portant des cothurnes de bronze”
[os capitães, portando coturnos de bronze] para se referir aos comandantes
subordinados a Amílcar. Flaubert não se permitiria a uma repetição
desnecessária nem a um som rude; e isto, que por si parece apenas um
detalhe, é digno de nota. No restante, o tradutor manteve ritmo e
paragrafação originais, buscando reproduzir as palavras justas para as
frases, e transpondo de forma satisfatória os sons e cores do texto em
francês. Agora, vamos ao que interessa.

Flaubert abre o romance com “C’était à Mégara”, mas por que “estava-se
em Megara”? Por que não um “ils étaient”, um eles estavam? Com esse
início, Flaubert revela a impessoalidade da história que irá contar.
Salammbô, ao contrário do que o título pode sugerir, não é o ponto de vista
central do romance; este é dividido principalmente entre ela, Mâtho,
guerreiro líbio, o general Amílcar Barca e os povos que habitam Cartago. A
filha ficcional de Amílcar, contudo, é o fio condutor que une o romance e
todos os seus núcleos; todos os acontecimentos e causalidades são
consequências diretas ou indiretas de suas ações, como veremos na última
frase do livro, da qual trataremos mais adiante. Ela, qual uma Helena
cartaginesa, irá mover os homens à guerra. 

Este início tão sutil seria estragado pelos “romancistas históricos”, feito
Walter Scott, ou qualquer outro escritor menor. Qualquer outro teria
escrito: “no ano de 241 a. C., um ano após a batalha de Érice, fizeram um
festim para os mercenários comandados por Amílcar Barca…”.
Felizmente, o mestre de Rouen não é Walter Scott. Ele nos diz tudo o que é
preciso para o contexto de forma elegante desde o início, aliás, com um
jogo de perspectivas singular, como num jogo de câmeras: estava-se
em Megara, nos arredores de Cartago, nos jardins de Amílcar. Nos
aproximamos sutil e gradualmente do jardim, os soldados participavam
dum grande festim… Os chefes, portando coturnos de bronze… O ângulo
da narrativa começa aberto, em Megara, nos subúrbios (faubourg) e, como
numa visão panorâmica, mostra que está-se em Cartago. Em seguida, este
ângulo vai se fechando até mostrar pequenos detalhes nos jardins de
Amílcar, em close, a exemplo dos coturnos de bronze. Cinema antes do
cinema, como notou o cineasta russo Serguei Eisenstein, ainda ao analisar a
montagem de “Madame Bovary”, em “A Forma do Filme”.

A presença de Amílcar, é preciso observar, se faz pela ausência desde as


linhas iniciais do romance: é uma sombra que se ergue feito uma montanha,
ora inspirando medo, ora esperança, no coração de Cartago. Sua primeira
aparição é quase mítica, no meio do romance, após voltar da campanha
contra Roma. Suas ações, gloriosas a ponto de afastar, apenas pela presença
de espírito, uma turba de conspiradores, armada com punhais, que
planejava dar-lhe um fim similar ao de Júlio César. Esta presença do
espírito das personagens é perceptível a partir de suas falas, ações e do
cenário em que habitam. Em “Salammbô”, tudo é poesia, esta força criativa
que arrasta o leitor feito a correnteza aos náufragos à deriva. Nada é sem
propósito. Ao contrário de autores medíocres que jogam um cenário
natureza-morta, Flaubert dá todo um tom místico à narrativa: ora
maravilhoso e belo, ora monstruoso e cruel. No quarto parágrafo do
romance, continua o cenário psicológico:

As cozinhas estavam cercadas por figueiras; um bosque de sicômoros


prolongava-se até o maciço da verdura, onde as romãs sobressaiam entre
tufos brancos dos algodoeiros; videiras, carregadas de cachos, subiam
pelos ramos dos pinheiros; sob os plátanos, estendia-se um roseiral; da
selva surgiam, aqui e ali, lírios que balançavam; uma areia negra,
misturada com pó de coral, cobria os caminhos; e, ao meio, a avenida de
ciprestes era, de uma extremidade a outra, como uma dupla colunata de
obeliscos verdes.

Não são descrições gratuitas, são imagens claras e objetivas, os adjetivos


são concretos, não há redundâncias. Vemos um colorido intenso, como o
das pinturas de Monet, porém em movimento. A areia negra salta a nossos
olhos com o pó de coral;  as romãs, vermelhas, nos lembram gotas de
sangue entre os algodões; e se há brancos, depois de tufos, é para que o
contraste entre a guerra e a paz esteja presente desde o início. Há um misto
de indolência e revolta. A técnica do contraponto, a qual abordaremos mais
adiante, é essencial para que o leitor possa compreender este romance.

Outro detalhe no estilo é o uso do ponto-e-vírgula, que enfatiza o ritmo


psicológico no leitor, nos dando uma pausa ― para utilizar o lugar-comum,
porém não menos verdadeiro ― maior que a vírgula e menor que o ponto.
Analogamente, poderíamos comparar à teoria musical, onde o ponto seria
equivalente a uma pausa de quatro tempos [semibreve], e uma vírgula
equivalente a meio tempo [colcheia]:

O ponto é uma pausa proeminente. O


dois-pontos interrompe essa pausa preparando o leitor para uma
enunciação: o ponto-e-vírgula corta o tempo dessa enunciação pela metade;
e a vírgula, por sua vez, cria pequenos respiros para o leitor.
Claro, trata-se de um ritmo psicológico ― não necessariamente literal,
embora possamos notá-lo ao ler em voz alta ― e cujo uso varia de escritor
para escritor. Mas, em suma, é este o conceito de ritmo causado pela
pontuação.

O quarto parágrafo provoca um longo movimento interior na alma do


leitor, como num soneto:

As cozinhas estavam cercadas por figueiras; 

um bosque de sicômoros prolongava-se até o maciço da verdura, 

onde as romãs sobressaiam entre tufos brancos dos algodoeiros; 

videiras, carregadas de cachos, subiam pelos ramos dos pinheiros;

Comparemos com a primeira estrofe de “O Adormecido no Vale”, de


Rimbaud (tradução por Ferreira Gullar):

É um vão de verdura onde um riacho canta

A espalhar pelas ervas farrapos de prata

Como se delirasse, e o sol da montanha

Num espumar de raios seu clarão desata.

Evidentemente, mais uma analogia, não há métrica de soneto, porém o


ritmo psicológico prova o que o próprio autor pregava: a boa prosa deve ser
como o bom verso, imutável. Se perguntassem a Flaubert: por que, mestre,
escrevestes este parágrafo, estas descrições? Ele responderia: porque eu
posso. 

E o faz de novo e de novo e de novo.

IV – Tânita, a Lua

É ainda no primeiro capítulo que vemos a aparição de Salammbô. Qual


uma Penélope que desce do alto de suas escadarias para apaziguar os
ânimos dos pretendentes, ou uma deusa que se revela aos mortais,
Salammbô sai de seus aposentos e vai para o meio dos mercenários,
tentando acalmar o motim que, breve, se tornará a revolta que
acompanhamos ao longo do romance.

O terraço mais alto do palácio iluminou-se de súbito, a porta do meio


abriu-se; e uma mulher, a filha de Amílcar, ela própria, toda vestida de
negro, apareceu na soleira. Desceu a primeira escada, que se estendia
obliquamente do primeiro andar ao segundo, ao terceiro, e parou no
último terraço, no alto da escadaria […]. Imóvel, de cabeça baixa, olhava
para os soldados.

Salammbô assemelha-se à encarnação da deusa da lua, Tânita, enquanto os


mercenários a observam debaixo:

Atrás dela, de cada lado, duas longas filas de homens pálidos, vestidos
com fatos brancos de franjas vermelhas, que caíam a direito sobre os pés.
Não tinham barba, não tinham cabelo, não tinham sobrancelhas. Nas
mãos onde brilhavam anéis seguravam liras enormes e cantavam todos,
com uma voz aguda, um hino à divindade de Cartago. Eram os sacerdotes
eunucos do templo de Tânita que Salammbô chamava muitas vezes a sua
casa.

Através da repetição do “não tinham” [ Ils n’avaient pas de barbe, pas de


cheveux, pas de sourcils], Flaubert demonstra a estranheza diante da visão
dos sacerdotes; e a esta estrutura frasal tríplice, chamamos de tricolon,
também conhecida como sentença tríade. Usada corretamente, confere um
senso de ênfase às descrições, sem ser demasiado monótona ou prolixa.
Uma visão fantasmagórica e pálida, feito a lua, uma cena cheia de energia
feminina ― pois todos os servos de Tânita são castrados ―, na qual os
sacerdotes não carregam arcos, feito os guerreiros, mas liras. Se seguirá o
perfil físico-psicológico de Salammbô, misto de vestal e odalisca:   

Por fim, desceu a escada […]. Os sacerdotes seguiram-na. Avançou pela


avenida dos ciprestes; caminhava lentamente entre as mesas dos chefes
que recuavam ligeiramente para vê-la passar.

O cabelo, empoado com uma areia violeta e preso à moda das virgens
cananéias, fazia-a parecer maior. Fios de pérolas presos às têmporas
desciam até os cantos da boca, rosada como uma romã aberta. Tinha
sobre o peito um conjunto de pedras luminosas, que imitavam pela sua
combinação as escamas de uma moreia. Os braços, guarnecidos de
diamantes, saíam nus da túnica sem mangas, guarnecida de flores
vermelhas sobre o fundo negro.

Mais uma repetição equivocada do tradutor, que repetiu “guarnecido”, algo


que não ocorre no original, com as palavras “garnis de diamants”
[guarnecidos de diamantes] e “ étoilée de fleurs rouges” [estrelado de
flores vermelhas]. É preciso notar que as repetições em Flaubert são
extremamente técnicas, como deve ser. Outra observação, aos que lerem
nesta tradução, é que a edição errou na grafia de “areia”, estando escrito no
livro “empoado com uma reia violeta”, o que não faz muito sentido.
Tinha presa aos tornozelos uma corrente de ouro para regular a marcha, e
o seu grande manto purpúreo, feito de um tecido desconhecido, era
arrastado, ondulando a cada passo como se uma onda enorme a seguisse.

Os sacerdotes tiravam, de vez em quando, das suas liras acordes quase


abafados; e nos intervalos da música, ouvia-se o ruído da cadeia de ouro e
o bater regular das sandálias de papiro. 

Ninguém a conhecia. Só se sabia que ela vivia retirada entregue a práticas


piedosas. Soldados tinham-na visto uma noite, no alto do seu palácio, de
joelhos diante das estrelas, no meio de perfumadores acesos. Era a Lua
que a fazia parecer tão pálida, mas havia qualquer coisa de divino que a
envolvia num vapor sutil. As suas pupilas pareciam olhar para além dos
espaços terrestres. Caminhava com a cabeça inclinada e tinha na mão
direita uma lira pequenina de ébano.

Aqui temos um vislumbre do ponto de vista coletivo, o “ninguém a


conhecia” nos remete a vozes desconhecidas no texto, que ora mencionam
boatos, “só se sabia que…”, ora soam como quem se lembra de uma lenda:
“os soldados tinham-na visto…”. A memória se mescla ao tempo presente
da narrativa: a Salammbô “de joelhos diante das estrelas, no meio de
perfumadores acesos” agora parece ter se materializado ali, diante da
soldadesca, e era “a Lua que a fazia parecer tão pálida”. O que, a
princípio, pareceria ao leitor ingênuo intromissões do narrador, é, na
realidade, um conjunto de vozes polifônicas. 

Salammbô fala a língua sagrada dos deuses e todas as línguas dos homens,
prova-se o avatar de Tânita na terra, inclusive alegando vir duma linhagem
mítica, como veremos na passagem a seguir:

Começou então a cantar as aventuras de Melkart*, deus dos sidônios e pai


de sua família.

Falou da subida das montanhas de Ersifônia, da viagem de Tartessos, e da


guerra contra Masisabal** para vingar a rainha das serpentes: 

― Perseguiu na floresta o monstro cuja cauda ondulava sobre as folhas


mortas como um regato de prata; e chegou a um prado onde mulheres,
com corpo de dragão, estavam reunidas em volta do fogo, apoiadas na
ponta da cauda. A Lua, cor de sangue, resplandecia num círculo pálido, os
raios escarlates, como arpões dos pescadores, recurvando-se até à chama.

Depois, Salammbô, sem parar, contou como Melkart, após ter vencido
Masisabal, colocou na proa do navio a cabeça cortada:
― A cada batimento das vagas, afundava-se na espuma; o sol
embalsamou-a; fez-se mais dura do que o ouro; os olhos nunca deixaram
de chorar, e as lágrimas caíam continuamente na água.

Cantou tudo isto no velho idioma cananeu que os bárbaros não entendiam.
Perguntavam a si próprios o que é que ela lhes poderia estar a dizer com
os gestos terríveis com que acompanhava o discurso […].

Só os sacerdotes sem barba compreendiam Salammbô. […] 

Salammbô já não falava em ritmo sagrado. Empregava simultaneamente


todos os idiomas bárbaros, delicadeza de mulher para apaziguar a sua
cólera. Aos gregos, falou em grego; depois voltou-se para os lígures, para
os campanianos, para os negros; e todos eles, ao escutarem esta voz,
encontravam a doçura da pátria.

[*Hércules fenício **Feiticeiro que Melkart amarrou numa árvore e


decapitou.]

Mais uma mudança sutil de perspectivas, Salammbô toma a narrativa para


si, através de um série de diálogos diretos intercalados com o discurso
indireto puro e simples, onde o narrador oculto ― talvez numa perspectiva
mais próxima dos sacerdotes que de Salammbô  ― resume as falas da
personagem, dando um contexto para os cânticos sagrados. Depois,
novamente, o ponto de vista plural dos bárbaros, que “perguntavam a si
próprios o que é que ela lhes poderia estar a dizer com os gestos terríveis
com que acompanhava o discurso”, e depois o ponto de vista dos
sacerdotes, e assim por diante.

Contudo, o canto de Salammbô nos avisa: esta não será uma história feliz.

V – Fim de Festa

Os cenários são um de meus elementos favoritos em “Salammbô”, porém,


para o leitor menos iniciado, são as cenas de batalhas e as ações sobre-cena
que o conquistam. Flaubert nos dá mostras disso ainda no primeiro
capítulo, na briga entre Mâtho e Narr’Havas, ao final do festim. Veremos
agora mais alguns dos engenhos que Flaubert utiliza para seduzir o leitor
durante este primeiro capítulo ― e, consequentemente, ao longo do livro.
Após a aparição de Salammbô, o ritmo segue num crescendo, começamos
com o perfil de outros dois personagens, o primeiro, Narr’Havas:

Nenhum olhava para ela como o jovem chefe númida que estava na mesa
dos comandantes, entre os soldados de sua nação. Tinha tantos dardos à
cintura que formavam uma bossa sob a capa, atada às têmporas com uma
tiara de couro. O tecido, que se abria sobre os ombros, envolvia em
sombra o rosto, e a única coisa que se via era a chama dos seus olhos.
[…] Há seis meses que Narr’Havas ali vivia, mas nunca tinha visto
Salammbô; e, sentado nos calcanhares, com a barba a tocar a haste dos
dardos, olhava para ela, de narinas frementes, como um leopardo
escondido nos bambus. 

Narr’Havas será uma personagem crucial no enredo do romance,


arquetipicamente uma personagem-sombra, ambígua e de personalidade
esquiva. Faz sentido que, em sua primeira aparição, um perfil físico-
psicológico, o rosto esteja envolto em sombras e haja um símile
comparando-o a um leopardo, que ataca na surdina. Logo a seguir, temos o
perfil de Mâtho, grande herói dos mercenários:

Do outro lado da mesa estava um líbio de estatura colossal, de cabelos


negros curtos e frisados. Tinha só o gibão militar, cujos fios de bronze
rasgavam a púrpura do leito. Um colar de luas de prata embaraçava-se
nos pelos do peito. Salpicos de sangue manchavam-lhe  o rosto, estava
apoiado no cotovelo esquerdo; e, com a boca muito aberta, sorria. […]
Mâtho, o líbio, inclinou-se para ela [Salammbô]. Involuntariamente
aproximou-se dele, e, levada pelo reconhecimento do seu orgulho, deitou-
lhe numa taça de ouro uma boa quantidade de vinho para assim se
reconciliar com o exército.

― Bebe! ― ordenou.

Há poucos comentários acerca deste perfil, que fala por si. Aliás, a
habilidade de artesão de Flaubert é tamanha que a apresentação das
personagens é extremamente sutil: os nomes não são citados num primeiro
momento, mas apenas quando já estamos imersos em suas psicologias.
Uma mulher, um jovem chefe númida, um líbio de estatura colossal; o
pronome indefinido define a sutileza dos perfis. Na cena, vemos que
Mâtho, ao contrário de Narr’Havas, é destemido, grandioso, está na
claridade, à vista de todos. Assim, Flaubert tece a imensa tapeçaria de
“Salammbô”, com os mais variados tipos humanos e situações; através do
contraponto, nos dá contraste entre as personalidades e os sentimentos.
Uma observação interessante é que Mâtho carrega um colar de luas de
prata ao peito, o que pode ser uma indicação de que levará Salammbô ― a
representação terrena de Tânita, a Lua ― próxima do coração pelo resto da
vida. Continuando a cena, para o momento em que os ânimos se exaltam:

Ele pegou na taça e preparava-se para a levar aos lábios, quando um


gaulês […] lhe bateu no ombro, dizendo, com um ar jovial, graças na
língua do seu país. Spendius não estava longe; ofereceu-se para explicar.
― Os deuses te protejam, vais ser rico. Quando é o casamento?

― Que casamento?

― O teu! Porque entre nós ― retorquiu o gaulês ― quando uma mulher


dá de beber a um soldado, está a oferecer-lhe o leito.

Ainda não acabara e já Narr’Havas, levantando-se de um pulo, tirava um


dardo da cintura e, apoiado no pé direito, na borda da mesa, o lançava a
Mâtho.

O dardo assobiou por entre as taças, e, atravessando o braço do líbio,


cravou-o na toalha com tanta força, que o cabo ficou a tremer no ar.

Mâtho arrancou-o imediatamente; mas não tinha armas, estava nu; por
fim levantando com os dois braços a pesada mesa, arremessou-a a
Narr’Havas, no meio de uma multidão que se precipitava entre eles. Os
soldados e os númidas estavam tão juntos que não podiam puxar pelas
espadas. Mâtho avançava dando grandes cabeçadas. Quando levantou a
cabeça, Narr’Havas tinha desaparecido. Procurou-o com os olhos.
Salammbô tinha partido também.

Olhou para o palácio e viu, lá em cima, a porta vermelha com a cruz preta
que se fechava. Começou a correr.

Uma cena homérica em todos os sentidos. Qual Homero, Flaubert nos dá os


detalhes, reitero sempre, absolutamente essenciais para, quando fecharmos
os olhos, conseguirmos ver a cena com nitidez. Embora não descreva o
sangue do ferimento, o imaginamos, embora não descreva os barulhos e
gritos, cremos ouvi-los; apenas o que interessa é mostrado. Os movimentos
são claros, as ações, nítidas, porém misteriosas. Este ensaio já está
demasiadamente extenso para que eu me alongue ainda mais com a
comparação direta a outros livros; seja Homero, para mostrar a fonte de
onde Flaubert bebeu a mais pura Literatura, seja escritores medíocres ―
feito os contemporâneos Bernard Cornwell, Ken Follett i tutti quanti, mais
conhecidos pelo grande público leitor ― que escrevem, supostamente,
romances históricos. O supostamente não é para o histórico, não duvido
que esse tipo de escritor seja versado em história; é que duvido que o que
escrevem seja realmente um romance. Romance como confrontamento da
condição humana, romance feito para abalar as estruturas interiores do
ser; Arte de verdade, não papel higiênico com letrinhas impressas, feito
para vender. Mais adiante, investigaremos a função da pesquisa histórica
para este tipo de romance.
VI – O Enigma dos Olhares

Antes de passarmos à pesquisa material, necessária em algum nível para o


subgênero romance histórico, devemos explorar mais a fundo a pesquisa
literária, as técnicas que o escritor utilizou para dar forma ao conteúdo.
Para entender amplamente esta obra, é preciso analisar o esquema dos
pontos de vista e dos olhares. O Olhar da Personagem talvez seja o mais
importante conceito observado por meu velho mestre, Raimundo Carrero,
autor de “Os Segredos da Ficção” e “A Preparação do Escritor” ― conceito
que, junto a tudo o mais que ele me ensinou, formam o arsenal do
verdadeiro artesão. Esta técnica não é propriamente nova, já que podemos
notá-la até mesmo em Homero; porém Carrero foi o primeiro a observar
seu uso consciente, e a nomeá-la. Ela consiste em mostrar o olhar subjetivo
da personagem como se o narrador abordasse a perspectiva de uma câmera
em primeira pessoa; vemos literalmente através dos olhos da personagem, o
que comumente é indicado pelos verbos ver ou olhar, porém nem sempre
isso é necessário. Um recurso aparentemente banal, corriqueiro, e,
justamente por isso, ignorado por muitos.

Na cena da luta entre Mâtho e Narr’Havas, temos um exemplo muito claro:

Mâtho avançava dando grandes cabeçadas. Quando levantou a cabeça,


Narr’Havas tinha desaparecido. Procurou-o com os olhos. Salammbô
tinha partido também.

Olhou para o palácio e viu, lá em cima, a porta vermelha com a cruz preta
que se fechava. Começou a correr

É nítido que o ponto de vista abordado é de Mâtho, muito claramente.


Vemos pelos olhos dele, porém, em outras cenas, Flaubert utiliza, sem
anunciar, um incrível jogo de olhares, que só é possível mediante o uso de
elipses (cortes psicológicos) e pelo uso dos pontos de vista. Vejamos esta
breve cena, que inicia-se no ponto de vista de Salammbô:

[1] O sufete e o escravo afastaram-se para um canto do quarto. A criança


tinha ficado no meio; com um olhar mais atento do que admirado, 
percorria [2] o teto , os móveis, os colares de pérolas nas tapeçarias de
púrpura, [03] e esta jovem majestosa se inclinava para ele.

A dividi em 3 movimentos, conforme podemos notar:


Salammbô olha o
cenário [01], passando pelo pai e pelo escravo, até encontrar o olhar do
irmão, e é a voz dela que comenta “com um olhar mais atento que
admirado”, pois não poderia ser opinião do narrador relator, nem do
próprio Aníbal. Porém, os olhares se confundem [02], e agora a descrição
para no ponto em que começou: Salammbô. É a voz de Aníbal que nos
revela: “esta jovem majestosa”, terminando na voz do narrador “se
inclinava para ele”. Mais uma vez, o narrador não opina, não poderia ter
utilizado o adjetivo majestosa, pois seria uma opinião subjetiva. Logo,
trata-se da voz de Aníbal. É uma mudança muito sutil no tom: esta jovem
majestosa [et cette majestueuse jeune femme]. E, embora no francês não
haja uma distinção clara entre este e aquele, no sentido de proximidade ―
o demonstrativo ce /cette serve para ambos ―, o tradutor acertou em
usar esta, e não aquela, trazendo Salammbô para mais perto de Aníbal e do
leitor.

Este jogo ocorre tantas e inúmeras vezes que não pode ser acidental.
Flaubert, pelo estudo da técnica, desenvolveu um jogo de pontos de vista e
elipses extremamente sofisticado. Vejamos um terceiro exemplo, que
ocorre no capítulo final do livro, onde o olhar de Mâtho encontra o de
Salammbô:

[01] Agora pertencia aos sacerdotes; os escravos vieram afastar a


multidão; havia mais espaço. Mâtho olhou em seu redor e os seus olhos
encontraram Salammbô.

[02] Tinha-se levantado logo que ele dera o primeiro passo; depois, à
medida que ele se aproximava tinha avançado um pouco até à borda do
terraço; [03] e daí a pouco, todas as coisas exteriores desapareceram e
ela só via Mâtho. Tinha-se feito silêncio em sua alma ― [4] um desses
abismos onde o mundo inteiro desaparece sob a pressão de um único
pensamento, de uma recordação, de um olhar. [5] Este homem que
avançava para ela a atraía.

Temos um esquema parecido:


O movimento começa em Mâtho [01] e passa ambiguamente, através da
quebra psicológica do parágrafo, para Salammbô [02], a ponto de não
sabermos se tratar de uma perspectiva oculta do narrador, ou de uma das
duas personagens. Porém, temos certeza de estarmos na pele de Salammbô
quando vemos, através de seus olhos, que “todas as coisas exteriores
desapareceram e ela só via Mâtho” [03]; por fim, a voz dela em estilo
indireto livre reafirma o ponto de vista [04], para voltar ao narrador oculto
em falsa terceira pessoa, ainda sob o ponto de vista dela [05].

Teremos, ainda, um jogo similar, e mais complexo, de elipses e pontos de


vista.

VII – O Jogo das Elipses

No capítulo XIII temos, sem dúvida, um dos mais impressionantes jogos de


pontos de vista da literatura mundial, ainda que possa passar despercebido
aos olhos sem treino. Começamos a cena com a perspectiva dos sacerdotes
de Tânita, depois passamos para o sumo-sacerdote Schahabarim, depois ao
ponto de vista de Salammbô, de uma criada, novamente de Salammbô, até
chegarmos no esquema de olhares entre ela e Aníbal, o qual já
examinamos, voltando para Salammbô e seguindo para o ponto de vista do
escravo Iddibal, depois para o ponto de vista plural da cidade, e assim por
diante.

Flaubert já apresentava habilmente o manejo da tesoura das elipses em


“Madame Bovary”, porém, em “Salammbô”, faz um uso soberbo da
técnica. Vejamos como se segue a cena, partindo do ponto de vista do
sumo-sacerdote:

[01] Ia a casa de Salammbô. Mas ficava calado, contemplando-a com o


olhar fixo, ou falava com grande veemência; e as censuras que lhe fazia
eram mais severas do que nunca. […] 
[02] Salammbô não sentia o menor terror; a angústia de que dantes sofria
tinha-a abandonado. Sentia-se possuída por uma tranquilidade singular.
Nos seus olhos, menos errantes, brilhava uma chama límpida.

[03] A píton voltara a adoecer; e como Salammbô parecia, pelo contrário,


curar-se, a velha Taanach rejubilava, convencida de que ela recebia com
este enfraquecimento a apatia de sua dona. 

Uma manhã encontrou-a por trás da cama de peles de boi, enrolada sobre
si própria, mais fria do que o mármore, com a cabeça escondida num
monte de vermes. Salammbô acorreu aos gritos, a escrava ficou
surpreendida com sua insensibilidade.

[04] A filha de Amílcar já não fazia jejuns com tanto fervor. […] O pai
vinha muitas vezes ao seu quarto. Sentava-se nos coxins e olhava para ela
com uma expressão quase comovida. […] Uma noite em que se
encontravam os dois, Taanach apareceu assustada. Estava no pátio um
velho com uma criança e queria ver o sufete.

Amílcar empalideceu, mas replicou com ardor:

― Ele que suba!

Iddibal entrou sem se prostrar. Trazia pela mão um rapazinho com uma
capa de pele de cabra; e tirando o capuz que lhe cobria o rosto, disse:

― Aqui o tens, senhor! Recebe-o!

O sufete e o escravo afastaram-se para um canto do quarto. A criança


tinha ficado no meio; com um olhar mais atento do que admirado, 
percorria [05] o teto , os móveis, os colares de pérolas nas tapeçarias de
púrpura, e esta jovem majestosa se inclinava para ele.

[06] Teria talvez dez anos e não era mais alto que uma espada romana.

É possível ver claramente a transição entre os pontos de vista, que talvez


fique até mais evidente com a supressão didática de alguns trechos, de
modo que o leitor deverá encontrar o esquema

abaixo: 

Trata-se duma sobreposição de tons: os pontos de vista e os olhares são


cortados pelas elipse e intercalados no alinhavo da montagem. Esta é uma
ferramenta crucial para que o romancista não caia na monotonia de uma
única perspectiva ao longo do romance; o que seria plenamente aceitável
num conto. Com isso, não me refiro a romances em que o narrador em
primeira pessoa permite a circulação de vozes e perspectivas diversas,
superando as limitações do foco narrativo. Me refiro ao que bem observou
Henry James: o uso de apenas um único ponto de vista de primeira pessoa,
em qualquer narrativa longa, seja ela em falsa terceira pessoa ou primeira
pessoa do singular, é barbarismo.

VIII – Na Barriga de Moloch, o Sol Devorador

Agora que fiz uma leitura próxima ao texto, posso me permitir a leitura
distante, uma análise mais simbólica. Para compreendermos “Salammbô”,
temos de ter em mente um mundo pré-cristão , onde a influência dos
profetas judeus era mínima e os cultos antigos celebravam, a ponto da
exaltação soberba e monstruosa, a sacralidade do profano; a própria vida
orgânica era adorada, idolatravam-se as forças elementares do sangue e da
fertilidade, o próprio conceito de morte e ressurreição se perfazendo no
retorno periódico das estações, da passagem do tempo físico, exaltando-se
forças instintivas e irracionais, de modo bastante distinto do Logos cristão,
que sacralizaria a vida de maneira mais integral e racional, a comunhão
com o divino ocorrendo também de forma mais espiritual e pura. Como
bem se sabe, a simbologia e crença dos cristãos é de que o Cordeiro de
Deus foi sacrificado pelos pecados do mundo, não sendo necessário
derramamento de mais sangue inocente para se religar a Deus ― o
sacramento da eucaristia sendo a renovação, simbólica e literal, do
momento do sacrifício e ressurreição de Cristo. No mundo de “Salammbô”,
presenciamos o terror dos sacrifícios antigos. O “tornar sacro”, para a
apaziguar a cólera dos baals, é custoso, como podemos ver na cena do
holocausto: o filho mais velho de cada família de Cartago é queimado vivo
no altar de Moloch; os cânticos e tambores dos sacerdotes encobrem os
gritos vindos da barriga do ídolo de bronze, enquanto os incensos
mascaram o cheiro de carne queimada. Parece Dante, mas é Flaubert:

As vítimas, mal chegavam à beira da abertura desapareciam como uma


gota de água numa placa incandescente; e um fumo branco subia na
grande cor escarlate.

Todavia o apetite do deus não se apaziguava. Queria mais. Para lhe dar
mais, empilhavam-nos nas mãos [da estátua] com uma corrente grossa por
cima, que os segurava. Os devotos no princípio tinham querido contá-los,
para verem se o número correspondia aos dias do ano solar; mas puseram
outros; e era impossível distingui-los no movimento vertiginoso dos braços
horríveis. Isto demorou muito tempo, indefinidamente, até à noite. As
paredes interiores tomaram um brilho mais sombrio. Viu-se então a carne
que ardia. Alguns julgavam mesmo reconhecer cabelos, membros, corpos
inteiros. 

O dia acabou; acumulavam-se nuvens por cima do Baal. A fogueira, sem


chamas neste momento, fazia uma pirâmide de carvão até os joelhos;
completamente vermelho como um gigante todo coberto de sangue,
parecia, com a cabeça que se virava, cambalear com o peso da
embriaguez.  

[…] Os tocadores de instrumentos paravam, às vezes, esgotados; ouviam-


se então os gritos das mães, o silvar da gordura, que caía nos carvões.

Uma visão digna do Inferno. Ao recriar este mural antigo, parte imaginado,
parte inspirado, Flaubert causou um forte choque de valores, e sofreu
ataques de religiosos, como relata a Théophile Gautier, em carta de abril de
1863:

Sou vítima do ÓÓÓDIO DOS PADRES, tenho sido amaldiçoado por estes
em duas igrejas: Saint-Clotilde e a da Trindade. Acusam-me de ser o
inventor de travestimentos obscenos, e de querer recriar
o paganismo (sic).

Sem dúvida receberia as mesmas vaias de certos comentadores tomistas ―


escola engraçada que, ao menos em Estética, se encerra num exercício, um
tanto anacrônico e infértil, de imaginar o que diria um santo morto acerca
de concepções de Arte às quais jamais testemunhou ou se propôs a analisar,
ao menos como a concebemos hoje, quem dirá um romance. Coitado do
santo… ― que acreditam que a boa arte (sic.) “deve propender ao bem”.
Mas já argumentei, anteriormente, sobre esse tipo, que não aceita a
independência da Beleza como um valor relativamente autônomo, com um
juízo próprio, assim como a Verdade e o Bem; o que não impede, no mais
das vezes, a união desses valores de modo a nos fazer perceber, por
exemplo, um gesto bom como bonito, ou um pensamento verdadeiro como
belo. Aliás, leitores adeptos ao cristianismo devem encontrar mais de uma
referência “moralizante” com base na tradição cristã, feito os leões
crucificados, que nos remetem imediatamente ao Leão de Judá e aos
mártires. Este acontecimento, uma prolepse narrativa, é marcado por um
pensamento coletivo ― “quem é este povo que se diverte a crucificar
leões?” ― que se condensa na ironia dramática de revelar a crucificação de
algumas personagens ao final do livro, como podemos constatar:

Marchavam por uma espécie de corredor comprido, ladeado por duas


cadeias de montículos avermelhados, quando chegou às suas narinas um
cheiro nauseabundo, e julgaram ver no alto de uma alfarrobeira qualquer
coisa extraordinária; uma cabeça de leão surgia por cima das folhas.

Correram para lá. Era um leão, com os quatro membros pregados a uma
cruz como um criminoso. A juba enorme caía-lhe sobre o peito, e as duas
patas anteriores cobertas de pelos enormes, estavam estendidas como as
duas asas de uma ave. As costelas sobressaíam uma a uma sob a pele
estendida; os membros posteriores, pregados um ao outro, estavam um
pouco subidos e sangue negro, correndo por entre os pelos, tinha formado
estalactites na parte de baixo da cauda, que pendia direita ao longo da
cruz. Os soldados divertiam-se; chamavam-lhe de cônsul e cidadão de
Roma e deitavam-lhe pedras aos olhos para fazerem voar as moscas.

E, após toda esta epopeia em que acompanhamos tanto mercenários quanto


cartagineses, sentimos o ferro na palma e o peso dos membros deslocados
pela crucificação. Flaubert, num ápice de lirismo ― verdadeiro lirismo ―,
faz uma jogada perigosa: explicitar a relação entre os leões e as
personagens ao final do romance. Mas o faz segundo a pulsação das
personagens, num átimo de contemplação da própria tragédia diante da
morte. Num momento breve e seco, sem derramamentos, os mercenários
contemplam o próprio fim:

Quanto a Spendius, demonstrava uma coragem estranha; agora


desprezava a vida pela certeza que tinha de uma libertação quase imediata
e eterna e esperava impassível a morte.
Apesar do seu desfalecimento, [os crucificados] estremeciam às vezes com
um roçar de penas pela boca. Grandes asas faziam oscilar sombras em
volta deles, grasnadas cruzavam o ar; e como a cruz de Spendius era a
mais alta, foi sobre a dele que o primeiro abutre pousou. Voltou-se para
Autharite e disse-lhe lentamente, com um sorriso indefinível: 

― Lembras-te dos leões na estrada de Sicca?

― Eram nossos irmãos! ― respondeu o gaulês, expirando.

Flaubert, ao representar esta contradição, que é o Humano, cria um mural


que vai da beleza sublime ao grotesco; a marca mais evidente do artista
maior é conseguir retratar o feio ― principalmente o agressivamente feio
ou visceral ― de forma Bela. Bela e profunda.

IX – Dialética do Sol e Lua

Dito isso, há um simbolismo elementar que permeia “Salammbô”, assim


como a toda a humanidade, que são os opostos sol e lua, ou, para o
taoísmo, o ying-yang. Se há uma base de comparação universal, para todos
os homens de todos os povos e de todas as eras, são aquelas duas esferas
celestes diametralmente opostas: uma é dourada, a outra prateada, uma é
quente e seca, a outra é fria e úmida, uma representa ― para inúmeras
religiões ― o masculino e a outra o feminino. Este é um dos simbolismos
da religião cananéia que Flaubert mais explorou ao longo do romance. 

Já vimos que Salammbô é o avatar de Tânita na terra; em Mâtho vemos a


personificação de Moloch, o sol devorador. Mâtho é quem lidera a guerra
na esperança de um dia consumar seu amor por Salammbô. Diz ele: “ la
malédiction de Moloch pèse sur moi” [a maldição de Moloch pesa sobre
mim], ao final do primeiro capítulo, evidenciando tanto sua disposição
belicosa quanto a impossibilidade do amor que sente por Salammbô; sol e
lua, por mais que se encontrem num eclipse, nunca podem estar juntos. O
laço entre religião e erotismo é fundamental para o aspecto simbólico do
romance: o sol sendo estável, fonte de luz e calor, a lua, fria e sem luz
própria, mutável e fecundada pelo sol. Salmmbô tem o conflito entre
sacralidade e sacrilégio em si mesma, como exposto no diálogo entre ela e
o sumo sacerdote da sexualidade, Schahabarim, ao final do capítulo III,
quando ela lhe pede que mostrem-na o ídolo sagrado de Tânita, a
manifestação visual da baalet na terra:

― Oh, sacerdote ― exclamou Salammbô ― vou vê-la, não vou? Vais


levar-me lá! Há tanto tempo que hesitava; a curiosidade acerca da sua
forma devora-me. Piedade! Ajuda-me! Partamos!
Empurrou-a com um gesto veemente e cheio de orgulho.

― Nunca! Não sabes que se morre assim? Os Baals hermafroditas só


tiram seu véu para nós, homens pelo espírito e mulheres pela fraqueza. O
teu desejo é um sacrilégio; contenta-te com a ciência que tens!

Salammbô, pelo excesso de virtudes que lhe são atribuídas, se crê digna de
entrar no misterioso território reservado apenas aos eunucos. Schahabarim,
aliás, é a face sombria de Tânita, enquanto as virtudes da baalet se
manifestam através de Salammbô. Os defeitos associados à noite parecem
se manifestar mais fortemente no sacerdote: é ele quem maquina
ardilosamente a infiltração de Salammbô no acampamento de Mâtho, para
recuperar o manto sagrado de Tânita, evento que culminará em fatalidade
para ambas as personagens. O excesso é um dos temas flaubertianos por
natureza; ou melhor, a noção de que privação, ou inibição, cria excessos.
Vemos este questionamento de “Madame Bovary” a “A Lenda de São
Julião Hospitaleiro”, escrito cerca de quinze anos depois de “Salammbô”.
Salammbô é acometida por uma melancolia muito similar à de São Julião,
um desejo sacrílego que é o seu próprio destino, e que lhe será fatal, como
pudemos ver no diálogo com o sumo sacerdote. 

Esse aspecto simbólico da lua seria, para Paul Diel em “O Simbolismo na


Mitologia Grega”, a imaginação exaltada e repressora, noturna e malsã. “A
angústia é o desejo sob forma negativa”, diz Diel, “é um estado convulsivo
que se compõe de duas atitudes diametralmente opostas: a exaltação
desejante e a inibição temerosa”. Temos, igualmente ao simbolismo solar-
lunar, as atitudes diametralmente opostas de Mâtho e Salammbô, ambos
com suas exaltações e inibições. Mâtho, principalmente, como figura
exaltada pela paixão, Salammbô, inibida pelos deveres morais que pesam
sobre si.

Ela, personagem esférica e mutável feito a lua, Mâtho, constante e imutável


feito o sol, personagem plana. Vemos a transformação de Salammbô,
principalmente, após a cena na cabana do líbio, onde ela perde ― um tanto
coagida, um tanto langorosa ― a virgindade. Como descrito por Flaubert,
as correntes de ouro que levava nos tornozelos, símbolo de sua castidade,
arrebentam-se; a personagem está livre para um novo ciclo. Sente-se liberta
dos deveres, assume novas posturas após ter-se feito mulher por completo.
Porém, tão logo partidas as correntes, Salammbô é humilhada e
amaldiçoada pela figura fantasmagórica de Gíscon ― sufete centenário de
Cartago, sequestrado pelos mercenários ― que presenciara a cena. Uma
tripla humilhação: por ter se prostituído para resgatar o manto sagrado, por
ter cedido ao inimigo de Cartago e pela reprimenda do ancião. O ódio de
Salammbô por Mâtho aumenta, porém, qual sol e lua, um não pode viver
sem o outro.

É com efeito que, na última cena do romance ― a apoteose de Salammbô,


e quando ela reconhece o amor que sente por Mâtho ―, Schahabarim, com
uma faca cerimonial, remove o coração do líbio ainda pulsando; que, aos
últimos raios de sol, para de bater. Após isso, Salammbô “caiu com a
cabeça para trás, por cima do espaldar do trono, pálida, rígida, de lábios
entreabertos e cabelos soltos que tocavam no chão”. O sol morre, a lua
morre também. E, na última linha, qual em São Julião, Flaubert nos dá uma
nova perspectiva sobre o romance, como se tivéssemos acabado de ouvir
uma antiga lenda ― num tom similar ao da tale inglesa ― cuja unidade
está na personagem-título: assim morreu a filha de Amílcar por ter tocado
no manto de Tânita.

X – O Fascinante Mistério dos Eruditos Burros

Já ao final deste ensaio ― que está mais para uma apologia, aos moldes
socráticos ―, lembrei-me de consultar a enciclopédica “História da
Literatura Ocidental”, de Otto Maria Carpeaux. Encontrei algumas
observações que merecem ser discutidas, antes de dar fim a esta
investigação; além do mais, já adentramos profundamente no reino da
forma, de modo que podemos discutir o conteúdo material.

 Uma observação perspicaz de Carpeaux sobre Flaubert é a seguinte:

Flaubert tem a cabeça épica, sabe dar aos assuntos certa permanência
supra-histórica e supra-atual que Balzac, historiador de sua sociedade,
não possui. ‘Madame Bovary’ e ‘Un coeur simple’, mesmo localizados
exatamente em casas parisienses ou lugares da Normandia, passam-se em
todos os tempos e países da história e do mundo. A distância entre as
pessoas e fatos reais que forneceram o assunto ao romancista, e os
personagens e acontecimentos do plano novelístico é incomensurável. Essa
‘distância épica’ é resultado do estilo de Flaubert.

― História da Literatura Ocidental, Volume III, página 1780

Em outras palavras, o estilo de Flaubert, que, reitero, abarcava tanto a


beleza da frase quanto a maneira que o escritor percebia o mundo, é a
chave para atingir o universal que Aristóteles falava. Abordaremos a
“Poética”, de Aristóteles, em sua nona parte, para ver o que isso significa:

O universal é o que cabe a um certo tipo de pessoas dizer ou fazer em


detrimento das circunstâncias segundo o provável ou o necessário; esse é
o objetivo da poesia, ainda que atribuindo nomes aos indivíduos. O
particular, o que fez Alcibíades ou o que experimentou.

O procedimento de Flaubert, desenvolvido em “Madame Bovary”, será


utilizado em todos os outros seis livros, isto é: a observação do humano
através da imaginação, do tipos ― aquelas formas ideais, arquetípicas,
concebidas por Platão. Toda boa Literatura não deixa de ser um estudo de
personagem: o autor sai da observação do mundo, por vezes se inspirando
em casos particulares, para atingir o universal; recria o que aquele tipo de
personagem faria, portanto, expandindo o horizonte das possibilidades
humanas. O que Alcibíades fez não precisa ser verossímil nem universal,
pois está contido no mundo concreto dos fatos históricos e das ações reais.
A realidade não precisa ser verossímil; basta olharmos para o século XX e
constatarmos que mais da metade de seus acontecimentos não seria
verossímil para um homem de outras épocas, principalmente o genocídio
de milhões às escondidas, algo mórbido e monstruoso demais para ser
concebido pela maior parte dos espíritos humanos. 

Mas Literatura não pertence ao mundo dos fatos ou pessoas reais; saímos
do mundo histórico e vamos ao mundo imaginado: enquanto a vida não
possui explicação, ou por vezes careça de sentido, o que Bovary ou Homais
fazem é resultado de regras ficcionais manifestadas sutilmente através das
causalidades da trama, do arranjo de detalhes salientes e prováveis. Daí
vem o “realismo” ― termo execrado por ele ― de Flaubert. Caso tivesse
partido estritamente de um caso particular ou buscado um registro, a
exemplo de Balzac, terminaria, talvez, com um retrato histórico mais
datado; e, por consequência, as personagens não passariam de caricaturas.
É o que ele escreve em resposta ao Monsieur Cailleteaux, em junho de
1857:

Não, senhor, nenhum modelo posou para mim. ‘Madame Bovary’ é pura
invenção. Todos os personagens são completamente imaginados, e Yonvill-
l’Abayye é uma região que não existe, tal como Rieulle, etc. O que não
impede que aqui, na Normandia, queiram descobrir em meu romance uma
multidão de alusões. Se eu tivesse procedido assim, meus retratos seriam
menos parecidos, porque eu teria em vista as personalidades, e eu quis, ao
contrário, reproduzir tipos.

Este é um ponto ao qual é preciso retornar para que se possa esclarecer os


mesmos erros em que tanto o crítico francês, Sainte-Beuve, quanto
Carpeaux, quase um século depois, caíram. Diz o austríaco:

O elemento romântico no parnasianismo é justamente o “l’art pour l’art”,


que era o instrumento de trabalho de Flaubert. Mas como seria possível
esse romantismo estilístico sem cair de novo no romantismo sentimental?
Flaubert estava protegido contra esse perigo pela sua qualidade de
burguês. […]  Esta situação, de rentiers ou então de funcionários públicos
com vencimentos e futuro garantidos, é a condição econômica da arte
parnasiana e também da arte de Flaubert, modelando e remodelando os
seus romances durante cinco, sete e dez anos, sem necessidade urgente de
publicá-los. Daí o parnasianismo de Flaubert […].

Por ser deselegante xingar os mortos, e até por certo bom senso, é preciso
ignorar o crítico e explicar por que estas afirmações são falsas ― para não
dizer estúpidas. Em primeiro lugar, é estúpida a ideia “de arte pela arte”, e
mais estúpido ainda atribuir essas ideias a Flaubert; primeiro porque ele
nunca utilizou o termo “l’art pour l’art”, segundo porque o suposto “ideal
científico” flaubertiano, e isso se nota nas cartas, é um símile, uma mera
comparação, uma figura de linguagem, como, por exemplo, ele diz a
Louise Colet, em 12 de outubro de 1853:

É preciso fazer crítica como se faz história natural, com ausência de ideia
moral. Não se trata de declamar sobre esta ou aquela forma, mas sim de
expor em que ela consiste, como ela se liga a uma outra e por que ela vive.
[…] Quando se tratar, durante algum tempo, a alma humana com a
imparcialidade que se põe nas ciências físicas para estudar a matéria,
será dado um passo imenso. É o único meio para a humanidade se colocar
um pouco acima de si própria. Ela se verá então francamente, puramente,
no espelho de suas obras.

Portanto: tratar de arte como se faz ciência, de modo similar, com


procedimentos claros e objetivos, mas não literalmente científicos. Ao se
falar em arte, falamos primeiramente em criação. Flaubert encontrou o
problema da pessoalidade do artista, da falta de parâmetros, de regras,
de método para se fazer arte em prosa de ficção; esta ainda não havia
encontrado seu Homero. Para ser um verdadeiro artista, portanto, é preciso
medida e rigor no método, sem ignorar nem o gênio individual, nem a
impessoalidade da obra ― isto é, saber que a obra não é um reflexo direto
do autor, como querem os metidos a psicólogos, ou não deveria ser. O
artista tem direito à liberdade obscura e criativa, de um lado, mas o dever
do domínio de regras profundas e complexas, de outro. Ora, ninguém em sã
consciência ― antes da duchampização da arte no século XX ― pensaria
que Bach, Mozart ou Beethoven tiveram a liberdade criativa tolhida pelas
regras de composição musical. A Teoria da Música é a mesma no ocidente
desde, mais ou menos, 1453: não surgiu nada novo desde a queda de
Constantinopla. O que surgiu foram novos usos das técnicas e recursos já
conhecidos. Uma semínima, um semitom, uma oitava, serão os sempre
mesmos, seja no barroco ou no jazz. A teoria da criação não muda. E por
que a mania de atribuir cientificismo apenas à Literatura? Fazem os
músicos “música pela música”, ignorando sentimentos, motivos, temas e
inquietações humanas? Não é a apreciação estética o suficiente? Atribuir a
Flaubert o ideal positivista dos parnasianos chega a ser injusto. L’art pour
l’art… O homem mesmo disse que não adota “todas estas distinções entre
coração, espírito, forma, conteúdo, alma ou corpo; tudo está ligado ao
homem”. O problema da Literatura é que, ao contrário de sua irmã, a
Música, ela é muda. Muda aos que não sabem interpretá-la: não se é
possível notar uma frase mal escrita, um erro de ponto de vista, um
cacófato, com a mesma facilidade que notamos um erro no dedilhado ao
piano, numa corda desafinada do violino, na falta de fôlego do flautista.
Aliás, comumente esses erros na técnica do romance são diminuídos a
mero detalhe, ao passo que, na música, rapidamente descartaríamos um
instrumentista incompetente, que não sabe as técnicas do ofício.

Em segundo lugar, é uma injustiça falar de Faubert como se ele esbanjasse


dinheiro por aí, com a tal “condição de burguês”. Além de não ser da conta
de ninguém, parece que não houve bons escritores que trabalhavam para se
manter, como no caso de Tchekhov, que era médico, ou de Faulkner, que
até vigia noturno foi. Exemplos não faltam, agora, que culpa têm os bons
artistas se os maus artistas, pobrezinhos, não podem fazer o sacrifício de
parar de torrar o ordenado inteiro na roleta e na garrafa de vodca? A vida
de Flaubert era regrada, sem muitos luxos ou vícios, como ele mesmo disse
ao escritor Ernest Feydeau, em maio de 1859:

“Você é feliz por poder trabalhar sem pressa, graças a suas rendas”. Os
confrades me jogam na cara, continuamente, os três vinténs de renda que
me impedem precisamente de morrer de fome. Isto é mais fácil do que me
imitar. Entendo por viver como eu o seguinte: 1º) morar no campo durante
três quartos do ano; 2º) sem mulher (ponto bastante delicado, mas
considerável), sem amigo, sem cavalo, sem cachorro, em suma, sem
nenhum dos atributos da vida humana; 3º) e olhar como nada tudo o que
está fora da obra por si mesma. O sucesso, o tempo, o dinheiro, e a
publicação estão relegados no fundo de meu pensamento a horizontes
muito vagos e perfeitamente indiferentes. Tudo isso me parece estúpido e
indigno (repito a palavra indigno) de emocionar o cérebro.

Este é um ponto que precisava ser defendido, pois já ouvi, em pleno século
XXI, as mesmas reclamações ordinárias de outros colegas escritores. Que
morras na miséria, alma mesquinha, que tua tinta se apague e tua obra seja
consumida pelas traças! Esta deveria ser a praga rogada contra aqueles que
querem viver de arte, mas não para a arte. Continuando o que dizia
Carpeaux:
Daí o parnasianismo de Flaubert […]; na poesia arqueológica de
Salammbô, Flaubert realizou o seu ideal de romance cientificamente
documentado, realizando o ideal de “poesia científica” do parnasianismo,
mas experimentando também a desgraça da doutrina: Salammbô é um
romance arqueológico sem sentido histórico, um romance sem sentido
humano. “C’etait à Megara…”, eis a frase magnificamente musical com
que a obra começa; mas que nos importa o que aconteceu em Megara? E
quem sabe se aconteceu realmente assim em Megara? O problema do
romance histórico, colocado nos devidos termos, pela primeira vez, por
Manzoni, foi resolvido por Flaubert, e em sentido negativo. A tentativa da
reconstituição do passado, em Salammbô, foi desmentida pela
impossibilidade de verificar exatamente o que “aconteceu em Megara.

O leitor que teve a disposição de ler este ensaio em sua totalidade, desde o
início, já deve ter notado que Carpeaux não leu “Salammbô” para além da
frase inicial, “C’etait à Megara”, pois, se o tivesse, saberia exatamente que
“o que aconteceu em Megara” ― não na Megara real, histórica, mas na
Megara imaginada ― é o que nos importa. Como assim, não há nada de
humano em “Salammbô”? Após todo o mural construído pelo artista, ainda
precisamos ouvir asneiras da crítica, desde 1863, diga-se de passagem.
Quem disse que a intenção de Flaubert era escrever um “romance
arqueológico”? 

É preciso ser dito que “História da Literatura Ocidental” é, no mais das


vezes, uma história dos lugares-comuns da crítica literária, que sempre
paira pela superfície, sem nunca mergulhar nas profundezas das obras.
Como diria Nabokov, Salammbô é o tipo de livro que não foi escrito “para
quem lê mexendo os lábios”. Carpeaux tinha conhecimento enciclopédico,
e, por isso, a profundidade das enciclopédias. Tanto “História da Literatura
Ocidental”, quanto “Uma Nova História da Música”, nos impressionam
pela erudição, mas pecam no que realmente importa: a análise mais
profunda, a história da verdadeira arte, da técnica. História na qual
mergulhamos neste ensaio. 

Aliás, devo dizer, antes que acusem-me de ódio a Carpeaux: ele era ótimo
ensaísta ― e, nisto, muito melhor do que como apenas crítico ― divagando
com profundidade nos temas levantados pela ficção; e o faz bela e
maravilhosamente nos “Ensaios Reunidos”, numa abordagem distante feito
um cometa. Esta, sim, uma leitura proveitosa para o artista em formação,
porém com mais experiência. O que proponho aqui é que esqueçamos um
pouco os astros e pisemos os pés na lama, na argila com a qual a arte é
feita. Em suma, “História da Literatura Universal” é uma obra ― quando
não meramente informativa, de consulta ― para curiosos. 
Agora, resta-nos filosofar sobre a existência das águias.

XI – Águias Existem

Quando falamos do subgênero Romance Histórico, a acuidade é um ponto


sempre levado em conta. Escrever “Salammbô” foi uma tarefa colossal, um
exercício imaginativo que se apoiou em longas pesquisas, como Flaubert
relata, em julho de 1857, ao amigo Jules Duplan:

Você sabe quantos, até agora, com quantos volumes sobre Cartago eu me
entupi? Cerca de 100! E acabo, em quinze dias, de engolir os 18 tomos
da Bíblia de Cahen*! Com notas e tomando notas!

[* Bíblia traduzida pelo hebraísta Samuel Cahen no século XIX.]

Tanta pesquisa material, nas mãos dum artista, só poderia resultar numa
riqueza tremenda de detalhes. Não se engane, não há exposição neles. O
verdadeiro escritor precisa estar imerso em temas, precisa de conteúdo
material para dar forma, do mesmo modo que o escultor precisa do
mármore para esculpir suas obras. Na carta de agosto de 1857 a Ernest
Feydeau, diz Flaubert: 

Há seis semanas, recuo como um covarde diante de Cartago*. Acumulo


notas em cima de notas, livros atrás de livros, pois não me sinto à vontade.
Não vejo com nitidez meu objetivo. Para que meu livro tenha suor de
verdade, é preciso que esteja impregnado com seu tema até o pescoço. Só
assim a cor vem naturalmente, como um resultado fatal e com uma
floração da ideia.

[*Título provisório de “Salammbô”]

Mais uma vez as fronteiras entre forma e conteúdo mostram-se inexistentes


para a Arte. Flaubert consegue, em seu romance, criar uma cosmovisão
única que poderia ter sido a de todos os povos pagãos de antes da Era
Cristã, como já foi mostrado. Se não foi capaz de pintar um retrato
historicamente preciso, deu-nos um painel verossímil. Aliás, como ele bem
disse, “Salammbô” irritará os arqueólogos. A esse respeito, o romance foi
amplamente criticado, desde a estréia, por supostamente não ser “preciso
arqueologicamente” ― Carpeaux estava apenas repetindo chavão. Mas ora,
o autor se aproveitou da falta de informações históricas para recriar uma
Cartago inteiramente nova a partir do sal e das cinzas. Creio que todas as
personagens principais ― à exceção de Salammbô, puramente imaginada
― são baseadas em figuras históricas. A mesquinhez crítica acusa de
futilidade romances “factualmente impossíveis” para a realidade histórica.
Pois bem, esqueçamos o adjetivo histórico, adotemos o epíteto: inspirado
em história, e nos livremos das confusões causadas pelo gênero da burrice
humana.  Esses críticos parecem não ter lido Aristóteles, então
retornaremos a Poética, no trecho que antecede o que analisamos
anteriormente, onde é dito claramente que ao artista (poeta) não cabe
compromisso à realidade histórica, mas ao universo ficcional:

Não é função do poeta realizar um relato exato dos eventos, mas sim
daquilo que poderia acontecer e que é possível dentro da probabilidade ou
necessidade. O historiador e o poeta não se diferenciam pelo fato de um
usar prosa e o outro, versos. […] A diferença está no fato de o primeiro
relatar o que aconteceu realmente, enquanto o segundo, o que poderia ter
acontecido. Consequentemente, a poesia é mais filosófica e mais séria do
que a história, pois a poesia se ocupa mais do universal, ao passo que a
história se restringe ao particular.

Mais de doi mil anos depois, ainda tentam atribuir funções de historiador
ao artista. Mesmo sem compromisso histórico, Flaubert se comprometeu
em dar detalhes precisos o suficiente para serem verossímeis ― a ponto de
fazer uma viagem de três meses ao norte da África, em 1858, para ver as
ruínas de Cartago. Em dezembro de 1862 responde uma longa carta ao
crítico Sainte-Beuve, que, tão descontente que estava, escreveu três artigos
seguintes condenando “Salammbô”, principalmente pela questão
arqueológica. Flaubertus dixit:

O senhor talvez tenha razão em suas considerações sobre o romance


histórico aplicado à antiguidade, e pode ser muito bem que eu tenha
fracassado. No entanto, segundo o que é verossímil e segundo minhas
impressões, creio ter feito algo que se parece a Cartago. Mas a questão
não é essa. Eu zombo da arqueologia! Se a cor não existe, se os detalhes
destoam, se os costumes não derivam da religião e os fatos das paixões, se
os caracteres não são seguidos, se os costumes não são apropriados aos
usos e a arquitetura ao clima, se não há, numa palavra, harmonia, eu
estou em erro. Senão, não. Tudo se mantém.

O crítico reclamou que Flaubert supostamente dera uma infância fabulosa


demais a Aníbal Barca, inverossímil, ao mostrá-lo matando uma águia. A
resposta de Flaubert foi simples: “Se a cena se passasse na Gália, teria
colocado uma coruja, um lobo ou uma raposa […] No entanto, as águias
existem ”. 

Mais uma vez, cabe a nós apreciar e avaliar a pintura ― sendo


ela verossímil ―, não o objeto retratado. E tudo, absolutamente tudo, em
“Salammbô”, como espero ter provado, tem uma razão de ser.
XII – Arte e Imaginação: o Elefante em Chamas

A questão histórica da ficção histórica nos levanta outra, a qual já tocamos


na superfície: o quão real é a Literatura? Com frequência, sendo escritor,
também recebo a pergunta: esta história é verdadeira? Naturalmente, não
fui o primeiro a recebê-la ― nem serei o último ―, mas estes dois pontos
devem ser analisados com cuidado.  

Para ser simplista: é tudo mentira, porém, ao mesmo tempo, tudo é


verdadeiro. 

Alguns tentam diferenciar a vivência pessoal do escritor e sua arte. E por


acaso há diferença? O que nós, artistas, imaginamos,
também vivenciamos segundo o provável. Não é à toa que muitos duvidem
da existência de Shakespeare e Homero, pois simplesmente não concebem
o gênio humano por trás de obras tão vastas. Não, Shakespeare não
conheceu tantos déspotas quanto os imaginou ― se os tivesse conhecido,
coitado… ― nem Homero deve ter visto tantas batalhas quanto as
descreveu, até porque era cego. A imaginação, como lembra Northrop
Frye, em “A Imaginação Educada”, é o nosso “poder de construir modelos
possíveis da experiência humana”, mesmo que as experiências não tenham
ocorrido no mundo dos fatos e ações. Ainda bem, pois, sem a imaginação,
Flaubert jamais teria escrito uma das cenas mais belas já escritas:

A noite caiu. Os cartagineses, os bárbaros tinham desaparecido. Os


elefantes, que tinham fugido, erravam na linha do horizonte com as torres
incendiadas. Ardiam nas trevas, aqui e ali, como faróis meio perdidos na
bruma; e não se via outro movimento na planície além da ondulação do
rio, cujas águas tinham subido com os cadáveres que arrastava para o
mar.

Deixemos a verdade das mentiras de lado: por enquanto, quero falar sobre
elefantes. Desde o início de “Salammbô”, fiquei fascinado com os cenários,
os baals de trinta metros, os templos com telhado de ouro, os diamantes do
tamanho de laranjas. Belíssimo. Mas cadê os elefantes? Aníbal Barca foi
conhecido por marchar sobre Roma com 50 deles, imagine uma guerra em
Cartago. A primeira aparição dos paquidermes de guerra é absolutamente
fantástica: 

De repente, a terra estremeceu, e os bárbaros viram correr, numa única


linha, todos os elefantes de Cartago com as defesas douradas, as orelhas
pendentes azuis, revestidos de bronze, e sacudindo por baixo dos
caparazões de escarlate torres de couro, onde os arqueiros, três em cada
uma, mantinham um grande arco aberto. Os soldados quase não tinham
armas; tinham-se colocado ao acaso. Um terror gelou-os; ficaram
indecisos.

Este momento acontece após umas boas cem páginas de leitura, sempre
num crescendo: Flaubert mostra o fosso dos elefantes, menciona que os
sufetes de Cartago os armam, mostra um ou outro animal isoladamente. Até
a primeira batalha campal. E, se a maioria dos escritores corre ante o
trabalho de simplesmente imaginar cenas de guerra, Flaubert as encara de
pena em punho, com vontade de ferro, e escreve-as magistralmente.
Perdoe, leitor, se soo demasiadamente empolgado: é porque este romance
me empolga, e espero que também empolgue aqueles que o lerem depois
deste ensaio. Talvez o fim da Literatura seja algo ligeiramente menos nobre
do que os filósofos pensam: não para educar, não para registrar as
experiências humanas possíveis, muito menos para servir de propaganda
ideológica; serve tão somente para o prazer. Prazer estético, uma satisfação
emocional e intelectual. Se outras coisas acontecem ao lermos boa ficção,
são secundárias. 

Repito: prazer estético, emoção na alma, não mero entretenimento. A


Literatura deve ser uma satisfação tanto para o leitor quanto para o escritor,
mas não se engane: nosso trabalho não é diversão; o que temos, ao final de
um conto ou romance, em caso de êxito, é um sentimento trabalho bem-
feito, quase um alívio. A Arte é o derradeiro deleite do espírito, um
regozijo da alma; um êxtase religioso. 

Demorei quase três meses para terminar a leitura de “Salammbô”, que me


atingiu feito um trébuchet. Não se engane, esta comparação não foi
aleatória, é que me lembrei de outra cena, durante o cerco a Cartago: 

As três catapultas grandes não paravam. Os seus estragos eram


extraordinários; a cabeça de um homem foi cair no frontão dos sissitas; na
Rua de Kinisdo uma mulher que acabava de dar a luz a uma criança foi
esmagada por um bloco de mármore e o filho com a cama foram cair no
cruzamento de Cinasyn, onde foi encontrada a coberta.

Este é o horror da guerra. Em “Salammbô”, tudo é muito difícil, muito


grandioso e terrível, cada página vale por dez, de modo que eu precisava
tomar fôlego para começar outro capítulo após o término do anterior. Sou
péssimo na leitura de poesia, demoro muito para terminar um livro de
poemas: se leio um bom Drummond, João Cabral, Bandeira, Eliot,
Baudelaire, fico num estado de suspensão estética, não faço mais nada pelo
resto do dia, abalado pela Beleza. Recito-o, lendo e relendo, gravando-o em
meu sangue, como se fosse ― e, após a leitura, finalmente é ― parte de
mim. As descrições de Flaubert são poesia: vê-se o tempo escorrer por
entre os parágrafos, os meses de cerco, os três anos de guerra, tudo é
sentido pelo leitor de tal forma que, ao final da experiência, ele estará
esgotado. É preciso ler os cenários, as cenas, relê-los, sem pressa,
deleitando-se na Beleza. Este livro me fez pensar seriamente na
necessidade de épicos do tamanho de “Guerra e Paz”, com todo respeito
aos méritos de Tolstói. Em cinco anos, Flaubert compôs mais uma obra
prima tão bela que dói na alma; dói profunda e lentamente, sem uma
quantidade absurda de páginas.

Com isso, voltamos ao ponto da verdade das mentiras. Toda Arte é


verdadeira na medida em que é bela. Bela, mas de um Belo que é resultante
de sua própria concepção, uma Beleza que se sustenta por si e ofusca todo
o resto; o que termina sendo, usando as palavras de Platão, um esplendor
do Verdadeiro. Ao contemplarmos Aquiles, não pensamos: é impossível
um homem fazer estes feitos; mas sim: como é triste o crepúsculo deste
grande homem, e imaginamos que poderia ter sido conosco, ou com um
irmão. Ao contrário da vida, a Arte possui sentido lógico; todas as ações
convergem para um fim. A tragédia de Aquiles ou de  Mâtho, Helena ou
Salammbô, são todas nossa própria tragédia. Porém, o sofrimento não é
vazio, como pode, por vezes, parecer na vida: a forma transcende-o no
Belo; e é no Belo, no verdadeiramente Belo, que a alma humana acha
consolação. Consolação diante daqueles dois antigos sentimentos: terror e
compaixão. 

Isso me lembra que, certa vez, um escritor medíocre, cujo nome não quero
lembrar-me, disse que Flaubert era um ótimo estilista, porém não
compreendia o humano. Nos resta a lição: o homem moderno nada entende
de estilo, e menos ainda sobre o próprio homem.

A CAUSA SECRETA DE MACHADO


Por Paulo Cantarelli / 4 de maio de 2020
Trata-se de tornar a alma monstruosa.

 ― Rimbaud, em carta a Paul Demeny, 15 de maio de 1871


“É o segredo deste homem”, pensa o médico, Garcia, ao vislumbrar o
mistério ― “A Causa Secreta”, feito o próprio título nos diz ― que
movimenta o derradeiro protagonista do conto, Fortunato. Toda boa ficção
faz isto: nos instiga a nos questionarmos o porquê, as causas e anseios
psicológicos por trás das ações das personagens. É por este motivo que,
nesta história curta, de aproximadamente oito páginas, Machado de Assis
se consagra numa das maiores narrativas em língua portuguesa.
No Brasil, infelizmente, o conto é um gênero demasiadamente
subestimado; e afirmar que Machado revela seu gênio mais nos contos que
nos romances seria, para muitos, um insulto. Não sejamos injustos: “Dom
Casmurro” é outra grande manifestação de engenho e força do artista.
Porém, de fato, creio que seja no conto que um escritor precisa provar a
magnitude de sua força: é necessário sintetizar toda uma explosão
dramática em poucas páginas. Diria Cortázar que o conto é uma luta na
qual se vence por nocaute, enquanto, no romance, se vence por pontos. Se
num romance o escritor pode se dar ao luxo de gastar algumas páginas com
longos cenários ou monólogos que dão tom à narrativa, ou tecendo toda
uma extensa e detalhada trama de ações cheias de potências e causalidades,
no conto isto deve se dar em poucas páginas, ou mesmo parágrafos. É
preciso intensificar os efeitos da Técnica.

Logo nas primeiras linhas, Machado nos apresenta um quadro em


movimento:

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de


balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um
trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada.
O uso do pretérito imperfeito, mais uma vez, causa a sensação de uma ação
infinita, capturada e cristalizada em algum lugar no tempo, o tempo mítico
da memória, sem início ou término definidos. Machado inicia a narrativa
no meio da ação ― ou, para utilizar o termo amplamente difundido e
largamente incompreendido, in media res, “no meio das coisas” ― e os
fatos que serão apresentados já correm soltos; somos imediatamente
fisgados pela intriga da situação, feito borboletas que cedem ao olor de
certas plantas untuosas e carnívoras, apenas para serem capturadas em suas
presas. Uma das características principais do bom ficcionista é a sedução.
Machado continua a narrativa com um discurso indireto, resumindo o que
fora falado pelas personagens até então:

Tinham falado do dia, que estivera excelente, – de Catumbi, onde morava


o casal Fortunato, e de uma casa de saúde […].
Movimento extremamente leve sutil, que, infelizmente, é quebrado pelo
comentário que se segue, de um narrador intruso e onisciente:

[…] de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três


personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de
contar a história sem rebuço.
É preciso pontuar que, na época de Machado ― e incrivelmente até hoje ―
havia uma grande confusão sobre o que era Literatura e quais suas funções;
basta lembrar do rebuliço que a estreia de “Les Liaisons Dangereuses”, de
Choderlos de Laclos, causou na França, em 1782 . E creio que, queira por
serem publicados em jornais, queira para fugir da censura, vários escritores
lembravam aos leitores que aquela história era ficcional, feito um diretor de
teatro que se apresenta ao público, quebrando o sonho vívido e contínuo
criado pela peça:

― Senhoras, senhores, desculpem-me a intromissão: o autor pediu para


avisar que as lágrimas derramadas são falsas, o drama é inventado; não se
impressionem com nossas dores e martírios, o sangue derramado: não
somos de carne e osso.

Com relação a esse aspecto, a ousadia, talvez Machado estivesse um passo


atrás de autores europeus feito Flaubert ou Tchekhov, mas não muito
distante. Em “A Causa Secreta”, este é apenas um detalhe, uma mera
sujeira numa lente cristalina, fácil de se ignorar. Cabe a nós, modernos,
beneficiados pela distância e pelo tempo, não incorrermos nos mesmos
erros, por menores que sejam. 

Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e
grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da
casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora
mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há
no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é
habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-
lo entender é preciso remontar à origem da situação.
A partir deste ponto, há poucos comentários do onisciente linguarudo, a
narrativa sendo contada, em sua maior parte, pela perspectiva de Garcia. A
única dos três protagonistas cujo ponto de vista não será abordado é Maria
Luísa. Teremos um vislumbre do olhar de Fortunato apenas nos últimos
parágrafos. Machado, creio que por insegurança, preferiu atenuar a elipse
que se segue, para que o leitor comum pudesse compreender melhor a
analepse narrativa ― vulgo flashback ― que ocorrerá. O comentário em
negrito, acima, não faz falta, de modo que teríamos:

Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo


que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é
habitual. […] 

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861.


Seja pela insegurança, ou até mesmo para criar mistérios, esse tipo de
comentário soa antipático à maioria dos leitores com bom gosto. Porém, o
que se destaca aqui é a habilidade de manipulação temporal do Bruxo do
Cosme Velho. Iniciamos o conto com o pretérito imperfeito, logo em
seguida, Machado nos traz para o presente do indicativo, com muita
habilidade, através de uma frase de passagem:

Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo


que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é
habitual.
Agora mesmo, neste instante. Esta breve frase permite ao artista a quebra
dos pretéritos, tempo escolhido para a narrativa. Em outras circunstâncias,
mais abruptas, seria um erro estilístico. Deste modo, não: a pintura ganha
vida, vemos a agitação enquanto ela acontece, para, em seguida, sermos
levados à origem dos fatos; uma montagem de gênio. A estrutura narrativa
de “A Causa Secreta” é circular, somente ao final retornaremos à cena de
abertura. No terceiro parágrafo, temos uma bela cena indireta, a exemplo
do que ocorre em “A Missa do Galo”.

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860,


estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez,
à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a
figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo
encontro, poucos dias depois. 
Dos anos na escola de medicina, nada nos interessa, exceto o primeiro
encontro com Fortunato. Assim, Machado mata os tempos mortos ―
trechos de narrativa em que nada realmente ocorre, e que servem para ligar
um ponto mais importante do enredo a outro ― com perfeição. Não somos
entediados com detalhes irrelevantes, tampouco temos informações frívolas
ou explicações que quebrem a imersão.

Uma de suas raras distrações [de Garcia] era ir ao teatro de S. Januário,


que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e
nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam
estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas
cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
Aqui temos uma breve antecipação, um detalhe que irá se somar a outros
mais adiante, por meio de um comentário sob perspectiva próxima de
Garcia: 

Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da


cidade.
Isso pode passar despercebido pela maioria dos leitores, porém, garanto, é
um grande fator para o sentimento final do conto: vemos o conjunto de
potências serem plantados e se desenvolverem perfeitamente. Por esse
comentário, o narrador nos sugere o caráter de Fortunato, entre os mais
intrépidos.

A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e


remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances
dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um
personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça
reminiscências pessoais do vizinho.
 Pouco em pouco os detalhes se revelam, porém, nós, do mesmo modo que
Garcia, não sabemos como interpretar aquelas ações. Furtunato é
facilmente confundido com um romântico, amante dos melodramas; porém,
desde o início, sentimos estranheza perante tamanha atenção
nesse dramalhão cosido a facadas.

No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e
saiu; Garcia saiu atrás dele.
Ainda mais intrigante: a tragédia se revela uma comédia, através duma
farsa, e Fortunato perde o interesse. Garcia segue-o, evidentemente
perplexo com a figura que fez-lhe impressão. Começamos a nos questionar
vagamente sobre quem é aquele homem e por que ele age daquela maneira,
a tal causa secreta.

Fortunato vai embora, Garcia no encalço, e Machado nos mostra outro


desses detalhes aparentemente insignificantes:

Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em


algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. 
A composição psicológica da personagem vai nos sendo apresentada
gradualmente: um gesto, um olhar, uma frase. Fortunato parava e atiçava
cães dormentes, feito uma criança travessa; ou assim nos parece. Contudo,
os cães ganiam de dor, revelando, ainda que discretamente, um traço mais
sombrio e profundo de personalidade.

Garcia segue com a vida, passam-se algumas semanas e ele encontra


novamente Fortunato por uma fatalidade: Gouveia, um vizinho, fora
esfaqueado na rua. Esta terceira aparição de Fortunato requer atenção:

Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um


médico.

― Já aí vem um, acudiu alguém.

Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. 


Temos um uso sofisticado do discurso indireto ― “disse que” ―
interagindo com com um discurso direto, a fala do “alguém”. Em vez de
criar um mistério barato na marcação de diálogo, como seria de se esperar
― ex: Já aí vem um, acudiu uma voz misteriosa ―, Machado finge não dar
atenção a esta fala, apenas para nos surpreender na próxima linha, através
do olhar de Garcia. “Garcia Olhou: era o próprio homem da Santa Casa e
do teatro”. Simples, feito na vida, quando se encontra um conhecido onde
menos se espera.

Seguimos ainda na perspectiva de Garcia, que se impressiona ainda mais


com os atos do então desconhecido. Vejamos a sequência das ações
dramáticas, retirados os perfis e monólogos: 

A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante,


Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem
perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia
muito. […] Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se
tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das
calças, e fitar os olhos no ferido. […] De quando em quando, voltava-se
para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas
tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. 
Temos também um perfil físico psicológico, omitido no último excerto: 

Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a


expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de
barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara.
O olhar de Garcia denuncia a subjetividade daquele rosto, em “a expressão
dura, seca e fria”. A priori, trataria-se de uma impressão particular, uma
intromissão do narrador, mas não é. Não saberíamos o que seria esta
expressão dura e seca, não fossem os outros detalhes objetivos: olhos cor
de chumbo, movendo-se devagar, a cara magra e pálida, etc. Machado paga
o preço da subjetividade e ainda emprega-lhe bom uso, através do olhar da
personagem. A seguir, também é Garcia quem reflete:

A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de


curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara
dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que
aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
Aliás, o trecho em negrito pode ser tanto um discurso indireto livre,
“[eu] não podia negar”, quanto uma falsa terceira pessoa, “[ele] não podia
negar”; o sujeito oculto permite ambos. Devido à técnica machadiana, na
qual encontramos pouco o discurso indireto livre deliberado ― além de
esta ser ainda pouco difundida, na época ―, acredito que ele
conscientemente tenha utilizado a segunda opção, muito embora o conto
termine com um perfeito indireto livre, como veremos. Podemos trocar “o
estudante”, por “eu”, sem perda de sentido, o que qualifica perfeitamente a
falsa terceira pessoa. Porém, sendo ou não a intenção inicial de Machado,
após o ponto-vírgula, não é errado dizer que temos um indireto livre.

Temos outro jogo de cenas indiretas ― chamadas, também, em inglês,


de narrative summary, ou resumo de narrativa ― em que os episódios de
alguns dias passam-se em poucas linhas; ao contrário da cena anterior, que
se alonga por parágrafos para mostrar as ações com mais importância
psicológica. 

Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a
cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao
obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do
nome, rua e número.

― Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o
convalescente.
Agora, uma mudança ― das poucas que há no conto ― de ponto de vista.
Veremos um jogo único de perspectivas: a narrativa é dada a Gouveia, o
convalescente, que relata o caso a Garcia e este, por fim, fará um breve
monólogo sobre a situação.

Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido,


ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta
enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho.
Gouveia, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos,
levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que
dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.

― Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.


Ora, se o narrador onisciente se ausenta do texto, embora isso não seja
evidente a olhos menos treinados, quem está guiando a narrativa? Das duas
uma: ou Gouveia, ou Fortunato. Impossível ser Fortunato, pois, mais
adiante, em outra cena, o narrador nos relata: 

No fim contou ele próprio [Fortunato] a visita que o ferido lhe fez, com
todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos
silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la.
Por eliminação, o ponto de vista só pode ser de Gouveia, que contou a
história a Garcia; o narrador não poderia tê-la relatado à personagem. E é
de Garcia o breve falso monólogo interior que se segue, e cujo ponto de
vista é esclarecido apenas no parágrafo posterior:

O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o


desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no
coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O
ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de
tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-
se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou
a este homem o sentimento da ingratidão.

Tudo isso assombrou o Garcia.


Portanto, é Garcia quem pensa. Coisa de gênio, o que mais pode-se dizer?
O restante do parágrafo continua na falsa terceira pessoa de Garcia, “este
moço possuía, em gérmen, etc.”.

O mistério de Fortunato foi enraizado e, agora, Machado semeará a causa


secreta de Garcia. Este é convidado por Fortunato para um jantar. Só então
Maria Luísa, esquecida naqueles primeiros parágrafos, volta à narrativa: 

Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e


boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante.
O interesse de Garcia por Maria Luísa crescerá e se tornará um amor
platônico despercebido aos olhos de Fortunato, que o descobrirá apenas nas
últimas linhas do conto.

Neste mesmo parágrafo, há um belo contraponto:

A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho,


duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os
obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma
compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os
feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos;
tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. 
É preciso dizer que Machado foi extremamente sutil neste contraste: não
temos um narrador apontando as diferenças entre marido e esposa, apenas
sentimos o choque de comportamentos. Em outro conto, “O Machete”, o
próprio Machado de Assis  se atrapalha ao tentar obter o mesmo efeito,
comparando dois cônjuges:

Era uma mocinha de dezessete anos, parecendo dezenove, mais baixa que
alta, rosto amorenado, olhos negros e travessos. Aqueles olhos, expressão
fiel da alma de Carlota, contrastavam com o olhar brando e velado do
marido. Os movimentos da moça eram vivos e rápidos, a voz argentina, a
palavra fácil e correntia, toda ela uma índole, mundana e jovial.
Subjetivo demais: olhos negros e travessos, expressão fiel da alma, etc. No
contexto do conto ― diferentemente do que analisamos aqui ―, não vemos
o que isso quer dizer, não sentimos. A comparação é válida para notarmos
como a escrita de Machado evoluiu em alguns anos, de 1878, data de
publicação de “O Machete”, a 1885, quando  foi publicado “A Causa
Secreta”. A discrepância se torna mais evidente quando o narrador
descaradamente força o contraste, explicitando-o. Em “A Causa Secreta”,
com o autor mais maduro, esse contraste se revela nas ações. Aqui também
teremos um comentário, mas, desta, pelo viés de Garcia, sobre a diferença
moral entre marido e mulher. É ele quem pensa, não o narrador:

Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma
dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte
da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e
confinavam na resignação e no temor.
Logo após, Garcia relata como conheceu Fortunato, e este conta-lhe a
história que já foi relatada por Gouveia. Surge um excelente uso de vozes
internas da narrativa, um discurso direto no corpo do texto, com uma breve
instância de enunciação na voz do narrador ― “concluiu ele” ― que,
estivesse ausente, poderia ter se caracterizado como discurso indireto livre.

Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico


restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e
as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu
ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.

― Valeu? perguntou Fortunato.

― Valeu o quê?

― Vamos fundar uma casa de saúde?


Essa passagem da voz do narrador, ligeiramente, para a voz da personagem
cria grande rapidez no texto, e liga-o ao diálogo externo ― marcado pelos
travessões, fora do parágrafo ― de modo exemplar. Não sentimos
emendas, costuras, a narrativa segue fluida e ininterrupta. Fortunato se
mostra interessado na hipótese lançada por Garcia, e passa a insistir nela
com interesse singular. Abrem uma casa de saúde, Fortunato era, ele
mesmo:

o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava


tudo, compras e caldos, drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel
não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem.
Começamos a crer, do mesmo modo que Garcia, na natureza caridosa,
embora estranha, de Fortunato. Uma figura exótica, pensamos. Mais uma
vez, as ações ocorrem de modo sutil:

Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não
conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo,
a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia.
Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava
os cáusticos.

― Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.


Fortunato curava os cáusticos, ou seja, era ele quem administrava as
cauterizações nos enfermos, coisa que, subentendemos, não deixava
nenhum outro fazer. Aparentemente, uma alma solícita, que não confia a
outros cuidados tão delicados. 

Garcia fica mais íntimo do colega:

A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-


se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa
e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como
que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o
agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada,
ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e
manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo
para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade;
mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas
as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
A causa secreta de Garcia é exposta: apaixonou-se pela esposa do amigo. O
dilema moral é óbvio: ceder às tentações, ou não consentir, mantendo o
sentimento puro, e até esquecê-lo? Esta história, como poderia parecer
inicialmente, não será mais uma de adultério. Enquanto isso, Fortunato
afunda-se mais nos estudos:

Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas


horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos
animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a
mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. 
O caráter doentio da personagem começa a se evidenciar. As bengaladas
nos cães evoluíram para experimentos e vivisecções. Maria Luísa começa a
apresentar sinais de tuberculose, criando, assim, a última causalidade
montada para o término do conto:

Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma


coisa, ela respondeu que nada.

― Deixe ver o pulso.

― Não tenho nada.

Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao


contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e
avisar o marido em tempo.
Um evento ligeiro, quase irrelevante para o leitor desavisado ― e Machado
faz-nos esquecer dele, bom bruxo que é ―, mas que se somará a outros na
sensação de um final lógico e verossímil; a única solução possível para o
término do conto.

Em seguida, voltamos ao dia em que a história se iniciou. Somos


lembrados disso pelo comentário desnecessário do narrador alheio ao
espaço e tempo narrativos:

Dois dias depois, ― exatamente o dia em que os vemos agora ―, Garcia


foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele
caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa
saía aflita.
É preciso ser enfático, e expor o porquê de esta interrupção ser
desnecessária: mais adiante, veremos as mesmas ações se repetindo;

depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda
trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se
que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o
marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. 
Provavelmente por insegurança, Machado resolve explicitar a montagem
do conto; o que incomoda um pouco, mas, sem dúvida alguma, não a
diminui. Toda a disposição dos acontecimentos, das potências e das
causalidades é exemplar. Aristotelismo encarnado. 

Retornamos a exatamente o dia em que os vemos no início do conto, isto é,


dois dias após as primeiras tosses de Maria Luísa, Garcia muito
provavelmente querendo advertir o amigo sobre os sintomas da esposa.
Porém, o que vemos suficientemente hediondo para que tire de nossa
memória ― e aqui entra o passe da magia de Machado ― o incidente
recém testemunhado. Maria Luísa entra em cena aflita:
― Que é? perguntou-lhe.

― O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.


Segue-se a história do rato e, mais uma vez, entramos em outro drama.
Note-se quantos dramas já foram apresentados nesta breve história, todos
em redor de Fortunato: o teatro, o enfermo vítima da facada, a casa de
saúde e, agora, o incidente inicial, do rato.  O próximo será a morte de
Maria Luísa. Uma trama finamente tecida e tingida com o mais puro
extrato das emoções humanas. 

Garcia chega ao gabinete de Fortunato e dá de cara com uma das cenas


mais perturbadoras ― e talvez mórbidas, se tal coisa existisse para a Arte
― em Machado:

Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um


rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o
que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e
sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava.
Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja
ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No
momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das
patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo,
e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a
primeira. Garcia estacou horrorizado.

― Mate-o logo! disse-lhe.

― Já vai.
Fortunato ― ironia do nome ― se revela quem é. Livre das aparências, do
jogo de falsidades que ergueu em torno de si, deixa trespassar a índole
predatória que se esconde sob a máscara de homem caridoso, à semelhança
de certas criaturas abissais que se escondem nas sombras, expondo à luz
somente um simulacro de seres indefesos, apenas para capturar presas
menores. O falso não se choca com o fato de ter sido desmascarado: finge
uma irritação protocolar. Garcia segue em mais um monólogo, intercalado
com as ações sórdidas do enfermeiro, até que, após três parágrafos de
agonia, o rato morre:

A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de


vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho
e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no
prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se
enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera
evidentemente era fingida.
As ações não precisam ser explicadas: uma imagem vale por mil palavras.
Machado conta-nos do modo mais simples possível o que houve, sem
arrodeios ou grandiloquência. Garcia, por fim, chega à causa secreta que
nos inquieta desde as primeiras linhas do conto:

“Castiga sem raiva”, pensou o médico, “pela necessidade de achar uma


sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste
homem”.
As aspas, praticamente ausentes no restante do conto ― em minha edição,
50 contos reunidos por John Gledson, não há outro uso ―, aqui chegam
para acrescentar carga dramática ao pensamento, atribuindo mais gravidade
ao discurso. Depois, o retorno ao momento, já comentado, em que:

ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico


estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi
alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se
ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era
apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu
por ela e cuidou de os vigiar.
É preciso, agora que o evento central da trama foi revelado, dar uma
conclusão ao conto, Machado acelera o andamento dos movimentos finais,
em cenas indiretas, o tempo passa rapidamente enquanto Maria Luísa:

tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a
máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até
deixar um bagaço de ossos.
Garcia, que cuidou de os vigiar, agora observa Fortunato, que recebeu a
notícia como um golpe. De um parágrafo a outro, a mulher cheia de vida
decai, murcha e morre. Fortunato, sabemos, parece se deliciar naquela
morte lenta, ainda que tivesse afeição à esposa:

Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e
dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora
magra e transparente, devorada de febre e minada de morte.
Garcia não contém o desprezo:

Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto


de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só
quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava
outra vez só.
Aqui nos despedimos do ponto de vista de Garcia, aquele moço
que possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor
os caracteres. Apenas na última cena, há uma inversão de perspectiva:
vemos o mundo pelos olhos do caçador. Fortunato:

Chegando à porta, estacou assombrado.

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por


alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte
espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento
que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo
da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. 
Finalmente, Fortunato acha a causa secreta de Garcia ― enfim, uma
fraqueza! ―, e o conto termina numa exposição sádica e cruel de um
predador que não trai a própria natureza:

Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não
deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao
ressentimento.

Olhou assombrado, mordendo os beiços.


A personalidade psicopática não sente dor, nem tristeza: apenas orgulho.
Maria Luísa nada mais fora que um troféu e, mesmo na morte, servirá de
flagelo ao marido sádico: 

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas
então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não
puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor
calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara,
saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito
longa, deliciosamente longa.
A  voz de Fortunato se mescla, em discurso indireto livre, à voz do
narrador; um riso doentio que triunfa ao final. E, com o tríptico “longa,
muito longa, deliciosamente longa”, Machado fecha o conto com uma
chave de ouro estilística: dois advérbios, um de intensidade e outro de
modo ― muito e deliciosamente ―, acentuando a sensação causada pela
repetição do adjetivo longa. Longa, muito longa, deliciosamente longa,
num crescendo. É a vitória do desespero e das dores do mundo; desta vez, o
mal prevalece.
Em face de tudo o que foi exposto e analisado, faltam-me elogios mais
eloquentes: só posso concluir dizendo que, por esse trabalho de ourivesaria,
qualquer escritor merece uma estátua de doze metros e um mausoléu de
mármore. Este é um conto que não deixa a desejar a nenhum romance, por
extenso que seja, no uso das técnicas e no desenvolvimento psicológico das
personagens: a habilidade de artesão vem para alinhavar as causas íntimas e
secretas que se passaram na mente do artista. A Arte não nasceu para
mostrar-nos o mundo fielmente qual ele é, qual desejamos que ele fosse, ou
como deveria ser; tão somente existe para nos revelar a impressão de uma
mente criadora. E Machado nos revela, cena após cena, perfil após perfil, o
segredo de uma alma monstruosa.

POR QUE DESISTI DE SER UM “INTELECTUAL PÚBLICO”


Por Paulo Cantarelli / 28 de junho de 2021
“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos
céus.” – Eclesiastes 3:1
Hoje à tarde, ao sair de casa, sob uma fina garoa de inverno, deparei-me
com um cenário interessante: ao longe, entre uma claridade difusa e a
névoa, os galhos das árvores agitavam-se feito as patas de cavalos alados.
Talvez o ritmo, talvez o formato das folhas, ou mesmo o vento frio que
cortava meu rosto – o mesmo das cavalgadas de infância –, me lembraram
o galopar dum cavalo. Assim funciona a mente criativa: ela associa coisas
“inassociáveis” aos olhos comuns. Tratei de anotar a imagem e os detalhes
que me servirão, um dia, para escrever alguma cena de conto ou romance.

A Literatura é feita dos detalhes, a tal ponto que o artista precisa estar num
determinado estado de espírito – poroso à realidade do mundo, das coisas e
dos homens – para que possa criar. Há pouco mais de um ano não publico
mais artigos de Literatura, e os programas do Podcast Entender Ficção
seguem o mesmo rumo. Por quê? Simples: desisti de ser um intelectual
público.

Recentemente, me mudei de meu querido Recife, cidade na qual habitam


meus contos e boa parte de minha imaginação, para uma pacata cidade de
interior, nas serras, onde posso ao menos brincar de inverno (que original,
não é mesmo?). Uma tentativa de me livrar das distrações burguesas que só
o tempo me dirá ser eficaz. “Viva como um burguês e pense como um
semideus”, aconselha Gustave Flaubert. Acordo todos os dias ao lado da
mulher que amo, resolvo meus afazeres domésticos, tenho tempo e silêncio
de sobra para escrever e refletir; afinal, todo escritor é um tipo peculiar de
pensador. Nos últimos anos, é verdade, deixei um pouco de lado meu ofício
de artista para me dedicar ao da crítica; e tive frutos, devo reconhecer,
satisfatórios, apesar do amargor. Ganhei amigos leais, leitores fiéis, alguns
dos quais tive a honra de ter como alunos; mas também ganhei desavenças,
inimizades e dores de cabeça gratuitas.

No Brasil, infelizmente, não há debate público. Há uma mixórdia


demoníaca de achismos, opiniões desencontradas, muita ignorância e mau-
caratismo; é o festim dos charlatões. Que o público dito “leigo” não
conheça os pormenores técnicos de uma determinada área do
conhecimento, isso já seria esperado; mas quando os pretensos especialistas
não conhecem esses pormenores, é algo no mínimo alarmante. Nesse caso,
é impossível mesmo tentar uma argumentação, já que um debate
propriamente dito só é possível quando ambos os lados possuem ideias
consolidadas. Entre revolucionários e reacionários, o despreparo é algo
patente (o encontrei menos no público leigo do que entre os “formadores de
opinião”, que se supõem especialistas). Presenciei casos e mais casos de
pretensos críticos literários semianalfabetos ou analfabetos funcionais (e
isso não é um exagero, mas constatação factual, como expus em outros
artigos ou podcasts).

É preciso, para que nosso meio intelectual seja minimamente decente, uma
verdadeira fogueira das vaidades. Mesmo aqueles, artistas ou não,
propensos a algum talento – ou, pior, com talento real – terminam se
perdendo numa orgia dantesca de soberba e leviandade. Nada novo sob o
sol. Também testemunhei casos tristes de quem tivesse muito potencial,
mas se deixou desanimar pelo ambiente, acreditando haver apenas duas
possibilidades: ou corromper-se bajulando e sendo bajulado, ou ser
ostracizado por dizer verdades inconvenientes. Já a nossa Crítica, por sua
vez, é infantil e emocional, afetiva: apega-se demasiadamente ao
subjetivismo e descarta toda objetividade. Julga-se obras literárias com
pesos e medidas diferentes, as que convirem: ao amigo (ou ideologia
amiga), tudo, ao inimigo, nem a lei. Exalta-se muita porcaria e condena-se
o que é bom por pura canalhice. Seja como for, não tenho esperanças de
que o meio literário melhore. Se há mais alguém que faça um trabalho de
excelência, atualmente, desconheço.

Também falta gente de coragem e de interesse sincero. Me decepcionei


com quem eu acreditava ter algum valor: os ditos “colegas” raramente se
interessam genuinamente pelo seu trabalho, e sequer erguerão um dedo
para defendê-lo duma injustiça, disso já reclamava até Gilberto Freyre; mas
senti este fato na pele – tão concreto quanto o espinho que fura a carne –
quando absolutamente ninguém no Brasil, nem um único jornal, noticiou o
escândalo internacional que, por infeliz acaso do destino, envolveu um
plágio a meu livro em Angola. Enquanto lá, os jornais angolanos deram
destaque e primeiras páginas à fraude envolvendo o maior prêmio do país
(António Jacinto, dado pelo governo de Angola), aqui, nem mesmo
jornalistas, que se diziam amigos meus, publicaram uma simples nota.
Consegui, sozinho, que a notícia chegasse aos ouvidos do júri e que
anulassem o prêmio. Alguns, que talvez leiam meus artigos por puro
sadomasoquismo, me chamarão de autorreferente ou egocêntrico; não me
dirijo a eles. Este é apenas um dos exemplos – talvez o mais sintomático –
que eu mesmo vivi, e que expõe quão desinteressados são os intelectuais, à
direita ou esquerda, pelo trabalho “dos colegas”.

Virtudes são volúveis: uma vez pensado ou arrogado-se tê-las, somem. São
difíceis de se adquirir, fáceis de se perder. E por isso resolvi me distanciar
do “debate”, para manter em mim a humanidade necessária para continuar
meu ofício de escritor. É que, ao se deparar com tipos vis e asquerosos, é
difícil não cair na maledicência, no escárnio, no ressentimento, na
resignação forçada por um sentimento de superioridade ferida. Em suma: o
mal existe no mundo e, ao nos depararmos com ele, temos de ter cuidado
para que, crendo combatê-lo, não nos transformemos nele utilizando-nos de
seus meios. A corrupção da alma é tentadora.

Outro fator que me levou a diminuir parte da atuação pública é que os


algoritmos das mídias sociais são propensos ao efêmero e ao fútil: há um
volume crescente de “conteúdo” publicado todos os dias, e, para se ter
destaque, é necessário manter um fluxo de publicações que não condiz com
uma vida intelectual séria. Esse termo, aliás, foi prostituído a tal ponto que
qualquer blogueiro ou vlogueiro se acha Aristóteles renascido por ter lido
um ou dois livrinhos, recém-descobertos, e gravado um curso sobre eles.
Nunca fui do tipo que tem prurido por holofotes, então creio que meus
leitores se beneficiarão mais de um conteúdo esporádico, sazonal, mas
denso e profundo, que de publicações diárias ou semanais, mas rasas. Além
da veracidade filosófica, gosto de dotar meus textos de esmero artístico,
mesmo os não ficcionais, sejam breves artigos ou ensaios mais longos; e
isso, por si só, requer bastante tempo e esforço. Como já disse muitas
vezes, me interessa antes o êxito, pois o sucesso é secundário.

Aos leitores interessados, não se preocupem, não abandonei meu trabalho


público, de “produção de conteúdo”; as coisas continuarão mais ou menos
como estão, em fogo brando. Pretendo retomar os podcasts e voltar a
escrever artigos de crítica literária, quem sabe até começar outros projetos
culturais que tenho em mente, mas de modo pontual, por puro gosto e
deleite intelectual, sempre que eu tiver algo relevante a dizer. Apenas
desisti de ser um intelectual público, no sentido de publicidade: há ideias e
valores que a massa ignara e burguesa escoiceia por estarem fora de seu
alcance; certos conhecimentos não são, nem devem ser, disponíveis a
todos. É preciso que se pague um preço pelo gênio.
É por esses motivos que, nos últimos tempos, optei por me tornar
um intelectual recluso: acredito que me dedicar à escrita e a meus alunos,
em cursos e oficinas, me dará os melhores frutos, já que esse conteúdo,
sim, é do interesse das pessoas sinceramente mais interessadas em
Literatura.

Até logo,

Paulo Cantarelli, 27/06/2021

AS SIBILAS DECRÉPITAS DA ESTUPIDEZ


Por Paulo Cantarelli / 24 de fevereiro de 2022 
“Protágoras, que era grego, doutrinava que o homem é a medida de todas
as coisas. Nós, que somos brasileiros, colocamos no nosso eu todo o peso
dessa medida.”

Ângelo Monteiro
Se, apesar de me manter relativamente recluso do dito debate intelectual,
sem me pronunciar sobre nada propriamente novo, numa espécie de
ascetismo compulsório aos olhos do público, as hordas bucéfalas
continuam a pisotear meu jardim, nada posso fazer senão enxotá-las.

É hábito do brasileiro chocar-se com coisas antigas, pois a memória do


mundo limita-se aos fatos que sucederam apenas a seu próprio nascimento.
Porém, de tempos em tempos, os arautos da incompetência se renovam,
mas não sem antes enterrarem atrás de si a leva anterior; o novo não pode
nascer enquanto o velho não morre, diria Gramsci. Para que um novo
modismo surja, é preciso ocultar o cadáver do predecessor antes que
apodreça. Assim foi com certos fetiches – formação do imaginário, vida
intelectual, etc. – que este que vos fala ajudou a desbancar, ao menos para
uma pequena parcela de pessoas sinceramente interessadas em Literatura.
Em linhas gerais: os farsantes prontamente mudaram de discurso, passando
a atacar aquilo que diziam ontem, como se nunca o tivessem proferido, na
mais conveniente amnésia deliberativa.

E, apesar de meu afastamento parcial, algo que permanece em minha rotina


é que cada nova onda de fraudes intelectuais – isto é, pessoas inaptas a
ocuparem certa posição social que não lhes pertence – se choca com o que
eu já disse dois, três, quatro anos atrás, e se sente pessoalmente ofendida, a
ponto de, para provar a insignificância do que digo, citar meu nome
gratuitamente, conjecturando as maiores vilezas sobre minha pessoa e
expondo quão erradas são as coisas que digo, sem nunca rebater
objetivamente uma única linha que escrevi (disso já tratei no “A Crítica dos
Imbecis”). Quer por uma autoimagem quebrada – o espelho se partiu –,
quer pela indignação da serpente contra tudo que não rasteja, deixo as
causas desses comportamentos para as conjecturas individuais, não sendo
sensato buscar lógica na burrice; ela, diria Umberto Eco, é infinita, ao
contrário da inteligência humana – para esta, dois mais dois sempre será
quatro, mas para aquela, é infinito.

Contudo, tiro de minha experiência que, no cenário brasileiro,


definitivamente o que vale é a retórica; não o confronto dialético ou lógico,
apenas a suscitação das paixões e briga de torcidas. Além disso, o tipo mais
difícil de discurso, desde a antiguidade, é o para a plateia inepta: o orador
terá de montar as premissas do zero se quiser convencê-la de que seu
discurso é sequer plausível. A cultura serve de experiência básica comum a
todos, e é justamente ela que permitirá o diálogo entre os homens; quando
não existe tal fundação, há um abismo intransponível entre o interlocutor e
o público. Sem contato prévio com aquilo que é dito, o ouvinte estará
diante, pela primeira vez, de certos “espectros”, como diria Aristóteles, que
deverão ser percebidos e absorvidos pela mente, cristalizando-se na forma
de imagens, antes de poderem ser evocados para a reflexão através
da imaginação. Um problema ainda maior surge quando essa plateia inepta
é toda a classe que supostamente deveria formar a opinião dos leigos: os
intelectuais. Sendo assim, quando os debatedores são todos pathos (paixão)
e nada ethos e logos (credibilidade e lógica), termina por vencer quem tem
a maior plateia, que por sua vez também é cega para o que deveria ser
discutido.

Houve um caso curioso de um sujeito com pretensões intelectuais que me


procurou. Não podendo rebater meus argumentos críticos acerca de
Tolkien, passou a histericamente recomendar meu trabalho e repetir o que
eu dizia – muitas vezes de forma deturpada – pelo simples fato de “não
conseguir refutar”. Evidentemente alguém assim não sabe o que é estudar
uma disciplina a sério, se dedicar a uma obra intelectual verdadeira, por
assim dizer. Apesar disso, mantive certa cordialidade por “política boa
vizinhança” – se não está me xingando, pelo menos que eu seja simpático
–, o que se mostrou um erro: após ele se meter numa briga e me chamar
para “um debate com estudiosos no assunto”, gentilmente recusei, depois o
adverti a não se meter em discussões que, por falta de formação, não
pudesse vencer. Depois disso, o sujeito sumiu, fez que não era com ele. Na
dúvida, diz o adágio, finja demência. Nesses indivíduos, o ponderamento
da suspensão do juízo simplesmente inexiste; e, para mim, fica a lição de
que a coisa mais sensata a se fazer é jamais presumir boas intenções nos
que ainda não tenham se provado, feito naquelas tribos primitivas em que,
para ser considerado homem, o garoto deve abater uma fera com as mãos.
O artigo “Tolkien e a Deformação do Imaginário” causa efeitos bastante
interessantes, diga-se de passagem, para estudos antropológicos. Ainda que
eu advirta que a discussão ali tratada é uma questão de poética, e possui
bases muito antigas, que remetem a Platão, Aristóteles, Plotino, Longino e
tantos outros autores, a maior parte dos refutadores ignora o aviso e
demonstra cabalmente que sequer passou do título; quanto mais entender
o status quaestionis. Os que passam, demonstram que não fazem a menor
ideia do que estou falando, nem do como. O próprio título evidencia os dois
tópicos a serem tratados: o nome próprio, “Tolkien”, a conjunção “e”, e,
por fim, a locução substantiva “deformação do imaginário”. Não é preciso
fazer uma análise sintática, mas, na cabeça dos analfabetos funcionais, a
conjunção torna-se verbo e, magicamente, o título vira uma suposta
premissa da qual eu partiria para toda minha argumentação: “Tolkien é a
deformação do imaginário”. Logo, sendo premissa tida como falsa pelo
refutador, pode ser descartada ad titulum, dispensando a leitura do texto.
As sibilas decrépitas da estupidez tentam de tudo: adivinhar as intenções
secretas do coração de seu interlocutor, causas psicológicas, telepatia; tudo
menos ler o texto, pois isso exigiria, antes de mais nada, alfabetização
básica.

Quanto mais iletrado é o sujeito, quanto menos cultura literária possui, e


menos tecnicamente conhece a matéria, mais confiante se sente para
bostejar sobre o que quer que seja, utilizando Literatura por pretexto.
Parece-me que os erros tendem a se repetir num padrão que leva sempre às
causas aristotélicas. O fim de toda obra de Arte é a Beleza; nas palavras de
Mário Ferreira dos Santos, “a Arte é uma realização técnica da Beleza pelo
homem”, sendo técnica a utilização sistemática de meios para se atingir um
fim. Aqui se faz a distinção entre a obra de arte e a técnica artística que,
por vezes, se confundem nos limites da linguagem: a primeira, obra de arte,
é um objeto finito, encerrado em si mesmo pela forma, resultante da técnica
artística. Ou seja, ao falarmos a palavra Arte, podemos nos referir tanto ao
processo de feitura da obra, quanto à própria obra resultante desse
processo.

Outro abismo ainda mais obscuro se abre quando aquelas sibilas da


estupidez se dispõem a tagarelar sobre aspectos extrínsecos das obras de
arte, tomando por crítica literária (leia-se artística) o que, na realidade, seria
uma discussão filosófica partindo da obra de arte. Ao discutirmos o que é
mostrado numa obra, saímos do campo do “como” é mostrado, algo
altamente desejável se quem interpreta é capacitado, como quando Platão,
pela boca de Sócrates, evoca Homero para que possamos analisar
filosoficamente as ações das personagens. Porém há um limite até para
isso: a obra, ainda que aberta, como nos lembra Eco, regulará as fronteiras
da interpretação. É descabido evocar os arquétipos de pecadores da Paixão
de Cristo na “Odisseia”, a menos que se trate de uma analogia distante de
um comportamento humano universal para o vício ou virtude; do contrário,
isso seria anacronismo grave, para não chamar de burrice. O exemplo pode
parecer absurdo, porém, Frederico Lourenço, por melhor tradutor que seja,
não é lá grande crítico literário e cai exatamente nesse tipo de erro ao
afirmar que há símbolos fálicos e trocadilhos freudianos ao longo da
“Ilíada”:

“Na Ilíada, o coito entre os homens não é vivido na cama, mas sim no
campo de batalha, onde não é ao falo, mas a um mortífero objeto fálico,
que incumbe a penetração: a lança. […] O caráter de violência sexual no
manejo da lança salta aos olhos claramente das palavras de Idomeneu no
Canto XIII […] ao delinear uma oposição entre o covarde e o ‘homem
sério’ […] como alguém que anseia pela ‘cópula’ do combate.”

[Frederico Lourenço em prefácio à “Ilíada”, Ed. Penguin, 2017, 4ª


reimpressão, p. 76]
Portanto, uma lança não mais representa uma lança, mas um falo em riste,
uma estocada com a lâmina não é mais uma estocada, mas o ato de
penetração sexual. E mesmo a alusão à virilidade ou aos sentimentos
complexos de um homem para com uma mulher, que podem transcender
muito a mera relação carnal, são tratados com extremo materialismo; o que
pode amputar o leitor incauto de sua capacidade interpretativa. De modo
similar, essa superinterpretação simbólica atualmente parece ocorrer em
todos os campos da pretensa crítica: o marxista que vê a dialética da luta de
classes em todo enredo, o católico imprime a catequese da Igreja em
qualquer romance de quinta para justificar sua existência como obra; e isso
nos faz voltar à perversão da causa final. O discurso Poético passa a ser
didatismo, proselitismo, pregação, o que seria, filosoficamente, função da
Retórica, que move o leitor ou ouvinte ao desejo ou repulsa.

Para poupar o leitor, utilizarei de exemplo concreto apenas um dos sujeitos


que, em circunstâncias normais, não mereceriam menção, mas que, dadas
as circunstâncias de doença moral e intelectual do cenário, têm de ser
citados por mera elucidação. Pretendo abordar os demais casos em outros
artigos, mas, por enquanto, me atenho ao primeiro deles, um tal de “Rasta”,
que ora se traveste de mulher para cantar numa banda de rock – como se
pode ver neste vídeo, – ora se veste de palhaço de circo, com direito a
cartola e tudo. Longe de querer julgá-lo pelo que faz em seu tempo livre,
apenas me espanto que alguém tome o rapaz como autoridade para o que
quer que seja. Ao ser perguntado sobre meu artigo, eis a resposta:

“Cara eu comecei a ler o artigo, mas eu já entendi do que é que se tratava


logo nas primeiras linhas, assim, tá entendendo? Tipo, ele fez esse artigo
para que vocês lessem o que ele tava escrevendo. E ele escreve bem. Mas é
apenas uma peça de crítica. Cês têm que entender que crítica literária tem
uma limitação muito parecida com a limitação que a gente tem ao fazer
comédia, tá ligado? Tipo, o cara vai ser injusto, tá entendendo? Ele não
vai ser completamente sincero e ele também não vai ser imparcial, ele não
vai ser… [incoerente] tipo, não é a verdade. Eu mesmo nunca tinha ouvido
falar desse cara até vocês mencionarem. Aí, tipo, ah, fui lá ver
[incoerente] pô, o cara escreve bem, leu pra caramba, tal, legal, parabéns,
flipper, toma aqui uma sardinha e… é mais uma peça de crítica. Tá bom.
Legal. Leia. Qual o problema?”

[Transcrição ipsis litteris de um story no instagram @pergunteaorasta]


Apesar das dificuldades de expressão, o rapaz identificou o gênero em que
escrevi, algo raro hoje em dia. Porém, não passa disso, nota-se que não
compreende o que é ou como se faz crítica literária. Para suprir essa
deficiência intelectual, tenta raciocinar por imagens análogas de sua
cabecinha e recorre à comédia – não a de Aristófanes, que exige neurônios
para que se faça entender, mas o mais novo stand-up de Rafinha Bastos,
pelo visto. Fora as projeções: diz que o crítico – moi même – sempre será
injusto e adivinha suas intenções ao decretar que ele não está sendo sincero.
É melindroso aquele que, não compreendendo o sentido claro e explícito de
um simples artigo, tenta desvendar o coração dos homens. Por acaso
conversou comigo, ou teve acesso a meus outros escritos críticos, e até
mesmo a dados biográficos, para saber qual seriam essas inclinações
obscuras?

A crítica literária é uma ponte que liga o leitor mais simples, com um
menor grau de cultura adquirida, a um grau mais elevado de interpretação
das grandes obras; não é tarefa dos próprios autores elucidarem aquilo que
parece obscuro, sobre seu próprio trabalho, aos do público, mas dever do
crítico. Este, sim, tem seu papel pedagógico, e tanto melhor o crítico
quanto maiores forem sua bagagem, sensibilidade – isto é, capacidade de
perceber as mais sutis matizes do objeto estético, invisíveis a observadores
inaptos – e seus parâmetros de juízo. Sendo a crítica um juízo de valor, é
impossível que se faça sem uma base objetiva e hierárquica de comparação.
Ezra Pound nos exemplifica, em seu “ABC da Literatura”, os tipos de
escritores que um crítico, ou estudante sério de Literatura, se deparará:

“1. Inventores: homens que descobriram um novo procedimento ou cuja


obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo. [grifo meu:
Homero e Flaubert são os dois casos mais notórios disso por terem
consagrado dois gêneros, epopeia e romance, respectivamente. Poder-se-
ia colocar James Joyce na mesma categoria, não por ter consagrado
outro gênero, mas porque realizou novos procedimentos de criação da
prosa ficcional com seu experimentalismo.]

2. Mestres: homens que combinaram um certo número de tais processos e


que os usaram tão bem ou melhor que os inventores. [A maioria dos
grandes escritores: Virgílio, Tolstói, Faulkner, Graciliano Ramos, etc.]

3. Diluidores: homens que vieram depois das duas primeiras espécies de


escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho. [um bom
exemplo é Zola que, após Flaubert, seu mestre, não conseguiu manter o
nível]

4. Bons escritores sem qualidades salientes: homens que tiveram a sorte de


nascer numa época em que a Literatura em seu país está em boa ordem ou
em que algum ramo particular da arte de escrever é “saudável”. Por
exemplo, homens que escreveram sonetos no tempo de Dante, homens que
escreveram poemas curtos no tempo de Shakespeare ou algumas décadas a
seguir, ou que escreveram romances e contos, na França, depois que
Flaubert lhes mostrou como fazê-lo. [O famoso nem fede, nem cheira. De
tão irrelevantes, nenhum me vem à mente.]

5. Beletristas: homens que realmente não inventaram nada, mas que se


especializaram em uma parte particular da arte de escrever, e que não
podem ser considerados ‘grandes homens’ ou autores que tentaram dar
uma representação completa da vida ou da sua época. [Bruno Tolentino
quando comparado a Gullar, Cunha Melo, Cabral e outros tantos
contemporâneos de gênio.]

6. Lançadores de moda: enquanto o leitor não conhecer as duas primeiras


categorias, será incapaz de distinguir as árvores da Floresta. Ele pode ser
um verdadeiro ‘amador de livros’, com grande biblioteca de volumes
magnificamente impressos, nas mais caras e vistosas encadernações, mas
nunca será capaz de ordenar o seu conhecimento ou de apreciar o valor de
um livro em relação a outros, e se sentirá ainda mais confuso e menos
capaz de formular um juízo sobre um livro cujo autor está “rompendo com
as convenções” do que sobre um livro de oitenta ou cem anos atrás. Ele
jamais compreenderá a razão pela qual um especialista se mostra irritado
com ele ao vê-lo exibir pomposamente uma opinião de segunda ou de
terceira mão a propósito dos méritos do seu mau autor favorito.” [Irmãos
Campos, Concretistas e boa parte da leva de 22; P.S: o Sr. Rasta e seu
mau autor favorito também encontram-se aqui, na base da pirâmide.]
É curioso o fato de que esse Rasta – e muitos outros que já entraram em
atrito com este que vos fala – faça parte de um dos mais notórios clubinhos,
perdoe-me a redundância, emburrecedores do cenário “conservador”.
Claro, estou falando do Brasil Paralelo*, que, de tão paralelo, já
praticamente existe em outra realidade. É nítido que, ao elevar verdadeiros
imbecis ao status de intelectuais, ou especialistas, como queira, a empresa
não visa nada além do lucro fácil. Influencers, instagrammers, youtubers,
literalmente qualquer bosta serve, desde que dê visibilidade. Nenhum
brasileiro sério em busca de verdadeira cultura deveria consumir esse tipo
de material enlatado, genérico, entregue à subcultura de massas. Isso para
não falar das fontes duvidosas e das deturpações ideológicas da realidade,
em nada sutis.

*[sei da preferência pela empresa de ser chamada pelo artigo feminino “a”,
mas mantenho minha concordância ideológica com gênero das duas
palavras que compõem o nome.]

É natural que as pessoas simples se sintam defasadas, mesmo enganadas,


pelo sistema de educação, que é, à esquerda ou direita, reconhecidamente
deficitário. Mais natural ainda é, após descobrir esse fato, que o indivíduo
queira se educar, suprir essas carências intelectuais com conteúdo de valor.
Não há nada errado em oferecer – leia-se vender – a solução, contanto que
definitiva. Do contrário, estamos diante do Doutor Dulcamara, médico
enciclopédico, cujas virtudes perclaram os portentos infinitos, e é
conhecido em todo o universo (e outros lugares):

“Comprem meu específico


Que eu o vendo baratinho.
Ele move os paralíticos;
Liberta os apopléticos,
Os asmáticos, os cianóticos,
Os histéricos, os diabéticos,
Cura o timpanítico,
O tísico, o raquítico,
E o enfermo do fígado,
Que agora está na moda.
Compre meu específico,
Que eu o vendo baratinho. […]
Mas me diga, quanto custa?
Quanto vale uma garrafa?
Cem escudos? Trinta? Vinte?
Não, ninguém se espantaria.
Para provar minha alegria
Pela acolhida tão amiga
Quero presenteá-los, boa gente:
Custará um escudo somente.”
[tradução livre da ária “Udite, udite, o rustici”, cena 5 do ato I, de
“L’Elisir d’amore”, de Caetano Donizetti]
Tal qual o dottore, que de enciclopédico não tem nada, vendendo
aos rustici [rústicos], a nova direita aproveita-se da ignorância alheia.
Saiba, leitor: a intelectualidade de um escudo – ou 1,99 no Real brasileiro –
vale exatamente isso. Conhecimento sólido só é adquirido a duras penas.
Não espere que iniciativa coletiva alguma “salve” uma cultura que não
precisa ser salva, mas sim descoberta pelas pessoas certas. No final, todo
elixir milagroso, como podemos aprender com o Doutor Dulcamara, não
passa de vinho tinto numa garrafa diferente. Para aquisição de uma
verdadeira cultura – não aquela “alta cultura”, que de tão alta é inatingível
– só resta uma solução: meter a cara nos livros e ler.

PROBLEMAS NA POÉTICA DE ORWELL


Por Paulo Cantarelli / 11 de março de 2022
Publicado originalmente em 20 de maio de 2017.

Desta vez, como prometido, tratarei dos problemas da poética de George


Orwell. Antes de mais nada, é preciso dizer que nossas críticas não se
baseiam em gosto, mas em critérios bastante específicos: Beleza,
originalidade e técnica. Como já dissemos, a história de pouco nos
interessa; mais nos vale a condição humana que esta nos transmite. É óbvio
que temos de levar em conta as dificuldades da tradução, pois traduzir é
reescrever, e certos valores do original por vezes se alteram ou se perdem.
Mas há algo além da própria língua que não se perde nesse processo: a
“linguagem” literária, as técnicas, a imagética tecida pelo escritor para
recriar poeticamente as experiências humanas; esse é o cerne da literatura,
campo da Beleza.

Dito isso, o “estilo” de Orwell se manteve praticamente intacto nas


traduções para o português. Devido à extensão da obra, nos ateremos a
alguns poucos trechos com problemas patentes, que podem facilmente ser
identificados no resto do livro.

É preciso que o leitor tenha em mente os conceitos de arte própria e arte


imprópria; conceitos estes já discutidos e cuja explicação mais detalhada se
encontra no capítulo II do livro “Mythic Worlds, Modern Worlds”, de
Joseph Campbell, em comentário às obras de James Joyce. Também é
importante que se leia “Poética”, de Aristóteles, com ênfase nas partes VI,
XIV, XXI e XXII.

Vamos ao primeiro trecho de “1984”:


“Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas.
Winston Smith, queixo enfiado no peito no esforço de esquivar-se do vento
cruel, passou depressa pelas portas de vidro das Mansões Victory, mas
não tão depressa que evitasse a entrada de uma lufada de poeira arenosa
junto com ele.

O vestíbulo cheirava a repolho cozido e a velhos capachos de pano


trançado. Numa das extremidades, um pôster colorido, grande demais
para ambientes fechados, estava pregado na parede. Mostrava
simplesmente um rosto enorme, com mais de um metro de largura: o rosto
de um homem de uns quarenta e cinco anos, de bigodão preto e feições
rudemente agradáveis. Winston avançou para a escada. Não adiantava
tentar o elevador. Mesmo quando tudo ia bem, era raro que funcionasse, e
agora a eletricidade permanecia cortada enquanto houvesse luz natural.
Era parte do esforço de economia durante os preparativos para a Semana
do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, com seus trinta
e nove anos e sua úlcera varicosa acima do tornozelo direito, subiu
devagar, parando para descansar várias vezes durante o trajeto. Em todos
os patamares, diante da porta do elevador, o pôster com o rosto enorme
fitava-o da parede. Era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os
olhos o acompanhem sempre que você se move. O GRANDE IRMÃO ESTÁ
DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, embaixo.”

[Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner, pela Cia Das Letras]


O que devemos analisar neste trecho de Orwell? Como podemos classificá-
lo como bom ou ruim? E com que critérios? Sem inicialmente levarmos em
conta a estilística simplória e a adjetivação frouxa, que pouco adicionam à
beleza das frases, julgaremos outros aspectos da forma literária e das
técnicas.

A metáfora, define Aristóteles, é “a aplicação de um nome que pertence a


uma outra coisa”. Já Scruton diz: “metáforas fazem conexões que não
estão contidas no tecido da realidade, mas são criadas de nosso próprio
poder associativo. A questão importante sobre a metáfora não é ao que ela
se refere, mas à experiência que ela sugere”. Aqui temos uma boa pista
sobre a diferença entre uma metáfora e uma alegoria. A metáfora amplia
nossas interpretações acerca da realidade, enquanto a alegoria é um reflexo
limitado e didático desta. Didático, pois o fim é provar ou ilustrar
um único ponto, com uma única interpretação, logo, imprópria, fora do
propósito (fim) artístico. A metáfora é descompromissada, não está fincada
numa única ideia filosófica a se transmitir ou se retratar no texto literário;
ela é a própria base da experiência estética, símbolo com diversas
interpretações possíveis. A alegoria, por sua vez, pode ser considerada, sob
certos aspectos, um jogo de símbolos com significado fixo, ou “uma
verdade velada sob uma bela mentira”, nas palavras de Dante, em
“Convívio”.

É preciso que se diga, para que não incorramos em simplificações, que uma
narrativa alegórica não é a mesma coisa que um elemento alegórico, ou
aspecto alegórico do texto. Estes podem ocorrer ao longo da narrativa para
aludir esporádica e intencionalmente a um aspecto ou outro da realidade
não literária, o “mundo real”, sem prejuízo para os méritos artísticos do
texto literário, desde que não restrinja a liberdade interpretativa do leitor.
Há uma longa discussão sobre onde termina uma metáfora e onde começa
uma alegoria, mas, em suma: a metáfora é polissêmica e a alegoria possui
apenas um único sentido pretendido pelo autor, que norteará a interpretação
do texto.

Orwell nos dá um perfil bastante sugestivo de quem é o Grande Irmão: “o


rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, de bigodão preto e
feições rudemente agradáveis”. É nitidamente uma referência à figura de
Stalin (se não levarmos em conta a subjetividade do que seriam “feições
rudemente agradáveis”). Imagem pouco original, principalmente levando-
se em conta a data de publicação do livro, 1949, quando a figura de Stalin
era tão presente no cenário mundial. Em suma: escrita lugar-comum e
preguiçosa. 

Outro aspecto fundamental ignorado por Orwell é: literatura não se explica.


Ainda que tivesse se utilizado uma metáfora de qualidade duvidosa para
aludir ao totalitarismo soviético, Orwell destrói qualquer liberdade
interpretativa do leitor, de modo ironicamente “totalitário”, ao escrever em
caixa-alta: “O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ”. Isso
destrói completamente a descrição mais original do trecho, escrita na
sentença anterior: “era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os
olhos o acompanhem sempre que você se move”. A metáfora foi morta
dando lugar a um significado estreito; não é a psicologia da personagem
que rege o cenário, mas a ideologia do autor frente a obra literária,
determinando tiranicamente o significado dos símbolos, eliminando a
possibilidade de qualquer livre associação das ideias que compõem a trama
do romance. Como obra didática, cumpre seu papel, como literatura, não.
Há mais esforços com panfletagem do que com a arte.

Mas podemos abordar política sem panfletagem? Há como ser “original”


na metáfora? Sim, mas é preciso muita criatividade e estudo por parte do
artista. É preciso, sobretudo, a preocupação com o humano. Voltemos a
Aristóteles:
“A tragédia não é a imitação dos seres humanos, mas da ação e da vida,
da felicidade e da infelicidade (a infelicidade também sendo resultado da
atividade), o fim sendo uma certa espécie de ação e não um estado
qualitativo.”

[A Poética, Aristóteles, tradução de Edson Bini, Edipro]


Logo, podemos notar que Orwell faz uma caricatura da sociedade soviética,
do estilo de vida, e não trata da vida, da condição humana; tudo é uma
imitação fria e desprovida de sentimento. Alguns podem argumentar que
era essa a intenção do autor, e que na sociedade distópica de 1984 era
proibido demonstrar sentimentos. Uma coisa é a personagem não poder
demonstrar sentimentos, ter uma vida vazia, e se inquietar ao perceber a
própria insignificância e impotência diante do mundo; outra coisa é o autor
tentar esse efeito, mas não atingi-lo. Vemos isso acontecer com êxito em
“A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói. Assistimos à decadência de um
homem, a transformação de um homem medíocre num cadáver; somos
testemunhas da lenta aproximação da morte e da redenção de Ivan Ilitch
que, nos últimos minutos de vida, esquece o ódio e o rancor ao
compreender o sofrimento humano. A compaixão redime a dor e o medo da
morte. Com isso, Tolstói transforma a própria ideia filosófica em Arte,
corta o discurso retórico, transformando-o em metáforas, imagens e cenas
para chegar ao fundo da condição humana.

Em Orwell, a personagem não age por si, é uma marionete nas mãos do
autor, que escreve uma mera crítica distópica ao stalinismo. Talvez o
socialista Orwell obtivesse mais êxito em outro gênero literário. Vejamos
um contraexemplo a Orwell, um trecho de “Ana-Não”, romance político do
comunista espanhol Agustín Gómez-Arcos, que, apesar de não ser de todo
irrepreensível, atingiu êxito onde o outro falhou:

“[…] Ana, a rubra, participa de uma manifestação franquista. Ele


aparece cercado da sua glória, feita de força e de sangue. Devia ser
gigantesco, desmesurado pelo tamanho e pelo prestígio, cósmico de poder
de atração, divino de alento. Não. É pequeno. Ar contrafeito, mirrado.
Velho, rugas sem conta invadem-lhe o rosto. Seus gestos são deslocados.
Nenhuma sincronização entre o homem e o personagem glorioso. Como
mecanismo enferrujado que retoma o movimento aos arrancos. Sombra de
uma realidade outrora viva, outra sombra, mais real do que ele, o envolve:
a da doença. Apesar do uniforme de generalíssimo, apesar das
condecorações que lhe cobrem o peito de criança, dos cordões e fitas que
o acondicionam como um presente de luxo, sua doença mortal se amotina
e estoura como se fosse ela, e só ela, que se mostrasse à multidão.”
[“Ana-Não”, de Agustín Gómez-Arcos, tradução de Octávio Mendes
Cajado, Mundo Editorial]
Ana Paúcha, a protagonista de “Ana-Não”, é uma mulher que perdeu os
filhos e marido para o regime ditatorial de Franco, muitos anos antes,
durante a Guerra Civil Espanhola. Ao longo do romance, vemos o
desenvolvimento indireto da personagem de Franco no imaginário de Ana,
ou seja, o olhar de Ana sobre ele: um gigante, ditador férreo e imponente.
Na realidade, ao contrário, vemos um velho impotente e decrépito: imagem
e semelhança de seu governo (na concepção da protagonista). Isso sem que
seja dita uma palavra sobre a decadência do regime ou crítica política
explícita. Em Orwell encontramos críticas escancaradas, mais para a sátira
que para a representação dramática, como a “semana do ódio”, a “polícia
de ideias” ou “ministério da verdade”. Não há metáfora nisso, apenas um
didatismo óbvio.

Naquele pequeno trecho de “Ana-Não”, sequer as palavras “ódio” ou


“decepção” são mencionadas, há apenas ações puras e metáforas. As
metáforas e imagens não são lugar-comum e enfatizam o aspecto humano
da narrativa. O regime político não é o foco, mas a condição de Ana
mulher, mãe e sofredora humana, que perdeu a família na guerra, para um
nome distante chamado Franco. Ana-Não veste a máscara da dor humana,
sente a dor de toda mãe que perde o filho desde o início dos tempos.

Por fim, em “1984”, temos inúmeras exposições sobre o funcionalismo


público stalinista:

“Comentava-se que o Ministério da Verdade continha três mil salas acima


do nível do solo e ramificações equivalentes abaixo. Em Londres havia
somente três outros edifícios de aparência e dimensões equivalentes. Eles
tinham o efeito de reduzir tão drasticamente a arquitetura circundante que
do telhado das Mansões Victory era possível avistar os quatro ao mesmo
tempo. Eram as sedes dos quatro ministérios entre os quais se dividia a
totalidade do aparato governamental. O Ministério da Verdade,
responsável por notícias, entretenimento, educação e belas-artes. O
Ministério da Paz, responsável pela guerra. O Ministério do Amor, ao
qual cabia manter a lei e a ordem. E o Ministério da Pujança, responsável
pelas questões econômicas. Seus nomes, em Novafala: Miniver, Minipaz,
Minamor e Minipuja.”
Muita explicação, descrição da sociedade, pouca ação. Para isso, diz
Aristóteles:

“Muito melhor seria se a tragédia, ainda que precária neste aspecto


[moral], possuísse uma narrativa e estrutura dos atos. […] A narrativa é o
princípio e, por assim dizer, a alma da tragédia, enquanto o caráter moral
não passa de secundário […] a tragédia é imitação da ação e é, sobretudo,
em virtude da ação que ela representa os agentes. Em terceiro lugar vem o
pensamento, isto é, a capacidade de dizer o que é pertinente e apropriado,
o que nos discursos formais é função da política e da retórica”.
Mas o que é ação? Simples: ação, em sua manifestação mais simples, é
movimento. Sim, em 1984 há diversas cenas (sequência das ações
consecutivas de uma personagem), porém as personagens de Orwell andam
para cima e para baixo, e não passa disso. A ação que nos interessa não é
somente o gestual “fez isto, fez aquilo”, mas toda uma inquietação interior
que move a personagem, tira-a da inércia. Ações sem sentido psicológico
levam a cenas sem sentido dramático ou estético, vazias. Tudo no texto
deve ter tom e efeito, já dizia Edgar Allan Poe em “Filosofia da
Composição”. Assim é com a própria ação ficcional. Vejamos outro trecho
de 1984:

“Tirou um cigarro de um maço amarrotado onde estava escrito


CIGARROS VICTORY e imprudentemente segurou-o na vertical, o que fez
com que o recheio de tabaco caísse ao chão. Na tentativa seguinte teve
mais sorte. Voltou para a sala de estar e sentou-se junto a uma mesinha
que ficava à esquerda da teletela. Abriu a gaveta da mesa e tirou um
porta-penas, um vidro de tinta e um caderno grosso, formato inquarto, sem
nada escrito, de lombada vermelha e capa marmorizada.”
A maestria da técnica literária reside entre o dito e o não dito, nas
entrelinhas, na capacidade do escritor de sugerir em vez de explicar. Não
precisamos descrever todas as cenas como se fosse o quadro a quadro de
um filme. Às vezes é necessário dizer, mas Orwell não cansa de mostrar, e
mostra demais: a marca de cigarro, a “teletela”, o funcionamento dos
ministérios, mas não mostra o essencial. Suas personagens são meros
fantoches sem vida interior, empurradas para lá e para cá pelo ambiente. É
preciso uma profundidade maior, mais criatividade e critério no que é
mostrado; mesmo a tentativa de insinuar a angústia da personagem através
do tabagismo é um clichê.

Também é preciso simplificar. Simplicidade gera sofisticação. Para


entendermos esse simples fato, temos de conhecer um conceito de Roger
Scruton acerca de Estética:

“Belezas exorbitantes são menos importantes na arquitetura do que as


coisas que se encaixam apropriadamente juntas, criando um contexto
calmo e harmonioso, uma narrativa contínua como numa rua ou
quarteirão, onde nada se destaca em particular, e bons modos prevalecem.
[…] De fato, muita atenção na beleza pode prejudicar o objeto […] a
meta, em primeira instância, é se encaixar, não se destacar. Se você quiser
se destacar, tem de ser digno da atenção que clama.”

[“Beleza”, tradução de Carlos Marques, Ed. Guerra e Paz, Portugal]


No estilo de Orwell, encontramos o mesmo problema: imagens, adjetivos
ou ações que tentam se destacar demais e criam “barulho” no texto. As
imagens e descrições entram em guerra umas com as outras, gerando a
sobrecarga estética, ou, em outras palavras, informações esteticamente
desnecessárias para a obra. Com isso, o leitor corre o risco de não notar as
passagens verdadeiramente belas (quando há), pois elas não se destacam,
nem poderiam se destacar.

Na escrita, há uma regra quase lugar-comum: “não diga, mostre”. Porém,


assim que o artista a domina, descobre outra regra: diga o que não precisa
ser mostrado.

A ARTE E A BUSCA DA VERDADE


Por Paulo Cantarelli / 1 de abril de 2022
“A Filosofia é a busca da unidade do conhecimento na unidade da
consciência, e vice-versa.”

Olavo de Carvalho
Já me debrucei, anteriormente, sobre as problemáticas entre moral e ficção.
É dever moral do artista – afirmei no artigo “Arte Moral” – realizar uma
obra bem-feita, residindo a moralidade justamente no fazer bem, e a
imoralidade no fazer mal. Também expus que a moral é parte constitutiva
da própria Arte, mais precisamente sua causa material: assim como a argila
é a causa material do boneco de argila; para ser sucinto, os temas, as ideias
filosóficas, as percepções de mundo e cosmovisões são a causa material de
uma obra, seu conteúdo. Desse modo, toda a forma de uma obra de arte é
arquitetada justamente para melhor conter esse “algo” que lhe serve de
tema. Relembrando novamente Aristóteles, a matéria prima para a narrativa
é o deslizamento entre o vício e a virtude.

Contudo, pouco me alonguei sobre o tema “verdade e ficção”. Os ditos


estudiosos de literatura e arte sofrem de uma falsa dicotomia entre forma e
conteúdo, beleza e moralidade e, principalmente, beleza e verdade. Parece-
me – e aqui não sei se estou certo disso – que toda confusão mental da
modernidade remete, em algum grau, à bifurcação cartesiana, ou, como diz
o lugar-comum: “onde há emoção não pode existir razão”. Porém, posso
afirmar com total certeza que a maior parte dos erros filosóficos, ao menos
no que concerne meu campo de estudo, se dá por algum engano sobre as
causalidades aristotélicas, isso quando não é uma má compreensão de
essência e acidente, gênero ou espécie.

Há coisas que não se separam na realidade, a não ser por motivos didáticos:
ao confrontar forma e conteúdo na Arte, podemos exaltar mais um aspecto,
ora outro, para melhor examinar dialeticamente as propriedades de uma
obra. O problema ocorre justamente na premissa de que um anulará o
outro, ou o sobrepujará de modo antagônico. Ao nos depararmos com uma
obra “bem escrita”, mas sem conteúdo, feito carne sem sangue, estamos
diante de beletrismo puro e simples; já quando nos deparamos com uma
obra com muito conteúdo e nenhuma estrutura decente que o comporte,
estamos diante de um tecido adiposo inútil, sem ossos ou músculos. Em
ambos os casos, uma “sandice tópica”, como diria Nabokov.

Dito isso, não podemos nos esquecer que o Esteta, ou todo aquele que
pretenda sê-lo, deve ser um filósofo em sua natureza, sendo a Filosofia, nas
palavras do filósofo Olavo de Carvalho, é a “busca da unidade do
conhecimento na unidade da consciência, e vice-versa”. Enfatizo o
verbo buscar, pois esse processo nunca estará completo durante o tempo de
vida de um filósofo, ou de qualquer ser humano. A onisciência a Deus
pertence, resta ao homem perambular pelo pó em busca de algum sentido
que o guie. Nossas percepções, memórias e mesmo instintos, são de
natureza fragmentária; precisamos de um esforço constante para
mantermos o conhecimento do que sabemos, enquanto expandimos os
horizontes da consciência com novos dados adquiridos pela experiência,
seja ela real ou imaginativa. Tanto o Esteta, quanto o Crítico, quanto o
Artista precisam ter esse ideal de busca pela verdade, que se manifestará a
seu próprio modo em cada um dos campos de estudo.

Não sou Esteta, ainda, no sentido que não atingi o patamar de oferecer
alguma contribuição para o campo da Filosofia Estética; o sou com E
minúsculo, esteta, apreciador da Beleza, um dândi. Em suma: este que vos
fala não diz nada de novo nessa disciplina, e tem um longo caminho a
trilhar para construir “um pensamento próprio”, por assim dizer. Talvez na
velhice meus leitores vejam algum livro sobre o assunto, porém, no
presente momento, limito-me a explicar as teorias que assimilei e que mais
me parecem explicar a realidade concreta, não as que servem a uma mera
conveniência dogmática. Primeiramente sou um Artista que busca explicar
as coisas da maneira mais exata possível, seguindo o exemplo de Flaubert,
me valendo, ora ou outra, de alguma bagagem filosófica adquirida no
estudo da Estética, estudo esse muitíssimo benéfico e introdutório para
outros campos da Filosofia.

Nos lembra Benedetto Croce:


“Me parece que a Estética, quando é habilmente ensinada, introduz talvez
melhor do que qualquer outra disciplina filosófica à aprendizagem da
filosofia, não havendo matéria que desperte tão cedo o interesse e a
reflexão dos jovens, como a arte e a poesia […]. Os problemas da arte, ao
invés, conduzem mais fácil e espontaneamente não apenas a adquirir o
hábito da especulação, mas também faz antegozar a lógica, a ética e a
metafísica; porque, para não dizer mais, compreender a síntese a priori;
compreender a relação entre intuição e expressão é conseguir superar o
materialismo e o dualismo espiritualista; compreender o empirismo das
classificações dos gêneros é esclarecer a diferença entre o procedimento
naturalista e o filosófico; e assim por diante.”

Breviário de Estética, Benedetto Croce, p. 7, Edições 70, Lisboa, 2008


O estudo sério das obras de Arte e da Estética, com método, rigor e padrões
objetivos, serve ao intelecto como ponto de partida para campos mais
profundos do conhecimento. Uma obra de arte, por sua limitação, encerrada
em si mesma, favorece exercícios analíticos e dialéticos durante sua
investigação. É preciso, primeiro, compreender filosoficamente o objeto,
classificar-lhe gênero e espécie, reconhecer-lhe as causalidades, enquanto
avalia-se o objeto em si mesmo, recorrendo, em sua última etapa, à Crítica
para emitir um juízo de valor retoricamente, refinando também o apuro
linguístico do estudante sério. Em suma: a pedagogia da arte não se limita à
educação moral dada para crianças, pelo contrário, se estende a todo um
emaranhado de disciplinas mais palpáveis que abstrações metafísicas mais
complexas.

Escolher uma abordagem para o estudo da Arte nos põe um problema


metodológico ser resolvido, logo a princípio: qual a delimitação do objeto
que desejamos estudar, sob qual aspecto? Caso o estudante escolha
justificar as bases metafísicas de um gênero artístico, incorrerá para a
Filosofia; caso escolha investigar a evolução das obras ao longo do tempo,
para a História da Arte; caso deseje descobrir quais são os melhores ou
piores artistas de uma época, para a Crítica. Obviamente esses campos se
mesclam, se complementam, mas é preciso distinguir muito bem os meios e
fins utilizados no trabalho intelectual.

Por isso, um estudante sério jamais parte de premissas preconcebidas,


distorcendo os dados da realidade àqueles dogmas convenientes de que
falei: antes, é humilde e, diante de um novo fato que refuta sua hipótese
inicial sobre o assunto, reorganiza toda a estrutura de seu conhecimento na
consciência; e esta última exige total sintonia do senso moral, intelectual e
mesmo estético do indivíduo. É preciso que ela expanda e se adeque às
novas percepções da realidade, do contrário colapsa na tentativa de
conciliar o inconciliável.

Um bom crítico ou esteta, por exemplo, revisará constantemente seus


parâmetros em busca de falhas, injustiças ou incoerências; deixará de sê-lo
bom crítico a partir do momento em que, permitindo que a mentira venha
ao mundo, ignorar sua consciência moral ao não admitir ter errado em seu
juízo, tendo se confrontado com o erro. Tendo falhado honestamente, o
crítico age tão somente de acordo com sua própria consciência, e pode até
ser desculpado do equívoco em caso de arrependimento eficaz, isto é, a
autocorreção. A busca pela Beleza, na Arte, leva à busca da Verdade.
Aquele que se engana por mera ignorância, erra por falta de luz; quem
permanece no erro por vaidade é cego para a realidade.

MACHADO DÁ AS CARTAS
Por Paulo Cantarelli / 10 de maio de 2022
“Almost any story is almost certainly some kind of lie.”

– Orson Welles, em “F for Fake”


Muitos acusam Machado de burguesismo, de ignorar a “denúncia social”
(sacrilégio preferido dos engajados), ou de escrever sobre “personagens
baixas”, com temáticas mesquinhas e provincianas (blasfêmia dos
conservadores). Contudo, há coisas que transcendem o mero debate
ideológico. É preciso lembrar que a realidade fictícia sempre será fruto da
observação do autor sobre uma realidade factual; e acontece que a realidade
brasileira é assim mesmo: baixa, mesquinha, provinciana. Acusá-lo de ter
retratado apenas a camada burguesa da sociedade, supostamente ignorando
os problemas sociais de seu tempo, ou dizer que ele escreveu “pequenas
obras-primas” por não tratar de temas “elevados”, é no mínimo uma
completa falta de sensibilidade estética, para não dizer pequenez de
espírito.

Toda a grandeza de uma obra depende do trato artístico; do contrário


qualquer idiota que pintasse “A Última Ceia”, cena muitíssimo elevada,
seria um gênio incontestável. Se o artista não pôde escolher nascer no
monte Parnasso, pelo menos que tenha retratado aquilo que conhece da
melhor maneira possível. O retrato artístico não é registro: enquanto este é
documental e histórico, aquele é uma recriação livre e sem compromisso
factual com a História e seus meros tipos, portanto supra-histórico e
arquetípico. Reduzir a arte a um mero registro utilitário é negar toda a
grandeza e todo gênio, negar à arte o que é propriamente dela. A
universalidade machadiana reside justamente no fato de que o artista
ultrapassou a casca do tempo, da sociedade, e atingiu a essência do
Humano. E uma dessas condições universais atingidas por Machado é
justamente o engano.

Neste terceiro artigo sobre a trinca de ouro dos contos machadianos, “A


Cartomante” chega para nos ajudar a compreender o melhor da técnica do
autor. Talvez o maior elemento em comum entre os três contos – “A Missa
do Galo”, “A Causa Secreta” e “A Cartomante” – seja a temática do
engano; o engano como um todo, sina nacional, indo além do óbvio
adultério, outro motivo [motif] que permeia as narrativas de Machado.

Em “A Cartomante”, nem tudo é o que aparenta ser, e Machado escolhe um


momento aparentemente inocente para dar início à narrativa: o encontro de
um casal.

“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que


sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao
moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria
dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o
fazia por outras palavras.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que
fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe
dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: ‘A
senhora gosta de uma pessoa…’ Confessei que sim, e então ela continuou
a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo
de que você me esquecesse, mas que não era verdade…”
Apesar de alguns deslizes no uso do narrador, que destoa do corpo da
narrativa (Machado por vezes utiliza um tipo intrometido, que talvez
pretendesse retratar o ponto de vista de Camilo), o momento de abertura
aparenta ser apenas o encontro de um jovem casal, e a moça, Rita, temendo
que o namorado a esquecesse, desata a falar de suas angústias. Machado
flerta com o melodrama, com o lugar-comum, mas isso serve apenas para
plantar sutilmente as primeiras pistas de que a situação não era tão simples
assim:

“Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe
queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso,
quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois,
repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela
podia sabê-lo, e depois…”
Após resumir todo o melodrama possível do encontro através de um
discurso indireto (isto é, que poderia ocorrer nas mãos de um mau escritor),
Machado cita, pela primeira vez, o nome do marido de Rita, Vilela, através
de um discurso indireto livre. Detalhe que passa despercebido pelo leitor
num primeiro contato com texto, mas que adiciona uma pitada de
causalidade – palavra tão querida por Aristóteles –, que dá unidade e
verossimilhança ao texto.

A seguir, mais um detalhe, uma sutileza de nosso mestre enganador: ele


retorna para o diálogo direto após o discurso indireto livre, de modo que
gradualmente retornamos ao calor da narrativa, evitando longos diálogos
inverossímeis e líricos. Rita responde em discurso direto a frase de Camilo
em indireto livre:

“Vilela podia sabê-lo, e depois…

— Qual saber! Tive muita cautela, ao entrar na casa.

— Onde é a casa?”
Desta forma, temos a seguinte montagem:

1. Diálogo direto [Ria, ria. Os homens, etc.]

2. Cena [Camilo pegou-lhe nas mãos, etc.]; 2.1 Discurso Indireto [Jurou
que lhe queria muito, etc.], 2.2 Indireto livre [Vilela podia sabê-lo, etc.]

3. Diálogo direto [Qual saber!, etc.]

O jogo se repete nos parágrafos seguintes e também é utilizado pelo


escritor em outras obras. Corro o risco de soar repetitivo, mas é preciso ser
enfático: novamente, Machado afasta o melodrama típico do encontro entre
amantes, que é ótimo para árias de óperas românticas de
Verdi, lieder alemãs de Schubert, mesmo as sopranos esgoeladas de
Wagner, mas que é sempre péssima literatura. O afastamento do que é
narrado, através da mudança de discurso direto em primeira pessoa para o
indireto em terceira pessoa, foi a forma perfeita para o conteúdo retratado
no conto. Frieza propicia a estética; e isso tem de estar em mente quando se
trata de Machado de Assis, pois é nisso que consiste sua força, nas
melhores obras. Já suas piores obras pecam justamente quando falta essa
sutileza, a exemplo do conto “O Machete”, que apesar de certa
originalidade, cai na exaltação lírica.

Os únicos detalhes repreensíveis de “A Cartomante” são as pequenas


intromissões do narrador que, se tivessem sido um pouco melhores
elaboradas, poderiam estar perfeitamente alinhadas com o ponto de vista do
protagonista, Camilo. São algumas dessas intromissões:
“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que
sonha a nossa filosofia.[…]”

“Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe
que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. […]”

“Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se.”

“Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação


das origens. Vamos a ela.”
Tais passagens quebram o sonho ficcional: lembramo-nos que estamos
lendo uma narrativa. Machado infelizmente chega ao ponto de fazer uma
citação, em italiano, da clássica frase do Don Giovanni, na ópera de
Mozart: “Odor di feminina” (recitativo da cena II do ato I, aos interessados,
logo antes da ária “Ah, chi mi dice mai”, de Donna Elvira). Felizmente as
citações se limitam ao Hamlet e ao libreto de Da Ponte…

Apesar disso, Machado, como mestre enganador, consegue suprir essas


falhas, tornando o restante do conto praticamente irrepreensível. Não me
repetirei aqui com relação ao que já escrevi anteriormente sobre narradores,
mas, tecnicamente, basta saber que há uma discrepância muito abrupta
entre o espaço narrado e o espaço de quem narra; esse é um dos motivos da
necessidade de imparcialidade do narrador. “Cuido que ia falar, mas
reprimiu-se”, quem cuida? Quem fala? Quem está pensando?
Definitivamente não é uma das personagens. O uso do narrador onisciente
relator, que não opina e ainda impede que as opiniões do autor se
manifestem diretamente no texto, serve justamente para dar mais
dramaticidade e verossimilhança às cenas, enfatizando a ação, o drama. Se
o autor tem determinada visão de mundo que lhe é peculiar – como, de
fato, creio que todos os escritores tenham –, ela se manifestará não pelo
discurso direto do narrador (que agiria como uma espécie de alter ego do
escritor), mas através do que ele mesmo, autor, escolheu mostrar; ele deve
ser, como dizia Flaubert, feito Deus no Paraíso: após criar o mundo, se
retira dele, no sétimo dia, e ainda assim está em toda parte sem ser visto em
parte alguma. A marca autoral se manifestará pela boca das personagens,
em diálogos ou monólogos, e ainda em níveis mais sutis da narrativa, na
escolha dos temas, na montagem das cenas, mas nunca de maneira didática
ou em sua própria voz. Nos diz Aristóteles que aquele que narra em sua
própria voz não age como artista da imitação e, sendo o contista um artista
da imitação, a regra permanece igualmente válida.

Após um pequeno lapso na primeira frase, Machado brilhantemente realiza


um monólogo em falsa terceira pessoa, alinhando a voz do narrador com a
perspectiva de Camilo:
“Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as
ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um
arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos
desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e
ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os
ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação
total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não
possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque
negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do
mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.”
Basta uma pequena transposição para constatar a técnica: “eu não
acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só
argumento: limitava-me a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda
afirmar, e eu não formulava a incredulidade; diante do
mistério, contentei-me em levantar os ombros, e fui andando.”

Após isso, Camilo vai embora do encontro e passa na frente da casa da


cartomante:

“Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa


da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela
seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra
a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo
preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No
princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama
formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de
advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a
bordo recebê-lo.”
Machado, outra vez parece não saber exatamente como prosseguir a
narrativa e se utiliza do narrador intrometido para explicar a transição do
caminho que seguirá, porém, uma mudança de tempo narrativo através
do corte da cena (elipse) para o flashback (analepse) teria sido mais
eficiente. Camilo olha a casa da cartomante enquanto vai embora e lembra
de Vilela:

“Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa


da cartomante.
Camilo e Vilela eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de
magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que
queria vê-lo médico, etc.”

Teria sido uma solução mais simples, sem recorrer ao narrador intrometido
ou a explicações, pois a mente humana muitas vezes opera por associações
sem lógica aparente, então, nada mais natural que a mente da personagem
também seguir o mesmo padrão. O leitor entenderia. A despeito desse
detalhe, somos presenteados com um brilhante jogo de tempos narrativos:
Machado dá as cartas e dispõe os acontecimentos com sutileza, de modo
que nós, leitores, mal podemos vislumbrar onde tudo vai dar. O autor,
então, cria uma narrativa indireta, voltando no tempo e dando toda a
cronologia necessária ao leitor para que se entenda a situação dramática:
amigos de infância separados pelas circunstâncias, mas que tempos depois
se reencontram e voltam a conviver. Somos poupados das partes chatas da
vida e vemos apenas o que realmente interessa:

“Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo


recebê-lo.

— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como


meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.”


E que ternura, que amizade: Camilo não hesitará em pôr um par de chifres
no amigo. A ironia machadiana… Pouco em pouco, ele se enamora da
mulher do outro, que sai de “uma dama formosa e tonta”, para algo um
pouco mais elevado no conceito do rapaz:

“Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não


desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos,
olhos cálidos, boca fina e interrogativa.”
Assistimos a gradual transformação do “ingênuo na vida moral e prática”
num imoral pela prática, por pretexto a morte da mãe:

“Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu


a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se
grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do
inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria
melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca.”


Camilo se enganava mais uma vez, pois o narrador nos mostra
exatamente como chegaram ao amor:

“A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua


enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e
bonita. […] Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios.
Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal,
— ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a
ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os
dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as
atitudes insólitas.”
Machado demonstra ter consciência de que trata de um tema lugar-comum,
como eu disse anteriormente, e, através de uma ironia dramática sutil,
evidencia a vulgaridade com que a narrativa flerta:

“Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e
foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os
olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou,
pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez
passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo.
Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.”
Embora a menção ao carro de Apolo destoe um pouco, é admissível que
esse fosse um pensamento de um jovem romântico do século XIX, sendo
um uso mais razoável que as citações diretas de Shakespeare ou Da Ponte.
Uma solução seria ter mencionado, en passant, que a personagem
consumira as obras citadas, então não haveria dúvidas em relação ao ponto
de vista. Quanto ao carro de Apolo, a escolha beira o mau gosto, mas não
chega a sê-lo. Machado prossegue no flerte com a vulgaridade e termina
optando por uma manobra arriscada, porém mais bem-sucedida, ao
descrever a primeira relação carnal entre os amantes:

“Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma
serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos
num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e
subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas
a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou
que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços
dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem
padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um
do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.”
O símile da serpente resume as cenas de sedução e os sentimentos de
Camilo, encurralado por uma mulher mais velha e mais experiente, ele
mesmo, porém, tentado pela luxúria. A cena de sexo, claro, implícita no
“mas a batalha foi curta e a vitória delirante”. E Machado, novamente,
parece zombar do romantismo: “e aí foram ambos, estrada fora”. Faltaria
apenas um ‘e viveram felizes para sempre’, mas, claro, felicidade nunca fez
boa literatura. Algo haverá de acontecer para turvar a felicidade
extraconjugal: eis que, sem perder sequer duas linhas com os pormenores
do adultério, nos deparamos com uma reviravolta; surge uma carta
anônima.

“Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve
medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de
Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era
uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências
prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse
também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os
obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.”
Começam as mudanças de rumo no enredo, ainda que para um todo
previsível (o que não é o mesmo que óbvio): a traição será descoberta.
Mais uma vez, o tema do engano retorna de maneira leve, na forma de
outro autoengano: Camilo, vendo a imoralidade dos próprios atos, prefere
afastar-se de Vilela não apenas para não ser pego, mas para não quebrar a
própria imagem que tem de si. Após isso, retornamos na cronologia para
onde o conto começou:

“Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante
para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo.
Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz
repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas.”
Agora podemos perceber com mais clareza a montagem estrutural do
conto: Machado embaralhou a ordem dos fatos, de modo que começamos
não pelo início da narrativa, mas pelo meio. Estamos em plena ação
ascendente, depois retornamos ao começo da estória para entendermos
melhor o que se passa, conforme a estrutura no diagrama abaixo:
Em ordem normal, a narrativa seria: 1. Apresentação > 2. Conflito > 3.
Resolução.

Então, esta é a ordem cronológica dos acontecimentos apresentados no


primeiro e segundo ato do conto:

1. Camilo e Vilela eram amigos de infância [cerca de


1850, estimando pela idade das personagens];

2. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no


funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico [cerca de
1860];

3. No princípio de 1869 , voltou Vilela da província, onde casara com uma
dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de
advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a
bordo recebê-lo.

4. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis

5. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde.

6. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos.

7. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à


cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de
Camilo.

8. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa
sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na
véspera consultar uma cartomante.

É possível notar, ao examinar em mais detalhes a cronologia do conto, que


a ação principal – em que ocorre o adultério – acontece num período de
poucos meses no ano de 1869. Após a consulta de Rita na cartomante e
algumas cartas anônimas enviadas a Camilo, Machado, plantando as
causalidades que tornarão o final mais verossímil, antecipa o desfecho
(prolepse): “[Camilo] temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a
catástrofe viria então sem remédio.”

Os temores das personagens começam a se mostrar verdadeiros, pois “daí a


algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como
desconfiado”, e, por fim, Camilo recebe um bilhete de Vilela, confirmação
da catástrofe: “vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”.
Pouco depois, a recorrente ironia com o melodrama inerente ao enredo:

“Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e


lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete,
certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo.”
Machado adianta por completo o final da narrativa, mas, como ilusionista
que é, embaralha novamente as cartas e despista a plateia. Agora a ação
tomará uma forte carga de tensão psicológica, num longo solilóquio (para
as proporções do conto): o narrador mescla monólogos em falsa terceira
pessoa de Camilo, temeroso por seu próprio futuro, com cenas e cenários
que ‘conversam’ com o que se passa na cabeça dele, dando grande coesão
entre o espaço exterior (cenário) e interior (psiquê da personagem).
Vejamos como funciona a dialética entre ação externa [E] e ação
interna [I] nesta passagem:

“[E.1] Camilo ia andando inquieto e nervoso. [I.1]Não relia o bilhete,


mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o
que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz
de Vilela. ‘Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.’ Ditas
assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já,
para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a
minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo.
Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando
que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois
rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e [E.2] seguia, picando o passo, na
direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e
mandou seguir a trote largo.

[I.2] ‘Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim…’

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava,


e ele não tardaria a entestar com o perigo. [E.3]Quase no fim da Rua da
Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma
carroça, que caíra. [I.3]Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e
esperou.”
Eis que Machado puxa uma carta já apresentada anteriormente: a casa da
cartomante. Reitero a importância desse tipo construção causal – a
antecipação de elementos que retornarão posteriormente – para a
verossimilhança do enredo. Muitas narrativas falham porque o autor não
tornou o desfecho crível com base nas possibilidades construídas ao longo
do enredo, e decidiu, de última hora, apresentar novos fatos, ou resolver a
situação com um deus ex machina, mais ou menos feito Eurípides, que fez
sua Medeia sair voando no táxi do Olimpo, a carruagem de Hélio, ao final
da peça, sem nunca ter levantado essa possibilidade. Não reclame comigo
pela crítica negativa a um clássico grego: Aristóteles fez exatamente a
mesma crítica a Eurípides, ao dizer que o desfecho de uma narrativa deve
emergir da própria narrativa, e não como “em Medeia” (Poética, linha
1454b1, cap. XV). Em outras palavras, o final deve ser sempre lógico e
satisfatório, ainda que com reviravoltas, surgindo das potências plantadas
ao longo do enredo e possuindo vínculo causal (isto causou aquilo).

Deixando os gregos de lado e voltando à carta na manga do Bruxo do


Cosme Velho:

“No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do


tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e
nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas
fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos
do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.”
Retornam, junto com a cartomante, os temas e motivos: destino,
superstições familiares (herança da mãe de Camilo), autoengano (desta vez
na forma de wishful thinking, ao desejar que as superstições sejam
verdadeiras), o melodrama e mesmo a já referida frase de Hamlet:

“Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do


marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: ‘Vem, já, já…’ E
ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas
queriam descer e entrar. Camilo achou-se diante de um longo véu opaco…
pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe
repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do
príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: ‘Há mais cousas no céu e na
terra do que sonha a filosofia…’ Que perdia ele, se… ?

Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e


rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. ”
Machado desvira carta por carta, nos mostrando o que já foi apresentado
anteriormente, desta vez com novos truques. O alinhavo da trama corre
cada vez mais justo e somos introduzidos num novo cenário quase místico:
a casa da cartomante. O cenário físico-psicológico materializará as
inquietações e superstições que, antes, estavam dormentes na psiquê de
Camilo. É deste modo que os grandes artistas dão subjetividade a
descrições objetivas, na escolha de cada detalhe em consonância com o
drama mostrado:

“A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso.


Trepou e bateu. […] Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que
ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada
ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal
alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos
trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que
destruía o prestígio.”
Segue-se uma longa cena, em que o jovem consulta a cartomante. Agora, a
aura onírica se reflete em cada detalhe do texto, como se a personagem
estivesse no oráculo de Apolo, em Delfos, buscando vaticínios. A
comparação não é arbitrária, pois há um símile direto da cartomante com e
a sibila, profetisa da antiguidade clássica. Porém, ironicamente, ao
contrário da pitonisa, que falava apenas a verdade aos heróis das tragédias
gregas, a cartomante de Machado diz apenas mentiras: “ela declarou-lhe
que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro;
ele, o terceiro, ignorava tudo”. Camilo desperta após o toque da “sibila”:

“— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato… E de pé, com o dedo


indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da
própria sibila, e levantou-se também.”
Então retornamos, com Camilo, ao seu estado de realidade normal. Por
mais alguns breves parágrafos, ele tem a paz de espírito restituída pela
cartomante, igual a Rita, no início do conto. A narrativa adquire um
andamento mais leve e calmo: nem a tensão e rapidez da cena do percurso
na carruagem, nem a lentidão e mistério da consulta da cartomante. Na
segunda metade do conto, saímos de um estado de realidade pessimista,
desesperado, para uma realidade mística e onírica, por fim, retornamos ao
mundo romântico e otimista, similar ao início do relacionamento entre
Camilo e Rita:

“A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas


felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo
olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu
dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo,
interminável.”
Camilo sonha com o futuro apenas para, nas últimas linhas do conto,
Machado revelar sua última carta: a grande ironia.

“Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de


ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus
de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe
Vilela.

— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e


foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um
grito de terror: ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e
ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver,
estirou-o morto no chão.”
Por fim, temos a “vida real” batendo à porta, a realidade que finalmente se
concretiza, após ameaçar a fantasia de Camilo com as cartas anônimas.
Menos melodramática e exaltada que na imaginação, revela-se abrupta,
sem pranto inútil nem lamentos: dois tiros de revólver, Camilo cai morto no
chão. Não há do que se reclamar, Machado mostrou tudo e nos enganou
conforme as regras.

A ARTE IMORAL DOS CONSERVADORES


Por Paulo Cantarelli / 31 de agosto de 2022 
Para Priscila, que me deu a chave que faltava.

Dizia-se, nos velhos tempos, que todos os anos Thor circundava a Terra-
Média, derrotando os inimigos da Ordem. Ele envelhecia, ano após ano, e
o círculo ocupado pelos deuses e homens minguava. O deus da sabedoria,
Odin, foi até o rei dos ogros, o imobilizou numa chave de braço e exigiu a
resposta para como a Ordem triunfaria sobre o Caos.

– Dê-me seu olho esquerdo – disse o rei dos ogros, – e lhe direi.

Sem hesitar, Odin arrancou o olho esquerdo.

– Agora me diga.

O ogro respondeu:

– O segredo é prestar atenção com os dois olhos.

On Moral Fiction, John Gardner


GUERRA CONTRA O CAOS

Didatismo e verdadeira arte são imiscíveis, nos diz John Gardner em seu
clássico “On Moral Fiction”. Além disso, ninguém nos garante que o
didatismo será moral. A arte moral – aquela fiel a suas leis integrais e
tradição, e que, por outro lado, promove a moralidade através do confronto
entre o observador e o “conteúdo” retratado – põe a prova valores e suscita
sentimentos verdadeiros sobre o melhor e o pior da ação humana.

Como escritor, acredito no poder moralizador da Arte. Ela ensina, não pela
força da imposição do autor, mas através do hábito da contemplação e
reflexão do leitor. Não escrevo, nem jamais escreverei, algo que julgasse
falso ou mau, cujo balanço moral não trouxesse uma ordem superior em
face à morte e ao desespero. Ao menos, creio, é isso o que as grandes obras
nos mostram. Quando homens valorosos e bons, ainda que não sejam
grandes, se corrompem, tornam-se o maior dos tiranos; e quando os
grandes homens falham ao tentar feitos grandiosos – descomunais até para
si mesmos – a isso chamamos de tragédia. As ações de uma narrativa
somam-se ou subtraem-se e, como resultado, o acabamento da forma
termina por restaurar o equilíbrio moral. O destino trágico – a morte – é um
sacrifício necessário para a renovação do mundo ficcional; a forma dotada
de beleza, através da contemplação estética, se torna um fator de redenção
em nossas próprias vidas, uma chama face a treva e ao caos da destruição
do mundo. Arte destituída de suas bases metafísicas não é arte; tampouco o
é quando destituída de seus elementos formais. Em Arte, não há forma sem
conteúdo e vice-versa: a bifurcação cartesiana logrou não só ciência e
filosofia, mas também as artes. E para livrar-se do engodo, é preciso prestar
atenção com os dois olhos.

Mas a dita direita brasileira, além de caolha, é míope e escolhe enxergar


apenas conteúdo mais epidérmico. Ao ver suas próprias ideias
superficialmente refletidas no texto – ou aquelas para as quais é mais
simpático – imediatamente anuncia estar diante de uma grande obra.
Reclama que a arte moderna se tornou ideológica, quando a ideologia
retratada não é, nem nunca foi, o problema, mas, sim, a falta de tratamento
formal: a forma faz com que o conteúdo transcenda a ela mesma, tornando-
o universal, compreensível e aprazível a homens de todas as épocas,
sociedades e línguas.

Aliás, por que não falar da esquerda, criticar seus autores com mais ênfase?
Por dois motivos. Primeiro, pelo simples fato de que a argumentação – para
não dizer debate – é impossível: a inteligência esquerdista já foi corroída
por ideologias e histerias a ponto que não se discute mais a realidade. A
direita – mesmo em seu espectro político, de liberais a conservadores –,
ainda que esteja aquém do debate estético, tende a concordar que há
ciências e artes que transcendem a mera política do dia, ideologias e
mesmo dogmas religiosos. Segundo, porque as obras da esquerda, no geral,
caíram de nível, mas algumas das que chegam a premiações não são tão
ruins quanto as obras dos conservadores. Não digo que prestem, mas são
menos piores. Essas afirmações são severas, mas não as faço por aversão;
aquele que tiver ouvidos, ouça.

Tendo em vista o que considero como arte imoral, não a concepção tacanha
de arte cujo conteúdo seria despudoradamente imoral, chega de abstrações.
Não tome o leitor minhas palavras por mera retórica inflamada:
adentraremos, neste e nos próximos ensaios, num pequeno museu
patológico do que vem sendo publicado no espectro conservador da direita;
em específico, espécimes da “plêiade de gênios” posta em circulação pelo
filósofo Olavo de Carvalho, cujas ideias empolgadas acerca de literatura,
embora não menos desastrosas, geraram um miríade de sintomas mórbidos.
Não tratarei de casos antigos que já examinei, feito o melodrama
“Claridade”, exemplar em inépcia literária a ponto de se classificar o autor
como daqueles que confunden el culo con las témporas, para utilizar a
expressão de uma das personagens de García Márquez.

CONSERVADORES IDEOLÓGICOS

Vejamos o primeiro espécime de nosso museu: “A Exemplar Família de


Itamar Halbmann”, de Diego Fontana. No prefácio, que o autor insiste em
chamar de prólogo – algo de se estranhar em alguém que, em tese, deveria
operar a linguagem com o máximo de eficiência –, encontramos uma
confissão de culpa:

Tentei, a princípio, fazer um exercício de imitação de estilo, emulando


deliberadamente a escrita de Balzac, e percebi, ao longo do tempo, como a
forma balzaquiana era perfeita para o meu objetivo maior: fixar no papel
um tipo humano com o qual me confrontei várias vezes durante o início da
minha vida adulta, um espécimen fácil de encontrar no meio jurídico e
universitário, o petista milionário, que vive do capital alheio, profere um
discurso radical, mas não se furta de adotar os valores e o estilo de vida
burguês.

Por obra do destino, competiu a mim, escritor iniciante, a tarefa de salvar


do esquecimento esta figura extravagante, conferindo-lhe, assim espero,
uma forma de imortalidade. Busquei em tudo ser justo, refreando minha
animosidade, a fim de cumprir a obrigação maior do poeta, nunca se
afastar da verdade.”
Não digo que admiração por Balzac seja crime contra a estética, mas
descaradamente imitá-lo ultrapassa o mero mau gosto. Além da modéstia
de se igualar a quem toma por modelo, o sr. Fontana admite aderir a certas
ideologias que nunca, creio eu, parou para analisar:

“A partir da primeira página presenciamos uma narrativa escrita com


receita balzaquiana mas com ingredientes brasileiros. O livro é um estudo
de costumes com o método do século XIX e a matéria-prima do século
XXI.”

Sinopse
Voltaremos ao mimetismo amador depois, façamos antes uma anamnese
das crenças implícitas no método que o autor diz aderir.

ANAMNESE DAS IDEIAS FEITAS

Por ora, é preciso nos debruçarmos sobre as implicações estéticas e


filosóficas das visões de uma literatura aos moldes balzaquianos. Foge ao
propósito, aqui, criticar a escrita de Balzac em seus pormenores; e creio
que não será preciso raciocinar muito para notar que, ao publicar mais de
90 romances em vida, ele não dava trato artístico a suas obras, nem teria
como fazê-lo. É exatamente isso o que observa o crítico Otto Maria
Carpeaux ao comparar o método flaubertiano com o balzaquiano:

A lentidão do processo da transfiguração artística em Flaubert não teria


sido, aliás, compatível com o espírito dramático que informa a obra de
Balzac. Flaubert tem a cabeça épica, sabe dar aos assuntos certa
permanência supra-histórica e supra-atual que Balzac, historiador de sua
sociedade, não possui. ‘Madame Bovary’ e ‘Un coeur simple’, mesmo
localizados exatamente em casas parisienses ou lugares da Normandia,
passam-se em todos os tempos e países da história e do mundo. A distância
entre as pessoas e fatos reais que forneceram o assunto ao romancista, e
os personagens e acontecimentos do plano novelístico é incomensurável.
Essa ‘distância épica’ é resultado do estilo de Flaubert.

História da Literatura Ocidental, Volume III, página 1780; 3ª edição,


Edições do Senado Federal
Já tratei do confronto entre os dois métodos em “Os Olhares de
Salammbô”, parte X, e expliquei por que o método flaubertiano é o mais
eficiente para fins artísticos. Não pretendo me repetir quanto ao que já foi
dito, mas é preciso se ter em mente os conceitos aristotélicos de universal e
particular expostos anteriormente, que conferem aos assuntos aquela
permanência supra-histórica e supra-atual. Examinemos com mais atenção
o método balzaquiano:

Balzac tem um método cuidadosamente elaborado – isso o distingue de


Dickens – para dominar aquele turbilhão urbano. Dickens escreve
reportagens, integrando-as até formarem histórias de tamanho
considerável. Os romances de Balzac são, em geral, muito mais curtos: ele
tem uma visão global da sociedade burguesa, decompondo essa visão até
resultarem monografias de tamanho reduzido, mas dizendo tudo sobre
certo bairro, certa profissão, certa classe. Balzac é um classificador,
‘o Linné da burguesia’. A própria composição da Comédie
Humaine explica-se assim: depois de ter escrito certo número de
romances, Balzac reuniu-os conforme um sistema de estática sociológica,
e começou a escrever mais romances sociais para ocupar os lugares
ainda vazios do esquema. À estática juntou-se a dinâmica: da província
para Paris há um movimento contínuo no sendo de industrialização e
aburguesamento; e na própria Paris esse movimento continua, como
descida de classes decadentes e ascensão de elementos novos. O meio para
simbolizar esse movimento social é a volta de certos personagens,
aparecendo em vários romances em lugares diferentes da hierarquia
social. Eis o cimento da construção literária da Comédie Humaine. Quer
dizer, os personagens de Balzac, além de serem caracteres humanos, são
tipos sociais, representando categorias inteiras da sociedade.

História da Literatura Ocidental, Volume III, página 1720; 3ª edição,


Edições do Senado Federal
O que isso tem a ver com literatura, Carpeaux não se dá ao trabalho de
explicar, tampouco parece saber a diferença entre arte e registro ao, no
mesmo livro, enaltecer Balzac pelo registro e desdenhar de Flaubert pela
arte. Mas algo é digno de nota sobre as observações do austríaco. Ao leitor
que não saiba o que os termos em evidência significam – estática social,
dinâmica, movimento contínuo –, são terminologias do positivista Auguste
Comte, que cunhou o neologismo, à época de Balzac, sociologia. Nos
explica Stuart Mill, em seu “A Lógica das Ciências Morais”:

As Leis Empíricas da Sociedade são de dois tipos: umas são uniformidades


de coexistência, as outras de sucessão. Conforme a Ciência se ocupe em
estabelecer e verificar o primeiro ou o segundo tipo de uniformidades, o
sr. Comte dá a ela o título, ou de Estática Social, ou de Dinâmica Social,
de modo correspondente à distinção, em mecânica, entre as condições de
equilíbrio e as condições de movimento, ou, em Biologia, entre as leis da
organização e as leis da vida. O primeiro ramo da ciência estabelece as
condições de estabilidade na união social, a segunda, as leis do progresso.
A Dinâmica Social é a teoria da sociedade considerada em um estado de
progressivo movimento e a Estática Social é a teoria do já referido
consensus existente entre as diferentes partes do organismo social. Em
outras palavras, a Estática Social é a teoria das ações e reações mútuas de
fenômenos sociais contemporâneos, teoria que faz abstração, na medida
do possível e para propósitos científicos, do movimento fundamental que
sempre os modifica gradualmente.

A Lógica das Ciências Morais, ed. Iluminuras, 2020, p. 136-137


Ou seja, apesar de jamais ter utilizado a palavra sociologia, cunhada por
Comte em 1839, Balzac compartilha de sua ideologia em seu método
pseudoartístico; tratar homens com a ditosa indiferença de um pesquisador
com seus ratos de laboratório dificilmente seria considerado ciência, quanto
mais arte. Para a crítica francesa – Alain e Paul Bourget, por exemplo –
Balzac teria sido pioneiro da sociologia na busca por “decifrar seu mundo
contemporâneo” ou, sendo mais preciso, classificar e registrar a sociedade
de modo similar ao que Lineu fez com a taxonomia dos animais. A
abordagem zoológica, ou biológica, para o filósofo e economista Ludwig
von Mises, é justamente um dos problemas da ideologia naturalista,
encontrada tanto em Comte quanto em Balzac:

O naturalismo planeja lidar com os problemas da ação humana como a


zoologia lida com todos os outros seres vivos. O behaviorismo quer
apagar o que distingue a ação humana do comportamento animal. Nestes
esquemas, não resta lugar para a qualidade específica, o traço distintivo
do homem, a saber, o esforço consciente por fins determinados. Eles
ignoram a mente humana. O conceito de finalidade lhes é estranho. […]

As ciências sociais são comprometidas com a propagação da doutrina


coletivista. Não desperdiçam uma só palavra na impossível tarefa de negar
a existência de indivíduos ou provar sua vileza. Definindo como objetivo
tratar das ‘atividades do indivíduo enquanto membro de um grupo’, e
sugerindo que, nestes termos, cobrem tudo o que não pertence às ciências
naturais, as ciências sociais simplesmente ignoram a existência do
indivíduo. Na sua visão, a existência de grupos ou coletivos é um dado
irredutível.

O Fundamento Último da Ciência Econômica, pgs. 129 e 133, Vide


Editorial, 2017
Espero que esteja claro que, aqui, não nego “importância histórica” aos
escritos de Balzac, ou sua influência, ainda que acidentalmente benéfica,
sobre outros artistas. Tampouco questiono sua originalidade para temas e
situações dramáticas que, noutras circunstância, renderiam boa arte. O que
se põe em cheque é, primeiro, seu método e, segundo, sua cosmovisão.

O método balzaquiano cai fatalmente no erro de causalidade eficiente: o


autor escolheu fazer sociologia por meio do romance, quando poderia ter
facilmente utilizado outro gênero literário mais apropriado e eficiente para
tal. Ninguém em sã consciência defenderia que a abertura de “Ilusões
Perdidas”, com a descrição detalhada duma tipografia provinciana e suas
impressoras Stanhope, seria de grande interesse estético. Intelectual e
histórico, talvez, estético, nunca.

O segundo erro, a cosmovisão positivista, pode ser sintetizado na máxima


do naturalista Zola: “a arte deve imitar cientificamente a vida”. Não, a arte
não imita servilmente a vida: antes recria e transfigura a realidade. A
atividade do artista não se encerra na mera descrição de fatos, objetos,
cenários e tipos humanos; ela é uma revelação, do homem para o próprio
homem, sobre como ele age perante o universo – aqui compreendido para
além das leis da física e da matéria. Ao artista não cabe a explicação
profunda das estruturas da realidade, a construção sistemática do
conhecimento, isso cabe ao filósofo; a ele cabe a representação viva da
experiência humana e dos dilemas da existência na superfície e símbolo da
arte. Em outras palavras, a ele cabe a representação dramática de como o
homem age particularmente com relação a seu destino. É mediante o
destino particular do homem que a arte atinge o universal: não há, nem
poderia haver, peças sobre entidades coletivas, como uma classe ou
categoria. Ainda que o artista retrate algum grupo da sociedade, ou que
represente o ethos de um povo, toda ficção gira em torno da ação individual
das personagens, não da coletividade abstrata.

Um terceiro erro surge em decorrência das visões positivistas. Ao se


promover a arte para fins impróprios – sob pretexto de registro histórico ou
didatismo –, cai-se no utilitarismo estético: ignorando as qualidades
intrínsecas da obra de arte, é preciso justificá-la com a substituição de seu
fim imediato e metafísico pela instrumentalização de um fim mediato e
prático. Isso se dá, conforme nos aponta Mises, com o movimento de
substituição das ciências humanas pela sociologia positivista:

Numa época em que o prestígio da ciência ultrapassou em muito o da


literatura, e zelotes positivistas desdenhavam a ficção como um
passatempo inútil, os escritores tentavam justificar sua atividade
representando-a como um ramo da investigação científica. Na opinião de
Émile Zola, o romance era uma espécie de psicologia social e economia
descritiva, que deveria se basear na exploração meticulosa de instituições
e condições específicas. Outros autores foram além, e afirmaram que
apenas o destino de classes, nações e raças, e não o de indivíduos, deveria
ser abordado em peças e romances. Eles destruíram a distinção entre um
relatório estatístico e uma peça ou romance ‘social’.

Os livros e peças escritos de acordo com os preceitos desta estética


naturalista acabaram sendo obras de má qualidade. Qualquer escritor de
destaque que endossou esses princípios o fez da boca pra fora. O próprio
Zola foi muito comedido na aplicação de sua doutrina.

Teoria e História, pgs. 199 e 200, ed. Mises Brasil, 2014


Desde então, soa antiquado dizer que Arte não precisa de justificativas;
mas, de fato, não precisa. É nesse erro que incorrem os conservadores
brasileiros ao pregarem o didatismo (“educação do imaginário”) ou registro
histórico como fim último da arte.

Creio que o Sr. Fontana, em seu mimetismo servil, não tivesse consciência
das implicações da “forma balzaquiana” que julgou como perfeita para seu
“objetivo maior”, ingenuamente crendo se tratar essa forma de mero
capricho estilístico, como se o estilo não fosse resultado direto de uma
determinada cosmovisão, sujeita a ideologias de seu tempo e contexto
histórico. Vejamos o resultado do “estudo de costumes com o método do
século XIX e a matéria-prima do século XXI”.

ROMANCE OU RELATÓRIO ESTATÍSTICO?

Seria de bom tom analisar a página de abertura do livro, porém pouparei o


leitor do sacrifício. Resta dizer que o autor começa com um longo cenário,
com descrições vagas e sem estilo, tendo direito a menção de ex-prefeitos
de Curitiba. As futilidades se amontoam página após página, a ponto do
autor, no topo de sua superioridade moral – já que nos disse que “buscou
ser justo refreando sua animosidade” – nos descrever a família petista da
seguinte forma:

A essa família arquetípica opõe-se outra, minoritária, rica, de dinheiro


novo. Marido e mulher revestem-se de um verniz de cultura e zombam da
ignorância dos vizinhos. Vão ao teatro uma vez por ano, em março,
durante o festival; visitam as exposições do MON, mas não tão
freqüentemente; apreciam filmes franceses no Espaço Itaú Cultural;
dentro do carro ouvem MPB contemporânea, sintonizados na 97.1FM, a
emissora do governo estadual. Sempre votaram no 13, mas de uns tempos
para cá namoram o PSOL. Lêem o Veríssimo e o Paulo Henrique Amorim.
Odeiam a Veja, desprezam a Globo.
Se essa é a alta cultura olavete, não quero imaginar a baixa. Número após
número, informação em cima de informação, e eis que Fontana consegue
piorar o troço no capítulo 5, ao citar até mesmo a Constituição Federal de
88:

Seu Flávio legou um patrimônio superior a dois milhões e meio de reais.


Silvana Martins Halbmann herdou a fortuna em conformidade com o
inciso III do § 1º do art. 155, da Constituição Federal. Incidiu sobre a
herança a alíquota máxima de imposto, como estabelece a lei.

Itamar convenceu a esposa a comprar um terreno para a casa que


planejavam construir. O saldo restante foi aplicado no banco, em um
fundo de renda fixa, com previsão de rendimento anual líquido,
descontados os impostos, de aproximadamente 19%.

Ao longo de todo o livro, o Sr. Fontana escreve tão vexaminosamente mal


que não podemos distinguir se temos em mãos um romance ou,
precisamente, um relatório estatístico. É um efeito diametralmente oposto
ao obtido por Graciliano Ramos, quando prefeito de Palmeira dos Índios,
ao escrever um relatório tão literariamente rico que chamou a atenção dos
editores da José Olympio. Seria de se espantar que alguém aceitasse
publicar um folheto do feitio de “A Exemplar Família de Itamar
Halbmann”, fato justificável por ser o autor ser seu próprio editor. Não se
trata de má literatura, ou mesmo de subliteratura: o texto está abaixo do
jornalismo, pois pelo menos uma reportagem serve de material para a
crônica do historiador. O Sr. Fontana não escreve tipos reais, mas
puramente imaginários e inverossímeis; descreve um petista da mesma
maneira que um marxista descreveria um burguês, de modo meramente
caricato, unidimensional, como se ele pertencente a apenas um único grupo
da sociedade. Acontece que o homem real não pode ser atomizado,
pertencendo a apenas um único grupo, ocupando um único papel. O
homem age individualmente, podendo ocupar múltiplos espaços e papéis
dentro da sociedade. Pode ser, ao mesmo tempo, um pai de família, filho,
marido, empreendedor, membro do Partido Comunista e fiel da Igreja
Católica. O conflito entre os grupos, nos lembra Mises, “não é um conflito
entre rebanhos de homens perfeitamente integrados entre si; é um conflito
entre diversas preocupações nas mentes destes indivíduos” (Teoria e
História, p.185.).

Mas nada melhor que a ação pura – os bons e velhos diálogos – para
mostrar o que este livro é uma verdadeira obra prima do delírio humano:

— Ela tem deixado entrar qualquer um no mestrado! Uns caras nada a


ver, uns zé-ruelas, sem importância alguma. Não é assim que funciona!
Tem que cuidar, filtrar. A universidade é nossa a gente não pode deixar
entrar qualquer um! Deixa entrar essa molecadinha metida a besta, cheia
de teoria, e depois dá merda lá na frente. […]

O Bruxo continuou, […] a censura foi explícita:

— Vocês têm que entender uma coisa: foda-se a tese, foda-se o “valor
acadêmico”! — acentuou as duas últimas palavras com uma nota de
deboche, fez um sinal de aspas com os dedos no ar — A maioria é uma
merda mesmo. Então que se foda! Que-se-fo-da! Entendam que a
universidade não é neutra, cara. A universidade é um instrumento na luta
de classes; é um aparelho reprodutor da ideologia da classe dominante;
precisa ser tomada pelas forças populares.

Itamar ouvia quieto, aprendia, aguardava instruções. Considerava-se fiel,


não era um homem com tendências cismáticas. Ousou perguntar:

— O que ela tem que fazer, então? Eu falo pra ela.

— A coisa é simples, porra. Se for dos nossos, aprova, se não for, não
precisa nem ler, caralho. Não pode ser boazinha. Direito natural, Tomás
de Aquino, Aristóteles, essa bobajada toda, reprova na hora! — vituperou
entre os dentes, para não ser ouvido por mais ninguém.

Trata-se de um diálogo expositivo – recurso barato, utilizado por aqueles


que não conseguem demonstrar os temas através das ações das personagens
–, com meia dúzia de gatilhos verbais para agradar a olavetada, sem nexo
com a realidade. Que mundo é esse em que um petista confessa incessante
e descaradamente suas intenções e ações mais ocultas? A aura de hipocrisia
dos esquerdistas reside justamente no abismo entre a experiência e o
discurso, de modo que eles jamais admitem, mesmo que internamente, os
reais motivos de suas ações. A histeria vem dessa inversão tácita dos
valores, atuando sobre eles mais ou menos como o feitiço das bruxas de
Macbeth: bom é mau e mau é bom. O autor mirou no tipo meramente
transitório, o petista, e perdeu do horizonte o arquétipo universal: o falso.
Este, nos diz Scruton, é uma pessoa fabricada, que se moldou para ocupar
uma posição social que não lhe seria, de outro modo, natural. Porém, essa
falsidade não deve ser confundida com simples hipocrisia: o falso acredita
nos próprios ideias, pois, do contrário, não poderia agir tão
descaradamente. Reitero: retrato esboçado pelo Sr. Fontana não é sequer
possível, quanto mais verossímil. Nasci e me criei no Nordeste, mais
especificamente em Pernambuco, terra que nas últimas décadas tornou-se
infestada por pragas socialistas, conheci inúmeros petistas militantes:
professores universitários, estudantes, padres da Teologia da Libertação,
médicos, concursados, membros de MST, mas nunca vi o tipo descrito por
Fontana andando por aí. Todos os falsos se enganam, mas cada um à sua
maneira.

PRESTAR ATENÇÃO COM OS DOIS OLHOS

Além desses problemas, há outro fator que impede “A Exemplar Família de


Itamar Halbmann” ser considerado arte: o didatismo. Não é um romance –
ou novela, conforme queira o autor –, trata-se de mero panfleto para ideias
distorcidas que vagamente lembram as ideias de Olavo de Carvalho, a
quem o autor dedica o livro. Mas não basta dedicatória, é preciso bajulá-lo
durante a própria narrativa. Durante cenas que pretendem retratar os
protestos que culminariam no impeachment de Dilma Rouseff, o autor não
nos poupa de slogans:

De repente, porém, a câmera focalizou um caminhão de som, carregado de


bandeiras, desfilando lentamente. Lia-se uma faixa com grande nitidez:

INTERVENÇÃO MILITAR CONSTITUCIONAL!

A cena causou rebuliço no sofá da família curitibana. Transbordaram de


ira santa. Todos falaram ao mesmo tempo, plenos de indignação. As
meninas estavam num estado incandescente, histérico, à beira da
desintegração mental. A transmissão cortou prontamente para outra
imagem, uma filmagem da perspectiva da rua. Via-se o rosto dos
manifestantes marchando sob o sol quente do Rio de Janeiro. Quase todos
se vestiam de amarelo. Ostentavam um sem-número de slogans em
cartazes. Dois puderam ser lidos:

FORA FORO DE SP

E logo em seguida:

#OLAVOTEMRAZÃO

Naquela época, bem me lembro, pessoas realmente saíram às ruas, alguns


poucos pediam intervenção militar, e, de fato, Olavo podia ter razão. Mas
isso não é arte, é um escarro proselitista que passa longe da essência das
coisas. Sr. Fontana é incapaz de adentrar no coração do homem, prefere nos
dar uma caricatura burlesca e fácil do que nos revelar o medo que faz o
homem cair no pecado, na mentira, que o faz se rebaixar da altura que
voam os anjos, à condição de porquinho da índia. “É verdade que eles
praticaram atos vergonhosos”, nos diz a Compadecida, de Suassuna, “mas é
preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne
implica essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era
por medo. Eu conheço porque convivi com os homens: começam com
medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É
medo”. O homem erra, pois é de sua natureza ser falível; por pior que ele
seja, ou seus pecados, ele ainda continua um homem. Somente um grande
artista consegue ver além das aparências.

Frases feitas e caricaturas filosóficas agradam os tolos e rendem aplausos.


O didatismo da direita, instrumentalizando a arte para propagar as
ideologias de seu próprio grupo, é uma imoralidade. Não se combate má
ideologia com má arte igualmente ideológica. A esquerda pôs a perder um
século de tradição literária no Brasil, mas querer combater o mal
utilizando-se do mal é entregar o olho necessário para derrotar os inimigos
da Ordem. A guerra cultural começa no âmago do artista, na luta contra sua
própria mediocridade. Mas aos inimigos da Ordem, não importa: basta
proferir falsas palavras. Nos lembra o poeta-filósofo Ângelo Monteiro:

A falsa palavra desfaz todas as pontes,


como também nivela os abismos
por não ter nada que salvar.
E por não ter nada que salvar
destrói toda poesia
dos discursos do homem sobre o mundo.
Ganhar a todo custo, mesmo confundindo
um viveiro de pássaros com a calmaria de um esgoto.

CULTURA NÃO É PARA TODOS


Por Paulo Cantarelli / 7 de junho de 2023 
“Um cínico é um homem que sabe o preço de tudo, e o valor de nada.”

– Oscar Wilde
Tudo o que é escasso é valioso; contudo, há produtos do gênio humano que
são inestimáveis: a Eneida de Virgílio, a Appassionata de Beethoven, o
Davi de Michelangelo, a Catedral de Notre-Dame de Paris, de anônimos
construtores para sempre eternizados em seu trabalho na pedra. Nenhuma
dessas obras, embora passíveis quantificação em ouro, podem ser medidas
na dimensão do espírito humano. Dinheiro algum compra a genialidade,
embora permita as condições materiais para desenvolvimento do talento; e
é estranho notar que justamente quando estamos mais abastados, quando
não falta conforto, informações ou meios de ação, não observamos o
nascimento de novos artistas, escritores, filósofos ou pensadores; ao menos
não os de alta estirpe. Em termos estritamente materiais, a civilização
nunca esteve melhor, em termos espirituais, nunca fomos tão pobres e
inférteis. E essa infertilidade é apenas sintoma de um mal maior.
Meus leitores conhecem bem os alertas que faço contra a
subintelectualidade insurgente que vem crescendo no Brasil, nos últimos
anos, pelas mídias sociais. Subintelectualidade numerosa, porém fraca e
autoritária; sendo esse autoritarismo fruto justamente de sua impotência
moral e mental, que se revela na tentativa impor suas pseudoideias
malformadas na base do grito e da histeria, não do livre-debate racional,
justo e ordenado. Embora se arrogue de possuir as qualidades mais escassas
do espírito humano — virtudes, maestria, inteligência, erudição — essa
subintelectualidade carece de feitos e obras que as comprovem. Quando
cobrada, tergiversa ou calunia quem lhes fez a cobrança. O Homo
Mediocris julga-se superior a todos, sem jamais precisar provar seu próprio
talento, ou ser consistente no que diz; muda de opinião como se mudasse
de roupa, opina sobre tudo, conhecedor do universo e além. Na realidade,
não é preciso ser coisa alguma, basta a manifestação verbal de certos
valores, o mero parecer e aparecer diante da plateia inapta. Onde quer que
se olhe — literatura, filosofia, economia — a investigação da realidade deu
lugar à retórica midiática. O surgimento do Homo Mediocris e sua
proliferação massiva só se tornou possível numa era de imediatismo e
hedonismo.

Quando me perguntam por que ando sumido do Entender Ficção, por que
não gravo mais podcasts ou vídeos, a resposta é simples: não sou blogueiro
(ou seu primo mais velho, já datado, o jornalista). Meu trabalho não é
agradar ao público, ou mesmo desagradá-lo; é simplesmente escrever as
melhores obras que eu puder, enquanto artista, ou, enquanto teórico,
investigar a veracidade da crítica literária e seus juízos de valor. Essa
tarefa, por si, não é acessível à maior parte da população, por vezes, nem
mesmo linguisticamente.  Num país com quase um terço de analfabetos
funcionais, não me espanto mais quando algum leigo não entende o que
estou dizendo — oral ou textualmente — sequer em nível sintático.
Quando algum objetor opera em nível semântico, já é quase um milagre;
resta, depois de entender o que digo, entender do que estou falando. No
mais das vezes, o pretenso entendido cria uma barafunda de interpretações
propositalmente confusas sobre o que foi dito, por vezes utilizando-se ele
mesmo dos argumentos que deseja “refutar”. Nessas situações, mais
abundantes do que eu gostaria de ter testemunhado em minha vida, resta
lembrar do sábio conselho de Virgílio a Dante, na Comédia: non ti noccia
la tua paura, não deixe que teu temor te tolha, ignore a confusão do
demônio e siga teu caminho. Ou, como bem traduziu Ítalo Eugênio Mauro,
“não discrepe tua mente da razão”, pois Pappe Satàn aleppe nada significa.
Esse é  apenas um dos  motivos pelos quais meu trabalho não é, nem nunca
poderia ser, voltado para as massas.
A Alta Cultura pode ser acessível a todos, materialmente falando: aquelas
obras inestimáveis podem ser virtualmente consumidas pelas pessoas de
qualquer classe social, de qualquer espectro político ou origem geográfica.
Isso não significa que serão compreendidas, tampouco que a mera
apreensão eleve o leitor ou apreciador ao patamar de quem as produziu.
Não hesitaríamos em meter na cela do hospício um psicótico que, por
conseguir cantarolar as cantatas de Bach, se julgasse o próprio Bach, mas,
por algum motivo, qualquer semiletrado, capaz de repetir Louis Lavelle ou
Olavo de Carvalho, é tido como autoridade de alguma coisa. Sendo esse
último pensador, aliás, responsável por arrebentar — além da extinta
hegemonia esquerdista — os juízos do populacho conservador.

Agrave-se à falta de recursos humanos o fato de as próprias pessoas, que


supostamente teriam inclinação para as ciências do espírito, não terem a
paciência e perseverança que o ofício demanda. Poucos são os que
aceitariam se dedicar anonimamente a uma arte a vida inteira, feito Kafka,
ou mesmo demorar anos, talvez décadas, para finalizar uma obra, feito
Michelangelo com a Capela Sistina. A essa preferência pelo longo prazo,
os economistas chamam de baixa preferência temporal, o seu oposto, a alta
preferência temporal (pelo agora) é típica do imediatismo de nossos dias.
Certa vez, fui abordado por um desses editores, à direita, que me perguntou
se eu possuía alguma obra pronta para publicação. Respondi que tinha
meus ensaios — aos quais ele recusou, vide serem ideologicamente contra
a má arte que tal editora pulica —, mas também lhe contei de um romance
que estava escrevendo. Após me pedir amostras do original, fez apenas dois
comentários: um “só isso?”, referindo-se às sessenta páginas do manuscrito
inacabado, e um comentário sobre ouvir Villa-Lobos (referenciado-se a
uma menção que fiz ao Choro Rasga-Coração, na epígrafe) ser “coisa de
veado”. Romance bom, segundo ele, se leria “ouvindo pagode e tomando
cachaça”. Não preciso dizer que não mantive a negociação após isso.

É preciso uma preferência temporal muito baixa, sem perspectivas de


retornos financeiros ou sociais de curto prazo, para escrever tinta que não
se apaga. Costumava ser comum que editores, feito um Maxwell Perkins,
dessem adiantamentos consideráveis de direitos autorais para que seus
escritores pudessem se dedicar a entregar as melhores obras possíveis; mas
esse tipo de relação está há muito extinta. Não fiz nenhum tipo de
exigência comercial, pois não tenho pretensão de querer que a Literatura
me alimente, mas talvez devesse ter feito, pois os editores brasileiros
pensam fazer grande favor aos autores por simplesmente publicá-los. No
Brasil, a inflação de medíocres em circulação sempre foi um problema para
os homens de gênio, nunca para o mercado editorial.
A alta cultura é cobiçada por muitos e integralmente acessível a poucos.
Alguns pagam um preço caríssimo para obtê-la, sacrificando algo mais
valioso que dinheiro: tempo de vida. Muitas vezes, como no caso de
Sócrates, a moeda foi o próprio sangue. Portanto, algo tão valioso não é,
nem poderia ser, adquirido nas mídias sociais, nos documentários ou vídeos
do youtube, nem em podcasts de massas. O único meio é metendo a cara
nos livros, refletindo e escrevendo, pois aculturar-se é cultivar uma vida
interior, educar-se no mais elevado sentido; e educação real é sempre um
processo ativo, nunca passivo.

Somente ao final de uma longa jornada — de crescimento moral e


espiritual  — pode o intelectual ou artista partilhar seus talentos com a
comunidade, a fim de multiplicá-los. Porque àquele que tem, será dado em
abundância, e daquele que não tem, até o que julgava ter será tomado. Um
conhecimento não partilhado perde-se nos confins da memória, uma
habilidade não praticada definha, a inteligência inutilizada, sem obras,
corrompe-se. Quando o homem age no ser (na beleza, bondade e verdade),
seus talentos se multiplicam e nada falta aos que lhe cercam. A verdadeira
Cultura, o cultivo dos valores mais sublimes, é uma caridade não só com
nosso próximo imediato, mas com as gerações futuras; como nos lembra o
Apóstolo: “ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não
tiver caridade (amor), sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que
retine”.

Os pobres de espírito jamais terão senão um vago vislumbre do que é ser


culto, pois desejam apenas o aspecto mais burguês da cultura: o da
ascensão social. Há escadas mais rápidas e mais eficientes para isso, do que
falar de livros, filosofia e literatura num país em que quase ninguém lê; e
quem lê, em sua maioria, mal entende o que está escrito. Utilizar a cultura
como meio de ascensão social é  para fracassados que não deram para nada
na vida, pois, caso já tivessem dinheiro e sucesso, é provável que nem
mesmo fingissem intelectualidade, e estivessem gastando melhor seu tempo
em viagens para Fernando de Noronha com alguma top-model de aluguel.

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