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COMO LER E O QUE LER

Paulo Cantarelli, 28 de maio de 2018

Diz Albalat em “A formação do estilo”: “Ler é estudar,


linha a linha, uma obra literária”, e a seguir reforça o que já
havia dito em “A arte de escrever em 20 lições”:
“Devemos ler autores cujo estilo pode ensinar a
escrever; e pôr de lado aqueles cujo estilo não ensina a
escrever. Depois, há autores de quem se pode e outros de
quem não se pode assimilar os processos. Devem-se ler os
primeiros, de preferência aos segundos.”
Ele também reitera em 20 lições:
“É preciso ler os mestres, mas que mestres? Vamos
tratar de indicá-los, sem nos preocuparmos com os
assuntos, com o lado social ou moral, com o valor filosófico
ou com a influência das obras, tendo aqui em vista apenas
a profissão, a arte de escrever, o proveito imediato que se
pode tirar da leitura.”
Quando indicamos um autor, em geral nos baseamos
nesses critérios. Raimundo Carrero costuma dizer que o
leitor é ingênuo; ingênuo, pois não conhece as técnicas
narrativas, nem está preocupado em identificá-las. Ao leitor,
resta a experiência estética planejada pelo escritor, os saltos
na alma, as emoções, a ânsia por saber o que se passará.
Nada disso é útil para nós, escritores. Precisamos ler com
atenção, nos demorar em cada página até compreender
todas as técnicas utilizadas, assimilando-as até que estejam
impregnadas no sangue.
As técnicas compartilhadas neste site já dão a qualquer
aspirante a escritor noções básicas de como analisar uma
passagem literária. Por exemplo, quando se fala em tempo
psicológico e do ritmo: cenas e ações dão fluidez à narrativa,
descrições e monólogos diminuem a velocidade, dando uma
chance do leitor respirar. Avaliem esse jogo de andamentos
como numa melodia. Temos as cenas diretas e as cenas
indiretas, como é explicado em “A preparação do escritor”,
de Carrero. Na cena direta o narrador mostra, na indireta o
narrador nos conta, resumindo os fatos. Tomaremos de
exemplo o início de “Um Coração Simples”, de Flaubert:

“Durante meio século, as burguesas de Pont-l’Évêque


invejavam a sra. Aubain por causa de sua empregada
Felicité.
Por cem francos, ela cozinhava e fazia a limpeza,
costurava, lavava, passava ferro, sabia arrear um cavalo,
cuidar das galinhas, fazer manteiga, e continuava fiel à
patroa – que, no entanto, não era uma pessoa agradável.”
Prestemos atenção em cada frase, é um trecho
fantástico. Reparem no uso dos tempos verbais: aqui
Flaubert usou o pretérito imperfeito, o tempo mais perfeito
que existe. Por quê? A ação não tem início nem fim: as
burguesas de Pont-l’Évêque invejavam, quando começou a
inveja? E quando terminou? E Felicité “cozinhava e fazia a
limpeza, costurava, lavava”, quando as ações começaram e
terminaram? A resposta é: nunca. Não sabemos, o
imperfeito nos dá uma leveza, as ações tornam-se vagas,
eternas. Foi Proust quem primeiro notou isso na prosa de
Flaubert. Felicité nunca terminava de trabalhar, era
explorada pela patroa.
Outro fator que enfatizo sempre, a metáfora, neste
caso, na técnica do nome da personagem: Felicité (em
francês, felicidade). Vejam a força dessa metáfora: Felicité
tem um coração simples, mesmo sendo explorada, é fiel à
patroa. Tudo de maneira sutil, que seria estragada caso
Flaubert caísse no lugar comum de explicá-la. Literatura não
se explica.
Ainda podemos notar uma voz estranha após o
travessão “- que, no entanto, não era uma pessoa
agradável”, um comentário capturado pelo narrador, de
alguém que estivesse fofocando sobre a Sra. Aubain (iremos
nos aprofundar nisso quando falarmos dos tipos de narrador
e vozes narrativas).
E temos, é claro, a cena indireta, que, como já disse, é
o narrador contando ao invés de mostrar: ” as burguesas de
Pont-l’Évêque invejavam a sra. Aubain”, “e continuava fiel à
patroa”, “que, no entanto, não era uma pessoa agradável “;
em geral, diríamos para reconstruir frases assim, criando
cenas detalhadas, mostrando a inveja das burguesas, a
fidelidade da empregada ou o caráter desagradável da
patroa, porém, neste caso, por ser um trecho extremamente
rápido e sutil, feito com o propósito de jogar o leitor na
história, nós aprendemos a como dizer em vez de mostrar.
Descrições vazias sem a psicologia das personagens não
valem de nada, descrever cada mínima ação torna-se
maçante, daí recorremos à cena indireta. As descrições e
ações devem ter impacto e relevo, um significado profundo.
Do contrário, devemos retirá-las do texto.
Notem que em poucas linhas é possível fazer uma
análise profunda e direta sobre a escrita. É isso que vocês
devem buscar fazer, analisar cada verbo, cada frase, as
vozes das personagens, os discursos direto, indireto e
indireto livre; devem tentar perceber as funções e efeitos no
texto. Estudem o estilo, desconstruam, procurem referências
nos livros de técnica (“Os Segredos da Ficção”, de Carrero,
tem capítulos muito mais bem detalhados sobre tempos
verbais, vozes, cenas, etc.). Aqui eu apenas quis mostrar
como se dá o processo de leitura de alguém com um pouco
mais de experiência. Esqueçam os gostos pessoais e leiam
os grandes, os verdadeiramente grandes. Estudem.

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