Diz Albalat em “A formação do estilo”: “Ler é estudar,
linha a linha, uma obra literária”, e a seguir reforça o que já havia dito em “A arte de escrever em 20 lições”: “Devemos ler autores cujo estilo pode ensinar a escrever; e pôr de lado aqueles cujo estilo não ensina a escrever. Depois, há autores de quem se pode e outros de quem não se pode assimilar os processos. Devem-se ler os primeiros, de preferência aos segundos.” Ele também reitera em 20 lições: “É preciso ler os mestres, mas que mestres? Vamos tratar de indicá-los, sem nos preocuparmos com os assuntos, com o lado social ou moral, com o valor filosófico ou com a influência das obras, tendo aqui em vista apenas a profissão, a arte de escrever, o proveito imediato que se pode tirar da leitura.” Quando indicamos um autor, em geral nos baseamos nesses critérios. Raimundo Carrero costuma dizer que o leitor é ingênuo; ingênuo, pois não conhece as técnicas narrativas, nem está preocupado em identificá-las. Ao leitor, resta a experiência estética planejada pelo escritor, os saltos na alma, as emoções, a ânsia por saber o que se passará. Nada disso é útil para nós, escritores. Precisamos ler com atenção, nos demorar em cada página até compreender todas as técnicas utilizadas, assimilando-as até que estejam impregnadas no sangue. As técnicas compartilhadas neste site já dão a qualquer aspirante a escritor noções básicas de como analisar uma passagem literária. Por exemplo, quando se fala em tempo psicológico e do ritmo: cenas e ações dão fluidez à narrativa, descrições e monólogos diminuem a velocidade, dando uma chance do leitor respirar. Avaliem esse jogo de andamentos como numa melodia. Temos as cenas diretas e as cenas indiretas, como é explicado em “A preparação do escritor”, de Carrero. Na cena direta o narrador mostra, na indireta o narrador nos conta, resumindo os fatos. Tomaremos de exemplo o início de “Um Coração Simples”, de Flaubert:
“Durante meio século, as burguesas de Pont-l’Évêque
invejavam a sra. Aubain por causa de sua empregada Felicité. Por cem francos, ela cozinhava e fazia a limpeza, costurava, lavava, passava ferro, sabia arrear um cavalo, cuidar das galinhas, fazer manteiga, e continuava fiel à patroa – que, no entanto, não era uma pessoa agradável.” Prestemos atenção em cada frase, é um trecho fantástico. Reparem no uso dos tempos verbais: aqui Flaubert usou o pretérito imperfeito, o tempo mais perfeito que existe. Por quê? A ação não tem início nem fim: as burguesas de Pont-l’Évêque invejavam, quando começou a inveja? E quando terminou? E Felicité “cozinhava e fazia a limpeza, costurava, lavava”, quando as ações começaram e terminaram? A resposta é: nunca. Não sabemos, o imperfeito nos dá uma leveza, as ações tornam-se vagas, eternas. Foi Proust quem primeiro notou isso na prosa de Flaubert. Felicité nunca terminava de trabalhar, era explorada pela patroa. Outro fator que enfatizo sempre, a metáfora, neste caso, na técnica do nome da personagem: Felicité (em francês, felicidade). Vejam a força dessa metáfora: Felicité tem um coração simples, mesmo sendo explorada, é fiel à patroa. Tudo de maneira sutil, que seria estragada caso Flaubert caísse no lugar comum de explicá-la. Literatura não se explica. Ainda podemos notar uma voz estranha após o travessão “- que, no entanto, não era uma pessoa agradável”, um comentário capturado pelo narrador, de alguém que estivesse fofocando sobre a Sra. Aubain (iremos nos aprofundar nisso quando falarmos dos tipos de narrador e vozes narrativas). E temos, é claro, a cena indireta, que, como já disse, é o narrador contando ao invés de mostrar: ” as burguesas de Pont-l’Évêque invejavam a sra. Aubain”, “e continuava fiel à patroa”, “que, no entanto, não era uma pessoa agradável “; em geral, diríamos para reconstruir frases assim, criando cenas detalhadas, mostrando a inveja das burguesas, a fidelidade da empregada ou o caráter desagradável da patroa, porém, neste caso, por ser um trecho extremamente rápido e sutil, feito com o propósito de jogar o leitor na história, nós aprendemos a como dizer em vez de mostrar. Descrições vazias sem a psicologia das personagens não valem de nada, descrever cada mínima ação torna-se maçante, daí recorremos à cena indireta. As descrições e ações devem ter impacto e relevo, um significado profundo. Do contrário, devemos retirá-las do texto. Notem que em poucas linhas é possível fazer uma análise profunda e direta sobre a escrita. É isso que vocês devem buscar fazer, analisar cada verbo, cada frase, as vozes das personagens, os discursos direto, indireto e indireto livre; devem tentar perceber as funções e efeitos no texto. Estudem o estilo, desconstruam, procurem referências nos livros de técnica (“Os Segredos da Ficção”, de Carrero, tem capítulos muito mais bem detalhados sobre tempos verbais, vozes, cenas, etc.). Aqui eu apenas quis mostrar como se dá o processo de leitura de alguém com um pouco mais de experiência. Esqueçam os gostos pessoais e leiam os grandes, os verdadeiramente grandes. Estudem.
Nação tarja preta: O que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica (leia também Nação dopamina)