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X SEL – Seminário de Estudos Literários

UNESP – Campus de Assis


ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
sel@assis.unesp.br

PARA QUE SERVE O CÂNONE LITERÁRIO? ASPECTOS E CONFRONTOS DO DISCURSO


TEÓRICO CONTEMPORÂNEO

José Sérgio Custódio (Mestrando – UEL/PR – CAPES)

RESUMO: O ponto de partida deste trabalho dá-se em função do seguinte questionamento: para que serve o
cânone literário? Esta questão permeia os estudos literários e alimenta os debates teórico-críticos
contemporâneos. Trata-se de uma questão controversa e polêmica, talvez por isso mesmo apaixonante. O
objetivo do presente estudo é a discussão da formação do cânone literário e de sua legitimidade em confronto
com os diversos aspectos do discurso teórico contemporâneo. Abordarei três aspectos centrais para a
formação do cânone literário: a questão historiográfica, no que tange à concepção norteadora da validação
canônica como discurso hegemônico; a questão estética, isto é, a de saber em que medida os julgamentos
estéticos são válidos objetivamente ou se, antes de mais nada, poderiam ser entendidos como juízos de valor
calcados não em bases objetivas do belo, e sim em padrões ideológicos dominantes; e ainda a espinhosa
questão do valor em Literatura, ou, mais precisamente, do modo como se dá a valoração de determinadas
obras literárias em detrimento de outras.

PALAVRAS-CHAVE: Cânone literário; discursos teóricos; Literatura; crítica literária.

Gostaria de propor, em minha breve intervenção sobre o cânone literário, alguns pontos
que acredito serem merecedores de uma visão mais acurada, e, a partir destes pontos (que irão
revelando-se ao longo desta exposição), traçar algumas linhas de percepção sobre os caminhos a
serem seguidos, onde o a priori, se é que existe, é a própria discussão na medida em que possibilita
olhares diversos acerca da temática aqui tratada. Portanto, as proposições deste trabalho terão,
antes de mais nada, um caráter mais ensaístico do que propriamente científico, dada a
complexidade do tema, em que o sentido mesmo da função crítica é o de constituir-se como uma
indagação permanente e incessante, um sentido de perquirições/indagações que visam à discussão
dos diferentes modos de enunciação da crítica. A leitura aqui proposta coloca-se antes como um

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olhar que reflete, que indaga e questiona (se autoquestiona). Olhar desconfiado, que vê a crítica
literária como questão de perspectiva, isto é, entendendo cada movimento ou corrente do
pensamento crítico como um discurso que se dá a partir de determinado local e em nome de
determinados interesses, em detrimento de outros. Ou seja, de acordo com a percepção que estou
adotando não existe nenhum discurso crítico “inocente” que possa se arrogar como a “verdade”,
como fato absoluto e inconteste, pois todo discurso crítico alberga uma determinada perspectiva em
face da Literatura e da realidade. Todo discurso crítico, de acordo com minha pequena e parcial
mirada, é apenas uma elocução de posturas particulares, parciais e, num dado sentido, interessadas
em colocar-se como proposição da verdade; quando, de acordo com Roland Barthes, o discurso
crítico não trata, não deve tratar da “verdade”, de supostas “verdades”, mas sim de validades, e aí
temos a delimitação e limites do campo da crítica literária. É necessário, ainda, que se trace o
sentido do que estamos entendendo pela função da crítica, do papel que a ela é reservado na
contemporaneidade, isto é, daquilo que ela ainda pode ou deveria desempenhar, ou mesmo do
ocaso desta no contexto atual. O vocábulo crítica carrega etimologicamente o sentido primeiro de
julgamento, isto é, o de lhe ser conferido o status de um discurso capaz de enunciar-se não como
proposição de verdade, mas como juízo reflexivo, numa acepção kantiana do termo. Num sentido
mais comum da expressão, a crítica é entendida como algo de negativo, na medida em que é vista
como um discurso que buscaria apontar os defeitos de algo, as falhas ou erros de um dado objeto.
Segundo Perrone-Moisés, o termo crítica pressupõe:

A crítica, como seu próprio nome indica, supõe julgamento (krínein). Claro está, desde Kant,
que se trata aí de juízo reflexivo e não de juízo determinante. O julgamento estético supõe
valores consensuais, mesmo que esses sejam provisórios. O mesmo Kant dizia que, se não se
pode provar o bom fundamento dos julgamentos estéticos, há, no entanto, pessoas capazes de
fornecer argumentos, e comprovar assim certa autoridade nesse terreno. Os críticos são
aqueles que fornecem argumentos em apoio a seus julgamentos. Ora, inexistindo na pós-
modernidade critérios de julgamento e hierarquia de valores consensuais, a atividade crítica
torna-se extremamente problemática. A desconfiança na estética como disciplina idealista e
elitista, a proliferação de critérios particulares e o questionamento do “grande relato” solapam
as bases de qualquer crítica (PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 340).

Contudo, acredito que a capacidade e os juízos da crítica não podem ser rechaçados,
pelo fato de que não existem juízos consensuais e a despeito do fato de que muito do que se
encerra no discurso crítico possui uma alta dose de subjetividade e mesmo de intencionalidade
mascarada de isenções reflexivas. O que deve a crítica literária fazer na cena contemporânea? Pode

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ela ainda ter algum valor neste contexto? O que espera-se dela? Segundo Antoine Compagnon,
esta é uma questão demasiadamente espinhosa, como se vê:

O público espera dos profissionais da literatura que lhe digam quais são os bons livros e quais
são os maus: que os julguem, separem o trigo do joio, fixem o cânone. A função do crítico
literário é, conforme a etimologia, declarar: “Acho que este livro é bom ou mau”. Mas os leitores,
por exemplo, os de crônica literária da imprensa cotidiana ou semanal, mesmo que não
detestem o acerto de contas, se cansam dos julgamentos de valor que mais parecem caprichos
e, gostariam que, além disso, os críticos justificassem suas preferências, afirmando, por
exemplo: “Estas são as minhas razões e são boas razões”. A crítica deveria ser uma avaliação
argumentada. Mas as avaliações literárias, tanto a dos especialistas quanto a dos amadores,
têm, ou poderiam ter, um fundamento objetivo? Ou mesmo sensato? Ou elas nunca são senão
julgamentos subjetivos e arbitrários, do tipo “eu gosto, eu não gosto?”, aliás, admitir que a
apreciação crítica é inexoravelmente subjetiva nos condena fatalmente a um ceticismo total e a
um solipsismo trágico? (COMPAGNON, 2003, p. 224)

As perguntas e indagações multiplicam-se. Como respondê-las? Não se deve esquecer


que este é um terreno movediço, um espaço dominado por incertezas e mesmo ilusões. Contudo,
não posso furtar-me da dor e da delícia de tentar dar alguma resposta, ainda que esta seja algo de
tateante, de busca aproximativa de um porto seguro. Se os juízos da crítica literária forem muito
simplesmente subjetivos e não argumentativos, ela perece e de nada nos vale como modo de
compreensão do fenômeno literário, pois cada pessoa, cada leitor, poderia emitir os mais diferentes
e variados julgamentos acerca das obras literárias. Deste modo, todos teriam “razão” e ninguém
poderia tê-la. A crítica, pergunta Compagnon, tem “um fundamento objetivo? Ou mesmo sensato?”;
acredito que a objetividade da crítica, de qualquer forma de crítica literária, é uma falácia, um edifício
vazio, desprovido de pilares/palavras que os sustentem. Mas a meu ver ela é sensata, deve ser
sensata sob pena de deixar de ser crítica. Quero dizer, com isso, que para a existência do discurso
crítico é necessário que haja critérios, e que estes sejam minimamente consensuais; caso contrário,
a crítica não pode existir, pois se inviabilizaria como modo de avaliação argumentada. Para que haja
argumentação deve haver critérios, os quais devem necessariamente ter pontos
comuns/comunicantes, isto é, dialógicos, senão a crítica reduzir-se-ia ao gosto/não gosto
simplesmente de cada leitor, de suas sensações/impressões do livro lido e não ao sentido
imprescindível para o fenômeno literário de uma comunidade leitora que estabeleça padrões de
julgamento. Tem-se, neste momento, de se fazer uma inevitável pergunta: quais são os critérios de
julgamento da crítica literária? São critérios válidos ou minimamente consensuais? Primeiro ponto:
os critérios de julgamento da crítica literária são os mais variados, indo desde proposições

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imanentistas que veem o texto literário como alicerce dos juízos críticos, até correntes que leem os
textos literários por perspectivas tão díspares (e não disparatadas, só às vezes o disparate ocorre),
como: a crítica marxista, a psicanalítica, a feminista, a desconstrucionista, a genética... E sim,
apesar de todas as grandes e por vezes irredutíveis diferenças de critério, estes são válidos de
acordo com as suas próprias premissas. O presente estudo pauta-se por questões que não
poderiam ser vistas apenas como ambientadas no espaço das discussões acadêmicas e críticas
atuais, pois são questões de amplo espectro que envolveriam não somente os especialistas da área,
mas também o leitor comum, na medida em que reflete as dúvidas de sempre de todo e qualquer
leitor em algum momento de seu envolvimento/encantamento com o universo literário: o que faz com
que uma obra literária seja considerada uma grande obra literária? O valor estético é uma qualidade
objetiva dos textos literários? Em função de quais critérios se define e se mede a qualidade artística
de um texto literário? O que faz com que determinado texto seja considerado um texto literário?
Quem define ou quem pode definir o que é a Literatura e, ainda, quem define o que é um texto
literário de qualidade? Esta série de questões, que poderia prolongar-se ao infinito, dá uma
dimensão do problema aqui analisado, não somente como problema teórico-crítico de fundamental
importância, mas também como uma inquietante questão própria da paixão despertada pela
Literatura. Podemos ainda, dentro da questão que nos propomos a estudar, perguntar o seguinte: a
Literatura pode prescindir de um cânone literário? Qual o valor e a importância do cânone literário?
Ou, em suma, para que serve o cânone literário?
As questões aí estão colocadas em toda a sua dificuldade e extensão. Talvez não
aguardem respostas definitivas, posto que estas não existam, tendo de contentar-se apenas com a
frágil provisoriedade das argumentações. Tendo consciência disso, este trabalho não visa a dar
respostas que poderiam facilmente desmoronar como castelos de areia, mas antes problematizar de
modo consistente as respostas críticas existentes nos seus diferentes enfoques e aspectos. Para
tanto este estudo terá por horizonte próximo o debate contemporâneo sobre a validade do cânone
literário e, dentro deste universo de discussões, o confronto mais direto entre as duas posições
centrais acerca deste tema: o grupo dos que contestam a validade do discurso canônico, vendo-o
como encarnação do poder e, desse modo, responsável pela imposição de uma dada cultura como
superior a outras formas culturais; defendendo uma reelaboração/revisão do cânone literário, tendo
em vista o discurso das minorias, isto é, das vozes excluídas do modelo hegemônico. Por outro lado,

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existe um grupo, talvez não tão numeroso, mas certamente de igual calibre, que pensa a
manutenção do cânone literário como patrimônio cultural da humanidade que, através de sua
excelência estética, representaria universalmente o ápice do espírito humano, sendo, por isso
mesmo, digno de ser lido e relido por infindáveis gerações de leitores, que o teriam como um roteiro
didático/pedagógico através do cipoal de signos da Literatura. Evidentemente, não se trata de uma
questão de fácil resolução, ou seja, não se pode adotar tacitamente o discurso daqueles que atacam
o cânone literário, nem tampouco o discurso daqueles que o defendem incondicionalmente; deve-se,
pois, problematizar a questão. Problematizar a questão, segundo o modelo que estou
desenvolvendo, significa perceber que tratar da formação do discurso canônico não é simplesmente
tratar do cânone literário e dos elementos que o compõem: é tratar da própria legitimidade do
discurso literário. Discutir por que um determinado texto pertence ao cânone literário é, antes,
discutir por que um dado texto é literário e de onde vem a sua propalada qualidade artística superior.
Segundo Márcia Abreu, a questão acerca do que é Literatura e do que é Literatura de qualidade
passa principalmente por fatores extra literários:

Por trás da definição de literatura está um ato de seleção e exclusão, cujo objetivo é separar
alguns textos, escritos por alguns autores do conjunto dos textos em circulação. Os critérios de
seleção segundo boa parte dos críticos é a literariedade imanente aos textos, ou seja, afirma-se
que os elementos que fazem de um texto qualquer uma obra literária são internos a ele e dele
inseparáveis, não tendo qualquer relação com questões externas à obra escrita, tais como o
prestígio do autor ou da editora que o publicou, por exemplo. Entretanto, na maior parte das
vezes, não são critérios linguísticos, textuais ou estéticos que norteiam essa seleção de escritos
e autores. [...] Entra em cena a difícil questão do valor, que tem pouco a ver com os textos e
muito a ver com posições políticas e sociais (ABREU, 2006, p. 39).

Conforme podemos observar, a análise da estudiosa direciona-se no sentido de evidenciar


que o que confere estatuto literário a determinados textos não são critérios puramente literários, mas
sim critérios embasados em determinadas “posições políticas e sociais”. Ou seja, de acordo com a
análise de Márcia Abreu, o que define se um texto é ou não literário não são fatores literários, haja
vista que estes não existiriam por si mesmos, sendo antes formulações culturais derivadas de um
dado modelo ideológico. Então, de acordo com esta hipótese, o discurso hegemônico do cânone
literário que se propõe como isento de contaminações extra-estéticas está, na verdade, mascarando
as formulações ideológicas que o elevaram aos píncaros da glória artística. Para Abreu e outros
estudiosos do tema, o projeto canônico é um projeto de dominação/imposição cultural fundamentado

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em bases cerradamente ideológicas. Neste mesmo sentido temos ainda as formulações de Flávio
Kothe:

A pretensão implícita em todo cânone é ser indubitável e absoluto: isso pertence a sua natureza
na medida em que ele é o poder em forma de texto. O cânone é formado por textos elevados à
categoria de discurso, no sentido que nele se tem a palavra institucionalizada pelo poder. O
cânone não pretende ter estrutura, mas ser simplesmente a condensação dos textos
selecionados da tradição e pela tradição, por causa de sua qualidade artística superior: o
fundamento de sua poética é, no entanto, política (KOTHE, 1997, p. 87).

O discurso canônico, segundo estes estudiosos, é, antes, um discurso de poder, cuja


fundamentação central não é a qualidade estética do texto, pois esta na verdade seria uma “ilusão
discursiva”, um engodo criado ideologicamente como meio eficaz para mascarar as intenções
políticas da instituição literária. Ora, em minha postura crítica não posso deixar de concordar com os
estudiosos, quando estes problematizam a concepção acerca da Literatura como não sendo um
dado natural, mas um dado histórico-cultural sujeito às injunções ideológicas; porém, ao mesmo
tempo, os questiono: que todo discurso possui um fundo ideológico, isto é, que nenhum discurso é
“inocente”, sempre falando em nome de determinados interesses, em detrimento de outros, é algo
que não me espanta, e desse modo posso dizer que o próprio discurso formulado por Abreu e por
Kothe, em sua intenção de desmascaradores da ideologia imbricada na constituição da Literatura, é
também um discurso ideológico devedor de determinadas posições políticas e sociais e, deste
modo, aliado a determinados interesses em detrimento de outros. A partir desta reflexão, gostaria de
perguntar: será que o que faz com que determinadas obras sejam consideradas grandes obras
literárias seriam fatores puramente ideológicos, isto é, determinados por interesses de determinados
grupos sociais? Pode-se escapar da armadilha ideológica? De acordo com Perrone-Moisés,

Mostrar os componentes ideológicos na formação do cânone é o óbvio. Atribuir sua constituição


exclusivamente a interesses imediatos de classes ou de grupos sedentos de poder é restringir
enormemente as motivações dos escritores, críticos, professores e subestimar a função das
obras literárias na sociedade (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 197).

Dentro de suas formulações, Perrone-Moisés demonstra que a questão canônica da


validade artística de determinadas obras literárias evidencia-se como um espaço de disputa por
diferentes grupos culturais. Em consonância com a fala de Perrone-Moisés, pode-se observar que
os variados discursos teórico-críticos que atacam o cânone literário valem-se de elementos extra-
literários em suas formulações e acabam por formar grupos de disputa pelo poder, isto é, ao

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reivindicarem uma audiência literária para seus discursos, acabam criando espaços de poder para
determinados grupos culturais. Em suma, este trabalho busca tratar de um tema a meu ver central
nos estudos literários, na medida em que sobre ele repousam as mais diferentes e divergentes
respostas acerca da própria Literatura e de seu valor num espaço onde todos os valores podem e
devem ser revistos e problematizados.
Deste modo, e dada a natureza difusa – e, por que não dizer, escorregadia – deste objeto,
minha leitura acerca da formação e constituição do cânone literário é, antes, uma leitura dos
discursos teóricos que se digladiam, ora na defesa e manutenção do cânone entendido como
patrimônio cultural da humanidade, ora na busca de uma reelaboração/revisão do cânone, entendido
como um discurso de dominação cultural das elites e como modo de manutenção do poder destas.
Neste momento é necessário colocar a seguinte questão: o que é o cânone literário e quais os seus
possíveis significados? Indo por partes: a primeira parte deste questionamento é facilmente
resolvida, não recaindo sobre ela maiores problemas; o cânone, de modo geral, é entendido como
um conjunto de obras que representam um alto valor artístico (no que se refere à Literatura); é aquilo
que se convencionou chamar de “Grandes livros” ou “Alta Literatura”; são, portanto, obras
maiúsculas, dignas de serem estudadas por longos e longos e “eternos” anos, por infindáveis
gerações de leitores (que as lerão de modo diverso devido a condições históricas específicas, mas
“conscientes” de que tratam-se de grandes obras). Etimologicamente, podemos observar que: a
palavra cânone vem do grego kanón, através do latim canon, e significava “regra”. Com o passar do
tempo, a palavra adquiriu o sentido específico de conjunto de textos autorizados, exatos, modelares
(PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 61). Em suma, o cânone pode ser entendido como aquele conjunto
de obras que não se pode jogar fora, atirar ao limbo ou ao lixo (será que passaria pela cabeça de
algum cidadão de bem jogar fora Os Lusíadas ou Dom Quixote, ou ainda o monumental Ulisses de
Joyce?). Pode-se certamente afirmar que, pelo menos num primeiro momento, ninguém jogaria ao
lixo nenhuma destas obras (e, possivelmente não se atreveria a negar a validade artística das
mesmas, isto é, contestá-las com a pergunta: por que estas obras são consideradas grandes obras
artísticas?). Será que alguém ousaria, diante destas obras sagradas/consagradas (na raiz
etimológica da palavra cânone há também este sentido de algo sagrado), fazer o tão temível
questionamento? E por que não? Bem, parece-me que Literatura tem a ver com questionamentos,
com colocar-se em discussão, isto é, problematizar. Pode-se perguntar, então: quais são os

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possíveis significados do cânone? Para tanto, acredito que se possa imaginar a seguinte situação:
em uma sala de aula, das muitas existentes pelo Brasil, uma professora está falando da obra de
Machado de Assis, tece considerações acerca de suas obras, de seu enquadramento espaço-
temporal na historiografia literária brasileira, de suas qualidades de grande escritor. Então, num
rompante um aluno levanta a sua mão e dispara a pergunta: “professora, por que eu tenho de ler
para a prova o Dom Casmurro, esse livro chato, se o que eu gosto mesmo é de ler o Harry Potter?”
O que a professora deveria ou poderia responder diante de tal questionamento? Provavelmente, ela
responderia que deve-se ler a obra do bruxo do Cosme Velho por ser uma obra de grande qualidade
literária, pois nos leva a refletir sobre o conteúdo daquilo que estamos lendo, sobre nossa própria
vida na medida em que se coloca como uma indagação plena e profunda da triste e irrevogável
condição humana, enquanto que Harry Potter é apenas uma obra supérflua, feita para o
entretenimento de horas vazias, desprovida de conteúdo reflexivo, uma obra que foi escrita com o a
intenção maior de se vender livros, milhões e milhões de livros se possível. E você, caro aluno, está
na escola justamente para isso, para aprimorar seu gosto estético, e por meio da leitura de grandes
livros desenvolver sua capacidade de julgar por si mesmo. Ou, a professora poderia responder ao
aluno o seguinte: “de fato, você como leitor tem todo o direito de ler Harry Potter, e mesmo de dizer
que para você esta obra é mais agradável que a de Machado de Assis. No entanto, não se deve
apenas ler as obras do “bruxinho”, mas também se dedicar à leitura de outras obras literárias, de
outros assuntos e temas, ainda que estas, num primeiro momento, possam lhe parecer chatas e
enfadonhas. Estas outras obras se incorporarão ao fatal seu lado esquerdo e poderão, quem sabe,
lhe facultar uma melhor compreensão da vida, um olhar por diferentes visões, de modos os mais
diversos. Este será o grande mérito das obras literárias e o que elas poderão lhe ofertar: a vida vista
pela vida, trazendo consigo livremente em suas letras, histórias e personagens, aquilo que se chama
o bem e aquilo que se chama o mal. E, em última instância, a leitura dessas outras obras lhe
proporcionará uma melhor capacidade de você encontrar seu lugar no mundo e encontrar-se com
você mesmo”. Sim, a professora de Literatura poderia dar qualquer uma dessas duas respostas e
outras mais; qual nós daríamos? Ou, quem sabe a professora emudecesse ou se irritasse
tremendamente com a pergunta feita pelo aluno e começasse a questionar-se sobre o que está
ensinando, por que repete ano após ano que os grandes autores de nossa Literatura são: Machado

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de Assis, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa... e se perguntar sobre o papel do cânone literário, se
este se fundamenta como uma imposição ideológica ou se é, antes, um roteiro didático/pedagógico:

Como quer que seja, é muito difícil dissociar o caráter pedagógico-institucional atribuído à
literatura (também quando sua didática se autonomiza em relação à da língua) de sua
postulação como corpo cultural canonizado. Por isso, Frank Kermode escreveu que “quer
pensemos em cânones como susceptíveis de objeção porque formados ao acaso ou para servir
uns interesses à custa de outros, quer suponhamos que os conteúdos dos cânones são
providencialmente escolhidos, não pode haver dúvida de que não encontramos modo de
ordenar o nosso pensamento acerca da história da literatura e da arte sem recurso a eles”. E
num sentido próximo deste sentido que nos sugere desde já a necessidade de uma análise da
dimensão sociocultural da literatura, Pierre Bourdieu observa que “O sistema de ensino cumpre
inevitavelmente uma função de legitimação cultural ao converter em cultura legítima,
exclusivamente através do efeito de dissimulação, o arbitrário cultural que uma formação social
apresenta pelo mero fato de existir e, de modo mais preciso, ao reproduzir, pela delimitação do
que merece ser transmitido a adquirido do que não merece, a distinção entre as obras legítimas
e as ilegítimas e, ao mesmo tempo, entre a maneira legítima e a ilegítima de abordar as obras
legítimas (REIS, 2001, p. 39-40).

Parece-me, de acordo com o enunciado transcrito, que o cânone literário é passível de


múltiplos e variados questionamentos; contudo, como aponta Frank Kermode, não podemos falar da
Literatura sem que recorramos a eles. De certo modo, acredito que isso vai de encontro ao que
propus antes, quando falei da necessidade da crítica literária possuir critérios minimamente
consensuais. Estes critérios seriam a própria disposição pedagógica do cânone literário, afinal de
contas a vida é curta para se ler tantos livros; é necessário que se possa pensar num paideuma, no
sentido poundiano do termo: a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem, ou
geração, possa achar o mais rapidamente possível a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo
com itens obsoletos (OLIVEIRA FILHO, 1999, p.82). Neste momento, alguém certamente levantaria
a seguinte objeção: esta ideia de paideuma é preconceituosa porque supõe que há livros
melhores/superiores do que outros. E que essas listas de grandes autores e suas maravilhosas
obras são na verdade fruto de um pensamento desprovido de consciência crítica que se arroga o
direito de se colocar como melhor em detrimento de outros possíveis cânones. E que toda suposição
“didático/pedagógica” é apenas o mascaramento de interesses escusos de dominação cultural.
Neste momento, é importante refletir sobre o entrelaçamento e a medida deste imbricamento entre o
fato literário e uma possível vinculação ideológica a causas sociais, no que compartilho com
Perrone-Moisés do fato de ser não contra as questões ideológicas que regem os estudos culturais,
mas acredito também que não se deva sobrepor questões de ordem ideológica ao entendimento da

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Literatura. Assim sendo, é importante que eu possa me colocar em uma posição de desconfiança
frente ao discurso do “politicamente correto”, como se este, numa disposição maniqueísta,
implicasse necessariamente o “bem”, enquanto que o cânone ocidental seria visto como o “mal”,
uma espécie de demônio a ser extirpado. Necessário é que sejam colocadas as velhas e grandes
indagações, como propõe Culler:

Obras anteriormente negligenciadas são escolhidas pela sua “excelência literária” ou pela sua
representatividade cultural? É o “politicamente correto” o desejo de dar a cada minoria uma
representação justa, e não critérios especificamente literários, que está determinando a escolha
das obras a serem estudadas? (CULLER, 1999, p. 54).

Tendo em consideração as reflexões tecidas por Culler, acredito que se possa dizer que os
estudos culturais, que são um campo tremendamente amplo e fértil para a reflexão literária, apontam
de modo geral para um processo de politização dos estudos literários. Um processo que renega
valores literários até certo ponto consensuais como a qualidade estética do texto literário (que é visto
como algo suspeito), em nome de valores outros, que se estabelecem agora sobre o prisma
ideológico do “politicamente correto”, e desconsidera pura e simplesmente outras perspectivas da
crítica literária como elitistas e incapazes de uma reflexão livre de interesses dos grupos
dominantes. Ora, a meu ver não se pode confundir Literatura com política, pois são campos
diversos, que apresentam distintas concepções acerca da realidade, que partem de posições
necessariamente diferentes. Deste modo, não posso concordar com o fato de que questões político-
sociais de alta relevância (como o abandono/rejeição das minorias) sejam transformadas em
questões de estudo literário, como se fosse um dever da Literatura a busca da harmonia social e o
remediamento das injustiças históricas. Não se deve ler os textos das chamadas minorias (como
pensam os multiculturalistas) simplesmente porque elas são a minoria que historicamente foram
suprimidas da história; deve-se ler esses textos se eles passarem pelo crivo da qualidade estética,
se forem importantes como criação artística e não como ideologia social. É por esse viés que se
coloca a reflexão de Perrone-Moisés quando esta diz:

A tendência à exaltação do antes anteriormente oprimido, como diferente e superior, tem levado
a um discurso panfletário e, no campo da crítica e do ensino, a uma valorização ideológica de
toda literatura minoritária como necessariamente boa e estimável, o que, na verdade, as exclui
do cotejo com as literaturas hegemônicas. Considerar as “literaturas emergentes” com
condescendência acaba por ser uma atitude logocêntrica e paternalista (PERRONE-MOISÉS,
2007, p. 171).

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Quero colocar de modo bastante seguro a defesa do princípio da autonomia estética da


obra literária frente a fatores difusamente ideológicos. À obra literária não pode ser imputada apenas
a veiculação de ideias, pois senão ela seria apenas instrumento panfletário que agiria em nome de
determinados fins. A obra literária como obra de arte alberga em seu bojo valores de outra ordem
que devem escapar como discurso artístico bem realizado do surto ideológico do “politicamente
correto”. Aliás, deve-se em nome da liberdade própria para a realização plena do objeto artístico
ampliar nossas concepções/percepções da Literatura, permitir a ela que se realize por inteiro sem
quaisquer formas condicionantes, e não nos abster da capacidade tão fora de moda de dizer que
sim, que existem obras melhores do que outras. A literatura é, antes de tudo, um exercício de
paixão, de sensibilidade para com as coisas humanas, e não guetos estanques que se defrontam
para ver quem sai vencedor. O discurso estético deve colocar-se como qualidade daquilo que se fala
e não como quantidade de diferentes falas. Ainda que o discurso literário esteja eivado de
componentes políticos ele é, antes de qualquer coisa, e muito principalmente, discurso literário, e
como disse Barthes, “Literatura é Literatura”, ela não precisa de quaisquer adjetivações, pois seu
valor maior reside em si mesma, e como tal deve estar assentado em bases de crítica de qualidade
estética, sob pena de, em função do “politicamente correto”, qualquer texto ser lido como texto
literário. E nada mais perigoso para a Literatura do que ser considerada qualquer coisa, como se
todo e qualquer texto pudesse ser taxado de Literatura apenas por se dizer que o se lê como texto
literário. É importante observar que, mesmo que o valor estético seja uma ilusão teórica e que não
se possa prová-lo objetivamente como um teorema matemático, é necessário que se tenha um
mínimo de consenso sobre algum valor como fundamento do literário. Os valores mudam e variam
conforme as épocas, mas sem eles não pode haver Literatura, pois esta implica em conferir valor
através do tempo, e o grande valor da Literatura, ainda que aos olhos de muitos isto seja uma
temeridade, é a eternidade. A obra literária é antes monumento do que documento, função estética
do que crítica ideológica, pois as ideologias de classes sociais passam, esboroam-se, perdem-se,
mas as grandes obras literárias atravessam o correr dos séculos, tal como observa Compagnon:

O surpreendente é que as obras primas perduram, continuam a ser pertinentes para nós, fora
de seu contexto de origem. E a teoria, mesmo denunciando a ilusão de valor, não alterou o
cânone. Muito ao contrário, ela o consolidou, propondo reler os mesmos textos, mas por outras
razões, razões novas consideradas melhores (COMPAGNON, 2003, p. 254).

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Para concluir, deve-se observar que o cânone literário é um sistema cultural, é um


processo em devir, que não se encerra como estanque e absoluto. Evidente que sua composição é
tributária de muitos fatores distintos, e ele não seja algo de indiscutível, de absoluto, pois toda forma
de seleção implica em que se leve em consideração determinados critérios e se deixe, por
conseguinte, outros de fora. Mas a ideia mesma de cânone como uma dada referência cultural, uma
espécie de roteiro didático/pedagógico que já passou pelo crivo de alguns séculos de leituras, não
pode ser sumariamente descartada como suspeito de ser constituído por privilégios sociais, e parece
extrema má vontade quando se entende o cânone literário apenas e muito limitadamente como uma
construção ideológica, desconsiderando o sentido superlativamente humano de seu significado.

Referências bibliográficas

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