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ESTUDO EFÊMERO DE ESTÉTICA DESTE EU-EU

Artur Lesnau1

1 SUSPIRO ANTES DO MERGULHO


Toda beleza pura é igual, cada beleza real é real à sua maneira. Textos são feitos de
textos. O que compõe o texto é a textura. Para compreender um texto, é necessário um contexto.
Todo bom texto leva consigo um subtexto. Todo texto é composto sob um pretexto. Eis aí o
texto. O belo texto. Mas será só isso o necessário para se reconhecer um belo texto? Um belo
texto é o mesmo de um bom texto? O que é um texto? O que é belo? O que é a beleza citada de
início? Ela existe?
Pretendo com este ensaio explorar um pouco do que compõe a minha noção estética,
talvez colocar em palavras alguma teoria minha sobre o meu próprio gosto artístico e cultural,
não primariamente por ser pré-requisito para a aprovação na matéria de Introdução à Teoria da
Literatura, ministrada pelo recém-catedratizado prof. Dr. Rogério Lima, do Departamento de
Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), mas sim porque conhecer o que eu acredito
sobre arte pode me ajudar a não cair em contradições sem lógica conciliável. Podem, por
palavras, pensamentos publicados de pensadores pós-Poética, aparecer por parágrafos para
baixo. Caso ocorram casos como certas citações, citados serão seus nomes. Desta forma, o
compromisso com a seriedade da análise científica não corromperá o bom humor de nossa
análise, visto que, como veremos adiante, um dos princípios estéticos da mente analisada é a
subversão cômica via irreverência de ordenamentos excessivamente enrijecidos. Seria uma
contradição, uma traição e uma falta de respeito abrir mão da estilística estética do Eu-analisado
quando o Eu-analisador é o mesmo Eu que o outro Eu. E, como Eu e Eu somos ambos Eu, eu
prefiro manter meu estilo de tratar a teoria séria sob o filtro cômico, tal como eu faria se tivesse
a oportunidade de discorrer sobre o tema frente a outra pessoa (que não boceje na minha cara,
nem fique vidrado no celular, mas que de fato preste atenção entusiasmada nas minhas asneiras
inúteis).
Para quê fazer arte? Eu escrevo o presente papel para mim mesmo, pois isto aqui
eu considero arte, pois uma máquina não poderia escrever o que eu escrevo, pois o que eu faço
é humanidade, e arte é humanidade com pitadas a mais de estilística. Pronto! resumi vagamente
o que eu considero arte. Então, pois, andemos: por que fazer arte? Eu escrevo isto para mim,

1
Graduando em Letras pela Universidade de Brasília. Número de matrícula: 231008019. Currículo Lattes
disponível em http://lattes.cnpq.br/8306087087108482.
porque ainda que eu não receba nota alguma, e ainda que este papel nem seja mais um ensaio 2,
e ainda que eu reprove nesta matéria, que caia meu IRA, que vire chacota entre professores e
alunos, e ainda que eu não possa mais comer, que seja expulso da Universidade, que seja preso
por subversão discursiva, que passem uma lei de última hora em minha homenagem, e que seja
batizada Lei Artur Lesnau, que diga que estão revogados os direitos humanos para aqueles que
subvertem gêneros discursivos consolidados por um bando de europeus e intelectuais
estrangeiros e nacionais, pois de acordo com tal artigo da mesma lei, tal criminoso não é mais
humano, e ainda que importem uma cadeira elétrica de última geração de uma empresa
superfaturada do Texas para que eu seja o primeiro a ser executado devido ao meu crime
hediondo de assassinar o português, não simplesmente errando uma regência verbal, mas uma
regência discursiva, ainda assim a arte seria para mim, e só minha, pois no último momento, só
quem poderá dizer a última palavra, enquanto a esponja molhada pingar uma gota gelada pela
minha têmpora, e antes de me amordaçarem a boca, serei eu.
Eis sobre o que falaremos. À moda de um autor gasto, barbudo, grisalho e morto há
milênios (talvez tratemos de outros de características parecidas, então nomeemos os bois: este
de quem falo é Aristóteles, o mais clichê para se citar, provavelmente), comecemos,
naturalmente, pelos princípios.3

2 O SALTO DO TRAMPOLIM
Antes da existência dos conhecimentos científicos, esotéricos, religiosos, etc., a
narração e a narrativa já faziam as vezes de refúgio ao desamparo e de inspiração àqueles que
precisam de referência. Por óbvio, a literatura não nasceu sozinha como arte única, sequer
nasceu com este nome. Aristóteles, em sua Poética, teorizou sobre gêneros discursivos das artes
linguísticas à sua época, que chamava de poesis. Literatura como conhecemos só veio surgir
muito depois. Na idade média, as universidades agrupavam as humanidades em um único bolo.
Uma a uma, as ciências foram se desvencilhando, se diferenciando e consolidando como
independentes, até sobrar apenas arte.

2
Bakhtin, no conjunto de sua obra, desenvolve a ideia de que a ideologia é o que faz a forma do gênero
discursivo. E ideologia, como interpretamos aqui neste ensaio, é o conjunto de ideias que constituem e regem o
jeito de agir e pensar de um indivíduo singular, e um grupo de indivíduos, que une estes como uma
subconsciência coletiva. Nesse sentido, o modo discursivo advém de um conjunto ideológico, que acaba por
moldar a forma da obra, talvez para fora dos limites do ensaio, e para alguma região nebulosa que pode coincidir
em outro gênero discursivo.
3
Segundo Paulo Pinheiro, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e tradutor da
Poética, Aristóteles seguiu em diversas de suas obras a mesma fórmula, com algumas variações, da construção
frasal de início de seus tratados. (Aristóteles; Pinheiro. 2017. P. 37.)
Consideramos, não apenas para fins deste ensaio (se é que isto ainda é um ensaio...),
pois aqui já temos análise do que é belo e dos padrões artísticos do corpus (Eu, moi-même,
memyselfandI), que literatura é arte advinda do uso e da subversão da língua, dos signos
linguísticos e dos padrões discursivos expressos por meios linguísticos. Desta forma, este papel
é literatura. Por quê? Porque é tudo o recém dito. Mas é arte? Bom, é. Marcel Duchamp, artista
dadaísta, disse supostamente que “arte é tudo o que eu disser que é”. Se eu, o autor, digo que é
arte simplesmente porque eu quero dizer e porque eu quero que seja, isso já não vale? Pois bem,
exploremos algum argumento que você, leitor cínico, haverá de aceitar.
Terry Eagleton define a certa altura de seu livro Teoria da literatura: uma
introdução que a literatura seria menos uma característica de uma peça discursiva, de um texto
(eis aí o que é um texto, ao mesmo tempo um fragmento, uma ferramenta e um produto de um
discurso), do que “as várias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a escrita”
(Eagleton, 2006. P. 13. Grifos do autor). E aqui retornamos a Duchamp: Terry (já somos íntimos,
trato pelo primeiro nome) coloca que
Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal
condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante
do que o seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo
pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então,
ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado.
(Eagleton, 2006. P. 13.)

Ora, se Terry coloca o poder póstumo como o que consolida a literatura como
literatura, eu junto suas palavras às de Duchamp: se são as pessoas que arbitrariamente ditam o
que é literatura e o que não é, serei eu a comprar essa briga (contra a minha própria timidez, em
suma) e dizer que isto é literatura, da mesma forma que isto é arte.
Talvez, de forma mais concisa, eu consiga definir algumas características para
encontrar aquilo que eu defino como arte (uma definição ampla é escorregadia, polêmica,
irritantemente magnética para os Diógenes quererem refutar4, etc., etc., etc.): arte é construção
humana e retrato implícito de humanidade. Arte, creio eu, deve ter algum grau de significação.
É não-pragmatismo, é linguagem com estranhamento (Formalistas russos apud Eagleton, 2006.
P. 1-11), e também é estilização (Bakhtin, 2015. P. 79-80), uso de figuras de linguagem, é
fantasia, imaginação, criatividade, é texto sobre texto, sobre texto, sobre texto.

4
Fazemos aqui referência ao filósofo grego Diógenes, o cínico, que de acordo com a lenda, certa vez quando
Platão tentava chegar à conclusão de que o Homem era um “animal bípede sem plumas”, surgiu entre os
debatedores com uma galinha depenada e declamou “eis o homem de Platão!”, refutando o sábio de forma
ridícula e provavelmente irritante.
3 TAMPANDO O NARIZ E FECHANDO OS OLHOS
Como já me alonguei demais até agora (estamos quase na 4ª página, meu santo
Tchekhov!), tentarei enxugar o que eu creio ser importante sobre intertextualidade. Eu poderia
citar Bakhtin (ah, meu doce Bakhtin!) e seu círculo de colegas estudiosos (ah, meu doce círculo
de... Ops!, pega mal essa conotação de duplo sentido, deixa pra lá), e poderia falar de diversos
pensadores posteriores que trataram de intertextualidade, paratextos, etc. Resumo para o que eu
absorvi e sistematizei para mim mesmo ao ler alguns fragmentos.
Creio que é raro um texto romper com qualquer coisa já escrita. “Nada de novo sob
o sol”, diz o ditado ditatorial desprovido de ditongos. De fato, criar também é copiar, mas não
fazer igual, como eu dizia a meus supostos amigos de ensino médio. A diferença entre aqueles
miseráveis desintelectuais e nós, pessoas sublimes, é que absorvemos referências, textos iniciais,
combustível mental, inspirações (chame como quiser) e depois, com nossa bagagem pretérita,
com outras referências, com nossa habilidade técnica, com nossa visão de mundo e com nossa
atividade psicomotora, transformamos o produto bruto e grosseiro, um Anna Kariênina, um O
velho e o mar, em algo diferente e pessoal. Sou a minha bagagem literária: os livros que li,
filmes que vi, músicas que escutei, imagens que apreciei. Sou minhas experiências, e as minhas
experiências embasam tudo o que crio, assim como são todos que criam. E, a forma como eu
componho a minha obra (de arte) depende muito de quem eu sou e do que eu vivi, pois a
ideologia gera a forma, e a ideologia depende da experiência para não ser superficial. Se eu
beiro a 5ª página, é porque tudo o que está até aqui se faz necessário, como blocos de concreto
que fazem fundação para um arranha-céu reluzente, ou como a base feia e desengonçada de
granito que sustenta uma estátua feia de alguma personalidade de índole questionável.
Essa interação textual deve moldar a forma da obra, deve enriquecer a matéria dela
no geral. As peças que compõem um texto têm que ter função, têm que ser necessárias, e
geralmente são. A semiótica no texto, os elementos no enredo, as construções e escolhas
estruturais sempre comunicam mais do que só o que é de fato narrado, e isso geralmente advém
de outras criações, ou mesmo de momentos e lugares que refletem mais do que o que é dito em
si poderia pretender dizer. Não se lê Luz em Agosto, de Faulkner, sem saber da bagagem do
autor, quando e onde se passa, e sem ter postura crítica na obra. O mesmo livro (o texto) interage
com o contexto anterior e exterior à obra5, contexto interno da obra6, e com o contexto posterior
e exterior à obra7.
Conhecer como funciona a composição primordial de um texto nos ajuda a perceber
mais facilmente a beleza de um belo texto. Aquele que nos encanta é aquele que conversa com
a gente, e não só nos vomita informações. Não vejo muita graça em uma notícia de jornal como
se aprende a escrever nas faculdades de jornalismo, pois elas não têm alma, são sempre a mesma
fórmula elementar de um bom texto, um bom texto sem alma. A menos que haja uma subversão.
Subversão exige que se compreenda intimamente a norma, para inverter pontualmente
elementos basilares que mantenham a forma grosseira, mas convertam um tom em outro. A
subversão, quando feita com maestria, provoca o riso e o gozo, e transforma o tédio em algo
precioso.
A estilização, como descreve Bakhtin em sua Teoria do Romance, subverte, ironiza,
brinca, pinta e borda com o discurso alheio, em geral simplesmente ao repeti-lo. O uso e a
subversão de normas, desde que seja inteligível e intencional, compõe uma harmonia
significativa, uma coesão discursiva interna, um belo, mesmo que caótico e grotesco. Eu
entendo que grotesco nem sempre é feio ou ruim.

4 SUBMERGINDO EM ÁGUA GELADA (ELA NEM É TÃO GELADA ASSIM)


Falando em belo 8 , falemos do cerne deste papel. Tratando de teorizar sobre
elementos de composição 9 da arte, e mais especificamente da literatura, podemos dizer que
harmonia e balanceamento é recomendado, em muitos dos casos. Aristóteles tinha mais apreço
pela tragédia, e eu pela comédia. Assim sendo, invertamos a ordem, pois discordo
completamente dele. Não é a tragédia a “mímese dos homens que agem” (Aristóteles, 2017. P.
85.), ou a “mímese (...) da vida” (Aristóteles, 2017. P. 79-81.) em última instância. Defendo
aqui que aquele grego caduco estava muito equivocado sobre muitas coisas, o pessoal do
Instituto de Biologia deve poder citar algumas. Eu argumento que a comédia gera catarse de

5
Características como o momento histórico de produção, o contexto social, econômico, político e biográfico do
autor, a bagagem cultural dele, o meio de produção, o gênero discursivo, toda a rede de eventos e elementos que
se encadearam até o milésimo de segundo anterior à última edição original dos autores (e aqui entram os
tradutores, organizadores, editores, curadores, etc.) em uma obra a ser exposta ao escrutínio do público.
6
Trato de tudo aquilo que tange à cultura, incluindo dados linguísticos do local. Quando eu li Luz em agosto, só
consegui engatar ao entender a fala original (sotaque e dialeto), as crenças locais, os preconceitos, e as
peculiaridades daquela sociedade.
7
Refiro-me à interação entre a obra e a bagagem do leitor. Essa interação entre a obra e o leitor se expressa em
produções intertextuais posteriores à obra mesmo que seja um simples paratexto não-autorizado, como uma
anotação na margem de um livro injuriando uma frase, mas creio que a interação ainda envolve a obra, logo
coloco aqui também.
8
Utilizamos neste ensaio belo no sentido de sublime, elevado, superior.
9
Compor, no sentido que Aristóteles utiliza no primeiro parágrafo de sua Poética (Aristóteles, 2017. P. 35)
forma mais natural, conversa muito mais conosco enquanto leitores, e implica em criticismo e
reflexões muito mais fundamentadas. O grego diz que a tragédia, por não ter narração, leva à
catarse “em função da compaixão e do pavor” (Aristóteles, 2017. P. 73.), e eu digo que a
comédia, a sátira menipeia, o romance (a pizza portuguesa dos gêneros narrativos clássicos), e
toda a corja de gêneros modernos e contemporâneos levam à catarse de forma efetivamente
mais fluída, também pela compaixão (que eu prefiro renomear como identificação), mas
também pela momentânea satisfação de necessidades humanas básicas relacionadas à arte.
Por que consumir arte? Consumir? Não! Não problematize meu “consumir”! Pronto,
mudo já a pergunta. Por que ansiar por arte? Por que eu leio livros? Por que eu assisto a filmes?
Por que ouço música? Não é sempre por mero passatempo.
Eis a água gelada de que o título da seção fala. O que me falta em matéria de
humanidade para eu ir atrás da arte? É precisamente isso, creio eu. A falta e a ânsia por
humanidade, por experiências humanas múltiplas. O tempo se esvai e as minhas possibilidades
são finitas. Tenho pouco tempo para muitas vontades. Por que se importar com arte quando tem
gente morrendo na fila do transplante? Por que ansiar por arte quando o que dá dinheiro é
escrever linhas de código? Porque eu não quero sobreviver no conforto desconfortável de um
flat sem alma e sem brilho nos olhos. Catarse é purificação, quando por meio da entrega,
imergimo-nos nas águas termais da arte e limpamos a mente das chagas banais do mundano. É
a limpeza do parabrisa da mente, fatigado de esbarrar em insetos, que sujam o vidro que permite
vermos a vida. Como veremos o belo à frente, quando insetos abjetos maculam a visão? A arte
me limpa o parabrisa, com água cristalina, para que eu possa ver à frente, às margens deste
penhasco sombrio, o sublime mar que reluz com o fim da neblina. E para que eu perceba que a
água cristalina que me lava a visão é similar à água cristalina logo abaixo. E para perceber que
uma águia poderosa não percebe, decerto, a beleza daquela água clara. E que um satélite de
mapeamento e GPS, por mais avançada que seja sua suposta inteligência artificial, não aprecia
a brisa fresca e calma, às margens desse desfiladeiro, logo após a chuva. Catarse é a minha
entrega à arte, que me adota, me afaga e me alimenta com humanidade. Depois me aconselha,
me ensina, e me beija a testa, me dizendo que vai ficar tudo bem, que a tempestade se foi e que
ao abrir os olhos verei que a beleza não estava dentro de mim 10, mas ao meu redor o tempo
todo, bastava eu olhar da maneira certa. A catarse é, então, em suma o mais elevado exemplo

10
Partindo da ideia de que não somos humanos a priori, pois o que nos torna humanos é a capacidade de
percebermos o mundo, atribuirmos significações e subjetividades a ele, e também a nós, nos inserindo com
protagonismo e humildade frente ao ambiente anterior a nós. Essa posição que defendo orienta minha tese de
que, através disso, a humanidade se coloca perante o mundo e utiliza de sua vitória e resiliência para criar em
ciclo perene de humanização de si e do outro, seja ele o que for.
de humanidade, a identificação, o arrebatamento, a lágrima que cai ao se deixar abraçar pela
obra, e o iminente novo olhar sobre o mundo depois do contato com a obra.
Aristóteles tinha razão em insistir na mímese como elemento estético onipresente
no belo, mas não da vida, termo de certa forma vago. Mímese da humanidade é o que creio. A
mímese, contudo, só tem efeito na arte que consegue levar o leitor à catarse. Elementos como
a estilística do artista, gêneros discursivos linguísticos e semióticos, ritmo, momento histórico,
sensações geradas, tudo dependerá do conjunto da obra para fazer mais ou menos sentido. O
que importa, e o que melhor causa efeito estético nesta mente abandonada pelos deuses do
Olimpo, é o uso rico e harmônico do maior número de elementos possíveis, contanto que a obra
comporte com naturalidade em sua coesão interna geral, ainda que dissonantes entre si (ah,
Bakhtin! Tua polifonia enche minha mente de tantas vozes que eu mal ouço meus pensamentos
como sendo inteiramente meus...). Falando em intertextualidade, pois tudo tem a ver com o que
tratamos, dizemos que será essencial para uma obra de arte se consagrar com valor no
rigidíssimo tribunal artístico de moi-même que tenha referências. Se eu escrevo baboseiras
inverossímeis que deformam a face e contraem o tórax de um certo leitor desocupado, é porque
aquilo que eu escrevi conversa convosco, ó omnietceterístico eteceterado! Se conversa com
quem lê, utiliza das mesmas referências, em maior ou menor grau, e de forma mais ou menos
explícita.
Quanto mais referências, quanto mais fontes forem utilizadas para formar o
coquetel que o autor bebeu e se embriagou para balbuciar as mais sublimes obras de arte já
compostas, e quanto mais sábias forem as escolhas para compor essa colagem de referências,
orientadas pelo projeto maluco do artista e arrematados por ele de acordo com sua estilística,
mais valorável será a arte.
Sábio é aquele que sabe muito, sente muito, pensa muito e está sempre preparado
para contar mais da história, mas não o faz porque sabe que não precisa. Parte da magia está na
ambiguidade e na parcimônia na estruturação. Por que eu vou contar a biografia verdadeira de
Gatsby logo nos primeiros capítulos, quando eu posso brincar um pouco mais? A arte chega até
a ser um pouco erótica: por que eu vou apresentar os personagens e o enredo de forma plana e
nua de uma vez, tal qual em um filme pornô? Eu posso, em vez disso, construir para o leitor um
imaginário, uma fantasia, uma pessoa de carne e osso que ele ame à sua frente, desnudá-la passo
a passo, criando tensão, brincando com a ânsia de queromaisqueromais, com o misticismo
pulsante do epílogo do prazer da fruição, com a própria fruição do momento que beira o fim
que se alonga, e posso enfim liberar o clímax de forma livre, intensa, memorável, forte. A arte
vai te arrebatar, de deixar morto de sensações, te deixar sem ar, até que ela acabe e te deixe com
saudade do momento anterior.

5 SAINDO DA PISCINA (ESTÁ MAIS FRIO AQUI FORA, QUER PULAR DE


NOVO?)
Ao final do mergulho, emergimos da água fria com calafrios. É sempre um trauma
propor-se a explorar a própria natureza. Ao sair da piscina gelada, encontramos um ar que
mesmo parado causa a sensação de desalento e ventania leve. Percebo que há muito mais a dizer
que eu não pude colocar em palavras de forma linear. Percebo que me faltou tempo, memória,
leituras e espaço para dizer mais sobre detalhes importantíssimos da minha Estética. Essa bruma
leve me gela até os ossos, e gera mais teorias sobre particularidades que não pude dar tanta
atenção neste papel. Daqui, da beira desta piscina olímpica e solitária, abandonada na
madrugada nos fundos desta escola, o tempo de subir novamente no trampolim só depende do
tempo que vou levar para recuperar o prumo instável sobre o piso antiderrapante. No fim,
chegamos ao início, exceto que ao percorrer esse caminho, chegamos à sensação de sabermos
um pouco mais. Sabemos mesmo? Acreditar que sim é o que nos sossega o âmago, ao menos
até que subamos novamente no trampolim para encontrar a água gelada e revermos nossos
conceitos, caso seja auspicioso.

REFERÊNCIAS

Aristóteles. Poética. Tradução, notas e introdução de Paulo Pinheiro. 2. Ed. São Paulo:
Editora 34, 2017.

Bakhtin, Mikhail. Teoria do romance I: A estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo:
Editora 34, 2015.

Eagleton, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de Waltencir Dutra; revisão
da tradução de João azenha Jr. 6. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Data de entrega: 08/12/2023.

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