Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Páginas do Editor
O CONCEITO DE LITERATURA *
Gustavo Bernardo
1
A economia de meios é condição de toda técnica. O jogador de futebol (Pelé, por
exemplo) se torna um artista, um virtuose, somente quando escolhe tais
movimentos e não escolhe outros, buscando sempre o efeito final — no seu caso, o
gol, a vitória. Há muitos jogadores bem dotados para o esporte que nunca se
tornam artistas do ofício, porque driblam bem, mas para o lado, ou porque correm
muito, mas não fazem a bola correr na direção certa. O diretor de cinema
(Hitchcock, por exemplo) se torna um artista, um virtuose, somente quando sabe
montar o seu filme cortando muitas cenas e encadeando as demais, buscando
sempre o efeito final — no seu caso, o espetáculo do suspense, do medo e do
humor associados. Há muitos cineastas, com dinheiro e idéias, que, todavia, nunca
se tornam artistas do ofício, porque não sabem o ponto de corte e não conseguem
eliminar a cena que não devia entrar.
2
literatura comparada, a teoria da literatura. Mas é, ao mesmo tempo, talvez, a mais
difícil de todas as tarefas, justamente porque precisamos precisar o nosso lugar em
relação ao tema. Para demonstrá-lo, podemos recorrer à primeira das quatro
perguntas fundamentais do ser — quem sou eu, de onde eu vim, para onde vou,
mas que raios estou fazendo aqui —, perguntando, ao querido leitor: quem é você?
3
O conceito, qualquer conceito, é uma ficção. Não
existe enquanto coisa, mas existe enquanto
condição sine qua non para se lidar com as coisas.
Logo, é uma ficção necessária, o que nos remete à
própria literatura, que produz ficções
absolutamente necessárias para nós, em
particular, e para a sociedade, como um todo. A
literatura, como conjunto assumido de ficções,
pode ser reconhecida como ficção ela mesma.
Nessa hora, o nosso argumento começa a se
tornar circular — o conceito da literatura começa a
reconhecer a literatura em si como conceito ela
mesma —, o que não ocorre nem por acaso nem
por conta de algum defeito. Esta circularidade,
este eterno retorno do argumento, faz com que o pensamento progrida não para
"frente", mas sim em espiral, na direção de um centro ao qual se chega cada vez
mais perto, ainda que nunca se possa chegar "lá". A forma da espiral está contida
no mito do Uroboro, a cobra que tenta desesperadamente devorar o próprio rabo,
indicando os dois extremos do esforço intelectual humano: a necessidade e a
impossibilidade. O uroboro foi representado, pelo gravador holandês M. C. Escher,
como uma espécie de dragão que, ao tentar se devorar (ou, talvez, ao tentar se
entender), acaba formando com o corpo um "8" deitado, ou seja, forma o símbolo
do infinito.
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
4
parente muito próximo do mentiroso. Afirma, a seguir, que o seu fingimento é
completo, vale dizer, radical, chegando a fingir que é dor uma dor verdadeira. A
dor, verdadeira, pode até ser a motivação inicial do poeta: uma dor-de-cotovelo,
por exemplo. Ao representá-la, porém, pela radicalidade da poesia, ela se
transforma em outra coisa: a dor (sensação e emoção indizíveis) vira "palavra" e,
portanto, se torna dizível. A emoção primeira se transforma em uma emoção nova,
superando aquela emoção que dera partida aos versos.
Esta difícil convivência, porém (de nós conosco mesmos), não se dá num plano
exclusivamente racional. Não basta, de modo algum, a compreensão da causa dos
nossos dramas para nos sentirmos tranqüilos. Como também se sabe, em termos
de alma e de existência, saber não implica, necessariamente, poder. Às vezes,
5
sucede mesmo o contrário: saber a razão do sofrimento somente intensifica o
sofrimento. Há, portanto, um outro saber, que a literatura e a poesia admitem,
mobilizando razão e emoção nas voltas daquela espiral. É um saber dinâmico, cujas
respostas são móveis, metamorfas, de certo modo, brincalhonas, irônicas (ou, para
usar termo mais acadêmico, lúdicas), como conclui a terceira e última estrofe do
poema de Fernando Pessoa:
Assim, nas calhas de roda (como em um moinho que transforma o trigo em pão), o
coração, miticamente o centro da alma, gira, entretendo e enganando a razão, para
moer a dor transformando-a em verso — para fazer com que a dor faça sentido.
Mundus vult decipi, decipiatur ergo — o mundo quer ser enganado, logo, que o
seja. O adágio latino mostra a necessidade humana do logro, talvez porque a
verdade, última e primeira, nos seja inacessível. Como não podemos responder
quem somos, ficcionalizamos, inventamos um personagem, até o ponto em que a
invenção se torna verdadeira. Lemos um romance de Machado de Assis, sabendo
que "qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência", mas
não podemos deixar de nos reconhecer na miséria e na grandeza daqueles
personagens. É como se, por determinados instantes, Machado de Assis, que
sequer nos conheceu nem ao nosso século, nos conhecesse melhor do que nós
mesmos.
6
O mundo é uma grande brincadeira, podemos afirmar com toda a seriedade. Num
pequeno texto chamado "Der Dichter und das Phantasieren" (a melhor tradução
seria "O poeta e o devanear"), Sigmund Freud comparava o escritor de ficção à
criança que brinca. Ao observar crianças brincando, percebera a brincadeira como
uma coisa muito séria. Não se pode impunentemente interromper uma brincadeira,
ou mudar as suas regras; há risco sério de choro, ranger de dentes, arrancar de
cabelos, traumas gravíssimos. Porque a antítese da brincadeira não é a seriedade,
mas sim a realidade. Como a realidade é sempre muito "grande" e assustadora, a
criança a reconstrói, sob seu controle tanto racional quanto emocional, no jogo.
Ora, mas na chamada vida adulta e "real", o mesmo parece acontecer. Se o leitor
trapacear num reles jogo de pôquer no sábado à noite, seus parceiros se sentirão
profundamente ofendidos, ainda que não joguem a vera, isto é, a dinheiro. Se o
time de futebol para o qual torce desde pequeno cair para a segunda divisão
(desgraça!), periga de sentir a sua própria identidade afetada, precisando se
esforçar muito para não reagir às brincadeiras agressivas (que são "só brincadeira"
e, ainda assim, agressivas) dos amigos que torcem para os demais times. Tudo isso
porque jogo é coisa séria. Tão séria, que as nossas atividades profissionais e
políticas se desenvolvem, sem que o notemos claramente, como jogos — em suma,
como instâncias ficcionais. Para fazer parte de uma corporação profissional ou
política é preciso não só adquirir os conhecimentos e a competência necessários,
mas também aprender a dominar o jargão, os gestos, as regras escritas e não
escritas — em resumo, é preciso aprender a jogar o jogo.
Isto não significa, obrigatoriamente, ser cínico ou hipócrita. Mais cínico, talvez, seja
aquele que acusa os outros de serem meros jogadores, isto é, atores de uma peça
de ficção, como se a sua própria acusação não fosse uma determinada jogada, ou
seja, não fizesse parte… de um jogo. Como professor, sei, por exemplo, que o ideal
de uma avaliação justa e objetiva é não mais do que isto: um ideal. Um horizonte
necessário, mas inalcançável. Sei que a nota, de 0 a 10, corresponde a uma
medida arbitrária, corresponde a uma regra do jogo. É necessária, não para ser
justo (isso, nunca se pode ser), mas para promover, ainda que artificialmente, a
necessidade e a vontade de saber. Entretanto, esta concepção pedagógica, que
pretendo honesta, não é de fácil aceitação pelos alunos, porque é difícil um adulto
se aceitar sentado sobre o tabuleiro de um jogo. Em outras palavras, temos
vergonha das nossas fantasias, assim como temos vergonha de jogar (até quando,
marmanjos, jogamos bola, logo perdemos o humor e transformamos a brincadeira
em guerra, quebrando a perna do adversário).
7
Freud reconhecia que as crianças, ao brincarem, sabem que brincam. Mas observa
que, ao crescerem, começam a ficar com vergonha de brincarem em público,
passando a fazê-lo intimamente — fantasiando, devaneando. Só que ficam com
vergonha de externar as suas fantasias, os seus devaneios, reprimindo-se e
recalcando-se. O escritor criativo, no entanto, consegue "se pôr para fora",
diferenciando-se do homem comum ao encontrar uma maneira de dar forma
pública às suas fantasias e devaneios; ele "finge tão completamente que chega a
fingir que é dor a dor que deveras sente", o que ajuda os leitores a encontrarem,
na dor lida, não aquela que já tinham antes de lerem, mas outra — aquela que
ainda não tinham e que, por um efeito de perspectiva, empresta sentido à dor
primeira, à dor que não fazia sentido.
Como afirma Octavio Paz (citado por Perrone-Moisés), o poeta encontra sempre, na
linguagem, a alteridade (a otredad): "Escrevemos para ser o que somos e aquilo
que não somos. Num ou noutro caso, buscamos a nós mesmos. E se temos a sorte
de encontrar-nos — sinal de criação — descobrimos que somos um desconhecido."
Arthur Rimbaud, poeta francês, disse-o com maior economia de meios (de
palavras): "je est un autre". Mais do que afirmar que eu posso ser um outro, ou
seja, posso usar diferentes personas (em sentido estrito, máscaras), Rimbaud
8
afirma que "eu é um outro", isto é: minha identidade se define de fora, pela
linguagem e, principalmente, pela linguagem dos outros. Reconhecê-lo pode ser
desesperador, mas quebra toda a arrogância na sua raiz.
Entretanto, devemos historicizar, ou seja, situar sob uma perspectiva histórica, este
nosso esforço de conceituar a literatura como perspectivização da verdade. Se
concordamos que possa ser assim hoje, configurando ainda, a despeito da
emergência dos media, a necessidade da literatura, podemos concordar que
sempre tenha sido assim? Por que a literatura tem importância institucional? Por
que é ensinada nas escolas e nas universidades? Por que tantos alunos, e até
mesmo muitos professores (mormente das chamadas disciplinas exatas),
consideram o estudo da literatura o supra sumo da cultura inútil e, a despeito, ela
continua a ser ensinada e cobrada, com significativo espaço na grade curricular e
nos exames vestibulares? Um pouco de história do seu conceito pode nos ajudar a
responder a estas perguntas.
9
conhecimento e para a ação humana. Justifica-se, pela via da nacionalidade,
portanto, a necessidade da literatura e, conseqüentemente, a necessidade do
ensino de literatura. A consolidação dos Estados Nacionais, nos séculos XVIII e XIX,
com sua expansão imperialista e posteriores lutas de independência, apenas reforça
este projeto, atualizando-o através dos diferentes romantismos, na arte
propriamente dita, e através do ensino da literatura, implantado oficialmente nas
universidades e nas escolas.
Esta contradição está presente nas salas de aula e nos manuais didáticos. A
disciplina Literatura Brasileira tem um razoável espaço na grade curricular e nos
exames vestibulares, mas alunos e professores das demais matérias não
conseguem compreender completamente a sua utilidade, se comparada com
Matemática, Biologia, até mesmo História. Não à toa os manuais didáticos
soberanamente se recusam a tratar dos conceitos-chave da disciplina, ou o fazem
num capítulo introdutório e perfeitamente descartável, repisando a noção de
literatura como belles lettres e sua vinculação estreita com a nacionalidade. Não à
toa os manuais didáticos permanecem presos, no final do século XX, à concepção
romântica da história como combate de antagonismos. O século XIX, romântico-
positivista, leu os séculos anteriores, anacronicamente, à luz da sua própria falsa
dicotomia entre a razão (realista) e a emoção (romântica). Essa concepção é
aparentemente uma bobagem, pela perspectiva de qualquer teoria do
conhecimento desenvolvida no nosso tempo. No entanto, se tal concepção se
manteve por tantas décadas — na verdade, se mantém até hoje, na maioria
absoluta dos manuais —, não basta dizer que é uma bobagem. Porque serve aos
propósitos dos Richelieu e demais estadistas ou pedagogos de plantão, qual seja, a
defesa, simultaneamente espetacular e subliminar, da Língua e do Estado nacionais
— vale dizer, da Política e da Guerra. As aulas e os estudos de literatura ou se
tornam acontecimentos para exercícios de patriotismo e pieguice, e neste sentido
são soberanamente chatas, mas necessárias (inclusive, creio, é necessário que
sejam chatas), ou se tornam realmente inúteis, se comparadas com a noção de
utilidade presente nas demais disciplinas do currículo.
10
Aquelas obras, entretanto, que não se encaixam nos malfadados “estilos de época”
(as de Miguel de Cervantes, William Shakespeare, Machado de Assis e Guimarães
Rosa, por exemplo), sugerem mistério mais profundo que o da pátria geográfica.
Patriotismo, a propósito, para Vilém Flusser (filósofo tcheco que viveu no Brasil por
trinta anos), é sintoma de enfermidade estética, na medida em que transforma o
hábito — “a camada de algodão que encobre os fenômenos e ameniza as rebarbas”
— em algo misterioso, isto é, em algo a ser glorificado e fetichizado. O patriota
sempre corre o risco de cometer crime ético-político ao santificar o costume. O
costume mistificado encobre a feiúra, a miséria, a doença da nação. Sempre que
voltava a São Paulo de uma viagem, Flusser se chocava com as crianças famintas
nas favelas e nas esquinas, mas depois se horrorizava porque, justamente, como
qualquer brasileiro, percebia-se se acostumando com o que via: “o costume
patriotizado é crime ético-político, ou seja, um pecado que o patriotismo glorifica.
Confundir morada com pátria, costume com mistério, eis o que me parece ser o
núcleo do patriotismo”, afirmava, em artigo publicado n'O Estado de São Paulo de
14 de dezembro de 1991.
11
(porque, se não for esta "outra coisa", a própria literatura se transtorna em
costume, isto é: no estilo de uma época).
Isto não significa, de modo algum, que a literatura seja o apanágio dos bem-
pensantes, ficando todo o resto para os não-pensantes. Posso encontrar, se o
quiser, outros tantos exemplos de grandes cientistas e pensadores que não
gostavam de literatura. Como bem disse Jean-Paul Sartre, filósofo e dramaturgo
francês, o mundo pode viver muito bem sem literatura (na verdade, pode viver
melhor ainda sem o ser humano). Entretanto, como o autor destas linhas vive da e
para a literatura, forçamente tende a seu elogio (o que pelo menos é melhor do que
passar a vida lamentando as opção que fez). Descontada esta parcialidade,
podemos retornar ao nosso argumento, historicizando mais um pouco o conceito de
literatura.
12
plausível, como vimos, seria 1637), os fatos literários também o seriam. Logo, falar
em "literatura grega antiga", por exemplo, encerraria, mais do que um
anacronismo, verdadeiro nonsense. A hipótese realista entende, por sua vez, que
os fatos literários existem independentemente do vocábulo literatura, o que
permitiria falar em "literatura grega antiga", mesmo sabendo-se que tal modo de
dizer constitui solução léxica recente, não sendo contemporânea do fenômeno que
designa. Para Acízelo, porém, ambas as hipóteses são inconsistentes. A hipótese
realista não considera as mudanças históricas. As chamadas "artes verbais", em
meados do século XVIII, sofrem profunda reconcepção, que se consuma no início
do século XX. Muda, por exemplo, e de maneira radical, a noção de "autor": à
compreensão medieval do autor como authoritas, vale dizer, autoridade, segue-se
o ideal moderno, romântico, do autor como individualidade criativa. Muda, também,
a relação entre arte e técnica, pela perspectiva do trabalho: até o século XVIII,
produtos discursivos heterogêneos — prosa, verso, ciência, ficção, filosofia, carta —
submetiam-se à mesma arte (no sentido clássico: técnica, habilidade, perícia,
ofício), quando se observa o crescimento da distância conceitual entre razão e
imaginação — filosofia e ciência passam a se ocupar com a razão, enquanto a
imaginação torna-se apanágio de uma arte, cujos diversos gêneros logo seriam
recobertos pela palavra literatura, então submetida a uma espécie de reciclagem de
seu significado. A hipótese nominalista, por seu lado, sofre do pecado oposto,
encarando a reciclagem de um significado como a invenção de significado
inteiramente novo. Na verdade, o termo literatura não seria uma solução léxica tão
recente assim. Em latim, a palavra littera traduz o termo grego gramma,
significando letra do alfabeto, ou carácter da escrita. O coletivo litterae, equivalente
ao grego grammata, indica, primeiro, uma carta (epistula), e depois, por extensão,
qualquer tipo de obra escrita, ou então instrução, cultura. Cícero, no século II antes
de Cristo, já empregava litterae, bem como o neologismo litteratura, no sentido de
cultura obtida mediante o domínio da arte de ler e de escrever. Aulo Gélio, no
século II depois de Cristo, identifica o latim humanitas com o grego paidéia,
servindo-se do vocábulo litterae para designar o estudo das artes e letras dos
gregos, concebidas como representantes da idéia geral de homem (donde
humanitas, literalmente, "humanidade"). No latim medieval, os vocábulos da
família morfológica litterae tornam-se pouco utilizados, recobrando alento no
Renascimento, derivando-se em lettres humains e bonnes lettres (século XVI),
good letters e belles lettres, littérature e literature (século XVII). A partir do século
XVIII, a palavra "literatura" passa a significar, nos diversos idiomas ocidentais,
certo corpo heterogêneo de escritos, repositório de saberes tidos por relevantes
para todos os homens. Com a autonomização e especialização das diversas
13
ciências, este sentido se restringe às produções ficcionais e de poesia, embora
ainda se use, concomitantemente, para designar outros conjuntos de escritos (por
exemplo, "literatura jurídica"). A vinculação estreita que se faz entre aquelas
produções ficcionais e as línguas nacionais (promovida desde Richelieu, como
vimos) abre espaço para expressões como "literatura brasileira", "literatura
portuguesa", "literatura francesa", e assim por diante. Verifica-se, portanto,
considerando o trajeto histórico da palavra, que ela está longe de ser uma novidade
setecentista ou oitocentista.
14
e processos, fundamentais para se compreender o conceito propriamente dito de
literatura, também o são para se compreender os movimentos oníricos, vale dizer,
os sonhos de toda a gente. Na verdade, não são apenas os poetas e os professores
de literatura que ficam fazendo metáforas ou falando delas; o leitor, no momento
em que fecha os olhos e adormece, tem sonhos nos quais produz sucessivas
metáforas e metonímias — nos quais faz, podemos reconhecer, poesia. Se sonha
com uma intensa cor vermelha se sobrepondo às trilhas do seu caminho, pode, sem
que conscientemente o saiba, estar promovendo o deslocamento metonímico da cor
da camisa de determinada pessoa que encontrou durante o dia; se sonha com um
ninho de passarinho, vazio, pode, sem que conscientemente o saiba, estar
figurando a condensação metafórica de um certo colo, profundamente desejado.
Para que o leitor possa lidar com o enigma que a literatura e, quiçá, a vida,
representam, há a necessidade, como Samuel Coleridge formulou, da “suspensão
voluntária da descrença” — the willing suspension of disbelief —, movimento que
todo leitor de poesia precisa fazer para se permitir “embarcar” no poema que lê, de
modo a poder de fato “curti-lo” (nos sentidos arcaico e popular do termo). A
suspensão da descrença vale tanto para um poema quanto para um filme estilo
007, em que o espectador se exige embarcar na narrativa como se fosse verdade.
Esta atitude do "como se" (derivada do se então que gera os conceitos e o
pensamento) é fundamental, porque, sem ela, o espectador se sente enganado ao
assistir a tanta "mentira". Na verdade, um bom espectador e um bom leitor
desejam ser enganados — mundus vult decipi, decipiatur ergo —, para que, por sua
vez, se sintam existencialmente capazes de enganar, vale dizer, de iludir,
transformando-a, a própria realidade. Naturalmente, a suspensão da descrença é
uma espécie de exercício que se faz por certos momentos; se suspendêssemos a
descrença para sempre, entraríamos na tela do filme (como o faz a personagem de
The purple rose of Cairo, filme de Woody Allen) para não sair nunca mais.
15
E como deve ler o leitor especializado, isto é, o teórico, o crítico, ou o professor?
Creio que nós precisamos efetuar uma espécie de “suspensão da suspensão da
descrença”, ou seja, uma suspensão de segundo nível que implica uma segunda
leitura. Afinal de contas, sustentamos em nossas aulas, tudo o que merece ser lido
merece ser relido. Um dos perigos que corremos é fazer a primeira leitura como se
já fosse a segunda, analisando apressados o texto em suas partes constitutivas. Se
isto acontece, perdemos o prazer que nos levara, certo dia, a estudar literatura. A
tarefa crítica, propriamente, deve se exercer no momento da segunda leitura que,
aí sim, se desdobra em duas perspectivas: pela primeira perspectiva, deve-se reler
o texto para melhor entendê-lo e para melhor relacioná-lo com os outros textos
que conhecemos; pela segunda perspectiva, deve-se procurar ler exatamente a
nossa primeira leitura, isto é, como lemos da primeira vez, como o texto nos
afetou, nos mobilizou, por que veredas nos interessou. Este é o segredo (bem,
agora não é mais segredo) que junta as pontas da razão com as pontas da emoção,
tornando honesto e significativo o nosso trabalho. Dessa maneira, podemos
entender o processo que não só faculta como provoca aquela “suspensão da
descrença” (processo que, de resto, nas melhores histórias, persiste misterioso).
Mas esta segunda leitura (que não apenas relê um texto, como também "lê" a
primeira leitura) não basta, se quisermos compreender um pouco mais o conceito
de literatura. Parte da filosofia propõe algo bastante parecido com a suspensão da
descrença, formulada por Coleridge, e com a "suspensão da suspensão da
descrença", que formulamos nós. Poderíamos chamar este algo, por comparação,
de suspensão da crença — suspensão da crença nos mapas, vale dizer, na teoria,
na filosofia, na ciência. O exercício de “suspensão da crença” é o principal
responsável pelo misto de fascinação e vertigem que continua provocando a leitura
dos livros e do mundo, mesmo no leitor que vai se especializando. Tal qual
acontece com a suspensão da descrença, trata-se de um exercício que se faz por
um momento; depois, precisamos refazer, embora sob perspectiva renovada, a
nossa crença nos mapas do mundo: na teoria, na filosofia, na ciência.
16
corresponde à suspensão momentânea do juízo, para se tentar "ver" o fenômeno
sob nova perspectiva.
17
chamá-la, também, de “desatenção heurística”. Equivale a assistir a um “filme de
autor”, daqueles instigantes mas indefinidos, recusando-se a atribuir-lhe um
sentido pelo maior tempo suportável — até que, de repente, surja, como um
insight, como um estalo, aquela sensação de compreensão totalizante. Todavia, é
importante, nesta hora, fazer nada. Nada. Apenas tomar em consideração e não se
apressar em explicar, não se apressar em traduzir em palavras. As palavras
apressadas não só não conseguem traduzir aquela sensação íntima, como ainda a
encolhem e a amesquinham irremediavelmente.
18
nem na linguagem. Deduz-se, daí, a necessidade da suspensão da crença, a
necessidade da epokhé, porque, “a bem da verdade, não existe a razão, ela só
existe em pedaços” (conforme a formulação feliz de Deleuze).
Admite-se que semelhante descrição do gesto de pintar, bem como tudo o que até
aqui se falou do espanto, da redução fenomenológica e da epokhé, soa a mística,
se por "mística" se entende a "desaparição", a indistinção do sujeito e do objeto na
realidade concreta. De fato, estamos nos aproximando (alguns diriam:
perigosamente…) da concepção do budismo-zen, da união mística e íntima do
arqueiro com o alvo, do chá com a cerimônia de tomar o chá. Com efeito, o zen
deseja acentuar, como o método da fenomenologia, a vivência concreta dos
fenômenos. O mestre zen não vive a meditar, as pernas cruzadas em posição de
lótus (esse é um clichê ocidental); ele deve ser profundamente iconoclasta,
chutando, literalmente, todas as imagens, principalmente as imagens da sua
própria cultura (as de Buda, por exemplo), para banir toda distinção entre o
sagrado e o profano, de maneira a sacralizar o cotidiano. De outra parte, a
literatura parece fazer o mesmo: sacraliza o cotidiano, ao erigir um altar fugaz,
sem pompa e sem pose, ao enigma.
19
pensamento cartesiano, assumindo a dúvida não apenas metódica, como
propriamente urobórica, por seu método. Bem a propósito, Vilém Flusser entendia a
obra literária de duas maneiras: ou como uma resposta ao contexto histórico em
que surgiu (como uma resposta a um texto que a tenha antecedido), ou como uma
pergunta a dado leitor em dado momento. Se tentarmos compreender a obra como
resposta, dizia ele, precisaremos analisá-la e analisar as suas relações ou com o
contexto de que emergiu, ou com o texto que a antecedeu. O campo dessa
tentativa é a crítica. Se tentarmos enfrentar a obra como uma pergunta (vale dizer,
como uma provocação), nos obrigamos a conversar com ela. O campo da segunda
tentativa é o da especulação.
20
cientistas). Por isso, Luiz pode afirmar que aceitar a leitura de uma obra enquanto
ficcional implica pôr em questão, simultaneamente, tanto a possibilidade de
significação da ficção quanto a possibilidade do nosso sentido da realidade: "se é
ficção, como pode ser séria? Se é séria, como o leitor não sentirá perturbadas as
respostas sérias que dá ao dia-a-dia?" Gera-se desse modo uma tensão de
atitudes, em que cada uma é minada pelas outras. É o assumir da tensão que faz a
fecundidade da postura especulativa. Por isso, nem a leitura técnica nem a leitura
histórico-sociológica do texto literário seriam suficientes. Não haveria, portanto,
pergunta Costa Lima, algum homólogo à fala que mostrasse o mundo como um
útero múltiplo, onde a miséria e o absurdo pudessem conviver com formas
inesperadas de alegria?
referências bibliográficas
21