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A HISTÓRIA HOJE EM DIA


VAVY PACHECO BORGES
In: O que é história. São Paulo: Brasiliense, 1993, Coleção Primeiros Passos: 17.

No novo dicionário Aurélio, ao se procurar o termo "história", encontramos


muitos significados para a palavra. Entre uns quinze enumerados, podemos
destacar alguns que enfocam a história como: o passado da humanidade, o
estudo desse mesmo passado, uma simples narração, uma "lorota", uma
complicação, etc.

Como se percebe pelo primeiro capítulo, a história de que aqui tratamos está
ligada aos dois primeiros sentidos mencionados e que colocam claramente a
ambiguidade fundamental do termo: ele significa, ao mesmo tempo, os
acontecimentos que se passaram e o estudo desses acontecimentos. Para
contornar essa dificuldade, os historiadores as vezes acrescentam ao termo
"historia" o termo "acontecimento" ou "processo" (a história-acontecimento
ou história-processo), para designar seu primeiro sentido (os acontecimentos
históricos), e o termo "conhecimento" ‘(a história-conhecimento), para
designar o segundo sentido (o conhecimento histórico).

A história-acontecimento é a história do homem, visto como um ser social,


vivendo em sociedade. E a história do processo de transformação das
sociedades humanas, desde o seu aparecimento na terra até os dias em que
estamos vivendo. Desde o início, portanto, pode-se tirar uma conclusão
fundamental: quer saibamos ou não, quer aceitemos ou não, somos parte da
história e temos então todos, desde que nascemos, uma ação concreta a
desempenhar nela.

São os homens que fazem a história; mas, evidentemente, dentro das condições
reais que encontramos já estabelecidas, e não dentro das condições ideais que
sonhamos. Eis ai a razão de ser, a justificativa da história, em seu segundo
sentido: o conhecimento histórico serve para nos fazer entender, junto com
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outras formas de conhecimento, as condições de nossa realidade, tendo em


vista o delineamento de nossa atuação na história.

Os dois sentidos da palavra estão, pois, estreitamente ligados: os


acontecimentos históricos (a história-acontecimento) são o objeto de análise
do conhecimento histórico (da história-conhecimento).

Numa extensão ampla dos dois sentidos, história seria então aquilo que
aconteceu (com o homem, com a natureza, com o universo, enfim) e o estudo
desses acontecimentos. Tudo tem sua história, pois sabemos que tudo se
transforma o tempo todo. Mas aqui nos interessam principalmente as
transformações das sociedades humanas.

O sentido mais difundido do termo é o primeiro, o de história-


acontecimento; a maior parte do tempo em que falamos em "história",
referimo-nos, por exemplo, a "história da América", ou as "grandes figural
da história". Mas aqui tratamos especificamente do segundo sentido, o de
conhecimento histórico.

O primeiro capítulo apresenta um breve resumo de como foi produzido até


hoje esse conhecimento. Neste capítulo veremos como e hoje compreendida e
produzida a história. Essa conceituação atual é resultante do longo caminho da
história, observado no primeiro capítulo.

O que é a história e para que serve?

A função da história, desde seu início, foi a de fornecer à sociedade uma


explicação de suas origens (ou seja, uma explicação genética). A história se coloca
hoje em dia cada vez mais próxima às outras áreas do conhecimento que
estudam o homem (a sociologia, a antropologia, a economia, a geografia, a
psicologia, a demografia, etc.), procurando explicar a dimensão que o homem
teve e tem em sociedade. Cada uma dessas áreas tem seu enfoque específico.
Uma visão mais ampla e mais completa, entretanto, exige a cooperação entre
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as diversas áreas. Isso tem sido tentado pelos estudiosos com maior ou menor
êxito, no chamado trabalho interdisciplinar, pois inclui diferentes disciplinas.

A história procura especificamente ver as transformações pelas quais


passaram as sociedades humanas. A transformação é a essência da história;
quem olhar para trás, na história de sua própria vida, compreendera isso
facilmente. Nos mudamos constantemente; isso é válido para o indivíduo e
também é válido para a sociedade. Nada permanece igual e é através do
tempo que se percebem as mudanças.

Eis por que se diz que o tempo é a dimensão de análise da história. O tempo
histórico através do qual se analisam os acontecimentos não corresponde ao
tempo cronológico que vivemos e que é definido pelos relógios e calendários. No
tempo histórico podemos perceber mudanças que parecem rápidas, como os
acontecimentos cotidianos: por exemplo num golpe de Estado, cujo
desenrolar acompanhamos pelos jornais. Vemos também transformações
lentas, como no campo dos valores morais: o machismo, por exemplo, é um
valor que impera na maior parte das sociedades que a história estuda, a ponto
de se poder dizer que a história que está escrita mostra um processo
praticamente só conduzido pelos homens. No Ocidente, aproximadamente de
um século para cá, surge um questionamento mais constante desse valor
milenar. Isso se dá em grande parte devido a uma participação maior da
mulher no processo de produção: a medida que as mulheres saem da esfera
exclusiva do lar e começam a refletir na realidade.

A caminhada que a humanidade fez explica muito sobre a própria


humanidade, assim como o que uma pessoa faz explica muito sobre ela. E a
caminhada da humanidade que damos o nome de processo histórico.

Desde que existem sobre a terra, os homens estão em relação com a natureza
(para produzirem sua vida) e com os outros homens. Dessa interação é que
resultam os fatos, os acontecimentos, os fenômenos que constituem o processo
histórico.
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Quase sempre que a história da humanidade nos é apresentada, é a evolução


da sociedade europeia ocidental que é tomada como modelo de
desenvolvimento desse processo histórico. Essa posição eurocêntrica é
errada: do ponto de vista da história, a evolução da sociedade europeia
ocidental, com seu alto grau atual de desenvolvimento tecnológico, não deve
ser um padrão de comparação para se estudar a história de qualquer outra
parte do sistema capitalista, como, por exemplo, a América Latina. Não se
deve, por meio desse tipo de comparação, julgar se uma sociedade está
"atrasada" ou "adiantada", em seu desenvolvimento histórico.

Não há uma linha constante e progressiva de desenvolvimento na história da


humanidade, pois temos, ao mesmo tempo, hoje em dia, sociedades com
formas de vida primitivas, consideradas ainda no chamado período pré-
histórico (por exemplo, como certas tribos na Nova Zelândia), e sociedades
com um grau de desenvolvimento que permite explorações interplanetárias
(como fazem os americanos e os russos). Não se percebe ainda, como
exemplo, uma linha constante e progressiva da passagem, a partir da
Antiguidade, do trabalho escravo ao trabalho assalariado: a escravidão
quase que desaparece na Europa Ocidental, durante a Idade Média, para
reaparecer na Idade Moderna, imposta pelos europeus nas Américas, como
forma de relação de trabalho dominante. Não se deve, portanto, identificar a
ideia de processo histórico com uma ideia de progresso necessário.

Dizer que o processo histórico é contínuo não significa dizer que ele obedeça a
um desenvolvimento linear: não é uma linha reta com tendência constante, inclui
idas e vindas, desvios, avanços e recuos, inversões, etc. Ha mesmo
transformações que podem ser vistas como rupturas, pois alteram toda
uma forma de viver da sociedade. É, porém, uma ruptura que foi lentamente
preparada, que está sempre ligada com algo que já existia, pois não se pode
admitir o surgimento de uma situação nova sem ligação com as anteriores.

As alterações no processo histórico são decorrentes da ação dos próprios


homens, os agentes da história. Não é uma evolução natural: a história da
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humanidade é diferente da história da natureza e a natureza também tem sua


história, pois ela também passa por mudanças; todo o universo, nas suas mais
diferentes partes, sofre mudanças, e por isso tem sua história. Mas a história
da humanidade é diferente justamente por ser feita pelos homens. São os
homens constituídos em sociedade que, embora nem sempre
conscientemente, atuaram e atuam para que as coisas se passem de uma ou
de outra maneira, para que tomem um rumo ou outro. A entidade "história"
não existe. Uma força superior externa aos homens, que os conduzisse como
veículos, não existe.

Não se deve buscar uma razão para os acontecimentos históricos dentro do


conhecimento da própria história; a trajetória do homem na Terra é
indeterminada, em busca de sua própria razão de ser. Vista em si mesma e por
si mesma, ela não faz sentido. O sentido dos acontecimentos históricos não
deve ser buscado através do conhecimento histórico, pois a finalidade desse
conhecimento não é explicar a razão de ser do homem na Terra, não é dar
uma justificativa do que aqui estamos fazendo. Sua finalidade é estudar e
analisar o que realmente aconteceu e acontece com os homens, o que com
eles se passa concretamente. Essa análise não é para buscar uma filosofia da
vida, mas para propiciar uma atuação concreta na realidade.

Falamos sempre em "humanidade"; como ela está em constantes


transformações, não existe uma "essência humana imutável" desde o início
dos tempos, mas homens diversos, em situações diversas. A humanidade
não é um todo homogêneo, e a história não a analisa assim.

Na realidade, dificilmente o historiador pode tratar, ao mesmo tempo, de


toda a humanidade. Ao escrever a história, em geral ele se ocupa
especificamente de uma determinada realidade concreta, situada no tempo
e no espago. Estudam-se uma tribo, um povo, um império, uma nação, uma
civilização, como, por exemplo, o povo judeu, antes do nascimento de Cristo;
a formação do Império Macedônico, a civilização greco-romana, o surgimento
da Franca, etc. Mas a meta de formulação de uma história-síntese (uma
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explicação global de todo o processo histórico) não deve ser afastada, embora
muitos historiadores acreditem ser ela uma utopia.

O homem é um ser finito, temporal e histórico. Ele tem consciência de sua


historicidade, isto é, de seu caráter eminentemente histórico. O homem vive
em um determinado período de tempo, em um espaço físico concreto; nesse
tempo e nesse lugar ele age sempre, em relação à natureza, aos outros
homens, etc. É esse o seu caráter histórico. Tudo o que se relaciona com o
homem tem sua história; para descobri-la, o historiador vai perguntando: o
quê? quando? onde? como? por quê? para quê?...

Todos percebemos, por experiencia, a ligação básica implícita dentro da ideia


geral de tempo: passado-presente-futuro. Para a história, o tempo só
interessa nessa perspectiva tripla. O que é preciso fazer é uma história que,
mesmo estudando o passado mais remoto, faça-o para explicar a realidade
presente. Fazer uma história do presente não é, portanto, escrever sobre o
presente, mas sobre indagações e problemas contemporâneos ao
historiador.

É preciso conhecer o presente e, em história, nós o fazemos sobretudo através


do passado, remoto ou bem próximo.

Conforme o presente que vivem os historiadores, são diferentes as perguntas


que desfazem ao passado e diferentes são as projeções de interesses,
perspectivas e valores que eles lançam no passado. Eis por que a história é
constantemente reescrita. Como diz o historiador francês Braudel: "a história
é filha de seu tempo".

Mesmo quando se analisa um passado que nos parece remoto, portanto,


seu estudo a feito com indagações, com perguntas que nos interessam hoje,
para avaliar a significação desse passado e sua relação conosco. O passado
nos interessa, hoje, pela sua permanência no mundo atual.
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A história vista como o estudo do passado parece hoje para todos um ponto
pacífico. Mas a história também é aceita como o estudo do passado em função
de um presente desde os historiadores gregos.

A ligação da história com o futuro, porém, é bem mais sutil: não se pode falar
em uma hist6ria do futuro. Qualquer colocação nesse sentido é mera
especulação. Pode-se falar em tendências, probabilidades, possibilidades
históricas, mas não mais do que isso. Faze-lo seria impor um esquema pré-fixado
de como as coisas se devem passar, o que é impossível. A partir de um diagnóstico
do presente, ela pode ajudar a delinear ações futuras, não mais que isso.

Seu uso, porém, tem sido uma constante pelos que detêm qualquer tipo de
poder, ou mesmo o poder que advém do próprio saber. A história como
forma de conhecimento não deve servir a uma manipulação dos poderosos.

Mas, ao explicar as transformações resultantes das ações dos homens, a história


leva a perceber que a situação de hoje é diferente da de ontem e procura
esclarecer os "comos" e os "porques" disso. Para os que não sabem das
alterações passadas, a realidade que vivem pode parecer "eterna" ou
"intransformável", e como tal justificada. Isto leva a uma atitude passiva, a
uma conformação. Ao contrário, o conhecimento dessas alterações passadas e
a compreensão das suas condições podem levar ao desejo e à atuação concreta
em busca de outras transformações.

A finalidade última do conhecimento histórico é, portanto, propiciar o


desenvolvimento das forças transformadoras da história, ajudá-las a se
tornarem mais conscientes de si mesmas. Só através dessa consciência é que
essas forças terão possibilidade de se efetivarem.

Como produzir a história?

O homem, ser vivo e consciente, está situado num meio ambiente que deve
ser visto como uma realidade total. Todos os aspectos dessa realidade se
interligam, se interinfluenciam e não devem ser analisados separadamente. Os
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homens agem e interagem, constantemente, em diferentes pianos, mas todos


eles estão unidos dentro dessa realidade total que é a realidade do homem
vivendo em sociedade no mundo.

Quando, porém, se vai explicar uma realidade histórica específica, temos a


tendência a destacar mais um aspecto ou outro dessa realidade. Às vezes, isso
é necessário para facilitar a análise; outras vezes, por razões didáticas,
costuma-se separar os diversos níveis da realidade, parecendo isolá-los. Ora,
isso pode levar a um esquecimento da noção de totalidade. Por exemplo, ao
estudarmos a Hadjdj (a peregrinação anual dos muçulmanos a sua capital
religiosa, a cidade de Meca), este fato geralmente é visto como de caráter
religioso, esquecendo-se suas outras conotações políticas e econômicas.

Ao estudar uma realidade histórica, vamos sempre a ver em conjunto, não


analisando seus fatos isolados, mas sim dentro de uma realidade mais ampla,
como, por exemplo, ao se examinar uma crise econ6mica, ao se procurar
entender a organização de uma classe social, um sistema administrativo, etc.

É preciso ver que essa totalidade se estrutura basicamente em alguns pianos ou


níveis interrelacionados; os três níveis fundamentais aceitos hoje em dia são
os níveis econômico, político e ideológico (onde se incluem os aspectos
culturais e religiosos). Simplificando muito, de uma maneira geral e
esquemática, uma sociedade se organiza em função do poder político e da
apropriação econômica. Os grupos que comandam nessas áreas procuram
manter o predomínio e organizam-se para que essas relações de poder se
reproduzam nesse tipo de sociedade. Ao analisar uma sociedade em
determinada época, temos que levar em conta esses três diferentes níveis. As
transformações estruturais neles, que alteram o conjunto da sociedade como
um todo, são as que nos interessa conhecer.

O historiador examina sempre uma determinada realidade, que se passou


concretamente em um tempo determinado e em um lugar preciso. Sua
primeira tarefa é situar no tempo e no espaço o que ele quer estudar: a
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Inglaterra no início do capitalismo, os descobrimentos portugueses dos séculos


XV e XVI, a revolta dos estudantes parisienses em maio de 68, etc. Cada realidade
histórica é única, não se repetindo nunca de forma igual.

Só se pode conhecer uma realidade do passado através do que dela ficou


registrado e documentado para a posteridade. A maior parte da
documentação utilizada em história é escrita, a ponto de se considerar,
impropriamente, como "tempos históricos" aqueles tempos que se iniciam
com a invenção e a difusão da escrita. Na verdade, isso não é correto. O
homem tem história desde que ele existe na Terra, mesmo que ela não esteja
devidamente documentada para as gerações que vieram depois.

Alguns períodos históricos ficaram muito pouco documentados por escrito.


Para conhecê-los é preciso o auxílio das técnicas auxiliares da história, que
surgem no século XVI e que são as únicas a ajudar a reconstituir uma
determinada época. Por exemplo, o estudo dos povos bárbaros que invadem
o Império Romano entre os séculos II e V d.C. é um dos mais incompletos,
pois praticamente não é documentado por fontes escritas. É só com a ajuda
da toponímia (estudo dos nomes de locais), da linguística (estudo das línguas),
da numismática e da arqueologia que se pode chegar a algumas conclusões.

O importante e essencial é que o trabalho do historiador se fundamente


numa pesquisa dos fatos reais, comprovados concretamente. Em geral, é
mais comum, sobretudo em realidades históricas mais próximas de nós, que
os vestígios dessas realidades sejam inúmeros e que o trabalho do historiador
se inicie por uma seleção desses dados. Essa seleção é feita em função dos dados
do passado que lhe pareçam mais significativos.

A diversidade dos testemunhos do passado é muito grande. Tudo quanto se diz


ou se escreve, tudo quanto se produz e se fabrica pode ser um documento
hist6rico. Antigamente a ideia de um documento histórico era a de "papeis
velhos", referentes a "pessoas importantes" (reis, imperadores, generais,
grandes nomes das artes ou das religiões, etc.), as quais eram vistas como os
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condutores da história. Atualmente tem-se consciência de que, entre outros


exemplos, uma caderneta de despesas de uma dona-de-casa, um programa
de teatro, um cardápio de restaurante, um folheto de propaganda, são
verdadeiros documentos históricos, significativos e reveladores de seu
momento.

O jornal é um exemplo bem especifico de fonte histórica: ele se torna cada vez
mais utilizado numa sociedade em que, depois do episódio americano de
Watergate, a imprensa e os outros meios de comunicação (como a TV e o
rádio) aparecem cada vez mais com maior poder. Na época positivista, em
que se procurava uma "verdade absoluta", o jornal era desprezado como
documento, pela subjetividade nele implícita. Hoje é sabido que um órgão da
imprensa está sempre defendendo posições, querendo formar opiniões,
através de uma venda de informações. É justamente isso que permite ao
historiador detectar a posição político-ideológica do jornal, ou seja, o que
pensam de política e qual a visão da realidade que tem os proprietários ou
diretores do jornal, ou melhor, o grupo social que eles representam. É fácil
exemplificar, chamando a atenção dos leitores para a diferença entre um
jornal da chamada imprensa burguesa e um jornal da chamada imprensa
alternativa ou "nanica".

O historiador deve trabalhar os documentos com muito cuidado e critérios


rigorosos. Nesse trabalho é preciso muitas vezes o recurso a técnicas
especiais. Por exemplo, para se conhecer a sociedade paulista do século XVII,
são funda-
mentais os originais de inventários e testamentos da época (hoje em sua
maioria impressos), guardados, para melhor conservação, dentro de latas,
no Arquivo do Estado. Para lê-los é preciso o domínio das já faladas técnicas
especiais. Na arqueologia, por inúmeras vezes a aliada fundamental da
pesquisa histórica, usa-se muito a técnica do carbono 14 para identificar a
época a que pertence um objeto bem antigo. Na Inglaterra, hoje é comum
levar-se os estudantes secunda-
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rios a trabalhar nas ruinas e escavações que testemunham o domínio romano


na ilha, na época do Império Romano.

Atividades como as acima descritas (leitura de documentos, escavações


arqueológicas) são as atividades mais tradicionalmente associadas ao trabalho
de um historiador. Mas hoje ele pode também utilizar um computador para
trabalhar dados levantados, pode servir-se de um gravador para consultas a
documentos ou realização de entrevistas, etc. No futuro, descobertas atuais
mais sofisticadas — como o disco cuja leitura é feita por meio de raio laser, e
que, num diâmetro de trinta e cinco centímetros, pode armazenar
aproximadamente dez mil páginas de informações — serão utilizadas na
história, e o historiador terá que saber lidar com elas.

Mas, no meio da poeira de documentos antigos, na lama das escavações ou


no manuseio de instrumentos muito desenvolvidos tecnicamente, é sempre
o homem vivo que o historiador procura encontrar, é a sociedade na qual esse
homem viveu, trabalhou, amou, procriou, guerreou, divertiu-se, que o
historiador quer decifrar. E, para tal, todo tipo de documento que esclareça
esses aspectos é de fundamental importância.

Um historiador, ao se propor fazer uma pesquisa, já faz uma opção bem sua,
ao decidir qual a realidade que ele vai estudar. Sua escolha é sempre
encaminhada pela sua situação concreta. O historiador é um homem em
sociedade, ele também faz parte da história que está vivendo. Escreve sua
história historicamente situado, ou seja, numa determinada época, dentro de
condições concretas de sua classe, sua instituição de ensino ou pesquisa, etc.
Seu trabalho será condicionado tanto pelo nível de conhecimento então
existente, como pelos interesses que ela possa estar defendendo, mesmo que
inconscientemente.

De uma maneira geral, o historiador tem suas pesquisas condicionadas as


instituições que lhe proporcionam a possibilidade econômica e intelectual de
trabalho. Essas instituições estão ligadas diretamente a órgãos
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governamentais, a fundações que usam dinheiro público ou a fundações


particulares.

A história, como vimos, não é só levantamento de dados ou fatos; ela os


relaciona entre si, ela interpreta seu sentido. A história, como toda forma de
conhecimento, procura explicar uma relação desconhecida. Nessa explicação,
temos duas ordens de elementos: os fatos e sua interpretação. Esses dois
elementos estão presentes, inseparavelmente ligados, num trabalho de história.

Esquecer um dos dois ou dar importância maior a um deles prejudica


fundamentalmente uma obra. Sim, porque, se fizermos uma listagem de
fatos, sem um caráter explicativo, não estamos fazendo história. Se fizermos
um esquema interpretativo do passado, assim no ar, sem bases concretas
(tentando interpretar algo que não passou necessariamente como se
descreve, pois não se verificou concretamente os fatos), também não estamos
fazendo história. Na maior parte das vezes, nesta hipótese, esse trabalho é
uma "ficção histórica", ou propaganda ideológica, servindo a propósitos
político-partidários e não a uma procura rigorosa de conhecimento.

A interpretação dos fatos está ligada diretamente a uma teoria; a teoria é um


conjunto de conceitos que forma uma visão explicativa concatenada da
realidade. Qual é a importância dessa teoria? Ora, todos sabemos que se pode
contar de várias formas a mesma história, dependendo de como a estamos
analisando. O que vai estar por trás das diferentes formas de explicação é a
teoria que aceitamos e que se apresenta estreitamente ligada a nossa forma
de encarar o mundo e sua realidade, ou seja, ligada a ideologia.

Em história, ao se tentar ordenar o processo hist6rico como um todo, surge


sempre uma tarefa primordial: periodizar, isto é, organizar a sucessão de
diferentes períodos cronológicos. Já mencionamos a primeira grande divisões
que é feita na história humana: a existente entre a hist6ria e a pré-história.
Para a maior parte dos historiadores, a divisão entre os dois períodos é
marcada pelo aparecimento da escrita. Outras opiniões indicam, como critério
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para a entrada na chamada "história", o inicio do emprego da agricultura ou


da metalurgia.

Seja qual for o critério a verdade é que o período considerado como pré-
histórico, do qual temos bem pouco (ou quase nenhum) conhecimento, é
muito maior do que o período histórico: para aproximadamente seiscentos
mil anos de pré-história, só temos uns sessenta mil de história! Quão pouco
realmente sabemos da hist6ria do homem na Terra!

A história é dividida, tradicional e impropriamente, conforme já colocamos, em


idades: Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. A maior parte dos
estudiosos hoje se bate contra essa divisão, herdada de uma forma de contar
a história mundial em função da civilização europeia ocidental. Essa divisão
se aplica realmente só a história do mundo ocidental. É ele o centro das
atenções, ficando o restante do globo em plano secundário. A história que é
dividida é uma história na qual as outras partes do globo só entram em função
de suas ligações com a Europa Ocidental e, assim mesmo, muito
superficialmente. O Brasil, por exemplo, durante as Idades Antiga e Média
está em plena "pré-história", só entrando na história na Idade Moderna,
quando é descoberto!

Essa divisão tradicional implica também uma visão eurocentrista e progressista,


porque procura mostrar um padrão de desenvolvimento histórico do qual a
sociedade europeia ocidental seria o apogeu. Infelizmente, apesar desses
graves defeitos, essa divisão esta tão arraigada em nossos currículos
universitários e escolares quanto em nossas mentalidades. A periodização,
porém, é muito importante para mostrar as diversas épocas ou períodos em
que a sociedade se organiza de diferentes formas. Ela deve ter um caráter
explicativo, deve servir para indicar as transformações que as sociedades
viveram, para mostrar como estruturalmente a sociedade de um período é
diferente da do outro!
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Além dessa divisão tradicional, existe, dentro do materialismo histórico, a


periodização da história através dos diferentes modos de produção que se
verificaram. Existiram, para essa divisão, os seguintes modos de produção: o
comunista primitivo, o escravista, o feudal, o asiático e o capitalista.

Dentro da visão aceita de processo, de transformação constante, não se


pode ter uma periodização muito rígida, com datas fixas e únicas. É comum
um aluno de secundário dizer que "a modernidade se inicia com a queda de
Constantinopla, efetuada pelos turcos em 1453", sem saber que essa é uma
data simbólica, entre outras, e que podem ser indicadas outras datas.

Por que escolher uma data ou outra? Dentro da visão de processo, as


transformações em história sempre são lentas e é quase impossível
marcarem-se datas-limite que indiquem delimitações nítidas, as quais
implicariam em transformações súbitas. Embora tenhamos consciência clara de
que cada vez mais se acelera o ritmo de mudanças do mundo contemporâneo
— a ponto de nos parecer que o mundo mudou mais neste século do que em
todos os anteriores sabemos que as transformações profundas e estruturais da
história são muito lentas.

Ao concluir o capítulo, queremos deixar bem claro que a história, como todas
as formas de conhecimento, está sempre se reformulando, buscando
caminhos novos e próprios. Este capítulo não e "receitinha ideal" de como
escrever a história, válida "para todos os tempos e todos os lugares"! É obvio
que essa é a nossa visão, gerada no nosso tempo.

Infelizmente, é preciso desiludir-se de início: escrever história não é estabelecer


certezas, mas é reduzir o campo das incertezas, é estabelecer um feixe de
probabilidades. Não é dizer tudo sobre uma determinada realidade, mas
explicar o que nela é fundamental. Nem por isso se deve cair numa posição de
relativismo, em que todas as especulações interpretativas são permitidas.
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Em história, todas as conclusões são provisórias, pois podem ser


aprofundadas e revistas por trabalhos posteriores. Um "saber absoluto",
uma "verdade absoluta" não servem aos estudiosos sérios e dignos do nome;
servem aos totalitários, tanto de direita como de esquerda, que, colocando-se
como donos do saber e da verdade, procuram, através da explicação
histórica, justificar a sua forma de poder.

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