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Ensaios de

Antropologia
Antropologia e História: Diálogos

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Edgar da Silva Gomes

Revisão Textual:
Prof. Me. Luciano Vieira Francisco
Antropologia e História: Diálogos

• Introdução;
• O Tempo Único e a História Contínua;
• Rupturas na História e Temporalidades Locais;
• Considerações Finais.

OBJETIVOS DE APRENDIZADO
• Compreender as relações entre Antropologia e História, a forma como se inter-relacionam
em dois contextos distintos da Antropologia: no evolucionismo e funcionalismo;
• Compreender a primazia de uma História única, isto é, uma temporalidade estendida para
outros povos, observada na forma de narrar sobre alguma prática ou cultura;
• Entender o modo como o funcionalismo rompe com o paradigma evolucionista para dar
lugar a uma forma de ver a História como ruptura e as temporalidades localizadas.
UNIDADE Antropologia e História: Diálogos

Introdução
Nesta Unidade estudaremos as articulações entre História e Antropologia. Faz-se
necessário, no entanto, antes de entrarmos nesse terreno um tanto complicado, alguns
esclarecimentos acerca do modo como aqui pretendemos tratar essa questão, quanto
para que seja possível nos orientarmos no que diz respeito, pelo menos, às possibilida-
des que aqui pretendemos abrir com esta Unidade.

De antemão, devemos ficar atentos para o fato de que não se trata de tentar descobrir
ou apresentar formas como diversos pensamentos “antropológicos” se formaram com o
tempo, criando, assim, uma espécie de “História da Antropologia”. Muito menos trata-se
de tornar a História um objeto da Antropologia. Para isso – se é que é possível fazê-lo
isento do risco de ser simplista ou até mesmo anacrônico – seria necessário um trabalho
muito maior do que aqui faremos.

Feitas estas breves considerações, o que faremos nesta oportunidade é, usando da


feliz expressão de Roberto DaMatta (1981, p. 87), “[...] relacionar a própria dimensão
temporal com a posição aberta pela Antropologia”. Isto é, entender como são articu-
ladas as temporalidades, a forma como se sente e se expressa a passagem do tempo,
com o conhecimento das práticas sociais e as relações que as permeiam. Para isso,
utilizar-nos-emos da História de duas formas diferentes: inicialmente, na análise de
dois modos conflitantes de pensar a passagem do tempo e, assim, de escrever a His-
tória dos povos estudados.

Figura 1
Fonte: Getty Images

O segundo uso da História se dará a partir da compreensão dessas duas dimensões


temporais que permeiam a História da Antropologia. Apresentaremos uma bibliografia
crítica, posterior ao funcionalismo de Malinowski, que começa a tratar diferentemente
duas categorias que pareciam muito próximas: tempo e História. Para tal, procuraremos
debater a própria validade da categoria História para dar conta de uma série de relatos
cuja passagem de tempo possui importância central.

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O Tempo Único e a História Contínua
Se pudéssemos apontar na História da Antropologia alguns marcos no pensamento
sobre o tempo, poderíamos colocá-los seguramente em dois pontos: em seu início, com
os evolucionistas e, em um período um pouco posterior, no funcionalismo. Isso porque
os dois movimentos, por assim dizer, inauguraram modos muito particulares de conce-
ber metodologicamente a relação com os grupos pesquisados e encaixar a concepção
de mundo desses grupos em um quadro de relações mais ou menos amplo.
Primeiramente, é importante pensar que, quando os evolucionistas começaram a ela-
borar uma noção de sociedade humana/Humanidade, tinham em mente uma resposta
às teorias poligenistas, que eram correntes à época (meados do século XIX). Essas teorias
tinham como pressupostos a ideia de que a espécie humana provinha de diversas linha-
gens e, assim, uma delas teria se desenvolvido até chegar ao estado civilizado, enquanto
as outras teriam seus desenvolvimentos autônomos retardados por diversos fatores. Daí
a criação de exposições cuja atração principal correspondia aos “nativos” de diversas
regiões do mundo “não civilizado”. Esses “nativos” eram apresentados quase – ou lite-
ralmente – como relíquias arqueológicas ou animais muito evoluídos, mas que ainda não
eram humanos (KUPER, 1988).

Você Sabia?
As exposições universais, ou exposições internacionais, eram grandes feiras em que os
países participantes expunham seus feitos tecnológicos, industriais, científicos e artís-
ticos – e aqui incluíam-se das artes plásticas e design ao teatro e dança. Tiveram iní-
cio na Europa do século XIX, em 1851, e foram muito populares entre as camadas mais
abastadas da sociedade europeia, especialmente entre grandes capitalistas, artistas e
intelectuais. Nessas feiras, além de expor o que havia de mais avançado em termos de
técnicas artísticas e maquinário de produção agrícola e industrial, havia um espaço para
“curiosidades” encontradas nos países colonizados pelos europeus, se é que podemos
chamar assim. Isso porque, entre essas “curiosidades”, além de exemplares típicos da
fauna e flora de regiões da África e Ásia, em boa parte das vezes estavam incluídas pes-
soas. Os nativos dessas regiões eram vestidos com suas roupas típicas, mesmo no frio
europeu e, assim como outros animais, eram mantidos em gaiolas e apresentados como
amostras de culturas humanas primitivas (STOCKING, [20--?]).

Em meio a isso, tentava-se dar conta do ideal kantiano de uma humanidade una, ape-
nas dividida por práticas sociais e graus de desenvolvimento (KANT, 1784). Contudo,
para tal, enfrentava dilemas empíricos que Kant, em seu tempo, não poderia superar:
imaginemos o choque de um europeu comum ao se deparar com um indígena, uma
figura completamente mitificada pelos diários de viagens e que seu único acesso era por
meio de pinturas ou relatos. Não havia fotografias nem filmes para que soubesse como
seriam essas pessoas.

A questão então seria: como lidar com uma concepção de humanidade única quando
nos vemos, frente a frente, com práticas muito distintas das nossas, com pessoas com
aparência tão diferente, com organizações de parentesco estranhas a nós, e sistemas

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UNIDADE Antropologia e História: Diálogos

de valores distintos? Em suma, era de se perguntar: como tratar diferença tão absoluta
sem recorrer a estratégias para desumanizar aquelas pessoas? Como tratar daquilo que
parecia tão estranho, sem retirar a humanidade daquelas culturas?

O que nos parece uma resposta óbvia hoje, um século e meio depois, não era àquela
época. Foi necessário que se estabelecesse um critério do que seria o humano para que
fosse possível colocar aquelas pessoas nele. Daí boa parte das críticas posteriores tratar
os evolucionistas como idealistas, criando abstrações para lidar com problemas empíri-
cos – é neste sentido que se encaminham, por exemplo, as críticas que, desde o cultu-
ralismo, fazem-se aos evolucionistas e estão muito bem apresentadas na obra Cultura:
um conceito antropológico, de Roque Laraia (2009).

O que essa crítica não leva em consideração, ou o faz muito superficialmente, são os
dilemas daqueles autores naquele momento. Pois, à época, recorrer a essas abstrações –
por exemplo, “o que é o humano”, “o que é a História” – era necessário para que, pelo
menos, fosse possível haver categorização comum daqueles que até então não eram
vistos como humanos (KUPER, 1988).

Figura 2
Fonte: Getty Images

Neste momento, você deve estar se perguntando: o que isso teria a ver com a
questão do tempo e da História? Em uma palavra: tudo. Isso porque, a ideia de
estabelecer o que seria e o que não seria humano é seguida de outro questionamento:
se, por exemplo, os estadunidenses e ieroqueses (um grupo indígena estadunidense)
são igualmente humanos, existe algo que os diferencia, uma vez que é muito visível,
para quem se coloca em contato com eles – como foi o caso de Morgan – apontar di-
vergências entre as culturas. Como explicar essas diferenças? A forma encontrada foi
colocar dentro de uma mesma história esses diversos grupos. Isto é, uma vez que eles
são tão diferentes de nós e mesmo assim são humanos, eles só podem fazer parte de
um movimento anterior ao nosso, nessa mesma história (KUPER, 1988). Em suma, se
o ser humano é um, as diversas culturas são expressões de tempos diferentes dentro
da história da mesma humanidade.

O tempo, aqui, torna-se algo estendido, ou seja, é o mesmo desde as tribos mais pri-
mitivas até a cultura mais avançada, estende-se a todos os períodos da História humana
e compreende todas as práticas, desde que o homem é homem. Dessa forma, o tempo
e a História aparecem como algo sem concretude e com um sentido próprio que, inde-
pendentemente de qualquer coisa, guia os acontecimentos, precisando apenas que seja

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descoberta a racionalidade por trás de seu movimento. Segundo Roberto DaMatta (1981,
p. 89), “[...] no universo social de Frazer [e dos evolucionistas de modo geral] jamais se
pode localizar zonas de atrito e áreas de singularização”. Significa que a própria possibili-
dade de rupturas não existe entre os evolucionistas – vejamos o que isto quer dizer.

As dimensões dessa inexistência de rupturas são muito claras. Em primeiro lugar, o


fato de esses autores não levarem em consideração essas categorias não significa que
viam ou não viam isso no cotidiano da pesquisa. Isto se refere, antes, à própria limitação
dos objetos estudados, ou objetos escolhidos para estudar. A pesquisa não procurava –
como já apresentamos – estabelecer critérios de diferenças entre as culturas, mas sim o
que as unia em torno de uma ideia de humanidade. Nesse sentido, por mais impor-
tância que uma ruptura possuísse no universo sócio-simbólico de um grupo, ele não era
objeto do conhecimento, era algo como um desvio, uma área de instabilidade já prevista
dentro da própria condição humana.

Em segundo lugar, naquele momento, uma história que fosse composta de rupturas –
como a História para autores como Nietzsche (2005) e Buckhardt – apenas engatinhava
e encontrava extrema resistência na comunidade científica de fins do século XIX. Isso
porque a História, até ali, para ser considerada científica, tinha que traçar uma rede de
fatos históricos que se conectavam em um sistema de causas que se sucediam. Ou seja,
fazer a História de algo era buscar a origem de um determinado acontecimento (suas
causas) e no que ele se transformou posteriormente (sucessões).

Nesse caso, ao tentar estabelecer uma origem, ou um ponto inicial da humanidade,


os evolucionistas se utilizavam dessa ideia corrente da História, traçada a partir de um
plano ideal, em que, por mais rupturas que existissem, o que lhes era caro era o que
permanecia de contínuo nisso tudo.

Não podemos esquecer que o evolucionismo foi uma forma de pensamento que, a
seu tempo – e até hoje, de certa forma – possuiu grande prestígio nos meios intelectuais.
É só nos lembrarmos de Engels e em como colocou Morgan como um dos maiores pen-
sadores do século XIX, ao lado de Marx e Darwin (ENGELS, 1975). Esses intelectuais
encontravam correspondência real entre o que foi escrito por Morgan, Tylor e Frazer e
o que lhes parecia correto.

Importante!
Recordando: isso se deve ao fato de Morgan ter criado uma espécie de “linha do tempo”
evolutiva da humanidade, que ia do “período inicial de selvageria”, ao que concedia um
“status inferior” e que seria o começo da História do homem, até o “status de civilização”,
que ia do uso da escrita com a invenção do alfabeto até os dias de hoje. Com essa linha
evolutiva da humanidade, era a primeira vez que, a partir de dados objetivos e provas
materiais, concebia-se uma história da sociedade humana como uma unidade coesa que
tinha sua infância nos selvagens e a idade adulta na civilização ocidental.

Não faz sentido nos utilizarmos da crítica de modo anacrônico e mostrarmos como
eles estavam errados. É preciso fazer (como fizemos) um trabalho de busca pelas per-
guntas a que esses autores estavam tentando responder.

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UNIDADE Antropologia e História: Diálogos

Rupturas na História e Temporalidades Locais


Apesar de tudo, a crítica também tem seu contexto, as suas próprias condições de sur-
gimento e, nesse caso, uma situação muito particular. Bronislaw Malinowski (1884-1942),
polonês e matemático de formação, durante a Primeira Guerra Mundial, viu-se obrigado
a viajar primeiramente para Papua Nova Guiné e, depois, para as Ilhas Trobriand, ambas
na Melanésia, onde passou quatro anos exilado, descrevendo cada pequeno detalhe da
vida dos trombriandeses. Todos os seus trabalhos se deram na busca de elucidar aspectos
da vida social desse grupo, descritos em seus diários de campo nesses anos que lá esteve
– embora tenha voltado ainda algumas vezes para lá depois, e tenha ido também a outras
regiões fazer pesquisa de campo.

Figura 3 – Malinowski entre os trobriandeses em seu trabalho de campo


Fonte:Wikimedia Commons

Dessa intensa revisão e do constante contato com esses grupos, que ia desde a pas-
sagem de longos períodos de convivência, até o aprendizado das línguas locais para não
haver necessidade de mediação de um tradutor, Malinowski não podia mais aceitar a
ideia evolucionista de sociedade como unidade, do tempo estendido e da História única.
Ele buscava entender como as coisas funcionavam naqueles lugares, não de onde elas
vinham e em que se transformaram (MALINOWSKI, 1978). Fundava, assim, o funcio-
nalismo etnográfico.

Para entendermos melhor os funcionalistas, é preciso voltarmos, uma vez mais, aos
evolucionistas a fim de compreendermos o contexto intelectual da época. Lembremo-
-nos que, segundo Frazer (2005), a Antropologia possuía, basicamente, dois objetos
por excelência.

O primeiro seria tentar descobrir, entre as culturas que habitam o Planeta, aquela que
apresentasse traço mais rústico, com os costumes mais primitivos. Assim, a primeira
tarefa do antropólogo, para Frazer (2005), é realizar uma espécie de arqueologia das
sociedades humanas vivas. Buscar no escopo existente de seres humanos aqueles que
se encontram no estágio mais primitivo e estudar lá “[...] a embriologia do pensamento
e das instituições humanas [...]” (FRAZER, 2005, p. 106), verificando “[...] as crenças e
costumes dos selvagens”.

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Acerca do segundo ponto, mantendo a analogia com a Arqueologia, é possível dizer,
utilizando as palavras mesmas do autor que, trata-se de estudar “[...] as relíquias dessas
crenças e costumes que sobreviveram como fósseis entre povos de cultura mais elevada
[...]”. (FRAZER, 2005, p. 106) Isto é, procura-se entender como algumas práticas pas-
saram de geração para geração, de estágio evolutivo para estágio evolutivo, dentro da
História da civilização, até chegarem ao ponto onde estamos como humanidade. Assim,

[...] nessa descrição da esfera da Antropologia Social, está implícito que


os ancestrais das nações civilizadas um dia foram selvagens, e que trans-
mitiram – ou podem ter transmitido – a seus descendentes mais cultos
ideias e instituições que, embora incongruentes com contextos subse-
quentes, estavam perfeitamente de acordo com os modos de pensamento
e ação da sociedade mais rude na qual se originaram. Em suma, a defini-
ção pressupõe que a civilização, sempre e em toda parte, tem evoluído a
partir da selvageria. (FRAZER, 2005, p. 107)

Essa segunda tarefa do antropólogo – o que nos interessa aqui –, busca estabelecer,
resumindo, quando determinadas práticas começaram a existir, porque e qual o senti-
do que realmente têm. Como se buscassem na origem, no passado, a verdade sobre a
prática que acontece hoje. Essa “sobrevivência” que ela teria no processo evolutivo é o
ponto de partida da crítica funcionalista.

Antropologia funcionalista: faz referência a uma ampla variedade de teorias que expli-
cam os fenômenos sociais como mantendo uma relação orgânica entre si. Nesse sentido,
instituições (como o direito e a religião) e práticas (como relações de propriedade e rituais
religiosos), dentro de uma mesma sociedade, dependeriam mutuamente uns dos outros
para manter o grupo existindo como uma unidade coerente, isto é, “funcionando”. Os prin-
cipais fundadores da Escola Funcionalista na Antropologia foram Malinowski e Radcliffe-
-Brown. Esses autores assumiram algumas ideias de Émile Durkheim (1858-1917), impor-
tante sociólogo francês.

Fonte: https://bit.ly/2M6QNrC

Isso porque, segundo Malinowski (1978), nada permanece ao acaso em uma cultura,
como mero “resíduo” do processo evolutivo. As coisas – e nisso estão incluídas as práticas
e os objetos materiais – apenas continuam habitando o mundo social em que vivemos
porque possuem um papel, por mais insignificante que nos possa parecer. Esse papel, a
que podemos chamar de função, é o que atualiza para nós a importância constante que
determinada prática ou objeto assume, independentemente do tempo que ela existe.

Mesmo que façamos a mesma coisa há séculos, os significados e as posições des-


sa prática precisaram mudar conforme alteraram outros elementos dentro da própria
sociedade para que continuem a ser válidos atualmente. O que implica que nada em
nossa sociedade passou ileso pelo tempo. Nada ficou de residual. Nosso mundo está em
constante movimento de reinvenção e, assim, não é possível mais assumir uma história
única como razão que percorre o tempo.
Voltemos um pouco para colocarmos num mesmo plano, portanto, alguns ele-
mentos apresentados aqui pelo funcionalismo. Vimos que, em primeiro lugar, para os

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UNIDADE Antropologia e História: Diálogos

funcionalistas não há resíduos de uma formação social a outra, isto é, não há algo que
passe de uma época para outra intacto. Ora, se os significados não podem permanecer
os mesmos, ou mesmo que permaneçam, é preciso que tenha seu sentido atualizado,
quer dizer que, dentro de um sistema social tudo possui um papel.
Em segundo lugar, esse papel é colocado em movimento, em funcionamento, dentro
desse sistema por meio de uma operação de sentido que nem sempre é clara (e qua-
se nunca é), isto é, esse “movimento” que esse papel ganha nas relações sociais não
são visíveis, não são dados que aparecem ao etnógrafo muito bem definidos, pois são
naturalizados naquela cultura e, portanto, não sendo necessariamente pensados, são
simplesmente reproduzidos pelos membros daquela cultura.

Muitas das ações que fazemos em nosso dia a dia são naturalizadas. Isso quer dizer que
as fazemos sem pensarmos muito sobre elas, por exemplo, o modo como caminhamos, o
hábito de vestir determinadas peças de roupas, a altura de nossa voz, expressões como “oi”
ao vermos alguém que conhecemos ou “alô” ao atendermos o telefone, entre tantas outras
ações. Se fizermos um exercício de imaginar um completo estranho chegando em nossa
casa, quais hábitos que são para nós naturalizados você acha que ele notaria?

Se esse sentido nem sempre é claro, cabe ao etnógrafo tentar trazer à luz esses
elementos obscuros e estrangeiros. Contudo, esse sentido deve ser buscado na própria
forma como os povos estudados o elaboram. Aqui se encontra algo que explica a grande
importância da pesquisa de campo: só é possível chegar nesse grau de compreensão
com a convivência, na imersão com as culturas estudadas. Isso porque existem aspectos
que só são captados com a presença constante. Esses aspectos são indescritíveis e le-
vam em conta, de modo importante, a subjetividade do antropólogo – a que Malinowski
(1978) chamou de imponderáveis da vida cotidiana.

Nesse ponto precisamos retomar nossos objetivos. Mas, afinal, em que isso implica
em termos de temporalidade? E onde a História entra?

As implicações dessas novas formulações, propostas pelo funcionalismo malino-


wskiano estariam na substituição de um paradigma de interpretação baseado em ca-
tegorias universalistas, para um paradigma que levasse em consideração as interações
locais, as transformações internas à própria cultura estudada – e não tomasse importado
um modelo de civilização europeu ou norte-americano.

Em outras palavras, no que diz respeito às temporalidades, esse pensamento inaugu-


raria, juntamente com o culturalismo, a ideia de temporalidades locais que, em oposi-
ção ao tempo único dos evolucionistas, pensava a passagem do tempo não como uma
categoria estendida para todos os lugares do Planeta, mas como algo que teria um ritmo
muito próprio em cada cultura, com objetivos e princípios próprios.

Significa que a própria noção de passagem do tempo teria um sentido diferente em


cada cultura. Não obstante, cada uma delas teria um modo próprio de incorporação e
designação de sentido a determinadas práticas, ou seja, de transformar algo em parte
de seu cotidiano e de dar um significado para aquilo. Por mais semelhantes que fossem
as práticas, elas ganhariam outros sentidos com o tempo e, em muitos casos, seriam

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radicalmente diferentes de outros lugares do mundo, mesmo parecendo semelhantes,
uma vez que as relações sociais que lhes dão base são necessariamente diferentes.

Figura 4 Figura 5
Fonte: Getty Images Fonte: Getty Images

Ou seja, por mais que indígenas sul-americanos e australianos utilizem uma técnica
parecida de plantio e tenha uma agricultura voltada para os mesmos tipos de alimentos,
essas técnicas não seriam parte de uma evolução temporal da humanidade, mas um
desenvolvimento próprio daquelas culturas para atender a demandas muito concretas a
que se viram tendo que enfrentar. Essas demandas nem sempre são de ordem geográ-
fica e, mesmo que sejam, é apenas em contato com a cultura que é possível que sejam
elaboradas aquelas condições de uma forma ou de outra.

Nesse sentido, é muito interessante observarmos algumas práticas de povos da


América do Sul. Muitos deles, submetidos às mesmas condições geográficas, criavam
atividades “econômicas” de subsistências completamente diferentes: alguns eram nô-
mades, outros sedentários; alguns viviam da agricultura e outros da caça. Não deixa de
ser curioso que, nos estágios de evolução elaborados por Morgan e, posteriormente,
apresentados por Engels (1975), as duas formas de produção seriam correspondentes
a estágios evolutivos distintos, na medida em que as culturas sedentárias seriam mais
evoluídas do que as nômades. Pierre Clastres (2012) vem nos mostrar, contudo, que não
se tratam de momentos distintos da evolução. São duas formas de apropriação de duas
culturas diferentes para o mesmo problema.
O mesmo Clastres (2012) situa outra análise muito interessante a esse respeito, dizendo
respeito ao Estado. A maioria dos cientistas sociais pouco estudava atividades políticas
entre indígenas por acreditar que ali não havia um sistema político, nem nada que pudesse
ser categorizado como tal. Isso porque a compreensão de política era colocada em um
poder político centralizado na figura de um chefe que governaria algo como um Estado.
Para esses cientistas sociais a falta de um Estado demonstraria que aquelas culturas
ainda (ênfase no “ainda”) não tinham chegado a esse tipo de organização, ou que talvez
nunca chegariam, por uma série de fatores que iriam desde a quantidade de pessoas
por grupos, até a não existência de condições materiais para tal, por exemplo. O que
Clastres (2012) nos mostra é que, antes de não terem um poder centralizado na figura
de um Estado, essas tribos eram contra essa forma de organização. Significa que essa
organização política centralizada não era desconhecida para esses grupos, mas eles a
evitavam ativamente, isto é, não queriam se organizar dessa forma.
Assim, a atribuição de uma atividade política era descentralizada, embora houvesse
a pessoa do pajé como alguém central na vida política, o pajé não possuía o poder de

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UNIDADE Antropologia e História: Diálogos

mandá-los fazer nada, nem de recriminar ou reprimir. O pajé possuiria o “dom da fala”,
o que significa que, através de formas de conciliação mediadas pela sua fala, ele tentaria
resolver conflitos ou incitar ao ataque de tribos rivais. Contudo, se as demais pessoas
do grupo não concordassem com ele, seria necessário que ele se calasse e entendesse.

Assista ao documentário feito pela TV Senado sobre o maior antropólogo do século XX,
Claude Lévi-Strauss (1908-2009), no qual fala de suas experiências entre grupos indígenas
brasileiros, disponível em: https://youtu.be/PK7Hh0hZzeE

À parte de todas as críticas feitas posteriormente a Pierre Clastres, essa perspectiva


ilustra muito bem o nosso ponto aqui: não se trata de traçar uma linha temporal única e
adaptar as pessoas a ela. Mas, antes, entender como, dentro de cada cultura, atua uma
linha do tempo própria, com seus próprios objetivos e dentro de um campo de disputas
internos a ela.

Nesse sentido, a própria História deixa de se apresentar como continuidade e sim


uma sucessão de rupturas. Isso porque, uma vez que as temporalidades estão marcadas
tanto por categorias espacialmente localizadas, quanto temporalmente específicas, não
se pode mais mencionar causas e consequências abstratas demais, com sentidos que
ultrapassam a posição própria à cultura concreta. Quer dizer que, como ilustramos, por
mais que coloquemos à distância um mesmo julgamento de valor sobre determinada prá-
tica ao situá-la historicamente, se deixarmos de entender as constantes ressignificações
que essa prática sofre com o tempo, deixaremos de captar seu sentido no contexto das
pessoas que a praticam.

A História, portanto, precisa captar essas nuances, localizando-as espacialmente,


levando em consideração aspectos que diferem de formações anteriores no interior da
própria sociedade em que se manifesta e evitando traçar uma linha do tempo comum
entre culturas diferentes.

Considerações Finais
[...] já se pode vislumbrar uma Antropologia que, num diálogo aberto e
sistemático com a temporalidade vivida e concebida pelos homens de di-
versas sociedades, pode relativizá-la e, assim fazendo, conseguir alcançar
na História tudo o que ela pode realmente nos oferecer. (DAMATTA,
1981, p. 142)

Isso porque, a partir do momento em que o antropólogo pôde parar de inferir os


dados observados para encaixá-los em um sistema universalista, conseguiu dar voz aos
grupos estudados e, assim, tratá-los em seus próprios termos.

Do ponto de vista das temporalidades, isso abriu uma porta importante nos estu-
dos do homem. Compreender um grupo em seus próprios termos significa, antes de
tudo, entender que o narrado pelas pessoas que dele fazem parte diz respeito a uma

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experiência única e que não pode ser repetida no tempo e, por não poder ser repetida,
ela é sempre atual, é sempre nova. Nessa novidade encerram todas as características do
mundo em que vive ou viveu aquele que narrou, todas as tensões que o cerca aparecem
na fala do narrador-nativo e nos ensinam sobre a experiência de viver naquela cultura
em que ele está.

Figura 6
Fonte: Getty Images

Munidos, portanto, desse conhecimento, podemos nos voltar a eventos anteriores


que tiveram a sua própria temporalidade, suas próprias condições de surgimento e,
assim, podemos, finalmente, escrever, nessa sucessão de experiências tão subjetivas
do tempo, uma história que não seja mais única, que não nos pense como melhores
conhecedores do passado do que os homens daquela época, mas uma história plural,
que possa entender a cadência dos acontecimentos segundo os critérios e termos de seu
objeto histórico.

Assim, a relação entre História e Antropologia tem sido muito proveitosa para os
estudos em ambas as áreas. Os debates que ambas suscitam têm acrescentado muito
para que possamos trabalhar nossas próprias concepções de homem e sociedade. Par-
tindo do olhar ao outro, podemos nos ver criticamente e, assim, criamos espaços para
as mudanças.

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UNIDADE Antropologia e História: Diálogos

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
A função da guerra na sociedade tupinambá
FERNANDES, F. A função da guerra na sociedade tupinambá. São Paulo:
Globo, 2006.

Filmes
O abraço da serpente
Dir. Ciro Guerra. Colômbia, 2015.
Théo (Jan Bijvoet) é um explorador europeu que conta com a ajuda do xamã
Karamakate (Nilbio Torres) para percorrer o rio Amazonas. Gravemente doente,
ele busca uma lendária flor que pode curar sua enfermidade. Quarenta anos depois,
a trilha de Théo é seguida por Evan (Brionne Davis), outro explorador que tenta
convencer Karamakate a ajudá-lo.
https://youtu.be/5QIJV8ElBTE

Leitura
Para além do “trabalho de campo”: reflexões supostamente malinowskianas
GIUMBELLI, E. Para além do “trabalho de campo”: reflexões supostamente
malinowskianas. Rev. Bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 17, n. 48, p. 91-107, fev. 2002.
https://bit.ly/3p8YM5K
Doxa e crença entre os antropólogos
SIGAUD, L. Doxa e crença entre os antropólogos. Novos Estud. Cebrap, São
Paulo, n. 77, p. 129-152, mar. 2007.
https://bit.ly/2XOLLm6

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Referências
CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis, RJ:


Vozes, 1981.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

FRAZER, J. O escopo da Antropologia Social. In: CASTRO, C. et al. Evolucionismo


cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

KANT, I. Idea for a universal history with a cosmopolitan purpose. 1784. Dis-
ponível em: <http://www.marxists.org/reference/subject/ethics/kant/universal-history.
htm>. Acesso em: 09/12/2020.

KUPER, A. The invention of primitive society: transformations of an illusion. London;


New York: Routledge, 1988.

LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 23. ed. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2009.

MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. 2. ed. São Paulo: Abril, 1978.

NIETZSCHE, F. Escritos sobre História. São Paulo: Loyola, 2005.

STOCKING, G. Victorian Anthropology. [S.l.: s.n., 20--?].

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Você também pode gostar