e Antropologia / Damata, Roberto. Relativizando, introdução à antropologia. Uma ciência dos povos “selvagens”
• O primeiro grande objeto de estudo que ajudou a
delimitar o campo da antropologia era constituído pelos chamados povos “primitivos” ou “selvagens”, que habitavam as colônias dos países europeus de onde vinha a maioria dos primeiros antropólogos. • No último quarto do século XIX já começava a delimitar-se, também, a cultura enquanto dimensão social privilegiada das investigações que iriam depois se agrupar sob o campo da antropologia. Nessa época Tylor já distinguia claramente o estudo da cultura, como organização social, dos estudos biológicos do homem. Durante o século XX os métodos desenvolvidos pela antropologia começaram, aos poucos, a serem aplicados também a grupos da “nossa” sociedade, tais como grupos urbanos ou rurais da chamada “civilização ocidental”. Pesquisa de gabinete • No começo do século XX eram duas as tendências teóricas e metodológicas no estudo dos povos “primitivos” que serviram de ponto de partida para a constituição da moderna antropologia: o evolucionismo, formado por pesquisadores que chamavam a si mesmos de “sociólogos”, e o difusionismo, que se auto- nomeava “etnologia”. Ambas tinham uma característica comum que seria amplamente criticada pelos pesquisadores do século XX: conduziam as suas pesquisas do gabinete das universidades nos países centrais, utilizando para tanto objetos e relatos trazidos por viajantes, exploradores, funcionários das colônias, missionários, etc. Estes pesquisadores procuravam listar e classificar o mais amplamente possível esses materiais. A análise desses dados era orientada por duas tendências teóricas principais: Difusionismo • Os difusionistas (“etnólogos”) tinham uma abordagem mais geográfica e estavam preocupados sobretudo com as migrações, a difusão cultural, a classificação dos povos e dos objetos. Eles tendiam a ser mais descritivos e particularistas. Para eles as “culturas consistiam em miscelâneas de traços, tomados de outras, em que os traços superiores se deslocam de um centro para fora como as ondas produzidas pela pedra que se lança num lago, para citarmos uma analogia favorita dos autores difusionistas” (KUPER, 1973). Os difusionistas procuram classificar esses traços e reconstituir os movimentos da sua difusão (e dos seus portadores). Evolucionistas • Os evolucionistas (“sociólogos”) estavam concentrados no desenvolvimento das instituições sociais. Utilizavam-se mais do método comparativo e tendiam a ser mais teóricos. No século XIX o evolucionismo caracterizava-se pela construção de modelos lineares da história da humanidade, tomando de empréstimo as características dos povos “primitivos” contemporâneos para caracterizar como teria sido o primórdio da civilização ocidental, elaborando etapas intermediárias e tendo como culminância desta linha evolutiva a própria civilização ocidental. No começo do século XX os evolucionistas já não eram mais favoráveis a esses esquemas lineares. O ponto em comum entre eles era a concepção da cultura como sistema dotado de uma dinâmica interior, e não de “empréstimos aleatórios”. A divergência entre eles era com relação ao que seria esse elemento dinâmico da cultura: se era de natureza intelectual, econômica, ecológica, etc... O nascimento da etnografia • No começo do século XX uma forte ansiedade dissemina- se entre estes pesquisadores: para eles, a tentativa de estabelecer uma ciência dos povos “primitivos” ganhava fôlego justamente no momento em que eram percebidos como estando em vias de extinção. A expansão colonial e todo o processo que hoje conhecemos por globalização levaria inevitavelmente à destruição dessas culturas, com as populações integrando-se à civilização ocidental e sobrando apenas os registros de relatos e as peças de museus. Além disso, acirrava-se a crítica sobre a validade das fontes de dados até então utilizadas: o seu pequeno número e a visão enviesada que podiam ter sobre os povos de que falavam, objetos retirados do contexto em que eram utilizados, etc (as fontes para uma pesquisa poderia ser, por exemplo, três pessoas: um viajante europeu, um missionário e um nativo convertido a uma religião européia que estivesse na Europa). • Assim formou-se um sentido de urgência: era preciso cumular os máximo possível de dados através de pesquisas de campo antes que os “fatos” desaparecessem; que os pesquisadores fossem coletar seus dados diretamente junto aos povos abordados; e o sucesso da investigação dependia de longas estadias com eles. O contato direto e a participação no dia a dia do grupo social que se quer conhecer faria surgir o compromisso e a questão que hoje domina a antropologia: a tentativa de olhar o outro partindo do seu próprio ponto de vista. • Atualmente o objeto da antropologia, a cultura, mesmo as culturas dos chamados “povos primitivos”, já não são mais vistas como estando em vias de extinção. Veremos no final do curso como estudos recentes abordam a vitalidade com que alguns povos estão se adaptando aos tempos atuais sem perder a suas identidades, a singularidade dinâmica de suas culturas. A crítica da antropologia clássica • Para além das limitações metodológicas – a falta de pesquisas de campo etnográficas -, a crítica dessas correntes clássicas da antropologia tem sido retomada até os dias de hoje, seja para delimitar questões teóricas quanto para enfrentar desafios políticos. O difusionismo não é tão atacado quanto o evolucionismo e encontrou acolhida no principal fundador da antropologia norte-americana: Franz Boas. A maior crítica que lhe é dirigida diz respeito à necessidade de uma maior sistematização teórica dos dados levantados e que permitam o encontro da “coerência interna” (DAMATA, 1987) da cultura estudada. É esta busca de “coerência interna”, herdada dos evolucionistas, que ajudaria a inspirar as correntes teóricas inglesas e francesas do funcionalismo e do estruturalismo, que conheceremos nas próximas aulas. • Uma corrente mais recente – a hermenêutica-, já não se preocupa tanto com esta coerência interna, visando antes a interpretação capaz de abordar os significados da cultura pesquisada, traduzindo-a de maneira a que se torne inteligível aos seus leitores. • O evolucionismo, por sua vez, é até hoje atacado com forte veemência. Isto porque em sua época clássica serviu para justificar o imperialismo europeu e, em nosso tempo, as noções que ele promoveu ainda servem para embasar posições racistas, equívocos etnocêntricos e todas aquelas visões que justificam a imposição de padrões e valores das elites dos países “desenvolvidos” sobre os outros povos e mesmo aos grupos sociais dominados em suas próprias sociedades. Ora, se os padrões das elites mundiais são vistos como superiores, e se acredita-se que a humanidade ruma inevitavelmente para equiparar-se a eles - através de uma certa noção de progresso -, justificam-se imposições e formas de dominação muitas vezes garantidas através da força.