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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Filosofia

MARLON GRANDO

Dissertação Ensaística

― Amor é Arte? ―

Matéria: Estética I

Professor: Ricardo Nascimento Fabbrini

Aluno: Marlon Grando

N° USP: 11253880

E-mail: marlon_bgs@usp.br

São Paulo

2022
Um breve esclarecimento: professor, como vai? Espero que esteja bem. Estive uma semana
de molho, pois contrai covid. Os sintomas foram poucos, mas me ocasionaram uma
descompensação depressiva um pouco mais intensa do que o habitual. A questão é que meu
remédio, para além dos químicos, costuma ser literatura e por isso optei por tomar a liberdade
de escrever seu trabalho não somente como aluno, mas também como escritor. Meu estilo,
contudo, não é de grande excelência acadêmica. Adianto-me e peço desculpas pelo rarear de
referências. Na feitura desse trabalho recorri diretamente a poucas obras: O olho e o espírito,
100 aforismos sobre o amor e a morte, Todos os contos (Clarice), Imagem e Enigma e um
pedacinho de um novo romance que estou escrevendo. O restante é resultado indireto de meus
estudos para escrever literatura e, via de regra, sou um péssimo bibliógrafo. Espero que
entenda. E, claro, se considerar o trabalho inadequado eu posso lhe escrever outro. Entrego
esse mais cedo na intenção de facilitar suas futuras correções.

Um grande abraço!

Boa leitura!

M.G

2
I. Onde estamos e para aonde vamos?

Se iniciarmos nossa investigação partindo do fato de que o silêncio de Sócrates foi arbitrário,
somos levados a crer que talvez toda a filosofia que sucedeu a socrática carrega o peso de um
paradoxo. Não é também muito difícil aceitar que, portanto, não existem textos filosóficos e
que a filosofia, se acontece, é devido à maneira pela qual os lemos. E dado a admissão da
própria ignorância como um dos cernes de todo genuíno filosofar, o melhor que um aspirante
a filósofo poderia fazer, na profanação daquela tradição filosófica como maneira de se viver, é
ter mão de uma escrita na qual toda e qualquer violação do silêncio nunca atestasse a posse de
outro saber a não ser daquele que diz que nada sabe aquele que escreve.

Por conta disso sempre tive a impressão de que o discurso socrático se viesse pousar
no papel por mãos próprias nada nos explicaria ou analisaria, suspenderia as afirmações da
atitude natural e assemelharia-se a um esforço por não se deixar desgarrar daquele que entre
nós está quase sempre perdido: o olhar puro e singelo que nos põe outra vez em contato
ingênuo com o mundo. Teria um veio de romancista no movimento da mão escrevente, pois
descreveria de maneira tão profunda que aquele que viesse a dialogar com seu texto sentiria,
na leitura, como se a filosofia-ela-própria estivesse enamorada por seus olhinhos de leitor
desajuizado. O impacto de tal encontro seria tamanho que traria a experiência não refletida à
reflexão, fazendo dessa arte da palavra uma espécie de abertura pela qual os mortos pudessem
falar. Esse paradoxo, de um vivo ser capaz de ouvir um silente sepulto, faria também com que
as próprias coisas, do fundo de seu silêncio, conduzissem-se à expressão. Se Sócrates falasse
– em tinta, papel e rabisco –, diria como diz Merleau-Ponty: descrevendo.

Mesmo que o leitor fosse um ser de diminuta argúcia, o que não é o caso, conseguiria
identificar a prática socrática na filosofia de Merleau-Ponty. Ocorre de o fruidor da arte
manifestar uma certa vulnerabilidade intencionada, uma passividade ativa e disposição para
com o objeto artístico que remete à prática de inspeção e autoinspeção defendida por Sócrates.
O enigma da visão diz respeito a uma zona de indiscernibilidade que nos coloca em contato
direto e indireto com nossa própria ignorância. Assim, aquele que goza da arte não o pode
fazer sem que haja em sua atitude de fruidor o exercício da filosofia prática, pois qualquer que
seja o conceito da história da filosofia, se sozinho, não será suficiente para a genuína
experiência artística – isso implica que não seria um grande pecado dizer com certo grau de
certeza que não há diferença qualitativa na fruição de um leigo e de um douto; são eles, nesse
sentido, seis e meia dúzia; em outras palavras: não existe um enigma “mais enigmático” do

3
que outro. Na verdade, estar isolado num emaranhado conceitual seria, em vista disso,
agrilhoar-se ao uso restrito de uma razão instrumental. Pintura tornar-se-ia tão somente tinta
em tela1.

A análise que Ponty fez da arte levou à ruína da técnica perante o fundo de
negatividade do ser e, com isso, sustentou o advento de uma abertura para uma nova filosofia
que submeteu tudo ao exame da percepção 2. Nessa feitura Ponty chamou de “grito
inarticulado” o que outros autores chamam de “púnctum”, de “enigma”, de “zona de
indiscernibilidade”, de “beleza difícil3”, coisa que para os pintores é chamada de
profundidade, espaço e cor4. E, em seguida desse longo percurso argumentativo, definiu
aquilo que chamamos de “visão”: “é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo,
de assistir por dentro à fissão do ser. Ao término da qual somente me fecho sobre mim 5”. Tal
filosofia toma os olhos como “janelas da alma” – isso porque, diferente do que apregoa o
idealismo moderno, aqui o imaginário provém da visão, a pintura dá acesso ao não eu e é
próprio do visível ter um forro de invisível percebido ocultamente, a visão entrelaça natureza,
homem e expressão, através dos quais e de sua imbricação, o ser mudo manifesta seu sentido.
O ser é também o que ignoro – e uma frase assim faz Sócrates se emocionar em seu túmulo.

Ao cabo de sua investigação somos apresentados para a forma ontológica da pintura:


“Sou inapreensível na imanência6” – uma frase de Klee (Ponty quer aqui chamar atenção para
a negatividade e imanência do ser). E reiterando a ausência de sentido e, naturalmente, a
impossibilidade de se ter uma pintura inteiramente realizada na medida em que o ser visível e
invisível nela está imanentemente – coisa que deflagra, em certo sentido, uma historicidade
humana estacionária que diverge do progressismo idealista totalizante. Temos por fim, em
vista disso, a resposta a possíveis críticas idealistas e a atestação do incômodo que essa nova
filosofia há de causar, pois para alguns é difícil aceitar a sempiternidade de uma arte
perfeitamente imperfeita7.

Se considerarmos que as palavras de Ponty nos levaram a uma nova linguagem, liberta
dos artifícios da técnica, silente e enigmática, teremos de conceder a ele um perdão socrático

1
(O Olho e O Espírito, II, §12 – 15)
2
(O Olho e O Espírito, III, §9 – 14)
3
FABBRINI, Ricardo. “Imagem e enigma”. Viso: Cadernos de estética aplicada, v. 10, n° 19 (jul-dez/2016), p.
241-262.
4
(O Olho e O Espírito, IV, §6 – 9)
5
(O Olho e O Espírito, IV, §10)
6
(O Olho e O Espírito, IV, §12)
7
(O Olho e O Espírito, V, §1 – 3)
4
póstumo por seu sacrilégio de ter ousado escrever, pois sua filosofia coincidiu com o filosofar
e desse modo fez pouco ou quase nada pesar o paradoxo de a ter grafado em papel. Todavia,
tamanha herança estética não parece ter uma dimensão prática e educativa suficientes para
lidar com as urgências de uma sociedade na qual o preconceito é a regra e a emancipação, a
exceção. Por isso se torna necessário vivenciar aventuras intelectuais que sobrevoem nosso
problema de outras maneiras, mesmo que nos venha a cegar de jeitos diferentes. Afinal, por
que é assim tão difícil educar para a arte?

II. Um pouco de Adorno.

Façamos um breve exercício: pois então que o leitor feche os olhos e repare que já hoje seu
coração pouco ou nada reage ao repouso intencionado do movimento de suas pálpebras. Fosse
algumas décadas atrás o que aqui hoje ziguezagueia os olhos sobre este papel estaria instigado
a saber como as pessoas à sua volta reagiriam a seu suposto breve e repentino sumiço, não é
mesmo? O que mudou?

Façamos um pouco diferente dessa vez: pensemos que está dia, o sol a raiar e seu calor
a motivar o fechar de todas as cortinas da cidade, as luzes de casa a brilhar e, de repente, tudo
se apaga e o leitor se vê imerso numa escuridão inesperada. O coração? Tum-tum, tum-tum –
nem sequer um enlevo. Pois que pense agora que, enquanto matutava seu desprezo pela
Eletropaulo, o leitor, provavelmente tomando mão da lanterna de seu celular, dirigiu-se à
cortina mais próxima e, num só golpe, a escancarou! Deparou-se então com o absurdo! Mal
chegara duas da tarde e estava escuro-escuro, nada se podia ver. O coração, ao arrancar da
cortina, entrou num leve descompasso, que se acalmou com a certeza cartesiana de que o
leitor estava diante de um fenômeno climático, muito possivelmente, ocasionado pelo
desmatamento e poluição – mal sabido de que todo esse enigma fora culpa de um narrador,
deu causa e nome ao seu desentendimento.

Repare que a atitude do leitor seria mui semelhante à de uma criança. Com o minguar
da idade, vemos em nossas gerações mais novas um comum medo do escuro. Nada muito
difícil de entender, pois nosso inconsciente e pré-consciente edificam a segurança que sentem
em relação ao seu entorno mediante informações trazidas pelos nossos sentidos. Se nos
privamos do sentido da visão, o desconhecido surge em lugar de nossa cegueira e passa a nos
incutir medo – tudo ali, de uma hora para outra, passa a ser entendido como contingente e
imprevisível, o indivíduo se vê em estado de alerta, o irromper da ignorância é um perigo à
vida e a angústia, em resposta a isso, nos impulsiona a querer revelar tamanho mistério. Até
5
aqui pouco ou nada nos diferenciamos de nossos amigos primatas. Mas somos seres únicos na
natureza, tão por isso nossa maneira de lidar com isso durante a infância é também única no
reino animal: a criança que tanto temia dormir no escuro, de repente, passa a o fazer – não por
ter tomado consciência de que não há risco em estar no escuro, mas porque tomou mão de um
recurso humano de autoproteção para lidar com aquilo: passa a existir um certo “bicho-papão”
que, diferente do escuro, tem nome e, talvez mais vantajoso do que isso, mora debaixo da
cama. E assim o medo do desconhecido tem como resposta a manifestação de um
preconceito, a criança crê saber algo que, na verdade, ela não sabe, crê haver bicho-papão
onde o que há é desconhecimento. E dessa maneira, com o medo agora guardado debaixo da
cama, passa a conseguir dormir sozinha num quarto escuro. É fascinante, não é?

O adulto que não exercita uma autoinspeção, quando no escuro, submete-se a


comportamentos quase idênticos ao dessa criança, costuma crer em “espíritos, fantasmas,
almas, demônios”, mas aquele que, como fora o leitor em nosso exemplo, de imediato, dá
causa e nome falsos a um inesperado absurdo está por fazer o mesmo: criar um preconceito.
Todavia, há aqui um problema que é, dentre outras coisas, situacional: um adulto no escuro já
não mais deveria sentir esse tipo de medo – o fazer, como dizem os espinosanos, provar-lhe-ia
estar entregue à superstição. O outro caso, de deduzir uma causa climática para o absurdo, é
perdoável, pois se trata mais de um erro do que de um problema – é que muito dificilmente
esse tipo de preconceito resultaria em impulsos anticivilizatórios.

Peço um momento para esclarecer algumas coisas. Situe-se, querido leitor, eis o que já
sabemos: o processo de criar um preconceito para conseguir lidar com a realidade é parte de
ser um ser humano. O presente é imprevisível, incerto, contingente, enigmático,
surpreendente etc. A todo momento existe a possibilidade de morrermos, seja um coração a
parar, uma veia a se romper no cérebro ou um avião cair em nossas cabeças; o futuro é e
sempre nos será incerto. Esse discurso lúcido, no entanto, pertence à razão, o mesmo não
ocorre em nossos pré-consciente e inconsciente. Neles há a todo o momento a criação de
preconceitos necessários ao nosso ilusório e essencial estado de segurança. Isso dito,
entendemos que viver é incorrer em preconceitos.

Há, contudo, uma diferença qualitativa: existem preconceitos que são necessários à
vida e existem aqueles que são de caráter anticivilizatório. Que nos detenhamos a esses
últimos e à sua gênese: a personalidade humana se forma na primeira infância (0 aos 6 anos) e
podemos a definir dessa maneira: um conjunto interno de forças do sujeito, mais ou menos

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duradouras, inconscientes que se encontram em prontidão para reagir a determinado estímulo
externo. Dessa definição podemos depreender dois fatos importantes para nossa investigação:
o primeiro é que quando uma personalidade se forma ela se manterá a mesma até o fim da
vida. O segundo é que é possível, através da formação de instâncias de resistência pré-
conscientes, barrar a manifestação de impulsos anticivilizatórios.

A criança e o adulto de personalidade autoritária são bastante semelhantes: ambos


respondem à incapacidade psíquica e intelectual de entender a realidade tomando mão de
preconceitos. Por exemplo: ao se depararem com uma pessoa negra, automaticamente
identificarão que essa pessoa é desconhecida em alguma medida, ocorre então um
estranhamento e uma diferenciação absoluta através de uma fixação das categorias sujeito e
objeto – o outro: o outro; eu: eu – , o preconceituoso então sente medo do que desconhece e se
angustia por não conhecer e assim acontece a estereotipização: o sujeito autoritário passa a
crer que conhece sim a pessoa negra e que sabe que ela é “suja, periférica, pobre, mal
educada”, todo o ramal de estereótipos racistas que há.

A estereotipização é uma resposta inconsciente do indivíduo a aquilo que ele


desconhece – nesse caso para gerar a ilusão de que conhece aquilo que não conhece. Há
também a personalização e nela, envolto pelos imperativos e necessidades da vida comum de
falar sobre si, sobre os outros e sobre o mundo, o indivíduo adere a um discurso de um
terceiro que lhe confere uma sensação de segurança. Há, nesse caso, uma ânsia psíquica
inconsciente por acreditar ser detentor da verdade, e é por isso que discursos racionais,
argumentos lógicos, fatos, imagens e vídeos são incapazes de “mudar” esse indivíduo
autoritário. Seu apego ao discurso fascista se dá pela via da paixão. O melhor exemplo disso,
ao que me parece, foi o Plano Cohen: Vargas se juntou à Igreja e ao exército e disse ao povo
brasileiro que o Brasil sofria uma grande ameaça: o comunismo – para o povo, um mero
nome, um conceito vazio, uma palavra que era só casca, até que a Igreja lhes disse que
“comunismo” era coisa do Diabo. A ameaça desconhecida que causava terror ganhou nome e
significado. O povo preconceituava o fato de que a intentona comunista já havia fracassado –
e embora não mais existisse ameaça e seu fim havia estado em todos os jornais e figurões da
política comentavam sobre o assunto: a realidade foi encoberta junto da negação da
ignorância (não sabiam o que é “comunismo”) e perdeu seu estatuto de verdade. E, em nome
de Deus, dali em diante, todo ódio e violência se tornaram legítimos contra supostos
comunistas. O caos foi geral, Vargas conseguiu decretar estado de sítio e deu início à ditadura
do Estado Novo.
7
É sobre a educação para a arte desses indivíduos que essa dissertação ensaística procura
tratar.

Continuemos nos servindo de Frankfurt: em sua grande pesquisa, feita nos Estados
Unidos nos anos quarenta, Adorno se deparou com um certo indivíduo de “caráter
manipulador”, figurão que voltou a aparecer em um de seus ensaios mais famosos e mais bem
recebidos por diversas áreas do conhecimento. Em “Educação após Auschwitz”, o autor nos
chama a atenção para o seguinte fato: esse então indivíduo é “incapaz de amar”. E, mais
profícuo do que me demorar no indivíduo em si, para nossa investigação vale mais apena
perguntar sobre “que amor é esse?”.

III. Um pouco de Medicina.

De acordo com a ciência, a ocitocina é o hormônio relacionado ao amor. Liberado em grandes


quantidades durante o parto, especialmente para a dilatação vaginal necessária ao nascimento
do bebê, a ocitocina é importantíssima para a vida humana, mas não pode ser entendida como
sinônimo de amor. Não pode porque o amor já está por ser muito confundido e isso de violar
um campo semântico inúmeras vezes é coisa que não costuma agradar nossos queridos
estruturalistas e, agora dizendo mais seriamente, não pode, pois isso seria reduzir a
complexidade de tal sentimento a uma substância química mensageira, o que implicaria a
possibilidade de o amor poder ser produzido pela técnica – isso não é possível, pois, como
veremos, o amor tem uma dimensão arbitrária e exclusivamente humana.

Falemos primeiramente sobre o que não é o amor – é necessário. O indivíduo


apaixonado recebe descargas de dopamina altíssimas em seu cérebro. Esse neurotransmissor é
fonte daquele prazer encontrados também em drogas como crack e cocaína. Tão por isso a
sensação de abstinência de um adicto, não raro, assemelha-se à de uma paixão não
correspondida. O apaixonado padece, sofre comumente com sintomas parecidos com os de
transtornos obsessivos compulsivos – a imagem de sua paixão invade sua mente a todo
momento sem sua permissão. Seu córtex pré-frontal é também afetado e essa é a causa
biológica de sua estupidez; toma péssimas decisões, pode ficar muito ciumento ou até mesmo
violento. A paixão é um momento no qual o indivíduo está sendo manipulado pelos seus mais
íntimos desejos animais. A intenção da natureza é nos deixar desajuizados para que, a
despeito de quaisquer intempéries – circunstanciais, temporais, físicas, éticas, morais etc. –
tenhamos filhos. Em favor da paixão a realidade é deturpada e por isso o apaixonado vê o
objeto de sua paixão não como um ser humano, para o apaixonado seu ser “amado” é perfeito,
8
digno de toda sua obsessão: sempre uma ideia. Esse “estado de espírito” dura no máximo dois
anos e sua não continuidade se deve à necessidade de não comprometer por completo as
outras esferas da vida do apaixonado – essas que são comprometidas, em maior ou menor
grau, durante o período da paixão.

Para os casais, a ruína da paixão é dolorosa, pois aquilo que era perfeito se torna
imperfeito e o contraste entre perfeição e realidade muitas vezes é instransponível e, por isso,
os relacionamentos costumam acabar por aqui – imagine como não sofreu os consortes
renascentistas! Existem, contudo, aqueles que continuam e que podem resultar num amor
maduro.

Ainda sobre a paixão vale dizer o seguinte: o nascimento de um bebê confere uma
descarga enorme de dopamina nos cérebros de mães e pais. Além disso, suas amígdalas
cerebrais se expandem, modificando-os para sempre de ali em diante. Essa alteração no centro
límbico do cérebro, somada à descarga de dopamina no contato inicial com o bebê implica
uma relação introdutória apaixonada e não de um puro amor. Os pais vêm o filho como uma
extensão de si próprios e o efeito dopaminérgico os fazem ter certeza de que aquela é a
criança mais perfeita e “amada” do mundo. Isso quer dizer que os pais primeiro se apaixonam
por seus filhos e não simplesmente os “amam”, como sempre fôramos levados a acreditar.
Mas por que não? Acontece de a paixão nos conduzir a relações nas quais o outro nunca é o
outro real, há sempre uma ideação desse outro. O amor do qual falamos, por outro lado, lida
diretamente com a realidade.

Não é necessário ser um grande conhecedor de Adorno para descobrir que o amor ao
qual ele se refere é o “amor emancipado”. Antes de entrarmos nisso, eu gostaria de fazer
alguns comentários curiosos: 1- existe o risco de que pais nunca venham a amar seus filhos,
pois a objetificação inicial da criança pode não acabar por completo, resultando, assim, numa
relação de posse na qual o outro (o filho) não é livre ou mesmo só o é enquanto extensão dos
pais. 2- é impossível amar e estar apaixonado simultaneamente, pois a ilusão da paixão
conspurca a sobriedade do amor. 3- na medida em que, como veremos, o amor emancipado é
o sentimento mais elevado/belo e humano que um ser humano pode sentir, talvez a riqueza
semântica de seu conceito esteja por dificultar sua expressão.

À guisa de finalização dessa parte podemos dizer que Adorno foi um exímio ensaísta,
mas não por isso deixou de definir um conceito tão importante como o de “amor”, que para

9
ele se tratava de uma capacidade de perceber o semelhante num dessemelhante 8– guardemos
isso para um momento oportuno.

IV. Sobre o divórcio entre o homem e a arte.

É, portanto, o amor um paradoxo! – ainda bem que já estamos acostumados a isso.

Façamos outro exercício, leitor amigo: agora imagine que, por um capricho divino,
foi-lhe dado o direito de viajar no tempo. Em suas brincadeiras de ir lá e cá, quis, sabe-se lá
porquê, observar a vida de um de seus antepassados. Enfiou-se então na pré-história e
testemunhou um ocorrido curioso: um casal de um primitivo grupo de seres humanos se
apaixonou e não demorou muito a fabricarem um filho; a paixão, contudo, ainda incipiente,
continuou a existir na cabeça do homem. O rapagão que você agora observa, costumava fazer
um percurso perigoso para ir da caverna até o rio pegar água, era muito cuidadoso e estava
atento a qualquer indício de ameaça. Para o seu azar, a obsessão da paixão deu de lhe atacar
os pensamentos e, entorpecido pela imagem da “amada”, seu cuidado para consigo não foi o
mesmo, coisa que lhe custou a vida e assegurou almoço para um predador oportuno. Embora
seja isso uma baixa de vida, ter legado ao mundo uma nova geração o fez, para a natureza, um
homem de sucesso. Mas essa provavelmente não é aquela história que chamaríamos de
“feliz”, não é mesmo?

Bem, é certo que o medo desse rapaz diz respeito a um contínuo estado de alerta de
nosso inconsciente diante da contingência do real – o medo tem aqui um papel de prezar pela
vida e é também ele que nos leva a incursionar ou preconceituar o desconhecido. Sua
sensação de insegurança, e decorrente antecipação do perigo foram interrompidas por uma
autoilusão decorrente do fato de ele estar possuído pela paixão. Um preconceito tomou o lugar
de outro, porém, por mais que a paixão tenha um intuito que podemos chamar de
“civilizatório” na medida em que está por tentar assegurar a continuidade da vida (da espécie
e, por isso, necessariamente, do indivíduo), a situação não se demonstrou adequada para sua
manifestação. Daí disso que tal preconceito se perverteu e tomou um caráter anticivilizatório.
Agora que entendemos isso, podemos concluir que: todo preconceito é uma tentativa
inconsciente de prezar pela vida do preconceituoso e seu caráter anticivilizatório que nos
preocupa tem um aparente feitio situacional – o combustível da barbárie é, portanto, uma
inadequação: há fé onde deveria haver ignorância.

8
Fonte: "Minima Moralia, II"
10
Se considerarmos que a resposta preconceituosa ao desconhecido impossibilita uma
relação genuína com a arte e que o preconceito é uma maneira através da qual tentamos
driblar nossa própria ignorância, conseguimos concluir que se práticas pedagógicas
educacionais que recriminam a ignorância continuarem existindo seremos continuamente
levados a existir numa sociedade de personalidade incapaz de se relacionar com a arte. Pois a
verdadeira educação luta a favor da ignorância (de sua admissão) e contra preconceitos – o
não fruidor patológico não exerce a filosofia prática e isso é um impeditivo para ignorar,
experienciar, fruir e amar genuinamente, pois o mundo real, palco do acontecimento próprio
da vida e da arte, não existe para alguém que faz uso restrito da razão instrumental e cultiva a
recriminação da ignorância. E dado o fato patentíssimo de que vivemos em tempos
neoliberais nos quais informação e opinião vigoram ante a escassez da experiência, temos que
o amor é raríssimo, quase impossível. Por que? – não tenhamos pressa...

A experiência requer um gesto de interrupção – nos diz Larrosa. Que o leitor aqui
tenha em mente quanto a isso o parar para ouvir, o parar para olhar, o parar para observar, o
parar para sentir – carecemos de um tipo específico de “repouso”. O avanço do neoliberalismo
ocasiona uma diminuição do espaço público decorrente do aumento da privatização. A
diminuição de direitos e a urgência individual pela competitividade de mercado faz com que o
sujeito neoliberal esteja sempre com pressa e ansiando por uma maior produtividade. Esse
estado de espírito inquietante provoca um efeito deletério grave: a mente nunca está onde está
o corpo, os pensamentos nos escapam e quando vemos estamos devaneando outra vez sobre
como fazermos para sermos mais produtivos, mais parecidos com uma máquina de
desempenho industrial. Isso impossibilita que haja experiência – um acontecimento no qual o
indivíduo se encontra num estado de vulnerabilidade intencionada, de passividade ativa, de
mente e corpo imersos no agora, uma maneira de se expor e permanecer aberto ao capricho da
Fortuna (entidade que faz morada naquilo que ignoramos). Pode-se dizer que se trata do
exercício de um bom socratismo: termos nossa ignorância como nossa única certeza e não nos
refugiarmos do desconhecido mediante falsas verdades. O campo da experiência decorre de
um cuidado com a alma. É ele o abrigo da felicidade, da amizade, do companheirismo e do
amor. E isso justifica parcialmente a escassez do amor em nosso tempo.

Estranhamente, é possível “presenciar” a experiência e ainda assim não a viver. Por


exemplo, um professor que preza pela filosofia em sala de aula como um acontecimento, falo
sobre aquele que assume uma postura de escuta quase que psicanalítica quando se volta para
seus alunos, ele está por ser uma espécie de abertura para o acontecimento da experiência. Há,
11
porém, um empecilho: o aluno que é um mau estruturalista e viverá suas aulas como quem
estivesse por pescar conceitos, frases e referências com o objetivo de ter então uma boa nota
ao final do semestre. Nessa situação a abertura do professor é castrada, sua escuta não foi
alimentada de espanto e de perguntas que mais parecem um raio por irromper na sala de aula
– e isso é uma pena.

Agora imagine que a obra de arte é aquilo que se abre quando para ela estamos
abertos. Entende? Como um sujeitinho neoliberal paradigmático vai conseguir experimentar
uma saborosa catarse se para tanto sua boca para isso se encontra fechada? É preciso que haja
amor!

V. Sobre o matrimônio entre amor e arte.

Muito confundido com a paixão, o amor não existe em repouso. O sentimento mais elevado
de todos não poderia ser rebento de nossas paixões, nem a elas dever suas proezas. Uma
paixão avassaladora, demasiado profunda, intensa e completamente involuntária – é a isso que
chamam “amor”. Que somos viventes dotados de palavra não há dúvida, mas o uso que
costumamos fazer da linguagem pode, em alguns casos, gerar a suspeita de que a diferença
entre nós e os bonobos é de grau e não qualitativa. Não é assim tão grande sacrilégio nos
aproximar de outros animais de outras espécies, os textos de Freud já mais do que nos
provaram que a ideia de que temos arbítrio talvez não esteja tão correta assim. O que quero
dizer é que o uso restrito da razão instrumental leva o sujeito a viver pura e simplesmente de
forma instintiva e, por isso, seu processo de significação da linguagem é restritamente
apaixonado e, em consequência disso, sua capacidade de amar é então barrada pela primeira e
mais básica condição para o amor: condizer com a realidade.

Vejamos mais de perto essa questão: a cultura de massa costuma tomar os sentimentos
como involuntários, o que torna estranha a afirmação de Nietzsche de que “também o amor há
que ser aprendido9” – é verdade que as pessoas costumam falar sobre “aprender a amar”, mas
esse suposto “aprendizado” não passa de um mero lustrar do anseio involuntário de posse
individual pelo outro. E já que falamos de Nietsche, tomemos mão de um fragmento seu de
outro aforismo: “O que é o amor, senão compreender um outro que viva, aja e sinta de
maneira diversa e oposta da nossa, e alegrar-se com isso?10”. Que o leitor repare que as
9
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm – 100 aforismos sobre o amor e a morte; seleção e tradução Paulo César de
Souza – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. Pg.36.
10
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm – 100 aforismos sobre o amor e a morte; seleção e tradução Paulo César de
Souza – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. Pg.23.

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incumbências animalescas que a natureza lega ao homem não parecem tomar parte desse
amor proposto por Nietzsche. E ele está, consciente ou não disso, por falar justamente sobre o
amor emancipado. Repare também que “compreender alguém que se sente de maneira diversa
e oposta à nossa” é impossível. Eis que então temos outro oxímoro e ele nos denuncia uma
característica importantíssima desse amor: ama-se na ignorância.

Deixo que o leitor se entenda agora com Clarice – ela nos diz: “eu fazia do amor um
cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia
que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente 11.”. Entendamos disso que
o cerne de todo o filosofar é o mesmo da arte, do amor e do homem, porque o enigma
humano é encarnado no objeto artístico, é esse seu fundo de negatividade e o amor nada mais
é do que o sentimento que decorre de uma escolha arbitrária de dois indivíduos através da
qual ambos se abrem um ao outro.

Permita-me também brincar de literatura – explico doutro modo: “É quando


inconsciente e pré-consciente se alinham como se fosse a razão, e não eles, a animar esse
velho corpo, a mover essa carne agreste, a me deitar o ar nos pulmões e fazer-me pulsar o
peito, como se os donos da casa principiassem a adular o servente. Aquietados, diante de um
ser indecifrável por definição, não redundam em fuga, ardida paixão ou desespero. Calam,
ficam, se demoram em trazer à luz a ferida que sou enquanto se enamoram da ruína do medo.
Essa coisa esquisita, de natureza aberrante, que contraria tudo aquilo que eu deveria ser,
pensar e sentir, é, a cada segundo que lhe escolho viver, o pretexto de toda uma vida. E
aquele restante, a parte que me escraviza, é a inevitável justiça por brincar de ser deus sendo
homem. Por isso todo amor é ilícito, pois como pode um pecador sentir algo assim tão
divino?12”.

Dito isso, façamos alguns esclarecimentos: a relação do homem para com a arte é
espaço de acontecimento do amor. O amor é um acontecimento humano não individual. O
bom professor fica, portanto, restrito a amar seus alunos, isso nada mais é do que uma
disposição de abertura para com o corpo discente. É na correspondência dessa abertura que o
amor acontece. Vale dizer, se já estamos aqui, que o amor emancipado é um só e que a
disposição para seu acontecimento pode ser partilhada para com os amigos, os familiares, os
alunos, os professores, os pares românticos, e até desconhecidos, igualmente – não há

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LISPECTOR, Clarice – Todos os contos – organização Benjamin Moser. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco,2016.
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Esse trecho foi recortado de um livro que ainda não nem título, porém, ao que tudo indica, será “Terna
Ternura: Antenor” – isso ainda pode mudar.
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diferença quantitativa ou mesmo qualitativa, no que tange a amar, entre uma boa amizade e
um bom casamento. O amor é também uma aberração da natureza, pois estar diante do
desconhecido e escolher ficar ali é algo que contraria nossos mais íntimos instintos de
preservação. E quando Adorno nos diz que o amor é uma capacidade de perceber o
semelhante num dessemelhante ele está por se referir à identificação do enigma, que é
também meu, no outro. Sendo assim, a abertura que gera o espaço necessário para o
acontecimento da experiência quando encontra outra abertura se torna espaço de
acontecimento do amor. Todo e qualquer maior enlevo emocional para com familiares,
amigos próximos e pares românticos se deve à atuação de outros sentimentos em nossa psique
– logo, o amor que sinto com um recém conhecido, enquanto pura e simplesmente amor, é o
mesmo que sinto com minha esposa que há tanto me conhece.

Assim, fica-se visto que a dificuldade que a arte encontra para educar os sentidos dos
não fruidores patológicos, em parte, diz respeito a uma indisposição para amar típica de
sociedades neoliberais. Em vista disso, o que podemos fazer?

VI. Sai o aluno, entra o escritor.

Nem sempre, olhando de fora, é tão fácil dizer se um livro resistiu ou cedeu ao
neoliberalismo. Por exemplo, a decisão de alguns autores por escrever capítulos mais curtos
pode razoavelmente ser pensada para responder às urgências de seu tempo, que lhes dão
leitores de um mundo neoliberal – pessoas muito apressadas, com muito pouco tempo,
demasiado compromissadas e que perderiam muito de uma obra se ela tivesse capítulos muito
extensos; a experiência artística seria, digamos assim, picotada – algo como um orgasmo
interrompido. Melhor então nutrir nosso companheiro de trincheira com experiências
artísticas com menos espaço para eventuais rompimentos da fruição – isso não implica
deméritos às obras ou uma diminuição em sua qualidade artística. Há, porém, aqueles que
decidem escrever capítulos curtos para se adequarem ao mercado, são esses também que
comumente costumam escrever livros por demanda, antevendo a recepção do público e
antecipando seus desejos no que tange à forma e conteúdo. Isso não é arte – ao menos não
quando entendemos arte como alta literatura. O nosso problema é que quando temos um livro
contemporâneo em mãos não sabemos o que motivou o autor a optar por isso e não aquilo.
Mas tudo bem, afinal, nunca antes soubemos. É parte de nossa geração, mais do que de outras
talvez, arriscar-se muito pouco a ler a literatura contemporânea, pois as livrarias estão cheias

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de fascículos da indústria cultural. Isso, contudo, que também é efeito, não pode ser motivo
suficiente para que a literatura contemporânea seja tão pouco lida.

A comum decepção de identificar um livro “ruim” pode estar sendo acrescida pela
mágoa neoliberal de ter perdido seu precioso tempo de glorioso leitor num livro muitíssimo
irrelevante. Melhor a segurança dos clássicos, não é mesmo?! Não há como negar: eles são os
queridinhos dos leitores mais experientes, mas então por que costumam despertar tão grande
repulsa entre os secundaristas? Para quem há muito não pisa o chão de uma sala de aula de
escola pública, aqui vai o informe: os alunos que dizem gostar de ler são hoje raríssimos!
Cada vez mais raros...

O sistema educacional continua sendo embrutecedor e está por enfiar goela abaixo os
clássicos na garotada. Para quem há pouco saiu da puberdade a imposição do linguajar
machadiano é vista menos como um desafio do que como uma tortura. O aluno não tem a
liberdade de escolher o que lerá. E, por isso, livros de linguagem mais acessível, que não
fazem parte da alta literatura oferecida nos colégios, em boa parte das vezes são mais queridos
pelos alunos que dizem gostar de ler e, não raro, fazem-se porta de entrada para um mundo da
leitura que ainda não converge com o da fruição. O bom professor encarcera o orgulho e
incentiva seu aluno e principiante leitor a ler também livros de Paulo Coelho – que mal há
nisso?! É preciso encarar tal martírio e crime literário como um rito de passagem, porque,
para além do mais, são também os bestsellers que bancam a publicação de muitos novos
autores. A resolução é simples: incentive-os a ler. Um dia, por conta do bom acaso, a alta
literatura lhes baterá na porta ou eles mesmos irão até ela.

O problema de falhar em educar o não fruidor patológico permanece em aberto


primeiramente porque nunca haverá uma educação consumada, segundo porque ainda que
ocorresse uma mudança e o gosto por livros emancipadores se tornasse comum do dia para a
noite, para o leitor embrutecido a fonte de Duchamp continuaria sendo apenas um mictório. O
caminho para a emancipação embora seja individual não precisa ser trilhado sozinho. Há
obras de altíssima qualidade que talvez possam ser mais adequadas no processo de
desconstrução do embrutecido, que, consciente ou não disso, terá de necessariamente pôr em
prática a autoinspeção socrática. E é aqui que está o X da questão: o diálogo, o convívio, a
escuta, a atenção, o ato de exímia alteridade de indicar um bom livro para um outro ou
mesmo de o convidar para ir a um museu, cinema ou teatro são formas de manter em aberto o
campo da experiência, possibilitando assim, quando o momento chegar, que possa haver

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amor, felicidade, fruição, catarse, enfim: arte. Nesse sentido, o caráter pedagógico da arte é
tributário de toda experiência humana direta. É por isso que fruidores e artistas, novedios e
inveterados, têm de viver outros espaços de convívio, isso implica filosofar e amar o que é
estrangeiro para além do enigma-camarada. Falar sobre arte em outros institutos, em outros
lugares, serem ouvidos por poucas pessoas ou quase ninguém, desfilar suas aberturas em
ambientes estranhos, exóticos, adventícios, proibidos: incomodar! O embaraço, o mal-estar, o
desagrado são parte de todo e qualquer exercício contínuo de educação – o espanto e o
desprezo dividem o mesmo berço.

O desgosto e indiferença pela arte generalizados são sistemáticos e de raiz neoliberal.


Frente a isso, o campo de atuação dos artistas não pode se limitar à expressão de suas artes e
nem mesmo ficar restrito ao berço do bom convívio. Ser artista é uma forma de existir no
mundo. Sendo assim, não é apenas estar continuadamente aberto, é também buscar o fechado,
como uma flor desabrochada que se enverga para partilhar seu pólen com um botão ainda
arisco ao sol – agora façamos uma metáfora de baixíssima qualidade para conferir um caráter
paradoxal também a esse importante parágrafo: se levarmos isso em consideração, podemos
facilmente dizer que, para um escritor, ser lido por um novo leitor é como assassinar um
fascista – prazer esse estonteante e acessível a todos e não só aos artistas. Nesse sentido, falar
sobre arte e ser ouvido por um público estrangeiro é cometer um maravilhoso massacre.

VII. Conclusão – entra o aluno, sai o escritor.

A não solução é parte inerente de nosso problema, pois educar é necessariamente uma prática
ininterrupta. Mesmo assim chegamos a conclusões interessantes: a possibilidade de existência
e acontecimento da arte iguala em condição de importância todo artista e todos os
apreciadores. Isso ocorre porque o acontecimento da arte demarca o uso da razão emancipada
e, por sua natureza e por nunca transcorrer individualmente, assinala também a ocorrência do
amor – a cultura da reputação não faz parte desse cenário. Temos ainda de falar sobre coisas
mais desagradáveis: infelizmente, a agonia da arte, no que tange ao campo de atuação de seu
público e supostos artistas, é provocada pelo conformismo, comodidade e estupidez de
diletantes cultos e ainda não emancipados (não versados no exercício contínuo da
emancipação) – essa inação é desmedidamente grave para que pudéssemos aceitar supor uma
autonomia de seus praticantes. Não agir é apenas outra forma de agir e quanto a isso vale
lembrar que uma importantíssima condição de possibilidade para existência do fascismo é a
omissão. Temos, além disso, deveres de casa a cumprir, pois vimos que um contato adequado

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com a arte na primeira infância pode resultar numa sociedade com menor ocorrência de
indivíduos de personalidade autoritária no futuro. Também os crescidos tiram proveito da
arte, pois, mesmo aqueles de personalidade autoritária, podem, com o exercício da filosofia
prática, criar instâncias de resistência em seus pré-conscientes e barrar a manifestação de
impulsos preconceituadores. E para que esse final seja um tanto charmoso, elegante, profundo
e, ainda assim, piegas (um paradoxo), termino com esta frase pronta e recortada de minha
memória de Paixão Segundo G.H.:

“A explicação do enigma é o enigma.”.

M.G

Bibliografia:

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FABBRINI, Ricardo. “Imagem e enigma”. Viso: Cadernos de estética aplicada, v. 10, n° 19
(jul-dez/2016), p. 241-262.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as
vezes do silêncio e A dúvida de Cézanne. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
LISPECTOR, Clarice – Todos os contos – organização Benjamin Moser. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Rocco,2016.

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