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bordas de mim

bordas de mim
τ O medo de escrever sempre assolou minha existência, escrever é deixar no papel um
registro da minha interpretação do mundo, sendo essa interpretação factível ou não com o real. Tá aí,
o real da minha interpretação, ao ser colocado em palavras físicas, me assombra, pois permite o
acesso à minha existência. Existência que por anos se contentou em ser furtiva.
Este papel carrega mais que simples palavras escolhidas para te impressionar, carrega as
dores de uma mente pensante que se absteve de locais onde poderia ser interpretada pelo outro já
introjetado. Carrega-me. Carrega-me. Peço, por vezes, suplico para que o papel me carregue para
lugares onde sempre quis ser.
Expor em papel o real que trago comigo eterniza o passado vivido e inventa o que virá.
Passado de uma existência de passos distantes, caminhos feitos por muitas de mim.
Papéis criam caminhos, caminhos nem sempre viram papel. Afinal quantos papéis cruzaram
minha existência? Quantos caminhos fazem parte de mim?
Arde uma dor em meu peito ao mero anseio de escrever, me paralisa e me provoca, ataca
meu desejo de forma que ele fique onde está. Onde já se viu, você, querer resistir em palavras, em
texto, em papel. Arde, dói, machuca minha pele. Rasga minha existência como aquele nó na garganta
silenciada.
τ Há tempos luto com duas de mim, uma me golpeia com seus toques ácidos de crítica; a
outra vem de um acalento medroso, seu medo de existir me paralisa frente a acidez experimentada
por anos em dentro. Por cima de mim, do meu corpo estirado no chão, ela fala, grita, não tem medo
de me amedrontar. Continuo estirada. Quando não há mais sangue para jorrar, ela vem. Como quem
não quer ser vista, com seu jeito sumido de ser, me resgata. Olha para mim e consigo ver em teus
olhos o arrependimento de não ter me barrado antes. Seus olhos não conseguem chorar, tenta ser
firme apesar de temer os gritos. Ainda que diferentes, possuem a mesma essência. O medo. Medo de
ir, medo de ser.
τ Toda vez que escrevo penso em desistir. A potencialidade que eu demonstro em fala creio
nunca alcançar em escrita. As elaborações por trás das minhas palavras soltas ao vento são para não
ficar, é como se eu pensasse que não valho a pena resistir, perdurar no tempo e no espaço. Será que
eu me permito esse lugar?
τ Isso que corre em minhas veias não consegue sair do meu corpo.
τ Quanto eu mais me mostro ao mundo, mais eu gostaria que ficasse com minhas sombras,
mais eu olho dentro e não vejo sentido na imagem que exalo. Às vezes é mais fácil acreditar que há
doença que olhar para cura e crer que existem retalhos que você não consegue disfarçar; foram
colados a força, sem tempo hábil para que o remendo ficasse escondido.
τ Sentir sempre foi difícil para mim. Quando foi positivo, duvidei até que era dona e vivia
no meu corpo. Já a dor, essa era conhecida, fazia morada em mim o tempo todo, fez me ter viva, me
lembrar quem eu sou. Ela te faz viva, te marca e faz você se reconhecer em si.

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bordas de mim

τ As paredes que criei para me proteger me sufocaram, tentei pintá-las com meus gostos,
pendurar meus prazeres e expor minha imensidão. Nada disso fez com que eu me tivesse para mim,
numa tentativa de me alegrar, me fiz infeliz; por lembrar tudo que poderia ser, por essas paredes me
mostrarem que não sou chão. As ergui sem que tivesse comigo a força de minhas raízes. Cada sopro
que chega pela janela tem a força de uma tempestade e me abala. Quando não chega, não sinto o
cheiro de vida entrar como os raios de sol que antes iluminou.
τ Meu sonho sempre foi ser poema. Em vez disso, só consigo ser texto corrido e
quebrado.
τ A sensação de estar errada começa a brotar dentro de mim. Primeiro ela chega como um
borrão, sussurra baixinho coisas que eu disse e me mostra as diferentes interpretações daquilo. Fico
tonta de tantas vezes que as imagens vão e voltam. O vômito chega anunciando que não conseguirei
digerir tudo aquilo que me enfiaram goela abaixo, tudo que vem sem ser mastigado, tudo que não
fora elaborado. Não consigo falar, dizer “por favor, tira de mim essa imagem que grita. Vocifera,
feroz no brado daquilo que acredita”, fizeram de mim inimiga, raivosa, aquela que não pode falar
dela, dos seus. Fizeram de mim o que queriam e nem vomitar eu pude. Fica então, enquanto mal
processado, meu passado e cicatrizes que são feias demais para receber luz solar, feias demais para
serem vistas pelos olhos sensíveis e hipócritas de quem as criou. Feia, feia, feia.
Quero vomitar aquilo que não me pertence, jogar para fora de meu corpo aquilo que o corrompe
e me maltrata. Ora, se não é meu, por que eu que tenho de fazer o trabalho sujo? Transformar o que
eu engoli por anos em algo que me dê o que viver? Conviver com ruídos, com os olhares, tudo parte
de uma paranoia literalmente real. Real demais para eles acreditarem no que fizerem. Literalmente
escrita. Literalmente falada, literalmente concreta.
Repito, a sensação de estar errada começa a brotar dentro de mim. E se? Há dúvidas sobre o que
sinto. Você nunca foi boa em sentir mesmo. Sempre pensando coisas além, vendo onde não tem,
ouvindo quem não fala. Você não fala. Não disse a eles quem são? Não disse o que sentia? O que
via? Não disse? Por que falou? Você bem sabe que essas coisas foram feitas para ficarem guardadas,
guarde em seu corpo aquilo que não te pertence, sempre foi assim. Logo você. Por que você,
criança? Lembro de você gritar suas dores no escuro. Como ainda não aprendeu que há coisas que
essas pessoas não escutam? Sofrer daquilo que já é esperado é realmente sofrer ou apenas ser
teimosa?
τ Às vezes queria saber o que a vida me diria se eu tivesse ido embora. O que ela
conseguiria dizer sobre mim.
τ As plantas que seguram meu corpo, por muito tempo, taparam as cicatrizes que quis fazer
em mim mesma, das marcas que a vida me deu. Essas plantas me trouxeram raízes para entender que
a dor no solo se espelha, mas pode, em contato com o ar, brotar vida. Afinal, onde há vida em meu
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bordas de mim
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corpo? Fiz dos meus braços exposição para os traços que desenham vida em mim, que tais galhos
foram firmes durante tempestades e que em meu corpo sempre houve raízes fortes. Raízes que
costurei em minhas veias, bordadas a ponto corrente me aprisionaram numa fortaleza inabalável e,
em cada casa, demonstraram minha fraqueza.
τ Hoje me coloco na frente dos meus olhos, dos que eu criei para enxergar meu corpo no
mundo, corpo este que só consegui ver quando me refletia nos outros sem me ver, fugindo do meu
reflexo sem me reconhecer.
τ Escrever é um dilema quando não se está inspirada. Minha inspiração surgiu na dor, a dor
de escrever parecia aliviar a dor que sentia no corpo. Daí evitar escrever parecia a evitar a dor, não
me encontrar com ela me faz sentir distante daquilo que me provocava a reagir, então não escrevo.
Na lógica das minhas cicatrizes, parecia que elas se agradavam quando não olhava para elas, mas se
elas compõem meu corpo, quem realmente se agradava? Se escrever alivia, por que fujo disso?
τ Sinto no peito aquilo que não consigo expressar em palavras. Palavras são confusas para
mim que sempre senti com imagens, textura e cheiro, essa coisa chapada que me obrigaram a
aprender e que não consigo decifrar com exatidão me foge aos lábios toda vez que tento elucidar em
oração aquilo que sinto com as mãos. Essas mãos que tanto tremem quando o peito aperta, tentando
dar vazão ao que corre em minhas veias, tentam tirar de mim aquilo que sei que não é meu, mas as
palavras não se encontram com minha fala e ela tenta e tenta e tenta falar o indecifrável dentro de
mim. Eu sei que são apenas desenhos, mas não foi com eles que eu aprendi a pintar minhas ideias.
Tantas foram as vezes que decidi me calar com peito apertado por sentir que as palavras me faziam
burra. Esse texto foi escrito não por mim, mas pelo que eu tento com as palavras. A ordem direta me
assombra, porque nela é fácil encontrar o erro, fácil me encontrar; um texto corrido e quebrado.
τ O que tento tanto evitar de escrever, vem a mim de outras formas. Lembro porque
comecei a escrever e, de alguma forma, toda vez que escrevo me sinto de novo naquele quarto
pequeno, ouvindo os gritos, encarando o papel e suplicando que ele tirasse de mim o desespero de
me sentir sozinha, perdida. A cada palavra escrita, mais distante eu estava daquele lugar e de repente
estava, longe de mim, longe das dores. Apesar dos papéis conterem minhas dores, eles eram
guardados com todo zelo. Talvez, ao guardá-los, eles não encontrariam maneiras de voltar a me
invadir, apenas com minha permissão.
τ Eu sei que escrevo bem, mas pra que escrever? Por que mostrar isso? Para quem falar? O
que você quer dizer? Dizer o que? Onde?
Eu sei que consigo te encantar com minhas palavras, que você nem lembra mais de estar lendo,
que, de alguma forma, eu te mostrei imagens e não apenas sons vazios na mente. Que te fiz sentir-
se(me) menos sozinha, ao falar em voz pra dentro o que estou te mostrando. Eu sei que consigo te
ludibriar e te trazer pra mim. Ao passo que você me lê, eu sinto sua presença. Eu sei, eu sei. Não
estamos juntos aqui?

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Talvez fosse isso que eu sempre quis, uma companhia de leitura e imagem. Pensar que alguém
um dia pudesse me ler, me ver, estar comigo em papel. Tocar em mim sem que seja preciso eu sentir
a invasão de sensações de qualquer relação de troca. Ora, o que você me dá, você nem vê. Só eu
sinto e não me sinto só. O que eu te dou, nem é muita coisa, talvez nem seja pra você. Você que tanto
já me gerou agonia, será você mesmo? Hoje será se fiz de você um pouco mais de mim? Bom, talvez
amanhã eu tente de novo.
τ Talvez não fosse para ser assim, fazer parte do meu caminho. Talvez meu caminho fosse
feito de outras coisas. Quais coisas você gostaria de ter no seu caminho? Das coisas que te formaram,
quais você arrancaria com a mesma força com que te fez doer? Talvez não fosse mesmo para ser
assim, mas assim é o que sei ser. Veja bem, talvez eu esteja aqui só para me enganar que eu poderia
ser diferente. Seria um final incrível. Seria, se não fosse eu.
Talvez eu nem queira ser diferente, quem eu seria? Diga-me o que gostaria de encontrar em
mim. Serei página em branco para que me preencha com seu desejo, para que me marque com seus
gostos, serei página enquanto você for caneta para transcrever suas histórias. Continuarei em branco
para que me complete com o que quiseres. Afinal, sempre fui sua.
Serei assim, somente assim, para ti. Para mim.
Talvez nem fosse eu. Se foi você quem me escreveu, como pude ser? Onde será que me
perdi, onde será que me esqueci? Foi naquele dia que me tocou e eu não consegui falar. Foi naquela
vez que me prendeu entre a pia e a vergonha de gritar a noite me dominou. Foi quando contei ter sido
gracioso o beijo roubado, mesmo sabendo que o incomodo perdurou por meses. Foi no dia que
acordei com você por cima de mim e não sabia se era sonho ou não. Foi ter acordado confusa com
esses sentimentos. Invasão e encanto andaram juntas por muito tempo. Caminho longo e estreito. O
encanto, sempre reluzente, abafava o grito seco que a invasão sentia. Talvez esse caminho eu
percorri com eles, entrei no meio dos dois e me fiz desaparecer, levando comigo as linhas que os
cercavam. Assim eu fiquei encantada e invadida, como página em branco que, depois de escrita, não
consegue tirar as marcas de si.
τ Eu sinto meu corpo pesado e vazio, eu sinto o tempo na minha pele, eu sinto as histórias
me atravessarem, eu sinto tudo e nada em mim. Eu sinto, sinto muito que tenha sido assim.
τ Quem sabe por aquele que inventava histórias por cima das melodias para que eu pudesse
sentir a criatividade em todo lugar, entre um tigre, uma bailarina e sua floresta. Quem sabe por
aquele que trançava meus cabelos me passando segurança pra enfrentar mais um dia. Quem sabe por
aquele que com muito orgulho me ensinava suas receitas por telefone. Quem sabe por aquele que me
trazia doces depois de uma madrugada de trabalho. Quem sabe por aquele que teve paciência de me
mostrar amor onde eu só conseguia sentir raiva. Quem sabe por aquele que confiou em mim. Quem

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bordas de mim
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sabe por aquele que me mostrou seus medos e confusões. Quem sabe por aquele que soube fazer
poesia da vida. Quem sabe eu fui amada.
τ A sua voz ecoa em mim trazendo tudo aquilo que ouvi em ruídos criados pela sua
covardia branca. Como usar essa raiva que sinto a cada som estridente que sai da sua boca para que
ela não me mate tão de pressa? Como fazer com que eu consiga caminhar sem ter que parar a cada
machucado que sua covardia faz pelo silêncio alheio? Como engolir meu choro quando sinto que
você quem devia chorar essas lágrimas de sangue que carrego? Como escrever sobre mim de novo?
τ A necessidade de escrever para fazer as pazes com as palavras, para que consiga pactuar
uma amizade correspondida sobre como as imagens partem do meu corpo.
τ Talvez eu não queira explicar, afinal irei emoldurar tais imagens a partir da minha criação
sobre o que li, então, por que me prestar a tal prepotência narrativa? Me recordo de sentir em
imagens aquilo que estava na minha frente em palavras. Ora, não é pra isso que servem os textos?
Perco-me de novo tentando te fazer olhar para o outro lado. Por que tanto evito que você descubra a
insegurança que há em mim? Por que tento tanto virar a situação para que meu conhecimento e
interpretação não sejam vistos por você? Para que não me coloque no banco dos julgados sobre uma
verdade que ninguém quis fazer universal, mas você com seus olhos criados por este mundo tanto
insiste em fazê-la parte do real tangível a qualquer corpo vivente ou não. Você, nessa junção infinita
com o outro, me faz um não-ser. E de não ser eu entendo, não fui muitas coisas, não fui eu quem me
fez ser. Tantos nãos me compõem, mas eu não consigo dizer não a isto que me constituiu. Isto que
talvez não consiga descrever tão bem quanto você se vê. Ora estamos aqui então pra que? Para que
eu diga quem eu sou sem olhar a ti? Onde e quem disse que isso funcionaria?
τ É como se eu quisesse mostrar a este outro que há beleza na maneira que eu olho o
mundo, que na dor também há narrativas a serem admiradas. Que minha dor pode ser cuidada e vista
para além do meu reflexo no espelho.
τ Bruta, pequena palavra que usaram para descrever o eu que já não está mais aqui, aquela
que fora acusada de falar demais, de ser muito agressiva, de jogar sua raiva nos outros. Bruta, como
imperfeita, não lapidada, sem molde, crua. Bruta, como se admirassem o que eu fiz com a minha dor,
o que eu tive que esconder, eu tive que sucumbir ao que elas queriam ouvir, eu tive, mas não tive
escolha. Eu não tive escolha, só fui vista como bruta. E agora não sei localizar a minha dor, onde ela
está? Está em ser vista como bruta? Em não ser mais? Em ser admirada por estar mais sofisticada, ou
por não ser vista como bela ao falar o que gritava na alma, na pele? Bruta, bruta, bruta. Barraqueira,
agressiva, sem paciência, bruta. Como puderam falar isso de cara lavada, se sentindo com
argumentos válidos a fim só de me ferir, me mostrar meu lugar, mostrar onde teria admiração.
Mostrar como elas me veem, e só podendo ser assim eu fui. Eu fui e isso me levou ao meu próprio
poço, minha vala. Eu sempre me perguntei como voltar a ser eu, sempre me procurei por lugares em
que me perdi. Mas se perdida eu estava, como poderia voltar para me achar lá? Sendo eu a perdida.

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Talvez seja hora de rever minhas palavras, de rever minha brutalidade, de não perder mais essa.
Perdida não, roubada; a golpes de violência dados sem nenhum pudor.
τ Aí eu desabei, do muro que eu mesma construí. Estava eu lá colocando mais um pedaço
de distância entre eu e mim mesma, mas desabei. Desabei dos braços desses homens que me
rodeavam, onde foi se apoiar se eles nunca ofereceram suporte? Me apoiei em falso, numa atuação
meticulosa, treinada diariamente no espelho, medindo cada movimento do reflexo: a sedução
minuciosa, o riso falso, o olhar misterioso, o meio sorriso, tudo isso construído pra me afastar.
Existia apenas no reflexo, mas não resisti à dor de vestir o que não me servia.
As costuras eram feitas direto na pele, a linha suja de sangue, a agulha ardia toda vez que
fazia um ponto e como eles eram bem-feitos, imperceptíveis a olho nu e mesmo nua, ainda vestia
essa roupa. Às vezes, eu tirava para refazer a costura, continuar imperceptível era o que fazia a roupa
ser especial, eu tinha que ficar nua, mas não sem ela. Nesses dias de refazer meu trabalho, eu via as
marcas, ainda as vejo, as marcas vermelhas na pele, cicatrizaram em relevo, fizeram bordas em mim.
Era com ela que nua eu conseguia ser coisa, coisa desejo, qualquer coisa que queriam.
Errei, fui coisa pra se comer sem critério, pra fuder na madrugada, desacordada. Coisa não
sente. Fui coisa e eles foram homens, completos, humanos, cheio de peculiaridades que no meu colo
encontravam nada mais que o conforto do meu afeto, afago, carinho e cafuné. Nele eles podiam ser,
podiam se derramar que eu não deixaria escapar e cair da cama. Foi na cama que eles falaram e eu
ouvi, foi em meus braços, por entre meus seios que eles se aqueciam de um calor, calor que não era
pra mim.
Nua, na intimidade da cama, a espontaneidade escapava pelas brechas da costura. Era
imperceptível porque eles queriam que fosse e esse sempre foi o segredo, a atuação depende de um
público pra existir, alguém com interesse pra assistir essa peça de sedução. Despida e dolorida, eu
me enganava. A ilusão que o calor desse encontro tinha combustível dos dois lados. Eu me sentia
aquecida, pertencente, eu tinha um lugar, no alto desse muro de atuações, reflexos e vazios que
construí. Então eu caí e nesse movimento ao chão, fiz meu próprio túmulo e funeral. Deixei lá as
cinzas, hoje viraram poeira em sonhos e surtos.
τ Talvez seja a melhor hora pra escrever, depois de passar um dia inteiro me evitando. A
hora da costura de pensamentos, onde você tenta esquecer a dor que as agulhadas trazem. O que me
agonia é pensar que escrevi de um jeito tão bonito a dor que ainda se repete. Pensar que, apesar de ter
colocado em papel, ela ainda faz morada em minha pele, ainda carrego as cicatrizes recém feitas.
Pensar que, apesar de desenhar as palavras de forma que traga borda pra mim, ainda repito o mesmo
processo de dor. Ainda tenho medo de escrever, ainda penso em ser furtiva, ainda me olho no
espelho pensando nas costuras que tenho que fazer pra ser o que outro quer ver. Pensar que o verbo
continuará no infinitivo, pois não vejo possibilidades de arrematar isso em mim. Pensar que todo
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bordas de mim
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esforço que venho fazendo não trouxe predicado que me contemplasse como pessoa. Sentir a dor nos
meus dedos, aquilo que a ansiedade comeu, que a depressão não me deixou cuidar. Tudo isso que
acima descrevi se decompõe em medo de no final eu continuar como no início, que no próximo
parágrafo você não encontrará nada de novo, só os mesmos artifícios de ludíbrio.
Ver, fazer, pensar, sentir e querer morrer.
τ Eu sei que você não tem nada a ver com isso, mesmo assim queria mostrar essas palavras
que eu escrevi pensando em você e neles. Penso sobre e volto àquela mesma sensação de nudez
planejada. Tem algo em mim que te pertence e gostaria de devolver, para que eu possa desfazer
minhas costuras com um carinho que nunca tive com meu corpo, para que eu possa te mostrar, para
além do toque sexual, o que eu fiz de mim pra você, pra eles. De algum jeito eu sinto que isso me
faria respirar mais leve, pois toda aquela costura não era apenas superficial, ela me continha com
todos meus órgãos e sistemas, tudo tem que estar amarrado, assim a ilusão fica mais potente.
Tirar, te mostrar isso. Quem sabe assim o espelho possa ser apenas um amigo, voltar a ser
meu, eu. O retorno de algo que nunca fui. Chamar isso de início me incomoda. Eu passei, vivi,
costurei com minha mão, construí e arrumei os detalhes com meus olhos. Eu estive aqui o tempo
todo, não vou chamar de início algo que eu sinto que já tenho. É estranho poder dizer que tenho algo,
que é meu. Apesar de todo esse remendo ter sido feito por mim, não o tenho, ele me tem, sempre me
teve. Fiz de mim buracos para que você metesse como quisesse, cada ponto, cada passada de agulha,
não fui só eu. Você estava lá pegando em minha mão e me guiando, onde pensava que era abraço,
era desculpa para olhar mais de perto e acertar cada ponto onde queria que ele estivesse. Abraço
solitário, mas eu sentia você lá, atrás de mim, respirando no meu pescoço, podia sentir cada batida do
seu coração, você era vivo e eu friamente costurada para que você coubesse em mim.
τ Estou novamente aqui despida para que me mostre, me despi da verdade que achei que
poderia me proteger. Que verdade é essa que tentei usar de escudo? Será que pode ser chamada de
proteção aquilo que te prende, te inibe ser? Sei que me enganei achando que poderia me costurar
para que meus remendos não pudessem ser vistos. Eu os vejo a cada vez que observo meu corpo. A
ansiedade em minhas mãos, o estresse em minhas bochechas, o medo em minha buceta, a vergonha
em minhas pernas, a submissão de meus ombros. Pois bem, me despi da verdade para poder escrever
com minhas palavras o que observo desse mundo, do mundo que me deu linha e eu fiz minhas
próprias agulhas para remendar o que eu achava insuportável em mim, o que eu achava que não
caberia nesse mundo; então guardei pra mim, para que só eu acessasse e mesmo assim acabei não me
permitindo ser, ver, fazer de mim aquilo que sonhei: poema.
No meu lirismo escondido, vejo um mundo que gostaria de apresentar, expor em papel aquilo
que tanto fiz em palavras soltas ao vento em rodas e conversas. Ali conseguia ser eu, no encontro
com o outro que me ansiava, neles confiei e agora confio a vocês um pouco de mim, um pouco do
que sei, pensei e refleti por tanto tempo sozinha, por tantas noites sofridas, por tantos choros
perdidos. Imagino que agora você anseie o que o coloquei em papel a partir de tantos que cruzaram

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minha existência. Veja, não preciso mais de você pra existir. Fiz de mim escritos públicos e não
apenas em branco para que fique escondida em meus medos. Apresento-lhes, então, eu, minhas
palavras e meus silêncios. Preste atenção, não estamos sozinhas aqui.
τ Sou eu de novo. Aquela que se olhava no espelho procurando por alguém, nunca se
achou, nunca se viu. Fez do espelho pessoa em que se apoiar para contar ao mundo quem ela era,
então ela não foi. Isso que tento explicar nunca foi o que sentia, isso era o que eu contava pro espelho
a fim de verificar se seria bem narrado. Toda uma criação de verdades e verdades para que esse
espelho não se quebrasse. Os cacos com certeza estilhaçariam seu corpo, os pedaços se
arremessariam diretamente em seus olhos. Cega, com sangue escorrendo pelo rosto, procuraria por
suas mãos, tentaria levantar se apoiando nos cacos que ficaram pelo chão.
Não sentia mais a dor, parecia que não ligava para o sangue quente escorrendo pelas pernas,
rosto e braços, parecia que o sangue pertencia mais ao espelho que a ela, era o espelho que pulsava.
Nesse pulsar incessante, na tentativa que ela se visse, ele não aguentou e se partiu. Atingindo os
olhos dela, olhos que sempre desejou que se abrissem, que fizessem mais que só se seduzir, se
hipnotizar para que o transe impedisse que ela se quebrasse, quebrasse o espelho.
A tristeza de sentir o seu próprio sangue em suas mãos, de sentir e não poder ver todos os
arranhões e buracos que surgiram. O desespero de não ter mais seu reflexo vivo, inteiro, de não mais
dominar a arte enganação do seu próprio espelho, de não o ter mais virado pra fora. Dele ter se
quebrado na frente de sua vista, te cegando, não mais pelo reflexo, e sim com sua própria matéria.
Estilhaçada, no chão, tentou se levantar, mas não conseguiu; por lá ficou, cega com os cacos e seu
sangue.
Acordou, balançou a cabeça e agradeceu. Foram só palavras, formaram imagem na sua mente.
Os cacos eram apenas palavras, seu espelho ainda estava lá, intocado. Ainda não teve coragem de
revê-lo, ainda não teve coragem de encarar as palavras que fizeram seu reflexo abrir seus olhos com
tanta violência, com sangue, como quem prevê o que pode acontecer, como quem escuta quem te
cuida e entende, abaixa a cabeça e pensa: quem sou eu que me olha?
τ E aí veio a dor, a cor e a textura, depois de dois dias estranhos e cinzentos, com cheiro de
cinzas daquilo que um dia foi vida; desavisada, mas ainda vida. Vida que vivia dentro de mim como
num suspiro, que por se esconder demais, acabou sem conexão e se foi, eu perdi, mas achei em mim
a morte, saindo de mim como num dia normal, numa sexta-feira de manhã, entre meu trabalho, entre
minhas pernas. E foi assim que soube que o nada se quebrou, eu quebrei e ficou ali uma parte de
mim que nunca mais poderá ser presente, eu tinha mudado sem saber, sem ter escolha. A ficha caiu
mais tarde, antes meu corpo já me dava os sinais, sem o rompante da palavra que significaria mais
tarde. Nesse desaviso da vida, eu não pude nem chamar de meu, pronome possessivo daquilo que
carregava, sem nome, sem endereço, sem morada, só dor e sangue, e eles também se foram, só me
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bordas de mim
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restou eu a mim. Penso estar acostumada com esse mundo em mim, mas digo ao que fazia morada
em mim, foi também seu. E agora me encontro sozinha de novo; aonde coisas vem e se vão, eu
permaneço. O talvez que surge no “e se” é o que faz eu olhar para ti sem querer te chamar de minha,
é o que me faz te perder de novo. E eu perdi, mas não fui eu, entende? Eu te achei já morta, fora de
mim, sem que eu pudesse dizer que te carregava, você não teve essa oportunidade, e agora meus
próprios vocativos mudaram, aqueles que eu já desejei surgem no negativo, na negação de ter
acontecido, no que eu não imaginava que pudesse acontecer, naquilo que nem tive escolha. No fundo
daquela vala quando a ficha caiu, quando eu caí, não tinha chão, não tinha paredes, nem céu eu via;
fria, úmida e escura, um buraco. O buraco da morte, onde deveria ter sido vida; o buraco por onde a
vida sai, eu vi morte. Eu te encontrei morto, me vi na morte alheia como quem morre por si mesma.
Estava eu na minha vala, sem possibilidade de sair dela sozinha eu desejava ficar com você, eu
desejei ter você. Deixar você só dói demais, mas essa vala não me pertence, nela ficam a minha
culpa, a minha dor, a minha decepção, a minha covardia, nela ficam meus pêsames e nela ficará você
também, outro pronome possessivo que a posse eu nunca tive e, mesmo assim, perdi. Lamento,
lamento que tenha sido assim que eu te conheci, que conheci esse vocativo. Pá e terra agora farão seu
trabalho de enterrar uma história. Da vala ao túmulo fico com o papel e o funeral.
τ Sinto as palavras virem à mente. Tomaram forma e se dissolveram. Como esculturas na
areia que o vento desmancha. A mente parece vazia, mas só espera a areia tomar forma e de novo se
desmancha. Coisa parecida acontece com meus sentimentos. Como negar a forma que um dia
tiveram se eles continuam sendo areia em minha mente? Continuam a pesar meu pensamento mesmo
sem forma definida. Então sinto cada vento que respiro me sufocar dando a entender que, se
desmanchar, passa. Mas não, não passa. A areia fica, pesa e, sem forma, não consigo traduzi-la em
palavras. Palavras tais que um dia o vento me trouxe, com vistas de me acalentar "vai passar" ele
disse. Ora, mas se passa e desmancha me tira o tempo de entender. Me entender. Entender as
próprias esculturas que fiz de mim, que fiz em mim, que não deixei me ver.
Eu precisava escrever, porque são essas esculturas que entendo, que aprendi a fazer. Se o tempo tudo
engole, venha e pegue essa areia que há em mim. Venha e roube o vento para que enfim eu tenha
tempo.
τ Prisão e loucura, sempre tive medo dessas palavras. Tinha a certeza de que acabaria
nesses locais e vejam só, cá estou; numa prisão louca de ódio, onde não sei encontrar amor. O
tragicômico dessa situação é que, ao buscar incessantemente o significado das palavras até que o
sentido atribuído tivesse caminho para mim, nunca achei algum para acomodar o amor, afinal ele se
acomo(l)da? Errinho engraçado de digitação né? Culpa das unhas que tanto desejei ter naturalmente,
fui lá e resolvi com dinheiro. O icônico dessa resolução é que só dificultou o que mais desejo:
escrever, à mão, à tecla. Esse texto era para ter se tornado (“outra coisa”, o ato falho pela falta em ser
escrito). Foi invadido pela indomável troca de palavras que faço com a mente, daí o medo de
apresentar o que escrevo. Se indomável, como posso ter certeza do que irei apresentar em palavras.

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O que mais de postiço precisarei colocar no meu corpo para que me contenha comigo? Era
“contente”, falhou, então ria comigo, sorria comigo, hoje foi difícil, não me negue um sorriso. Dê-me
um abraço e venha comigo nessa jornada-prisão, onde não há grades, localizada num grande espaço
vazio. Sem referência como sabe que andou? Para onde você foi se ponto A é tão vazio quanto ponto
B. É possível nomeá-los diferentes? Perguntas me farão encontrar o que busco se não sei onde me
perdi? Fica a razão da confusão, como se essas duas palavras pudessem coabitar.
O paradoxo me atrai pela ponte impossível entre os dois, daí foram lá e criaram uma palavra
para que o vazio entre um e outro fosse preenchido. Eu gosto de palavras, ao repeti-las o significado
vai se perdendo e nos deparamos com o óbvio, foi apenas uma invenção. Será que tal repetição entre
prisão e loucura me fizeram perder o sentido? Talvez, será preciso retornar ao período primário do
encontro com essas palavras, foi quando achei que ódio era a única escolha. Enfim o pleonasmo, se é
1 onde mora a escolha? Onde há 1 o 0 pode ser escolhido?
Eis um texto cheio de ato falhos para que eu me encontre no meu fracasso postiço.
τ Você me tirou um cuidado para colocar o que? Seu pênis? Fiz uma escolha e agora sinto-
me desprotegida, eu não sei onde te colocar, em qual lugar você foi parar entre a fantasia e o real.
Onde eu poderei despejar minha raiva sabendo que haverá lugar para ela e o cuidado continuará.
Talvez essa incerteza me mobilize a ponto de me sentir insegura, com medo de te mostrar meu eu,
sem vergonha, sem elaboração, sem planejamento prévio, sem sedução, sem hesitar, sem pensar que
poderia deixar de ser amada. Onde estou pra ti? O que quer de mim? Que desejo é esse que fez com
que me escolhesse? Que bagunça é essa que me meti. Até este texto, até isso me tirou de mim?
Dei pra ti e sinto raiva, eu sinto muita raiva de ti, por mim. Penso e repenso, que que tô
fazendo, querendo te mostrar meu mundo, mas sem confiança no lugar que estou. Afinal, diga-me o
que queres e saberei se vou. Diga-me o que pensas, diga-me se posso confiar em ti. Nunca será
completo e verdadeiro o encontro onde eu escondo minha raiva, ela se volta contra mim toda vez que
a seguro e não te mostro. Toda vez que sinto e não falo.
Deixe-me ser cuidada por esse tal homem negro, aquele em que atuei na frente do espelho
imaginando o olhar dele, aquele do sonho que se deitava em meus braços e chorava no calor da
minha cama, do meu peito. Foi aquele que no imaginário se fazia cumprir que talvez eu realmente
estivesse sendo cuidada, aquele que confiei minha raiva, minhas verdades e meus ditos sobre
fingimento. Confiei bordas de mim a ti e hoje estou aqui, cheia de bordas com medo que me toque.
Toque esse que me arrepiou, que me excitou e que eu me dei, me dei a você, bordei pra ti e bordei
em mim o velho traje de linhas de sangue, me despi de minhas barreiras antes, juntei elas de novo a
mim. Esse traje me encobre, mas continuo no frio.
τ A espera à espreita existe atenciosa aos detalhes; as luzes, os sons, seus cheiros. Esses
dias o senti no meu travesseiro, acordei ao toque de um pagode antigo. Resolvi cantar no banho
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bordas de mim
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ouvindo minha voz graciosamente rouca pelo frio da manhã. O toque da água ficando cada vez mais
quente, me fazendo pensar no dia que estava por se seguir, o sol deslumbrante sem nuvens que
pintassem o céu azul de branco esfumado.
Este é o primeiro texto que escrevo por amor, talvez ele realmente seja único, tal qual o dia
que me vi no espelho sem maquiagem e me achei bonita pela primeira vez, desviei o olhar como
quem leva um susto e nesse movimento saí o mais rápido para que não me voltasse ao desalento
desencanto dos detalhes que chamo de imperfeições, que aprendi a reparar como se formassem o
todo da minha feição. Como se, como se, ele sempre me engole, eu engulo sem ter tempo de digerir,
meu estômago dói sem os sentimentos que o alimenta.
Os sentidos do meu corpo se bagunçam aos sentidos das palavras pra mim, com o refluxo de
algo que não me caiu bem e eu volto a engolir. A descrição meticulosa dos meus órgãos não vai dar
conta do que meus sentidos possuem em palavra. Voltemos a olhar o sol como quem gosta de pegá-
lo, como a criança que, ao pé da letra, tenta pegá-lo com as mãos e assim o segura, só o solta quando
a curiosidade de pegar outro objeto surge. Tenho curiosidade de me olhar de novo naquele espelho
que me achei bonita. Caso fosse um dom do espelho fazer olhar-me assim, o levaria comigo toda vez
que fosse te encontrar. Caso fosse criar mais um texto por amor, descreveria você, com toda
intensidade que desvio o olhar quando me olhas. Caso fosse amor, não descobriria tão fácil. Fácil é
reconhecer seu cheiro no meu, cantarolar pagodes no meio da água morna do banho, olhar o céu azul
sem nuvem e me alegrar que um novo dia pôde começar ao som da minha voz rouca.
τ Eu queria ter mais o que escrever, eu tenho o que falar, mas gostaria que fosse olhando
pra ti. É assim que eu gosto de conversar, eu quero conversar. Olhos, mãos, corpo faz parte da
conversa também. Não consigo reduzir-me à escrita numa relação.
Quero um momento, quero pessoalmente, intimamente. Ah foda, eu queria um colo, eu queria
sua presença, eu queria sentir que você também tá com medo, saber o que você quer. Quem afinal é
você? Eu queria descansar sabendo algo de você. Você já apareceu demais em meus textos, meus
pensamentos. Pode, por favor, aparecer na minha frente e me dizer que diabos você acha que tá
fazendo?
Pelamor, eu me sinto um objeto qualquer depois daquele beijo. Estou sim com raiva, com ódio
do que fez. Eu preciso e quero que me ouça, quero que fale comigo de verdade, sem ironia, sem
sacarmos. Eu quero o dito, quero os sons, as expressões, quero sentir que estou ali com você e você
ali comigo, mas eu não sei como sentir isso com você.
τ O choro e o grito profundo já fizeram parte do meu dia. Ontem mesmo fui dormir depois
de esbravejar gritos molhados de desespero por me ver presa novamente no invólucro de ódio e
loucura. Sentir que não poderia ter raiva é o que faz eu me abandonar nos feitiços na loucura, numa
prisão sofisticada para que eu mesma me afogue e me mate em lágrimas sem sentido, em palavras
não ditas, em imagens mentais de inaptidão para vida social, vida de relações, de laços, para a vida, a
minha vida. Coloco-a em risco toda vez que penso estar numa tempestade em copo d’água, que meus

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sentimentos devem ser afogados nessas lágrimas solitárias, que elas não podem me ultrapassar ou
serem mostradas a luz do dia. O destino delas sempre será o ralo do banheiro, sentada no chão
procurando apoio no fio de água morna que banha meu corpo, não o deixando esfriar totalmente.
Como réptil que se aquece no ambiente, eu sinto não produzir calor suficiente para que eu tenha
vida. Procuro, então, nesses dias de olhos molhados e alma seca, sobreviver me encobrindo de águas
mornas e roupas que impeçam o resto de calor escapar, como lagartixa que procura uma fresta de sol
para se aquecer. Pena que eu não tenha a possibilidade de recuperar partes que perdi tal qual dona
lagartixa faz. Esses dias de olhos molhados voltarão, voltaram. Toda essa água salgada deixa minha
visão turva, não vejo mais nada ao meu redor que não a tempestade se formando em meu peito, as
ondas me afogando a cada vez que consigo fôlego pra algo. Nesse vai e vem de tentativas de respirar,
gasto toda minha energia tentando não ficar submersa na água salgada, a correnteza só me puxa pra
baixo e lá no fundo, onde sei ir por palavras, me perco em choro e grito, gritos indecifráveis de
palavras pela metade, cortadas, sou engolida novamente pelas ondas e puxada pela correnteza.
Aprendi a nadar muito cedo, aprendi a reconhecer o repuxar natural das águas, aprendi tudo e nada
que me prepare quando meus olhos ardem, nada que me segure quando a tempestade se forma no
meu peito, quando meus braços viram galhos secos e o vento os quebra, quando meus pés são raízes
expostas e se descolam do chão seco e infértil. A tempestade passa, mas deixa seus sinais por onde
esteve. Que venha o tempo e engula tudo que foi destruído, para que eu possa ser pessoa de novo.
τ Seje lagartixa estirada no sol.
τ Ora, quem disse que posso algo? Os processos se confundem, meu corpo mudou e meu
sentimento ficou perdido, em palavras, noites e desavisos da vida. Onde foi parar o que desejo?
Desejante continuo a procurar, matei e morri por isso. Estou aqui perdida sem chão, relendo minhas
criações para tentar encontrar algo que me faça querer caminhar. Seguir em frente não é tão
charmoso mais, talvez eu queira só caminhar, sem que o destino esteja completo, sem que me faça
ter que ir, ter que ser ou dar conta. Não é da minha conta o que os outros me fazem carregar, eu tô
cansada, dolorida, chorosa, amante e de coração partido. Coração esse que já bateu por dois vezes
demais, que já ouviu outro bater dentro de mim.
τ Vou me iludir e dizer que estou escrevendo pra ti, mas sinto que essas palavras vêm mais
a mim. Você se foi e, no pouco tempo que me habitou, senti seu calor, seu afeto e seu carinho
comigo, por mais que meu corpo ainda te sentisse como invasão. Não era meu tempo, talvez pudesse
ser o seu, talvez ainda possa, n’outro encontro, te ter a mim. E serás bem-vindo, meu filho. Te quero
aqui comigo, quando eu puder ser calor pra você assim como foi pra mim. Das ilusões que a vida
conta, você foi a mais visceral.
τ As perguntas:

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bordas de mim
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Quais coisas você gostaria de ter no seu caminho? Das coisas que te formaram, quais você
arrancaria com a mesma força com que te fez doer?
Talvez eu nem queira ser diferente, quem eu seria?
Talvez nem fosse eu. Se foi você quem me escreveu, como pude ser? Onde será que me perdi,
onde será que me esqueci?
Como usar essa raiva que sinto a cada som estridente que sai da sua boca para que ela não me
mate tão de pressa? Como fazer com que eu consiga caminhar sem ter que parar a cada machucado
que sua covardia faz pelo silêncio alheio? Como engolir meu choro quando sinto que você quem
devia chorar essas lágrimas de sangue que carrego? Como escrever sobre mim de novo?
Talvez eu não queira explicar, afinal irei emoldurar tais imagens a partir da minha criação
sobre o que li, então, por que me prestar a tal prepotência narrativa?
Ora, não é pra isso que servem os textos?
Por que tanto evito que você descubra a insegurança que há em mim? Por que tento tanto virar
a situação para que meu conhecimento e interpretação não sejam vistos por você?
Ora estamos aqui então pra que? Para que eu diga quem eu sou sem olhar a ti? Onde e quem
disse que isso funcionaria?
E agora não sei localizar a minha dor, onde ela está? Está em ser vista como bruta? Em não ser mais?
Em ser admirada por estar mais sofisticada, ou por não ser vista como bela ao falar o que gritava na
alma, na pele?
Mas se perdida eu estava, como poderia voltar para me achar lá?
Desabei dos braços desses homens que me rodeavam, onde foi se apoiar se eles nunca
ofereceram suporte?
Que verdade é essa que tentei usar de escudo? Será que pode ser chamada de proteção aquilo
que te prende, te inibe ser?
Ainda não teve coragem de revê-lo, ainda não teve coragem de encarar as palavras que
fizeram seu reflexo abrir seus olhos com tanta violência, com sangue, como quem prevê o que pode
acontecer, como quem escuta quem te cuida e entende, abaixa a cabeça e pensa: quem sou eu que me
olha?
E eu perdi, mas não fui eu, entende?
Como negar a forma que um dia tiveram se eles continuam sendo areia em minha mente?
O tragicômico dessa situação é que, ao buscar incessantemente o significado das palavras até
que o sentido atribuído tivesse caminho para mim, nunca achei algum para acomodar o amor, afinal
ele se acomo(l)da? Errinho engraçado de digitação né?
O que mais de postiço precisarei colocar no meu corpo para que me contenha comigo?
Sem referência como sabe que andou? É possível nomeá-los diferentes? Perguntas me farão
encontrar o que busco se não sei onde me perdi?

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bordas de mim

Será que tal repetição entre prisão e loucura me fizeram perder o sentido? Enfim o pleonasmo,
se é 1 onde mora a escolha? Onde há 1 o 0 pode ser escolhido?
Você me tirou um cuidado para colocar o que? Seu pênis?
Onde estou pra ti? O que quer de mim? Que desejo é esse que fez com que me escolhesse?
Que bagunça é essa que me meti. Até este texto, até isso me tirou de mim?
Quem afinal é você? Pode, por favor, aparecer na minha frente e me dizer que diabos você
acha que tá fazendo?
Ora, quem disse que posso algo? Onde foi parar o que desejo?
Nesse imenso mar de perguntas, te dou uma resposta: basta. Basta sentir que só maremotos de
tragédias te ajudarão a ser alguém pro outro, você se basta. Pode ser que não entenda agora, daqui
uns anos, ou depois que fizer algo com esse sintoma de culpa atrás de culpa. Pode ser que ache
outros significados pra que consiga desejar o que tanto deseja, desejar o desejo se tornou uma batalha
que não precisa de guerra consigo para que possa fazer algo pra ti. Esse texto registro se fez depois
de sessões nas quais o registro de que as violências sofridas bastam para que eu seja cuidada, para
que eu me cuide, que meu corpo não precisa ficar marcado de penitências e punições para existir de
forma cuidada.
τ De todas as mentiras que já contei pra mim, eu fui a maior delas. De todos os insultos que
já quis me xingar, eu fui o maior deles. De todas as saídas que já quis fugir, eu fui a maior delas. De
tudo que já quis viver, eu fui a maior. Queria eu ter forças para ser eu, e acabo sendo o que sobrou de
mim.
τ Eu sempre me senti sozinha, mas as palavras aparecem na minha mente de maneira a
distrair-me da solidão. Parece até que as palavras me salvam, me tiram dali, da sensação de ser
sozinha. Enganadas ficamos. Sozinha, predicativo de uma sujeita falseada, pela inexistência de
sujeita tornei-me complemento de um simples verbo de ligação. Sentir-me assim passou a ser
constante e filtro de observação em qualquer situação que se aproxime de mim.
τ Ainda digo que escrever é difícil, um pensar exaurido de ideias tão abstratas que, quando
tentam sair, vêm em forma de poeira. Seria mais fácil contar os grãos de areia na praia ou tentar
lembrar a forma exata das ondas. Um pensar singular não se apresenta duas vezes, quando vi, já se
tornou outra coisa; quando senti as palavras, elas se desmancharam feito algodão doce na boca
deixando um amargor de inutilidade passada. Digo ter uma mente não-silenciosa, mas como se nada
escuto e sim vejo, a dificuldade de transformar aquelas imagens nessas palavras parece sempre não
valer o esforço duído, um trabalho artesão de moldar ar em ferro. Me dói ouvir o que vejo e assim
falar o que sinto. Ler também nunca foi um apetite meu, sempre buscando imagens e formas que
pudessem traduzir essas tais palavras. Parecia sempre um desafio. Imagens, busque sempre por
imagens ao invés de se dobrar e enrolar com as palavras. Ora, era também uma chatice desenhar,
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bordas de mim
bordas de mim
nada magicamente me levou a trocar, no mundo de fora, palavras por imagens, só me deu mais
vontade de ficar no mundo de dentro formando as ilustrações em pensamento.
τ Nas noites de vibrar ainda lembro seu nome, o jeito que se deitava em meu colo e se
aconchegava nos meus peitos. Pena que sejam os únicos momentos que puder ver você, apesar ter
sido eu com e sem roupa, apesar de te amar mesmo quando não existia mais em presença. Sinto
muito que essa tenha sido essa nossa história possível, existir apenas de maneira carnal um para o
outro. Enxergava algumas potências no nosso viver que eram bonitas demais para sonhar, para ter
esperança que algo podia florescer daqueles encontros erráticos. Fico com o vibrar virtual de
suspiros vazios na madrugada amanhecida tardiamente. Com aquelas músicas que colocava
baixinho, que se notadas talvez fosse possível me ver ouvindo. Bom, ficaram lá, hoje são só poeiras
que acordam nos meus olhos inchados de um sono mal dormido. Dormi ouvindo tais músicas, vai
que você escuta daí e me dá uma chance de existir. Vinculei minha existência à possibilidade de me
enxergar como tal, pena de mim hoje sinto que meu peito fica até em dúvida se existe mesmo.
Amaldiçoado a esse pequeno suspiro de vida subjetivada a você. Meu colo continua aqui e parece
que ficou sem nexo tê-lo disponível a mim. Não soube lidar com a solidão dele ser para mim, de ser
habitat quase que natural a um outrem. Sozinho nessa madrugada sem querer acordar do delírio
disfarçado de sonho que nem sei, nem vou, nem sou. Ficamos por aqui quando o sono bate e não sei
mais o que fazer, contudo sendo natural disponibiliza-lo à vocês. A quem dera vocês estarem aqui
comigo, que loucura foi essa que sonhei.
τ Quem é essa que escreve frases tão elaboradas de personalidade quase duvidosa, me
questiono sobre quem eu falo aqui e, vejam só, é sobre mim e inconsistências

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