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Autor: Fannuel Victor

Estruturar um texto sobre escrita parece ser um trabalho dispendioso ou até (como
praticamente a totalidade dos temas de mesma natureza) inconclusivo, mas, quem sabe,
aproveite bem a oportunidade de transmitir o que tomo por escrita, como não só o hábito de
tomar notas, por exemplo, mas o de partejar a ideia e arrogar o direito de a por em letra,
com sua devida forma.
Platão já dizia que o verdadeiro conhecimento só poderia ser transmitido com a presença
física de seu mestre. Seja porque somente o eu que recebeu e assimilou a verdade possa
evocá-la a partir de sua personalidade contida na ação do ensino, seja porque as mais
claras e elevadas ideias não podem ser postas no papel - já que, tanto mais claras em
mente, menos passíveis de estrutura física (como nos seres imateriais) tanto mais carentes
de exploração e esclarecimento, mais suscetíveis à exposição e discussão, como é o tema
que trataremos, que se dá na materialidade, embora lide com algo não-material, nos
ocasionando uma precisa união de necessidade, possibilidade e beleza. Com presença ou
não, algo se busca nos meios mais comuns, quando nos comunicamos. O que é então que,
mesmo assim, transmitimos quando escrevemos e, com uma real e possível perda de
agudeza, quando falamos?
Por um fenômeno de perpetuação praticável da experiência, assim como a Igreja que
continua o evento do cristianismo pelas eras, a redenção de uma ideia se dá pela escrita
que se desenvolve em puras linhas, quando entendemos e sustemos em nós aquilo nascido
em mente como fagulha, uma vez que ela só se salva se salva a nós, ao abrasar o desejo e
a inclinação de vontade que se cumpre ao propor, já formalizada, a ideia natal, gerando
assim um fogo duradouro. Escrevendo, inclusive, este próprio texto, percebi que a sua ideia
se torna mais clara ao correr em sua exposição, como um rio, nas palavras da prosa.
No decorrer dos séculos, diversos autores decidiram imprimir a marca do que viveram em
quem quer que os lesse. Mesmo os desesperançosos da vitalidade do eterno (que vem,
inevitavelmente, a se desabrochar pela escrita), como foi o caso de Nietzsche, que como
nenhum outro soube cantar sua própria dor e diagnosticar o que a sociedade foi capaz de
sobejar, utilizando uma forte e cruciante poética. E ao cabo disso - intencional ou
intuitivamente, talvez - temos algo a aprender.
Todo prólogo introduz aquilo que é responsabilidade do livro, assim como a escrita prefigura
uma realidade que muitas vezes nem será vivenciada aqui, como a Jerusalém Celeste que
já é presente pela Igreja, aqui novamente como analogia, um meio que apresenta o fim e o
incorpora. E que, além desse nobre papel, torna possível isso em outro ser, aquele que lê e
se transporta de algum modo para a mente do propositor da ideia, seja a do escritor, seja a
do Doador Divino, que a gera.
A arte da escrita carrega suas dificuldades. Uma delas no ponto acerca do qual ela mesma
se apresenta, que é a experiência de construção surgida daquela primeira, enquanto não
deixa de cumprir seu papel nem suprima a felicidade na elaboração. Evoca o conhecimento
unido à transmissão e recepção daquele que deseja aprender, afinal, sem isso nem seria
possível começar a recebê-lo, ou até nem sentido haveria em conhecer, já que uma das
maiores alegrias da revelação é partilhá-la. Nem sempre o que se pensa se escreve,
seguindo a afirmação platônica do início do texto, sobre jamais ter escrito da mais elevada
filosofia, pois a esta cabe ser aventuradamente contemplada para dar o seu bom fruto ao
fiel ouvinte. Bem como, nem tudo que se escreve se faz compreendido a todos, a exemplo
de um bom livro que necessita de releituras, momentos e circunstâncias distintas e que
ainda assim corre o risco de não se aproveitar a ideia primária do autor. De maneira geral,
não é natural e eficaz apreender e consequentemente transmitir, por qualquer que seja o
meio, sem personalidade e presença.
O homem sempre estará propenso a não informar com plenitude a parcela real
experimentada. Ora, quem transmite o ser é o Ser - que transmite junto do "existir", o que
há de verdadeiro nele a outros. Nossa natureza, portanto, é participação, mas uma
participação que carrega natureza, capaz de trazer em si a sua, refletida, e a de outros
seres. A capacidade de viver, então, se confunde com a sua de conhecer e de repassar
aquilo com que foi presenteado a alguém carente desse conhecimento, que no mais das
vezes é imprescindível. Tudo se justapõem, como num eclipse que, embora oculte um astro,
exibe um foco direto, a evidência, que naquele momento, por enquanto, não podemos olhar
a olho nu, por sua resplandecência. Como o sol que é ocultado pela lua, mas é detentor de
toda a luz que ilumina e abrasa, e desaparece para mostrar sua realidade em outro. Para
mostrar que o foco da nossa atenção deve ser o que cotidianamente não tem luz própria,
mas que no momento raro apresenta sua capacidade, forma e natureza: ser iluminado; a
nossa falta de luz que pode ser iluminada por algo maior.
Proporciona ao espectador um lugar privilegiado para admirar a verdade fenomenológica
(veja que aqui nem entro no tratamento da causa ou verdade ontológica).
Toda essa luz, que tão veloz passa sem rastro fácil, a não ser sombra, ganha sua vez
permanente pela escrita.
À vista disso, a estrutura da escrita é a própria ideia, que aparece por necessitar de
esclarecimento em seu hábito, que é esclarecer, já não se contendo em seu próprio brilho
presente em outro, visto por outros.
A escrita, então, tem seus limites. No entanto, é justamente por ter limites que se modula,
se estrutura, se ordena em si e nas ideias de quem a põe em ato. Seu limite consiste em
expressar, o quanto lhe for próprio ou possível, aquilo que não se antepõe com limites. Não
fica para trás em realizar o desejo de quem recebe a verdade; de dar a conhecer o sabor
que provou em seu espírito e do qual jamais esquecerá. E, para isso, que se use o
necessário bem contemplado e escolhido, seja apelando às parábolas, como o Cristo, seja
pela teoria e poética dos diálogos platônicos, seja pelo laborioso estilo kantiano. Que o
espírito não deixe de registrar e tentar expressar aquilo que o acometeu, já que assim o
podemos manter sem o deter somente a nós mesmos, uma vez que, em virtude disso, essa
mesma ideia se expande, expande a nós e àqueles a quem ela chega, como uma
consubstanciação da experiência.

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