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TEMAS QUE MORREM : UMA CRÔNICA ESPETACULAR DE CLARICE

LISPECTOR Gente querida, vocês alguma vez já se perguntaram como Clarice


Lispector se inspirava para escrever suas crônicas ? O que a movia, o que fazia com que
ela escrevesse sobre tal tema e não sobre outro ? Segundo ela demonstra bem aqui nessa
crônica, ela bem poderia escrever sobre qualquer coisa pois talento de sobra ela tinha. O
mais curioso é que no meio disso ela relata como se sentia sempre que bebia e o estado
em que ficava. E a confissão de sua maior frustração : a de não ter o dom de desenhar.
Essa crônica é belíssima de fato. Degustem-na do mesmo modo que apreciariam um
bom vinho ! Vamos lê-la atentamente !
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ TEMAS QUE MORREM
(CLARICE LISPECTOR) Sinto em mim que há tantas coisas sobre o que escrever. Por
que não? O que me impede? A exiguidade do tema, talvez, que faria com que este se
esgotasse em uma palavra, em uma linha. Às vezes é o horror de tocar numa palavra que
desencadeia milhares de outras, não desejadas, estas. No entanto, o impulso de escrever.
O impulso puro — mesmo sem tema. Como se eu tivesse a tela, os pincéis e as cores —
e me faltasse o grito de libertação, ou a mudez essencial que é necessária para que se
digam essas coisas. Às vezes a minha mudez faz com que eu procure pessoas que, sem
elas saberem, me darão a palavra-chave. Mas quem? quem me obriga a escrever? O
mistério é esse: ninguém, e no entanto a força me impelindo. Eu já quis escrever o que
se esgotaria em uma linha. Por exemplo, sobre a experiência de ser desorganizada, e de
repente a pequena febre de organização que me toma como a de uma antiga formiga. É
como se o meu inconsciente coletivo fosse o de uma formiga. Eu também queria
escrever, e seriam duas ou três linhas, sobre quando uma dor física passa. De como o
corpo agradecido, ainda arfando, vê a que ponto a alma é também o corpo. E é como se
eu fosse escrever um livro sobre a sensação que tive uma vez que passei vários dias em
casa muito gripada — e quando saí fraca pela primeira vez à rua, havia sol cálido e
gente na rua. E de como me veio uma exclamação entre infantil e adulta: ah, como os
outros são bonitos! É que eu vinha do escuro meu para o claro que também descobria
que era meu, é que eu vinha de uma solidão de pessoas para o ser humano que movia
pernas e braços e tinha expressões de rosto. Também seria inesgotável escrever sobre
beber mal. Bebo depressa demais, e não há alternativas: ou praticamente adormeço
dentro de mim e fico morosa, pensativa sem que um pensamento se esclareça como
descoberta, ou fico excitada dizendo tolices de maior brilho instantâneo. Mas — mas há
um instante mínimo nesse estado em que simplesmente sei como é a vida, como eu sou,
como os outros são, como a arte deveria ser, como o abstracionismo por mais abstrato
não é abstrato. Esse instante só não vale a pena porque esqueço tudo depois, quase na
hora. É como se o pacto com Deus fosse este: ver e esquecer, para não ser fulminada
pelo saber. E às vezes, por mais absurdo, acho lícito escrever assim: nunca se inventou
nada além de morrer. E me acrescento: deve ser um gozo natural, o de morrer, pois faz
parte essencial da natureza humana, animal e vegetal, e também as coisas morrem. E,
como se houvesse ligação com essa descoberta, vem a outra óbvia e espantosa: nunca se
inventou um modo diferente de amor de corpo que é estranho e cego. Cada um vai
naturalmente em direção à reinvenção da cópia, que é absolutamente original quando
realmente se ama. E de novo volta o assunto morrer. E vem a ideia de que, depois de
morrer, não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso. A verdade é que simplesmente
me faltou o dom para a minha verdadeira vocação: a de desenhar. Porque eu poderia,
sem finalidade nenhuma, desenhar e pintar um grupo de formigas andando ou paradas
— e sentir-me inteiramente realizada nesse trabalho. Ou desenharia linhas e linhas, uma
cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas desenharia linhas e linhas, uma
cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas linhas que os outros talvez
chamassem de abstratas. Eu também poderia escrever um verdadeiro tratado sobre
comer, eu que gosto de comer e no entanto não como tanto. Terminaria sendo um
tratado sobre sensualidade, não especificamente a de sexo, mas a sensualidade de
"entrar em contato" íntimo com o que existe, pois comer é uma de suas modalidades —
e é uma modalidade que engaje de algum modo o ser inteiro. Também escreveria sobre
rir do absurdo de minha condição. E ao mesmo tempo mostrar como ela é digna, e usar
a palavra digna me faz rir de novo. Eu falaria sobre frutas e frutos. Mas como quem
pintasse com palavras. Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com
palavras? Ah, estou cheia de temas que jamais abordarei. Vivo deles, no entanto.
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ PUBLICADA NO JORNAL DO BRASIL EM 24-05-
69 Publicada, posteriormente, nos livros A descoberta do mundo, 1984, pp. 294-296, e
Todas as cronicas, 2018, pp. 227-229.

Entrevista com Clarice Lispector - 1969

Vera Lucia (VL): Clarice, é um prazer imenso estar aqui com você. Começo
perguntando sobre a inspiração para suas crônicas. No texto "Temas que Morrem", você
fala sobre a dificuldade de escolher um tema e a mudez essencial para expressar certas
coisas. Como você encontra essas palavras-chave?

Clarice Lispector (CL): Vera, é um prazer tê-la aqui. A verdade é que a inspiração
vem de um impulso puro, muitas vezes sem um tema específico. A mudez que
menciono é a busca por algo que liberte essas palavras, como se eu tivesse a tela, os
pincéis e as cores, mas ainda faltasse algo para o grito de libertação.

VL: Em seu texto, você menciona a experiência de ser desorganizada e, de repente,


sentir uma pequena febre de organização. Pode compartilhar um pouco mais sobre
como esses estados influenciam sua escrita?

CL: Certamente, Vera. Esses estados são como nuances da vida, momentos em que me
deparo com o inesperado. A desorganização e a febre de organização refletem o caos e a
ordem que coexistem em minha mente, proporcionando material para expressar a
complexidade da existência.

VL: Você toca em um aspecto interessante sobre dor física e como o corpo agradecido,
após passar por ela, revela a conexão entre corpo e alma. Como isso se relaciona com
sua visão da escrita?

CL: A dor física é um lembrete da profunda ligação entre corpo e alma. Na escrita,
tento capturar essa interconexão, explorando como as experiências corporais refletem as
da alma e vice-versa. É uma jornada de autodescoberta que se manifesta em minhas
palavras.

VL: Em relação ao ato de beber, você descreve momentos de clareza e sabedoria fugaz.
Como esses instantes influenciam seu processo criativo?

CL: Beber, para mim, é um paradoxo. Entre a lentidão morosa e a excitação efêmera,
há um instante de pura lucidez sobre a vida e a arte. Infelizmente, esse instante é fugaz,
esquecido quase imediatamente. É como se o conhecimento fosse oferecido e retirado
rapidamente, talvez como um pacto divino para evitar sermos fulminados pelo saber.
VL: Você menciona a inevitabilidade da morte e sugere que morrer é o paraíso. Como
essa perspectiva influencia sua abordagem na escrita?

CL: A morte, para mim, não é algo a ser temido, mas sim uma parte essencial da
natureza. Essa aceitação se estende ao amor, onde cada experiência é uma reinvenção da
cópia, algo absolutamente original quando vivido com verdadeira intensidade. A morte,
assim, se torna um paraíso natural, uma descoberta espantosa.

VL: Você confessa que faltou o dom para a verdadeira vocação de desenhar. Como essa
falta influenciou sua abordagem na escrita?

CL: A falta do dom para desenhar é uma frustração que, de certa forma, moldou minha
abordagem na escrita. Eu poderia visualizar obras inteiras, mas minha expressão
encontrou seu caminho nas palavras, como se escrever fosse pintar com uma paleta
linguística.

VL: Falando em sensualidade, você menciona que um tratado sobre comer se tornaria
um tratado sobre sensualidade. Como a sensualidade se manifesta em sua escrita?

CL: A sensualidade, para mim, está intrinsecamente ligada a entrar em contato íntimo
com a existência, e comer é uma dessas modalidades. Minha escrita, de certa forma, é
uma exploração dessa sensualidade, uma tentativa de envolver o ser inteiro em cada
palavra.

VL: Em seus temas não abordados, como frutas e frutos, como você pintaria essas
palavras com suas cores linguísticas?

CL: Escrever, para mim, é quase sempre pintar com palavras. Ao falar sobre frutas e
frutos, tentaria pintar essas imagens com uma paleta verbal, capturando a essência de
cada elemento de uma forma única e pessoal.

VL: Você vive desses temas não abordados, mas que continuam a inspirá-la. Como eles
se tornam parte integrante de sua existência?

CL: Esses temas não abordados são como fios invisíveis que tecem a tapeçaria da
minha vida. Eles permeiam minha existência, mesmo que não os explore diretamente,
fornecendo uma riqueza de experiências e reflexões que, de alguma forma, enriquecem
minha jornada criativa.

VL: Clarice, em sua crônica, você menciona o desejo de escrever sobre a sensação de
sair após dias de enfermidade e notar a beleza ao seu redor. Como esses momentos de
redescoberta influenciam sua percepção da vida e sua escrita?

CL: Vera, esses momentos de redescoberta são como despertares para a beleza do
mundo ao meu redor. Eles moldam minha percepção da vida, inspirando-me a expressar
essa beleza em palavras, como se cada experiência renovasse meu olhar sobre a
existência.
VL: Você fala sobre o absurdo de sua condição, rindo dela ao mesmo tempo que a
considera digna. Como equilibra o absurdo e a dignidade em sua abordagem à vida e à
escrita?

CL: O equilíbrio entre o absurdo e a dignidade é um desafio constante. Rir do absurdo é


uma forma de aceitação, uma celebração da vida mesmo em suas complexidades. Essa
dualidade se reflete em minha escrita, onde busco encontrar a dignidade no caos e na
ordem que coexistem.

VL: Em relação à sua preferência por não comer tanto, você menciona que um tratado
sobre comer se tornaria um tratado sobre sensualidade. Como essa moderação alimentar
influencia sua conexão com a sensualidade na escrita?

CL: A moderação alimentar é uma forma de entrar em contato íntimo com a existência,
e essa escolha influencia minha conexão com a sensualidade na escrita. Cada palavra se
torna uma experiência sensorial, uma tentativa de capturar a riqueza da vida de uma
maneira mais sutil e consciente.

VL: Você fala sobre rir do absurdo e mostrar como sua condição é digna, usando a
palavra "digna" que a faz rir novamente. Como o riso se torna uma ferramenta em sua
escrita para abordar temas profundos?

CL: O riso é uma ferramenta poderosa, uma maneira de encarar a seriedade da vida
com leveza. Em minha escrita, uso o riso para quebrar a solenidade, revelando a
dignidade nas situações aparentemente absurdas. É uma forma de trazer humanidade e
calor à reflexão sobre temas profundos.

VL: Você menciona a descoberta de que nunca se inventou um modo diferente de amor
de corpo que seja estranho e cego. Como essa perspectiva influencia sua abordagem na
representação do amor em suas obras?

CL: A perspectiva de um amor de corpo estranho e cego é uma reflexão da natureza


humana. Em minhas obras, busco explorar essa complexidade do amor, capturando as
nuances da experiência humana e revelando como o amor, em sua forma mais autêntica,
é uma reinvenção constante da cópia original.

VL: Você menciona a ligação entre a descoberta da morte e a constatação de que


morrer é o paraíso. Como essa visão influencia sua abordagem na representação da
morte em suas obras?

CL: A visão de que morrer é o paraíso é uma perspectiva única que permeia minha
abordagem da morte em minhas obras. Em vez de temer a morte, busco explorar a
aceitação dela como parte essencial da existência. Isso se reflete nas minhas
representações da morte, que muitas vezes são vistas como transições naturais e até
mesmo como estados paradisíacos.

VL: Você confessa que nunca se inventou nada além de morrer. Como essa afirmação
se relaciona com sua compreensão da criatividade e do processo de inventar na escrita?
CL: A confissão de que nunca se inventou nada além de morrer é uma reflexão
profunda sobre a natureza humana. Na escrita, vejo a criatividade como uma reinvenção
constante, um processo de explorar e compreender a vida através da expressão artística.
Cada palavra é uma pequena morte e renascimento, uma busca contínua pela
originalidade na criação.

VL: Você expressa o desejo de escrever sobre frutas e frutos, pintando com palavras.
Como você traduz visualmente esses elementos em sua escrita, transformando-os em
uma experiência sensorial para seus leitores?

CL: Ao escrever sobre frutas e frutos, busco traduzir visualmente esses elementos em
uma experiência sensorial para meus leitores. Utilizo a linguagem de maneira a criar
imagens vívidas, transmitindo não apenas a aparência, mas também os sabores e
aromas, permitindo que meus leitores mergulhem completamente na experiência que
estou tentando transmitir.

VL: Você menciona estar cheia de temas que jamais abordará, mas que vive deles.
Como esses temas não explorados enriquecem sua vida e influenciam sua abordagem na
escrita?

CL: Esses temas não explorados são como uma reserva infinita de inspiração que
enriquecem minha vida diária. Eles influenciam minha abordagem na escrita,
adicionando camadas de profundidade e diversidade às minhas obras. Mesmo que não
os aborde diretamente, eles continuam a moldar meu pensamento criativo e a enriquecer
minhas narrativas de maneiras inesperadas.

VL: Clarice, ao descrever sua máquina de escrever Olympia, você menciona que ela
provoca seus sentimentos e pensamentos, agindo quase como uma pessoa. Como esse
relacionamento peculiar com sua máquina influencia a sua criatividade e o processo de
expressar suas emoções?

CL: Clarice Lispector (CL): Minha relação com a máquina de escrever é realmente
peculiar. A Olympia é mais do que uma simples ferramenta; ela provoca meus
sentimentos e pensamentos de uma maneira que minha própria caligrafia não
conseguiria. Essa conexão especial influencia profundamente minha criatividade, como
se a máquina fosse uma extensão de mim mesma, um canal para expressar emoções de
forma mais autêntica.

VL: Você destaca a objetividade proporcionada pela sua máquina de escrever, que
capta sutilezas e imprime instantaneamente o que você escreve. Como esse aspecto
prático da máquina molda o estilo único de sua escrita e a relação entre suas palavras e
sua audiência?

CL: A objetividade proporcionada pela Olympia é fundamental para o meu processo de


escrita. Ela capta sutilezas que muitas vezes passariam despercebidas em meu próprio
manuscrito. Essa eficiência, aliada à instantaneidade da impressão, torna-me mais
objetiva em minhas reflexões. O ruído baixo do teclado da máquina, acompanhando a
solidão de quem escreve, cria um ambiente propício para a concentração. A máquina
não é apenas uma ferramenta, é como uma colaboradora silenciosa que me ajuda a
traduzir meus pensamentos para o papel. E, curiosamente, essa objetividade não
compromete a profundidade da expressão.

VL: Clarice, obrigada por compartilhar sua visão tão profunda. Suas palavras são
verdadeiramente inspiradoras.

CL: O prazer foi meu, Vera. Agradeço por trazer vida a essas palavras e por me
proporcionar uma conversa tão enriquecedora.

REFERENCIAS
https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/12340/temas-que-morrem

https://site.claricelispector.ims.com.br/2017/10/09/gratidao-a-maquina/

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