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Convivo há muitos anos ao lado de artistas das mais diferentes linguagens e, mesmo

assim, reconheço uma dificuldade em não vê-los como instrumentos de uma força maior,

anônima. Nunca os concebi como os anjos de Deus - na verdade, quase sempre

demonstraram serem bem mais próximos do contrário. Lembro-me de uma referência do

colega de cartel Vicente a um ator japonês que, ao falar sobre o objetivo da encenação, dizia

que, quando um ator aponta para a lua, ele não almeja que o público enxergue seu gesto, mas

sim que mirem para onde ele está apontando. É disso que falo quando me refiro ao artista

como o instrumento de algo. Essa imagem - a do artista como instrumento - frequentemente

emprestou-me uma impressão romântica e espontaneísta de seu trabalho que em nada

assemelha-se com seu real cotidiano por vezes árduo, disciplinado e até mesmo burocrático.

Quando de tempos em tempos sou lembrado da realidade do trabalho do artista, sinto-me

absolutamente apartado da possibilidade de dizer-me um. Ao mesmo tempo, reconheço em

minha experiência momentos de intensa produção criativa. Normalmente são acompanhados

de insônia, distrações e escritas fragmentadas, relatos de imagens. Possuo uma série de

materiais desses momentos, a maior parte deles, inacabados. Foi então que nas últimas

semanas, por razões sobre as quais eu só poderia disparar hipóteses vagas, veio-me um

intenso impulso à escrita. As primeiras palavras no papel lembram-me da menção de Lacan em

"subversão do sujeito e dialética do desejo" quando este nos provoca ao indicar que, diante do

intimidador papel em branco, o autor, suposto soberano de sua escrita, revela-se como dejeto

desta. Da intimidação passo então a uma escrita já engrenada, como apenas o tempo e muitas

linhas me deram a oportunidade de deixar, aos poucos, a preocupação do estilo de lado, para

fazer fluir o desabafo de um afeto, um incômodo. A escrita deu-se basicamente em dois

momentos, interrompidos por alguns atendimentos clínicos que a entrecortaram. Ao retornar

para o processo, dou-me conta que tratava-se de um conto que nascia diante de mim. E então,

acontece.

Uma parada.
Encerrou-se.

Como dizer?

Para aquém de qualquer pretensão de estilo, de brilho ou razão, aquele impulso em

escrever encerrou-se com a mesma naturalidade que, sem pensar, um olho pisca - "olho de

peixe" é o nome do conto que nasceu. Dei-me conta de que estava diante de algo inédito. Até

então fora acometido, como disse, por muitos momentos de efervescência criativa, que

resultaram em sua maioria em fragmentos de ideias, roteiros - quando muito, tornaram-se

escritos de pretensão totalizante, sem aberturas, simbolicamente encerrados em si mesmos,

daqueles em que tudo precisa ter um motivo para ali estar. Desta vez foi diferente. Senti-me um

instrumento, como que colocado de lado após seu uso. Ao escrever este pequeno texto,

lembro-me da experiência que Barthes descreve referindo-se ao esvaziamento dos haikais no

livro Império dos signos. Ele nos lembra que essa modalidade poética, se assim posso dizer,

não é, como pensam alguns, a arte de condensar inúmeras camadas semânticas em poucas

palavras, mas sim a de fazer cessar o jorro das palavras que nos povoam. Fazer a palavra

encontrar um basta. O bastante.

A cada linha sobre essa experiência sinto-me, naturalmente, afastando-me dela. Quem

sabe ainda virão melhores formas de dizê-la. Mas por agora fico na seguinte questão, que em

nada pretende esgarçar os conceitos estabelecidos nas artes, mas apenas isto: se partimos,

pela experiência dos efeitos da psicanálise, da perspectiva de que as palavras tocam e fazem

um corpo, por que não dizer que a literatura é uma das artes do corpo? A psicanálise é uma

literatura no corpo?

13/08/2021

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