Você está na página 1de 56

WARNING OF COPYRIGHT RESTRICTIONS1

The copyright law of the United States (Title 17, U.S. Code) governs the making of
photocopies or other reproductions of the copyright materials.

Under certain conditions specified in the law, library and archives are authorized
to furnish a photocopy or reproduction. One of these specified conditions is that
the photocopy or reproduction is not to be “used for any purpose other than in
private study, scholarship, or research.” If a user makes a request for, or later
uses, a photocopy or reproduction for purposes in excess of “fair use,” that user
may be liable for copyright infringement.

The Yale University Library reserves the right to refuse to accept a copying order,
if, in its judgement fulfillment of the order would involve violation of copyright
law.

1
37 C.F.R. §201.14 2018
Capitulo V

Uma escritura
metafórico-metafisica:
eixos do universo clariceano '

Saiu em agosto de 1973 a primeira ediçâo de


Qgua Viva; sob o titulo, lé-se: ficçâo. Em 1974, Onde estivestes
de ,noite; sob o titulo, nada se lê. Serâo contos? Estórias? Textos?
Desde seu primeiro romance, Clarice Lispector percorreu um Ai--
duo caminho. Entrevistada pela Revista Textura, disse: «Eu sou
aberta a qualquer experiência. Nero sei mesmo qual o meu futuro
literc rio. É o que vier».'
Clarice parece inaugurar nâo propriamente um con-
ceito novo, mas uma nova praxis de escritura, porque se esta é
original, o seu ponto de vista declarado a respeito do ato criativo
é o velho conceito de inspiraçâo: «Nero sigo nenhum plano, ne-
nhuma teoria. Eu trabalho sob inspiraçâo. Nero consigo obedecer
pianos, assim como nâo consigo plane jar minha vida. Tudo me
vem impulsivo e compulsivo. Brota de mima.' «As vezes me
acontece de reescrever um texto, nâo por senso critico, mas por
inspiraçâo, por sentir que algo nâo vai bem, para movimentar a
coisa de novo».' «Eu reivindico para mim o direito de eu ter
nascido e me criado e de urn dia eu morrerl Nâo estou apren-
dendo liçóes severo da vida».' Eis a declaraçâo. Mas a praxis,

166
o que reponta sob a «carnadura concreta» de seu estilo, é produto
de amadurecida reflexdo a respeito da linguagem.
Clarice Lispector nâo costumava se manifestar, pu-
blicamente, sobre o que escreviam a seu respeito. Ao fazê-lo, pela
primeira vez, declarou que precisava corrigir um detalhe. Dirigia-
se ao jornalista Edgard Pereira que publicara um artigo no
Suplemento Litercirio de Minas Gerais, intitulado «Wander &
Clarice». ' O artigo tece comentârios sobre o livro da autora:
Visâo do esplendor. Incidentalmente, Edgard Pereira transcreve
palavras, retiradas de urna entrevista acontecida no Rio, pelas
quais se entende que Clarice escreve «em transe». ' Ela procura
desfazer o equivoco, dizendo que, embora a entrevista tenha sido,
de modo geral, fiel, distorceu, nesse ponto, suas palavras. «Eu
ado disse isto simplesmente porque nâo é verdade. Jamais cal
em transe em minha vida. Nâo psicografo nem «baixa» em mim
nenhum pai-de-santo. Sou como qualquer outro escritor. Em mim,
como em alguns que também nao seio apenas «racionalistas», o
processo de gestaçâo se faz sem demasiada interferéncia do racio-
cinio logico e quando de repente emerge à tona da consciencia
vem em forma do que se chama inspiraçâo. Na verdade, menos
do que muitos escritores que conheço, quando escrevo, eu o faro
sem procurar circunstâncias especiais, ambiente propicio ou mes-
mo isolamento. Habituei-me a trabalhar sendo interrompida por
tele f onemas, cozinheira e crianças». '
O processo de criaçâo de Clarice Lispector tern
sido objeto de muitos comentârios por parte da critica e da
crônica jornalistica.
Essa lenda de que escrevia «em transe» reforça-se
corn o fato de ter sido ela a (mica escritora brasileira convidada
a participar do Congresso de Bruxaria, em Bogota. A mulher
estranha, talvez jamais compreendida (nâo sei o que é um genio,
mas suponho que havia nela traços de genialidade — Ferreira
Gullar) ', em que coexistiam aspectos de extrema credulidade e
sensibilidade e nâo menos radical racionalidade (como em Fer-
nando Pessoa), limitou-se a ler para os bruxos reunidos o seu
conto (poema?) «O ovo e a galinha». Texto magico, na sua
textura despojada, que ja foi objeto de acuradas analises. "
Clarice Lispector dizia-se magica. Sua magia, po-
rem, realizava-se no jogo da linguagem, na criaçao de um «logos»
pessoal e, sob certos aspectos, fascinante, da escritura.
Como escrevia, Clarice? Sempre tomou notas, ao
correr do dia. A noite, acordava e tornava notas. O que chamou

167
de «inspiraçäo» era o trabalho do inconsciente, a elaboraçâo in-
terior do seu psiquismo sobre o material da ficçAo. Era o fazer-
se da escritura dentro dela. «Estar preparada», corn a ponta do
lapis feita, era o seu método. «Sou espontânea, mas tenho urna
espontaneidade controlada»."
«Escrevo do modo que escrevo porque é a maneira
como foi concebido e näo saberia dizer de outro modo. Näo sou
urna pessoa que possa relatai- uma idéia passada. Mo sei pôr
no pape! urna coisa que näo estou sentindo mais»."
A respeito das correçóes a seus livros ou trabalhos,
assumia a plena consciência de suas possiveis limitaçóes: «Eu
mesura poderia pegar numi livro meu e retirar coisas que até eu
vejo que näo deveriam ali estar, porque, depois do livro pronto,
ja posso ir me desligando dele. As vezes o livro esta corn pernas
demais. Mas é dificil saber se a gente esta cortando a perna
que anda ou a perna morta. Eu — sabe? — .näo me incomodo
muito com defeito. Defeito é coisa que nunca me atrapalhou». "
A verdade é que Clarice respeitava sua propria es-
critura. E se cortasse a perna que anda? Dos livros que escreveu,
o Unico que teve «ediçäo revista» foi a Cidade Sitiada.
Comparando as duas ediçóes, ve-se que ela faz no
texto mais de mil correçóes, sem contar as correçòes de pon tua-
çao. Quase sempre, no sentido de tornar o texto nais claro,
menos compacto, pela explicitaçäo do sujeito, subdivisäo em pa-
ragrafos e outros expedientes estilisticos. " Se näo fosse ir longe
demais abrir aqui um parêntesis, poder-se-ia demonstrar como
acontece nos casos abaixo, sobretudo no Ultimo, que os textos
se tornam mais claros, porém näo se tornam melhores. Clarice
aparou «a perna
Paulo Francis esclarece como os mitos criados em
torno de Clarice Lispector näo resistere ao confronto corn os
fatos. Ele, corn outros, foi editor da Revista Senhor, que publicou
os primeiros contos da ficcionista. Diz Francis: «Primeiro, dis-
cutia com ela passagens inteiras dos contos, pedindo ocasional-
mente clarificaçäo. Clarice reagia corn a maior naturalidade e ers
vezes reescrevia passagens que terminava reconhecendo obs-
curas». "
Sabemos, porque ela o disse, que reescreveu onze
vezes A Maçä no Escuro, um livro de mais de quatrocentas pa-
ginas. «Que ninguém se engane, so consigo a simplicidade atra-
vis de muito trabalho». "

168
Em seus livros, se dilui concretamente o conceito
de gênero e jà na() se pode submetê-los As velhas exigências de
enredo e personagens, que constituiam, salvo raras exceçbes ja
apontadas, ingrediente fundamental do romance brasileiro nas a-
cacias de 20 a 40.
Tendo jà delineado, no capítulo a respeito da lin-
guagem clariceana, como a metafora estranhada constitui a mais
evidente caracteristica de sua escritura, abordaremos a obra ro-
manesca, sob esse especial enfoque.
Os textos de Clarice, trabalhados por urna ansia
de exprimir a gama extremamente diferenciada das sensaçóes e
da vida, submetem as palavras a urna constante compressa° de
sentido, nâo por força de agentes exteriores, mas pela propria
dinâmica interna de sua escritura. A recorrência de imagens em
Perto do Coraçâo Selvagem e nos outros romances é tao fértil,
que recolhe-las e organizâ-las, segundo certos nticleos fundamen-
tais, esclarece a propria organizaçao de seu universo ficcional e
a estrutura ondulante de sua linguagem.
Os clâssicos elementos primordiais, que a filosofia,
desde antes de Heràclito, foi elaborando como fundamentos mate-
riais do ser, podem servir de armaduras para traçar quatro para-
digmas. Esses elementos sac,: a terra, a âgua, o ar e o fogo.
Nâo vai, nesta escolha, apesar da coincidência, nenhuma aproxi-
maçâo corn os estudos psicanalíticos de Gaston Bachelard, que
toma os quatro elementos, como modos das substâncias, para
focalizar o estilo de um determinado autor e compreender sua
«forma mentis». A natureza das imagens escolhidas pelo poeta
ou escritor conduz Bachelard a identificar seu tipo de imagina-
çâo, cujas raízes estâo no inconsciente.
Em nossa pesquisa, seguiremos outro caminho, em-
bora os referentes sejam os mesmos. Pretendemos mostrar, em
très romances de Clarice Lispector (Perto do Coraçâo Selvagem,
A Maçâ no Escuro e Âgua Viva), os quatro elementos consti-
tuídos em eixos privilegiados de urna escritura metaforico-meta-
fisica. O que caracteriza, porém, particularmente, os très roman-
ces indicados é a fusâo dos elementos numa harmoniosa unidade
refeita, no plano da escritura, em busca do ser que o narrador
tao teimosamente persegue: a vida e/ou a linguagem.
Perto do Coraçâo Selvagem constitui o primeiro
romance-núcleo da imaginaçao metafisica de Clarice Lispector:
os quatro elementos, eixos do universo metaforico clariceano,

169
plasmam a escritura e, muitas vezes, se fundem, em certos mo-
mentos da narrativa. Assim, em Perto do Coraçâo Selvagem, todo
o universo clariceano ja esta esboçado, sob forma de semente,
até A Hora da Estrela. Servem-lhe de contraponto os dois ro-
mances publicados ainda na década de 40: 0 Lustre e A Cidade
Sitiada. Em O Lustre, a escritura de Clarice privilegia o eixo
ar/luz (fogo gelado) e urna atmosfera diafana e sombria (a luz
é sempre f ria, o lustre enorme dentro da casa em decadência)
perpassa a narrativa. A terra, onde se planta Granja Quieta, torna-
se inquietante, trabalhada constantemente pelas marcas semânti-
cas do eixo ar/luz, e a propria dgua comparece, na infância de
Virginia, marcada paradoxalmente pela morte.
A Cidade Sitiada parodia a escritura epifânica de
Perto do Coraçdo Selvagem. Aqui o ver, la o espiar. Aqui, os
cavalos soltos, imagens da vida. La os pobres cavalos, antes sel-
vagens, que cavalgavam no Morro do Pasto, agora presos As
carroças e aos instrumentos de progresso. Aqui, Joana viaja por
mar (agua) em busca de mais vida; la, Lucrécia viaja por terra,
em busca da cidade grande.
A Maçâ no Escuro é o segundo romance-núcleo
do universo clariceano. Ele desenvolve as incipientes propostas
de questionamento da linguagem de Perto do Coraçâo Selvagem
e se constitui matriz de outros desenvolvimentos. Em A Mari', no
Escuro se fundem também, em momentos privilegiados, os qua-
tro elementos. Alias o título, nesse sentido, ja é sugestivo: a
maçâ (terra) na escuridâo, em contraste com a luz. Martim per-
correu seu itinerario pelo deserto das pedras, marcado pelo ex-
cesso de sol (fogo), chega à fazenda, onde contata corn o mundo
vegetal, animal e o amor da mulher (terra molhada, fértil, húmus,
agua/terra), sempre em busca da recriaçäo da linguagem (som,
ar). Na mesma década de 60, dois romances servem de con-
traponto a esse itinerario da linguagem: A Paixâo segundo G.H.
e Urna Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. A Paixao se cons-
tròi privilegiando o elemento terra (a barata), pois a voz da
linguagem acaba por silenciar. A pesquisa dessa voz se faz sob
a luz do sol, no quarto de urna empregada. Mas o encontro corn
o ser é marcado pela manducaçäo da barata, ser da primeira
idade da terra.
Uma Aprendizagem privilegia a dgua, elemento de
onde renasce Lori, a sereia do mar, para o amor e para a vida.
Agua Viva é o terceiro romance-núcleo do universo
clariceano. Propostos os problemas cruciantes da linguagem, em

170
Agua Viva o narrador que escreve com o pincel procura fazer da
palavra (ar) plasma, húmus, Agua que dessedenta, vida enfim.
Atinge-se a epifania do escrever, a epifania da es-
critura. É singular e rara em lingua portuguesa essa epifanizaçäo
do tormento de escrever. A Hora da Estrela que privilegia a
morte (a estrela é de cinema) serve de contraponto explicito aos
gritos sufocados de Agua Viva. A excepcional ficcionista que é
Clarice Lispector, aquela que escreveu por necessidade de se corn-
preender, por «força de lei», fez de A Hora da Estrela seu canto
de cisne, a hora que precedeu seu instante de fogo, sua hora
maior: «(...) ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa
morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a repre-
sentaçäo do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se
torna brilhante estrela de cinema, é o instante de gloria de cada
um e é quando no canto coral se ouvem agudos sibilantes»
(HE, p. 36).

5.1. PERTO DO CORAÇAO SELVAGEM, 1944

Nas duas partes de que se compóe o livro, a fabu-


laçao, a estória é minima. Os dois pianos da primeira parte
situam a açäo igualmente no passado; no segundo plano, porém,
o narrador em terceira pessoa de tal modo se identifica corn a
protagonista Joana, que o foco narrativo — invadido por monólo-
gos diretos, discursos indiretos livres e verbos no presente do indi-
cativo — denuncia a primeira pessoa.
Ex.: «No escuro das pupilas, os pensamentos ali-
nhados em forma geometrica, um superpondo-se ao outro como
um favo de mel, alguns casulos vazios, informes, sem lugar para
uma reflexäo. Formas fofas e cinzentas, como um cérebro. Mas
isso ela näo via realmente, procurava imaginar talvez. De profun-
dis. Vejo um sonho que tive: palco escuro, abandonado, atrds
de uma escada. Mas no momento em que penso «palco escuro»
em palavras, o sonho se esgota e fica o casulo vazio» (PCS,
p. 194).
O titulo dos capítulos pode indicar a montagem do
eixo sintagmatico, projetando, porém, o leitor sobre o plano do
paradigma, porque a estrutura temporal e espacial da narrativa
revela o ritmo caprichoso da introspecçäo da protagonista e a
natureza dos problemas abordados, que se equacionam ao nivei
do «ser» e näo do «fazer». Uma narrativa gnoseologica, näo

171
mitológica, segundo a terminologia de Todorov, sob a espécie
de subjetivaçâo, isto é, de percepçöes, de tomadas de posiçäo
interiores ante os acontecimentos exteriores. " Gnoseologica tarn-
~bém, porque «para ela, como para outros, a meta é, evidentemente,
buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o ho-
mem» ", isto é, urna aventura de gnosis, de conhecimento.
O processo narrativo é feito de flashes associati-
vos; porque os capitulos da vida adulta de Joana se intercalam,
um a um, entre os capitulos de sua infância; esta näo é apenas
urna lembrança, mas uma presença recuperada.
O primeiro plano da primeira parte desenha a se-
guinte seqüência, bem marcada alias, no seu continuo traço evo-
lutivo, pelas reticências, que mais expandem que limitam os titu-
los: «O Pai... », «... Um dia...», «... a fia...», «... o ba-
nho... ». Respectivamente: a infância povoada de fantasias na
convivência corn o pai atarefado; visita do amigo do pai, que
desvenda, para Joana e o leitor, a personalidade da mAe falecida;
a tia burguesa acolhe a sobrinha duplamente órfä e näo conse-
gue dominar sua natureza selvagem; o banho, de cujas äguas
Joana emerge da infância para urna puberdade gloriosa, nasci-
mento, porém, ja marcado pelo desconforto que traz o selo da
vida.
O segundo plano da primeira parte desenrola as
alternâncias da vida adulta de Joana jâ casada corn Otdvio; tudo
é agora de Joana, pois os títulos dos capitulos säo marcados,
sintâtica e semanticamente, por aquele adjunto adnominal, que
bem aponta a personagem de exceçäo, que é a protagonista, em
busca do selvagem coraçäo da vida; «O dia de Joana», «O pas-
seio de Joana», «Alegrias de pana».
No penúltimo capítulo, «A mulher da voz e Joana»,
a protagonista simplesmente se relaciona corn a voz das sensa-
«Ses, num intermezzo tipicamente feminino.
il Urna mulher qualquer, cuja voz, porém, ressoa aos
ouvidos hipersensiveis de Joana como um impacto que questiona,
pela sua qualidade inconsciente e sensorialmente feminina, a voz
inteligente e articulada da protagonista, obsecada por exprimir
as anälises de seu agir.
O capítulo final da primeira parte une, por meio
de urna espécie de vértice voltado para baixo, os dois pianos
da narrativa: «Otâvio», o marido, anuncia-se corn um «de pro-
fundis». Trata-se de um capitulo sem nenhum adjunto adnomi-

172
nal, pois o que pertencerâ a Otdvio, senäo e unicamente o pa-
rêntesis que ele mesmo abre na vida de Joana?
Encerra-se a primeira parte, fecha-se um circulo
da vida de Joana, tecido de momentos de curta glória, que Ihe
serviram para exercício de raciocinio e reflex-do.
A segunda parte !I d- o excede à primeira em açäo
romanesca: trivial triângulo amoroso que se estira em retângulo,
de plana dramaticidade, mas funda introspecçâo. O primeiro ca-
pitulo «O casamento», recordado como urna prisäo, na qual «ela <—
era tristemente urna mulher feliz». «O abrigo no professor», que
fora a mais bonita admiraçäo de sua infância e se transforma
numa decepçäo definitiva. «A pequena familia de Lidia» (cap.
39), a gravida, ex-noiva e atual amante de Otâvio, cujo filho é
a glória de suas entranhas. «O encontro de Otâvio» (cap. 49 ),
uma experiência quase plena de Joana ao lado do marido ador-
mecido, despojado de sua pragmatica mascara social, entregue
â crucificada condiçäo de homem. O amante de Joana, «O ho-
mem» e «O abrigo no homem», capitulo que acolhe, num inter-
valo de mais um circulo que se fecha em sua vida, a cascata das
fantasias de Joana. «A vibora», cuja maldade, reconhecida e
denunciada pela cólera de Otâvio, reitera o epiteto que Joana
merecera da tia na infância. «A partida dos homens» a deixa
abandonada e feliz «perto do selvagem coraçâo da vida», como
anuncia a epigrafe do livro.
«A Viagem», Ultimo capitulo, é o longo monólogo
final, mergulhado num «de profundis», de onde Joana emerge
maior que em sua infância, «porque basta me cumprir e entäo
nada impedirti meu caminho ate a morte-sem-medo, de qualquer
luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo»
(PCS, p. 198).
Pouco importa, pois, a estória, o nivei da açäo
dramâtica. «Mas tudo isso era muito mais curto, um simples
olhar surpreso esgotaria todos esses fatos» (PCS, p. 20). No
texto, tao densamente indiciado, as antiteses, as apóstrofes, os
travessóes e as repetiçóes constituem recursos fundamentais do
próprio processo narrativo, e os similes, frequentemente inalcan-
çâveis aos recursos da lógica comum, apontam o próprio núcleo
da busca da protagonista. Por que näo sublinhar um deles, para
indicar um dos parâmetros desta singular tecnica de narrar?
«O pai morrera como o mar era fundo! compreen-
deu de repente.
J
173
O pai morrera como neio se ve o fundo do mar,
sentiu» (PCS, p. 35).
Compreensäo e sensibilidade, inteligência e sensa-
çäo se defrontam como polos opostos, instrumentos de percep-
çóes diversificadas: a morte do pai compreendida, no plano inte-
lectual, como se sabe que o mar é fundo; a morte do pai, sentida
no plano emotivo, como näo se pode ver a fundura do mar.
Assim, entre o pensar e o sentir, se instaura o dile-
ma da natureza da ficçäo para a protagonista, cuja linguagem
se torna objeto de indagaçäo e pesquisa:
«Nada posso dizer ainda dentro da forma. Tudo
o que possuo estri multo fundo dentro de mim. Um dia, depois de
falar enfim, ainda terei de que viver? Ou tudo o que eu falasse
estaria aquém e além da vida?» (PCS, p. 65).
Sentir a vida é viver; pensar a vida sera perdê-la?
Vive mais quem vive sensivelmente, bem próximo do mundo ani-
mal, aderente ao corpo galopante do cavalo indomàvel. Quando
se encontra com a «mulher da voz», Joana descobre que ela näo
analisa, näo raciocina, e seu passado, presente e futuro é estar
viva. «Esse o fundo da narrativa» (PCS, p. 71). Este o fundo
de sua propria ficçäo? Embora o deseje, a isso näo se resigna.
Porque sua fatalidade é escrever. E à medida que se exprime,
se equaciona como linguagem, se desdobra em narrador/perso-
nagem, afasta-se do coraçäo pulsante da vida, näo refletida;
sua escritura, embora nervosa e coleante, reduz necessariamente
a paixäo à razäo. Mo ha que fugir. Ou se escreve ou se vive.
Ou escrever é viver. Mas Joana näo atingiu ainda a unidade
capaz de resolver o conflito do escritor, conflito que sem dúvida,
embora ainda espumando e latejando, o «eu» narrador de Agua
Viva resolve melhor, e o narrador de A Hora da Estrela reco-
loca, questionando todos os recursos da ficçäo.
Joana considera pobres os caminhos da açäo e,
por isso, embora procure atingir o n'ideo da vida, näo pode
alcançà-lo senäo na dualidade da reflex-do, isto é, pela criaçäo,
inventando o mundo, inventando as palavras.
«Pegou num lapis, num papel, rabiscou em Tetra
intencionalmente firme: «A personalidade que ignora a si mesma
realiza-se mais completamente». Verdade ou mentira? Mas de
certo modo vingara-se jogando sobre aquela mulher intumescida
de vida seu pensamento frio e inteligente» (PCS, p. 75).
174
Desde a infância, sempre provocada intimamente
por esta ansia de inventar, Joana se questionava a respeito dos
limites entre a verdade e a mentira: «Pensar agora, por exemplo,
em regalos louros. Exatamente porque nâo existem regatos louros,
compreende?» (PCS, p. 17). Esta pergunta, dirigida ao leitor,
redimensiona a problematica da imaginaçäo que cria uma reali-
dade — a realidade ficcional — diferente da realidade comum.
«(...) assim se foge. Sim, mas os regatos dourados de sol,
louros de certo modo... Quer dizer que na verdade nâo imagi-
nei. Sempre a mesma queda: nem o mal nem a imaginaçäo. No
primeiro, no centro final, a sensaçäo simples e sem adjetivos,
tao cega quanto urna pedra rolando. Na imaginaçäo, que so eia
tem a força do mal, apenas a visa() engrandecida e transformada;
sob eia a verdade impassive!. Mente-se e cai-se na verdade»
(PCS, p. 17).
Expressa-se a consciência do narrador de que a
realidade ficcional criada pela imaginaçäo (regatos louros) dese-
nha-se, afinal, sobre a realidade mesma (regatos dourados de
sol) e, portanto, a suposta mentira desse mundo ideal é a propria
verdade sob nova forma, transfigurada. Pensando que inventava
um caminho novo, o seu caminho, o que escolhia era o caminho
jA traçado dentro dela, a sua incoercivel vocaçäo de escrever.
Depois desse enquadramento geral, tentaremos de-
monstrar como, neste romance, se plasma a escritura metaforica
de Clarice Lispector.
As areas semânticas das palavras, que designam os
quatro elementos, se espraiam tao ampiamente no decorrer densa
narrativa, que ao leitor é dificil condensa-los, em torno de cada
eixo.
A terra é o habitat da vida e do mundo organico:
plantas e bichos. Da minhoca que se espreguiça antes de ser co-
mida pela galinha, dos frangos pelados, das folhinhas, da vida
que borbulha cheia de pressa «como uma chaleira a ferver»
(PCS, p. 9). A terra, sobre a qual dança o seu corpo de menina;
à terra, se liga a sua certeza de existir para o mal, de ser urna
vibora, um animal, cuja força contida pode rebentar em vio-
lência.
No vital, As vezes se pisa sem saber; a terra, mato
molhado, carne e corpo, aos quais se associam sensaçöes delicio-
sas ou desagradâveis, mas sempre inegavelmente vivas. As agra-
däveis poderäo ser sublinhadas mais tarde, na Area semantica

175
da âgua e do ar. As demais, convém delinea-las agora: sensa-
çôes de mole, gordo, morno, cheiro de alho, goles de azeite, nau-
sea, enjôo, bolo escuro no estômago, prisäo em gordura dissol-
vida, saliva, perfume doce, círculos e curvas, gula, corner desen-
freado, tudo objeto da percepçäo e da curiosidade aguçada de
Joana.
A cigua é um dos eixos mais fecundos deste ro-
mance, e porque näo dizer, de toda a linguagem de Clarice Lis-
pector, que o retoma num de seus últimos livros: Agua Viva.
O fogo também marca A Hora da Estrela, seu canto final.
A area semantica da cigua pertencem o mar, o ba-
nho, a chuva, as nuvens, o rio, a fonte, o lago, a sede, o navio,
e os verbos mergulhar, borbulhar, flutuar, dormir, sonhar.
O mar é muito (PCS, p. 37). 0 mar de sua in-
fância, imagem sentida da vida e da morte e jamais intelectual-
mente esgotada, espaço de sua propria busca naquela viagem
que, se finaliza Perto do Coraçâo Selvagem, abre perspectivas
para outras e renovadas aventuras. Joana, como Ulisses, é um
ser de âgua.
Nos mais cruciantes momentos de sua vida, pro-
cura o mar: quando foge da tia, corn suas «pernas magras e
finas correndo entre o céu e a terra» (PCS, p. 37) e sabe que o
pai morreu; quando percebe o recuo do professor, e se sente
uma víbora sozinha (PCS, p. 57); quando partem os homens
de sua vida e da enceta a grande viagem... O desejo-poder-
milagre que carrega consigo, desde a infância, esta indissolu-
velmente associado à imagem do mar, que era como um bicho,
um grande animal vivo e poderoso.
O mar sem seios. Grande, grande. Nele sentiu urna
alegria quase horrível. A agua rosnava entre seus dedos, «esca-
pulindo clara clara como um bicho transparente. Transparente e
vivo... Tinha vontade de bebê-lo, de mordê-lo devagar» (PCS,
p. 35).
Joana-menina diante do mar: «(...) a paz que
vinha do corpo deitado do mar, do ventre pro fundo do mar, do
gato endurecido sobre a calçada» (PCS, p. 42). Mar é paz, é
vida, é morte; e a confusäo do mar, gato, boi e Joana, parecia-
Ihe a realidade mesma, a essência de que «tudo é um» (PCS,
p. 43).
«Na confusäo, ela era a propria verdade incons-
cientemente, o que talvez desse mais poder-de-vida, do que co-
nhecê-la» (PCS, p. 42-3).

176
A sede «profunda e velha» que a persegue é, por-
tanto, também um elemento da agua, sede que nem Otavio,
nein o amante conseguiram apaziguar.
Quando Otâvio a abraça, pela primeira vez, tem
a impressäo que abraça um ser de âgua. Alias, ela näo nascera
da agua para a morte, se, na infância; da agua, do banho, ela
emergira para a sua vida plena de mulher.
Seu corpo amadurecera na «cigua cega e surda
mas alegremente nao muda» (PCS, p. 61) ; ao observa-lo, ela
olha de longe seu pé (terra), move-o «como uma asa fragil» (ar).
Seu corpo é uma linha tensa e tremula, alisa sua cintura, seus
quadris, sua vida (fogo). Ao nascer para a vida plena de mulher,
fundem-se os elementos, na escritura compacta que desenha esse
nascimento.
«A relva é sempre fresca, alguém vai beijd-la, coe-
lhos macios e pequenos se agasalham uns nos outros de olhos
fechados» (PCS, p. 61).
O leitor esta preparado para acolher essa curiosa
linguagem de sensaçóes, em que uma moça «imerge na banheira
como no mar» (PCS, p. 61) e acorda para o fogo, que começara
a espalhar sobre a terra.
«Sobre o ,mesmo corpo que adivinhou alegria exis-
te dgua-dgua» (PCS, p. 62) .
Na agua que the cobre o corpo, ela descobre o
segredo de palavras novas.
«Mas o que houve? Murmura baixinho, diz sila-
bas mornas fundidas» (PCS, p. 62).
Da agua, mais um derivado é a chuva. Também ela
foi um calmante de sua infância. O som da chuva era urn anti-
doto contra o seu medo do sono e da noite.
Quando o pai ia sair e ameaçava deixâ-la sozinha,
entrefechava os olhos, e deixando a cabeça cair de lado, «valia
um pouco como se estivesse chovendo» (PCS, p. 28) e podia
adormecer em paz.
O ar, a liberdade fluida contra a terra, prisâo pode-
rosa de elementos da vida e do instinto. Contra a montanha para-
da e grossa diante dela, Joana se ergue em antitese, como pas-
saros leves e negros que voassem nitidos no ar puro, voassem
sem que os homens os olhassem sequer.
A montanha opaca e fechada (terra) confirmava
o que havia de desagradâvel no Intimo da protagonista: «Aquilo
cinzento e verde estendido dentro de Joana como um corpo pre-

177
guiçoso, magro e dspero, bem dentro dela, inteiramente seco,
como um sorriso sem saliva, como olhos sem sono e enervados...»
(PCS, p. 28). 0 ar puro, a tarde de veräo que ela nao conse-
guia tatear, mas contra a qual era um galho seco, quebrado,
coberto de cascas velhas. Era a sede que voltava, agressiva e
agreste, «( ...) a vida depois virci como uma onda de sangue,
lavando-me, umedecendo a madeira crestada» (PCS, p. 29).
«Aspirou o ar morno e cloro da tarde e o que nela
pedia âgua restava tenso e rigido como quern espera de olhos
vedados pelo tiro (fogo)» (PCS, p. 30).
Assim, mais uma vez, se fundem os elementos da
espera e da vida.
Ao ar, se liga sua capacidade para o mal. Joana
se questiona: «Nâo era no mal apenas que alguém pode respirar
sem medo, aceitando o ar e os pulmöes?» (PCS, p. 14).
Ao ar, associa sensaçöes boas como as de felici-
dade e libertaçäo: «Subir o monte, parar no cimo e, sem olhar,
sentir atrcís a extensâo conquistada (...) O vento fazendo es-
voaçar as roupas, os cabelos. Os braças livres, o coraçöo fechan-
do e abrindo selvagemente, mas o rosto cloro e sereno sob o
sol. E sabendo principalmente que a terra embaixo dos pés era
tao profunda e tao secreta que ndo havia a temer a invasâo do
entendimento dissolvendo seu mistério. Tinha urna qualidade de
glória esta sensaçäo» (PCS, p. 40-1). Mais urna vez a epifania.
Do mistério, sac) guardiäes os quatro elementos.
Nenhum o desvenda, todos o desenham metaforicamente. «Durma-
mos sobre Deus e o mistério, nave quieta e frdgil flutuando sobre
o mar, eis o sono» (PCS, p. 40).
Também o fogo, cuja area semantica recolhe o
vermelho, o sangue, as lavas, a púrpura, a febre, o agreste, a
estrela, o gosto do mal, mastigar vermelho, engolir fogo adoci-
cado.
Fogo que, por vezes, se identifica corn o ar: «Por-
que ela estava tao ardente e leve como o ar que vem do fogäo
que se destampa»? (PCS, p. 18).
Ao ar ainda, se associa a idéia da voz, mas nâo
«a mulher da voz», mulher apenas fêmea, em que Joana surpreen-
deu o segredo de' viver. A voz daquela mulher näo pertencia ao
dominio da fala, da palavra, que perde o suco da existência;
era uma voz-sensaçäo, uma voz sem inteligência, instintiva e
aderente à sua natureza de mulher, natureza jamais traída nos
caminhos dos signos.

178
A voz da mulher näo era som, era voz da terra
(PCS, p. 70). «Porque contar fatos e detalhes se nenhum a do-
minava afinal? E se ela era apenas a vida que corna em seu
corpo sem cessar?» (PCS, p. 72). Voz da terra, voz que näo
se contaminara corn a linguagem, que nunca se chocara contra
nenhum obstäculo, corno palavras vazias e ocas; voz que per-
correra «longos caminhos sob o solo até chegar a sua garganta»
(PCS, p. 70).
Joana inventa urna estória para a «mulher da voz»,
dâ-lhe urn destino. Adivinha ou sabe: só aquela simples mulher
reunirä, na vida e na morte, os quatro elementos de plenitude.
«Porque ela nascera para o essencial, para viver ou morrer. E o
intermedicirio era-lhe o sofrimento. Sua existência foi tao com-
pleta e tao ligada à verdade (sensaçöes de vida) que provavel-
mente na hora de entregar-se e findar, teria pensado, se tivesse
o hcibito de pensar: eu nunca fui. Também näo se sabe o que
se fez dela. A urna vida tao bela deve ter-se seguido urna morte
bela também. Certamente hoje é gräos de terra. Olha para cima,
para o céu (ar), durante todo o tempo. As vezes chove (cigua),
ela fica cheia e redonda nos seul gräos (terra). Depois vai re-
cando co,m o estio (fogo) e qualquer vento (ar) a dispersa.
Ela é eterna agora» (PCS, p. 74). Fundem-se, novamente, os
elementos.
A mulher se eterniza, porque a eternidade para
Joana näo é senäo a sucessäo dos instantes plenos, cuja forma
primeira é a vida. Deseja a voz da escritora, ressoando nos an-
seios de sua criatura de papel e tinta, que essa forma primeira
seja a literatura?
No mar e no ar, Joana aceita a morte, quando
ouve a música de órgäo da igreja. A música é sempre urna voz.
Da sensaçäo, näo da inteligência. O ar, quando transfigurado em
sons musicais, pretende também ele aos semas da terra/$gua,
onde Joana pode viver e morrer: «Queria subir e so a morte,
como um fim me darla o auge sem a queda» (PCS, p. 68).
Quando deseja ultrapassar-se, Joana merguiha e
emerge «corno de nuvens, das terras, ainda näo possiveis ah ain-
da näo possiveis» (PCS, p. 64).
Terras, que ela ainda näo soube imaginar, mas que
brotaräo de sua ficçäo corno bichos, peixes do mar, ayes do
céu e criaturas do fogo. Joana das vozes, por que näo? Santa
Joana, como a chamarä o amante, e a cuja associaçâo nem o

179
leitor pode fugir. Também Joana d'Arc ouvia vozes, que näo
entendia e guiaram seu destino. Joana d'Arc, por que ndo? Uma
Joana d'Arc da ficçäo, atormentada pelas próprias fantasias, in-
vençöes de palavras, de vozes, que foram seu brinquedo desde a
infância, criadora de f atos .mentirosos, de estórias, que desenrola
aos ouvidos de Otavio para perturba-lo, aos ouvidos do amante
para extasia-lo; estórias de cadelas prenhes, de mares, de mari-
nheiros e viagens, povoadas de agua, de sons e vozes... «Navio»,
«marinheiro», «viagens», «mar», palavras da area semântica da
«agua», por meio da quai Joana procura recuperar a infância per-
dida, nessa imagem primeira de sua entrega à incompreensäo da
morte e à sensaçAo do sofrimento.
«Ter tido urna infância nâo é o mdximo? Ninguém
conseguirla tirsi-la de mini... — e nesse instante ja começara
a ouvir-se, curiosa» (PCS, p. 43). Começa a ouvir-se, porque a
infância ja se transfigurou num tema de ficçäo; nesse mesmo
instante se instaura nela o processo narrativo, pela voz da narra-
dora. Essa voz que ela exprime e simultaneamente deseja escutar
é a sua obsessäo, a sua fatalidade.
As sensaçöes do eixo terra/agua säo mais ligadas a
sua infância e mais aderentes ao coraçäo selvagem da vida. As
sensaçöes do eixo ar/fogo säo sensaçöes de liberdade e plenitu-
de, mais abstratas, pouco espessas, e porque ambiguas, podem
conduzi-la ao ar vazio, As vozes sem consistência.
Reduz, portanto, quanto the é consentido, as sen-
saçöes do ar/fogo (vento, luz, sol) ao agressivo da vida, reco-
lhe-as na area semântica da agua ou da terra.
Quando as alcança, seus pés pisam a terra, onde
seu corpo é a extensäo de um cavalo novo, galopante, antes de
atira-la nas aguas do rio. Em Clarice, o poder de abstraçäo (ar,
plenitude, espírito, liberdade) aparece geralmente censurado e
controlado pelas sensaçöes terrestres e aquaticas. Embora lute
contra as sensaçöes desagradaveis de cheiros excessivos e comi-
das suculentas, elas exercem sobre Joana urna atraçäo irresis-
tível. Nausea e curiosidade, porque ela intuì que nesse animal
poderosamente vivo, preso à terra, talvez exista um hausto de
vida que the é negado. Por isso o que tern de terreno para opor
a essa gordura da vida, que ameaça sufoca-la como os seios
excessivos da tia, é agressividade, violência contida, pernas ma-
gras e finas, correndo entre o céu e a terra (Cf. PCS, p. 33).
Quando conhece Lidia, o jogo de antíteses, que se
estabelece entre as mäos de ambas e as duas personalidades,

180
é todo a favor de Lidia, na area das sensaçóes camais. De
Joana, o que se salva? O ar rarefeito, as vozes.
«As minhas maos e as dela. As minhas — esboça-
das, solitdrias, trapos lançados para a (rente e para trois, des-
cuido e rapidez num pincel molhado em tinta branco-triste, estou
sempre levando a mao à testa, sempre ameaçando deixd-las no
ar, oh como sou fútil, so agora cornpreendo. As de Lidia — re-
cortadas, bonitas, cobertas por urna pele elastica, rosada, ama-
relada, como uma fior que vi em alguma parte, maos que repou-
sam em cima das coisas, cheias de direçäo e sabedoria. Eu Ioda
nado, flutuo, atravesso o que existe com os nervos, nada sou
senno um desejo, a raiva, a vaguidao impalpdvel como a energia.
Energia? mas onde esta minha força? na imprecisâo, na impre-
cisâo, na imprecisâo ... E vivificando-a, nâo a realidade, mas
apenas o vago impulso para diante» (PCS, p. 140).
A vida submerge, pertence à semAntica do ele-
mento agua; o vazio é o branco, pertence ao espaço, à semAntica
do elemento ar.
«E logo em seguida, que tudo fora branco ate
agora, como um espaço vazio, e que ouvia longinqua e surda-
mente o fragor da vida se aproximando, densa, caudalosa e vio-
lenta, as ondas altas rasgando o céu, aproximando-se, aproxi-
mando-se... para submergi-la, afogd-la asfixiando-a...» (PCS,
p. 77).
Renascer ou inaugurar-se agora pertence ao elemen-
to terra, porque precisa de urn terreno novo, onde todo ato tenha
significado, onde o ar seja respirado como da primeira vez. A
vida borbulha dentro dela «como um quente lençol de lavas»
(PCS, p. 78). Imagina o som de um clarim que possa cortar a
noite. «E entâo cavalos brancos e nervosos corn movimentos
rebeldes de pescoço e pernas, quase voando atravessam rios,
montanhas, vales... r (PCS, p. 78).
A imagem do cavalo é recorrente na ficçâo de
Clarice Lispector.
A capa de Onde estivestes de noite é de Talvio
Negreiro e representa um cavalo em noite de lua cheia, montado
por uma moça. O livro traz um «seco estudo de cavalo».
«O que é cavalo? E liberdade tao indomdvel que
se torna imiti! aprisiond-lo para que sirva ao homem: deixa-se
domesticar mas corn um simples movimento de safando rebelde
de cabeça — sacudindo a crina corno a urna solfa cabeleira —
181
mostra que sua intima natureza é sempre bravia e limpida e
livre» (OEN, p. 49).
Mulher e cavalo, analogicamente aproximados, pela
longa cabeleira e a crina, pela natureza livre, reunidos no signo
de Clarice, nascida a 10 de dezembro — sagitârio, o centauro
armado de arco e flexa.
«fa me relacionei de modo perfeito corn cavalo.
Lembro-me de mim-adolescente. De pé corn a mesura altivez do
cavalo e a passar a mdo pelo seu pelo lustroso. Pela sua agreste
crina agressiva. Eu me sentia como se alga meu nos visse de
longe — Assirn: «A moça e o cavalo» (OEN, p. 51).
Quase um mito, portanto, feito de dois maiúsculos
signos de vida, uma espécie feminina de centauro, que recupera
o mito de Vénus, nascida das Aguas, pois Joana emerge, do
banho, para ser mulher e a mulher e o mar assim aparecem em
Urna Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, cuja protagonista
é Uri, Loreley, urna divindade aquAtica. «Ai estava o mar, a mais
ininteligivel das existências nâo-humanas. E ali estava a mulher,
de pé, o mais ininteligivel dos seres vivos (...) Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios
se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incog-
nosciveis feita corn a confiança corn que se entregariam duas
compreensöes» (LP, p. 82).
Lori, apelido de Loreley, é um ser da Agua, um
ser do mar.
«Loreley é o nome de um personagem lendcirio do
folclore alemâo, cantado num belissimo poema por Heine. A
tenda diz que Loreley seduzia os pescadores cour seus cânticos e
eles terminavam morrendo no fundo do mar (...)» (LP, p. 105).
A mulher, Loreley, penetra na Agua fria e salgada.
Estâ alerta, ao entrar naquele ser profundo que «rage no silêncio
da madrugada».
«A mulher é agora uma compacta (terra) e uma
leve (ar) e uma aguda (fugo) e abre caminho na gelidez que,
liquida (dgua), se opöe a ela, e no entanto a deixa entrar, como
no amor em que a oposiçâo pode ser um pedido secreto» (LP,
p. 83).
Sentindo-se fertilizada, como nos antigos rituals
abandonados ha milênios, tendo o mar dentro de si como o li-
quido espesso de um homem, caminhando dentro das Aguas e
nâo sobre elas, parete que alcança o amadurecimento de si mes-

182
ma, a propria identidade, sugerida por seu nome. Na imanência,
lido na transcendência.
Identificados, fundidos, a mulher e o mar, a moça
e o cavalo.
No mistério da noite, alastra-se o barulho dos ca-
valos, a beleza de suas cabeças inquietas, o nervoso de sens
cascos galopantes.
«E se no meio da randa selvagem aparecia um
potro branco — era um assambro no escuro. Todos estacavam.
O cavalo prodigioso aparecia, era apariçâo. Mostrava-se empi-
nado um instante. Imóveis os animais aguardavam sem se espiar.
Mas um deles batia o casco — e a breve pancada quebrava a
vigilia: fustigados moviam-se de súbito cilacres, entrecruzando-se
sem jamais se esbarrarem e entre eles se perdia o cavalo branco»
(OEN, p. 55).
Outros animais também se repetem: o gaio, o gato,
os insetos, que invadem as grutas de Agua Viva.
Ela, Joana, é como urna gata selvagem, os olhos
ardendo, acima das faces incendiadas. «Enxergava em si púrpura
sombria e triunfante» (PCS, p. 78). Apesar de tudo havia fogo
sob o seu tédio, «havia fogo mesmo quando representava a morte.
Talvez isso fosse o gosto de viver» (PCS, p. 78).
A linguagem de Joana pertence tao intrinsecamente
ao narrado, que invade a linguagem de Otàvio. Roberto Schwarz
diz que «nalguns pontos, a visäo interior usada para mostrar
Joana é usada também para mostrar outras personagens, que se
tornam entâo irremediavelmente semelhantes à figura principal;
no que esta, por sua vez, deixa de ter um plano narrativo espe-
cificamente seu». "
Isso comprova, por outro ângulo, que a escritura
de Clarice se apresenta incoerências, segundo urna otica realista,
é porque, no dominio da linguagem, tern urna textura compacta,
primordialmente entretecida de elementos fundamentais. O uni-
verso que inventa possui urna carnadura vital; ela deseja torna-
lo homologo à propria vitalidade do mundo, que os sentidos
desenham, plasmam e recortam dentro e fora de nos.
Em Agua Viva, livro sem personagens, pode-se ob-
servar a riqueza desse procedimento. O livro é uma tessitura
de 115 paginas, um texto epifânico, atravessado por um aleluia
vital, um plasma surrealista, urna escritura de placenta, em que
um «eu» inominado dialoga corn um «tu» incaracterizado, mui-

183
tas vezes sobre um aele» ou «ela» que realizaram açóes e aos
quais sucederam toisas...
Superada assim a possibilidade de incoerência,
porque o «eu» de Agua Viva suprime o agir de personagem,
simultaneamente a sua escritura se escreve e se descreve; por
meio de um recurso desesperado e lúcido, ultrapassa a impossibi-
lidade de verbalizar o seu proprio ser, tantas vezes sentida em
Perto do Coraçcio Selvagem, tantas vezes manifestada por Joana:
«A curioso como nâo sei dizer o que sou. Quer
dizer, sei-o bem, mas näo posso dizer. Sobretudo tenho medo de
dizer, porque no momento em que tento falar näo só näo expri-
mo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no
que eu digo» (PCS, p. 17) .
Apesar disso, Joana se divertia em atirar frases a
Otavio, frases como brasas que escapuliam das mäos dele «até
que ele se livrasse delas corn outra frase, fria como cinza, cinza
para cobrir o intervalo: esta chovendo, estou corn fome, o dia
ester belo» (PCS, p. 29). Demarca assim o narrador a distancia
entre a fantasia e a linguagem pragmatica do cotidiano, cujos
recursos nâo ultrapassam a expressäo da ligaçâo imediata e
urgente entre as necessidades bâsicas do bicho/homem e o do-
minio do ambiente. Otavio era um homem pratico, näo sabia
brincar corn as palavras.
Inaugurado no primeiro livro de Clarice, esse lu-
dismo quase magico, que no monologo final assume as propor-
çóes de urna sinfonia ou de urna alastrante agua-viva, é a pro-
pria substância da escritura do texto, publicado em 73, ao qual
ela tao felizmente deu tal nome.
Mas, antes, façamos um rapido percurso pela lin-
guagem dos outros romances. Sigamos os caminhos dessa paixâo
de Clarice pela palavra e na palavra, a quai terminou corn A
Hora da Estrela, porque o itinerario vivo da grande ficcionista
se encerrou também corn a morte.
Por que nâo dizer que geralmente os romances e
contos de Clarice Lispector sâo roteiros metafísicos e, por isso
mesmo, a variada gama de seus recursos expressivos, além dos
eixos metafóricos ja apontados, poderia sintetizar-se no tipo de
figuras que implicam indagaçâo e busca, nas quais os contrarios
coexistem e se tocam: a antítese, o paradoxo, o oxímoro? As
metaforas estranhas sâo homólogas à estranheza de sua perqui-
riçâo; os recursos que parecem repetitivos e redundantes, as

184
inumerâveis comparaçbes introduzidas por «corno» e «corno se»,
as oraçóes iniciadas pela conjunçäo «e», os «oh» e os «ah» que
mais ironizam que expressam a funçäo emotiva, näo constitui-
riam um processo de maturaçäo para levar a enunciaçäo ao silên-
cio? Tao distantes se situam o ser e a linguagem, que na medida
em que a linguagem se acumula, a compreensäo do ser se esva-
zia, provando-se pelo paradoxo de urna ficçäo que aponta para
o silêncio, como o escritor diz a vida, sabendo que a perde.
pana menina ja formulara, pela voz do narrador,
o dilema que perpassa todos os itinerârios:
«Ela se afasta fazendo urna trancinha nos cabelos
escorridos. Nunca nunca nunca sim sim, canta baixinho. Aprendeu
a trançar um dia desses. Vai para a mesinha dos livros, brinca
corn eles olhando-os à distância. Dona de casa mando filhos,
verde é homem, branco é mulher, encarnado pode ser filho ou
filha. «Nunca» é homem ou mulher? Por que «nunca» näo é
filho nem filha? E «sim»? Oh, tinha muitas coisas inteiramente
impossiveis. Podia-se ficar tardes inteiras pensando. Por exem-
plo: quern disse pela primeira vez assim: nunca?
Papai termina o trabalho e vai enconirci-la sentada
chorando» (PCS, p. 13).
Sera precipitado entrever aqui o drama existencial
da escritora, a trama metafisica vazada na linguagem de seus
romances? O pai encontrarâ, afinal, a criança chorando... Cho-
rando sobre seu proprio brinquedo?
Senäo, vejamos: «nunca nunca sim sim» sac) pala-
vras antitéticas que formulam o núcleo das contradiçóes a res-
peito do ser e do existir; nada/tudo, trevas/luz, morte/vida,
vazio/pleno e tantas outras que a indagaçäo humana costuma in-
quirir. Os livros, a menina os olha à distância, embora bringue
corn eles. Näo é o jogo da ficcionista? Brinca também corn as
palavras, e dâ-lhes carne, personifica-as genericamente, inventan-
do que «verde» é homem, «branco» é mulher, «encarnado» pode
ser filho ou filha. Desenha-se um universo de «personagens» e
até o enredo de possíveis romances (dona de casa mando filhos).
Mas ha coisas inteiramente impossiveis: a palavra «nunca», um
dos polos de sua antítese, näo pode ser filho nem filha, näo
pode jamais ser personagem. Assim acontece com o núcleo de
sua ficçäo de cunho metafisico, irredutível ao esquema dos ro-
mances de personagens, aos romances de enredo, de espaço e
tempo singularizantes.

185
O itinerario de Joana começa na infância, atra-
vessa a dificil e gloriosa puberdade, aprisiona-se na felicidade
do casamento, liberta-se corn o amante anônimo, para afinal des-
dobrar-se na viagem, pela agua, itinerario aberto para a nova
pesquisa, que se anuncia. A morte, de algum modo enunciada no
monologo final,' sugere que as duas pontas da vida de Joana,
infância e morte, o grande sintagma daquela narrativa, estäo
unidas por estranha simbiose.

5.2 0 LUSTRE, 1946 '°

No segundo romance de Clarice Lispector, o itine-


rario de Virginia parte, cronologicamente, da infância e termina
na morte da protagonista. Desta vez, porém, a morte é indi-
ciada desde o principio da narrativa. Virginia e o irmäo Daniel
surpreendem um chapéu arrastado pelas aguas do rio. Tacita-
mente, admitem que se trata do chapéu de um afogado. Porque
no texto nâo se escreve inteiramente a palavra afogado. Diz
Daniel, ao concordar que näo falaräo a respeito: «nem que nos
perguntem sobre o afog...» (LT, p. 7). Na infância, o sema
da agua une-se ao da morte, para engolir a vida de Virginia,
para sempre.
O segredo, guardado por ambos, na atmosfera
sombria de Granja Quieta, assinala a postura fundamental desta
narrativa, colhida no oximoro da primeira pagina: as aguas do
rio, num «redemoinho calmo...» Como a dinamica do ser sob
a casca do cotidiano, com a propria ambigüidade do signo
«afog... », nâo completamente grafado, que significa etimologi-
camente «morto na agua», «asfixiado», embora soe como «morto
no f ogo».
«Um instante morto estendeu longamente as toisas.
Ela e Daniel eram dois quietos e imóveis para sempre. Mas eu
jâ morri, parecia pensar enquanto se desprendia da ponte como
se dela fosse cortada corn urna foice. Eu jâ morri, ainda pensa-
va e sobre pés estranhos seu rosto branco corna pesadamente
até Daniel» (LT, p. 8).
A protagonista é um ser de viscosidade nula, nas-
cida desse segredo da agua:
«Ela seria fluida durante toda a vida. Porém o
que dominara seus contornos e os atraira a um centro, o que a

186
iluminara contra o mundo e lhe dera Intimo poder fora o segredo»
(LT, p. 7).
No título do livro, entrevê-se o elemento luminoso.
O casarâo de Granja Quieta, em decadência, ostentava ainda a
grandeza perdida nos poucos móveis nâo engolidos pela falência
da familia, nos inúmeros quartos cheios de vazio, silêncio e som-
bras, na escadaria coberta de grosso tapete de veludo púrpura,
na enorme sala de jantar, nos poucos cristais adormecidos, nos
frisos altos, no vento que soprava sobre as ruinas.
Virginia, porém, avivia à beira das toisa. A sala.
A sala cheia de pontos neutros. O cheiro de casa vazia. Mas o
lustre! Havia o lustre. A grande aranha encandescia. Olhava-o
i.móvel, inquieta, parecia pressentir urna vida terrivel. Aquela
existência de gelo. Urna vez! urna vez a um relance — o lustre
se espargia em crisântemos e alegria. Outra vez — enquanto ela
corria atravessando a sala — ele era ulna casta semente. O lus-
tre. Saia pulando sem olhar para trcis» (LT, p. 12).
Virginia deixarà o espaço sombrio da granja, ira
para a cidade grande, metàlica, porém jamais deixarà de ser
fluida. Intocada pela cidade, pelo amante, pela vida, morrerâ
na rua, reconhecida pelo chapéu marrom (o chapéu de afog... ),
atropelada por um carro. Julgada prostituta, urna mulher que
recebia homens em seu quarto, a morte de Virginia é um beco
sem salda e a narradora nos acena corn o renascimento de
Adriano, o único homem que talvez tivesse podido ama-la.
Antes de morrer na grande cidade, num intermezzo
em que voltara à Granja Quieta, Virginia encontrara tudo mu-
dado:
«Na Granja respirava-se agora ma verdade sim-
ples, quase sadia e are jada (...). Nas vidas limpas e claras
onde nenhum anjo amido se insinuaria jamais, o milagre secara
em hastes de ervas quebradiças ao vento — onde, onde estava
o que ela vivera?» (LT, p. 189).
Na ausência de Virginia, a Granja perdera seu
clima sombrio e resplandecia ao sol, inconsciente de seu destino:
«(...) seus moradores pareciam ressuscitados mas,
sem consciéncia da propria morte, andavam calmos sobre um
châo plano» (LT, p. 189) .
Virginia, a destinada a morrer, como previra a
velha Cecilia que lhe lera a sorte, abandona definitivamente a
Granja. No trem, analisando-se, percebe que concorda «secreta-

187
mente corn o sacrificio da massa de sua vida» (LT, p. 234),
vivendo mentiras e um falso amor. Olhando pelo vidro da janela
do trem, de súbito recorda-se:
«Ah, o lustre. Ela esquecera de olhar o lustre.
Pareceu-Ihe que o haviam guardado ou entâo que näo tivera
tempo de procura-lo corn os olhos. Sobretudo também new vira
muitas outras coisas. Pensou que o perdera para sempre. E sem
se entender, sentindo um certo vazio no coraçäo, pareceu-lhe
ainda que na verdade perdera urna de suas coisas. Que pena,
disse surpreendida. Que pena, repetiu-se corn arrependimento.
O lustre... Olhava pela janela e no vidro descido e escuro via
em mistura corn o reflexo dos bancos e das pessoas o lustre.
Sorriu contrita e timida. O lustre implume. Como um grande e
trêmulo calice d'agua. Prendendo em si a luminosa trarnspa-
rência alucinada o lustre pela primeira vez todo aceso na sua
polida e frigida orgia — imóvel na noite que corria corn o trem
atrcis do vidro. O lustre. O lustre» (LT, p. 235).
A imagem insolita «o lustre implume» sugere a
figura de um grande passaro de luz, nao de plumas; como um
grande calice de agua, prendendo em si a transparencia aluci-
nada, o lustre é imagem de Virginia, um ser de agua, de fogo
(luz), de ar. O sema da fluidez, que caracteriza Virginia, mar-
cado pela leveza e ilimitaçâo, reorganiza os elementos acima
citados, porque a protagonista acaba por opor-se à terra de sua
origem, à Granja Quieta, a qualquer terra de desejos sensuais,
tornando-se urna estranha, também na cidade grande. Enquanto
Joana tern as suas vozes, Virginia é o lustre implume, inteiriça
e morta, sem possibilidade de questionar o ser corn a linguagem,
sem plumas, que também servem para escrever. A narradora dei-
xa-a morrer sob os faróis de um carro, porque o seu itinerario,
dominado pelo espaço sombrio da Granja, pelo segredo da morte,
pelo seu nome e destino, era desde o início urn itinerario fecha-
do, sob o signo do passado, do morto, do afog...
«Virginia era urn apelido cheio de paz atenta como
de urn recanto atrds do muro, la onde cresciam finas ervas como
cabelos e onde ninguém existia para ouvir o vento. Mas depois
de perder aquela figura perfeita, magra, tao pequena e delicada
como o maquinismo de um relógio, depois de perder a transpa-
rência e ganhar urna cor, ela poderia se chamar Maria Madalena
ou Herminia ou mesmo qualquer outro nome menos Virginia, de
tao fresca e sombria antiguidade. Sim, e também poderia ter
sido em pequena tranqüilamente Sibila, Sibila, Sibila. Virginia...»

188
(LT, p. 220-1). Sibila, a profetisa, a bruxa, a feiticeira; para
alguns, a poesia, reveladora das primeiras palavras màgicas do
universo.
Estranhas metaforas desenham o contorno do mun-
do asfixiante da Granja, .mundo que, simultaneamente, nos repele
e aprisiona:
«De madrugada um gaio cantava uma limpida cruz
no espaço escuro, risco amido espalhava um cheiro frio pela dis-
tância, o som de um passarinho arranhava a superficie da pe-
numbra sem penetra-la» (LT, p. 13).
Predomina o eixo sensorial ar/luz (fogo), mas urna
luz gelada e frigida, urna agua letal, urna atmosfera rarefeita
e diafana. Vento, neblina, vapores, cristais, arvores adormecidas
e geladas, bruma, pios negros, ares tensos e perfumados, gritos
sanguinolentos e jovens de galos, cristas vermelhas nas madru-
gadas frias, sustos, raizes ocultas ou castradas, sonhos dispersos,
sons finos, quebradiços e cansados. Sinestesias. O vermelho das
cristas e dos cantos dos galos, neste caso, foge à area semântica
do fogo e, provavelmente, pelo som agudo, pela marca cortante
e agressiva, tenha passado, no texto, à area semântica dos cris-
tais finos, do frio gelado, ligua/ar.
«Um frio inteligente, ldcido e seco percorria o jar-
dim, insu flava-se na carne do corpo. Um grito de café fresco
subia da cozinha misturado ao cheiro suave e ofegante de capim
molhado» (LT, p. 13). Neste livro, tudo que é carne deixa-se
penetrar pelo frio, tudo que é vida humana deixa-se invadir pelo
grit o.

5.3 A CIDADE SITIADA, 1949 "


Em seu terceiro romance, Clarice Lispector fez de
Lucrécia Neves, a protagonista, o reverso, a burla ou a caricatura
de Joana e Virginia. O foco narrativo em terceira pessoa, em
nenhum momento, se identifica com a personagem principal. O
narrador parece olhà-la de longe, de viés, e a linguagem assume
um tom caricato e critico. O universo ficcional de Clarice é,
nesse texto, urna cidade sitiada. Trata-se de urn romance de
espaço determinado e tempo histórico: o subúrbio de São Ge-
raldo, na década de vinte.
Lucrécia Neves percorre um itinerario de seres pia-
nos, sem dimensâo interior. Incapaz de momentos de visâo epif â-

189
nica, todas as músicas sâo substituídas pela banda do coreto, e
os galos perdem a sua nobreza, pois simplesmente «cocoricam»,
ao pôr do sol.
«A Mocinha estremecia de medo de estar viva.
Certas toisas davam o mesmo sinal — a falta de vento — um
cego tocando — o luar na pedra... persignou-se rapidamente en-
quanto um rato gordo se dourava sob o poste. Passos secos soa-
ram. O soldado diminuido pela distância apareceu numa esquina
e sumiu por outra... Scibado era noite de bêbedos. Um pape! es-
tremecia no chäo: entäo ela começou a correr antes que tudo co-
meçasse até encostar-se à porta de casa» (CS, p. 13).
Em vez de regatos louros, dourados pela luz do
sol, aparecem os ratos gordos, dourados pela luz elétrica. Rega-
tos/ratos: a caricatura anagramâtica é evidente. Alias, ante o
perigo da visa() que se anuncia, Lucrécia Neves persigna-se.
As aliteraçöes (Passos secos soaram) mimetizam os sons âridos,
nada repousantes.
Lucrécia Neves nao labe ver, seu modo de olhar
é entortar a cabeça. A transformaçao do subúrbio em cidade mata
todos os simbolos e imagens, e corn eles, os pressâgios e os
Binais. Os cavalos e a moça provinciana e bairrista säo ainda
os últimos vestigios de Sao Geraldo, que, em breve, mudarâ de
nome.
«A moça e um cavalo representavam as duos raças
de construtores que iniciaram a futura metrópole, ambos pode-
riam servir de armas para um seu escudo. A infima funçäo da
mocinha na sua época era uma funçäo arcaica que renasce cada
vez que se forma uma vila, sua historia formou corn es força o
espirito de uma cidade. Näo se poderia saber que reinado ela
representava junto à nova colônia pois que seu trabalho era curto
demais e quase inexplorcível: tudo o que ela via era alguma
toisa» (CS, p. 22).
O processo epifânico é caricaturado pelo modo ex-
terior de ver, e realiza-se urna espécie de parodia da epifania,
que bem pode ser enquadrada na epifania irônica, do tipo joyce-
ano, em Dublinenses.
«A realidade precisa da mocinha para ter uma for-
ma». «O que se vé» — era a sua única vida interior» (CS, p. 22).
Lucrécia ", «a que lucra», pseudo-etimologia assu-
mida pelo contexto, chamar-se-â depois Lucrécia Neves Correia,
adotando o sobrenome burguês do primeiro mando, à espera de
outro, que a sua viuvez, finalmente, lhe promete.

190
«Estava no seu pequeno destino insubstituivel pas-
sar pela grandeza de espirito como por um perigo, e depois de-
cair na riqueza de urna idade de ouro e de escuridto, e depois
perder-se de vista — foi o que sucedeu corn Sao Geraldo» (CS,
p. 22).
Os cavalos também perdem algo de sua grandeza
e, presos aos carros, abdicam da própria natureza livre e sel-
vagem.
«Eles espiavam. Aqueles animais que tinham um
olho para ver de cada lado — nada era visto de frente, e essa
era a noite de São Geraldo, os flancos de um cavalo percorridos
por rcipida contraçto» (CS, p. 28).
Essa espécie de paródia da visao, a incapacidade
de ver, constituem «o estado de sitio» de Sao Geraldo e da pi-6-
pria Lucrécia.
Ela também vé as coisas corno um cavalo: sepa-
radas, como quem tern um olho de um lado e do outro da cara.
Seu namorado Perseu era simplesmente um «cida-
dao», «um dos modos de ser de São Geraldo». Também ele,
um de seus alicerçadores, «somente por ter nascido quando o su-
búrbio também se erguia, apenas por ter urn apelido que so se
tornaria estranho quando urn dia Sto Geraldo mudasse de nome»
(CS, p. 27-8). "
Lucrécia e Perseu nao sabem ver, mas existem para
serem vistos, como a cidade.
Nâo ha um blcqueio da funçâo epifânica, mas a
sua revers-do, de modo a exprimir, pela ironia, quanto custa o
progresso ao homem e como é empobrecedora a vida das gran-
des metrópoles.
Lucrécia casa-se corn um forasteiro rico, para fugir
de Sao Geraldo. Sua viagem, porém, é por terra. Diferente de
Joana, sera esposa submissa e embora deseje a morte do marido,
a liberdade a que aspira nao nasce de sua grandeza interior
aprisionada, mas de sua futilidade. Se Mateus lhe parece grotes-
co, nao é pela agudeza de sua propria visao, mas pelo ângulo:
vindo de urna cidade .menor, Lucrécia fora mal apanhada pela
roda do sistema da metrópole, e «corn a cabeça para baixo e urna
perna saltando fora», espiava ainda bastante bem (CS, p. 123).
Sua vida corn o marido pode resumir-se assim:
«Um adestramento continuo. Ele era masculino e
servil. Servil sem humilhaçâo como urn gladiador que se alugas-
191
se. E ela, sendo muflier, o servia. Enxugava-lhe o suor, alisava-
the os mtisculos. Aviltava-a viver as custas das idas e vindas
e dos treinos de Mateus, estendendo carnisas que a poeira da
cidade logo sujava, ou alimentando-o corn carnes e vinhos. Mas
näo podia sertao fascinar-se por aquela minuciosa ordern, que
ha nzuito parecia ter ultrapassado os motivos, nao podia senti°
gustar os meses a prepara-lo para o combate. Esperando que
um dia enfim alguém esmagasse o seu colosso — e corn horror,
eta ficasse livre» (CS, p. 122).
Quando isso aconteceu, Lucrécia Neves passou a
ser «a viúva»; para ser vista, como tudo na cidade. Para ser exi-
bida, para aparecer em cena.
Como quando, solteira ainda, no sobrado dos bibe-
18s, fazia pose de estatua. «Na posiçao em que estava, Lucrécia
Neves poderia mesnzo ser transportada à praça pública. Falta-
vam-the apenas o sol e a chuva. Para que, coberta de limo, fosse
enfim despercebida pelos habitantes, e enfim vista diariamente
corn inconsciência. Porque era assim que urna estatua pertencia
a unta cidade» (CS, p. 88).
Lucrécia Neves é, pois, um emblema da cidade,
como ja disse o narrador, emblema do espirito suburbano, da
incapacidade de ver, da impossibilidade de ter urna voz, urna
escritura. Dai, cremos, a epigrafe do livro, que é um texto de
Pindaro:
«No céu, aprender é ver;
Na terra, é lembrar-se».
O universo das sensaçóes e das imagens pertence,
segundo a ficcionista, ao paradigma da visäo ou da lembrança?
A cidade sitiada é a terra de todos os homens, isto é, da condiçäo
humana, ou é so a cidade daqueles que degradaram o ver: redu-
ziram-no ao espiar.
No universo de Clarice Lispector, näo parece exis-
tir fugar para qualquer espécie de platonismo. A cidade sitiada
é urna cidade terrestre, mas näo no born sentido do sema terra.
Se aprender, na cidade terrestre, é urna degradaçâo do ver no
lembrar, é porque, neste caso particular, estamos longe do sel-
vagem cornac) da vida, ou a ele chegamos pelos descaminhos
da paródia. Assim, A Cidade Sitiada também serve de contrapon-
to ao primeiro romance de Clarice Lispector. Se houver um aves-
so grotesco da vida (näo a morte, mas a paralisia) ele pode
tatear-se na escritura irânica deste romance singular.

192
5.4 A MAÇA NO ESCURO, 1961 "

A epigrafe é um texto das Upanishads, onde tam-


bém se formula a sintese dos contrârios:
«Criando todas as coisas, ele entrou em tudo.
Entrando em todas as coisas, tornou-se:
o que tern forma e o que é informe;
o que pode ser definido e o que nao pode ser
definido;
o que tem apoio e o que nâo tern apoio;
o que é grosseiro e o que é sutil.
Tornou-se toda espécie de coisas: por isso os sa-
bios chamam-no o real».
A epigrafe jâ anuncia, pelo paradoxo, a coagulaçäo
dos elementos primordiais.
As trés partes desse livro de 442 pâginas assim se
enunciam :
I — Como se faz um hotnem. II — Nascimento
do herói. Ill — A maçä no escuro.
Como forma quase esférica, a maçâ significa urna
totalidade e é entendida, por muitos, como simbolo dos desejos
terrestres, de seu desencadeamento. Isto se deve, sobretudo, à
interpretaçäo generalizada de que a fritta do Paraiso Terrestre
tenha sido a maçâ, embora a Bíblia fale somente de «fritto».
Também devido a essa generalizaçao, a maça tornou-se simbolo
da ciência do bem e do mal, do conhecimento do ser, tal como
Deus o conhece. Conhecimento marcado pela proibiçao de Deus,
que tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para que
este o cultivasse e o guardasse, dando-ihe como preceito:
«Podes corner do fruto de todas as cirvores do
jardim; mas nâo comas do fritto da drvore da ciência do bem e
do mal; porque no dia em que conteres, morrerds indubitavel-
mente» (Gn 2,15).
A serpente, o mais astuto de todos os animais dos
campos que Deus criou, deu porém outras informaçóes e ga-
rantias:
«Oh! nâo! — vós nâo morrereis! Mas Deus bem
sabe que no dia em que comerdes, vossos olhos se abrirao, e
sereis corno deuses, conhecendo o bem e o mal» (Gn 3,4).
Acrescente-se que o fruto era bom para corner, de
agradàvel aspecto e muito apropriado para abrir a inteligéncia...

193
O livro de Clarice Lispector é urna nova escritura
dessa velha tentaçâo paradisiaca em termos de ficçâo. Martim é
uma nova espécie de Adâo, peregrino da linguagem, tentado por
essa maçâ no escuro, que é a palavra...
Na Biblia, no Éden, antes da queda, conhecer os
seres ja se identifica corn o dominio da linguagem. Adäo deu
nome a todos os animais dos campos e a todos os passaros do
céu «e Lodo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse
é o seu verdadeiro nome» (Gn 2,19) . Esse conhecimento era,
portanto, um dom da inocência primordial.
Martim, um homem depois da queda, propóe-se re-
fazer a aventura humana. Nâo podendo recriar o criado, nem
desintegrar as estruturas sociais, Martim inaugura sua propria
vida, praticando um ato liberador, segundo ele; um «crime»,
segundo a linguagem comum; desta forma, se separa do con-
texto social e se assegura a possibilidade de, sozinho, reinventar
as palavras; tendo renunciado aos clichês da linguagem comum,
procura atingir um novo conhecimento dos seres, donde devera
surgir o modo novo de falar.
Seu itinerario inverte o itinerario biblico, porque
ele parte da cidade para o Éden: o espaço mitico da fazenda
isolada, onde vivem Vitória e Ermelinda. Ali, morando num de-
posito, entregue aos trabalhos do campo (terra), ele tenta a
aventura de agarrar uma maçä (terrain) na escuridâo (luz). A
arvore existente na fazenda é uma replica da velha arvore do
conhecimento.
Martim, antes de chegar ao sítio, diz o seu mudo
sermao as pedras do planalto, porque para um homem se fazer,
deve começar do inorgânico, do mineral.
«As grandes e pequenas pedras esperavam. Martim
estava muito confiante porque, näo Bendo seu auditorio mais inte-
ligente que ele, se sentiu â vontade. Alids aquele homem nunca
tivera um auditorio, por estranho que parecesse. E que nu.nca
se lembrara de organizar sua alma em linguagem, ele näo scre-
ditava em falar talvez corn medo de, ao falar, ele proprio termi-
nar por näo reconhecer a mesa sobre a qual comics (ME, p. 49).
Porque a linguagem denotativa trai o ser, e segui-la é, frequen-
temente, ser enganado, näo conhecer mais a realidade.
Na fazenda, atras do deposito, ha um terreno bal-
dio, cheio de plantas rasteiras e raizes, que lhe dâo o conheci-
mento do reino vegetal. Martim, afinal, «descortinas, e parece-

194
lhe que o terreno vem da era terciâria, antes que o homem habi-
tasse o mundo:
«E guiado por urna obstinaçäo de sonâmbulo, corno
se o tremor incerto de urna agulha de bússola o chamasse — ia
enfim ao terreno tercidrio de vida apenas fundamental, a par
da sua. E corn um suspiro de quem voltasse a si mesmo, encon-
trava a sombra vacilante, o movimento dos ratos, as grossas
plantas. Naquele poreio vegetal, que a luz mal nimbava, o homem
se refugiava calado e bruto como se somente no principio mais
grosseiro do mundo aquela coisa que ele era coubesse: no ter-
reno raste jante a harmonia feita de poucos elementos näo o ultra-
passava nem ao seu silêncio. O silêncio das plantas estava no
seu proprio diapaseio: ele grunhia aprovando. Ele que näo tinha
urna palavra a dizer. E que näo queria falar nunca mais. Ele
que em greve deixara de ser uma pessoa. No seu terreno, ali
sentado, ficava gozando o vasto vazio de si mesmo. Esse modo
de näo entender era o primeiro mistério de que ele fazia parte
inextricdvel» (ME, p. 104).
Chamado a trabalhar no curral das vacas, Martim
contata corn o reino animal e, depois, sobre a montanha, mon-
tado num cavalo, «descortina» o mundo e compreende que é
um homem.
Quando entra no mundo animal, Martim tern de
imitar o modo de ver dos bichon, quase tomar-lhes a forma,
para captar sua linguagem.
«No começo nada viu, como quando se entra numa
grota. Mas as vacas habituadas à obscuridade haviam percebido
o estranho. E ele sentiu no corpo todo que seu corpo estava sen-
do experimentado pelas vacas: estas começaram a mugir deva-
gar e moviam as pestas sem ao menos olhd-lo com aquela falta
de necessidade de ver para saber que os animais têm, como se
jci tivessem atravessado a infinita extensào da propria subjeti-
vidade a ponto de alcançarem o outro lado: a perfeita objeti-
vidade que näo precisa mais ser demonstrada. Enquanto ele, no
curral, se reduzira ao fraco homem: essa coisa dúbia que nunca
foi de allia margeur à outra» (ME, p. 123).
Todas as etapas desse longo «descortinar» das ca-
madas do ser acompanham-se de urna sensaçâo de plenitude e
de beleza. Martim näo f alava e näo pensava, senäo sob forma de
ansia, e portanto vivia na calma profundidade do mistério, na
escuridäo.

195
«E era dela que vinha a escura flama de sua vida.
Se urn homem tocasse Irma vez a escuridâo, oferecendo-lhe em
troca a propria escuridao — e ele a tocara — entao os atos
perderiam o erro, e ele poderia talvez um dia voltar para a ci-
dade e se sentar num restaurante com grande harmonia. Ou
escovar os dentes sem se cornprometer. Um homem tinha urna
vez que desistir. E só entao poderia viver, tomo ele agora vivia
na laténcia das toisas» (ME, p. 138).
Neste livro, se recupera novamente o processo de
visäo epifânica, substituido pela epifania critica em A Cidade
Sitiada. Esse processo de revelaçäo do ser, de visäo ins-
tantânea do nucleo da existência, é o modo novo de Martim
«descortinar» e conhecer. O descortino é, afinal, o procedimento
epifânico. Alias foi o termo usado por Benedito Nunes quando
designou a epifania, pela primeira vez. O narrador de A Maçâ
no Escuro sabe defini-lo magistralmente:
«E a toisa se fez de um modo tao impossivel —
que na impossibilidade estava a dura garra da beleza. São mo-
mentos que nâo se narram, acontecem entre trens que passam
ou no ar que desperta nosso rosto e nos da o nosso final tama-
nho, e entao por um instante somos a quarta dimensâo do que
existe, seto momentos que nao contam» (ME, p. 150) .
O mundo da linguagem, porém, näo é fàcil de re-
criar. Lentamente, Martim procura as primeiras e impronunciadas
palavras. Mas falha sempre e acaba, corn alívio, por desistir de
escrever. O contacto carnal com a mulher lhe dâ alegria e segu-
rança e seu trabalho na fazenda parece que pode perpetuar-se.
O homem deseja permanecer no eden. Porém Vitória, a dona
da fazenda, entrega Martim à policia. Seu «crime» se revela um
«crime falhado» : a vítima, sua propria esposa, näo morrera.
O herói que nasce, na segunda parte do livro, é
um herói por desgaste, por descamaçäo das possíveis percepçóes
que tenha o leitor do que seja um herói ou mesmo um anti-herói.
Martim näo é Peri, evidentemente; mas também näo é o Leonardo
das Memórias de um Sargento de Milicias, nem Macunaima.
Sua fuga o leva a espaços diversos «no coraçäo
do Brasil» (o hotel, o planalto das pedras, a fazenda, o bosque
onde se esconde, à noite), mas o que verdadeiramente Martim
percorre é um espaço interior: o de sua propria experiência, em
busca do ser da linguagem. Terra, âgua, fogo e ar se fundem
nessa escritura epifânica, que indaga, ao mesmo tempo que se
revela.

196
Diante dos guardas que vêm prendê-lo, Martim re-
conhece que tentou urna aventura impossivel. Sera reabsorvido
pelo sistema, pela linguagem corrente e seu ato recebera o nome
de «crime». Entretanto, prisioneiro do sistema geral, sua aven-
tura näo foi inútil. Se näo recriou o mundo, aprendeu a ver, ele
que antes era um estatistico e sempre trabalhara so corn números
neutros.
O narrador termina o romance levando Martim a
dirigir-se aos quatro homens, que vieram prendê-lo. Usa o verbo
na terceira pessoa do plural, esperando que eles estejam certos
do que va() fazer. Na primeira pessoa do plural, faz urna consi-
deraçäo geral sobre a condiçäo do homem culpado, que necessita
de misericórdia. E na primeira pessoa do singular define a fome
de toda a narrativa, a fome dessa triturada escritura.
«Porque afinal näo somos tao culpados, somos mais
estúpidos que culpados. Com misericórdia também, pois. Em
nome de Deus, espero que vocês saibam o que estäo fazendo.
Porque eu, meu filho, eu só tenho fame. E esse modo instcivel
de pegar no escuro uma maçä — sem que ela caio» (ME,
p. 441-2) .
Martim é da estirpe de Joana e Virginia. Apenas,
apenas muito menos heróico, menos passional. A experiência Ihe
ensinara seus proprios limites.
Esse livro é, portanto, antes mesmo de Urna Apren-
dizagem e de A Paixäo segundo G.H., também todo ele um itine-
rario de aprender e sofrer.
O narrador, que jamais se descola do protagonista,
deduz das experiências de Martim, usando a D pessoa do plural,
conclusöes gerais a respeito da experiência humana, pela primeira
vez, largamente explicitas, na obra da romancista:
«Assim, de aproximaçäo penosa em aproximaçäo
penosa — fendo Martim nesse caminhar urn sentimento de sofri-
mento e de conquista — ele terminou se perguntando se tudo o
que ele enfim conseguira pensar, quando pensara, também näo
teria sido apenas por incapacidade de pensar urna outra Boisa,
nés que aludimos tanto corn o rndximo de objetividade. E se sua
vida toda näo feria sido apenas alustio. Seria essa a nossa
xima concrefizaçäo: tentar aludir ao que em silêncio sabemos?»
(ME, p. 134).
Diante do pape! vazio, Martini aceita que näo saiba
usar palavras. Aceita que näo seja capaz de criar, assume a

197
experiência de «näo poder». Sofrendo diante do papel vazio,
Martim quase apela para Deus; näo o faz, porque näo tern crença
nem o hâbito de rezar. Desiste de escrever.
«Desistira. Sua impressäo era a de se ter salvo
por um triz. Grande era o seu alivio por ter escapado incolume
da oca escuridäo» (ME, p. 135). Essa «oca escuridäo» é, por-
tanto, o mundo da escritura, onde Martim näo consegue pene-
trar. Ele é um homem que chega ao mâximo de fazer anotaçóes
para o uso diario.
«Tirou os óculos, esfregou os olhos cansados, botou
os óculos de novo e aliviado, abandonando afinal o que o espirito
näo the quisera dar, ele se sentiu pronto para tarefa mais hu-
milde. Modesto, aplicado, miope, simplesmente anotou: Coisas
que preciso fazer» (Me, p. 135) .
Na conversa final corn o pai, que lhe aparece como
se o fantasma que assombra Hamlet lhe surgisse, extravagante-
mente, no meio do monologo sobre «ser ou nâo ser», a linguagem
assume um tom de parodia, que desconcerta o leitor. A propria
epifania é ironicamente referenciada, no texto:
— «Vocé tern descortinado» muito ultimamente,
litho?
— Tenho, pai, disse contrafeito corn a intrusäo de
intimidade, toda vez que o pai quisera «compreendê-lo», deixa-
ra-o constrangido.
— Como veto suas relaçóes sexuais, meu f ilho?
— Muito bem, respondeu com vontade de mandar
o pai para o inferno de onde o tirara.
— Você sabe que o amor é cego, que quern ama
o feio bonito Ihe parece, e que seria do amarelo se näo fosse
o mau gosto? e que em casa de ferreiro espeto de pau, e quem
näo tern ceto caça corn gato, e boca-näo-erra? disse o pai des-
carrilhando um pouco mais, näo faltava muito para começar a
contar o que fazia corn mulheres antes naturalmente de ser casa-
do corn sua mat,. Você sabe que esperança é duro combate que
aos fracos abate, e aos fortes, etc.» (ME, p. 256).
Esse recurso aos provérbios que constituem a velha
sabedoria popular — antes de qualquer pesquisa sobre a lingua-
gem, — aos versos românticos do Indianismo, no final de um
livro que acumulou paginas sobre paginas, tentando traçar um
itinerario da propria enunciaçäo do mundo, näo nos diz, também
pela ironia, que tal tarefa é impossivel? Na linha desta impla-

198
cavel pesquisa, depois deste romance-núcleo, só nos resta en-
frentar o itinerario de A Paixäo.
Näo nos podemos furtar a urna aproximaçäo do
título e do final de A Maçâ, corn um texto da «Psicologia da
composiçaos de Joao Cabral:

«Cultivar o deserto
como um pomar às avessas:
entäo nada mais
destila; evapora;
onde for maçä
resta urna fome»";

O final de A Maçä no Escuro, ja citado anteriormente:


«Porque eu, meu filho, eu so tenho fome. E esse
modo instdvel de pegar no escuro uma maçä — sem que ela cala»
(ME, p. 442).
Percebemos a marca verde da terra presente em
pomar e maçä, a marca liquida da cgua em destila e a marca
sutil do ar em evapora, dando lugar ao seco e fogo do deserto,
que o escritor e o poeta cultivam «como um pomar às avessas».
Sem agua, sem ar, sem húmus, sem fruto, para ambos só resta
«uma fome». A macâ gode ser a palavra. Mas a fome, para Joäo
Cabral, é a da palavra-exata; para Clarice Lispector, sendo im-
possível dizer o ser, a palavra aspira ao silêncio, itinerario e
meta de A Paixäo segundo G.H.

5.5 A PAIXAO SEGUNDO G.H., 1964

Passio, paixäo, sofrimento. Näo temos mais prota-


gonista. Somente um G.H., um quarto como espaço e uma barata
como ponto de partida para uma longa introspecçäo, como mé-
todo empirico de indagaçao metafisica. O livro näo tern dialogos
e um interlocutor imaginario apenas sustenta a possibilidade da
narrativa.
Pela primeira vez, a autora se dirige aos seus pos-
síveis leitores: «Este livro é como um livro qualquer. Mas eu fica-
ria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma id formada.
Aquelas que sabem que a aproximaçäo, do que quer que se ja,
se faz gradualmente e penosamente, atravessando inclusive o

199
oposto daquilo de que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, sd
elas, entenderâo bem devagar que este livro nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a
pouco uma alegria dificil; mas chama-se alegria» (PSCH, p. 5).
A Paixäo começa e termina com sein travessòes;
entre eles a narrativa, cujas primeiras palavras indicam busca:
« estou procurando, estou pro-
curando»; e as últimas significam adoraçäo diante da vida que
lhe é dada, sem que tenha podido compreendê-la:
«E entâo adoro » (PSGH, p. 217).
Trata-se de seu primeiro romance em primeira Pes-
soa. G.H. usa urna linguagem compacta, que se encadeia, logica-
mente, na direçäo que ela busca.
A paixäo de G.H. é o sofrimento para alcançar a
despersonalizaçäo da mudez; a paixäo segundo G.H., o sofrimen-
to de narrar essa experiência vital. Se a protagonista faz da ba-
rata o seu foto de meditaçäo é porque, querendo atingir a mate-
ria-prima da vida, escolhe um inseto que existe na terra, ha mi-.
Ihóes de anos. Depois de ter construido urna personalidade de
artista amadora, G.H. percebe que a missäo secreta de sua vida
é, humildemente, assumir a propria mudez. «É exatamente atra-
vés do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a
propria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitci-la como
a possivel linguagem» (PSGH, p. 211).
Viver essa condiçäo é a paixâo, é a dor näo como
um acontecimento fortuito, mas como a propria natureza do
homem.
«Ah, mas para se chegar à mudez, que grande es-
f orco de voz. Minha voz é o modo como you buscar a realidade;
a realidade, antes de minha linguagem, existe como um pensa-
mento que nâo se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida
a precisar saber o que o pensamento pensa. A realidade antecede
a voz que a procura, mas como a terra antecede a drvore, mas
como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a
visâo do mar, a vida antecede o amor, a matéria antecede o
corpo, e por sua vez a linguagem um dia terri antecedido a posse
do silêncio» (PSGH, p. 212).
Se tomarmos as duas proposiçóes extremas dessa
cadeia, que passa pela epifania (como o mar antecede a visâo
do mar), temos de constatar que se arma a seguinte equaçäo:
a realidade esta para a voz (linguagem), como a linguagem (voz)
esta para o silêncio.

200
Recuperando o que ja foi sugerido a respeito de
A Maçâ no Escuro, o narrador sabe que para possuir as coisas é
preciso nomeà-Ias. Mas a sua longa e original aprendizagem
ensinou-lhe o paradoxo de que, apesar disso, a linguagem trai
o ser; porém ela é o único esforço possível ao homem, o único
modo de se atingir o que jamais se consegue dizer, isto é, o
indizivel. O indizivel é, finalmente, a posse do silêncio pela lin-
guagem. «Eu tenho à medida que designo — e este é o esplendor
de se ter urna linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida
que nâo consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a lin-
guagem é o modo como you busca-la — e como nâo acho. Mas
é do buscar e nâo achar que nasce o que eu nâo conhecia, e que
instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforco huma-
no. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto corn as
mâos vazias. Mas — volto corn o indizivel. O indizivel só me
poderci ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só
quando falba a construçâo, é que obtenho o que ela nâo conse-
guiu» (PSGH, p. 212).
Os pragmàticos poderäo dizer: mas para que tan-
tos itineràrios? Por que dilacerar-se nessa tentativa de dizer o
que näo é possível dizer? Por que esta é a paixäo do homem,
a sua via-crucis, a matéria de sua vida.
«A insisténcia é o nosso esforco, a desistência é o
premio. A este só se chega quando se experimentou o poder de
construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência.
A desistência tern que ser urna escolha. Desistir é a escolha mais
sagrada de urna vida. Desistir é o verdadeiro instante humano.
E só esta é a glória própria de minha condiçäo.
A desistência é urna revelaçäo» (PSGH, p. 213).
Mais urna vez se constata que o paradoxo é urna
das chaves deste estilo, que mimetiza as contradiçóes do ser e
da linguagem. Neste livro, Clarice Lispector usa um recurso téc-
nico original: começa um capitulo corn a última frase do capitulo
anterior. Dà assim à sua introspecçäo um aspecto de ininterrupta
continuidade e à voz de sua narrativa, urna tonalidade de cançäo,
como as velhas cantigas medievais. Este processo ao nivei do
enunciado, que desenha uma linha curva e continua ao longo da
narrativa, confere ao discurso um traçado, que graficamente sig-
nifica uma trajetória. E a trajetória é, segundo G.H., o que um
homem näo pode deixar de viver.
A trajetória de G.H. termina no silêncio e no vazio,
na desistência da linguagem, como forma de adesäo ao ser. G.H.

201
se despersonaliza, perde sua dimensâo humana, para chegar à
maior exteriorizaçäo possível, à maior objetivaçäo.
Deixando de ser ela mesma, vive do que näo se
pronuncia mais. A missäo secreta de sua vida é essa «deseroiza-
çäo» de si mesma. Näo ha mais heróis da narrativa. Perdendo
o proprio nome, G.H. identifica-se corn todos os seres.
Realiza-se o que a epigrafe de Berenson tinha pre-
figurado:
«lima viagem plena pode ser aquela que alcane
urna identificaçao tao completa corn a näo-identidade que näo
ha nenhuma identidade para morrer» (PSGH, p. 6).
Por meio do «malogro da voz» (ar) (depois de ter
construido urna escritura), é que G.H. ouvirà a propria mudez
e aceità-la-ä corno a possível linguagem do ser humano, que as-
sume sua paixäo. Só depois disso é que a natureza humana de
G.H. sera reconhecida também, corn a dor como condiçäo. Viver
a dor densa desistência é a paixäo do homem. «A condiçäo hu-
mana é a paixäo de Cristo» (PSGH, p. 212).
Para chegar à mudez foi necessario um grande es-
forço de voz. A missäo secreta de G.H., que nasceu disso in-
i cumbida, foi exatamente descobrir o que o pensamento pensa;
isto é, o pensamento depois da linguagem. Porque antes dela, a
propria realidade existe como um pensamento que näo se pensa.
A voz que procura a realidade, o ser, é antecedida por ela. O
ser é a raiz da voz e da linguagem, assim como esta, um dia,
antecederâ a posse do silêncio.
G.H. acaba por considerar a subjetividade, o «eu»,
como «um dos espasmos instantâneos do mundo» (PSGH, p. 216).
Eliminada a palavra, resta o silêncio. Ainda urna
vez, impöe-se a aproximaçäo corn os versos de Joao Cabral:
«onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio»."
O itinerario de G.H. acaba no vazio, contra suas
próprias expectativas. As visöes anteriores tinham sido do tama-
nho de sua medida humana, de seus cuidados, suas previsöes
condicionavam o que ela vena, fechando-lhe o mundo.
O espaço em que se da a sua descoberta, o quarto
da empregada, que contrasta corn todo o aconchegante e som-

202
breado do apartamento, é um sarcofago, um escrinio, urna cama-
ra ardente, um lugar esturricado de luz e sol, urna espécie de
recorte do deserto, um forno seco.
Ali, encurralada pelo sol, G.H. se confronta corn
urna barata tao velha corno toda a matéria viva do mundo, corno
um «peixe fossilizado», «corno salamandras e quimeras e grifos
e leviatas» (PSGH, p. 64), todos bichos da terra.
No dorso da barata «tao antiga corno urna lenda»
se superp6em cascas e cascas pardas.
«Talvez as cascas fossem as asas (ar), mas entâo
ela deve ser feita de camadas e camadas finas de asas compri-
midas até formar aquele corpo compacto» (PSGH, p. 65).
A experiência do pensar que pertence ao eixo fogo/
ar deve guiar essa pesquisa da natureza última do ser e da
existência humana. No dilema instaurado pelo universo ficcional
de Clarice Lispector entre pensar e sentir, linguagem e vida (fogo/
ar versus terra/cigua), mais urna vez se privilegiam as forças
da vida.
O silêncio que se instaura depois de G.H. suportar
a experiência de comer da massa branca da barata e a paixao
de descrevê-la, esta do lado da imanência, nao da transcendên-
cia. Se ha luz é um «sol parado», uma luz estatica e vazia, urna
espécie de Nordeste no minarete daquele prédio de mais de 13
andares. No inferno da matéria viva, G.H. entrou por uma porta
estreita:
«A barata que enchia o quarto de vibraçâo enfim
aberta, as vibraçöes de seus guizos de cascavel no deserto»
(PSGH, p. 69). G.H. chegara ao irredutível, ao inexpressivo e
acabou por sentir no «hieróglifo da barata lenta a grafia do
Extremo Oriente». A desistencia, o nao-ser, o nada. Chegara à
imanência total, na quai Deus, o «eu» e o mundo sâo urna coisa
so. Chegara ao insosso da matéria, ao osso do ser. «Eu chegara
ao nada, e o nada era vivo e timido». Terra e dgua.

5.6 UMA APRENDIZAGEM ou O LIVRO DOS PRAZERES, 1969


Pela segunda vez, Clarice Lispector sente a neces-
sidade de dizer alguma coisa ao leitor, ao abrir o seu livro. Mas
agora o faz em forma de nota:
«Este livro se pediu uma liberdade maior que tive
medo de dar. Ele esta muito acima de mim. Humildemente tentei
escreve-lo. Eu sou mais forte do que eu».

203
Depois de A Paixâo, o Apocalipse, agora como
epigrafe, prometendo mostrar as coisas que ainda hâo de vir.
E também Augusto dos Anjos para provar que a mais alta ex-
pressâo da dor consiste essencialmente na alegria; e Joana d'Arc,
a das vozes, segundo o Oratório dramatico de Paul Claudel, para
assumir o medo de morrer e encontrar, na alegria, a força contra
a morte (LP, p. 5).
Neste livro, podem confirmar-se os ja apontados
traços biblicos da linguagem de Clarice Lispector e as imagens
da agua e do mar. Urna aprendizagem orientada, desta vez por
um homem, Ulisses, que embora um pouco afetado, como pro-
fessor de filosofia, é o guia de L6ri; esta, como a samaritana do
Evangelho, ja tivera cinco maridos (amantes) e nâo aprendera
a amar.
A maçâ perde aqui o seu lugar na escuridâo; Lóri
a contempla sobre a mesa, na sua beleza escarlate e acaba por
mordê-la. Mas, ao contrario de Eva, Lóri conhece o bem e nâo
só o mal, que ja conhecia antes. Em vez de ser expulsa do pa-
raíso, é nele introduzida.
Ha entâo um breve capítulo sobre o «estado de
graça,.
Esse estado de graça, alias, é a mesma glória da
epifania.
«As descobertas naquele estado eram indiziveis e
incomunicciveis. Ela se manteve sentada, quieta, silenciosa, era
como urna anunciaçao. Nao rendo porém precedida pelos anjos,
que, supunha ela, antecediam a graça dos santos. Mas era como
se o anjo da vida viesse anunciar-lhe o mundo» (LP, p. 148).
Urna Aprendizagem também dialoga corn A Maça
no Escuro, sob forma de contraponto. Além disso, a pergunta
fundamental de Lóri é a mesma de Joana: quem sou eu? Ela
atravessa um longo itinerario, marcado por semanas e estaçóes,
até descobrir a própria identidade. Nesse itinerario, a agua e a
noite sâo fundamentals.
Lóri passa por rituais de agua ao entrar no mar
e na piscina. É numa noite de chuva que se da seu encontro final
corn Ulisses. Depois de ama-lo e ser amada, Lori faz o mesmo
gesto que um dia fez Joana: «Estendeu o braço no escuro e no
escuro sua mao tocou no peito nu do homem adormecido: ela
assim o criava pela sua propria mao e fazia corn que esta para
sempre guardasse na pele a gravaçâo de viver, (LP, p. 168).

204
L6ri, porém, nâo perdera Ulisses logo depois, como Joana per-
deu Otavio ou ele a perdeu. Lóri e Ulisses serâo um so, como um
casai edênico, antes de nenhuma queda. Vigiando o sono de seu
grande amante, ela chega a vislumbrar que é dela a fruta do
prazer e do amor.
«Ou se new era, que acabara de tocs -la. Era uma
fruta enorme, escarlate e pesada que ficava suspensa no espaço
escuro, brilhando de uma quase luz de ouro» (LP, p. 168). Lóri
mordeu a fruta embora seu próprio valor social continuasse a
ser o de urna «mulher desintegrada na sociedade brasileira», «na
burguesia da classe média*, ela conquistara a liberdade do amor
e do sexo. Ambos se deram um ao outro a própria solidäo, pois
esta é o mais intimo de si mesmo que se pode dar.
Lóri, que sempre fora mais «lunar» que «solar* e
nunca soubera usar palavras, chega ao limite de si mesma e de
sua capacidade de ser feliz.
Ulisses, sob o impacto do amor, perde seu ar pro-
fessoral e sua voz didatica se cala para sempre, junto da mulher.
O silêncio de Urna Aprendizagem é um silêncio-pleno e esta nas
antipodas do silêncio de G.H. «A mais premente necessidade de
um ser humano era tornar-se um ser humano» (LP, p. 29).

5.7 AGUA VIVA, 1973

,4gua Viva que se chamou primeiro, quando era


ainda um livro de 280 paginas, «objeto gritante», pode ser o
super-icone-síntese das imagens recorrentes no estilo de Clarice
Lispector, que dela diz: é «coisa que borbulha na fonte*. "
também medusa, corpo mole, gelatinoso, trans-
parente e sem consistência, urticante, provida de pêlos pungentes
nos tentaculos marginais, corn os quais da picadas ardidas na
pele do homem e dos animais, chegando a causar queimaduras
dolorosas. " É, portanto, agua, mar, medusa, fogo, matéria viva
escaldante, plasma plastico e cromatico.
Clarice retoma suas primitivas raizes, mais livre,
mais desimpedida, aderente quanto é possivel ao discurso, ao de-
senho do texto, que aspira a ser pintura, música, fotografia, es-
cultura, significante, puro jogo de sons e de formas...
«Lê entâo o meu invento de pura vibraçâo sem
significaçao sendo o de cada esfuziante silaba, lê o que agora
205
se segue: «corn o correr dos séculos perdi o segredo do Egito,
quando eu me movia em longitude, latitude e altitude corn açao
energética dos elétrons, protons, neutrons, — no fascicolo que
é a palavra e a sua sombra. Isso que te escrevi é um desenho
eletrônico e nâo tem passado ou futuro: é simplesmente ja»
(AV, p. 12).
A pintura da capa do livro, segundo a epigrafe
de Michel Seuphor escolhida pela autora, nâo ilustra nenhum
objeto e quer parecer-se corn a música. Pintura-evocaçäo de so-
nhos que se tornam pensamentos, de traços que se tornam exis-
tência.
«Ao escrever nâo posso fabricar como na pintura,
quando fabrico artesanalmente urna cor. Mas estou tentando es-
crever-te corn o corpo todo, enviando urna seta que se finca no
ponto tenro e nevrcilgico da palavra. Meu corpo incognito te diz:
dinossauros, ictiossauros e plessiossauros, corn sentido apenas
auditivo, sem que por isso se tornem palha ceca, e sim timida.
Nâo pinto idéias, pinto o mais inatingivel «para sempre». Ou
«para nunca», é o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E
antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder
pegar corn a mélo a palavra» (AV, p. 13).
Sublinha-se a consciência da concretude da lingua-
gem, a abordagem direta do ato criativo, enquanto ele se faz,
espontâneo e critico, rigorosamente distante das facilidades orals
da linguagem popular, plasticamente próximo das fontes mesmas
do ato de escrever. Dura escritura. Paisagem de sons e de sonhos,
música e fotografia, tentativa semiotica de se exprimir a si
mesma. "
«Quero captar o meu é. E canto aleluia para o
ar como faz o pdssaro. E meu canto é de ninguém» (AV, p. 10).
«... escrevo redondo, enovelado e tepido, mas ès
vezes frigido como os instantes frescos, ägua do riacho que treme
sempre por si mesma. O que pintei nessa tela é possivel de ser
fraseado em palavras?» «A palavra é a minha quarta dimensâo»
(AV, p. 11) .
Esse «eu» narrador ouve música corn o tato, apóia
a mäo na eletrola e a mâo espraia ondas pelo seu corpo: «assim
ouço a eletricidade da vibraçâo, substrato último no dominio da
realidade, e o mundo treme nas minhas maos» (AV, p. 12). As
palavras também tremem, porque devem exprimir essa vibraçäo.

206
«Escrevo-te como exercicio de esboços antes de
pintar. Vejo palavras». «Vivo a cerimônia da iniciaçäo da palavra
e meus gestos scio hierciticos e triangulares» (AV, p. 21).
As imagens de «Perto do Coraçdo Selvagem» re-
tornam como significantes recortados nesta escritura inaugural.
«Sim, esta é a vida vista pela vida. Mas de repente esqueço 0
como captar o que acontece, nâo sei captar o que existe seno
vivendo aqui cada toisa que surgir e näo importa o que: estou
quase livre de meus erros. Deixo o cavalo livre correr fogoso.
Eu, que troto nervosa e só a realidade me delimita» (AV, p. 21).
«E quando o dia chega ao fim ouço os grilos e
torno-me toda repleta e ininteligivel» (AV, p. 21).
dgua Viva, um texto, uma escritura, a morte do
Onero e da literatura?
«Para a semiótica, a literatura näo existe. Ela näo
existe enquanto uma linguagem igual as outras, e, ainda menos,
como objeto estético. Ela é urna pratica semiótica particular,
detentora da vantagem de tornar mais apreensivel que outras
aquela problematica da produçäo de sentido que uma semiotica
nova se coloca e, conseqüentemente, só tem interesse na medida
em que ela (a «literatura») é considerada em sua irredutibilidade
ao objeto da linguistica normativa (da palavra codificada e de-
notativa)».
O entrevistador de Textura pergunta a Clarice Lis-
pector:
- «E a literatura, como vai?
— O Sabino diz que a Literatura acabou, näo é?
Dostoiévski seria hoje um grande reporter... Para mim, näo
acabou näo». "
É difícil resistir à tentaçäo de entrar em tal espé-
cie de dialogo. O texto de dgua Viva, visto como produçäo, como
escritura, repóe a questao critica em termos de criaçdo.
«Perdi o medo da simetria, depois da desordem da
inspiraçäo» (AV, p. 91).
A narrativa tenta «fotografar o perfume». Sabe que
«escrever é frustrador», näo tern enredo de vida, é «inopinada-
mente fragmentàrio». Sua historia é viver (Cf. AV, p. 87).
«Escrevo-te este fac-simile de livro, o livro de quem
näo sabe escrever; mas é que no dominio mais leve da fata quase
ndo sei fatar. Sobretudo falar-te por escrito, eu me habituei a
que fosses a audiência, embora distraida, de minha voz. Quando
207
pinto respeito o material que uso, respeito-lhe o primordial in-
linto. Entâo quando te escrevo respeito as silabas» (AV, p. 65).
Em Agua Viva existe a ansia de que o tempo da
escritura se identifique coin o tempo da leitura. A agonia/êxtase
de escrever perpassa a linguagem desse livro, e sua vibraçâo se
percebe como a de um som, que se ouvisse com as mâos. «Ouvi o
«Pcíssaro de foga» — e afoguei-me inteira» (AV, p. 71). A
narradora toma conta do mundo; escrever é nascer incumbida, é
ter a missâo de tornar conta da vida. «Repare que nâo menciono
minhas impressóes emotivas: lucidamente falo de algumas das
milhares de toisas e pessoas das quais tomo conta. Também nâo
se trata de emprego pois dinheiro nolo ganho por isto. Fico ape-
nas sabendo como é o mundo» (AV, p. 73).
A narradora de Agua Viva, As vezes, pede licença
para morrer. Morrer é deixar de escrever. Escrever é viver.
«Penso que agora terei que pedir licença para mor-
rer um pouco. Com licença — sim? Neto demoro. Obrigada.
Nâo. Nâo consegui morrer. Termino aqui
esta «coisa-palavra» por urn ato voluntdrio? Ainda nâo» (AV,
p. 78).
A escritura deseja ser música; escreve-se «em con-
tralto», «negro-espiritual», corn «coro e velas acesas». Trans-
figura-se a realidade em ficçâo, em dissonâncias harmoniosas.
«Quero na música e no que te escrevo e no que
pinto, quero traços geométricos que se cruzam no ar e formam
urna desarmonia que eu entendo» (AV, p. 79).
O improviso que é Agua Viva só termina, porque
a narradora decide deliberadamente, por ato voluntàrio, encerrâ-
lo, isto é, morrer um pouco.

5.8 A HORA DA ESTRELA, 1977

Este livro dialoga corn todo o universo ficcional


de Clarice Lispector, e, particularmente, contraponteia corn Agua
Viva. Ninguém espere do livro, avisa o narrador, Rodrigo S.M.,
requintes, brilho de estrelas: «(...) nada cintilard, trata-se de
matéria opaca e por sua própria natureza desprezivel por todos»
(HE, p. 21).
A estrela de que se trata é «estrela de cinema»
e so aparece mesmo na hora da morte. Essa é a hora da estrela.

208
Repontam, neste texto, questionadas, ironizadas e
sofridas, as perplexidades da narrativa moderna, em geral, e as
de ficçäo clariceana, em particular. Para näo vair no excesso de
citar todo esse pequenino grande livro de 104 paginas (o menor
de Clarice Lispector), façamos urna resenha didâtica dos pro-
blemas:
1. A fabula e o material da narrativa: sera urna «história exterior
e explicita». Um relato, um registro de fatos. Contra seus
hâbitos, o narrador apaixonou-se por fatos. Acabarä, porém,
por cansar-se deles: sac) banais e definíveis. Nos interstícios
da narrativa, o que fica mesmo é o «sussurro». «Os fatos säo
sonoros, mas entre os fatos ha um sussurro. É o sussurro que
me impressiona» (HE, p. 31).
Repete-se a pergunta, jâ formulada, sob outro prisma, em
Perto do Coraçäo Selvagem: «Sera mesmo que a açäo ultra-
passa a palavra?* (HE, p. 22). 0 material basico da escritura
é a palavra. 1r uma história corn um segredo dentro. «Assim
é que esta historia serd feita de palavras que se agrupam em
f rases e destar se evola um sentido secreto que ultrapassa pa-
lavras e frases» (HE, p. 19). A historia säo as fracas aventu-
ras de mita moça alagoana «numa cidade toda feita contra
ela», o Rio de Janeiro.
2. O tempo: deve ser cronológico e linear. O tempo embaraça o
narrador, que preferiria começar pelo fim. «SO näo initio pelo
fim que justificaria o começo — tomo a morte parece dizer
sobre a vida — porque preciso registrar os fatos anteceden-
tes» (1-1E, p. 16). Depois de muitas hesitaçbes, em que o nar-
rador mais se narra do que faz progredir a açäo da narrativa,
ele acaba começando pelo meio, quando a moça nordestina
recebe o aviso de despedida do emprego e vai refugiar-se no
banheiro. Assim, o narrador projeta respeitar o tempo do re16-
gio, caminhar paulatinamente, mas luta contra hâbitos invete-
rados. Afinal, sob outro nome, é da estirpe do narrador de
Perto do Coraçäo Selvagem e de todos os outros livros de
Clarice Lispector, nos quais o tempo narrativo sofreu as trans-
formaçóes que ja sublinhamos. Como em Agua Viva, ha o in-
tento de que o tempo da escritura seja o mesmo da leitura:
«Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido»
(HE, p. 16).
3. Perso.nagens: corn «falso livre-arbitrio», o narrador determina
que sejam sete. O mundo de Macabéa, a moça nordestina,

209
1
protagonista, é composto pela tia morta; Glória, a colega,
que termina por roubar-lhe o namorado (Olimpico de Jesus),
Seu Raimundo (o paträo) e as trés moças, as trés Marias,
que repartem o quarto corn Macabéa.
Ja säo oito personagens. Sem contar que o narrador é um dos
principais. Existe ainda o medico, a cartomante, o rico ocupante
do Mercedes Benz que atropela Macabéa, e o personagem
preferido:
«A morte que é vesta historia o meu personagem prediteto»?
(HE, p. 101).
Macabéa, a alagoana, é feita de matéria rala, quase impon-
deràvel. Tern o heroismo dos seul irmäos biblicos, os sete
macabeus. Seu nome abreviado Maca é, graficamente, quase
idéntico à Mara, sem os adornos sinuosos do til e da cedilha,
que situam aquela fruta na escuridäo nasal e sibiliante dos bos-
ques e das tentaçóes. Maca é nordestina, toda fome e deserto.
«Logo ela, Maca? Vê se te manca!» diz-Ihe Glória, a amiga
oxigenada, quando Macabéa Ihe confessa que queria mesmo
era parecer-se com Marylin Monroe, embora, paradoxalmente,
em sua pobreza e condiçäo, admirasse o rosto de Greta Garbo.
Estrela de cinema, ela s6 o sera mesmo no fim, quando tiver
de viver, sem nenhum ensaio, a morte.
Mais urna vez, reponta urna imagem recorrente na ficçäo de
Clarice Lispector: a moça e o cavalo. No instante em que o
transatlântico (o Mercedes amarelo) pegou-a, «neste mesmo
instante em algum único lugar do mundo um cavalo corno
resposta empinou-se em gargalhada de relincho» (HE, p. 95).
A moça morta, deitada, «era tao grande como um cavalo mor-
to» (HE, p. 103). Personagem coletiva é o nordestino, «(...)
essa raça and teimosa que um dia vai talvez reivindicar o
direito ao grito» (HE, p. 96). Intertextualmente, A Hora da
Estrela dialoga com Os Sertóes: «O sertanejo é antes de tudo
um paciente» (HE, p. 79).
4. Espaço: é a cidade grande, espaço social urbano, o Rio de
Janeiro. As ruas, o quarto barato que as moças partilham
entre si, a casa da cartomante, o lugar de trabalho, o banheiro.
Nesse espaço ha espelhos comidos pela ferrugem, bares, a
Radio Relógio, cinemas baratos, Jardim Zoologico, automóveis
de luxo Mercedes Benz, patrocinio do refrigerante mais popu-
lar, que «patrocinou o último terremoto em Guatemala» (HE,
p. 29). Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para tra-

210
balhar. Com a raridade de um gaio «cocoricando» de mantra
e o cais do porto para espiar, no domingo, um ou outro pro-
longado apito de navio cargueiro. Que leitor nao se lembrara
de A Cidade Sitiada?
5. Estilo da narrativa: ha de ser simples, sem arte. O narrador
esta enjoado de literatura. Nâo usara «termos suculentos»,
«adjetivos esplendorosos», «carnudos substantivos», verbos
«esguios que atravessam agudos o ar em vias de açäo» (HE,
p. 19). A palavra, material basico da narrativa, «nao pode ser
enfeitada e artisticamente va, tern que ser apenas ela» (HE,
p. 25). E verdade que o narrador nao se podera furtar ao
desejo oculto de «alcançar uma sensaçäo fina» e seu relato
tera como pano de fundo «a penumbra atormentada que sem-
pre ha nos meus sonhos quando de noite atormentado durmo»
(HE, p. 20). Nâo quer escrever melodrama («toda história
que ja se escreveu no mundo é história de afliçóes?»), nâo
quer ser meloso. Deseja manter a frieza de um relato. A his-
tória nao sera uma «melodia cantabile» e tera um «ritmo des-
compassado». Mas... a palavra é a grande estrela desse livro,
sua personagem disfarçada. O texto é uma «névoa timida», uma
epifania do ato de escrever, urna epifania da própria escri-
tura, urn poema sobre a agonia de escrever.
«As palavras säo sons transfundidos de sombras que se entre-
cruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de
órgäo. Mal ouso clamar (sic chamar?) palavras a essa rede
vibrante e rica, morbida e obscura tendo como contratom o
baixo grosso da dor. Alegro corn brio. Tentarei tirar ouro do
carväo. Sei que estou adiando a história e que brinco de bola
sem bola. O fato é urn ato? Juro que este livro é feito sem
palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio.
Este livro é uma pergunta» (HE, p. 21).
Essas palavras, sons transfundidos, renda, música corn o con-
tratom baixo da dor, nao soam, apesar das frases curtas e da
construçâo paratatica, como o De profundis, monologo final
de Perto do Coraçäo Selvagem?
A Hora da Estrela reata também o dialogo corn dgua Viva,
em que escrever aspira a ser fotografia, som e pintura. É
muito duro e trabalhoso escrever. Como quebrar rochas. «Mas
voam faiscas e lascas corno aços espelhados» (HE, p. 24).
Contar parece facil, mas é difícil tornar nitido o que mal se
vé. «Com mäos de dedos duros enlameados apalpar o invisivel
na própria lama» (HE, p. 24).

211
6. 0 narrador: sabemos que é um dos personagens principats.
Desvenda-se na narrativa a sua problematica interior e à me-
dida que nos faz conhecer a protagonista, também conhece a
propria identidade. Alias, toda a ficçâo de Clarice é da espécie
metafisica do «nonce te ipsum» socratico. Ironia e maiêutica
da propria escritura.
«A açâo dessa historia tersi como resultado minha transfigu-
raçâo em outrem e minha materializaçâo em objeto. Sim, e
talvez encontre a flauta dote em que eu me enovelarei em ma-
cao tipo» (HE, p. 26). 0 narrador é onipotente. Cria um des-
tino. É onisciente, pois sabe tudo a respeito de suas persona-
gens. Tudo nâo. A verdade que o narrador inventa, ele nâo
a conhece inteira. Sua protagonista é buliçosa, pode escapar-
lhe das mäos. Nâo conhece ainda o final da historia. Hesita
em matar a protagonista. Sente-se culpado em relaçâo a ela
e the suspende a morte, paginas e paginas. Quando, final-
mente, se resolve a dar-Ihe o «gran finale», corn chuva caindo
e tudo, volta-se contra si mesmo: «Até tu, Brutus?» (HE,
p. 101).
É que moldara Macabéa sobre o seu proprio destino e solidâo.
Clarice sabe que todo narrador inventa o mundo à sua imagem
e semelhança e o «ele» ou «ela» das fabulas é sempre um
disfarce do «eu» do escritor.
O narrador se escreve todo através de Macabéa, por entre seus
proprios espantos. Sua onipotência se estende ao leitor, corn
o qual dialoga constantemente. A funçâo fatica é urna tônica
dessa narrativa. «Ou näo sou escritor? Na verdade sou mais
ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço malaba-
rismos de entonaçâo, obrigo o respirar alheio a me acorn-
panhar o texto» (HE, p. 29) .
O narrador morre corn Macabéa. E avisa o leitor que morrer
é um instante e pertence à condiçâo humana. Condiçâo huma-
na que é também, contou-nos G.H., paixâo de escrever, paixâo
de desistir, paixâo da linguagem que aponta para o indiztvel.
Morreu Macabéa, morreu corn ela o narrador. A escritura
prefigurou o duro desenho da morte. Morreu Clarice Lispector.
«As toisas nâo sempre vésperas e se ela näo morre agora
estri como nos na véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos
porque quanto a mim nâo me perdôo a clarividência» (HE,
p. 101).

212
7. 0 escritor: Por que escreve?
Porque captou o espirito da lingua e «assim As vezes a forma
é que faz conterldo». Escreve nao por causa do assunto ou da
protagonista nordestina, «mas por motivo grave de força
major», como se diz nos requerimentos oficiais, por «força de
lei» (HE, p. 23).
Escreve por necessidade de escrever, para se compreender,
porque tern perguntas irrespondidas para fazer.
«Enquanto eu tiver perguntas e näo houver resposta continua-
rei a escrever» (HE, p. 15).
Essa é a dor, que atravessa a narrativa, ja indicada pela dor
de dentes que perpassa a historia e que «deu uma fisgada
funda em plena boca possa» (HE, p. 15). Nossa? A do escri-
tor, a do narrador, a do leitor, a do homem enfim, a dor da
condiçäo de existir e escrever. A historia é, portanto, uma
«melodia sincopada e estridente — é a minha propria dor,
eu que carrego o mundo e hd falta de felicidade. Felicidade.
Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que
andam por ai aos montes» (HE, p. 16).
Alias, o escritor tem consciência plena de que certos termos
nem devem ser pronunciados, pois a escritura corn eles se
contamina:
«E melhor eu nao fatar em felicidade ou infelicidade — pro-
voca aquela saudade demasiada e lilas, aquele perfume de
violeta, as äguas geladas da mari mansa em espumas de
areia. Eu näo quero provocar porque dói» (HE, p. 73).
Leitor, lembra-te da pergunta de Joana-menina à professora
contrafeita em Perto do Coraçâo Selvagem: «Ser feliz é para
se conseguir o que?» (PCS, p. 26).
Como escreve o escritor?
Escreve de ouvido, escreve corn o corpo. Sobrou no mundo,
nada mais tern a fazer nele a lido ser esperar a morte. Sua
tarefa é «a procura da palavra no escuro» (HE, p. 84). Quais
seus antecedentes? Tern mais dinheiro do que os que passam
fome e sente-se culpado.
Näo tern classe social, «(...) marginalizado que sou. A clas-
se alta me tern como um monstro esquisito, a média corn
desconfiança de que eu possa desequilibrd-la, a classe baixa
nunca vem a mim» (HE, p. 24). 0 escritor faz-se um traba-
lhador manual para poder falar de Macabéa. Ironicamente,
denuncia o escritor burguês que defende a necessidade da lite-

213
ratura engajada. Faz-se pobre, dorme pouco, adquire olheiras
escuras, deixa a barba por fazer, anda nu ou em farrapos,
abstém-se do sexo e do futebol. «Sabendo no entanto que
talvez eu tivesse que me apresentar de modo mais convincente
às sociedades que muito reclamam de quem estri neste ins-
tante mesmo batendo à mciquina» (HE, p. 25). Um escritor
que so se livra de ser um acaro na vida, pelo fato de escrever.
«Escrevo por nâo ter nada a fazer no mundo: sobrei e nao
ha lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou
um desesperado e estou cansado, nao suporto mais a rotin
de me ser e se nâo fosse a sempre novidade que é escrever,
eu me morreria» (HE, p. 27).
8. 0 leitor: é sustentado pelas palavras. Deve embeber-se da jo-
vem como um pano de chäo todo encharcado. Näo deveria ser
frio e impiedoso, mas é um leitor burguês, exigente, que tern
necessidade de um final grandiloquente.
9. A natureza da ficçäo: A ficçäo é invençäo do real. Essa inven-
çäo, porém, näo é mentira. O escritor adivinha o real. Qual-
quer que seja o que queira dizer «realidade». O universo fic-
cional como o universo real jamais tem começo. «Como come-
far pelo inicio, se as coisas acontecem antes de acontecer?»
(HE, p. 15). A ficçäo transfigura, transforma o päo do pobre e
o carväo da tinta de escrever ern ouro puro.
O segredo escondido da narrativa esta contido em um dos
títulos «Quanto ao futuro». O futuro aparece delimitado entre
dois pontos finais (Cf. HE, p. 17). Näo se trata de capricho
do narrador.
Macabéa, a de parcas falas, que amava os anúncios e as pa-
lavras sonoras e ininteligíveis do locutor da Radio Relógio, as
frases de seu namorado Olimpico, que tinha um jeito especial
de falar; Macabéa que ouviu extasiada «Una furtiva lacrima»
cantada por Caruso, Macabéa antes de morrer teve urna frase,
que nenhum dos transeuntes entendeu: «Quanto ao futuro».
A cartomante, consultada pouco antes, Ihe dera um futuro
vivo feito de palavras: ser amada por um estrangeiro louro
e rico.
«Tersi tido ela saudade do futuro? Oufa a música antiga de
palavras e palavras, sim, é assim. Nesta hora exata Macabéa
sente um enjôo no estômago e quase vomitou, queria vomitar
algo luminoso. Estrela de mil pontas» (HE, p. 102). Macabéa
nunca vomitara na vida, pois o que ja Ihe desandava o figado,
de que sofria por influéncia da tia, era born e raro demais

214
para ser esperdiçado em vômitos: muito açúcar no pingado to-
rnado no bar, chocolate na casa da colega Gloria etc. Macabéa
vomitou sangue, o sangue que marca a historia. Sangue de que
ela tinha medo, sangue indiciando, desde o começo do livro, a
sua morte «de estrela» no final, sangue do batom vermelho em
seus labios, para imitar Marilyn Monroe.
O eixo metaforico que se instaura no inicio da narrativa, cen-
trado no sangue, pertence à area semântica do fogo, do ar,
da agua ou da terra? Macabéa é quase incorporea, a historia
é urna «névoa timida», Macabéa morre querendo vomitar algo
luminoso, estrela de mil pontas. Ela é sim urna estrela, porque
tern o peso da luz. A pesquisa metafisica que envolve o ser
e o escrever escorre sangue vivo. Sangue que se coagula em
cubos de geléia tremula (a escritura?).
«Sera essa historia um dia o meu codgulo?» (HE, p. 16).
A Hora da Estrela nâo so recolhe quase todos os
problemas da narrativa dos outros romances de Clarice Lispector,
mas também muitas de suas imagens. Macabéa lembra Joana,
As vezes, por contraste; ela jamais se pergunta: «Se tivesse a
tolice de se perguntar «quern sou eu»? cairia estatelada e em cheio
no chäo» (HE, p. 20).
Maca, como Virginia, é também um ser fluido, seu
destino é lido pela sibila (cartomante Cecilia), e ela morre atro-
pelada, na rua da grande cidade. A marca do fogo e da luz esta,
de algum modo, em O Lustre e na estrela. Sera a morte essa luz
fria?
Maca, como Lucrécia, é protagonista da cidade
grande, da cidade sitiada. A moça e o cavalo, em Lucrécia viva;
a moça e o cavalo, em Macabéa morta. Macabéa so sabe espiar
como Lucrécia Neves Correia.
O narrador de A Hora da Estrela, corno Martim ten-
ta «a procura da palavra no escuro» (HE, p. 84).
De G.H., o narrador tern a paixäo: «Experimentei
quase tudo, inclusive a paixäo e o seu desespero» (HE, p. 27).
Nu e em farrapos, quer sentir o insosso do mundo e, corn cora-
gem, «banhar-se no näo» (HE, p. 25).
Como em Uma Aprendizagem, Macabéa compreen-
de seu destino de mulher. É certo que nâo conheceu os desmaios
do amor nos braços de Ulisses, como Lori; seu desmaio de Ansia
sensual foi o abraço da morte. Mas quem nâo sabe que a morte
e o amor se tocam na vida e na arte?

215
Como o narrador de Agua Viva, o narrador de A
Nora da Estrela nasceu «incumbido» e fez sua grande denúncia.
Ironia e maiêutica da ficçäo, esse pequeno grande
livro constitui o último coagulo de uma escritura toda voltada para
a pesquisa a respeito das correspondências entre ser e linguagem,
escritura que Clarice Lispector, sempre paradoxal, traçou à tinta
de escrever, pouco antes de cumprir corn a própria morte, sem
«gran finale», o destino de sua Maca.
«O final foi bastante grandiloquente para a vossa
necessidade»? (HE, p. 104).
Morrendo ela virou ar/som/voz/linguagem; luz/
fogo/chama/estrela; àgua/mar/suco/plasma; terra/húmus/seiva/
vida.
«Meu Deus, so agora me lembrei que a gente mor-
re», escreve o narrador. Mas — mas eu também?!» (HE, p. 104).

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS E NOTAS


1. Este capitulo, ja escrito, começa a ser refundido, sob o impacto da
noticia da morte de Clarice Lispector, morte ocorrida às 10:30h do dia 09
de dezembro de 1977.
2. «Clarice Lispector». Textura. SP, n° 3:22.
3, 4, 5. «Clarice Lispector». In: Textura. SP, n9 3:23-5.
6. Pereira, Edgard. «Wander & Clarice». Minas Gerais, BH, 16 ago.
1975, Supl. Lit.: 2.
7. «Cf. Clarice Lispector: urna escritora no escuro». In: Manchete, RJ,
1202:48, 3 maio 1975. Reportagem de Celso Arnaldo Araújo.
8. Pereira, Edgard. «Wander & Clarice». Minas Gerais, BH, 11 out.
1975. Supl. Lit.: 2.
9. «A ficçâo intimista perde Lispector». In: O Estado de S Paulo, SP.
10 dez. 1977, p. 10.
10. Por exemplo, a de Fabio Lucas: «Clarice Lispector e o impasse da
narrativa contemporànea». In: Poesia e prosa no Brasil. BH, Interlivros,
1976, p. 12-29. Em sua entrevista concedida para o Museu da Imagem e
do Som, dez meses antes de morrer, Clarice declarou ser esse conto um
texto que ela mesma nâo conseguia entender.
11. «Pedro Bloch entrevista Clarice». In: Manchete, RJ, 4 julh. 1964,
(367):99.
12, 13. «Pedro Bloch entrevista Clarice». In: Manchete, RJ, 4 juih. 1964,
(637) :99.
14. Alguns exemplos dessas correçiíes:
— De novo arrastada por Felipe, agora seguiam urna direçâo desco-
nhecida (...).
Correçäo — De novo arrastada por Felipe, ambos agora seguiam...
— Lucrécia sorria corn satisfaçäo—O rosto queria avançar (...)

216
Correçâo — Lucrécia sorria corn satisfaçâo — Seu rosto...
— Mas o som se retinha à beira das ruas desertas. Olhou
para (...)
Correçâo — Mas o som se retinha à beira das ruas desertas. Lucrécia
olhou para (...)
— começou a bater corn punhos cerrados, o rato corria tran-
qüilo perto da carroça adormecida; batia e olhava para o
céu...
Correçâo — começou a bater corn punhos cerrados, o rato corria tranqüilo
perto da carroça adormecida; ela batia e olhava para o
céu...
15. Francis, Paulo. <Clarice: impressóes de urna mulher que lutou sozi-
nha,. In: Folha de Silo Paulo lLustrada, 15 dez. 1977, p. 43.
16. Lispector, Clarice. A hora da estrela, p. 15.
17. Todorov, Tzvetan. Les deux logiques du récit. In: Saggi, p. 365-378.
18. Candido, Antonio. Vcirios Escritos, p. 128.
19. Schwarz, Roberto. <A sereia e o desconfiado», p. 41.
20. Romance iniciado no Rio, em julho de 1943, e terminado em Nnpoles,
em novembro de 1944. Publicado em 1946, pela Agir Editora.
21. Segundo, Renard Perez em Escritores Brasileiros Contemporôneos,
O Lustre foi o romance que lhe deu mais prazer escrever. A Cidade Sitiada,
o que Ihe deu mais trabalho (p. 79).
22. Do latim Lucretia, de origem controversa. É interpretado como «a
que lucra, e como «pura, casta,. (Antenor Nascentes, Diciondrio etimoló-
giico da Lingua Portuguesa; corn prefàcio de Serafim Silva Neto, Rio de
Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1952, t. II, verbete Lucrécia). Interpretada
corno <pura, casta», o nome de Lucrécia designa a dama romana, mulher
de Tarquinio Collatino, que de desespero se suicidou por ter sido ultra-
jada por Sexto Tarquinio. Este tragico acontecimento provocou o esta-
belecimento da República em Roma. O leitor disso informado nâo se
pode furtar à idéia de parodia, corn aquele Neves, no plural, quase elimi-
nando pela redunddncia o sentido de «pura,, e contrastando corn a gran-
deza da Lucrécia romana. Jà registramos, no capitulo a respeito da Epi-
fania, a curiosa aproximaçâo entre esse sobrenome e a neve, que significa
a paralisia da Irlanda, no conto <Os mortos,, dos Dublinenses.
23. Perseu é o heroi que salvou Andromeda, montado em Pégaso, cavalo
alado nascido do sangue de Medusa, quando Perseu Hie cortou a cabeça.
Mais um nome que se tornarà estranho no universo plano da cidade sitia-
da; cidade medusada, petrificada, nâo resgatada por nenhum Perseu que
faça jus ao nome mitologico...
24. Clarice Lispector começou, na Inglaterra, em 1951, as primeiras ano-
taçóes para esse romance. Terminou-o em Washington, em 1956, mas so
foi publicado no Brasil, em 1961, pela Francisco Alves. Corn ele obteve
o prêmio Carmen Dolores Barbosa de São Paulo, em 1962. Trata-se, corn
Laços de Familia, de um de seus livros mais traduzidos, no exterior.
Declarou, certa vez, que quando acabou a primeira versâo de A Maça no
Escuro, tinha escrito quinhentas laudas. Copiou o livro onze vezes. (Jornal
do Brasil, 10 dez. 1977. Caderno B: 1).
25. Melo Neto, Joao Cabral de. Psicologia da composiçao. In: Poesias
Completas, p. 332.
26. Melo Neto, J.C. de, op. cit., p. 322.

217
27. «Clarice Lispector*. Textura. SP, n° 3:23. Pode ser também que
tenha ficado ressoando nos ouvidos de Clarice aquela passagem biblica
sobre a Samaritana: «(...) e ele te darla urna dgua viva. A mulher re-
plicou: «Senhor, nâo tens corn que tira-la, e o poço é fundo... donde
tens, pois, essa dgua viva?* (Jo 4, 10-11).
28. Enciclopédia Brasileira Mérito. SP, Ed. Mérito, 1958, verbete vagua
viva*.
29. Foi-nos observado que ha, neste trabalho, certa hesitaçâo entre
linguagem/expressio e linguagem/produçâo. Continuamos a manter essa
oscilaçâo, porque ela pode ser homóloga, em nosso discurso critico, ao
próprio dilema da escritura clariceana.
A teoria da escritura e da produçâo textual resolve o problema da lin-
guagem, nâo admitindo urn logos prévio.
Clarice parece admiti-lo: a palavra antes da escritura. Ou melhor, este
é seu crucial dilema, a contradiçâo-cerne de sua escritura. Produtora ela
mesma de mundos e consciente de que a linguagem inventa o real, con-
tudo, nâo pôde colocar, na sua ficçâo, o escrever, o produzir textos
acima da vida. Porém nâo escrever era, para ela, morrer. Escrever e,
por conseqüência, viver, foi-lhe ulna taref a ambigua. Escrevendo, ela se
compreendia e ao mundo. Quando descobriu que se podia viver sem es-
crever, achou infinitamente ambicioso, quase inalcançavel (Cf. LE, p. 151).
Nunca foi, porém, urna apaixonada pela palavra em si, corno Guimarâes
Rosa ou Joyce, por exemplo. Desconfiava da palavra. Olhava-a de viés.
Clarice vive como produtora de signos. Mas linguagem, para ela, sempre
foi expressâo que se trai, produçâo que «inventa o real*, sabendo que o
perde. Dai sua aspiraçâo ao sensorial, e/ou ao siléncio. Aspirou continua-
mente a possibilidade do cqualissigno», à qualidade pura, porque ctoda
palavra tern urna porta secreta por onde o ser escapa».
30. Kristeva, Julia. Introduçâo à semandlise. SP, Perspectiva, 1974, p. 40.
31. <Clarice Lispector». Textura, SP, n° 3, p. 23.

218
Parte conclusiva

Você também pode gostar