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1
37 C.F.R. §201.14 2018
OLGA DE SA

CLARICE
LISPECIFOR
ATRAUESSIA DO OPOSTO
Dodos de Catalogaçío na Publicaçio (CIP) Interaacioaal
(Cimara Brasikira do üvro, SP, Brasil)

Si, Olga de.


Clarice Lispector : a travesaú do oposto / Olga de Si. — Sb Paulo :
ANNABLUME, 1993. -- (Selo universidade. Literatura ; 8)

Bibliografia.

1. Critica literiria 2.Lispector, Clarice, 1925-1977 - Critica e interpretaçio


3. Literatura brasileira - Historia e critica I. Tftulo. Il. Série.

93-1914 CDD-869.909004

indices pan catalogo aialemftico:


1. Literatura brasileira : Scruto 211: Hist6ria e critic& 869.909004
2. Século 20 : Literatura brasileira : Historia e critica 869.909004
ISBN: 85-85596-05-8

YALE
~
CLARICE LISPECTOR:
A TRAVESSIA DO OPOSTO

Olga de Sa

eg 9677
~sd y
z9s3X
/993 CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Penuela Canizal
Lucrécia D'Aléssio Ferrara
Willi Bolle
Norval Baitello Junior

1' ediçao: agosto de 1993

© Olga de SS

ANNABLUME editora . comunicaçao


Av. Paulista, 2073 . Edif. Horsa I . cj. 303
01311-940. São Paulo . SP. Brasil
Tel. e Fax. (011) 287.4449
A Haroldo de Campos, poeta e mestre, criador de
galdxias, "transcriador" de saber e amizade.
CAPITULO III

A REVERSAO PARODICA

DA CONSCIÊNCIA NA
MATERIA VIVA:

O SIGNO ICONIZADO

A Paixâo Segundo G.H., 1964


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"MISTICA AO REVÉS"

Bakhtin escreve em seu artigo "L'énoncé dans le ro-


man ": "A maior parte dos trabaihos que analisam a lingua-
gem e o estilo do romance se desviam, de um modo ou de
outro, das particularidades do gênero, das condiçôes
especlftcas da vida do discurso na narrativa. Examinam a
linguagem e o estilo do romancista ndo como linguagem e
esulo do 'romance', mas como expressâo de determinada
personalidade artistica, de tal corrente estilistica ou como
fenônemo da linguagem poética em geraP ".
Tais enfoques acabam por ocultar as exigências próprias
do gênero em relaçâo às possibilidades específicas, que ele
oferece à lingua.
Bakhtin sublinha que o discurso tern urna vida especial,
nas condiçóes do romance. Assim, todo romance contém
representaçöes das realizaçôes da linguagem, concretizadas
pelas personagens e seul diversos estilos. O enunciado
romanesco nâo so exprime, mas torna-se ele proprio objeto de
expressâo. Por isso, todo discurso de romance é critico em
relaçâo a si mesmo. Nâo se pode descrevê-lo e analis5-lo
como um enunciado linear.
"As digressôes líricasnitosdo desprovidas demomentos
de parodia estilisticos ou polêmicos e, em certos textos,
integram-se nas zonas deherót"0. Do ponto de vista est iIistico,
as digressôes líricas, no romance, sic) fundamentalmente
distintas do genero lirico.

As citaçcics de A paixio segundo G.H sâo Iodas extrafdas da 3' ediçio, Rl,
Ed. SabiS, /1972/
89. Bakhtin, Mihail."L 'enoncE dans le romam". In:Langages (12): 126, dez./
1968. Paris, Didier/Larousse.
90. Bakhtin, M., op. cit., p. 130.
134 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

É claro que isto pode acontecer corn todos os outros


gêneros e estilos, inclusive com o estilo biblico.
É sob esse ângulo que destacamos A Paixâo segundo
G.H.. A partir do título, o livro leva o leitor a continuas
reminiscências bibiicas: A paixâo segundo G.H. é nitidamente
configurado sobre a conhecida expressäo: "Paixâo de Jesus
Cristo segundo Mateus" ou "Paixâo de Jesus Cristo segundo
Joäo." A narrativa da "Paixâo' é urna parte dos Evangelhos.
Significa que os sofrimentos de Cristo sâo narrados corno
foram vistos ou conhecidos por seus discípulos. No caso de
G.H., a paixâo é da protagonista, narrada por ela mesma. Mas
a paixäo nao é so a experiência nauseante de ter comido da
massa da barata; engolir a massa branca e insossa, corno
prototipo da matéria-prima do mundo, foi, sem dúvida, urna
experiência vital. Narra-la, porém, foi urna experiência-
limite, porque a manducaçäo da barata levara G.H. à renúncia
de sua vida pessoal, de seu ser como linguagem.
Trata-se do primeiro romance de Clarice Lispector em
primeira pessoa. A paixâo de G.H. é o sofrimento para chegar
à propria identidade a ser alcançada corn a despersonalizaçao
e a mudez; a paixâo segundo G.H. é o sofrimento de narrar
esta experiência, que, passando pela manducaçäo da barata,
atinge a propria natureza do ser que faz linguagem: o escritor.
Viver essa condiçäo é a paixâo, é a dor, nâo como um
acontecimento fortuito, mas como a propria natureza do
homem.
O silêncio que se instaura depois de G.H. engolir a
massa branca da barata esta do lado da imanência, nâo da
transcendência. Mas a linguagem que se cria, ao descrever
essa experiência, esta, outra vez, do lado da transcendência.
Se ha luz é um "sol parado", urna luz estatica e vazia, urna
espécie de Nordeste no minarete daquele prédio, de onde
caem treze andares.
A Paixâo é, portanto, urna ontologia, urna metafisica
construída pelo método empirico, cuja finalidade é desvelar
o ser. Desvelar o ser contra a linguagem (fazendo linguagem),
contra a razäo que o encobre, contra a transcendência, que,
segundo a narradora, o ultrapassa. A paixâo é a dor contra o
habito, que insensibiliza. É a vida, a totalidade, contra o "eu",
o puramente psicologico.
O SIGNO ICONIZADO 135

Para alguns críticos, como Benedito Nunes91, este Iivro


é um itinerario mistico, à maneira de Sao João da Cruz; para
outros, como Luis Costa Lima", o itinerario é uma "mistica
ao revés". Provavelmente, sao os elementos paródicos que
motivam essas leituras críticas. Por que se trata realmente de
um itinerario mistico da pessoa à matéria para ser mais vida,
alcançando a redençao na propria coisa, uma espécie de
"santidade leiga", profana, que faz desta última uma "mistica
ao revés".
Nao queremos dizer que Clarice Lispector faça urna
parodia, ridicularizando a Paixao. Ha um clima sério nesse
itinerario, urna pesquisa sofrida, urna experiência nauseante,
que jamais nos permite lé-lo na clave do burlesco. Mas é claro
que muitos aspectos podem ser lidos na pauta do irônico e da
revers-do parodica. Seguiremos alguns:
1.0 título: embora decalcado sobre as narrativas da
paixao de Cristo, significando sofrimento, nâo é esta a
expectativa do leitor comum. Acostumado a entender o termo
"paixao" em sentido erotico, sua expectativa frustra-se quando,
ao invés de urna experiência amorosa de G.H., encontra-se
diante de urna experiência corn a barata. O narrador esta
consciente de que frustrou tal expectativa, porque a certa
altura diz G.H.: "eu também vivia bem, eu era uma mulher de
quern se poderia dizer 'vida e amores de G.H.". (PSGH, p.
191).
Além disso, a inversao da paixao de Cristo do plano da
transcendência para o plano da imanéncia, e da expectativa
erotica do leitor contrariada por urna resposta ontologica,
situa-se entre os procedimentos da parodia. Clarice Lispector
segue urn urodelo biblico, maso reverse, frequentemente, na
construçao de seu proprio itinerario.
2. A inversao de certas expressóes biblicas, ou o uso
delas sob forma de paradoxo, constitua, como ja demonstramos,
um dos mais fundamentais recursos retóricos do texto. Outros
exemplos:

91. Nunes, Benedito. Leitura de Clarice Lispector. SP, Ed. Quiron, 1973, p.
52.
92. Lima, Luis Costa. "A mistica ao revés dc Clarice Lispector". In: Por qué
Literatura. Petrópolis, Vozes, 1966, p. 100-25.
136 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Cristo diz: "Meu reino nâo é deste mundo". (Jo 18,36).


Diz G.H. "E seu reino, meu amor, também é deste
mundo". (PSGH, p. 177).
Na Biblia: quern comeu do fruto proibido cometeu o
pecado de orgulho, quis ser como Deus sem o auxlio Dele,
e é, portanto, punido.
G.H.: "Escuta, nâo te assustes: lembra-te que eu tomi
do fiuto proibido e no entanto nâo fui fulminada pela orgia
de ser". (PSGH, p. 174).
Na Biblia: corner do fruto da "ârvore da vida" foi o
pecado do homem e the acarretou a expulsao do paraíso, a
perdiçâo.
G.H.: "Entâo, ouve: isso quer dizer que me salva rei
ainda mais do que eu me salvaria se nâo tivesse comido da
vida". (PSGH. p. 174).
Assim como Deus descansou no sétimo dia, G.H.
também pretende arrumar o apartamento e descansar "na
sétima hora como no sétimo dia ". (PSGH. p. 37).
Este procedimento, que percorre o livro todo, chega ao
limite, quando G.H. pratica o ritual da manducaçao da barata,
por analogia corn a comunhâo dos cristâos. Nâo ha no texto
nenhum elemento burlesco, que evidencie urna atitude
agressiva para corn o ritual cristâo. Ha, contudo, urna explicita
aproximaçâo, pois interessa à ficcionista decalcar seu
itinerario, o percurso de sua elegante personagem, sobre a
mistica cristd, revertendo-Ihe, porém, os efeitos; talvez porque,
irônica ou tragicamente, nâo reconheça à muther futil que
G.H. representa, na sociedade dos anos 60, a possibilidade de
um vôo mais alto.
O cristâo, ao comungar, acredita que participa do Corpo
de. Cristo, pendo por Ele assimilado. A comunhâo planta na
carné do homem corrompido a semente da ressurreiçao e da
vida, segundo a promessa de Cristo: "Se comerdes a minha
carne e beberdes o meu sangue tereis a vida em vós "; e ainda:
"Quern come de minha Carne e bebe do meu Sangue viverle
eternamente". (Jo 6,53-54).
Um fenômeno mistico. O cristâo é assimilado pelo
Corpo de Cristo e Nele se transforma. Se Ele é Deus, corno
disse, e como crê o cristianismo, transcende o homem.
Portanto, pela manducaçâo da hóstia, o cristâo é atçado, na
O SIGNO ICONIZADO 137

medida em que the é permitido, à comunhao corn Deus. Na


experiência de G.H., a manducaçâo da barata, prototipo da
materia-prima do mundo, produz pelo mesmo efeito de
transformaçâo, mas invertido, a reduçâo da personalidade de
G.H. ao nível da pura matéria viva. Ha a "despersonalizaçâo",
isto é, G.H. se perde Como pessoa, para alcançar-se como der
e encontrar sua identidade, ao nivei do puramente vivo.
Enquanto, segundo o cristianismo, é pelo amor que os
homens podem realizar o melhor de si mesmos, para G.H., é
pela auséncia de sentimentos, pela reduçâo da vida humana à
sensaçâo, à vida fisica e material, ao "mundo da coisa", que
o homem alcança a plenitude. Sem beleza, sem amor. Apenas
a monotonia doser, a auséncia do gosto, a violénica do neutro.
Assim em vez de "Vida e amores de C.H." (PSGH. p.
191), como se poderia ter escrito, nasceu "A Paix6o".
3. A personagem C.H.: mulher financeiramente
independente, sem mando, sem filhos, que domesticara o seu
viver. (cf. PSGH., p. 16). Sempre respeitara a beleza e sua
moderaçâo intrinseca (cf. PSGH, p. 19), tivera medo do feio
e do inestético. Tudo nela fora "semi" ou "pré". Vivia nun
semi-luxo, corn algumas ligaçces amorosas logo desfeitas;
agradâvel, tinha amizades sincerar, corn certo sentimento
irônico por si mesma, embora "sem perseguiçoes" ((PSGH.
p. 25).
Seu línico mistério (que eia chama, com consciente e
assumido mau-gosto de O mistério) era o silêncio que
surpreendia nos olhos sorridentes de suas fotografias. Um
rosto inexpressivo the devolvia um mundo inexpressivo. Esse
foi o maior contacto que teve consigo mesma, antes da
experiência corn a barata. Nunca chegou a ver-se, mas tornou
visível suas`tiorganizaçóes". Transformara-se, pouco a pouco,
na pessoa que tinha o seu nome cifrado:
"É sufficiente ver no couro da minhas valises as iniciais
G.H., e eis-me". (PSGH. p. 26). Também dos outros, eia nada
exigia. Vivera muitos fatos, tecera urna existéncia corn muito
enredo, cumprindo bem cedo os deveres de seus sentidos.
G.H., enfim, era urna "pessoa realizada". A eia, os outros se
referiam corno"alguém que faz esculturas ", era urna "mulher
corn um passado". A escultura intermitente, o amadorismo,
dera à sua intimidade um "leve tom de pré-climax". Nela, a
138 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

vida nunca fervera de verdade, apenas"fervilhava osuficiente".


Pensava que nascera sem missâo e jamais se impusera um
papel. Depois da experiência "mistica " descobrira que nasceu
"incumbida", como diz de si mesma a propria Clarice.
Gostava de encontrar-se no catalogo, ao lado das outras
pessoas. Nunca se perguntara. "quern sou?" como Joana de
Perto do coraçâo selvagem, mas "entre quais eu sou?"
(PSGH. p. 30). Mantivera-se a um passo de qualquer extremo.
"Um passo antes do climax, um passo antes da revoluçâo,
um passo antes do que se chama amor. Um passo antes de
minha vida ". ((PSGH. p. 30).
O mundo era um lugar que lhe servia para suavemente
existir, e o apartamento de cobertura, seu proprio reflexo:
elegante, cheio de penumbras e luzes úmidas.

"Tudo aqui é a réplica elegante, irônica e


espirituosa de urna vida que nunca existiu em
parte alguma: minha casa é urna criaçiro
apenas artistica". (PSGH. p. 32).

Urna vida paralela, a glosa da vida, uma duplicata: "(...)


sempre pareci preferir a parodia, ela me servia". (PSGH. p.
33). A parodia da vida. O narrador tern, portanto, consciência
de seu procedimento: ressalte-se o aspecto metalingüístico,
assumido na propria narrativa pela personagem G.H., que por
tras do ser questiona sempre os horizontes da narrativa.
G.H. vivia entre aspas. Nâo se identificando corn o
mundo, nem o possuindo, "por honestidade corn uma verda-
deira autoria" (PSGH. p. 33), apenas o citava. V ivia o seu mal
corn "pré-fervor", "semi-feliz", sem conhecer a propria
identidade, nem a intima direçao de si mesma, isto é, o seu
bem.

"(...) eu me dedicava a cada detalhe do nôo.


Detalhadamente ndo Bendo, eu me provava
que — que eu era". (PSGH. p. 35).

Dela se irradiava urna bondade que vinha da indulgência


pelos seus proprios prazeres e pelos prazeres dos outros.
O SIGNO ICONIZADO 139

"Eu comia delicadamente o meu, e


delicadamente enxugava a boca corn o
guardanapo". (PSGH. p. 37).

Nào se poderia fazer mais cruel descriçào de urna


mulher frivola, que se destina a urna experiéncia "mistica".
Ela, aparentemente, nào representa o prototipo do sujeito de
urna experiência que atinge as raízes do ser. Toma café as dez
horas da manhà, convive seis meses corn urna empregada de
quern nem lembra o rosto, tern ligaçôes amorosas das quais se
desfaz corn fastio e tédio, vive à superficie, como faz corn as
bolinhas de pào que amassa à mesa do café. Este o herói que
de "deserotza", exatamente quando alcança toda a extensào
de sua superficialidade e a raiz de sua identidade profunda.
4. 0 lugar: também recebe marcas muito diferentes dos
"topoi" das experiéncias misticas. Nào é um bosque, nem a
"noite escura da alma". É um lugar esturricado de sol, no
quarto de urna empregada que se chamava Janair e tinha ares
de princesa negra. A empregada, pelo nome (Janair/Janaína,
outro nome de lemanj£) e por seus traços, leva o leitor a
associa-la a ritos africanos. Por outro lado, nomeando as
miimias do Egito, os hieróglifos, os sarcófagos, o deserto, as
salamandras e os grifos, o texto fornece-nos elementos de
ambiência oriental. O acúmulo desses aspectos, chamados a
compor o clima da experiéncia mistica dessa dama que reside,
elegantemente, num apartamento de cobertura, nào desmente,
antes confirma, sua entonaçào irônica. Lticida em relaçâo a si
mesma, G.H. nào representar£ a parodia de seus proprios
limites? >Mo ter£ a ficcionista sobrecarregado esta personagem,
quase frivola, coin suas radicais intuiçôes sobre o ser, para
sorrir de si mesma?" No contexto da civilizaçào moderna, no
amadorismo dessa escultora, nào estar£ ela projetando sua
propria figura, "escritora amadora", cuja paixào pela forma

93. Die G.H.: "Sou agrad6vel, tenho amizades sincerar, e ter consci@ncia
disso faz coin que eu tenha por mim urna amizade aprazivel, o que nunca
excluiu um certo sentimento irönico por mim mesma, embora sem
perseguiçôes". (PSGH, p. 25)
140 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

ela parodia na paixâo por "arrumar", e cujas reflexóes e


angústias metafísicas ironiza? Tudo somado, para ressaltar o
essencial: uma visâo mistica do mundo, que prescinde de
religiâo, sem prescindir, porém, das mais fundas experiências
religiosas do Judaismo e do Cristianismo, da cosmovisâo
biblica.
PARALELISMO BIBLICO E PARADOXO

A paixâo segundo G.H foi o sofrido resultado das


pesquisas pessoais de Clarice, na direçào da imanencia. Uma
agoniada travessia. "Viver e dificil".
Pela primeira vez, Clarice se dirige"a possiveis leitores":

"Este livro é como um livro qualquer. Mas eu


ficaria contente se fosse lido apenas por
pessoas de alma jd formada. Aqueles que
sabem que a aproximaçiio, do que quer que
seja, se faz gradualmente e penosamente —
atravessando inclusive o oposto daquilo de
que se vai aproximar". (PSGH, p. 5).

Revelaram-se como recursos adeqüados para realiza-


rem a "travessia do oposto" a inversâo paródica, a ironia, o
paradoxo, o oxímoro.
Este romance, cuja dramaticidade esta mais no discurso
do que nas açOes, estrutura-se sobre urna dupla linha de
montagem:
1. o paralelismo biblico, que se manifesta — como ja
focalizamos num trabalho anteriorfó — quando, no texto
clariceano, um capítulo se inicia corn a mesma frase que
finaliza o capítulo anterior. Este procedimento repetido (menos
no capítulo XIX, que, descartado, deixa o livro corn XXXIII
capítulos", cifra equivalente à idade de Jesus Cristo, como se
diz popularmente) nâo so estrutura o encadeamento formal da

94. Sa, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis/Vozes, PUC-


SP., 1993, p. 259.
95. Os capítulos ni() sSo numerados; numerei-os para efeito de referencia.
142 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

narrativa, mas substitui a oralidade, que ela nâo tern, pelo


procedimento poético, de que é impregnado o texto biblico.
(grafico anexo, no final).
2. o paradoxo, este recurso retorico que diz respeito à
questâo da credibilidade dos discursos96, inclinando os textos
bíblicos para o sentido parodico, causa um efeito de
perplexidade/estranhamento, que tanto a parodia, como o
paradoxo veiculam.
O paralelismo é um fenômeno complexo (sobretudo o
paralelismo biblico), e nâo intencionamos trata-lo exaus-
tivamente, mas so enquanto nos parece que tal procedimento
foi assumido em A Paixâo.
O paralelismo é, primariamente, urna figura de repetiçâo.
"A repetiçào do igual é a colocaçdo repetida, dentro do
discurso, de urna parte frdsica que jd fora empregada. Serve
assim à amplificatio afetiva97
Segundo o mesmo teorico, a funçâo principal da
amplificaçao é o aumento vertical da matéria do discorso ou
de um pensamento. A execuçao deste aumento vertical pode
dar, como resultado, um alargamento horizontal da expressao.
A amplificaçao alargante consiste no alargamento espacial da
expressâo, caso se empreguem, para exprimir o aumento,
mais pensamentos (res) e mais formulaçôes lingüísticas
(verba), do que seria necessario para uma expressao comum,
denotativa, sem aumento.
O aumento serve para desencadear urna vivência estética
de valor, por parte do público. Um fenômeno geral desta
vivência de valor é o ornatus, que produz efeito de es-
tranhamento; o mais elevado grau da vivência de valor é a
sublimitas"

96. cf.Lausherg,Heinrich.Elementosderetbricaliterdria.Traduçâo, prefâcio


e aditamentos de R.M. Rosado Fernandes. Lisboa, Fundaçio Calouste
Gulbenkian 11966/, p. 89-93.
97. Laosberg, H., op. cit., p. 106-7
98. cf. Lausherg, H., op. cit., p. 106-7.
Nota: Em francês "sublime" indica o que ha de grande, de excelente no
ertilo, nos sentimentos. O inglês "sublime significa profunda reverência,
elevada emoçüo. Em naliano, indica majestade e poder poetico. Em
espanhol, conccpçao mental, produçâo literâria ou artistica de grandeza
e simplicidade admiraveis. Em português, excelso, insigne, elevado,
perfeito.
O SIGNO ICONIZADO 143

"O estranhamento é o eletto animico exercido no


individuo pelo inesperado tomo fenomeno do mundo exte-
rior" mundo exterior = no caso, o discurso). Este efeito é um
choque psíquico, que se pode realizar de diferentes maneiras
e graus. "Com o estranhamento, confronta a vivéncia do
habitual, cuja forma extrema é o tedio. Esta vivência é
provocada pela uniforme e monotona invariabilidade do
mundo exterior".
Embora pareça difícil, a repetiçao pode produzir tam_bém
efeitos de estranhamento, como jâ tinha disso consciéncia a
propria Clarice:

"(...) a repetiçúo me é agraddvel, a repetiçâo


acontecendo no mesmo lugar termina cavando
pouco a pouco, cantilena enjoada diz alguma
coisa". (LE, p. 175).

No sentido mais lato, a vivência do estranhamento,


proporcionada pelo discurso, consiste, por conseqüência, em
qualquer acréscimo de conhecimentos e de vivéncias afetivas.
Neste caso, naturalmente, os limites entre o esperâvel e o
inesperâvel sâo pouco nítidos. A major parte das vezes nâo se
espera a completa invariabilidade, e por isso mesmo, ela
poder tornar-se "estranha".
A medida do esperavel e, com ela, a medida do
estranhamento possível, é dependente do ponto de vista
social, do meio a que o ptíblico pertence e, também do gênero
do discurso1 U1'.
É, nâo so um fenômeno de emissâo, mas também de
recepçâo.
A repetiçao de um pensamento idêntico com palavras
idênticas, à distancia, como acontece no texto de A paixito,
cria urna figura de acumulaçâo intensa e sistematica, que,
além dos efeitos sonoros, desenha um esquema de argu-
mentaçiio. Ha na argumentaçâo logica, um pensamento nu-
clear que esta na hase da acumulaçâo e que é exprimível nu-
ma frase, como "suma", donde se originam as seqüências101.

99 c 100. Lausberg, H., op. cit., p. 112.


101. Lausherg, H., op. cit., p. 214.
144 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

O paradoxo, segundo Lausberg, pertence ao dominio da


doxa, da opinitio, ao sema da credibilidade. Ha varios graus
de credibilidade. Se antes de o discurso ser proferido, a
matéria, defendida por ele, so desfrutar, junto ao ptiblico, de
uma fraca ou média credibilidade, a funçâo do discurso
consiste em conseguir, por meio da persuasâo, um grau
elevado de credibilidade.
Deve-se, portant°, distinguir entre a "credibilidade"
preliminar da matéria e o "tornar crível", como uma rarefa
partidaria do discurso.
A defesa de uma opiniâo que "nâo coincide" corn a
opiniâo do público ou do leitor, é um procedimento no qual
se pode distinguir o que fere o sentido da verdade, por parte
do leitor (genus admirabile: por exemplo, na defesa de uma
tese intelectualmente absurda), do que fere o sentido ético
(genus turpe: na defesa de um réu culpado ou de urna tese
contraria à moral). O paradoxo intelectual verifica-se na
matéria, mas também como fenômeno de estranhamento, e
portant°, de invençao e criaçao artistica. Os fenômenos
paradoxais de elaboraçüo estâo compreendidos entre os
géneros do modo sutil de dizer. Desse gênero, entre os que nos
interessam agora, fazem parte a ironia, o paradoxo, o oxímoro,
a antitese112.

102. Dubois, em sua Retorica geral, discorda da retorica tradicional, que


coloca o oxímoro e o paradoxo como variantes da antitese. Ver, a esse
respeito, o que registramos em A escritura de Clarice Lispector.
Sendo evidente que o artista nao visa a persuadir ninguém, no
sentido apologético, e sua obra jamais permite uma leitura univoca, ao
contrario, desautomatiza, desarticula, questiona, fundando universos de
linguagem -- metaforas epistemológicas da realidadc, no dizer do Umberto
Eco, -- estas reflexbes podem conduzir-nos il leitura da elaboraçao do
itinerario de A Paixdo.
O ITINERARIO:
UMA MEI'AFÍSICA EMPIRICA
DA TRANSCENDÊNCIA/IMANÊNCIA.

Recordemos: G.H. vivia num edificio solido, construído


no ar (semas em oposiçao: terra/ar). Olhava do alto de seus
treze andares as civilizaçóes erguidas pelo lento actímulo dos
séculos. Enfim, urna existência bem arrumada até o dia em
que enfrentou a experiência-limite, defrontando-se com a
matéria primordial da vida, iconizada num inseto nojento: a
barata.
O cruamento vivo, a barata, vida que a olhava de cima
(do armarlo para a cama, onde G.H. acaba sentando-se),
plasma melo seco depois que G.H. a espremera, pela cintura,
na fresta do guarda-roupa, acordara nela a alegria selvagem
de matar. Àquela larga vida de silêncio, de identidade profunda,
G.H. contrapiíe a sentimentaçâo (neologismo de Clarice para
significar = formaçao de sentimentos) de sua propria existência,
feita de esperanças de futuros adiados.
A barata, alias, parece ser urna reivindicaçâo da vida
contra o tratamento dado a Janair. O "quarto era o retrato de
um estômago vazio" (PSGH, p. 48), "o oposto de minha
ironia serena, de minha doce e isenta ironia: era uma
violentaçao das minhas aspas, das aspas que faziam de
mim zona citaçao de mim" (PSGH, p. 48). Janair é a empre-
gada que ali morara seis meses, cujo rosto "preto e quieto"
G.H. corn dificuldade rememora, de pele inteiramente o-
paca, calada, traços delicados. "Traços de rainha". (PSGH,
p. 46).
Assim como Janair fora, para G.H., menos que um
inseto, menos que urna barata e ela esperara encontrar o
quarto da ex-empregada sujo e desarranjado — a barata,
parodia da escrava negra, "é um objeto de grande luxo. Uma
noiva de pretas jóias. É toda rara, parece um ténia) exem-
146 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

plar". (PSGH, p. 83). É a porta estreita, pela qual G.H. tera de


passar, em seu itinerario mistico para "o Deus"103.
Como o branco marmore exteriorde seu edificio escondia
atras de si o labirinto de fundos, feito de canos retorcidos,
"canyons" e despenhadeiros cinzentos, seu apartamento de
cobertura, por meio de um corredor escuro, ligava-se ao
quarto da empregada recém-despedida, Janair. Ali, incrustada
na parede, como urna incisao na carne, a rainha africana
deixara, desenhado a carvao, o mural que representava a
patroa e a denunciava. O quarto ensolarado era ma camara
ardente, um minarete de luz, urn sarcofago, que abrigava as
"trés figuras angulares de zumbis ": a mulher, o homem e o
cao. O que quisera dizer Janair, desenhando as"trés múmias"?
G.H. compreendeu-as, como indices irônicos de sua carica-
tura de vida, orientada para o vazio.
G.H. cabia inteira no desenho mudo daquela caverna ou
mina desabada. Era um ser gritante, que se continha, pois se
desse o primeiro grito desencadearia todos os gritos dos
homens e a existência do mundo. (cf PSGH, p. 73).
Teria de comer da massa branca da barata e para isso
perder o que penosamente constuira: o proprio eu. Um "eu"
que vivia de palavras e fizera, inclusive do amor, urna palavra
apenas.
Nos olhos multifacetados da barata, "tudo olha para
tudo", cada um vive o outro. G.H. descobre que o mundo nào
é humano e a pessoa é uma construçào "sentimentaria" e útil,
crosta superficial sob a qual lateja o inumano, a matéria do
Deus. A crosta arrebenta como um Bique e se refaz o silêncio
primeiro da origem das coisas. G.H., chamada corno mulher,
prototipo de todas as mulheres, larga o bordado, a vida
caseira, a alma ja feita, e, "de quatro:, começa a engatinhar e
arrasta-se, agregando-se à vida que a chamava. (cf PSGH,
p. 82).

103. Muitos leitores se perguntam porque as personagens de Clarice usam a


expressâo "o Deus" e nâo como se diz comumente: Deus. E urna
personagem dela, L.óri de lima aprendizagem, quem responde a Ulisses:
"Torque Deus é um substantivo:. "...Ele é substantivo como substdncia.
Ndo existe um attico adjetivo para o "Deus". Entdo o narrador se lembra
du frase biblica. 'I/6s sois deuses'. "Mas éramos deuses corn adjetivos".
(LP, p. 145).
O SIGNO ICONIZADO 147

A vida the voltava assim como aos possessos, que "nâo


sâo possuidos pelo que vem, mas pelo que volta". (cf PSGH,
p. 82). A vaga da vida passa sem quebrar. G.H. tem de sofrer
a manducaçao do imundo, que a Biblia proíbe conter, animais
de rastos e de asas, animais sem adornos (cf. PSGH, p. 85).
Sabera entâo que "o imundo nâo é imundo" (PSGH, p. 85),
pois é plasma vivo.
O texto bIblico é Levitico, capitulo 11. As normas deste
livro do Antigo Testamento sâo interditos religiosos para os
judeus; esses interditos baseiam-se em costumes muitos
antigos1tm.
É puro aquilo que pode aproximar-se de Deus e impuro
aquilo que é excluído, que se torna inadeqüado ao culto. Os
animais puros sac) aqueles que podem ser oferecidos a Deus
(GN 7,2) e os impuros sâo aqueles que os pagâos consideram
como sagrados ou, parecendo repugnantes ao homem, sac)
considerados desagradaveis a Deus.
Nâo é demais sublinhar como o pano de fundo é ainda
o texto biblico, alias explicitamente lembrado pela personagem
narradora. O proprio ato de "corner o impuro" transmuda-se
do Antigo para o Novo Testamento. Neste, nenhum alimento
é imundo aos olhos de Deus. Além disso, "o ato de corner"
transcende o significado de alimentar-se, nutrir-se, e passa a
ter significaçOes ético-religiosas. No caso do Novo
Testamento, é a abertura aos pagâos, a universalidade da
mensagem crista.
No Novo Testamento, nosA tos dosApóstolos, capitulo
10, as proibiçóes sac) levantadas. Na chamada visa() de Pedro,
contidos na grande toalha que desce do céu para a terra, estâo
todos os quadrüpedes e os répteis e as m'es do céu. Pedro
recebe a ordern de involar e corner. Ante seu protesto de que
nunca comeu coisa profana e impura, a voz the diz: "Nâo
chameis impuro o que Deus declarou puro" (AT., 10,15). Isto
se repetiu por três vezes e depois a toalha foi recolhida ao céu.
O Levitico considera impuras algumas espécies de
quadri pedes, tudo o que vive na agua sem ter barbatanas e

104. cf. ßlólia de Jerusalém, Ediçâo em lingua portuguesa, SP, Ediçóes


Paulinas, 1981. A partir do texto original.
148 CLARICE USPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

escamas, muitas espécies de ayes como a aguia, o corvo, a


coruja, o mocho, o abutre branco, o morcego etc.. E insetos
alados que caminham sobre quatro pés. Excluem-se as
diferentes espécies de locustídeos, de gafanhotos, de acridios
e de grilos.
A barata doméstica nao esta relacionada na Bíblia entre
os animais impuros, mas entende-se que esteja incluída entre
os insetos alados repugnantes. Clarice escolheu-a por
considera-la ligada à aurora do mundo, tendo sobrevivido até
hoje, através de sucessivas adaptaçôes. Alias, ja em outros
textos seus a barata é motivo presente e o conto "A quinta
historia " do livro Felicidade clandestina, é toda urna variaçao
sobre baratas.
Desumanizada, despojada do eu, G.H. perfaz o caminho
dos profetas no deserto. Expulsa de um paralso de adornos,
procura a raiz de si mesma, nao tendo mais nada para
articular, nada para pedir, apoiada apenas nas derradeiras
ruinas de um mundo inapelavel. Alcança uma alegria horrível,
sem esperança. Um mundo primario, em que a existência da
barata a existia, fazendo o caminho do regresso da crisalida
à larva timida. Um oratorio cantado, de boca fechada, que nao
era prece e nada pedia, chegava à abóbaba do teto da mina
desabada, do quarto, da fenda rasgada na rocha do edificio.
Nâo havia mais espaço para esperança e futuro. Era a hora de
viver, sem palavras, a atualidade, o instante-ja. G.H., em vez
de recuar, vende a propria alma para saber (mito faustico). (cf.
PSGH, p. 85-89). "Mas é que o inferno jd me tomara, meu
amor, o inferno da curiosidade malsâ. Eu jk estava vendendo
a minha alma humana, porque ver jó começara a meconsumir
em prazer, eu vendia o meu futuro, eu vendia a minha
salvaça o, eu nos vendia". (PSGH, p. 91).
Atingia o ntícleo da vida, o infernalmente inexpressivo,
o nada. Todo esforço humano de salvaçâo, que consiste em
transcender, é eliminado para se ficar dentro do que é. Estala
seu "rosto de prata e beleza" e na existência de G.H. nao
havera mais lugar para sentimentos, para a temura das lagrimas
e do sal, nem sequer as lagrimas do homem amado. G.H.
identifica-se, textualmente, com Joana, que em Perto do
coraçâo selvagem sentiu o sal das lagrimas do amante:
"Através de um dia eu ter beijado o residuo insipido que ha
no sal da lkgrima". (PSGH, p. 106).
O SIGNO ICONIZADO 149

No mundo-barata näo ha piedade; a ferocidade mútua


permite o assassinato de um ser por outro. Se a barata fosse
mais forte certamente mataria G.H.; como é mais fracs, se
deixa quieta e vigilantemente matar. (cf PSGH, p. 10).
G.H., sentada na cama, olhada de cima pelos olhos
insossos da barata, ocupa-se em ser, em consistir. Do ventre
do inseto, escapa-se o fruto, a matéria-prima do mundo, o
Deus;"(...) bendito ofiuto de feu ventre", d iz G.H., parodiando
a Ave-Maria. (PSGH, p. 98).
O texto estrutura-se sobre o paradoxo de perder/ganhar,
que tem fundamento biblico.

"Porque, quem quiser salvar a sua vida,


perde-la-â. (LC 9,24). "... se o grâo de frigo,
caldo na terra, nâo morrer, fica só; se morrer,
produz muito fruto. Quem ama a sua vida,
perde-la-d. (Jo 12, 24-5).

G.H. resiste à desumanizaçäo. Por covardia essencial,


declara que espera poder reorganizar-se depois, em pessoa
humana.
Aquela toisa viva, sem nome, sem atributos, sem grito,
sem cheiro, tranquila na sua ferocidade neutra, sem moralidade
(nem bem nem mal) tem olhos que säo ovârios anónimos e
férteis. Uma fémea, corn ovaarios para fora.
G.H. repassa seus pecados, o aborto que realizara e,
mais urna vez, o texto biblico é lido sob a garra semäntica do
infernalmente vivo:

"É imposslvel que nâo haja escândalos, mas


ai daquele por quem eles vém". (Lc 17,1) (cf
PSGH, p. 102).

Recuperada sua esséncia de mulher, como indicia a


barata-fémea, esmagada pela cintura, G.H. deixa cair a per-
sona — sua mascara humana — e chama pela mäe ancestral (a
barata?), mais urna vez parodiando a Ave-Maria: "Mie
bendita sois entre as baratas, agora e na hora desta tua mi-
nha morte, barata e jóia" (PSGH, p. 112).
150 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Nos interstícios da matéria primordial, a respiraçâo do


mundo é urna espécie de silêncio. O plasma, as entranhas
vivas da materia, subjazem à organizaçao humana. Ao neutro
do sêmem é inerente o ritual da vida, que G.H. pode recuperar,
porque nasceu corn ele. Ja nao tern medo de cumprir o ritual
consumidor, que Ille é imanente: "éopróprio processar-se da
vida do núcleo", "é a marca do Deus". (cf. PSGH. p. 138-9).
A alegria de perder-se é urna alegria cega, urna alegria
de saba. A orgia do sabra realiza-se, nos textos de Clarice,
sempre de noite. Mas aqui, para surpresa de G.H., desvenda-
se ao clarâo do sol.
Onde estivestes de notte?, livro publicado em 1974,
celebrara esta orgia da noite, que é quando acontece a vida,
até no enquadramento dos dias comuns. Na noire, ha a alegria
do corpo, a tortura da sensualidade, mesmo para urna velha de
70 anos, como a Sra. Jorge B. Xavier (personagem do conto
"A procura de urna dignidade"); para urna solteirona inglesa
Miss Algrave — personagem do conto homônimo de A via
crucis do corpo — visitada por Ixtlan, urn habitante do pianeta
Saturno, que a inicia nas alegrias do amor carnal (saturnais).
Em A magli no escuro, Vitória, a rigida dona da
fazenda que renunciara à vida e ao amor, acorda à noire seus
"demônios" interiores. E até em A cidade sitiada, é de noite
que os cavalos trotam, inquietos, no Mrrro do Pasto. O trote,
alias, esta dentro de G.H.. Por isso, quando chamada, ela vai
para o festim do saba:

"Ha dois séculos que nao you. Da última vez


que desci da sela enfeitada, era tao grande a
minha tristeza humana que jurei que nunca
mais. O trote porém continua em mim. Converso,
arrumo a casa, sorrio, mas sei que o trote estri
em mim. Sinto falta como quem morre. Mao
posso mais deixar de ir.

E sei que de noite, quando ele me chamar, irei". (PSGH,


p. 154).
Na magia negra, frui-se a coisa, reza-se a coisa e o
neutro é caldo de cultura, sêmem, proteina, plasma.
G.H. desintoxica-se de sua humanizaçao e, recém-
iniciada, readquire o gosto primeiro, o gosto da identidade
O SIGNO ICON IZADO 151

das coisas, da gota de chuva, do mana, do leite materno, o


gosto do nada, antes perdido pelo paladar viciado corn sal e
açticar; pela alma viciada corn alegrias e dores.
O insipido néctar, a arcaica e demoniaca sede, situa-se
no pólo oposto "do sentimento-humano-cristdo". A alegria
mais primeira obedece à lógica do sonho, que só existe
quando se adormece. G.H. descobre a primeira condiçào
humana. Somos a vida que esta em nós e a servimos apesar de
nós mesmos. Temos de vencer o nojo da matéria viva, pois a
barata nào passa de um crustaceo que precedeu os dinossauros,
na aurora do mundo. (cf. PSGH, p. 123).
G.H. perdeu tudo para aprender que a marca do Deus
esta no gozo da matéria. A apoteose do neutro é orgia do
inferno e o reino de Deus ja é deste mundo: "(...) entdo pela
porta da danaçdo, eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu
entendia que meu remo é deste mundo." (PSGH, p. 144)"
Vivendo sua vida remota vive a atualidade, frui de tudo,
num gozo horrendo e cósmico, no qual como pequenos
chacais, os seres se comem em riso.
Sentimentos humanos? Nem eles, nem sexo que nào
passa, segundo G.H., de "susto de criança ". (PSGH, p. 160).
O amor é o inferno, nlícleo de capacidade infernal, identidade
última. Novamente, ouvimos a ressonância biblica nào
explicitada pelo narrador: `porque o amor é forte coma a
morte, cruel como o abismo é a paixdo; suas chamas sdo
chamas de fogo, urna fiasco de Iahweh!". (Ct, 8,6).
A liberdade é a de se cumprir. Os seres inumanos nào
escolhem. Os humanos podem decidir nào se "cumprir" ou
"escolher" vir a ser o que fatalmente sào. Tornar-se humano
nào pode transformar-se num ideal, porque entào se sufoca de
acréscimos (beleza, bondade, palavras etc.) como acontecera
a G.H. Tornar-se humano é obedecer ao vivo, escolher viver,
sem se criar urna alma. Deus quer o homem corn o mundo.
"(...) eu ja sabia que ser um humano é urna sensibilizaçdo,
um orgasmo da natureza. E que, se, por urna anomalia da
natureza, é que, em vez de sermos o Deus, assim como os

105. Compare-se Jo, 36.


152 CLARICE LISPEC'IUR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

outros seres O sao, em vez de O sermos, nets querfamos vé-


Lo". (PSGH, p. 153). A grande tentaçâo do homem é aspirar
a sentir, ver, saber. Expulsa pela curiosidade do aconchego de
sua personalizaçâo, G.H. descobre a matéria como explosâo
neutra de si melma e a vida como urna"indiferença titanica",
"interessada em caminhar ". (cf. PSGH, p. 153). Neste estagio,
a prece verdadeira é o "murmúrio neutro","a cabala de uma
magia negra", a identidade do ser humano "tocando a
identidade da coisa", distante da antiga prece humana
"encharcada de eu". (cf PSGH, p. 160-1).
A sede insaciavel do Deus revela que "Eu nao sou Tu,
mas mim és Tu" (PSGH, p. 157), isto é, a identidade com o
Deus nao pode realizar-se ao nível da subjetividade construída
(eu), mas da vida recebida e pienamente assumida (mim). O
narrador, como acontece em A maça no escuro e em outros
livros de Clarice, faz enunciados sobre a condiçâo humana,
usando o pronome da primeira pessoa do plural.
"A nostalgia nao é do Deus que nos (alta, é a nostalgia
de nos mesmos que nâo somos bastante; sentimos (alta de
nossa grandeza imposslvel, minha atualidade inalcançdvel é
meu paraiso perdido. Sofremos por ter tao pouca fome,
embora possa pequena fome ja dé para ,sentirmns uma
profunda falta que terlamos se fôssemos de fome maior.".
"Quanto mais precisarmns, mais Deus existe. Quanto mais
pudermos, mais Deus teremos." Numa intertroca fluida, nos
como Deus estamos ocupados em ser, isto é, em viver'6. (cf
PSGH, p. 179-180).
Deus, necessidade absolutamente infinita, precisa de
nos e nos usa totalmente. Também podemos aproveitar dele,
usa-lo numa intertroca que chamamos por enquanto de
"santidade". "Deus sempre esteve! quem esteve pouco fui
eu". (PSGH, p. 180). Quando Deus escolhe alguém porque
precisa especialmente de le, violenta-o e nées também podemos
violenta-lo (ressonância reiterada do texto biblico: o reino
dos céus é arrebatado à força e sâo os violentos que o
conquistam, Mt 11,12). "Tenho que me violentar para pre-

106. Os grifos sâo meus.


O SIGNO ICONIZADO 153

cisar mais ". (PSGH, p. 181). A raiz do precisar é ficar vazio


e necessitado. "O grande vazio em mim serri o meu lugar de
existir", "até nâo ter nada, e precisar de tudo". (PSGH, p.
181).
Paradoxalmente:

"(...) minha exigência é o meu tamanho"


meu vazio é a minha medida". (PSGH, p. 181).

Como somos pouco, precisamos pouco. E se nâo nos


basta o pouco, é porque adivinhamos o prazer major. "Como
cegos que tateiam, nos pressentimos" o núcleo da vida, "o
intenso prazer de viver". (cf PSGH, p. 182).
No conto "Amor", Ana, a mulher comum que vai As
comprar, ao ver o cego, sente que a vida lhe escapa nos
afazeres de todos os dias. Chegando ao Jardim Botânico, num
cenarlo de vida plena que apodrece nas 5rvores e no châo,
presa por causa do portâo fechado, quase nâo retorna à
propria casa, para reassumir o cotidiano. Mas acaba voltando,
como voltam todos os que passam pelas epifanias de beleza,
manifestaçóes instantâneas do núcleo da vida.
G.H. também deseja voltar, recuperar sua
superficialidade vazia e leve, reintegrar-se no humano, fazer
de conta que nada viu. Mas a experiéncia de G.H. é mais
radical. Ela nâo ve apenas através dos símbolos, porém
contata corn a realidade, por meio da açâo de corné-la: nâo é
urna epifania do ver, é um ritual do comer. A barata nâo é
somente um Icone da vida, mas é ela mesma massa viva, "um
tamanho escuro andando" (PSGH, p. 135), parte de urna
realidade major. No mais infimo, o Supremo. Nao
contemplado em enigma, mas cifrado na matéria, objeto de
um êxtase sem culminâncias.
Existe, portanto, no texto clariceano, essa aspiraçâo à
"primeiridade", buscando a direçâo do ser compacto, concreto,
objeto de todas as aproximaçóes, que a linguagem e a arte
propiciam.
O êxtase é um inquietante desejo de usar, pondo corpo,
alma, vida numa intertroca. Deus necessita ser usado, pois
esse é também um modo de ser compreendido. O texto
retoma as imagens humanas do amor -- isto é, a transcendência
154 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

— para reafirmar o valor da carência. No amor entre homem


e mulher, um sente que nâo pode viver sem o outro; a
revelaçào do amor é a revelaçâo de urna carência. O Reino da
vida é dos pobres de espírito. O prazer continuo da coisa é a
beatitude, pois Deus j éé e a vida esta à mao. (cf PSGH, p.
183).
Para reaprender o gosto do vivo, só corn a delicadeza
dos inocentes ou dos iniciados.
A matéria viva é inocente; inocente como a crueldade
da barata consigo mesma, ultrapassando a dor. O ser humano,
porém, é culpado e sujeito à moralidade, porque se constrói
uma alma; identificando-se corn a vida do núcleo, alcançara
urna moral isenta, corn a coragem de ultrapassar a dor.
Como aspiramos à beleza, nao compreendemos que é o
tédio que nos une. O tédio é fino demais para a nossa
insistência em sentir alegrias e felicidade. Queremos
incessantemente a beleza, mas é na coisa feia e monotona que
esta a crueza do vivo. O mundo cru tern a raiz grossa e negra
dos astros, a fonte suja do existente. G.H. da adeus à beleza
das crianças, à beleza do cavalo bebendo agua, à sensibilidade,
ao expressivo da arte. O inexpressivo é o inumano dentro da
pessoa e urge alcança-lo. A humanidade verdadeira. (cf
PSGH, p. 187).
A beleza é um engodo. G.H. era urn "eu devorador de
belezas", as quais, como acréscimo, obscurecem a identidade.
O mundo nâo tern intençâo de beleza e nenhum plano
estético. Deus é o que existe e nele coexistem todos os
opostos. (cf PSGH, p. 190-1).
Como dói a G.H. largar Ludo quanto o mundo Ihe era —
"largar" é uma atitude aspera e agressiva — ela usa de um
expediente: julgar-se fora de si, como se tudo quanto Ihe
acontecia nao fosse verdade. lnútil ardii. O neutro a chama e
reivindica, e ante o silêncio imperativo desse apelo, as
palavras emudecem. Falar passa a ser um ato mudo e falar
corn Deus, "o que de mais mudo existe", feito de sílabas
desconexas. (cf. PSGH, p. 191-2).
G.H. deve deixar o condimento da palavra, contatar
coin a coisa. A prece verdadeira nâo é algo para se subir
através dela, mas um nada vibrante. O amor maior nâo tern
beleza. Quando se tern nojo, o mundo nos escapa. 0 erro
O SIGNO ICONIZADO 155

basico de viver é ter nojo de uma barata, de beijar o leproso,


porque ter nojo contradiz a matéria, em nos. Nâo mais
transcender, nâo ir além; a redençao faz-se na própria coisa
e tem-se de botar na boca a massa branca da barata.(cf PSGH,
p. 195-6).
G.H. tenta raciocinar corn o nojo, lembrando-se que ja
bebeu o branco leite materno. A barata é urna espécie de mae
ancestral, cujo sangue, derramado por ela, é branco. mas
raciocínio logico nâo funciona mais. G.H. aspira entâo a um
comando hipnótico, que a conduza corno a um sonâmbulo,
dormindo, em pesadelo, a viver o pior. Corner sera o anti-
pecado, assassinando o eu, gesto único capaz de reunir seu
corpo e sua alma, na identidade total. O preço a ser pago é urna
sensaçâo de morte.
O suor, "antigo caldo de cultura", "planctum e pneuma
e pablum107 vitae", inundando-a meladamente, prova-lhe que
esta sendo. Experimentava o gosto de batata — tubérculo
(barata) e terra. G.H. vomita sua propria exaltaçâo. Depois da
revoluçao em seu corpo, purificada, limpa como uma menina,
ela podera, enfim comungar corn a vida, comer o corpo do
Deus, iconizado na barata. Numa vertigem, numa auséncia de
si, sem sua participaçâo, sem "saber" (sabot), algo se faz.
"Nâo sabendo ", o mais profundo cumpria-se; estando
aparentemente morta, o vivo se processava.
"Viver como sonâmbulo "é o segredo de nâo fugir à vida
major. Fechar os olhos em vertigem e nâo saber o que se fez
é fundamental ato de confiança.
G.H. descobre, porém, que ainda transcendia. Seria a
transcendência o línico modo de alcançar a coisa para o ser
human? Transcendéncia é lembrança: cornera a barata,
transcendendo o ato de comê-la. Tinha a vaga lembrança de urn
horror, sentia o nojento na boca e procurava cuspir a si mesma,
nao percebendo que se renegava. (cf. PSGH, p. 195-200).
O texto biblico do Apocalipse (agora explicitamente
citado), relido no contexto de sua experiência, isto é, parodia-
do, vem em seu socorro: "...porque na es nem frio nem
quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca". (Ap

107. sic
CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

3,16). Sao Joao escreve de Laodicéia, censurando a conduta


tibia dos cristâos ricos daquela Comunidade. G.H. tern
consciência nitida de que a frase "devia se referir a outras
coisas" (PSGH, p. 200), mas do fundo de sua memoria, ela Ihe
serve "para o insipido do que eu cornera". (PSGH, p. 200).
Cornera do insipido, do divino e o "divino é o real ".
(PSGH, p. 201). Beijar o leproso (como S. Francisco de Assis)
é superar o nojo, é "auto-realidade", é a "propria salvaçâo".
Santo é aquele que se queima para amar o neutro, o que nâo
é acréscimo. Santo prescinde de born e bonito, tudo the é
igual. O santo vive, "e viver é bondade para corn os outros".
Viver a propria largueza "é urna dkdiva" mesmo que a vida
toda se cumpra dentro de urna cela. A bondade neutra do Deus
é apelavel: basta ire ter (cf PSGH, p. 202). A fome é a fé: basta
ir e corner o milagre. "A necessidade é o meu gufa". (cf,
PSGH, p. 203).
E, de novo, eis que o narrador reafirma ser a trans-
cendência insuperavel. Porque a lei é que urna pessoa só possa
contatar corn a matéria de outra pessoa e nao corn a matéria
de urna barata. Por isso o ser humano é tao solitario. Ficar
apenas corn o destino humano e nâo precisar é solidao.
Precisar nao isola e a carência é nosso destino maior. O amor
fatal, inerente, é necessidade que se renova, e_slA sempre. (cf
PSGH, p. 204-5).
Ser o que é vivo é o estagio mais alto. Nao o "cogito",
o "penso logo existo", mas estou vivo, logo existo. O equilibrio
é instavel, porque "a graça da paixâo é curta ". (PSGH, p.
206).
Estar vivo é diferente de ter sensibilidade à vida. Estar
vivo "é grossa indiferença irradiante, inatingivel pela mais
fina sensibilidade". Estar vivo é nâo humano, nao é de-
sumano. (PSGH, p. 207).
A matéria viva se manisfesta em si mesma, desconhe-
cendo palavra, ultrapassando o grotesco pensamento. Ser é
ser além do humano (isto é, aquém, nao transcender). Ser
homem, no sentido anterior à experiência da barata, "é urn
constragimento" e daqui a milhares de anos, talvez afague-
mos nossa cabeça de hoje, corno adultos afagam urna cabeça
de criança. (cf PSGH, p. 207). 0 desconhecido nos aguarda,
a totalizaçao, a verdadeira humanizaçao.
O SIGNO ICONIZADO 157

Vida é muito diferente de felicidade (alias Joana-


menina ja se perguntava: "depois que se é feliz, o que
acontece? Vida é um estado de contato. Paraiso é apenas ser,
corn urna fatta enorme do que fazer. A vida tern purissimo
gosto de nada e essa é a possa experiência de gloria. (cf
PSGH, p. 207-8).
Viver ésóisto?pergunta-seatônitaG.H.. "Éexatamente
isto ", (PSGH, p. 209), responde-the a voz do texto. A
essência é de urna insipidez pungente. "Purificar-se" significa
lido querer o "acréscimo dos conhecimentos ". (PSGH, p.
209).
"Eu" é "um acréscimo de mim". (PSGH, p. 209). 0
caminho inverso, a travessia do oposto, é a destruiçâo da
personalizaçào, a destruiçào da personalidade intítil. G.H.
que vivia entre seus pares, que era, entre eles, visível,
reconhecível, despindo-se de suas características individuais,
torna-se a mulher-prototipo. Objetivando-se, podia reconhecer
o outro, sob qualquer disfarce. Em imanéncia, porque so
alguns poucos re reconhecem. (cf PSGH, p. 210). 0 do que se
vive, inominado, so a mudez pronuncia. (cf PSGH, p. 210).
Realiza-se a "deseroizaçào" de G.H., verdadeiro trabalho
profundo, sob as aparências da personalizaçâo. A vida é
missào secreta; o segredo é que dela se nasce incumbido,
missào se cumpre. Vocaçào ignorada, cumprindo-se à revelia
do eu superficial de G.H.. Vida nela nào tern o seu nome. Por
isso a personagem foi previamente designada somente por
duas letras. E ainda assim teve de perder as matas, corn suas
iniciais. Despersonalizada, respondera sempre que alguém
disser: eu. A "deseroizaçào" é o grande fracasso de urna vida,
a que nem todos chegam , pois é muito trabalhoso. É preciso
subir penosamente até a altura de poder cair. Para chegar à
despersonalizaçào da mudez é preciso construir antes urna
voz. A palavra precede o silêncio, maso silêncio é a plenitude
da palavra. Nossas civilizaçôes sâo necessarias. O malogro da
voz humana permite ouvir a voz das coisas, como possível
linguagem. (cf PSGH, p. 211-2).
"Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço de
voz. Minha linguagem existe corno um pensamento que nào
se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber
o que o pensamento pensa.
158 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

A realidade antecede a voz que a procura, mas como a


terra antecede a arvore, mas como o mundo antecede o
homem, mas como o mar antecede a visâo do mar, a vida
antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por
sua vez a linguagem um dia tera antecedido a posse do
silêncio" (PSGH, p. 212).
A natureza humana aceita esse suplício, espantada. A
dor nâo é algo que the acontece episodicamente, maso u s
é. A condiçâo humana. Viver nossa condiçâo é a paixâo, a
paixâo de Cristo. (cf PSGH, p. 212). A paixâo de G.H.. A
paixâo da personagem que sofre a experiência corn a barata,
a paixâo do narrador que se calara, no fini do relato.
Ha um trajeto da transcendência à imanência, passando
pelo mito faustico da Ansia humana, do querer saber. No texto
de Clarice, a alma se vende, porém, ao Deus, nao ao demônio.
Embora a alegria da imanência seja urna alegria de saba, isto
é demoniaca. É que no Deus, ha a síntese dos opostos.
Primordialmente, a realidade é "pensamento que nâo se
pensa"(paradoxo) Mas, o homem quersabere, por fatalidade,
sua voz humana (linguagem) procura o real.
Entre realidade, terra, mundo, mar, matéria corporal,
linguagem, ha um sema comum: eles sâo o châo de onde
emerge um fruto:
da realidade, a voz (linguagem)
da terra, a arvore
do mundo, o homem
do mar, a visâo do mar
da vida, o amor
da matéria corporal, o corpo humano individual
da linguagem, o silêncio.
A linguagem é a (mica noçâo que pertence aos dois
semas: elaé chdoefruto. Por que elaéaresnost
T_'ua afa para
o saber. Só que este saber gera também um fruto definitivo:
o silêncio.
O silêncio é, pois, a plenitude da linguagem:

" Mas eu tenho multo mais à medida que nâo


consigo designar. A realidade é a matéria-
prima, a linguagem é o modo como you busca-
la — e como nâo acho. Mas é do buscar e nâo
achar que nasce o que eu ndoconhecia, e que
O SIGNO ICONIZADO 159

instantaneamente reconheço. A linguagem é


o meu esforço human. Por destino tenho
que ir buscarepor destino volto corn as maos
vazias. Mas — volto corn o indizível. O indizivel
só me poderd ser dado atravésdo fracassode
minha linguagem. Só quando falha a
construçao, é que obtenho o que ela näo
conseguiu ". (PSGH, p. 213).

Da realidade nasce a voz que procura, da linguagem


germina o silêncio, isto é, da realidade brota o silêncio,
passando porém, necessariamente, pela mediaçâo da
linguagem. Designar as coisas, nomea-las, é privilegio da
linguagem e da posse da realidade.
"Eu tenho à medida que designo — e este é o esplendor
de se ter urna linguagem". (PSGH, p. 212). Martim, no alto
da montanha, aponta as coisas e aspira à linguagem a que
antes renunciara, isto é, aspira a nomear os seres, como no
Éden o homem adâmico.
Esta nomeaçâo do ser pela linguagem, no texto clari-
ceano, parece que sempre se mescla corn a tarefa do escritor,
com sua missâo. Urna missi() muito mais radical do que uma
simples tarefa social.
Alias, existe também, nos textos de Clarice, uma os-
cilaçâo que revela urna dtivida constante: ela, corno escritora,
genuinamente, sempre preferiu o "sussuro" dos fatos aos
proprios fatos.
Mas nâo se recusa — pelo contrario, se entrega — ao
trabalho, quase acima de suas forças, de tentar também essa
passagem: reduzir-se à descriçâo dos objetos, guiada por sua
aspiraçâo à imanência, à primeiridade. Ela quer a coisa, mas
nâo pelo exterior. Porém, faz essa tentativa de urna falsa
epifania do ver exterior, à qual entrega completamente sua
personagem mais estranha a ela mesma: Lucrécia de A
cidade sitiada. Mesmo em Um sopro de vida, volta a essa
experiência, fazendo Angela descrever a coisa, sempre olha-
da de viés pelo Autor, que atribui os esforços de Angela as
manias literârias.
Esse ver exterior porém, esse colher a coisa na propria
coisa, tentando reduzira transcendência da linguagem, nâo da
a Clarice os frutos que ela persegue.
160 CIARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Seu caminho é outro: ela nasceu "incumbida "; o escritor


nasce corn urna missâo secreta, mas é a de fazer incessantes
perguntas sobre o ser, sobre a condiçâo do homem e da
mulher, sem nunca chegar a urna resposta cabal. Barthes ja
disse que a literatura é urna pergunta, nâo urna resposta sobre
o mundo. Esta missâo secreta cumpre-se, apesar do fracasso
da linguagem do escritor. É urna espécie de missâo messianica,
a que o texto biblico, inserido no texto de Clarice, serve
também de apoio. Diz-se do Messias que ele enviou o seu anjo
(Joâo Batista), diante dele, para aplainar-Ihe os caminhos.
Diz G.H.:

"Enviei o meu anjo para aparelhar o caminho


diante de mim e para avisaràs pedras que eu ia
chegar e que se adoçassem à minha in-
compreensâo.
E foi o meu anjo mais suave quem encontrou o
pedaçodecoisa. Elenâopodiaencontrarsenào
o que era. Pois mesmo quando algo cai do céu,
é um meteorito, isto 4 um pedaço de coisa. O
meu anjo me deixa ser a adoradora de um
pedaço deferro ou de vidro. " (PSGH, p. 168).

Na condiçâo humana e na condiçâo de escritor, ela vive


a tentaçâo de saber, de designar a coisa. Simbolizando-a ou
indiciando-a de fora, porém, ela a perde.

"Mas é a mim que caberb impedir -me de dar


nome à coisa. O nome é um acréscimo, e
impede o contato corn a coisa. O nome da
coisa é um intervalo para a coisa. A vontade
de acréscimo é grande - porque a coisa nua
é tao tediosa". (PSGH, p. 168).

Escrever é por isso a grande proibiçâo. A maçâ no


escuro, o fruto proibido, é a palavra. O "escuro", onde esta a
maçâ, "näo é ilumindvel, o escuro é um modo de ser: o escu-
ro é o nó vital do escuro, e nunca se foca no nó vital de um
coisa" (PSGH, p. 165-6).
"Pois a coisa nunca pode ser realmente tocada. O nó
vital é um dedo apontando. (PSGH, p. 165).
O SIGNO ICONIZADO 161

A palavra é proibida, porque sempre se vai além da


coisa. Porém, jamais se poderâ atingir a coisa se nâo se passar
pela proibiçâo da palavra — esta a incumbência do escritor.
Missâo parodoxal, porque nâo tern porta de salda.
A "outra margem" de Clarice nero é a 3' margem, mas
é a Primeira. Ela quer o "primeiro", segundo a concepçâo
peirceana. A voz, a linguagem, sempre lhe dao o terceiro, o
simbolo ("a beleza" a rejeitar), nâo a identidade. Por vezes,
ela expressa a primodial certeza de que sua estranha linguagem
seja o mais direto contato corn o real:

"Ah, estou sendo tdo direta que chego a parecer


sinrhólica ". (PSGH, p. 164)108.

108. "Simbolica", nesta situaçao, tem o sentido de iconico, pois G.H. estai
i querendo ser "tao direta". No paragrafo anterior, usamos a terminologia
peirciana dos tris niveis de signo relativos à gradaçao: primeiridade,
secundidade e terceiridade, que abrange a conhecida distinçao dos signo:
icone, indice e simbolo.
"A valéncia do primeiro esta aliada ils noçóes de acaso, potencialidade,
indeterminaçao, espontaneidade, qualidade, presentidade monda... a valéncia
de Segundo se liga as idéias de força bruta, esforço e resisténcia, agio e reaçao,
con0ito, aqui e agora, dfada... à valéncia de terceiro correspondem às noçóes
de generalidade, continuidade, crescimento, representaçao, mediaçao, trfada...
(Santaella, M. Lucia, "Corno chegar até a Semiética de Peirce" forni da
Tarde, Estado de Sdo Paulo, 8.10. 83, p. 6 do "Cademo de Programas e
Leituras").
"Um fcone é um signo que se refere ao objeto que denota apenas em
virtude de seus caracteres proprios, caracteres que de egualmente possui quer
urn tal objeto realmente exista ou nao. É certo que, a menos que realmente
exista uni tal objeto, o icone nào atua corn signo, o que nada tern a ver corn
seu calter como signo. Qualquer coisa, seja urna qualidade, um existente
individual ou urna lei, é icone de qualquer coisa, na medida em que for
semelhante a essa coisa e utilizado como um leu signo. Um indice é uni signo
que se refere ao objeto que denota em virtude de ser realmente afetadopor esse
objeto.(...) Na medida em que o indice é afetado pelo Objeto, tern de
necessariamente alguma Qualidade em comum corno o objeto, e é corn
respeito a estas qualidades que de se refere so objeto.
(...) Um simbolo é um signo que se refere ero objeto que denota em
virtude de umd lei, normalmente urna associaçéo de idéias gerais que opera
no sentido de fazer corn que o simbolo seja interpretalo co Semidtica. S.P.
Perspectiva, 1977. Trad. de Teixeira Coelho Neto. Coleçao Estudos, p/ 52).
Para mais, remetemos o leitor ao artigo de M. Lucia Santaella publicados no
'ornai da tarde, no Cademo de Programas e Leituras (dos dias 24.09.83,
01.10.83, 08.10.83), que nao so dao urna visao atual e abrangente do projeto
de Peirce, mas respondem a urna série de rotulaçiies e limit. çt+Ps atribuidas
a seu pensamento.
162 CLARICE LiSPE(. rOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Mas, em A paixio segando G.H., sua experiência-


limite é percorrer o itinerario da linguagem até o silêncio.
Arenúncia à sua vida pessoal é a destruiçâo da linguagem
humana, da voz que procura o ser.

"... viver a vida em vez de viver a propria vida


é proibido. É pecado entrar na materia divi-
na". (PSGH, p. 172).

A puniçâo irremediavel é a desorganizaçâo do mundo


humano. Quem faz isso tem de ser preso. Vern a polícia, os
"representantes" da ordern, como aconteceu a Martim.
A tentaçâo de viver a vida, corner o núcleo, "pole fazer
corn que nüo se passe a outra margem" à margem oposta, à
transcendência, à humanizaçào gradual.
Mas ficar dentro é a loucura, é aceitar a semente oculta
da verdadeira humanidade. O tédio é o preço, e corn e1e se
alcança o atonal de que se formaram os mundos. (cf. PSGH,
p. 171).
O atonal é a renúncia ao melodico, ao gozo das palavras
sobre as coisas, ao "orgasmo da beleza extrema ". (PSGH, p.
171).
Até no amor, o tédio é a prova mais cabal de sua
verdade:
"Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais
conheci. Eras a monotonia demeu amor eterno,
e eu nao sabia. Eu tinha porti o tédio que sino
nos feriados. O que era? era corno a dgua
escorrendo numa fonte de pedra, e os anos
demarcados na lisura da pedra, o musgo
entreaberto pelo fo d'dgua correndo, e a nu-
vem no alto, e o bem amado repousando, e o
amor parado, era feriado, e o silêncio no vôo
dosmosquitos. Eo presente disportive!. Eminha
libertaçâo lentamente entediada, a fartura do
corpo que niio pede e ndo precisa.
Eu n io sabia que aquilo era amor delicado. E
me parecia o tédio. Era na verdade o tédio ".
(PSGH, p. 186).
O SIGNO ICONIZADO 163

O tédio, porém, é a delicadeza "corn as coisas e o


tempo", é respeitar o feriado e nada fazer.
"Mas tudo isso era fino demais para a minha pata
humana. E eu, eu queria a beleza ". (PSGH, p. 187). Em vez
de colher a coisa, de ficar no peso que ela tern.

"E que se vejam as folhas, como elas sàoverdes


e pesadas, elas se er"speraram em coisa, que
cegas sito as folhas e que vendes elas sao. E que
se sinta na mao corno tudo tem um peso, à mào
inespressiva o peso nit() escapes Que nào se
acorde quem este) todo ausente, quern esté
absorto estri sentindo o peso das coisas. Urna
das provar da coisa é o peso: 05 voa o que tern
peso". (PSGH, p. 171).

Por isso "tern peso" a escritura de Clarice? Por isso, o


ver por dentro é o destino mais alto de sua voz? Por isso, a
descriçao de objetos, como no "nouveau roman", é somente
um exorcismo para a sua escritura?
Aliras, nâo se peça à Clarice coerência progressiva em
seu eterno dialogo entre imanência/transcendência, seri
ecrever, linguagem/silêncio". Ela vai e vem, parte e retorna.

109. Diz Jean Wahl, estabelecendo rentes entre imanéncia e transcendência:


"Quando estamos na transcendência, niio vemos mais a imanéncia. Urna
sinfonia, em certo sentido, se reduz a vibraçbes, mas esta verdade nâo é
valida para quem ou ve e admira a sinfonia. A sinfonia tern um significado
que transcende a verdade das proposiçbes matemiticas, que, sob certo
ponto de vista, a explicam. Da mesma forma, quando se atinge o ponto
miximo do movimento da transcendência, nâo hi mais separaçâo entre
imanéncia e transcendéncia. Portanto, nit) hi possibilidade de pensar a
imanéncia sem a transcendência nem transcendéncia sem imanéncia. É
preciso concebê-las corn uma penetrando a outra e a outra reenglobando
a primeira. Nio podemos pensar a transcendência senâo pensando que,
de certa maneira, somos imanentes nela (o que se poderia chaman de
imergéncia) e nâo podemos pensar a imanéncia sertir) pensando que, de
certa maneira, Ihe somos transcendentes. A imergência é a imanéncia da
imanéncia na transcendéncia.
A emergência, como define Alexander, é a transcendência da
imanéncia em relaçâo à imanéncia. Existe entre a transcendência e a
imanéncia um conjunto de relaçbes que parecem contraditbrias. Existe
urna luta entre a transcendéncia e a imanéncia, se é verdade que nâo nos
164 CLARICE L.ISPECIOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Nasceu "incumbida" — essa a sua missâo secreta — e perdeu


a senha, como todos os grandes criadores, em qualquer arte.
Dai, também sua obsessâo pelo inexpressivo:

"(...)pois quando a arte é boa é porque tocou


no inexpressivo, a pior arte é a expressiva,
aquela que transgride (...) " (PSGH, p. 172).

Que ninguém pense porém, encurtarocaminhoe chegar


antes, em matéria de viver: começar logo pelo despessoal,
sabendo que a voz diz pouco. A trajetória tern de sercumprida.
Ela nâo é um caminho um modo de ir, mas o proprio ser em
processo A via-crucis de cada um nâo é um descaminho, mas
a passagem ionica. A passagem pela barata. lnsistir é tarefa
humana; desistir é o prëmio. Insistir é experimentar o poder
de construir. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida,
verdadeiro instante humano, gloria própria da condiçâo
humana, revelaçâo. "Desistência é revelaçâo". Supera-se o
momento epifânico da revelaçâo como. Desistência é nit)
ter força, é existir, e na mao fracs o mundo tabe inteiro. Viver
de insônia. Chegando à altura de poder cair, G.H. escolhe,
estremece, desiste, se volta à própria queda, despessoal, sera
voz própria.
Batizada pelo mundo, realiza o ato Infimo de botar na
boca a massa da barata. Nâo o ato mâximo, heróico, santo.
Mas, ela que sempre fora incapaz do ato infimo, deseroizada,
quebrara o involucro e sem limites, ela era.
"Por nâo ser, ela era ".l 10 Nâo sendo, tudo esta nela. O
destino humano entregando-se ao que é maior do que o eu,

encontramos diante de uma transcendéncia que simplesmente aanciona,


mas diante de uma transcendéncia que rompe o proprio élan por eia
suscitado (...) Ha um movimento de transcendéncia dirigida para a
imanéncia; quando a transcendéncia se transcende a si mesma. Talvez a
major transcendéncia seja a que consiste em transcendera transcendéncia,
irto é, recair na imanéncia. (Wahl, Jean. "Sur l'idée de transcendance".
In: Existence humaine et transcendance. Neuchatel. Ed. De La
Baconnière, 1944, p. 34-8. Cahiers de Philosophie "-tre et Penser".).
110. Como o"Ulysses" de Fernando Pessoa, em Mensagem::"Foi por Mo ser
existindo".(In: Obra Poética. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1976,
p.72).
O SIGNO 1CONIZADO 165

alcança a grandeza do mito. Agrega-se ao desconhecido,


como o único modo de ultrapassar que niio o excluía. Diz
G.H.: "Como a palavra mente a coisa, nunca mais
compreenderei o que eu disser". (PSGH, p. 217). Nâo
entendendo, "a vida se me é".(PSGH, p. 217) "e entdo
adoro"; ela aproxima-se com angustiada idolatria de alguma
coisa.
Essa "travessia do oposto", ao encontro da identidade,
esse vomitar a propria exaltaçâo, é um itinerario cujo objetivo
fora vislumbrado por Joana (o selvagem coraçâo da vida),
mas niio percorrido por ela. Joana e Virginia estavam longe
de despersonalizarem-se. Lucrécia Neves, a protagonista de
A cidade sitiada, exteriorizava—se, mas nâo era ainda a
despersonalizaçâo. Porque nâo fizera o percurso de ter primeiro
uma voz.
O texto daquele livro oferecia um exercício de ver a
coisa, mas de fora. Certas passagens, aparentemente
ininteligíveis, como aquelas em que Lucrécia grotescamente
bate coin "quatro sapatos" no châo, indiciam parodicamente
esse retorno ao primordial, mas pelo seu avesso. Por isso a
linguagem ali se apresenta sob a marca do signo sitiado.
Do signo sitiado à mudez, ao siléncio primeiro, eis
também um itinerario da ontologia empirica da palavra, que
sem dúvida se desenha na poética de Clarice.
166 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

SEQUÊNCIA DAS FRASES DA ESTRUTURA CICLICA

Cap.
(I) estou procurando, estou procurando.
É que um mundo todo vivo tern a força de um Inferno.
(II) É QUE um mundo todo vivo tern a força de um Inferno.
Só eu saberei se foi a falha necessaria.
(III) SÓ eu saberei se foi a falha necessaria.
Depois dirigi-me ao corredor escuro que segue à area.
(IV) DEPOIS dirigi-me ao corredor escuro que segue à area
Entao, antes de entender, meu coraçâo embran-
queceu corno embranquecem.
(V) ENTAO, antes de entender, meu curaçao embran-
queceu como cabelos embranquecem.
Foi entao que a barata começou a emergir do fundo.
(VI) FOI ENTAO que a barata começou a emerger do fundo.
cada olho reproduzia a barata inteira.
(VII) CADA olho reproduzia a barata inteira.
Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e timido.
(VIII) EU CHEGARA ao nada, e o nada era vivo e timido.
Perdâo é um atributo da matéria viva.
(IX) PERDAO é um atributo da matéria viva
Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.
(X) EU FIZERA o ato proibido de tocar no que é imundo.
Entao, de novo, mais um milímetro grosso de ma-
téria branca espremeu-se para fora.
(XI) ENTAO, de novo, mais um milímetro grosso de ma-
téria branca espremeu-se para fora.
finalmente, meu amor, sucumbi. E tomou-se uni agora.
(XII) FINALMENTE, meu amor, sucumbi. E tornou-se
um agora.
Pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao
humano.
O SIGNO ICONIZADO 167

(XIII) POIS o que eu estava vendo era ainda anterior ao


humano.
Neutro artesanato da vida.
(XIV) NEUTRO artesanato da vida.
Nem mesmo o medo mais, nem mesmo o susto mais.
(XV) NEM MESMO o medo mais, nem mesmo o sunto mais.
Da-me a tua mao:
(XVI) DA-ME a tua mao:
A vida pré-humana divina é de urna atualidade que
queima.
(XVII) A VIDA pré-humana divina é de urna atualidade
que queima.
Eu procurava urna amplidâo.
(XVIII) EU PROCURAVA uma amplidâo.
o pals do medo, de Timiri, na terra além das regiôes
da passagem.
(XIX) (nâo repete o final do XVIII)
E voltei-me de chôfre para o interior do quarto que,
na sua ardência, pelo menos nâo era povoado.
(XX) E VOLTEI-ME de chôfre para o interior do quarto
cote, na sua ardência, pelo menos nâo era povoado.
Mas ha alguma coisa que é preciso ser dita, é
preciso ser dita.
(XXI) MAS HA alguma coisa que é preciso ser dita, é
preciso ser dita.
Pois em mim mesma eu vi corno é o inferno
(XXII) POIS em mim mesma eu vi corno é o inferno
o inferno é o meu mâximo.
(XXIII)O INFERNO é o meu mâximo.
Eu estava comendo a mim mesma, que também sou
matéria viva do sabâ.
(XXIV) EU estava comendo a mim mesma, que também
sou matéria viva do sabâ.
ela sentiria falca do que deveria ser seu.
168 CLARICE üSPECl'OR: A TRAVESSIA DO OPOSI'O

(XXV) ELA sentiria falta do que deveria ser seu.


porque a coisa nua é tao tediosa.
(XXVI) PORQUE a coisa nua é tao tediosa.
nao devo ter medo de ver a humanizaçâo por dentro.
(XXVII) NAO devo ter medo de ver a humanizaçâo por dentro.
aumentar infinitamente o pedido que nasce da
caréncia.

(XXVIII) AUMENTAR infinitamente o pedido que nasce da


carência.
o gosto do vivo.
(XXIX) O GOSTO do vivo.
nossas maos que sao grossas e cheias de palavras.
(XXX) NOSSAS maos que ski grossas e cheias de palavras.
É que nao contei tudo.
(XXXI) É QUE nao contei tudo.
o divino para mim é o real.
(XXXII) O DIVINO para mim é o real.
falta apenas o golpe da graça — que se chama paixao.
(XXXIII) FAUTA apenas o golpe da graça — que sechamapaixao.
A desistência é uma revelaçao.
(XXXIV) A DESISTÊNCIA é urna revelaçao.
E entao adoro
O SIGNO 1CONIZADO 169

GRAFICO
DA ESTRUTURA CIRCULAR DOS CAPÍTULOS
DE A PAIXAO SEGUNDO G.H.
CAPÍTULOS
XXXIV Fim XVIII Fim
I Início XIX Início
I Fim XIX Fim
Il Início XX Início
II Fim XX Fim
III Início XXI Início
III Fim XXI Fim
IV Início XXII Início
IV Fim XXII Fim
V Início XXIII Início
V Fim XXIII Fim
VI Início XXIV Início
VI Fim XXIV Fim
VII Início XXV Início
VII Fim XXV Fim
VIII Início XXVI Início
VIII Fim XXVI Fim
IX Início XXVII Início

IX Fim XXVII Fim


X Início XXVIII Início

X Fim XXVIII Fim


XI Início XXIX Início
Cap. I:
XI Fim imcio XXIX Fim
XII Início estou procurando XXX Início
estou procurando.XXX Fim
XII Fim
XIII Início Eentâoadoro XXXI Início
Cap. XXXIV :
XIII Fim fim XXXI Fim
XIV Início XXXII Início

XIV Fim XXXII Fim


XV Início XXXIII Início
XV Fim XXXIII Fim
XVI Início XXXIV Início
XVI Fim XXXIV Fim
XVII Início
XVII Fim
XVIII Início

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