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1
37 C.F.R. §201.14 2018
OLGA DE SA

CLARICE
LISPEGIOR
A TRAVESSIA DO OPOSTO
Dudes de Catalogaçb na Publicaçio (CIP) International
(Cimara Brasikira do Livro, SP, Brasil)

Si, Olga de,


Clarice Lispector : a travessia do oposeo / Olga de SL — Sb Paulo :
ANNABLUME, 1993. -- (Selo universidade. Literatura : 8)

Bibliografia.

I. Critica literfria 2.Liapector, Clarice. 1925-1977 - Critica e interpretaçio


3. Literaura brasileira - Hist6ria e critica I. Titulo. H. Série.

93-1914 CDD-869.90904

indices para catalogo siatemitico:


I. Literatura brasileira : Steele 20 : História e critica 869.909004
2. Século 20 : Literature brasileira : História e attica 869.909004
ISBN: 85-85596-05-8

CLARICE LiSPECTOR:
A TRAVESSIA DO OPOSTO

Olga de Si

9697
/_S6
z9s3X
1993 CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Penuela Canizal
Lucrécia D'4léssio Ferrara
Willi Bolle
Norval Baitello Junior

P ediçâo: agosto de 1993

O Olga de Si

ANNABLUME editora . comunicaçâo


Av. Paulista, 2073 . Edif. Horsa I . cj. 303
01311-940. São Paulo . SP. Brasil
Tel. e Fax. ((111) 287.4449
A Haroldo de Campos, poeta e mentre, criador de
galóxias, "transcriador" de saber e amido.
INDICE
APRESENTAÇAO 9
INTRODUÇAO 19
CAPÍTULO I
A REVERSAO PARODICA DO yu EM F.SPIAg:
O SIGNO SITIADO 35
CAPÍTULO II
A REVERSAO PARODICA DA FALA EM MUDEZ:
O SIGNO PROIBIDO 73
CAPITULO III
A REVERSAO PARODICA DA
CONSCIÊNCIA NA MATERIA VIVA:
O SIGNO ICONIZADO 131
CAPÍTULO IV
A REVERSAO PARODICA DA
SOLIDAO NA FELICIDADE A DOIS:
O SIGNO BANALIZADO/SUBLIMADO 171
CAPÍTULO V
A REVERSAO PARODICA DA ILUSÂO
FICCIONAL NO SEU DESMASCARAMENTO 47

Anexo:
UMA PERSONAGEM EM BUSCA DO
AUTOR-ESCRITOR: CLARICE LISPECTOR 217

BIBLIOGRAFIA
DE CLARICE LISPECTOR 271
SOBRE CLARICE LISPECTOR 272
GERAL 282
30 CLARICE LISPEC"InR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

mesma do termo "parodia" que deva sugerir a referencia a este


efeito cômico ou burlesco. O uso moderno da parodia nâo
necessariamente visa ao ridicule à destruiçao"Aparodia implica
antes urna distancia critica entre o texto de fundo - que é o parodi-
ado - e o novo texto nele embutido. Distância ordinariamente
assinalada pela ironia. Ironia, porém, mais critica que destruidora.
Toda parodia é urna forma literaria sofisticada. O autor
- e conseqüentemente o leitor - realiza urna espécie de
sobreposiçâo estrutural de textos: o encaixe do velho no no-
vo. A parodia torna-se urna síntese, bitextual.'8
A Autora distingue a parodia do pasticho e da adaptaçâo,
porque estas sâo duas formas essencialmente monotextuais:
nâo produzem nenhuma síntese, nâo revelam deferência para
corn o texto de empréstimo. M semelhanças de estrutura
entre a metafora e parodia sâo mais claras. Ambas exigem do
leitor - em termos estratégicos - que construa urna significa-
çâo seguida por deduçöes operadas a partir da superficie do tex-
to, ou, em termos estruturais, que complete o primeiro plano corn
auxílio do conhecimento, que de tenha, do texto de fundo.
A discussâo a respeito da estrutura da parodia e da ironia
inclui urna reflexao sobre o que Linda Hutcheon chama
"estratégia"; corn este termo, requer se levem em consideraçâo,
ao mesmo tempo, a intencionalidade do autor e o engajamento
do leitor. Porque o ato de parodiar é urn ato de incorporaçao, sua
funçâo é também a de separaçâo, de contraste. Se o leitor nâo

17. Em outro artigo denominado "Ironie, satire, parodie", Linda Hutcheon


reforça esses conceitos, mas diz: Em conformidade com o sentido
"contra" ou "frente a" de "para", poder-se-ia colocar, em principio, um
ethos par6dico contestatario, provocador, o que estaria de acordo com o
conceito tradicional do One ro. Porém, a partir do sentido de "ao lado de"
de "para", poder-se-ia firmar a hipótese de um ethos respeitoso, sobretudo
em relaçao à parodia na metaficçào pos moderna, mas também quanto à
parodia litúrgica da Idade Média, à imitaçao tomo genero no Renascimento
e talvez até quanto ao camavalesco bakhtiniano. Poétique (46): 147, avril
1981. Em 1985, saiu em Lisboa, nas Ediçbes 70, a traduçao portuguesa
do livro de Linda Hutcheon, A Theory ofParody, com o tftulo Unta teoria
da parodia: ensinamentos das formas de arte no século XX. A traduçao
E de Teresa Louro Pérez.
18. Num sentido quase "bilingue": ver Sandra Golopentia-Eretescu,
"Grammaire de la parodie", Cahiers de linguistique théorique et appliquée,
6, 1969, p. 171. "Embora adquirindo a lingua do parodiado, o parodista
nero delta de dispor da sua".
RVTRODUÇÂO 31

puder identificar urna alusâo deliberada (ou mesmo urna citaçâo),


ele a naturalizara pura e simplesmente, adaptando-a ao contexto
geral da obra. Mas uma tal naturalizaçâo des-truira a propria
forma da parodia.
A identidade estrutural do texto, como parodia, depende
entâo da consciência, ao nível estratégico, da interpretaçâo do
leitor e da intençâo do autor.
A forma moderna de parodia difere, estrategicamente, do
burlesco, especialmente em sua natureza literaria imitativa ou
contrastiva. É urna forma mais complexa.
Os problemas mais arduos de definiçâo nascem da confu-
sâo entre parodia e satira e de suas relnde
-scorn a ironia. Embora
sejam géneros literarios, o uso estrutural do contraste nâo é
essencial à definiçâo formal de satira, mas intervém neces-
sariamente na de parodia e ironia. A principal diferença entre os
dois géneros reside na estratégia utilizada e nos fins visados.
Mesmo aceitando-se o ridículo como finalidade da parodia
moderna, seria o ridículo de um fenômeno literàrio. A satira,
como notam os dicionarios e a critica literaria, é fenômeno mais
geral, e frequentemente tem intençâo moral. Pode servir-se de
técnicas literarias, mas seu objetivo (o ataque aos vícios e às
tolices dominantes) é, em primeira linha, nâo literario.
A satira pode utilizar-se da parodia literaria como disposi-
tivo estrutural, mas esta pocsibilidade nâo implica nenhuma
estratégia literaria intencional. Os dois termos incluem, talvez
por causa desse distanciamento irônico, um juízo de valor, mas
existe entre ambon uma diferença importante. A satira usa esse
distanciamento para fazer um julgamento negativo sobreoobjeto
da propria satira. Para alterar, menosprezar, ferir. Na parodia
moderna, se postula, obrigatoriamente, tal juízo negativo pela
colocaçâo, em contraste, dos textos. A arte parodica é, ao
mesmo tempo, desvio em relaçâo a urna norma literaria, e
inclusâo desta norma como material parodiado interiorizado.
Frye registra, na Anatomia da critica, que a satira é social em
sua intencionalidade; a parodia é puramente formal. Os dois
textos contrastantes se medem um pelo outro; a ironia joga nos
dois tabuleiros.
Linda Hutcheon refere, também, que, muitas vezes, os au-
tores modemos sentem necessidade de pactuar corn as conven-
çoes literarias. A parodia pode tornar-se exorcismo, ato de
emancipaçao; pode assinalar um distanciamento do proprio autor.
32 CLARICE LISPEGTOR: A TRAVESStA DO OPOSTO

da partici-
Como Abastado, salienta ainda a necresidade
colaborador que atualize e chame
paçâo do leitor, ou seja de um
à existéncia o universo das palavras. A tarefa do leitor, na
construçao do sentido de um texto parodico, é mais complexa do
que no caso da leitura comum, e na sua complexidade, é as-
simil£vel à tarefa do intérprete do texto irônico —o modoprincipal
desta forma moderna de paródia. O ato do autor é incompleto
sem o leitor competente. Assim, a major acusaçâo lançada
contra a "rnetaficçâo" é a de elitismo.
Linda Hutcheon distingue a paródia da categoria geral de
intertextualidade, porque a ironia parece ser o traçocaracterístico
da ficçao contemporânea. Sugere que a paródia moderna possa
serconsiderada como urna forma literaria autônoma, na qual urna
distinçâo consciente, ou urn contraste irônico, é provocado para-
doxalmente pela incorporaçâo ou síntese de elementos textuais
pré-existences. Um dos resultados dessa funçâo contrastiva, é que
a paródia irônica pode realmente tornar-se urna forma de critica
literària. Tern a vantagem de permanecer imanente, meta-
literâria e sintética. É, ao mesmo tempo, recriaçào e criaçâo.
A própria escolha do texto parodiado implica um ato cr tico
de avaliaçao da parte do parodista, nao redutível a um julgamento
negativo. É também um meio de exorcizar seus fantasmas
pessoais ou, mais exatamente, de os arrolar em causa própria.
Neste sentido, é um fator de aceleraçâo da história literâria. Do
romance de cavalaria e da preocupaçâo com a realidade cotidiana,
nas'Pram D. Quixote e o romance moderno.
As idélas de Linda Hutcheon reforçam o conceito de "can-
to paralelo", que sera aplicado a este trabalho, na esteira dos
ensaios sobre o Miramar e sobre A escritura mefistofélica.
O ensaio por último citado de Haroldo de Campos era,
porém, somente urna parte de um estudo mais ampio, que saiu em
forma de livro, em 1981, sob o tjtulo: Marginalia Fâus-tica:
Deus e o Diabo no 'Fausto' de Goethe. O trabalho, precedido
de urna transcriaçâo das duas cenas finais do Ato V do Segundo
Fausto, completava-se corn urna abordagem da Segunda Parte
do poema goetheano: "Bufoneria transcendental: o riso das
esferas"; e um Post-Scriptum "Transluciferaçdo
Mefistofkustica ", sobre problemas de metafisica e fisica da
traduçao e, em particular, da transcriaçâo em português dos
fragmentos finais do Fausto. Destaca, ainda, o autor, as fontes dos
ingredientes paródicos do texto do Primeiro Fausto, sempre no
33
1NTRODUÇÂO

sentido etimologico do termo parodia: o Livro deJó, o Hamlet e


o Macbeth de Shakespeare, a cabala, a alquimia, os provérbios
populares, hinos sacros, cançOes e todas as variantes lendarias,
que circularam a respeito da figura do Dr. Fausto.
Goethe defende-seda acusaçâode plagio, pois, segundoele
(antes de Ezra Pound), tudo pertence, de direito, ao poeta.
O Fausto, qual um "produto de feitiçaria", é obra "opaca",
que obriga o leitor a entrar no seu jogo de corpo textual. Aplica-
se-lhe ainda o conceito bakhtiniano de "camavalizaçâo", que
passa pela "desentronizaçâo" da ciência em favor do amor e da
vida, dos quais, por ironia, Mefisto se faz defensor.
Enfin, a via estava franqueada. Movida por tal leitura e
meditaçao, acabei elegendo o enigmatico "Chorus Mysticus"
para epigrafe deste trabalho, pois ele, poeticamente, sintetiza/
potencializa todo o meu prosaico discurso-critico.

CHORUS MYSTICUS
"O PERECIVEL
ÉAPENAS SIMILE.
O IMPERFECTIVEL
PERFAZ-SE ENFIM.
O NAO-DIZIVEL
CULMINA AQUI.
O ETERNO-FEMININO
ACENA, CEU ACIMA. "
(trad. de Haroldo de Campos)"

19. 13, em A escritura de Clarice Lispector, havia escolhido, como síntese da


tarda do escritor, a frase de Barthes, frase verdadeira ao mens em relaçâo
a Clarice: "inexprimir o exprimível".
Clarice faz o protagonista deA maso noescuro, Martim, ter a "coragem
de deixar inexplicado o que é inexplicâvel" (ME, p. 245). Em A Paixao
Segundo G.H., desvenda-se a obsessâo do narrador pelo "inexpressivo".
(PSGH, p. 172). 0 indizivel (o nr o-dizível) so nos poderi sei dado por melo
do fracasso da linguagem. (PSGH, p. 213). Em Olivro dos Prazeres, a mulher
(Eterno-Feminino), fecundada pelo mar, é o mais ininteligível dos seresvivos
(LP, p. 82). O que no Chorus Mysticus se perfaz na esfera da transcendéncia/
imanéncia, nos textos clariceanos se rarefaz, na estera da imanéncia/
transcendéncia.
O Chorus-Mysticus eleva-nos Céu-acima, às regides do nâo dizivel;
Clarice nos afunda Terra-abaixo e voltamos corno indizivel. Rotas diversas,
aportando no mesmo cais. (cf. Campos, Haroldo de, Margindlia Fdustica:
Deus eoDiabono 'Fausto' deGoethe. S.P., Perspectiva, 1981, p.65, Coleçâo
Signos.)
34 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

"CL4RICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO",

título extraído do recado de Clarice "a possíveis leitores",


em A Paixâo segundo G.H. Os leitores que lhe dariam
contentamento se lessem seu livro sâo:

"Aquelas (pessoas) que sabem que a


aproximaçâo, do que quer que seja, se faz
gradualmente e penosamente - atravessando
inclusive o oposto daquilo de que se vai
aproximar. " (PSGH, p. 5).

Eis aqui, portanto, a síntese desta minha - também


travessia.
CAPíTvi ,O I

A REVERSAO PARODICA DO VER


EM ESPIAR:

O SIGNO SITIADO
A Cidade Sitiada, 1949
AV Out' .)1(1( »I/ ()/
T

oci-ArnZ
-I .ijii 51)LL, )
PERSEGUIR "UMA COISA"

A Cidade sitiada é um dos mais estranhos romances


de Clarice Lispector; o tinico que teve sua segunda ediçâo
revista e corrigida pela Autora, em 1964.
Sergio Milliet, cuja recepçao critica ao livro-estréia de
Clarice, Perto do coraçâo selvagem, em 44, fora tao positiva,
ante A cidade sitiada denuncia a preocupaçao da jóia-rara,
o preciosismo, o rococo, a forma estratificada em fórmula.21
Sergio Buarque de Hollanda, em 50, também encontra
diluídas, nesse terceiro romance, as qualidades do primeiro.
Benedito Nunes. em seu primeiro ensaio sobre a escrito-
ra, intitulado O mundo de Clarice Lispector, focaliza quatro
de seus romances entao publicados e, entre eles, nao elege,
por razóes de enfoque especial, A cidade sitiada. No alentado
e relevante ensaio posterior, Leitura de Clarice Lispector,
em que a abordagem de A cidade sitiada ocupa sete paginas,
interpreta-a como urna "alegoria das mudanças no tempo dos
indivíduos e das toisas que os rodeiam. Lucrécia Neves
personifica essa abstraçâo romanesca."' Sublinha alguns
quadros estâticos da vida provinciana, que primam pelo
"detalhe caricatural e pela intençno satirica".23 Releva que o
humor, ausente nos livros anteriores, se bem que singularize
este, nao o transforma numa "satira de costumes". Os
devaneios da protagonista "contêm, de maneira arrefecida, a
direçâo da experiência interior das personagens de Perto do

20. As citaçôes deste capitulo sir) extraídas do texto da 3' ediçâo, R. de


Janeiro, Sabia/Brasilia-1NÚ1971.

21. Milliet, Sergio. Diario critico. (1949-1950). SP, Liv. Martins Ed., 1953,
v.7, p. 33.
22. Nunes, Benedito. Leitura de Clarice Lispector. SP, Outran, 1973, p. 23.
23. Nunes, Benedito, op. cit., p. 18.
38 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

coraçâo selvagem e O lustre: a inquietude, o desejo de


transgredir os limites pré-estabelecidos (no caso, as fronteiras
de Sao Geraldo), a busca de urna nova vida (...).2'
Diz Benedito Nunes que o carâter burlesco da conduta
de Lucrécia, que se estende à atmosfera do subúrbio, vem do
distanciamento assumido pela narradora, a qual, des-
comprometida corn as vivências da personagem, "empres-
ta-Ihe aos gestos e atitudes algo de maquinal, aos pensa-
mentos mais secretos urna énfase cômica."2S
Assis Brasil, em 69, avalia, entre os demais livros da
autora, A cidade sitiada "corno o formalmente mais
realizado", fruto do amadurecimento alcançado em cinco
anos.26
Segundo o mesmo critico, Clarice ai trabalha seus
personagens "em funçâo de um meio social", do que , alias,
discorda Benedito Nunes: "Maquinais nos sentimentos e
cercados de coisas rigidas, os personagens desse romance
aparecem tomo fantoches numa atmosfera de sonho. A
pantomima substitui os gestos, a pose suprime a atitude, a
caricatura o retrato. Sao todos figuras-servas da Cidade. " 27
Gaspar Simóes colhe no livro uma "evoluçâo latente no
genio da romancista", mas nao urna transformaçào substancial,
ao nível artistico. "Em A cidade sitiada as coisas sâo vistas
através do fluir da consciéncia das personagens." Estamos
diante "ndo de um monologo interior, mas de uma consciéncia
conceptual do mundo."28 Distancia-se de Joyce e Virginia
Woolf e aproxima-se de Sartre e Beauvoir, portanto, do
xistencialismo. "Esse monologo interior, corno a expressao
sugere, proporcionava-nos uma vi do do mundo introverti-
da na câmra escura da subjetividade. Tudo nessa técnica
?stava preparado para nos dar primeiro a interioridade das
personagens e só depois a periferia do mundo."29 Em A

A. Nunes, Benedito, op. cit., p. 19.


:5. Nunes, Benedito, op. cit., p. 20.
Ló. Brasil, Assis. Clarice Lispector: ensaio. RJ, Org. Simóes, 1969, p. 64.
_7. Nunes, Benedito, op. cit., p. 20.
8. Simóes, Gaspar. Literatura, Itteratura, literatura... Lisboa, Portugalia
Ed., 1964, p. 314.
!9. Simóes, Gaspar, op. cit., p. 314.
O SIGNO SI'IIAno 39

cidade sitiada, a escritora "proportion-nos os actos obje-


tivos das suas personagens e o seu proprio significado." 30
Delineia-se um conceito da realidade, oferecido pela ro-
mancista. "Clarke Lispector nao receou substituir o mono-
logo interior - introversâo do mundo em imagens - pela
expressao conceptual da realidade - o mundo introvertido
em conceitos."3'
E conclui que, nesse romance, embora a atmosfera
humana se tome mais conceptual que poética, ainda se salva
poesia suficiente para "dominar qualquer possivel drido
intelectualismo. "32
Olga Borelli testemunha que Clarice considerava A
cidade sitiada "seu livro mais difícil de escrever." Contava
que perseguia "uma toisa" e rido descobria o que era. O
romance foi escrito "meio cegamente" e Clarice "muitas
vezes tinha a desagraddvel sensaçâo de nâo estar fazendo
nada. Ficava sentada aguardando; de repente, vinha uma
frase.""
A cidade sitiada é Sao Geraldo, um subúrbio3' da
década de 20, que progride e lentamente se civiliza,
transformando-se em urbe. O termo subúrbio é usado lido no
sentido mais comum de "imediaçoes ou cercanias de uma
cidade", mas significando "povoaçâo". Subt rbio traz
embutida a palavra urbe = cidade, e ressoa em suburbano,
isto é, de mau gosto.
A transformaçâo do subtirbio em cidade apresenta-se
"em enigma", porque as coisas aparecem misturadas,
"centaurizadas", metade homem/metade cavalo, civilizaçâo/
campo, luz/sombra, seco/úmido, fora/dentro, superficie/
mistério.

30. Similes, Gaspar, op. cit., p. 316.


31. Similes, Gaspar, op. cit., p. 316.
32. Similes, Gaspar, op. cit., p. 317.
33. BoreIli, Olga. Clarice Lispector: esboço de um passive! retrato. RJ, Nova
Fronteira, 1981, p. 87.

34. Clarice escreveu a sua irmii Tânia, que the fez observaçiles sobre a palavra
"subúrbio": "Também o fato de eu chamar S. Geraldo de subtirbio, you
estudar. Vocé tern ratio, mas creio que vai ser talvez diffcil de mudar,
porque teria de mudar outras coisas também. Mas you ver ainda."
(Borelli, O., op. cit., p. 136).
DO OPOSTO
40 CLARICE IJSPECTOR: A TRAVESSIA

"O morro do pasto", primeiro capjtulo, caracteriza o


espaço cronologicamente marcado pelos dias e horas: sabado,
domingo, segunda-feira; noite, manha, melo-dia, tarde, pôr-
do-sol, aurora. Cada hora tern sua luz propria e sua respectiva
projeçao na paisagem, pontuada pelos tons que modificam o
aspecto dos objetos e homens.
Sao Geraldo, campo/cidade, acumula os semas desses
espaços antagônicos, fronteiriços e, simultaneamente,
mesclados, delineados por verbos, substantivos e adjetivos
que a Autora cuidadosamente seleciona e manipula. Verbos
como estremecer, oscilar, balançar, tocar, quebrar, fulgurar,
ver, erguer, tremular, galopar; substantivos: jardim, lua,
peixes, cavalos, névoas, estrebaria, sinos, pedra, ouro, vento,
cego, bébedos, sabado, embarque, estrume; adjetivos: eriçada,
revertida, dourados, torcidas, deserta, agrestes, nua, conotam
o dinamismo da vida, o antigo Sao Geraldo, o polo epifänico
da afirmaçâo vital.
Verbos como entortar, encurvar, escapar, espiar, olhar,
trotar; substantivos: automóveis, lanternas, campainhas,
usinas, soldados, uniformes, buzinas, fumaça, groselha;
adjetivos: metalicos, atrelados, tortos, imobilizados, con-
gestionados, conotam a paralisia, a superficie do real, o
moderno Sao Geraldo, a anti-epifania, indicando automatismo
e morte.
No ambiente da festa religiosa de Sao Geraldo, as
sensaçôes se degradam e a multidao que se empurra, As
cotoveladas, tern multo a ver corn a multidao automatizada
que Baudelaire apontou como traço da urbanizaçào.JS

35. Walter Benjamim no seu ensaio Sobre alguns semas em Baudelaire nos
leva a perceber coma um dos chamados "poetas malditos" exprime, ao
mesmo tempo que Engels e Marx, o reflexo das transformaçôes da era
industrial sobre o homem. Sob seu impacto, cria-se urna atmosfera capaz
de fazer do homem um autômato, mesmo no cerne de suas relaçóes
sociais.
O automatismo da percepçao e da postura humana, nas grandes
concentraçòes urhanas, opôe-se ao carater mais soliderio das vizinhanças,
nas pequenas cidades e nos campos. (Veja-se Benjamim, Walter, Sobre
alguns semas em Baudelaire. In: Ensayos escogidos; version castellana
de H. A. Murena. Buenos Aires, Sur, 1967, p. 7-41. Procurando divulga-
lo veja-se: Sa, Olga de, "Automatismo e modernidade" in: Revista
Angolo, Cadernos das Faculdades Guegradas Teresa D'Avita / Lorena
(9):111-lb, jan/abril, 1981).
O SIGNO Srt1ADO 41

A luz se deteriora em amarelo de lanternas, fogos de


artificio, luz de postes, de carrossel. Anula-se a epifania do
fogo, o qual se mediatiza e serve para assar castanhas:
"Lima vez junto ao fogo, paravam e espiavam
avermelhados." (CS, p. 8). Os gritos se diluem em sons de
retreta, se deturpam em estridências de campainhas, buzinas
e rangidos; os sabores de groselha, parodia da ambrosia,
provocam nâuseas e se somam aos cheiros de pólvora
queimada, de cravos em decomposiçao nos esgotos; as
fisionomias desastrosas, deformadas pela luz, os gestos
mecânicos, parados, torlos.
É tao poderosa a consciência de Clarice Lispector, em
relaçâo à linguagem, que, subjacentes aos signor, ha efeitos
finamente sut is, quase inapreensíveis. Para capta-los é preciso
submeter-se à disciplina de urna leitura microscopica, colada
ao texto e ao contexto de sua obra, dialogando continuamente
corn ela. Desautomatiza-se o leitor. Torna-se cada vez mais
palpâvel que o escreveu a proposito, Tristao de Athayde:

Precisamos nos colocar numa posiçdo


adeqüadapara podersenti-los, compreender
eapreciar. É como se precisassemosaprender
a lingua em que estao escritos, lingua
deferente da nossa. Como no caso de James
Joyce, guardadas as proporçoes. Se os lemos
desprevenidos, na continuaçao da nossa
logica comum e do nosso dialogo corrente,
nao passaremos da primeira pagina. "b

As personagens de A cidade sitiada tém traços pa-


rodiados de seus protótipos, em outros livros de Clarice, ou
caricaturados em relaçâo ao que de les normalmente se espera.
Deixando para depois Lucrécia, imagem revertida de
Joana e Virginia. "eis a velha Eftgênia" que se recusa ao

36. O critico faz essa observaçâo sobre Clarice, de passagem, ao prefaciar o


romance A ronda do patio (1957) do escritor neo-modernista Paulo da
Silva Novais. (Tristào deAthayde: meioséculode presença litera ria. R1,
José Olympio, 1969, p. 84-5. Coleçüo "Documentos Brasileiros.").
42 CLARICE USPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

"pecado nascente" da urbanizaçâo de São Geraldo e adquire


por isso mesmo, no subtirbio, "certa importância". Continua
a cuidar do "pequeno curral"; traz bilhas de leite ao povoado
e aparenta saber mais do que todos, um pouco dona de tudo,
com a vida espiritual que vagamente Ihe atribuem. Esta vida
parece resumir-se em "nâo afirmar nem negar" e sua
austeridade "em nâo participar nem de si propria". Calada e
dura, enquanto em S. Geraldo ja se falava muito.
A espiritualidade de Efigénia" (nome em que ressoa
o da heroína grega sacrificada a Artemis) retine marcas
autênticas e grotescas da epifania gloriosa e da epifania cor-
rosiva, compondo o quadro da parodia, que prosseguimos
caracterizando.
A paisagem é epifânica: depois da manifestaçâo dos
cavalos no morro do pasto, "no limiar da aurora", Efigénia
é "o ponto mais alto da cidade". A umidade das ârvores, um
passaro, as névoas para o lado da ferrovia, as ârvores espaçadas,
os fios de capim estremecendo à ultima frescura da noite, a
vibraçâo de ma folha de pape) velho na campina, seu vôo
pela planície até colar-se trêmulo contra um tronco, o vento,
a luz transpassando o vidro da janela, compôem as marcas
legítimas das epifanias gloriosas (cf CS, p. 25).
A "velha Efigênia" ajoelha-se e reza a unica frase que
guardara do tempo vivido no orfanato: "a lei da carne
contradiz a lei do espírito". Ignorava, porém, o que fosse o
espírito e a carne: urna forma ajoelhada? a luz mal erguida na
madrugada sobre os trilhos? (cf. CS, p. 25).
Em sua transfiguraçâo nao ha Extase, mas coceira; sua
dureza nâo é ascética: é reumatismo; tudo estremece, nada se

37. Acerca desta personagem, Clarice escreveu a sua irmâ Tânia: "Mas vejo
que Voce entendeu bem o que eu queria pelo fato de Voce na carta ter
falado em 'cidadela' -- quanto ao fato de Efigénia ser invejada como
pessoa, apesar de ser rustica, etc. -- é mesmo pelo fato de ela mio tomar
parte no progresso de S. Geraldo que ela adquire importância aos olhos
dos outros. Os outros sentiram o perigo em S. Geraldo progressista, e jd
tinham um pouco a nostalgia da 'volta' d rusticidade. O pedaço de
Efigénia, alem do mais, serve como preparaçao ao que vai se seguir: é
um exemplo de urna pessoa que é a realidade, em vez de pensi-la. Ser a
realidade é o =alino de espiritualidade, é o unico modo de como o
espírito pode viver". (Borelli, Olga, op. cit., p. 136).
O SIGNO SITIADO 43

transforma. Efigênia entrega-se aos afazeres da manhâ; nao


ha fogo38: as panelas fias, o fogâo morto. Quando a chama se
ergue, enche a casa de fumaça: Efigênia tosse e thora corn os
olhos congestionados. Cospe e o olhar de pedra nada modifica.
Toma goles de café, tosse, cospe, sopra, cospe longe corn
segurança, na terra dura do quintal. Ríspida, feliz, sem
súplica, sem perdao, ela cospe:
"O trabaiho de seu espirito tinha sido feito: era dia".
(CS, p. 26). Alias, tudo quanto se pode colher de espiritualidade,
em Sao Geraldo, é ao revés.
A Associaçâo da Juventude Feminina, de inficio, voltada
à caridade, depois, fustigada pelos motores da usina:

"Era urna tentativa sorrateira de espfrito pelo


fado onde este mens esperava". (CS, p. 17).

As moças "chamadas e sem poder ir" (CS, p. 17) sac)


lideradas por Cristina, que nelas acende um fogo vazio e
destinado ao vazio; Cristina, mulher baixa e gorda, que os
homens farejam e deixam passar. (cf CS, p. 18).
Lucrécia integra-se no grupo, procurando divertimentos
e balles. A associaçâo é católica, porém quando se criam os
primeiros centros espiritas, Lucrécia inventa ouvir urna voz.
(CS, p. 20).
Na verdade ser-lhe-ia mais facil ver o sobrenatural: "to-
car na realidade é que estremeceria nos dedos." (CS, p. 20).
A mâe de Lucrécia, Ana Correia das Neves, é uma
"viúva feliz" e miope (CS, p. 60). Detesta S. Geraldo, sofre de
insônia e busca ansiadamente a companhia da filha, que foge

38. Lembrem-se, por oposiçâo, os significados ligados à area semantica de


fogo. Aqui é um fogo morto. Remetemos o leitor ao que ficou escrito: "A
cidade sitiada é uma cidade terrestre, mas nâo no born sentido do sema
1ld7S. Se aprender, na cidade terrestre, é urna degradaçíio do ver no
lembrar, é porque, neste caso particular, estamos longe do selvagem
coraçâo da vida, ou a ele chegamos pelos descaminhos da parodia. Assim
A cidade sitiada também serve de contraponto ao primeiro romance de
Clarice Lispector. Se houver um avesso grotesco da vida (nâo a morte,
mas a paralisia), ele pode tatear-se na escritura irönica deste romance
singular." (sobre "A cidade sitiada". In: Sa, Olga de, A escritura de
Clarice Lispector, 2' ed., p. 244-8).
44 CLARICE LISPECiI)R: A TRA VESSIA DO OPOSTO

As expansóes do cuidado materno. Tem sua cadeira de balanço


e leva vida reclusa no velho sobrado, que um dia sera
demolido. As relaçiies corn a filha transformam-se numa
espécie de jogo duplo, sem dialogo possível:

"As duas mulheres se tornaram sonsas e saga-


zes, correndo cheias de cuidado tomo ratos
pela sala em penumbra - eassumindo o cardter
desconhecido de dois personagens que elas
jamais saberiam descrever mas que podiam
imitar, apenas imitando-se". (CS, p. 62).

Quando Lucrécia se cagar corn Mateus, Ana ira morar


na fazenda da firma. De la, conseguirti atrair a filha viava para
um novo casamento. Ingenuamente, a mae esta sempre do
lado dos bons partidos, que significam segurança e dinheiro.
I+ÈMIMNO/MASCULINO EM PARÓDIA

Os namorados de Lucrécia, alias, formam urna mintíscula


galena de tipos que marcam, de modo ridículo, a relaçâo femini-
no/masculin. Felipe, o soldado, o tenente, o guerreiro, é urna
replica viva da estatua egiiestre, no centro da praça de S. Geral-
do. Estrangeiro no suburbio, encanta Lucrécia por ser militar: e
na cidade fortificada, ela necessita de armas.
Apesar dos botóes da farda, Lucrécia, zangada, termina
por despedi-lo, pois Felipe despreza a cidade, sua festa, o riacho,
seus cheiros.
Ha também o Dr. Lucas, medico moço e austero, que tern
a mulher doente no sanatorio e sera reencontrado mais tarde,
chegando a ser o amor jamais assumido de Lucrécia Correia.
Ha Perseu, o namorado de infancia, simbolo do cidadâo de
Sao Geraldo, espécime representativo dos homens de inteligéncia
lenta e intentes.
O nome soara estranho, quando a cidade progressista tiver
de mudar o seu e a rua do Mercado se transformar na Av. Alves
de Freitas. É homônimo de Perseu, figura mitologica, filho de
Dânae e de Zeus, (este, para fecunda-la, disfarçou-se em chuva
de ouro). Nascido o menino, foi jogado ao mar num cofre tam-
bém de ouro. Salvo, torna-se depois heroi, corta a cabeça de
Medusa de cujo sangue nasce Pégaso, o cavalo voador. O alado
cavaleiro é descrito por Corneille como gentil heroi, sempre
pronto a socorrer sua dama.
Perseu39, o de A cidade sitiada, é lavrador; herdico e va -

39. Clarice escreveu sobre este personagem: "Suponho que a ligaçdo de Perseu
como resto, Eque ele ndo precisava, como Lucrécia, deprocurara realidade
porque ek era a realidade, ele fazia parte da verdade. A mulher de preso
sentiu que de era asssim e que era inalcançdvel por isso, como urna criança.
Perseu era o que Lucrécia ndo conseguiti ser. Basta tomo justificativa desse
cap/tulo? ou ainda parete enxertado?" (Borelli, Olga, op. cit., p. 136).
"Perseu, alids, em outra plano, é também urna criatura que ndo se perde,
como EfrgEnia " (idem, p. 136).
46 CLARICE LISPECCOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

zio, paciente, dourado e cortes, cego e glorioso, brilhante e


indomóvel" quando diz "etc.", jovem e forte, tern seu grau
rasteiro de luz. Encontramo-lo na plenitude da tarde, mais ou
menos às tris horas do dia 15 de maio de 192... "empoleirado"
no parapeito da janela do segundo andar, decorando liçôes e
atirando caroços de tangerina, no beco sujo. Comparado corn
o herói da lenda, sac) evidentes os traços da paródia.
O que ele lê pertence ao polo das epifanias gloriosas,
corno seu nome, mas em seus lâbios o texto se corrói e torna-
se grotesco, contaminado pelo mecanicismo da açâo de
cuspir, do alto, caroços de tangerina.

"Os seres marinhos, quando ndo tocam o


fundo do mar, se adaptam a urna vida flutuante
ou pelagica (...)". (CS, p. 27).

O pâssaro que atravessa o espaço é urna gralha espantada.


Perseu é apenas "um dos modos de ser de São Geraldo", "urn
de seus alicerçadores somente por ter nascido quando o
subúrbio também se erguia (...)". (CS, p. 27). Ele adere à
realidade progressista do subúrbio.
Um dia sera médico e desertarâ da cidade: por ora, ainda
tern cheiro de estâbulo e "suas grandes asas" ski as de
juventude. (cf CS, p. 30).
No namoro corn Lucrécia -- (...) ele masculino, ela
feminina, urna leve, outro pesado, ela ruim e ele born" --
Perseu é a parte mais fraca, porém tern mais born senso; como
Capitu, vista por Bentinho, ela faz corn ele o jogo do gato e
do rato e o rapaz acha difícil ama-la. Visita-a, pela última vez,
na casa do sobrado, e Lucrécia decide que se casarâ corn
Mateus, um velho rico que visita a tilde, para cortejar a filha.
Despedindo-se do companheiro de infância, a moça
alia-se ao estrangeiro e vende S. Geraldo (o capítulo oitavo
chama-se "a traiçiio") para casar-se por dinheiro e desejo de
evasâo, desejo alias que as moças alimentam, esperando que
as núpcias finalmente as libertem do subúrbio. (cf. CS, p.
115).
Mateus, o marido, leva-a para urna verdadeira metrópole.
No ritual da nova vida, Lucrécia dava suspiros de educaçâo,
e comia bolos, "corn o dedo mindinho erguido e a outra miro
O SIGNO SITIADO 47

aparando os farelos" (CS, p. 117). Quando um cachorro entra


no café, onde ela ensaia sua"verdadeira vida", parece que Ihe
reconhece a origem, pois entre todos, elege-a para farejar seus
sapatos de verniz. Enigmatica, Lucrécia tosse corn sutileza,
enquanto "uma sirene de bombeiros passava anunciando-
a". (cf. CS, p. 118).
O capitulo nono, que focaliza sua vida de recém-casada,
intitula-se "O tesouro esposto", parodia evidente do "tesouro
escondido" que se disfarça, composiçao que Sofia — outra
personagem de Clarice — escreveu, ultrapassando as
expectativas comuns de seu professor na escola primaria.w
O "tesouro exposto" é obviamente o dinheiro de Mateus,
o luxo que proporciona à esposa, o anel de brilhante no dedo
médio e a unha do mindinho, crescida. Lucrécia admira os
taxis e a cidade, que, ao contrario de São Geraldo, se manifesta
a todo momento. Mateus Correia exibe-lhe o Museu, o Jardim
Zoologico, o Aquario Nacional.
No Aquario, ela olha "os peixes" e, "num indicio da
crueldade futura" da "a primeira cotovelada em Mateus que
insistia em sair". (CS, p. 121). Lucrécia, de baixo para cima,
vê os peixes tentarem pacientemente ultrapassar a linha
d'agua, quase tocarem a tona e voltarem em doce rabada. O
aquario lembra-lhe S. Geraldo e ela adivinha que tera de
regressar.

"O tínico lugar onde podiam viver era-lhes a


pristio". (CS, p. 121).

Mateus, cabelos grisalhos, flancos frígidos, tinha ar de


engenheiro ou advogado. Mas realmente era um "in-
termediario". Alias, na metropole, todos "pareciam viver
ilicitamente, de empregos extraordindrios" (CS, p. 122).
Mateus usava "anis nos dedos como um escravo" (CS, p.
121). Todos pareciam"gladiadores alugados". Como estatuas
passavam, passavam e, enquanto isso,"os ratos, verdadeiros
ratos, sem tempo a perder, rolam o que podiam, aproveitan-
do, sacudindo-se em riso". (CS, p. 123).

40."Os desastres de Sofia". In: Feticidade clandestina, contos. RJ. Sabla,


1971, p. 96-115.
98 CLARICE LISPE("IUR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Mateus pertencia à classe desses gladiadores metódicos.


E ela o ajudava a preparar-se: banhos, escovas, tesouras de
unhas, tudo era dg e a, Mateus.

"Um adestrametno continuo. Ele era


masculino e servil. Servil sem humilhaçdo
como um gladiador que se alugasse. E ela,
sendo mulher, o servia. Enxugava-lhe o suor,
alisava-lhe os músculos. Aviltava-a viver ds
custas das idas e vindas e dos treinos de
Mateus, estendendo camisas que a poeira da
cidade logo sujava, ou alimentando-o corn
carnes e vinhos. Mas ndo podia sendo
fascinar-se por aquela minuciosa ordern,
que hk muito parecia ter ultrapassado os
motivos, ndo podia sendo gastar os meses a
prepark-lo para o combate.

Esperando que um dia enfim alguém esmagasse o seu


colosso — e, com horror, ela ficasse livre." (CS, p. 122).
Na "ordern superior" da metropole, Lucrécia ia ao
teatro para poder dizer "que ia ao teatro quase sempre" e,
desconhecida, agregada a urna multidao sem nome, ia também
ao balé, sem entendé-lo. Procura iniciar-se, fascina-se corn o
dançarino, enquanto Mateus Ihe estende bombons.

"(...) o dançarino, em movimento elkstico e


vagaroso "rasgou-lhe urna veia de sangue na
boca." (CS, p. 124).

Embora ele fosse o dançarino daquela cidade e ela


compreendesse um pouco sua dança, ndo conseguia ler-Ihe o
rosto "claro demais". Ele despertava nela o "compromisso
antigel' corn Sao Geraldo, mas as salas de Lucrécia estavam
presas "por alguma roda do sistema perfeito da grande
cidade". Fora apanhada por ele. "Talvez mal apanhada, com
a cabeça para baixo e urna perna saltando fora". (CS, p. 123).
Continuava, porém a espiar bastante hem.
Aos poucos domina o sistema e aprende a fazer
comentârios apropriados e vazios. Como outrora, em Sao
O SIGNO SMADO 49

Geraldo, se apetrechava corn miçangas, chapéus, boisas,


pulseiras e perfumes para a caçada ao homem que deveria
espos5-la, agora sala para comprar e ver as lojas. Bajula o
marido que lhe ensina a desnudar os braços e o começo dos
seios. Como Joana "que era tristemente unta mulher feliz",
eia, por outros motivos, tern que ` fingir felicidade apesar de
ser trio feliz:. (CS, p. 126).
Lucrécia escreve à mae, dizendo que alcançou seu ideal
e tern tudo quanto sonhara. Mateus é born, perdoa-Ihe os
nervos. Mas urn dia Lucrécia decide voltar para o subúrbio e
descobre que Mateus, sem nenhum chao proprio, deseja
"agregar-se d cidade da mulher:
Aproveitando sua ausência, Sao Geraldo progredira e
eia ja nao sabe o nome das coisas.

"Outros olhares, que new o dela, haviam


transformado o subtírbio" (CS, p. 131).

Quando espia o morro do pasto onde antes reinavam,


sombrios, os eqüinos, percebe que "a escarpa negra erguia-
se em punho sobre S. Geraldo". (CS, p. 130).
O morro porém, custara muito a responder-Ihe. "Pasto"
nao designa mais o antigo descampado, porque S. Geraldo
tornara-se urna cidade de restaurantes, onde`pasto" significa
"refeiçrio".
Quando Mateus a protegia como boni marido que era,
Lucrécia chorava, sufocada de felicidade, "sofrendo por ter
que um dia amar outro". (CS, p. 134).
Mateus tinha carater e princípios morais; achava, porém,
que a sociedade é feita de tal modo que "ndo é crime um
homem ter algum interesse pelas mulheres mas é crime a
esposa se interessar por outro homem". (CS, p. 136).
Evitavam defrontar-se e mantinham-se dialogando em
torno de pontos neutros. Na única vez em que se defrontaram,
tiveram urna conversa de surdos, e eia retomou às compras e
aos passeios.

"A beleza de tudo isso é que ela estava trio


perdida que parecia guiada". (CS, p. 139)
50 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Agregou-se enfim ao progresso, reconhecendo marcas


de sua propria construçâo. Recuperou o antigo poder.
Enquanto as relaçóes se crispavam entre as pessoas e o
proprio Mateus secava de irritaçi o, Lucrécia começou a
sofrer de calafrios e o médico recomendou-lhe repouso.
O mando anulava-se cada vez mais e ela apurava as
garras. Mateus era o forasteiro que Lucrécia desejava expulsar,
tornando-se progressivamente mais cruel. Renascia de sua
propria decadência anterior e se sentia um pouco à mercé do
homem que testemunhara seus sujos andaimes para construir-
se em novo edificio. (cf. CS, p. 142).
Mateus "corn a voz fraca num corpo sempre maior, a
impacientava, provocando-lhe aqueles coices secos na cauda
do vestido de casa". (CS, p. 142).
Foi quando tirou o retrato, que mais tarde tanto intrigarla
seus filhos: pendurou-o no corredor "ao lado de um desenho
em cartâo-postal do futuro viaduto". (CS, p. 145). No apogeu
da maturidade, Lucrécia controlara bem os músculos do
pescoço, endireitara a cintura, alumiara os olhos e ganhara
urna dignidade, que desmoronou imediatamente depois que
explodiu a claridade da maquina fotografica.
Colhida pelo mecanicismo das coisas, talvez "o retrato
fosse a superficie inatingível, jà a ordern superior da solidào
-- a sua propria historia que, despercebida por Lucrécia
Neves, o fotografo captara para a posteridade". (CS, p. 145).
"O milho do campo", décimo capítulo do livro, é urna
espécie de "intermezzo". Lucrécia, enviada por Mateus,
procura numa ilha o repouso, esperando que o mar lhe
devolva as cores perdidas. La reencontra o Dr. Lucas;
reencontra os cavalos, e um ar salgado que lembra "a silenciosa
época anterior ao progresso de S. Geraldo" (CS, p. 147).
Convive corn rosas verdadeiras, ao contrario de em seu antigo
quarto no sobrado, cheio de rosas pintadas no papel da parede.
Vigiada pelo coaxar dos sapos, conta o tempo pelas teias que
a aranha tece na janela. Os objetos recuperam a antiga nitidez:
"O ovo na mesa da cozinha era oval. O quadrado da
janela era quadrado. E de manha a forma da mulher na porta
era escura à luz". (CS, p. 148). Ha mosquitos leves de pernas
alfas; ela procura, no centro da cidade, o Dr. Lucas e passeiam
pelo parque como outrora no subúrbio, quando se orgulhava
de andar ao lado de um homem diplomado.
O SIGNO SITIADO 51

Lucrécia — a mesma que Mateus achava "casta como


um peixe" só nisto semelhante à sua homônima matrona
romana, esposa de Taquínio Collatino, que se suicidou por
desespero de ter sido violentada por Sexto Tarquinio. A idéia
de parodia onomâstica também se manifesta no sobrenome
"Neves", que ironiza, pela redundância, o sentido de "pura",
"casta". Quando o farol iluminou seu rosto "revelou a cara
ignorada da luxúria" (CS, p. 152).
De noite, libertando-se das próprias amarras, imaginava
conversas corn o Dr. Lucas, em que Ihe declarava amor.
Insinuante, jogava corn ere, tentando atrai-lo para seus
desejos. Ele temia-a.
Os dias estavam bonitos nessa época; iniciava-se o
outono. As espigas e os sapotis maduros levavam-na a
compreender que "o milho no campo era a sua vida mais
interior". Mesmo assim, seguindo um velho h£bito, lastima
os terrenos desaproveitados, onde gostaria de construir urna
cidade. Chuva e vento destruíam a cidade imagin£ria corn que
ela sufocara o milho crescido.
Lucrécia sentia-se "das coisas"4' e nâo"de um homem";
preferia morar na cidade. Quando Lucas Ihe disse que o amor

41. 0 VER de Lucrécia pode entender-se pelo que diz Clarice a respeito da
obra:"No meu livro A cidade sitiada eu faro indiretamente no mistério da
toisa. Coisa é bicho especializado e imobilizado. lid anos também
descrevi um guarda-roupa. Depois velo a descriçtio de um imemoróvel
rel6gio chamado Sveglia: relógio eletrónico que me assombrou e
assombraria qualqeur pessoa viva no mundo. Depois velo a vez do
telefone. No "Ovo e a galinha " faro no guindaste. É uma aprovimaçào
timida minha da subverstio do mundo vivo e do mundo morto ameaçador.
Ntio, a vida ntio é uma opereta. É urna tragica opera em que num
bait' fantastico se cruzam ovos, relógios, telefones, patinadores do gelo
e o retrato de um desconhecido morto no ano de 1920". (Esta t urna fata
de Angela em Um sopro de vida. O Autor, seu contraponto, comenta:
Angela escreve sobre objetos assim como teceria rendas. Mulher
rendeira. (SV, p. 102). A mulher rendeira ve a "aura" das toisas. Existe
um "extase" de visâo exterior (nâo a vise() epifenica, porque em A cidade
sitiada a personagem Lucrécia se degrada em "voyeur"). Este é o caso de
Lucrécia, quando depois de, na cozinha, guardar os pratos enxutos t que
se initia "a verdadeira historia desta tarde" (CS, p. 96). 0 "sistema de
defesa" da cidade sitiada, da "cidadela", é VER como quem espia, por
urna seteira. VER s6 o que aparece, sem ultrapassar o que se vé. (CS, p.
99). Retomaremos este topico fundamental ao tratarmos da Poetica de
Clarice.
52 CLARICEIJSPEC7nR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

deles era impossível Lucrécia, ferida, começou a chorar e ele


sentiu-se culpado sem saber por gué.
Nessa altura, o discurso de A cidade sitiada adquire um
solene tom biblico, e a narradora, assumindo o ponto de vista
do Dr. Lucas, discorre sobre a necessidade que tern o amor de
"perder a vida".
Mais urna vez, a romanista tenta caracterizar esse
feminino/masculino, que tao finamente delineara no triângulo
de Perto do coraçito selvagem Joana/Otâvio/Lidia e
constituirâ o fulcro de Uma aprendizagem: Ulisses/Lóri.

"(...) ela esperando de longe ao vento da


colina, esperando, doce, vertiginosa, corn
seu impuro hdlito de rosas, o pescoço
esmagdvel por urna das maos — esperando
através dos séculos, decrépita e criança, que
ele atendesse enfim ao apelo das ondas sobre
os rochedos e, galgando a escarpa mais alta
da noite, lançasse o uivo, o longo relincho
corn que responderia d beleza e à perdiçrio
deste mundo: quern niio vira nas nones sem
vento como as flores de prata eram cruéis e
assassinas?" (CS, p. 163).

Mas ele, sabido, parado no atalho, nao vai ao encontro


de Lucrécia; se tivesse ido, nao responderia somente à mulher
que o chamava, mas a iodas as revelaçóes e epifanias que "até
hoje deixamos sem resposta". (CS, p. 162).
Segue para a cidade, abrigo de sua força, ele que era de
pedra; ela, fragil, nao duraria muito:

"ela seria substituida muitas vezes enquan-


to ele era o que permanece. Tao Pal, trio
pobre e obstinada". (CS, p. 1630.

Quando reatam "sonâmbulas caminhadas", Lucrécia,


começando "a escavar o chao corn o bico do sapato", conclui
que felizmente tudo seria impossível, inaugurando um discurso
pretensioso sobre o mal que ela fana a quem amasse. (cf. CS,
p. 163).
O SIGNO SmADO 53

Recusa a amizade que Lucas Ille oferece em troca do


amor.
O mundo era redondo, e ela descobre, finalmente, o que
é o amor pelas pessoas. "Eles se tocaram enfim"; "o amor
impossivel atravessando-a em alegria", ` ferida no tronco de
sua espécie", Lucrécia "que era de um homem comofora das
coisas" (CS, p. 168-9).
De manhâ, ela partiu na barca suja, sobre o mar. Voltou
para S. Geraldo. "Sentada na proa corn os embrulhos no
regaço" (CS, p. 169).
Quando Mateus morreu do coraçäo, Lucrécia se tornou
a "vitíva Correia". Soluçou arrependida por nâo the ter dado
o melhor olhar, "esquecendo-o cada vez mais". (CS, p. 188).
A convite da mâe que the acena corn um segundo
mando, resigna-se a abandonar a "cidade mercanti! que o
desmesurado orgulho de seu destino erguera, corn um aterro
e um viaduto, até a escarpa dos cavalos sem nome". (CS, p.
195).
Do morro do pasto, os últimos cavalos tinham emigrado
"entregando a metrópole 6 glória do seu mecanismo" (CS, p.
196).
"Fora levantado o sitio de São Geraldo." (CS, p. 195).
"A viúva mal tinha tempo de arrumar a trouxa e escapar",
antes que a cidade realizasse o sonho de ter "linhas de trem
subterrâneas. (CS, p. 196).
o7Exro Srtzano
Alias, Lucrécia escapa sempre. Incapaz de epifanias
gloriosas, Toge quando o perigo delas se anuncia. As luvas
velhas, o fio corrido da meia, o gosto kitsch, os dentes
amarelos, a boisa e o chapéu encarnados e, sobretudo, a
incapacidade de v,er,transformam-na em parodia de Joana e
Virginia. O chapéu, que enterra corn ambas as maos na
cabeça, nâo é signo de mistério corno o que aparece indicando
o afogado nas primeiras paginas de O lustre ou identificando
a morte de Virginia nas Oltimas, mas da a sua fisionomia uma
expressâo de desastre.
Quando, na noite de São Geraldo, pressente a ameaça
das coisas prestes a se revelarem, na praça de pedra, tocada
pelo luar, Lucrécia procura desesperadamente abrigo antes
que tudo comece. As venezianas oscilam e um papel freme no
chao.
"A mocinha estremecia de medo de estar viva." "(...)
persignou-se rapidamente enquanto um ratogordosedourava
sob o poste". (CS, p. 11). Ela nao vé, espia. "Entortou a
cabeça como modo de olhar". (CS, p. 14). Toca a campainha
do sobrado, — estridente som da cidade — e ja nao ousa "estar
de costas" para a praça de pedra. "Estava ainda eriçada, ca-
da ponta revertida de coisa nâo poderia ser tocada, as
colunas do corrmcio torcidas", (CS, p. 11).
Efeitos aliterantes e paranomasticos42 compóem a
orquestra do texto e Lucrécia, a que nao vê, (por dentro), a que

42. Exemplos: um rato gode se dQurgva gob o polte. Paggol gecog loaram
O goldado... gumiu... gdbado. Um pape! eltremeçje. O rato conia
tranquilo petto du carroça adormeçida... ol cabelog çresçjam de
ingenuidade e hotrot, cada ver era maiaperigogo... num tangido... ginol
gubitamente gacudiram-ge em vidro, çlpargiram-sr da rettgta gobie a
i idade, Jbggt de atrifiçio gspocatam... A noire agora era de gara (C$. p. 11)
$6 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

nao tern voz (ao contrario de Joana), escapes "O que se vê" (de
fora) era a sua (mica vida interior:"o que se via" tornou-se sua
vaga historia. Era de "seu destino insubstitulvel" "passar pela
grandeza de espírito como por um perigo". (CS, p. 19).
Lucrécia espia a cidade, que alias, como a moça, "era
exploravel apenas pelo olhar." (CS, p. 20). É muito
desconfiada, parece nada sensual, mas a diferença dos sexos
causa-Ihe alegria. Revidando ao Dr. Lucas, que escrevia para
a Revista Médico-Social, diz "que talvez um dia escrevesse
o romance de sua vida ". (CS, p. 21).
Contudo sua 'Mica forma de exprimir é "olhar bem".
(CS, p. 22). Seu destino é terrestre, sob o signo das carroças
que ouve passar à noite, enquanto em outros lugares crianças
mais felizes, filhos de pescadores, fazem-se ao mar, como
Joana.
A palavra "ideal" soa-lhe desconhecida (CS, p. 18). No
entanto, é urna das forças sorrateiras da cidade, como os
cavalos.

"A moça e um cavalo representavam as dual


ragas de construtores que iniciaram a
tradiçao da futura metrópole, ambos
poderiam servir de armas para um seu es-
cudo". (CS, p. 18).

Dava urna forma à realidade: "Nela e num cavalo a


impressao era a expressao, " (CS, p. 19).
Os cavalos presos às carroças, escravizados, representam
a moderna Sao Geraldo, cada vez mais necessitada de trans-
portes, invadida por caminhOes, buzinas de automóveis,
poeira e fumaça. As vezes, um cavalo se rebela e, corn as patas
erguidas, da um coice mortal numa criança. Mas à noite, no
Morro do pasto, os animais liberados recuperam seu Perdido
reinado.

"Potros, rocins, alazóes, longaséguas, cascos


duros — uma cabeça fria e escura de cavalo
— os cascos batendo, focinhos espumantes
erguendo-se para o ar em ira e murmúrio. E
às vezes um suspiro que esfriava as ervas em
O SIGNO SI77ADO 57

tremor. Entao o baio se adiantava. Andava de


!ado, a cabeça encurvada até o peito,
cadenciado. Os outros assistiam sem olhar".
(CS, p. 23).

Lucrécia, em sua cama, adivinhavà apenas e queria


responder "corn as gengivas à mostra". Animado pelo desejo,
seu "rosto adquiria a nobreza inquieta de uma cabeça de
cavalo". (CS, p. 23).
A moça e o cavalo é urna imagem recorrente na ficçâo
de Clarice. Mas aqui, às vezes, ela beira o grotesco, porque
Lucrécia da coices na cauda do vestido, bate as patas no châo
e olha as toisas como um cavalo, de lado.
No Morro do pasto, os cavalos, em estado de caça e
guerra, fazem urna ronda selvagem. Entâo aparece o potro
branco:
"Mostrava-se empinado um instante. Imóveis os animais
aguardavam sem se espiar. Mas um deles batia o casco. E a
pancadinha breve quebrava a vigilia: fustigados moviam-se
de súbito alacres0.3, entrecruzando-se sem se tocarem e entre
eles se perdia o cavalo branco. Até que um relincho de sdbita
cólera os advertia - por um segundo atentos, logo se
espalhavam em nova composiçao de trote, o dorso sem
cavaleiros, os pescoços abaixados até a boca tocar no peito.
Eriçadas as crinas; regulares, incultos". (CS, p. 24). Enquanto
isso, no subtirbio, os galos "empoleiram-se" corno galinhas e
"cocoricam"ao amanhecer. Apesar da beleza daquela epifania,
alguns sinais sâo corrosives: os animais que têm urn olho para
ver de cada fado, nada vêm de frente, sâo de curta intel igência.
Em Lucrécia, como neles,coexistem traços ambíguos."Lucrécia
Neves ',do seria bela jamais. Tinha porém um excedente de
beleza que nao existe nas pessoas bonitas". (CS, p. 32).
Anima-se corn baffles imaginârios e enfeita-se para sair,
alisando a sobrancelha corno dedo molhado de cuspe e os lâbios
tingidos corn pape) carmesim. Perseguidora, corn cara de ave de
rapina "seu equilibrio sobre os saltos das botinas era tao dijlci!
que ela andava entre o equilibrio e o desequilíbrio, mantida no
ar pelo chapeuzinho aberto". (CS, p. 37).

43. sic
58 CLARICE LISPE(. TOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Seus gestos sao desarmoniosos, e ela é incansâvel.


Lucrécia tern muito de bicho, simbolo de vida intensa,
para Clarice. Aqui, porém, as situaçoes resultam inadeqüadas:
"ronronava" para os namorados, sala à caça de marido como
um falcâo, movia suavemente as patas, e quando excitada ou
zangada "dava urna rabada corn urna das pernas na cauda
ausente". (CS, p. 56). Romanticamente, sonha corn um
mensageiro que chegara, um dia, trazendo urna carta e a
levarti para longe de Sao Geraldo. Patriota, nâo abandona a
terra, continua a viver no sobrado, em meio aos abafadores de
buie, à caixa de madeira corn vista dos Alpes na tampa, em
companhia do passarinho empalhado. (cf CS, p. 59).
A sala de visitas é seu refúgio contra a companhia de Ana.
Ali, no aposento repleto de bibelôs, jarras, cadeiras e paninhos de
croché, a mesinha oca de trés peinas, ela espia "corn quatro
sapatos". (CS, p. 68). Ali, é seu quartel general e sua guerra
especial é nao conseguir dizer os objetos. (CS, p. 68).
Lendo numa revista apreciaçôes sobre estâtuas gregas,
enquanto ouve a chuva e o vento, pensa na cidade.
"Se ao menos a moça estivesse fora de seus muros. Que
minucioso trabalho de paciência o de cerca-la. De gastar a
vida tentando geometricamente assedia-la corn cólculos e
engenhos para um dia, mesmodecrépita, encontrar a brecha.
Se ao menos estivesse fora de seus muros.
Mas ni() havia como sitia-la. Lucrécia Neves estava
dentro da cidade". (CS, p. 69).
A cidade sitiada, a essa luz, ja nao é S. Geraldo, é o
proprio texto. Despojado de "sussurros", apoiado nuora
estrutura concreta de fatos, datas e personagens planas,
preocupado em descrever objetos, distanciando-se das
epifanias gloriosas, o texto clariceano faz a "travessia do
oposto". Cortado por epifanias corrosivas e irônicas, o"texto
sitiado" leva-nos, pelo avesso, ao cerne da ficçao, da sua
ficçao especialmente. Sao Geraldo é seu texto como os
cavalos presos às carroças; é urn "morro de pasto", onde se
perde o nome das coisas e se torna impossível designa-las,
aponta-las corn o dedo.
Urn texto, em que os símbolos da escritura clariceana
sâo caricaturados e até os cavalos, plenos de vida em Perto do
coraçao selvagem, sel enxergam de lado, de viés. Seu proprio
O SIGNO SITIADO 59

signo, sagitario, "a mulher e o cavalo", a mulher-centauro,


assumido como emblema da cidade, esvazia-se de sangue e
vida e transforma-se em estatua.
Urna estatua de gestos ritualizados, pois o jardim onde
ela poderia erguer-se e apodrecer, quase viva, transmuda-se
em praça ptiblica.
O jardim, que aparece no título do 5° capitulo, espaço
magico de epifanias entumescidas de vida nos contos`Amor"
e "Mistério em S. Cristóvdo" - de Laças de família - se
deteriora em espaço morto, mecânico. Chegando a seul
proprios limites pelo lado oposto de sua maneira de narrar,
pelo avesso de sua escritura, Clarice parece exorcizar-se
contra uma tentaçâo irresistível: tentar o estilo do "nouveau
roman", descrever objetos, opor-se a seu proprio texto.
No espaço do sobrado, a sala de visitas, cheia de jarros e
bibelôs, tem o ar sufocado corn o cheiro das coisas. A moça
engraxa os sapatos e, sonhando, procura ver. Mas só consegue
exteriorizar-se. É porque nâo tem realmente coragem de decidir-
se. Enquanto nâo o fizer, a cidade (o texto) ficara intacta. Mas se
visse, ela se partirla em mil pedaços (cf. CS, p. 66).
"Era uma paciência de construir e de demolir e de cons-
truir de novo e de saber que poderia morrer um dia exatamente
quandodemolira em viande erguer".(CS,p. 66). Eis mimetizada
sua paciência de escritora, sua luta corn a escritura, levando o
oposto de si mesma a urna experiência - limite.
Sabe que precisa começar pela "sala de visitas -
refazendo assim toda a cidade" (CS, p. 66). Planta uma
cadeira como primeira estaca. Mas nâo consegue ultrapassar
a "serenidade de uma cadeira e dirigir-se Os segundas
coisas". "Embora, enquanto olhasse, se passasse um tempo
que um dia se chamaria de aperfeiçoamento?" (CS, p. 67).
Nesse espaço do texto que procura criar, como quem
engraxa furiosamente os sapatos, as coisas nâo têm segredos,
porque se manifestam iguais a si mesmas. A fior, a Iínica fior
viva na sala, intocâvel. E quando ela morrer e se puder toca-
la finalmente, o vivo estara morto e o resto permanecera
eterno, sem perigo (cf. CS, p. 68). Lucrécia nâo pode senâo
entortar a cabeça para espiar a fior viva. A fior nâo se entrega.
A seu lado, o menino de porcelana, tocando flauta, é também
urna coisa morta.
60 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Lucrécia, entre os bibelôs -- miniatura da cidade --


calcula como um general. (cf. CS, p. 68).

"Que dirla entdo se pudesse passar, de ver os


objetos adht3-los.. Era oqueela,compaciência
de muda, parecia desejar. Sua imperfeiçno
vinha dequererdizer, sua difzculdadedeverera
como a de pintar.
O difcil era que a aparência era a realidade"
(CS, p. 68).

Quando começa a choyer, o "úmido' penetra o "seco"


do espaço. Abrindo uma revista, Lucrécia reconhece as
figuras das estatuas gregas, que, mutiladas, nada podem
apontar.
Ao "úmido' junta-se entao a "grande noite" e o "vento".
La fora, os signos da cidade.
A cidade, que é o texto, cheia de possibilidades, nunca
se revela. "S6 uma ou outra vez um copo se partia ". (CS, p.
69). Epifania perdida.
Identificando o esforço do escritor com o de Lucrécia,
Clarice submete esse trabalho à derrisâo. Um texto bíblioco
("Venha a mim") é inserido nas fantasias da moça, que tenta
inutilmente tocar a realidade das coisas; a resposta é o barulho
do trovâo, pois chove demais. Lucrécia "inventa" entao ouvir
a notícia, que um visitante Ihe traz de tempos antigos, muito
antigos."Interrompeu-se, a pena de avestruz na mâo e o papel
a melo escrito sobre a escrivaninha. Mais um esforço de
invençâo, e sua mdo pousava sobre largas salas. Inclinou o
rosto polido que agora bandés emolduravam: sua face estava
enobrecida pela paciência. Corn a pena erguida na nido,
olhou afin!". (CS, p. 71).
Chegara o navio. Qual o carregamento?
O mensageiro da a resposta que enche de lagrimas frias
o rosto de Lucrécia "— sempre o mesmo. Carviio, sempre
carväo". (CS, p. 72). E nao é carvao, a palavra mineral, como
diz Joao Cabral?
Na sala, porém, sob o impacto da chuva, das aras da
pomba que voa espavorida, do vento que fustiga as janelas do
sobrado, das vespas adormecidas, que fogem assustadas, do
O SIGNO SITIADO 61

relâmpago que ilumina o aposento e faísca nas porcelanas,


quase se desencadeia o "mecanismo" da revelaçâo.
Porém, novamente a atmosfera do subúrbio perpassa a
sala e nâo temos a epifania, mas sua parodia. Para salvar-se,
Lucrécia fita o "confuso buraco da fechadura que sob a
ftxidez foi se aperfeiçoando em fechadura menor, menor, até
que alcançou o proprio tamanho delicado" (CS, p. 73). Por
onde Alice jamais passarâ ao pais das maravilhas.
Lucrécia boceja, sem tempo. SO conhece sua modesta
funçâo que é olhar, nâo é ver, ao contrario de Joana.
No exato momento em que a protagonista luta pela
expressâo, nâo tendo tido êxito em "inventar" a notícia,
começa a ensaiar alguns movimentos.
O texto, em espelho, é o avesso da epifania que, em
Perto do coraçâo selvagem, nos revela o despertar da
puberdade em Joana.
O que la é graça e flexibilidade de movimentos, gestos
harmoniosos, aqui é deformaçâo e caricatura, cacoete. Estes
parodiam aqueles, para que Lucrécia, em vez de nascer para
a vida de mulher, se imobilize em objeto, em estâtua.

` A âgua cega e surda mas alegremente nâo-


muda brilhando e borbulhando de encontro ao
esmalte claro da banheira. O quarto abafado
de vapores morns, os espelhas embaçados, o
reflexo do corpo ja nu de urna jovem nos
mosaicos umidos das paredes.

A moça ri mansamente de alegria de corpo.


Suas pernas delgndnc, usas, os seins pequenos
brotaram da dgua. Ela mal se conhece nem
cresceu de todo, apenas emergisi da infância.
Estende urna perno, olha o pé de longe, move-
o terna, lentamente tomo a urna osa frúgiL
Ergue os braços acima da cabeça, para o teto
perdilo na penumbra, os olhos fechados, sem
nenhum sentimento, so movimento. O corpo se
alonga, se espreguiça, refulge amido na meia
escuridâo-éuma linha tensa etrêmula. Quando
abandons os braços de novo se condensa,
62 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

branca e segura. Ri baixinho, move o longo


pescoço de um a outro lado, inclina a cabeça
para trios -- a relva é sempre fresca, alguém vai
beija-la, coelhos macios e pequenos se
agasalham uns aos outros de olhos fechados. -
- Ri de novo, em leves murmúrios como os da
dgua. Alisa a cintura, os quadris, sua vida.

Imerge na banheira como no mar. Um mundo


morno se fecha sobre ela silenciosamente
quietamente. Pequenas bolhas deslizam suaves
cité se apagarem de encontro ao esmalte. A
jovem sente a dgua pesando sobre o seu corpo,
pcira um instante como se lhe tivessem tocado
de leve o ombro. Atenta para oque estri sentindo,
a invasâo da mare. Que houve? Torna-se uma
criatura séria, de pupilas largos e profundas.
Mal respira. O que houve? Os olhos abertos e
mudnc das coisascontinuam brilhando entre os
vapores. Sobre o mesmo corpo que adivinhou
alegria existe dgua -- dgua. Nao, nao... Por
que? Seres nascidos no mundo como a dgua.
Agita-se, procura fugir. Tudo -- diz devagar
como entregando uma coisa, perscrutando-se
sem se entender. Tudo. E essa palavra é paz,
grave e incompreenslvel como um ritual. A
kgua cobre seu corpo. Mas o que houve?
Murmura baixinho, diz sílabas mornas,
fundidas". (PCS, p. 61-2).

"Entao estendeu uma das mâos. Hesitante.


Depois mais insistente. Estendeu-a e
repentinamente entortou-a mostrando a palma
No movimento o ombro se alçou aleijado...
Mas era assim mesmo. Estendeu o péesquerdo
para fora. Deslizando-o pelo chino, as pontas
dos dedos obliquas ao tornozelo. Estava de
aigus?' modo tao retorcida que nao voltarla d
posiçao normal sem esfusiar-se em torno de si
própria.
O SIGNO SIT ADO 63

Corn a palma cruelmente à mostra a mao


estendida pedia e ao mesmo tempo: Indicava.
Erguida por urna veeméncia tao rapida que se
equilibrava no imóvel — tomo a fior no jarro.
Eisomistériodeumaflorintocdvel: aveeméncia
jubilante. Que rude arte. Ela se reduzira a um
unico péea urna unica mâo. A imobilidadefinal
depois de um pulo. Parecia tao mal feita.
Exprimindo pelo gesto da mao, sobre o unico
pé, entortados corn graça em eferenda, o unico
rosto sacudindo-se em pantomima eis, eis Ioda
ela, terrivelmente fisica, um dos objetos.
Respondendo enf m à espera dos bichas.
Assim permaneceu ate que, se precisasse
urgentemente chamar, rido poderia; perdera
enfin o dom da fala. A mao se contrapunha à
cara corno a outra face de seu rosto.
"Tern maos demain", disse-se ainda e,
aperfeiçoando-se, escondeu mais a outra atrds
das costas.
Mesmoumasómao, eimóve4 fazia corn quepor
vezes Ioda a figura tivesse estremecimentos de
ventarolas. Julgando-se porém perfeita,
suspirou e manteve a posiçâo.
Tao humilde e irada que nao saberia pensar; e
assim dava o pensamento através de sua unica
forma precisa — nao era isso o que sucedia às
toisas? — inventando por impotência um sinal
misteriosoeinocentequeezprimissesuapasiçdo
na cidade, escolhendo a propria imagem e
através desta a dos objetos.
Nesse primeiro gesto de pedra, o oculto estava
exteriorizado em tal evidência. Conservando,
para a sua perfeiçdo, o mesmo cardter
incompreensfvel: o botâo inexplicàvel da rosa
se abrira trêmulo e mecdnico em flor
inexplicdveL
E assim ficou corno se a tivessem depositado.
Distrafda, sem nenhuma individualidnde
Sua arte era popular e anônima As vezes
aproveitava a mao que estava atrds para coçar
64 CLARICE USPECTOR: A7RAVESSIA DO OPOSTO

rapidamente as costas. Mas logo se


imobilizava. " (CS, p. 75-6).

Como um escritor que falhasse, Lucrécia acolhera o


sacrificio sem que ninguém a tivesse obrigado. Perdia ela "a
vida pela forma da vida, a unica mâo indicando." (CS, p. 76).
No capítulo "No jardim" a cena continua, porém o
espaço é outro.
O vento exorcisa e divide as coisas. Presentes os
brinquedos da infância. Lucrécia, sonolenta, se delta.

"Adormeceu desperta como uma vela". (CS,


p. 82).

Bichos da noite invadem, no sonho da moça, o espaço


de S. Geraldo.

"Formigas, ratos, vespas, rosados morcegos,


manndos de éguas sairam sonâmbulas dos
esgotos". (CS, p. 82).

O sonho de Lucrécia é cortado pelo api to da locomotiva,


números, pedras, escadas de bibliotecas e câes latindo.

"O tempo avançava e a noite apodrecia em


grilos e sapos". (CS., p. 883).

Seu trabalho, no sonho, é arear, de joelhos, a pedra do


patamar e esfregar o corrimâo da escada da Biblioteca.

"Esfregava, forjava, polla, torneava, esculpia,


o mestre-carpinteiro demente — preparando
pklida todns as noites o material da cidade — e
talvez no f m conhecesse — conhecia apenas de
noite — a prova indiretti". (CS, p. 84).

Labor de escritor, concebido de fora para dentro, como


só Lucrécia podia sonho-lo. Bilac nâo diria melhor.
Alias, podemos ler, neste contexto, a paródia do labor
parnasiano, labor que foi expresso por meio de tantas
O SIGNO SITIADO 65

metaforas, inclusive a da estatua. G. H., a protagonista de A


Paixâo, é escultora amadora e tern, confessadamente, urna
vocaçâo de "arrumadeira".
Lucrécia recua no tempo, é grega, corno as estatuas da
revista. Deita-se no jardim para repousar."Enquanto sonhara,
ja se passara muito tempo sobre o rosto. Esfarelara-se gasto
um detalhe mais vivo, e a evidéncia da expressâo. Os ltíbios
de pedra haviam-se crestado e a estdtua jazia nas trevas do
jardim". (CS, p. 87).
As estatuas se erguem sobre as cidades; as cidades sâo
destruídas e de novo voltam os cavalos selvagens, sem cavaleiros,
até que sejam novamente presos às carroças, como em S. Geraldo.
Sendo sempre preciso apontar corn o dedo, isto é, nomear as coi.ca.c,
"Nafria escuridao entrelaçavam-segerânios,
alcachofras, girassóis, melancias, zinias
duras, ananases, rosas. Da barca soterrada
na areia, só aparecia a proa. E, na porta
mutilada, velava a cabeça de urn gaio. Só
corn o amanhecer se veria a coluna partida.
E as moscas". (CS, p. 88).

No jardim, os olhos da estatua, sua cabeça, em torno da


qual voejavam abelhas, "saidas dos lcíbios duros".
Amanhece, Lucrécia estremece antes de acordar.

"No sono penosamente erguia-se, corn o rosto


arruinado pelo subarbio. Até que as mâos
apodrecidas tocaram nas grades do parque de
S. Geraldo" (CS, p. 89)°1

44. É diticil nao lembrar o soneto de Carlos Drummond de Andrade: "Jardim":


Negro jardim onde violas smog as mCto.s oferecidas e mecónicas,
e o mal da vida em ecos se dispersa: de um vegetal sagredo arfeitiçadas,
à toa rima cançdo envolve os ramas, enquanto outras visòes se deG'neiam
como a estdtua indecisa se reflete

no lago hd longos anal habitado e logo se enovelam: mascarada,


par peixes, ndA materia putrescivel que sei de sua esséncia (ou lido a rem)
mas par polidar contas de colores jardim apenas, pétalas, pressdgio."
que alguém vai desatando, olhas vazados
(in "Novos poemas". Obra comptera e prosa organizada pelo autor. Rio de
Janeiro, Ed. Nova Aguiar, 1977, p. 227).
DO OPOSTO
66 CLARICE LISPECTOR: A TRA VESSIA

A aurora. Lucrécia sonha asas, voa, no escuro, sobre a


cidade.
Mas em meio ainda do sono, sonâmbula, ergue-se e
percorre "o quarto sobre as quatro patas, farejando a
escuriddo". (CS, p. 89).
Nâo ha cores, nem luz ou sombra. Só neutralidade e
visibilidade. O vento perde sua magia e nâo mais adejam asas
no quarto.

"O sobrado cheirava Lodo a drvore velha".


(CS, p. 90).

A moça finalmente adormece."Passara o perigo" (CS,


p. 90).
De manhâ, Lucrécia acorda tarde; em S. Geraldo, a
marcha militar dos escoteiros e as cestas de peixes na Rua do
Mercado.

"Os grandes ouvidos leguminosos do sono se


reduziam rapidamente a orelhas pequenas e
sensfveis". (CS, p. 90).

"O que fora amido, secara da chuva" (CS. p.


90).

Sum ira a tempestade da noite. E os centauros em tropas


só existem nas nuvens. Em vez dos bichos da noite, bandos de
corvos anunciam tempo born. As três mulheres de pedra
continuavam a sustentar a porta de um moderno edificio. (cf.
CS, p. 90).

"Que sucedera com a cidade da noite ante-


rior?!
Como uni morcego a cidade era cega de dia."
(CS, p. 91).

Assim se opbe um estilo, em que nada se esconde — tudo


é visível e exterior, um objeto é um objeto — a um estilo de
sombras e penumbras. Para desnudar a oposiçâo, a narradora
usa a paródia de si mesma.
O SIGNO SMADO 67

A protagonista é "una formiga na ha", "Lucrécia que


nâo possuía as futilidades da imaginaçuo mas apenas a
estreita existência do que via." (Cs, p. 93).
Em vez dos extases místicos, em bosques ou jardins,
Lucrécia, com o rosto limpo, purificado, pode deixar que
venham a ela as criancinhas, parodia evidente do texto biblico
em que Jesus Cristo chama a si os pequeninos.
Seu espaço mistico porém, é a cozinha, As duas horas da
tarde. Onde as coisas se apresentam recortadas e sem penum-
bra. Exteriorizadas, visíveis, Lucrécia, deusa consagrada por
si mesma, nâo pensa , mas vé, passeia, ouve, constrói o que
existes
A cidade continua defendida por seus sobrados, suas
casamatas, iluminadas de sol.
"A gloria de uma pessoa era ter uma cidade" (CS, p.
95), a sofrida gloria do escritor é construir o seu texto: em
meio As janelas"desinchadas ", Lucrécia esta satisfeitíssima.
O famoso soliloquio de Hamlet
"To be or no to be
That is the question",
é parodiado numa situaçâo-limite: em vez, do mar, a
cozinha. Em vez, do principe/filosofo, a moça provinciana,
absorvida entre janelas que se abrem para fora.

"Essa era a questuo. 'a toisa que esta ali.' Aldo


se poderia senno: ultrapassd-la. " (Cs, p. 95)

Lucrécia, porém, queria o verdadeiro, o objetivo, nâo


Ihe apetecia inventar. Nem gostava de poesia.

"Costava mesmo de quem contava como as


coisas eram, enumerando-as de algum modo:
era isso o que sempre admirava, ela que para
tentar saber de uma praça fazia esforço para

45. VC, atcança urna espécie de éxtase puramente visual, no sentido do


aparecer exterior das coisas, pois ao encontrar a "outra tace dos objetos"
nio atinge o seu interior ou a sua aura, mas toca-Ihe "o fado empoeirado".
"Espiando" (CS, p. 99), como veremos adiante.
68 CIARICE LISPECI'OR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

nao sobrevod-la o que seria tao mais fdcil.


Gostava de ficarna própria casa (...) (CS,p.96).
Seu modo de ver era claro: foi nesse dia que
"espiou ima laranja no prato. "(CS, p. 96).

O objetos sa) objetos: o depósito de garrafa, o caixote


de madeira, o livro de contadoria apodrecido, um pano sujo,
a laranja. "O olhar nao era descritivo, eram descritivas as
posiçóes das coisas" (CS, p. 96).
O texto. O texto direto, sem nenhum ornamento. "Tudo
isso constituiez o sistema de defesa da cidade" (CS, p.96).

"As coisas pareciam só desejar: aparecer — e


nada mais! "Eu vejo — era apenas o que se
podia dizer" (CS. p.97).

Lucrécia é urna "voyeuse" A riqueza imóvel, pasmada,


do quarto visto pelo buraco da fechadura, desapareceria se a
porta se abrisse. O texto é a alcova, o escritor é o narrador
"voyeur". Se vé como "voyeur", vé sem epifanias.

"Também a cidade deveria ser espiada..."


(CS, p. 93).

As coisas vistas perdem qualquer mistério ou


profundidade.
Como aparecem sac'. Os objetos sâo objetos: carros sâo
Garros e até o porâo embutido — que em O lustre é o
enigmatico espaço das meditaçóes de Virginia — reduz-se a
um lugar onde se guarda a vassoura.
O que "acontece" no porâo é um tubo de borracha, urna
torneira quebrada, um casaco velho, urn ferro elétrico
aposentado.

"Os materials da cidade!" (CS. p. 98).

Olhar era a sua meditaçâo mais profunda, ao sol.


Lucrécia fala consigo mesura e descobre que tern "voz
rouca ", tentando ver a superficie. Pensamento tao profundo
que parecia até ter "ido a um descampado para pensar".
O SIGNO SITIADO 69

Tornava cuidado, porque se podia pensar, contanto que nao se


soubesse. Olhar, tomar cautela, porque ver (por dentro) era
arriscado. Era permitido errar, nâo era permitido saber.
"Errar fazia-a encontrara outra face dos objetos etocar-lhes
o lado empoeirado" (Cs, p. 99).
A outra face nao é o escondido; é a poeira, algo que se
pode espanar.

"Que cidade. A cidade invencivel era a rea-


lidade última. Depois dela haveria apenas
morrer, como conquista. " (CS, p. 99).

Ela era urna espia, mas erri nome de que rei? "Seu medo
era ode ultrapassar a que via". Batia as palpebras, perplexa.
Era capaz de aproveitar-se da cidade deserta sem tosar, sem
transformar, sem nada tirar para si mesma. (Cf CS, p. 100).
"A visâo do porno embutido tivera o mesmo carter de
um dia ela ter tomado um bonde. Ou ir ao dentista. Bonito
como urna motocicleta" (CS, p. 100). A sala de visitas era a
praça de armas, onde as coisas existiam, para esconder outras.

"As coisas eram dificeis, porque, se se


explicassem nao teriam passado de
incompreenslveis a compreensiveis, mas de
urna natureza a outra. Sorrente o olhar nao as
altera" (CS, p. 101).

Mas até os bibelôs, camuflados, irreconhecíveis,


oscilavam na sala, em guarda... "podia-se ter urna vertigem
à orla de urn bibelô". (CS, p. 100).
Olhou, fitou "corn brutalidade essas coisas feitas das
propriascoisas, falsamentedomesticí veis, galinha que comem
por vossas mâos mas nao vos reconhecem ". (CS, p. 101).
A moça, que tantas vezes fora ao morro do pasto para
experimentar ver do descampado, julgou que enxergava as
coisas. Mas foi um jogo anônimo; poderia até ser que fossem
os objetos que a vissem. Pensava que dominava, independente,
corn majestade, a cidade, do alto da colina.
Atingira a justeza maxima da imaginaçâo neste mundo: ver
(exteriormente, espiar). Ela "via" e "batia a pata" (CS, p. 102).
70 CLARICE LISPECPOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

A alegria da moça era intensa e "tao exterior que jd era


alegria dos outros que ela sentia" (CS. p. 102). 0 narrador,
imitando o estilo objetivo, enumera simplesmente os objetos: "A
estante. A porta. O chao. O ângulo. O relógio ".(CS, p. 102).
A cadeira perfeita. A expressâo da cadeira:

"... um pensamento com quatro perms, um


assento e urn espaldar. Corn esta rejlecäo
parecia ter possuldo até o fim a perfeiçâo das
coisas "(CS, p. 102).

Lucrécia nâo é só urna personagem. Ela é o outro lado


do narrador, seu espelho, ao revés. Exprime as objeçóes que
Clarice, como escritora, se propiie a si mesma, tentando um
dialogo consigo mesma como quem joga xadrez tendo seu
próprio "eu" como adversario, conhecendo, perigosamente,
todas as próprias jogadas. Talvez, até, inconscientemente,
dialogue corn algumas reservas dos críticos a respeito de seu
estilo, nos livros até entao publicados. Quando faz de Lucrécia
urna moça que "naotinhao que fazeratéarranjarcasamento.
Apoiada sobre uma anca" (CS, p. 19). Nao se lembrara,
mesmo sem lembrar-se, da observaçâo de Sérgio Milliet,
quando quase deixou a leitura de Perto do coraçâo selvagem,
dizendo-se: "mais uma dessas mocinhas que principiam
'cheias de qualidade', que a gente pode até elogiar de viva
voz, mas que morreriam de ataque diante de uma critica
séria".4fi
Assim Lucrécia, estatua de gestos aprendidos na noite
de chuva, quando "aponta", nâo designa os objetos pelo
nome, porque nâo os conhece jamais, mas faz apenas "(...)
uma dessas piruetas de moça casadoura". (CS, p. 103).
"Se nao pudera atravessar os muros da cidade, pelo
menos fazia agora parte desses muros, em cal, pedra e
madeira" (CS, p. 103). Como faz parte de seus livros. A
descoberta do ser pela linguagem nâo pode ser feita, segundo
Clarice, pela linguagem objetiva, direta, seca, enxuta,
geométrica. "A maça" jamais estara no claro, mas no escuro,
na escuridâo.

46. Milliet, Sérgio, Diario critico. (1944). SP. Brasiliense, 1945, v. 2 p. 27.
O SIGNO SITIADO 71

Em A cidade sitiada existe urna historia, um enredo, e


nele, São Geraldo é a cidade sitiada pelo progresso. Mas ha
um sub-texto latente, em que a cidade sitiada é o texto, a
própria escritura de Clarice Lispector. Ela polemiza consigo
mesma, faz "variaçoes sobre o mesmo tema", construindo
conscientemente a banalizaçâo da narrativa. À medida que a
cidade se sitia perde o mistério; à medida que a narradora
produz esse texto, sitia o seu proprio modo de narrar.
A obra anterior - Perto do coraçâo selvagem e O
lustre - é o texto parodiado e, possivelmente, incluídas
também as perplexidades em que a critica deixou a escritora,
na busca paradoxal das certezas que jamais perdeu.
Realiza-se, desta maneira, uma espécie de catarse do
autor: "fazer" para dizer que "nâo quer mais faner", liberan-
do-se, portanto, de uma experiência que Ihe sugerem - daria
mais certo.
Alias, esse aspecto nâo é estranho aos procedimentos da
parodia, como nos faz notar Linda Hutcheon. Muitos escritores
começaram ou terminaram a própria carreira, escrevendo
parodias: Jane Austen inicia corn Northanger Abbey e
Flaubert termina com Bouvard et Pécuchet. O autor parece
experimentar urna curiosa necessidade de pactuar corn as
convençöes literarias, mesmo que seja para ironiza-las.

"A parodia poderia tornar-se, entâo,


exorcismo, ato de emancipaçâo. Ironia e
parodia assinalam tanto um distanciamento
como segurança da parte do autor. Gide
parece ter considerado essas duas atitudes.
Sua mais acabada parodia da forma
romanesca é, paradoxal e ironicamente, a
cinica de suas obras e que ele chamou "ro-
mance ".No Journal des Faux-Monnayeurs,
Gide, como seu herói, o romancista dos
Faux-Monnayeurs, affirma a intençâo de
purgar o romance de toda impureza
estrutural, de qualquer elemento nâo
romanesco. Gide manifesta - ao navel
estratégico - certa impaciência em relaçao
as convençôes tradicionais: nao poderei
DO OPOSTO
72 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA

de
encontrar o melo, corn a forma que adoto,
fazer indiretamente a critica de ludo isso?"47

Assim também Clarice, como bruxa, ritualiza e exorciza


sua propria forma de narrai.
As personagens de Clarice aspiram a yer, no sentido
epifânico, ou a apontar, designar, no sentido da nomeaçâo ou
fundacâo do ser.
Em A cidade sitiada, Lucrécia assume gestos de estatua,
que aponta sem nomear e também, por isso, opôe-se ao vgt
epifânico de Joana, por exemplo.
Ampl iara estas observaçôes e Ihes dari mais consist@ncia
teorica, recorrer a Haroldo de Campos, que nos fornece urna
chave de leitura semiotica quando, acerca de Max Bense,
comenta o que, em sua nova estética, Bense entende por
estado indicial e estado icônico, na linha peirceana.
O icônico refere-se ao analógico e tern ao menos um
traço em comum corn seu objeto. O indicial, como signo, tern
urna relaçâo real, causal, direta corn seu objeto. Bense, assim,
teria reproposto a dicotomia jakobsoniana "metafora/
metonimia", corn a formula "analógico/digital (extraída de
Mandelbrot), distinguindo entre urna linguagem analógico/
imitativa (similaridade, metafora) e urna linguagem"digital/
combinatoria" (contiguidade, metonímia)°ö
Estas distinçôes permitem-nos sublinhar: mesmo no
caso do uso de recursos retóricos, como a parodia e a ironia,
a ficçâo clariceana parete orientar-se para o polo metaforico
(analógico) da linguagem e, neste caso, por similaridade
invertida. Mesmo o indicial ne la, o apontar corno dedo, aspira
à fundaçâo do ser e, portanto, mais se aproxima do gesto
paradisiaco, adâmico, icônico (A maga no escuro). Por
inversâo parodica, pode tornar-se destituído de iconicidade,
gesto de estatua, indice sem outro referente que o seu proprio
vazio.

47. Hutcheon, Linda, "Ironie et parodie: stratégie et structure". Poétique.


(36): 471, nov. 1978. Cita Gide, Journal des Faux -Monnayeurs. Paris,
Gallimard, 1927, p. 26.
48. Campos, Haroldo de, "Umhral para Max Bense". In: Bense, Max,
Pequena Estetica. SP, Perspectiva/EDUSP, 1971, p. 24-6.
CAPÍTULO II

A REVERSAO PARODICA DA
FALA EM MUDEZ:

O SIGNO PROIBIDO

A Maçâ no Escuro ,1961


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FLORESTA DE SIGNOS

"A maçíi no escuro" foi o livro mais bem estruturado


que escrevi"30. Segundo o proprio testemunho de Clarice, é,
portanto, sua obra mais ambiciosa.
Floresta de signor, livro de ruminaçâo, de digestâo
difícil, exige certa categoria de leitor: aquele disposto a
ruminar também, capaz de vislumbrar, de ler "sussurros",
leitor que nâo se interesse somente por fatos e açOes.
Aquele leitor, que o escritor "enfiate", "ftsgue", "seduza",
"alicie" - "que je le drague" como o faz e escreve o proprio
Roland Barthes "sem saber onde de esta". O leitor, capaz de
entrar na dialética do prazer do escritor, para que se crie "um
espaço de fruiçào. Ntio é a pessoa do outro que me é
necessaria, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do
desejo, de uma imprevisào do fruir: que os dados nào estejam
lançados, que exista um jogo"5'
A maçâ no escuro aspira a um leitor de "fruiçâo". Que
leia tudo, sem pressa, `pois o que chega à linguagem nào
chega ao discurso ". Um leitor dotado de urna disponibilidade
temporal outra, que recupere "o ócio das antigas leituras ",
porque "a fenda das duas margens, o intersticio da fruiçào,
produz-se no volume das linguagens, na enunciaçào, nào na
seqüência dos enunciados: nào devorar, nào engolir, mas
pastar, tosquiar, aparar com minúcia, redescobrir" SZ

49. As citaçòes sâo extraidas da 3' ed., R1, JosE Alvaro Ed/INL, 1970.
50. Borelli, Olga. Clarice Lispector: esboço para um posslvel retrato. RJ,
Nova Fronteira, 1981, p. 88.
51 e 52. Barthes, Roland. O prazer do sexto. Trad. de Maria Margarida
Barahona, Paris, Seuil, 1973, p. 37, 47, 48 (da ed. portuguesa); p. 23-4 da
ed. francesa. Le plaisir du textç. Collection "Tel Quel".
76
CLARICE L.ISPECfOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Degustar, saborear, deixarderreter naboca,"caramelar"


A maçâ. Estarei pensando, por contraste, em Joào Cabral?
Clarice, a espià de si mesma em parodia — faz de Martim um
"guloso" que gostava da "quantidade, niio so de qualidade,
como se diz de goiabada ". (ME, p. 244). Escreveria, se
pudesse, um grosso livro.
A dedicatoria seria:
"Em homenagem a nossos crimes". Ou, quern sabe,
talvez: "A os nossos crimes inexplicdveis". (ME, p. 245).
A açào é rarefeita: um homem, Martim, foge de casa,
depois de cometer um crime: matar a esposa, urna esposa
incaracterizada, de quem nem o nome conhecemos. Alias,
poucas personagens têm nome: Martim, o protagonista, Fran-
cisco, o empregado da fazenda, Vitória e Ermelinda, as duas
mulheres. Os outros, apenas entrevistos, sào o pai, o filho, o
alemào, o professor, o prefeito, os dois investigadores, a
mulata moça, a menina preta.
O espaço é vago e indeterminado: o coraçiìo do Brasil
(ME, p. 16). Nele, o hotel vazio, o descampado das pedras, a
fazenda, o deposito, o terreno baldio, o curral das vacas, o alto
da colina, o bosque, as cidades apenas referidas: Rio de
Janeiro, São Paulo e Vila Baixa, proxima à fazenda.
O tempo? O narrador tenta precisa-lo, às vezes até
cronologicamente: ha duas semanas, noite de março, sabado,
domingo, 17 de abril; mas o leitor situa-se numa espécie de
tempo mitico, em que as coisas se inauguram.
Martim é um fugitivo. No plano da fabula: foge da
polícia, por causa do crime cometido. No plano da trama:
foge, ao encontro de si mesmo. O crime projeta-se como um
ato de liberdade, de ruptura corn a sociedade e a desgastada
linguagem cotidiana: escolhe o siléncio.
No hotel abandonado, onde se refugia, o encontramos
sob o signo da noite e de seus fantasmas: a lua, o jardim
emaranhado, o canto dos grilos, a tessitura das aranhas; como
um macaco, seus pulos de fugitivo repercutem macios, sobre
a relva do jardim.
Busca o mar, mas sem bússola ou direçào, andando em
círculos: do mar ouve apenas o marulho, criado pela propria
imaginaçào. Ao meio-dia, no descampado semeado de pedras,
esturricado de sol, inaugura o tempo, criando o domingo e faz
O SIGNO PROIBIDO 77

um sermâo As pedras. Contacta corn a primeira camada do


real: o reino inorgânico e mineral. As pedras constituem um
auditório inculto e ele senta-se, isto é, consiste no espaço
mitico a um tempo "primordial", em que existe sozinho, corn
os bichos, sem o contraponto da mulher:

"Domingo era o primeiro dia de um homem".


(ME, p. 21).

Tendo desastradamente matado o passarinho de asas


aflitas, que aprisionara nas maos, Martim prossegue, chegando,
por acaso, à fazenda de Vitória e Ermelinda. Ali, num espaço
rural, encetarâ a tarefa de reconstruis o mundo, a linguagem,
a si mesmo.
Vitória é a dona da fazenda, onde se refugiara depois da
morte dopai, de quem cuidara durante muitos anos. Ermelinda,
a prima, fora acolhida, ao enviuvar. Além delas: a presença de
Francisco, um empregado ressentido, a mulata cozinheira e
sua filha menina. Recebem-no corn extrema desconfiança e
Vitória, a dona, aceita-o para trabalhos provisórios. Destina-
Ihe, para dormir, o velho depósito sem porta:

"Vitória era urna mulher tao poderosa co-


mo se um dia tivesse encontrado uma chave.
Cuja porta, é verdade, havia anos se perde-
ra". (ME, p. 52).

A partir desta estranha comparaçâo, que instaura o


paradoxo, pode-se propor urna leitura de A maçâ, tendo corno
balizas o que exprimem essas duas figuras.
Que faz urn Autor multiplicar deliberadamente o"corno
se"? Porque no caso da composiçao deste livro, reescrito oito
vezes53, nao podemos admitir um uso inconsciente, por parte
do autor, ou falta de habilidade para instaurar a metafora. Nâo
certamente Clarice.
Resta, portanto, a intençâo deliberada, a forma que Ihe
pareceu adeqüada à sua ansia de fluidamente exprimir-se, sob
o controle da lucidez.

53. Borelli, Olga, op. cit., p. 142.


78 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Nâo é a maçâ um objeto que escapa e se tateia no


escuro? "Como se"... a comparaçâo também tateia. É quase
urna hipótese, um esboço. Nâo permite a pincelada decisiva
e rapida e mesmo quando arma o paradoxo, larga-o trêmulo
e entregue as possibilidades de imaginaçâo do leitor.
Indiscutivelmente "ter a chave" da poder a alguém. Da-the
imensos poderes sobre a linguagem, que, segundo a mesma
Clarice, tern portas secretas e atçapóes e, segundo o poeta
Drummond, tern multiplicadas faces subterrâneas:

"Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela respasta,
pobre ou terrível, que the deres:
Trouxeste a chave?"34

Mas: que é ser tâo poderosa "como se"? Acrescente-se


que, paradoxalmente, no mesmo instante em que esse poder
se instala, é destituído, pois a porta daquela chave se perdeu.
A tradutora francesa, que a partir do título ja escamoteia A
Maçâ (Le Bâtisseur de Ruines) e destoca o polo, da
objetividade da palavra para a subjetividade do emissor,
definindo antecipadamente seu fracasso, também nâo usou o
equivalente lingiiístico francês, mas um "on aurait dit" (dir-
se-ia) para substituir a deslizante comparaçâo55 em português.
Haroldo de Campos, ao prefaciar o livro A escritura de
Clarice Lispector56, depois de relevar que a literatura prati-
cada pela escritora nâo é urna "literatura do significante", no
sentido da realizada por Joyce e Guimarâes Rosa — "o
trabalho verbal em nível de primeiridade sígnica" —
escreve:

54. Andrade, Carlos Drummond de, "Procura da poesia". In: Rosa do povo.
In: Obras Compteras, Ri, Nova Aguilar, 1977, p. 139.
55. Lispector, Clarke. Le Bdtisseur de ruines; traduit du brésilien par
Violante do Canto. Paris, Gallimard, 1965, p. 63.
56. Campos, Haroldo de,"Prefdcio". In: Sé, Olga de.A escritura de Clarice
Lispector, Petrópolis/Vozes, PUC-SP, 1993, p. 11-7.
O SIGNO PROIBIDO 79

"É antes uma literatura do significado',


mas levada à sua fronteira extrema, d ten-
sdo conflitual com um referente volatil, a
figuras de indizibilidade, e mobilizando pa-
ra tanto todo um sistema de equaçôes
metafóricas (..) instaurado a contrapelo do
discurso logico, mediante o qual sdo
aproximadas ou contrastadas as regiôes mais
surpreendentes e imponderdveis do plano do
contetído".

A metafora, continua, "pode aproximar tudo de tudo;


com seul residuos miméticos, de primeiridade (cujo opera-
dor gramatical minimo é a partícula comparativa como), eia
pode impor ao arbitrario a aparéncia de necessidade, de
similaridade, de solidariedade icônica".57
Insiste, também, na resistência que Clarice opóe "aos
ditames do Logos instituido", por meio de v$rios recursos
estilísticos, inclusive o "uso particular e aliciante de similes
de impatto imediato", os quais "giram na charneira adver-
bial do como". Clarice "desautomatiza" o leitor, confrontando-
o corn um tal "estranhamento" da linguagem, cuja força
maior é a epifania.55
Isso foi escrito em 78. Em 81, Haroldo de Campos tra-
tou extensivamente do tema, sob o título: Tópicos (frag-
mentarios) para uma historiografia do como.S9
Interessa-nos, sobremaneira, resumir, também sob a
forma de "tópicos fragmentârios", essa teoria do como e "de
suas aventuras textuais no espaço literdrio brasileiro, desde
o Romantismo"60.

57 e 58. Campos, Haroldo de, "Prefdcio". In: Si, Olga de. A escritura de
Clarice Lispector, Petrópolis/Vozes, PUC-SP, 1993, p. 11-7.
59. 0 tema integrava-se no circuito mais ampio do curso ministrado,
sucessivamente, na Universidade do Texas, Austin, e na PUC de Si o
Paulo, sob o título: "Prosa Brasileira": Correlaçöes Transtemporais". O
ensaio saiu publicado em Arte & Linguagem: Lingua e Literatura na
Educaçdo, Cadernos PUC-SP (14):124-136. EDUC (Cortez Editora),
1982.
60. Campos, Haroldo, op. cit., p. 125-7.
81 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Vamos palmilhando o mesmo roteiro:"urna Historia do


epifânico (protagonizada pelo "como") versus (ou para-
lelamente a) urna "historia do epos" (...)".

"Para a escritura do 'como', no principio


nâo era o verbo, mas o advérbio. O status
desse 'como' (conjunçao adverbial compa-
rativa) nào é afiançado pela logica-discur-
siva, mas pela analogica da similitude"»

O ensaísta desenha a equaçâo retorica desse operador


textual:

"O 'corno' torna labil oestatuto da identidade


(da continuidade, da verdade), abrindo nele
a brecha vertiginosa da associaçâo por
analogia: a rigida equaçâo de identidade (x
é x) se deixa substituir por urna flexível, e
arriscadamente idiossincrktica, equaçâo de
similaridade (x é como y)".62
"A interrupçâo do analógico no logico, do
'como' no 'é' (...) -- do advérbio no verbo -- se
dk, comofatorestéticorevolucionkrio, noBrasi4
corn o Romantismo /ndianista alencariano" .'

Em Iracema, o tupi, idealizado por Alencar, Ihe serve


de "Ispositivo lingiiístico antinormativo", para opor-se à
"clausura gramatical do português rein!, insuportavelmente
logocéntrico" e europeizante para "um escritor empenhado
na emancipaçâo cultural fiente à ex-metrOpole"TM .
Além disso, o tupi é, para Alencar, ma lingua da
"origem" proxima das fontes primitivas da linguagem.

"Alencar 'estranhou' o português sob o inf luxo


desse paradigma tupi. A busca da origem se
dava por via mitopoética de um naturalismo
adâmico, jk que a 'barbarizaçao' do português
lingua civilizada do poder e da verdade

61, 62 e 63. Campos, Haroldo, op. cit., p. 125-7.


64. Campos, Haroldo, op. cit., p. 127-130.
O SIGNO PROIBIDO 81

'eurocéntrica' — permitia aoautorde Iracema


reconduzir-se escrituralmente à condiçào
edénica da lingua natural, concreta, próxima
das coisas em estado de nomeaçào inaugural,
icônica".°

"O simile alencariano, como reparou


Cavalcanti Proença em seus penetrantes
estudos estillsticos, é um modo de captar a
visualizaçào concreta da lingua gem
primitiva ". 66

"Em Iracema o `tomo' ainda estd ligado a


urna estrutura narrativa que preserva a
factividade épica (..) ". O "romance-lenda"
de Alencar consegue conciliar 'epos' e
`epifania' num hibrido narratol6gico".67

Em Clarice: "É a 'epifania' a dominar o 'epos', a


desgarrar-se dele", no 'anseio de escrever um livro estrelado,
em que os momentos brilhem lado a lado sem articulaçào
cerrada, como reparou agudamente Schwarzóe, mostrando a
prevalência do modo existencial-descritivo sobre a funçào
propriamente narrativa em Clarice".69

"Afasia glossoldlica: 'ser estrela', `morder


estrelas'... Negaçào do escrever (e desde
logo do momento diegético-narrativo deste)
em prol do inescritivel, porém negaçdo
reiteradamente escrita e reescrita até a
tautologia ou ao cliche (meça-se o arco de
tempo que vai de Pertodo coraçào selvagem,
1944, a Agua Viva, 1973, por exemplo, que
é o seu duplo simétrico e rarefeito)".70

65, 66 e 67. Campos, Haroldo, op. cit., p. 127-130.


68. A expressio de Schwarz "livro estrelado" é usada por ele no seu parecer
crítico sobre Petto do coraçtioselvagem, no I ivroA sereia e o desconfrado
(1965), p. 37-41. Veja a referéncia completa em A escritura de Clarice
Lispector, 2' ed., p. 39-40.
69 e 70. Campos, Haroldo, op. cit., p. 134-6.
82 CLARICE USPECIOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Estas numerosas transcriçôes nos ajudam aqui e as


retomaremos em outro capítulo.
Todo o oscilante espaço labirintico do fragmento n9 1 de
A maça se destaca sob o signo da comparaçâo. Alguns
exemplos:
- a noite de marco é "tao escura quanto é a noite
enquanto se dorme" (ME, p. 11).
- na noite, a voz do grilo era "como um ponto desenhado
sobre o mesmo ponto" (ME, p. 11).
- o carro se tornava enorme "como é gigantesca urna
maquina parada" (ME, p. 12).
- o grito de uma ave que espantada levanta o vôo: "esse
modo como o espanto parete a grande alegria" (ME, p. 12).
- Martim dormia confiante, "como se ninguém jamais
conseguisse tirar de sua firme garra, que prenditi apenas o
!ençol, a roda imaginaria do volante". (ME, p. 12).
Esse espaço, numa noite escura de março, "noite de pés
cambaleantes"'t é um "lento jardim sem lua", descrito com
palavras de tonicidade predominante em i/u, ou palavras cuja
semantica sugere prisâo, ausência de salda, espaço agônico de
vazios, umidade e bruma (jardin "entrelaçado",
"emaranhado", "secreta urdidura", "aranhas", "pulo de sapo
no escuro", "arrebatado grito de urna ave", som do nome de
"Martim", "suspiro retido", ârvores nascendo em "bruscos
tufos" etc.).
Este jardin tem analogias corn outros jardins, espaço
recorrente nos textos de Clarice como no conto `Amor",
"Mistério em Sao Cristóvao", em que sempre se ve alguma
coisa major ou se desata urna realidade estranha.
Alias, Martim, ao fugir, nem precisa dos óculos, pois
avança tendo "dentro de si o grande espaço vazio de um
cego". (cf ME, p. 13-4).
"Jardim" corresponde, em seu simbolismo, à predo-
minância do remo vegetal, no inícjo de urna era ciclica,
imagem e resumo do mundo, convite à restauraçâo da natureza
original do ser. Martim também vai percorrer todo um ciclo
de vida, em espaços graduais de descoberta da linguagem e
consciência de si.

71. Em pano de fundo da memória, o primeiro verso do Canto II da Odisséia:


"Logo que a Aurora, de dedos róseos, surgiu matutina."
O SIGNO PROIBIDO 83

Depois de atravessar o descampado das pedras (rein


mineral), ja instalado na fazenda, Martim descobre o terreno
baldio, atrâs do deposito, um terreno "da era tercidria",
habitado por "grossas plantas" e ratazanas vorazes: também
um reino vegetal.
De "quando o mundo corn suas madrugadas rada tinha a
ver com uma pessoa". O que de poderia fazer era olhar; e foi o
que ele fez. "O homem estava descortinando". (ME, p. 63).
"Descortinar" é sinônimo de epifania e epifania significa
momento de belezaT2.
O terreno, onde a natureza se impunha, soberana,
pertencia à aurora de mundo, tempo em que a inteligência
servia apenas à sobrevivência da espécie, como os ratos.
Martim acomoda-se ao novo estilo de vida, sob as ordens
de Vitória. Lentamente, o homem prepara-se para o encontro
corn o reino animal: o curral, em que se fazem "vacas profun-
das", é um local de "entranhas" e cheiros abafados. Martino é
repelido, mas pacientemente conquista o novo espaço.
Sem palavras ainda, no estâgio anterior à linguagem —
mas ao contacto genuino corn o real — Martino alcança o alto
da montanha. La, sente-se homem, senhor, e descobre no
gesto de apontar, o gesto de nomear, isto é, criar a palavra
nova. Deseja-a, mas nâo consegue cria-la.
O projeto de Clarice em A maçâ no escuro, seguramente,
nâo é o mesmo de Alencar, em Iracema. Mas, ha uns
respingos ou graos, que vamos recolher, na esperança de que
tenham alguma fecundidade critica.
O herói de A maçâ no escuro, coincidentemente, chama-
se Martim, urna espécie de personagem-arquétipo. Martim nâo
abandona nenhuma Iracema, porém enceta seu itinerario,
pensando ter matado a esposa. Tern um filho que nâo leva
consigo. Nao vai para o mar (embora o construa em imaginaçâo);
vai para o interior, adentra-se no "coraçâo do Brasil". Em sua
conversa coin o pai falecido, ressoa como observaremos adiante
— sob forma de paródia, a conversa do velho pai indigena com o
filho, no poema indianista I Juca Pirama.

72. Dcscortinar significa "mostrar, correndo as cortinas", "des-ocultar",


"descobrir" o que esta coberto corn véus, "manifestar", "revelar". Ver
cap. IV de A escritura de Clarice Lispector.
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"HERÓI"AFASICO
A maçâ no escuro divide-se em três panes:
1' — Como se faz um homem.
2' — Nascimento do herói.
3' — A maçâ no escuro.

Porém, rido ha herói, na narrativa. Ha a gradativa


"deseroizaçâo" da personagem, a rarefaçâo do "epos" e a
acumulaçâo do descritivo. Martim é um afasico, a narrativa
é epifânica. De início, renuncia à linguagem comum, mas
apesar da enorme dificuldade, promete a si mesmo, no final,
ao ser preso, que escrevera um livro grosso, usando "tantas
palavras, tantas a ponto de se formar um livro de palavras".
(ME, p. 244).
Eis o herói. "E sua armadura de novo faiscou". (ME, p.
245). Eis a parodia: do herói e do livro enorme e da critica do
livro enorme.
Mas retomaremos este tópico, em outro lugar. Agora,
estamos seguindo o curso da afasia inicial de Martim, sem
esquecer que a maçâ, na mente popular, é a fruta do paraiso
Terrestre e da queda do homem-adâmico.
Ocorre-nos associar esta afasia primordial As reflexóes
de Giambattista Vico, em sua Scienza Nuova, acerca da
origem da linguagem.
Referindo-se aos egípcios, Vico diz que narravam terem
sido faladas trés línguas, correspondentes As três idades
existentes antes deles, no mundo: a dos deuses, a dos heróis
e a dos homens. A primeira era hieroglífica (no sentido de
escritas ideograficas), isto é, sagrada ou divina; a segunda,
simbólica ou por sinais, para as empresas heróicas e a terceira,
epistolar, para que pessoas, à distância, comunicassem entre
si as necessidades da vida.
86 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Portanto, as naçóes gentílicas foram, nos seus


primórdios, mudas, e devem ter-se expressado mediante atos
ou signos que tivessem relaçóes naturais corn as idéias.
Conta Vico que "Indatura, o cita, respondeu corn cinco
palavras reais a Dario, o Antigo, que o intimara d guerra.
Essas cinco palavras foram uma ra, um rato, um pdssaro, um
dente de arado e urn arco de flexa.:

"A ra indicava que ele nascera na terra da


Citia, corno da terra nascem, corn as chuvas de
verao, as ras, sendo ele, pois, flho daquela
terra. O rato indicava que ele, ali onde nascera,
construira sua casa, isto é, ali constituíra a sua
gente. O pdssaro indicava que ele tinha os
auspicios, isto é, nao estava sujeito senno a
Deus. O arado simbolizava ter ele, ali, cultiva-
do a terra e a possuldo pela força. E final-
mente, o arco de flexas significava que ele
dispunha, na aria, do sumo dominio das ar-
mas, de modo a dever e poder defendé-la ".

Essa a primeira lingua, urna "lingua hieroglífica", urna


lingua das coisas, que logo cedeu à outra lingua, por meio de
símbolos, os quais representavam suas semelhanças coudas:
o falar simbolico proprio da idade heróica, na qual começam
também as línguas articuladas e os sinais alfabéticos, que se
formaram quando a razâo se desenvolveu.
As duas primeiras linguas e seus caracteres corres-
pondentes nâo se distinguera claramente, como também as
duas primeiras idades. A terceira, sim.
As línguas, mesmo articuladas, nao sac, arbitrarias, mas
naturais e espontâneas, ao menos no seu início. Segundo este
critério, Vico explica que primeiro surgiram as vozes monos-
silâbicas como as onomatopéias, as interjeiçoes, os pronomes,
os nomes e enfim os verbos.
O primeiro modo de exprimir-se nao foi logico, isto é,
por meio de idéias e palavras ou sinais exprimindo idéias, mas
fantastico, por imagens. Foram verdades dos sentidos. As
divindades eram identificadas corn as coisas; as coisas eram
vistas e sentidas como divindades. Corn o desenvolvimento
O SIGNO PROIBIDO 87

da mente, as divindades foram separadas das coisas, e corn


das relacionadas somente por simbolos e sinais.
Todo o falar humano primeiramente foi figurado,
alegorico. As chamadas figuras retoricas nâo foram as aimas
a se formarem, ni() sâo embelezamentos formais, mas as
expressoes primeiras e naturais da linguagem.
A poesia é uma linguagem propria da idade fantastica,
enquanto a prosa é propria da idade logica; e como a idade
fantastica existiu primeiro, o primeiro falar humano foi em
poesia, nâo em prosa.
Todos os tropos que se reduzem a quatro — metafora,
metonimia, sinédoque e ironia — tidos em conta de enge-
nhosíssimos inventos dos escritores, corresponderam a modos
necessarios e naturais de expressâo.
É na Logica Poética que Vico trata desses assuntos.
Logica procede da palavra "logos", que originaria e
propriamente significou "fabula", no italiano traduzido por
"favella". Dai resulta que tal lingua primitiva, nos primeiros
tempos mudos das naçôes, deve ter começado por acenos,
açOes ou sinais que tivessem relaçôes naturais corn as idéias.
Para Vico o falar segundo a natureza das coisas, a lingua
sagrada, foi invento de Adâo, a quern Deus concedeu a divina
"onomathesia", isto é, a imposiçao dos nomes ils coisas,
segundo a natureza de cada uma.
Dos tropos, o mais luminoso, o mais necessario e
espesso é a metafora. Os primeiros poetas deram aos corpos
o grau entitativo de substâncias animadas, dotadas, porém, so
de sentido e paixâo. De sentido e paixâo se fizeram as fabulas.
De modo que cada metafora, assim constituída, vem a ser urna
"piccola favoletta"n. Em A magi no escuro, Martim também
recuara até o estado edênico, alcançando a linguagem icônica
do gestual, sem palavras. Parece até que recuara mais ainda,
pois seu pub initial no jardim é de um macaco e sua voz é um
grunhido de satisfaçao. Quando, muito depois, atinge o alto

73. cf. Vico, Giambattista, Scienza Nuova a cura di Franco Amerio, Brescia,
La Scuola Editrice, 1958, p. 66-77. Princfpios de (Urna cincia) nova;
seleçío, traduçiio e notas de Antonio Lézaro de Almeida Prado. SP, Abril
Cultural, 1974. Coleçío Os Pensadorea, V. , p. 89-130.
88 CLARICE LISPECTOR: A IRAVESSIA DO OPOSTO

da colina, em companhia de Vitória, e pode apontar corn o


dedo, isto seria a nomeaçâo dos seres. Se nâo the é concedida
a palavra, contudo ja passara pela aprendizagem do rein
mineral, vegetal e animal. Trazia, porém, da existência antiga
um impedimento mental: tendo sido um "estatístico", vicia-
ra-se corn números e se) conseguia escrever listas pragmaticas
de coisas a fazer. Martim torna-se, portanto, um escritor
fracassado.
A nova experiência do amor the chega, por meio de
Ermelinda, urna viüva, prima da dona da fazenda. Ermelinda
insinua-se. Masculino e feminino se encontram, numa dadiva
reciproca. Os dias correm tranqüilos, apaziguados, como
num éden reinventado.
Vitória Ihe revela, num dialogo difícil, o segredo de sua
propria identidade; a fuga de viver. Ambos se reconhecem,
implicitamente, como universos espelhados um do outro.
Vitória, porém, ja denunciara Martim, por meio do professor,
outro escritor falido, porque sabia muito, tinha "codas as
soluçóes". (ME, p. 163).
Vitória também se anuncia como poetisa embrionaria
que, na falca de melhor produçâo, coleciona provérbios e
pensamentos e tem "multa vida interior". (cf. ME, p. 198).
O professor, o prefeito e os dois investigadores — "os
quatro representantes" da sociedade e da lei — chegam para
prender Martim. Submisso, ao entregar-se, fica sabendo que
sua mulher nâo morrera e, portanto, o crime nâo se cumprira.
Ao explica-lo, tern de admitir que tentou matar por ciüme e,
portanto, por amor; rido num gesto de revolta e libertaçao,
mas um crime passional. Bem ao contrario de Hugo,
personagem de As maos sujas, de Sartre, que nâo sabendo se
matou por ciúme ou convicçóes politicas —assume seu crime
diante dos homens do partido, como urn ato livre, entregando-
se portanto à morte, como "irrecuperavel".
Martim admite que talvez amasse sua mulher. Reinte-
gra-se no uso comum das palavras: sendo "calorosa e boa",
sua mulher protegera-o, escondendo do filho as intençbes do
pai, como se ele estivesse apenas viajando. Martim confia em
que "os representantes" estejam conscientes do próprio ato,
ao leva-lo preso, e declara:
O SIGNO PROIBIDO 89

"Em nome de Deus, espero que vocés saibam


o que esulofazendo. Porque eu, meu filho, eu
so tenhoforre. E esse modo instdvel de pegar
no escuro urna maçii — sem que ela cala".
(ME, p. 257).

Assim termina esse intrincado romance, que tem como


epigrafe um texto dos Upanishads:

"Criando iodas as coisas, ele entrou em Ludo.


Entrando em Iodas as toisas, tornou-se o que
tern forma e o que é informe; tornou-se o que
pole ser definirlo e o que ndo pole ser definido;
tornou-se o que tern apoio e o que ndo tem
apoio; tornou-se o que é grosseiro e o que é
sutiL Tornou-se Ioda espécie de toisas: por isso
os st bios chamam-no o real".74

Romance da condiçâo humana, aventura mistica da


Iinguagem, reflexao sempre retomada e jamais concluída
sobre o ato de escrever, A mugi' no escuro é um desafio ao
leitor, que, como Clarice ao reescrevê-lo, tem de relê-lo oito,
dez vezes. Sem o apoio das maos, o leitor tenta morder a casca
lisa de urna maçâ, que continuamente se desloca.
Quern é Martim? Um homem ou o homem? A condiçâo
humana marcada pela culpa? Martim nâo se sente culpado,
porque tendo renunciado à linguagem comum, nâo tem mais
definiçâo para a palavra "crime". É um inocente, um "puro",
ao nivei da matéria. Seu primeiro contacto real, como vimos,
é corn o reino mineral. Um retorno ao inorganico. Urna
aventura pelo avesso da evoluçâo. Anula-se a subjetividade
para se alcançar a objetividade, suprime-se o pessoal para se
atingir a impessoalidade. Esse sera o itinerario de G.H.. O
itinerario de Martim também nâo é da escuridâo para a luz,
mas da luz para a escuridao; do descampado ensolarado para
o terreno terciârio, podre de htímus e vida. Sua peregrinaçâo

74. Brome, Emily. O morro dos ventos uivantes. Trad. de Oscar Mendes.
SP., Ed., Abril Cultural, 1971, p. 79.
90 CLARICE L.ISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

perfaz-se nâo através da "noite dos sentidos", mas à luz plena


da sensibilidade bruta recuperada. Ao nível da primeiridade,
em contato direto corn as coisas, sem a mediaçao da lingua-
gem verbal.
Sente tudo, até um passarinho na concha da mao, o
frêmito de suas asas aflitas, prenúncio da morte, como nos
dira depois Ermelinda. Martim nâo precisa renascer das a-
guas e embora, por instinto, procure o mar, aporta no deserto
das pedras.
Quando, acossado pelo medo da captura, penetra no
bosque à noite, busca proteçao e esconderijo, antes da grande
chuva que lava a fazenda, despertando os benéficos cheiros
da vida. Preso pouco depois, a situaçâo é enigmatica: sua
mulher nâo morrera, portanto Martim legalmente nâo é
culpado. A culpa é a aventura humana de querer atingir a
' plena consciência de si". O mito de Sisifo ou a milenar
aspiraçâo de Prometeu. Urna "consciência de si" sem religiâo,
sem pai nem mâe. O pai, raiz do mais arcaico complexo,
segundo Freud, aparece sob forma de paródia, numa conversa
ridícula corn o filho.
Paródia de visbes ou epifanias:

"Você tem 'descortinado' muito, ultimamente,


meu filho?" (ME, p. 256).

Paródia do sexo:

"Como vico suas relaçóes sexuais meu fiho?"


(ME, p. 256).

Martim é um homem comum: um estatístico, procurado


pela polícia. Agora, porém, sabe quern é, conhece a mesa
sobre a qual cornera o pâo de cada dia.
As enunciaçöes sobre a condiçào humana, em geral,
multiplicam-se no livro com o narrador falando na primeira
pessoa do plural — nés — e se imbricam na narrativa, de modo
a formar um tecido inconsútil, impossível de recortar, sem
colocar em risco sua privilegiada unidade. Que é o homem?
Nâo sabemos. Existe o poder de um ato, a estúpida liberdade
e a grande solidâo. Recém-nascido, o homem torna-se "sonso
O SIGNO PROIBIDO 91

a fazer casa e a tomar as primeiras intimidades impudicas


corn a liberdade". (ME, p. 27).
Quando tivesse recriado o mundo dentro de si, saberia
como praticar urna açâo verdadeira, a açâo de um homem.
Mesmo que na() houvesse tempo para agir, antes da demincia
de Vitória. Aceitara a contingéncia de ser tao curto o tempo
da vida e desistira de explicar, pois se explicasse "como é que
o pé segue o outro, ninguém reconheceria o andar" (ME, p.
108).
Superara a fase do terreno terciario e dos ratos, perdera
o estagio em que tivera as dimensóes de um bicho, como as
vacas no curral; perdera aquele momento no alto da montanha,
em que só ihe faltara a palavra. (cf ME, p. 90).
"Pulando como uni herói por cima de si mesmo" (ME,
p. 115), Martim encerrara a mais difícil de todas as etapas.
Como um homem recriado,podia confrontar-se corn a mulher.
Ermelinda, cujo rosto enlevado, informe e suspenso, revelava
asttícia e suave insidia, fora urna criança doente.
Esquiva, indiretos eram seus meios de contacto. Nutria
pelos passaros um odio inexplicavel e um morbido temor
deles, que Ihe lembravam a morte. E medo do escuro, pois o
escuro significava também urna disfarçada alusao ao que
morre.
Três marcas pontuavam sua vida: o medo, a morte, a
esperança. Insinuara-se na fazenda, ao lado da prima Vitória,
de quern era o tormento e o reverso da medalha. "Um pouco
espirita", especializara-se em esperar: abanava-se esperando,
suando e comendo arnêndoas, recebidas periodicamente do
Rio e que tinham um "perfume de lenço antigo". Degustava-
as, economizando. O rosto de Ermelinda tocado por urna
"desmaiada ânsia de penombra", sustinha-se agudo e temo,
corno se "para chegar um dia a essa expressâo e que um rosto
tivesse sido feito". (cf. ME, p. 59).
Implorante, bajuladora, corn seus presentes, sua
gentileza, seu medo de morrer, de olhos "penumbrosos", para
ela "meditar era olhar o vazio". Ousadamente aceitara amar
o homem, procurando apoio. Ela "escolhera irde encontro ao
fatal". (cf ME, p. 68).
Nao se interessava pelos trabalhos diarios da fazenda
nem Vitória jamais conseguira "sacudir a calculadora do-
92 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

çura corn que a outra disfarçadamente esperava". (ME, p.


54). Parecia ter direito a urna vagabundagem ritual. Vitória
"fascinada via a outra cuidar de seu ócio corn precisâo e
vagares de carinho". (cf. ME, p. 54).
Ermelinda aguardava. Sorrateira, dizia"frases obscuras
e radiosas". O som das palavras ficava no ar, sem conseguir
arrastar Vitória para "seus sustos e esperancas". (cf ME, p.
55).
Ermelinda Ihe dava a sensaçâo de criar "ratos em casa"
e embora na() os visse correr, pressentia-Ihes as patas, ` fazendo
a casa toda vibrar". (cf. ME, p. 60). Vitória buscara, na
fazenda, siléncio, calma, ordern, mas a prima lhe indagava:
para que desejava tudo isso?
Assim que viu o homem, Ermelinda apaixonou-se por
ele, que era forte e portanto, a "morte delicadíssima" nâo 0
derrotaria jamais. Reconheceu o ritual que nela se realizava,
a gravidade pela quai sua fluidez esperava. O amor, lembrou-
se, "era alguma coisa adocicada e cheia de mal-estar" (ME,
p. 67). Perderia, corn ele, para sempre, a possibilidade de se
decidir. Experimentou urna sensaçâo de tragédia. Picada, a
dor "ficara na carne como quando a abelha ja esta longe",
mas "para suportd-la é que somos feitos". (ME, p. 68).
As marteladas do trabalho de Martim lhe pareciam
"fatals, fatais, fatais" (funcionando ai a repetiçâo como
onomatopéia e indice semantico da fatalidade do amor).
O oxímoro que passamos a destacar substitui, me-
tonimicamente, por urna imagem sintética, a flexibilidade
liquida (=gota) da Iiberdade do amor, aliada à solidez fatidica
(dura) do destino. Os grâces de milho, que Ermelinda debu-
Ihava, tombavam na lata cadenciadamente "gota dura por
gota dura". Preparava-se cuidadosamente para o amor,
observava Martim escondida atrâs das cercas, espreitando,
fazendo da distância um "meio perfeito de comunicaçâo" (cf
ME, p. 80).
Entregava-se aos truques do amor. O texto sugere,
humoristicamente, o eterno feminino, e o leitor nâo pode
esconder o sorriso furtivo no canto da boca, enquanto lé.

"Tomava banho corn ervas de cheiro, cuidava


mais de suas roupas de balzo, convia muito para
O SIGNO PROIBIDO 93

engordar, procurava se emocionar corn o pôr


do soi, acariciava corn intensidade os cries da
fazenda, branqueava os dentes corn carvao,
protegia-se contra o calor para se manter bem
alva, fatava apreensiva por ver quanto suava".
(ME, p. 80).

Sonsa, por meio de Ermelinda, se exprime a parodia da


posse amorosa, da identificaçâo corn o ser amado, nos moldes
românticos artificialmente preparados por da para provocar
em si mesma o que desejava sentir:

"Um dia experimentou dizer-se unta toisa so


para ver se dava certo: quero ser o sapato que
ele usa, quero ser o machado que ele pega na
mito' — e depois aguardou muito atenta; e deu
tao certo que, de emoçdo, ela abaixou os olhos
modestos, confusa, escondendo como pôde o
sorriso". (ME, p. 80).

Ecoa ao ouvido do leitor o possível texto parodiado de


O morro dos ventos uivantes, quando Cathy diz falando de
Heathcliff:

Amo o chao que ele pisa, o ar que respira, tudo


quanto toca e tudo quanto diz Arno todos os
seus olhares e todos os seus gestos, amo-o todo
inteiro, completamente ".75

Em vez de dizer "eu te amo", Ermelinda dizia: "O1he


esta samambaia", pois quem tinha o tempo de urna vida
apenas, teria de condensar-se corn artes e truques (cf. ME, p.
118). Mentir é seu recurso de mulher, como é o recurso de
quem inventa.

75. Kayser, Wolfgang, Lo Grolesco: su configuración en pintura y


literatura. Buenos Aires, Editorial Nova/1964/, p. 224. Biblioteca Arte
Y Ciencia.
94 CLARICE LISPECI'OR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Conversando corn Martim, segreda-Ihe que tinha um


lugar dentro de si, onde ia quando queria dormir: "é como se
fosse muito depois que eu acabo", embora estivesse ainda
dentro dela. "É um lugar que fica depois de minha morte"
(ME, p. 96). Queria encantú-lo e sabia que era cedo para
deixar de mentir. (cf. ME, p. 96).
Devia arriscar tudo; talvez, mais tarde, olhando o passado,
tivesse que se perdoar e ela "näo era pessoa que se perdoasse
facilmente". (ME, p. 119).
Reiteradamente a condiçao humana se prospecta, e o
leitor é chamado a reconhecer-se na fragilidade de Ermelinda.
Ela arriscaria tudo, sim, pois "embaixo do nada e do
nada e do nada", estamos nos e nâo podemos perder. (cf. ME,
p. 119).
Amor e beleza parece que nâo se correspondem. O
narrador nos impinge, porém, em lugar da beleza em si, uma
beleza decalcada sobre a maquilagem vulgar.
Ermelinda lamentava nâo ser bela para estar à altura do
instante em que ia pertencer a um homem e procurava fazer
"os olhos maiores e a boca em coraçâo". (ME, p. 120). En-
quanto isso, continha as Iâgrimas pensando que, por causa
dela, nâo formavam um belo par. Ermelinda é urna persona-
gem que esta sempre no extremo limite entre a ternura e o
ridículo. Este equilibrio instâvel, que o narrador posiciona
adegüadamente, é que a entrega a nosso sorriso e a nossa
compaixâo. Nesta passagem, por exemplo: Ermelinda, fragil,
desamparada, pensa que, para agradar ao homem amado, os
olhos tëm de ser grandes e a boca em forma de coraçâo. Urna
imagera kitsch, sem dévida. Podia até comprar um vestido
novo. Mas, corn os sapatos apertados, viu que nâo tinha
tempo. Os passaros voavam esperando, os passaros,
mensageiros da morte.
Macabéa — personagem de A hors da estrela — julga
que nâo é um belo par, para seu namorado, Olimpico de Jesus.
E também por ela, sem os pressentimentos e os sustos de
Ermelinda, os passaros estarao, em vôo, esperando, para que
se retina "dquela serena e perturbadora liberdade..." (ME, p.
120).
Ermelinda lembrava-se da frase de um espírita que lhe
falara em progresso espiritual, na necessidade de purificar-se.
O SIGNO PROIBIDO 95

Mas se progredisse, o que restaria dela depois de tamanho


despojamento?
Essa poética do corpo, de que haveremos de ocupar-nos
mais adiante, delineia-se em contraste com o espírito:"sobraria
Lodo um corpo, sobrariam os desejos, e tanta poeira". "Sem
um corpo onde existir", que fana sua alma? (cf. ME, p. 120).
Sentimos novamente um clima de O morro dos ventos
uivantes e passamos a compreender melhor, pela resisténcia
que em nos provoca a "desencarnaçâo", o que significam o
vento, a noire e os jardins, na imagética de Clarice.

"Doeria nas janelas até que as pessoas vivas


dissessem: que dia de vento. E no verso da
seria o mal-estar das noires presas dentro dos
jardins". (ME, p. 120).

Preocupava-se, de antemâo, com os detalhes de tudo, e


reconfortava-se pensando que tinha um corpo onde "acon-
tecia". (ME, p. 120). Habituada que estava corn a vida, nâo
aspirava a compreender, nem a saber; queria ser apenas
humana. "E a morte estava claramente acima de sua
capacidade". (ME. p. 121).
Se fosse para ser "mal-assombrada", precisaria pelo
menos de urna casa inteira. Mais urna vez, eis o sorriso nos
labios do leitor, que ja foi conquistado pela desamparada
fragilidade de Ermelinda.
No momento de entregar-se ao amor, ela — que quisera
tanto ter urn amante — parecia ter desistido.
Era o dia 17 de abril, As 11 horas da manhâ (a cronologia
precisa, no contexto da obra clariceana, é aqui indice de
humor). "O dia estava tao bonito que aumentou a sua
desgraça ". (ME, p. 120). 0 paradoxo esta ai para dizer-nos,
novamente, que ao contrario do mito grego, beleza e amor nâo
terri Jacos de parentesco e nem sempre Cupido nasce de
Vénus.
Ermelinda, podia nâo mentir, dizendo claramente a
Martim, "eu nâo te amo". Mas e se o amasse? Certificou-se
que assim era, quando o homem deu um passo para retirar-se.
Ermelinda é, pois, mais fragil e, no sentido convencional,
mais feminina que Joana. Esta Nié partirem seus homens (o
96 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

mando e o amante) lucidamente, como círculos de vida que


se fecham.
Na ficçâo de Clarice, o amor nunca é urna realidade
simples. Em A mavi no escuro, ele tern a ambigüidade de
Ermelinda, misturada corn a timidez e o constrangimento de
Martim. Talvez, também, corn sua falca de amor. "E ela, ela
olhou para o estranho". (ME, p. 123).
Ermelinda, sonhadora, esperara estar à altura dos amores
célebres, mas ambos nâo estavam. Ela queria unta vez na vida
poder dizer: "para sempre" (ME, p. 125).
Felizmente, a natureza socorreu-os:

"(...) cada um tomou para si o que the era


devido sem que um roubasse nada ao outro,
e isso era mais do que eles teriam ousado
imaginar: isso era amor, corn o seu egoismo
e sem este também nâo haveria dddiva".
(ME, p. 126).

Depois de se ter familiarizado corn o amor de Martim,


Ermelinda passou a persegui-lo corn perguntas e pensamentos
que a atordoavam: "Vocé acredita na outra vida?" (ME, p.
141). — "Eu sempre quis urna coisa por assim dizer "para
sempre". (ME, p. 145). "(...) eu nâo entendo o que é o
infinito" (ME, p. 147). "(...) como é que o mundo, por
exemplo, nunca acabava e nunca começava". (ME, p. 148).
"Como era o destino?" (ME, p. 149)
Esperava que Martim Ihe desse respostas, ja que era um
homem culto, um "engenheiro". Mas ele, desconfiado, a
ridicularizava ou a enfrentava, furioso. Por medo, Ermelinda
tornava calmantes.
Na pungente imagem que se segue, o efeito de
"estranhamento" se cria, porque esperavamos que Ermelinda
tornasse calmante para nâo gritar. Mas: "Ermelinda tornava
calmante para nao ouvir seu grito". (ME, p. 144).
Seu rosto, emoldurado por urna espécie de bandós,
escondia embaixo deles largas mandibulas, que Martim urti
dia descobriu, ao acaricia-la.
O medo da morte é que tornava a mulher grotesca e
quase cruel, capaz de matar e corner.
O SIGNO PROIBIDO 97

"Fingira-se de fraca? pois corn as mandibulas à mostra,


como as de urn bicho de presa, da se revelou encarniçada e
suprema". (ME, p. 145). Ermelinda, contudo, procurava
provas de que "a morte seria osereno fim total ". (ME, p.187).
Pressentia porém outros sinais e s6 achava indícios contrarios:
os grandes campos de terra, as nuvens infladas e vazias no
céu, os passarinhos em v6o, as flores bonitas, "tudo o que na
terra ja é tao suave corno a outra vida". (ME, p. 186).
Suplicava a Deus para nào morrer, para ser eterna:
"So eu! "Ah Deus, deixe eu sempre ter um corpo!" (ME,
p. 189). Sentindo que as lagrimas Ihe escorriam pelo rosto e
cometia um grande pecado, admitia que tinha "horror de
Deus e de Sua doçura e de Sua Solidao e de Seu perfume" e
de seus mensageiros de paz: os passaros. (ME, p. 189).

"Eu nao quero morrer porque nao entendu a


morte!: (...) "nao me julgue tao superior a pon-
to de me dar a morte!" "eu nao a mereço!" (..)
qualquer vida me basta! nein inteligente eu sou,
sempre fui atrasada nos estudos, para que
entao me dar tanta importância? basta me
deixar de lado e me esquecer, quem sou eu pa-
ra morrer! só os privilegiados devem morrer!
quem esta Lhe pedindo a verdade!pode da-la a
quem a pede! (cf ME, p. 189).

Porém, ultrapassado o amor, naquela noite de chuva,


agarrada ao tronco sujo e nodoso de urna arvore, Ermelinda
sentiu-se cansada, desejou ceder e entregar-se à própria
vocaçao para a morte.
Angela, a personagem criada pelo "Autor" —personagem
de Um sopra de vida — também reza para nào morrer. Alias,
quase todas as personagens de Clarice sac) tangidas pela
obsessào da morte, circunscrita no tempo.
Nasrelaçóesde amor em Ermelinda, Martim aprofundara
o conhecimento do eterno feminino, que ele visualiza corn
enfoque masculino.
-
A ROSA PROIBIDA DO JARDIM

Ermelinda se encarregara do destino de ambos. Martim,


lembrando-se do filho e do amor por ele, aspira à palavra.
Tenta escrever sua experiência. Como nas historias "em que
o principe distraído toca por fatal acaso na única rosa
proibida do jardim e estarrecido desencanta o jardim todo".
(ME, p. 132). Também para o leitor se desata o sentido da
"rosa proibida": a beleza, renovada tentaçao do homem, cuja
criaçâo pode levar à loucura. Assim Laura, personagem do
conto, "A imitaçâo da rosa", apenas recuperada de urna
intemaçâo por doença mental, entrega-se novamente à loucura,
porque nâo pode resistir ao apelo de perfeiçao e de beleza,
corn que a fior lhe acena. E perfeita, ereta, póe-se a imita-la.
Martim, porém, esta longe de produzir o milagre. A
distância que o separava da palavra — perguntou-se coin urna
espécie de susto interior — seria igual a que o separava de si
mesmo?
"Que esperava com a mao pronta? pois tinha uma
experiência, tinha um lapis e um papel, tinha a intençao e o
desejo — ninguém nunca teve mais que isto". (ME, p. 133).
Ninguém mesmo, nenhum escritor. Nem ela, Clarice.
Sentia-se diante do "ato mais desamparado" de sua
vida. Mao podia escrever. "Nao poder tomara a grandeza de
uma Proibiçao". (ME, p. 133).
Prudente, sem querer entregar-se, avaro de sua propria
integridade, Martim opunha a imaterial resistência de um
duro instinto, o de viver, ao desejo de escrever. Arriscara-se
longe demais e agora trancava-se intransponível. Cafta ern
"zona sagrada em que homem nao deixa mulher tocar mas
dois homens ds vezes se sentam em silêncio d porta de casa
ao anoitecer". (ME, p. 133).
Mais urna vez a visada de Martim é masculina e cultural.
Também o narrador de A Nora da estrela se recusara a
100 CLARICE LISPEC1iDR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

escrever uma historia sentimental e lacrimogénea, literatura


de mulher. Sutilmente, tendo entâo o sorriso no canto dos
lâbios, Clarice ironiza a generalizada concepçdo critica de
uma"1 iteratura feminina". No Ultimo capitulo, sobre a Poética
de Clarice, focalizaremos o sentimento de sua feminilidade,
particularmente, sob o aspecto literârio.
A Proibiçâo era muito forte. Martim desistiu; preferiu
conservar intacta a zona sagrada e dela viver. Desistiu de
beber a âgua do rio no côncavo das próprias mâos, para nâo
perder seu frigido movimento, entre as pedras. (cf. ME, p.
133).

"Poiso que se bebe épouco; e do que se desiste


se vive". (ME, p. 133).

A idéia de perder para ganhar, mesmo corn ressonâncias


bíblicas, aparece mais vezes na obra de Clarice. Aparecera
como paradoxo estruturante da narrativa, em A Paixâo
segundo G.H.. Perde-se para viver.
Martim pensou se acaso sua vida nâo"teria sido apenas
alusao", como maxima expressâo de objetividade:

"Seria essa a nossa maxima concretizaçâo:


tentar aludir ao que em silêncio sabemos?"
(ME, p. 134).

Assim, sentado, Martim falhara. O papel continuava


em branco, "medindo-se o homem pela sua caréncia".

"Etocarnagrandefalla era talveza aspiraçno


de uma pessoa. Tocar na falta seria a arte?"
(ME, p. 134).

A grande carência, a grande fome é o que resta ao


homem, ao narrador. Alias, A maçâ no escuro termina corn
a declaraçâo do narrador de que ele mesmo como criador, so
tern a exibir uma fome: ade tentar pegar no escuro uma maçâ
sem que ela caia. Martim reconhecia-se em sua propria
impotência, fruía o proprio ser. "O que dota como a raiz de um
dente". (ME, pl. 134). Dor de dente pode ser, pois, dor de
O SIGNO PROIBIDO 101

escritor frustrado; essa dor fininha que perpassa todas as


paginas de A hora da estrela.
A Proibiçâo era perfeita: "se ele ndo tinha as palavras,
tinha o silêncio. E se ndo tinha a açdo, tinha o grande amor".
(ME, p. 135). Urgia nâo ter medo de ser mudo. Pois nâo fora
espoliado de nada. Nem enganara nem fora enganado.
"Mas como ndo amar a Proibiçdo, se cumpri-la é a
nossa tarefa7 refletiu em dor o escritor involuntúrio ". (ME,
p. 135). Abandonando o que o espírito nâo the quisera dar,
tendo escapado incólume da "oca escuriddo", Martim
humildemente anotou: "coisas que preciso fazer". Como a
frase ainda the parecesse ambiciosa demais, riscou-a e
escreveu:

"Coisasquetentareisaber.•númerol: Aquilo'"
(cf. ME, p. 136).

"A frase ainda timida tinha a graça de urna verdade ".


(ME, p. 136). Achou-a perfeita. Acrescentou: "Número 2:
como ligar 'aquilo' que eu souber corn o estado social". (ME,
p. 136). Releu a obra, pareceu-Ihe que the tinha dado um
"pequeno toqueerudito; a erudiçdo, sendoexterior, confundia-
se, para ele, corn objetividade ". (ME, p. 137).
Um segundo depois, percebeu a "contragosto o grande
equivoco do escritor: fora a sua propria limitaçdo que
reduzira a frase ao que era, e a resistência que ela oferecia
talvez fosse a resistência de sua propria incapacidade".
(ME, p. 136).
Colheu o ridículo da situaçâo e isso solapou sua grandeza.
Para defender-se começou a rir, por masoquismo e um pouco
também para "demonstrar corno ele era mirtirque fingia ndo
estar sofrendo mas esperava que Deus adivinhasse corn
arrependimento e piedade que seu fiho sofria e que so por
herolsmo ria, um pouco para Deus se arrepender ". (ME, p.
137).
Falhara na criaçâo do futuro, mas ainda havia o passado,
o barro do que ja acontecera, do qual, corn objetividade,
poderia partir.
Os fatos sao, pois, na poética da ficçâo de Clarice, um
recurso do escritor menor. Martim reviu, na memoria, as
102 CLARICE LISPECIOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

pedrinhas dos fatos que Ihe tinham acontecido e sentiu-se


"afogado num mar de seixos". Corn as mesmas pedrinhas, o
jogo estava feito e a improvisaçâo era impossível O material
de sua vida era esse mesmo, nada poderia entrar ou sair. Só
urna cartomante conseguiria baraihar as pedrinhas e fazer
saltar urna novidade. Era born que assim fosse, porque no que
esta definitivamente organizado, podemos caber." E verdade
que ds vezes cabemos com um braço paralisado pela
construçâo, ou corn um olho fechado pela argamassa
endurecida". (ME, p. 138). Martim acabou sentindo que "a
criaçao do mundo estava lise dando cólicas". (ME, p. 139).
Feliz, deitou-se sobre a barriga e adormeceu. Nâo se ri o texto,
doridamente, da experiência de criar?
O tempo, entretanto, amadurecia e Vitória estava na
iminência de denuncia-lo, por meio do professor, que vinha
à fazenda, sempre no Ultimo domingo do mes.
Enquanto isso, as mulheres Ihe fugiam; Ermelinda ja
nâo o amava. Vitória deixava de persegui-lo corn suas ordens,
a mulata moça ocupava-se na cozinha e sabado era feriado na
fazenda. Só Ihe restava a criança, de quem se aproximou,
alegre, porque ela nâo demonstrava medo; era urna criança,
cuja força inocente de amava, com extremo cuidado, para
nâo estragar tudo. Tudo porém, se estragou do lado dela.
Gulosa, cheia de malícia ("sua carinha era a de ulna
prostituta"), pediu um presente. Corn traços maduros,
corruptos, piscando corn falsa baj ulaçâo e cobiçosas garras de
criança, suplicou-Ihe "um presentinho". Revelou-se a
impureza. Martim fugiu, sob a cascata do riso dela. (cf ME,
p. 159).
Flagrada a malícia subjacente nos desejos da infância,
mais urna vez, o narrador leva o leitor a urna tomada de
consciência acerca de traços essenciais da condiçiio humana:

"Que coisa escura é essa de que precisamas,


que coisa avida é esse existir que faz corn que a
mâo arranhe como garra? e no entanto esse
avido querer é a rossa força e nossas crianças
astutas e desamparadas nascem de nassa
escuriddo (...). (ME, p. 160).
O SIGNO PROIBIDO 103

Ele cometera um crime (nao porém por maldade) refletia:


"Nem seu proprio crime the dera jamais a idéia de podriddo
e de dnsia e de perdao e de irrepardvel como a inocência da
menina preta". (ME, p. 160).
Inocentes mesmo so os animais. As crianças ja tom a
marca. Como Joana-menina, que descobria no mal a força da
vida e a tia chamava-a de "víbora", rótulo que levou consigo
pela vida afora.
Por fim, o professor visita a fazenda. Martim, sentindo-
se ameaçado, foge para o "negro coraçao do bosque", como
um cavalo sotto. Assustado corn a escuridao e, simul-
taneamente, por ela protegido. Tremia e involuntariamente
batia os dentes, e ria também, de um riso idiota. Tinha medo,
como se o medo acontecesse a outra pessoa, que era,
assustadoramente, ele proprio. Quem era ele, afinal? Simbolo
da perene fuga humana, o homem refugiado no bosque estava
perdido de afliçao e de medo. (cf ME, p. 167-8).

"Teve a certeza intuitiva de que nao sonos


nada do que pensar osesomos o que ele estava
sendo agora, urn dia depois que nascemos nds
nos inventamos -- mas nos somas o que ele era
agora". (ME, p. 168).

Cala na verdade e batia os dentes. Como se nao tivesse


dado passo algum, ele, que estivera tao proximo do territorio
da palavra, parecia um bicho no escuro. "Aquela toisa de
olhos assustados que um dia tinha subido temerariamente
até o crime e depois até ulna montanha" era agora um ser,
cujo destino tinha um sé horizonte: o medo. Havia procurado
compreender mais do que era permitido e amar mais do
que era possível. Desejava entrar na vida e em vez de
renunciar - como faz um monge - agira. Alcançava, final-
mente, o criminoso Martim, o sentido da palavra "salvaçao".
Queria agregar-se aos salvos. No escuro, intuiu que se more
corn a energia corn que se vive, feliz, "submisso d perfeiçdo
que nos usa". Descobria que Deus nao tem pressa. Ele sabe
que um dia o assassino tera medo e dira "sim" à harmonia
perfeita de beleza e horror. O grande absurdo poderia ser
aceito afinal: o mistério é a salvaçâo. Toda proteçao nos é
104 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

negada, nossos pais estai) mortos e nâo podemos mais


perguntar-lhes: "que luz é essa?" Ninguém nos guia e entai,
na propria "carne em colica", o homem inventa Deus. (cf
ME, p. 168, 172).
Era portanto um criador. No escuro. Onde as grandes
barganhas se fazem. (cf ME, p. 172). Crescer dói, tornar-se
dói, e Martim respirou corn cuidado, ja sem medo, em total
solidâo: a solidâo do homem completo capaz da grande
escolha, de fabricar seus instrumentos. (cf. ME, p. 172).
Confessando seu proprio nada para caber dentro do mistério,
Martim receberia a temura de tomar-se filho de Deus. Medroso,
covarde, submetia-se; aspirava a um ritual que em vez de
simbolizar a submissâo, a realizasse. Na escuridâo do bosque,
no agasalho, nada enxergava, "mas ser cego é ter visiìo
continua". (ME, p. 175). Devia pois dizer "sim", acreditar;
mesmo que tenha roubado o pâo dos outros, urn homem deve
crer. Martim cedeu e se disse, no escuro do bosque:

"eu creio na verdade, creio assim como vejo


esta escuridiio, creio assim como nao entendo,
creio assim como ossnysinamos, creio assim
como nunca dei pâo para quem tem fome, creio
que somos, creio no espírito, creio na vida,
creio na fome, creio na morte". (ME, p. 175).

Usava palavras de um ritual, que na() eram suas,


prronunciava enfim a unica palavra de passe: creio. (cf ME,
p. 175).
A oraçâo de Lori em Uma aprendizagem ter5 mais
suco do que tern a oraçâo de Martim, porque as palavras sera()
dela e nâo serâo palavras de passe.
Martim voltou ao deposito e Ermelinda visitou-o naquela
noite de chuva e des se amaram corno "casados se amam
quando perderam um jïlho". (ME, p. 188).
No dia seguinte, segunda-feira, Vitória ordenou-lhe
que abatesse a velha macieira, pois ela dava pouca fruta e
fruta acida, ocupando inutilmente terra boa. Martim, a contra-
gosto, tomou o machado. Vitória seguiu-o, querendo
oc nversar. A macieira nâo chegara a ser derrubada e sua
`e _Ja brotara mais tarde.
O SIGNO PROIBIDO 105

Vitória, a dona da fazenda, "era um ogre". Desistira de


alguma coisa, nâo se sabia o quê e, altiva, parecia envolvida
"na falta de amor por si mesma". (ME, p. 53). Perdera a por-
ta, embora guardasse a chave (cf ME, p. 52).
Ela era ruim, Ermelinda era boa, sem que nenhuma
delas precisasse, para prova-lo, de fazer um ato de bondade ou
maldade. Assim pensava Vitória, absorta.
A primeira parte do livro ("como se faz um homem")
termina corn urna epifania de beleza e poder: Martim e
Vitória, a cavalo, inspecionam o campo, no alto da colina. O
nascimento de urna extrema ânsia, em Martim, fora provocado
"agora como da primeira vez em que pisara a encosta, pela
visa° de um mundo enorme que parece fazer uma pergunta ".
(ME, p. 88). As figuras dele e a de Vitória, unidas pelo vento,
dominavam o espaço erre baixo. Martim decidiu ser esse
homem que estava sendo: o sentido das terras e da mulher, o
aguilhâo daquilo que via. Quisera encontrar um gesto para
exprimir aquele instante de alusâo ao desconhecido: beijar a
namorada? construir urna casa? fazer uma viagem?
simplesmente amar? Na impossibilidade, estava "a dura
garra da beleza". Vitória estendeu o braço e apontou ao longe
uma montanha de encostas suavizadas pela impossibilidade
de serem tocadas. Martim teve a certeza de que esse era o
gesto que procurava: apontar. Assim se determinavam as
distâncias. O gesto cumpria-se. Desceram devagar a encosta.
"Eles eretos, os cavalos bamboleando as ilhargas".
(cf ME, p. 88-9).
Depois disso, quando terminava o trabalho na fazenda,
Martim gostava de voltar à encosta, onde ficava de pé,
olhando. Como um boi fica de pé no morro.

"Ali; existir jk era uma énfase", (ME, p. 98).

Na noite em que Martim passara pela experiência no


bosque, Vitória também acordara corn a trovoada e sentara-
se na cama. No meio da noite, pensou no homem: na primeira
vez em que o vira, de pé, no alpendre, beber âgua, grosseiro.
Os bichos "de que é feita a escuridiio" estavam soltos e
ela podia pensar qualquer coisa. Experimentou dizer "eu te
amo" e nada aconteceu. Nada Ihe oferecia obstaculo e Vitória
106 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA 00 OPOSTO

acostumara-se a apoiar-se em obstâculos para lutar. Nâo se


livrara ainda daquela ameaça: a ânsia de viver. Ha muito
escolhera seu caminho, mas desde que o homem pisara a
fazenda, tudo se questionara de novo.
Experimentou novamente: "eu te amo", "corno se amar
fosse obscuramente o modo de chegar ao seu proprio limite,
e o modo de entregar-se ao mundo escuro que a chamava".
(ME, p. 178).
o MUNDO CONHECIDO O:
o GROTESCO

Esse mundo escuro, prenhe de vida, representa, no texto


de Clarice, o grotesco: o mundo conhecido estranhado,
porque distanciado de nos. Como acontecera em livros
posteriores: A paixí o segundo G.H. e Agua Viva.
Quem aponta no grotesco essa característica de mundo
distanciado ou estranhado é Kayser, no seu classico ensaio7ó.
Este trabalho perfaz todo o percurso histórico da palavra e do
conceito de grotesco.
É urna palavra originaria do italiano "la grottesca" e
"grottesco", derivados de "grotta" = gruta. Esses termos
designaram certa classe de ornamentos encontrados em
escavaçoes em Roma e, depois, em outros lugares da Italia. Era
uma pintura ornamental antiga, nao autenticamente romana e,
considerada na época de Augusto, por V itrt vio, "moda barbara",
como degeneraçao do born goston. Nessas pinturasanulavam-
se as diferenças entre plantas e animais e formas de corpos
humanos também transitavam entre os dois reinos. Diluíarn-
se, portanto, as ordenaçóes da natureza e atentava-se contra
as concepçóes acerca do homem, no mundo classico. Mas a
moda espalhou-se.
No século XVI, (tais descobertas sâo do final do século
XV), o grotesco foi designado como "sonho dos pintores". Nas
obras oníricas, é que se podem misturar todas as criaturas.
O grotesco foi abordado no chamado manifesto do
Romantismo francés, ou seja o "Prefacio" de Vitor Hugo para
o drama Cromwell, em 182778.

76. Kayser, W., op. cit., p. 18.


77. Hugo, Victor, "Do grotesco e do sublime"iTraduçao do "Prefacio de
Cromwell". Trad. e notas de Celia Berretini. SP, Perspectiva, s.d. Coleçâo
Elos, v. 5.
78. Hugo, Victor, op. cit., p. 25, 26, 6, 29, respectivamente.
108 CLARICE LISPECI'OR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

Segundo Hugo, o grotesco nasce quando o homem


sente que nem tudo na criaçâo é harmonioso, que o feio existe
ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no
reverso do sublime, e o mal corn o bem, a sombra corn a luz.
As questôes se multiplicam: a mente do artista sobrepôe-se à
razâo infinita do criador, à natureza mutilada concede-se
estatuto de arte79. Embora, na antiguidade, jà se conhecessem
o monstruoso e o disforme na arte (tritôes, satiros, ciclopes,
sereias, ftírias, parcas, harpias) o grotesco é, segundo Hugo, o
que separa a arte moderna da antiga, a literatura romantica da
classica. Da uniâo do tipo grotesco corn o sublime nasce o
gênio moderno, tao complexo e variado em suas formas,
oposto à uniforme simplicidade do gênio antigo80. No
pensamento dos modernos, o grotesco tern imenso papel: de
um lado cria o disforme e o horrível; do outrro, o cômico e o
bufo.

"(...) é ele que faz girar na sombra a ronda


pavorosa do sabó, ele ainda que dó a Satâ os
cornos, os pés de bode, as asas de morcego "8' .

Ao transitar do mundo ideal ao mundo real, desenvolve


inesgotâveis parodias da humanidade, diz Hugo: aparecem
acores que sac) brejeiras silhuetas de homens, tipos
completamente desconhecidos da grave Antiguidade.
"(...) faz cabriolar Sgnarello ao redor de D. Juan e
rastejar Mefistofeles ao redor de Fausto"82. Produz as
feiticeiras de Macbeth, "A Bela e a Fera". Somente em seu
carâter de antípoda do sublime, o grotesco revela toda a sua
profundidade. Pois como o sublime dirige nossos olhos para
um mundo mais elevado, sobre-humano, assim se abre, ao
contato do disforme e monstruoso, um mundo inhumano e
abismal.

79, 80 e 81. Hugo, Victor, op. cit., p. 25, 26, 6, 29, respectivamente.

82. Bem-vindo! Vem-vindo, / Velho amo de antanho! / Voando, eis-nos


zunindo, / NAo nos és estranho. / Sozinhos, e aos pares, / Semeaste este
bando. / Eis-nos aos milhares, / À volta dançando. / Malandros espinhos
/ Em seu peito encobrem, / No velo os piolhinhos / Sem mais se
descobrem. / (Goethe, Fausto, (2' parte). Trad. integrais de Jenny Klabin
Segall. SP, Martins, s.d., v. 1°, p. 304, citado por Kayser.
O SIGNO PROIBIDO 109

Kayser enumera os animais preferidos pelo grotesco:


serpentes, lagartixas, mochos, ras, aranhas, isto é, animais
noturnos e répteis que vivem no seio de outras ordenaçoes
inacessíveis ao homem. O animal grotesco, por antonomasia,
é o morcego. Tudo quanto é impuro e indigno de ser oferecido
em holocausto. Nao pertencem a Deus, mas aos poderes
infernais.
No segundo Fausto de Goethe, "o coro dos insetos"
satida Mefisto como seu senhor, quando este sacode a peliça
que tirou do gancho; vestira-a no passado, quando iniciara o
aluno nos segredos da ciência. Mefisto se regozija corn as
novas criaturasg3.
Também no mundo vegetal produz impressao grotesca
o enredado impenetravel das ârvores e arbustos, sua imensa
vitalidade, corn que a natureza melma suspende a separaçao
entre animal e planta. No mundo moderno, ha urna espécie de
"grotesco técnico", quando se descrevem os monstros que
sao as mâquinas gigantescas, os aviôes de formas estranhas.
Sempre que ha urna mescla do mecânico corn o organico,
quando o humano perde a vida, temos o grotesco.
Ele corresponde a urna falba das categorias de nossa
orientaçao no mundo. O que irrompe é inapreensíve I, estranho,
distanciado.
A questâo sobre a natureza do sorriso inerente ao
grotesco, toca o aspecto parcial mais problematico do
fenômeno, diz Kayser. Talvez porque a representaçao artistica
traga certa liberaçâo das emoçôes. A configuraçao do grotesco
constitui a tentativa de proscrever e conjurar o demoniaco no
mundo.
Kayser tern razao quando diz que três épocas puseram
especial insistência nesse poder do id, do Inconsciente: o
século XVI, a época compreendida entre o Sturm und Drang
e o Romantisme e, a Idade Moderna.
O século XVI se nutre de experiências novas nao
interpretadas pelas explicaçôes anteriores da existência, dadas
pela Idade Média.

83. cf. Kayser, op. cit., p. 228-9.


110 CLARICE LISPECTOR: A TRAVFSSIA DO OPOSTO

O Sturm und Drang e o Romantismo atacaram, em


oposiçâo consciente, as imagens do mundo racionalista,
esboçadas pela época do Iluminismo. A triade Moderna lutou
contra a validade dos conceitos antropológicos e a competência
dos conceitos tornados das ciéncias naturais, corn as quais o
século XIX havia elaborado a sua sinteseM.
As representaçóes do grotesco no mundo moderno
constituem a oposiçâo mais ruidosa e evidente a toda espécie
de racionalismo e a qualquer sistema de pensar.
Nesse contexto, podemos situar, talvez, o grotesco que
aparece na ficçào de Clarice. Ela se opôe a urna organizaçao
do pensamento que absorva o selvagem coraçào da vida.
Quando chega ao inexpressivo em A Paixâo de G.H., chega
à negaçâo da grafia do Logos. A proposito da traduçâo poética
do "Coro mistico", no segundo Fausto,
O pereclvel
É apenas simile.
O imperfectível
Perfaz-se enfim.
O nào-dizível
Culmina aqui.
O Eterno-Feminino
Acena, céu-acima.B3

diz Haroldo de Campos: "Derrida nos desvelou que a


fala também participa da grafia, que antes da linguagem
falada e da escrita usual ocorre urna escritura primeira ou
"arquiescritura ", "movimento da diferença ", "arqui-sintese
irredutivel ". Tanto o "indescritfvel " ('inescritivel) como o
"nâo-dizível" ('inefdvel) tém portanto a ver corn a
imaginaçno de um logos que niio possa ser grafado...".
O Eterno-Feminino, segundo Jung, é a Anima, arquétipo
de todas as tendências psicológicas femininas na psique do

84. Campos, Haroldo de, "Marginalia Faustica: Deus e o Diabo no 'Fausto'


de Goethe". SP., Perspectiva, 1981, p. 65. Coleçao Signos.
85. Campos, Haroldo de, op. cit., p. 207.
86. Jung, Carl G./ e outros/. O homem e seul stmbolos. Trad. de Maria Lucia
Pinho. RJ., Ed. Nova Fronteira, 1977, p. 177.
O SIGNO PROIBIDO Ill

homem: os humores e sentimentos insteveis, as intuiçties


proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de
amar, a sensibilidade à natureza, e, por fim, mas nem por isso
menos importante, o relacionamento corn o inconsciente."
Nesse sentido, poderjamos admitir, com Hélène Cixous,
urna escritura feminina em Clarice, que nada tem a ver corn
"feminismo" ou "literatura femjnina". A magi no escuro
representaria, para nós, essa escritura femjnina, porém ainda
comprometida com enredo e trama de romance — se bem que
rarefeitamente — pois o epifânico domina o livro.
A expressâo maxima alcançada pela ficcionista nessa
escritura é, para nos, Agua Viva, onde desaparece toda a
preocupaçao corn enredo e o Logos introspectivo se espraia
livremente, em manchas de escritura, densas, gelatinosas,
que o leitor deve ter Anima para sentir. O irracional irrompe
e nâo à toa o grotesco tem sua parte de ledo. Veja-se a
passagem que fala de grutas (grotte!).

87. Gera!mente o sabbat significa o repouso depois da agio. Entre os hebreus,


o sétimo dia significa o repouso de Deus depois da Criaçio. (Gen. 2, 2-
3) e, portanto, o sabbat é consagrado a Jahvé.
Mas nio foi sempre assim. As imprecaçóes dos profetas Isaias e
Oséas, contra os sabis e as festas religious ligadas aos ciclos lunares,
mostram que existem traços de urna antiga tradiçio da época nómade,
segundo a qual o sabbat se celebrava como festa de alegria, sem nenhuma
associaçio com o dia do Senhor. Era a festa do plenilinio (shabater =
cessar; a tua cessa de crescer); depois, a celebraçio estendeu-se a cada
urna das quatro fases do ciclo lunar e tornou-se festa do sétimo dia,
A esta antiga tradiçio, antes que ao relato Biblico do Genesis, liga-
se o sabbat das feiticeiras. Segundo a tenda, partiam cavalcando urna
vassoura, reuniam-se noma clareira, onde erguiam um grande tumulto e
se entregavam a cenas delirantes e medonhas. Enquanto Deus repousa, os
demónios se agitam. E o aspecto noturno do simbolo do sétimo dia.
A noite era filha do Caos e mie do Céu (Urano) e da terra (Gaia).
Percorria os céus, envolta num véu sombrio, sobre um carro atrelado a
quatro cavalos negms, corn o cortejo de suas filhas, as Firias, as Parcas.
A noite simboliza o tempo das gestaçóes, das germinaçóes, das
conspiraçóes, que vio explodir de dia, manifestando vida. Todas as
virtualidades da existéncia a enriquecem. Mas entrai na noite é regressar
so indeterminado, onde se misturam pesadelos e monstros jdéias negras.
A noite é imagem do inconsciente e, no sono, o inconsciente se libera.
Como todos os simbolos, a noite apresenta duplo aspecto: o das trevas,
onde fermenta o devir; o da preparaçio do dia, onde jorrari a luz da vida.
(cf, Chevalier, Jean e Gheerbrant, Main, Dictionnaire des Symboles.
Réalisation Marian Berlewi. Paris, Geghers, 1974, 4 v. Verbetes Sabbat
e Nuit )
112 CLARICE USPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

>Mo sem motivo, o narrador aspira a escrever como se


pinta, a fotografar o real, a exprimir-se como as vibraçóes
sonoras da mtisica, sentidas pela mati colocada sobre a
eletrola, enquanto ouve o disco; a palavra "enovelada ", "tépi-
da ", "a quarta dimensao da realidade ", o substrato vibrante
da palavra repetida em canto gregoriano. (cf. AV, p. 12).
Clarice esta lidando corn o "atrâs do pensamento' corn
a "matéria-prima" (que aqui é a palavra, nâo a barata), sem t
submeter-se a nenhuma classificaçâo: "Género 'tao me pega
mais". (AV, p. 14). Linguagem de urna pessoa primitiva
"primitiva como os deuses" (lembremo-nos de Vico). O
narrador, que pinta grutas, entra assim também na escritura.

"(...) gru tas extravagantes e perigosas,


talismâ da Terra, onde se unem estalactites,
fósseis e pedras, e onde os bichos que sâo
doidos pela sua propria natureza maléfica
procuram ref igio. As grutas sâo o meu in-
ferno. Gruta sempre sonhadora corn suas
névoas, lembrança ou saudade? espantosa,
espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo
do tempo. Dentro da caverna obscura
tremeluzem pendurados os ratos corn asas
em forma de cruzdos morcegos. Vejo aranhas
penugentas e negras. Ratos e ratazanas
correm espantados pelo châo e pelas paredes.
Entre as pedras o escorpiâo. Caranguejos,
iguais a eles mesmos desde a pré-historia,
através de mortes e nascimentos, pareceriam
bestas ameaçadoras se fossem do tamanho
de um homem. Baratas velhas se arrastam na
penumbra. E tudo isso sou eu. Tudo é pesado
de sonho quando pinto urna gruta ou te
escrevo sobre ela -- de fora dela vem o tropel
de dezenas de cavalos soltos a patearem corn
cascos secos as trevas, e do atrito dos
cascos o jdbilo se liberta em centelhas: eis-
me, eu e a gruta no tempo que nos a podrecerh.
O SIGNO PROIBIDO 113

Quero por em palavras mas sem descriçâo a existência


da gruta que faz algum tempo pintei — e nâo sei como. Só
repetindo o seu dote horror, caverna de terror e das maravilhas,
lugar de aimas aflitas, inverno e inferno, substrato imprevisível
do mal que esta dentro de urna terra que nâo é fértil. Chamo
a gruta pelo seu nome e eia passa a viver corn seu miasma.
Tenho medo entâo de mim que sei pintar o horror, eu, bicho
de cavernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e
também o seu eco" (AV, p. 16-8).
O leitor que leia oralmente esses ritmos, que Ihe cinta as
ondas e vibraçóes como pode sentir as do disco na eletrola,
tocando a chamada"Aria da quarta corda" de Bach, certamente
captarâ o que quero dizer corn o sintagma: a "escritura
feminina" de Clarice Lispector.
Quem leu o conto "A menor mulher do mundo" de
Laços de familia, também sentira em que clave de "fiorituras"
se exprime, por vezes, o grotesco, no texto clarceano.
Sobre essse conto, escreveu a propria Clarice:

"A menor Mulher do Mundo" me lembra


domingo, primavera em Washington, criança
adormecendo no colo no melo de um passeio,
primeiros cabres de maio -- enquanto a
menor mulher do mundo (urna noticia lida no
jornal) intensificava tudo isso num lugar que
me parece o nascedouro do mundo: Africa.
Creio que também este vem do meu amor por
bichos; parece-me que cinto os bichos como
urna das coisas ainda multo próximas de
Deus, material que 'dio inventou a si mesmo,
coisa ainda quente do próprio nascimento; e,
no entanto, coisa ja se pondo imediatamente
de pé, e jú vivendo Ioda, e em cada minuto
vivendo de urna vez, nunca aos poucos apenas,
nunca se poupando, nunca se gastando."
(LE. p. 176).

A menor mulher do mundo é chamada pelo explorador,


que a descobriu entre os escassos Likoualas sobreviventes,
"Pequena Flor".
114 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

"A fotografia de Pequena Flor foi publicada


no suplemento colorido dos jornais de
domingo, onde coube em tamanho natural ".
(LF, p. 79)

Essa publicaçâo provocou reaçóes de afliçâo, de perigosa


ternura, piedade, dureza, vontade de brincar, ansiedade,
posse. E outras. "Pequena Flor" estava gravida e seu segredo
era um fil ho minimo. Pois é. "Deus sabe o que faz, disse uma
velha fechando o jornal." (LF, p. 86).
É grotesca a montanha-russa do conto "O bufalo",
jogando a mulher, mecanicamente, para cima, com a sala
levantada. Grotesca é a propria dualidade mulher/btífalo, a
Bela e a Fera. Grotesca é a figura da Bela e do mendigo e da
ferida exposta do mendigo. Grotescos os ratos, o terreno da
era terciaria de A maçâ no escuro, grotescos o "Jardim
Botânico" do conto "Amor"e o jardim perfumado de jacintos
de "Mistério em São Cristóveio".
Grotesca essa noite em que Vitória se senta na cama e
percebe os rumores, que jamais se deviam escutar.
Neto sabendo se era feliz ou infeliz — uma coisa
parecendo-se tanto com a outra" —V itóriacontinuou sentada,
quieta "corn sua ferida de amor, perdida naAfrica ". O vento
negro soprava, a mulher sentia arrepios daquela "coisa
escura e boa e agasalhante que era o mal." (ME, p. 178)..
Do amor, só a crueldade. Pavor, raiva, alegria ruim,
violéncia. "A noire foi feita para dormir. Para que uma
pessoa nunca assista o que acontece na escurideto. " (ME, p.
179).
Onde estiveste de noite? é o nome de uma obra de
Clarice, cujo titulo consagra o grotesco no espaço mitico da
escuridâo e da noite, a orgia do saba e o galope dos cavalos
soltos88.
Sentia pienamente seu corpo por dentro; "tanto corpo,
de repente!" No dominio espesso da noite, que urna pessoa
o consgue atravessar, Vitória ouvia os sapos.

. Cf. Barthes, Roland. Le plaisir du texte. Paris, Editions du Seuil, 1973, p.


23. Collection "Tel Quel".
O SIGNO PROIBIDO 115

"À mela-noite Cinderela seria os trapos que na verdade


era, a carruagem se transformaria na grande abóbora e os
cavalos eram ratos — assim foi inventado e assim nâo
mentiram. A meia-noite entrava-se no dominio de Deus."
Cujos meios mais "pareciam um inferno". (ME, p. 179)
Sentada na cama, Vitória imobilizava-se vencida pelo
que sabla. "Tudo que sei estd oculto". Fora erro acordar à
none; a noite é perigosa: "como se tivesse aberto sem querer
a porta proibida do segredo e visse as !!vidas esposas do
Barba Azur'. (ME, p. 180).
Sozinha, corn sua luxúria nâo de amor, mas a incrível
luxúria de estar viva. "Os sapos estavam agora enormes, com
a boca aberta perto da janela. As patas safam daquelas
cabeças sem pescoço, aquelas bocas rasgadas coaxando um
ruido antigo, os pequenos monstros da terra. (ME, p. 181).
Em seu pesadelo, um minimo de consciência impedia
que aquilo que nela era escuridâo "fosse se reunir d orgia dos
sapos". (ME, p. 181). Semi acordada, fez um grande esforço
"para nâo ser um animal, pois as orelhas deste nos ja as
temos e a cara inocente também a temos." (ME, p. 181).
Havia lamento e uivo dentro dela (cf ME, p. 181), como
em Miss Algrave, personagem do conto homônimo em A Via
Crucis do corpo. Vitória sofria, no escuro, porque denunciara
Martim. Era, porém, um quente sofrimento de viver.
Começou a choyer. A mulher adormeceu profun-
damente, por alguns minutos e acordou com sede. Desceu à
cozinha pegou urna manga, bateu-a contra a parede — corn
cuidado, para nâo acordar Ermelinda, que tinha "sono de
ave", até sentir a fruta mole, dentro da casca, plena do proprio
suco. Chupou-Ihe todo o caldo e entâo rasgou "a casca corn
os dentes e comeu a carne amarela até chegar no caroço ".
(ME, p. 182).
Foi ao deposito, talvez para avisar Martim de que ja o
denunciara, mas nâo chegou a fazê-lo. Indecisa, só empurrou
a porta; sem entrar, voltou para casa, corn seu segredo.
"Estava reduzida a ser urna mulher junto de uma porta
numa noite de chuva". (ME, p. 183).
Quando se encontra corn Martim, no dia seguinte,
procura revelar-se, pretendendo explicar-lhe a personalidade
de Erme Iinda e defender contra ele a extrema fragilidade dela,
116 CLARICE LISPECTOR: A TRAVFSSIA DO OPOSTO

como se o mundo fosse demain para a prima (ME, p. 195).


Como se confessasse que el a, sim, Vitória era forte a ponto de
suportar o amor. (cf ME, p. 196). Desejava que Martim
soubesse ser ela mais que urna mulher enveihecida, cuidando
de urna fazenda. Era urna "espécie de poetisa" que nao
escrevia, porque nao tinha tempo. Declarou-se urna curiosa
da vida, e mentindo, Ihe disse que tudo no mundo a interessava
e estudara no livro aberto da vida. (cf ME, p. 198). Como nâo
era pratica em comunicar-se, pensava que "falar consiste em
dizer tudo" (ME, p. 198). Por isso, sacrificando inutilmente
seu proprio pudor, contou a Martim que até fizera urna vez
urna poesia, começando assim:

" As rainhas que reinavam na Europa no ano


1790 eram quatro" (ME, p. 198).

Mas ele nao podia entender. Vitória jamais conseguiria


provar-lhe que, para além do sucesso ou do fracasso, a poesia
podia nascer, corn seu proprio impeto, de urna frase sobre
rainhas. Jamais poderia provar a niguém "a graça infinita que
pode se levantar em vôo de urna frase simples. (ME, p. 198).
Ficou entao corn quatro rainhas' na mao canhestra ". (ME,
p. 198).
Descobriu quanto conhecia profundamente aquele
homem, embora nao soubesse fatos sobre a vida dele. Conhe-
cia-o, desde o instante em que se aprumara ao vê-lo e "se ela
soubesse fatos talvez perdesse o homem inteiro" (ME, p.
200). Tinha dele um conhecimento cego, sem contudo enten-
dê-lo. Lembrou-se da noite anterior e teve medo do que
jamais saberia de si. A noite de domingo tinha sido a escura
abertura: "havia infernos a que ela nâo tinha descido, e
modos de pegar que a mao ainda nao adivinhara, e modos de
.ser que por grande coragem ignoramos ". (ME, p. 200).
Ambos desafiando-se num dialogo em que usavam ao
ex tremo limite a propria liberdade, compreendiam-se sem
entender bem o que se diziam. Talvez se compreendessem
pelas entrelinhas. Sentia-se ruim como urna mulher desiludida
de si mesma. Ela chateava o homem/masculino corn o
"emaranhamento de urna mulher que tinha medo de viver."
Ele, porém, carregava também seus enredamentos e seus
medos. (ME, p. 203).
O SIGNO PROIBIDO 117

Em sua limpa masculinidade, Martim ja nao suportava


aquela "fêmea chata ". Tudo o que desejava, corn suas maos
cheias de calos, corn "nojo de contusôes de alma e nojo de
palavras" (ME, p. 203) era viver.
Segundo sua visada masculina, Vitória, a mulher corn
boca, dentes, ventre, perdera a oportunidade de "ser urna
planta limpa" e se deixara corroer, estragar, erguer-se pelo
espírito (cf Me, p. 204). Ela o aborrecera corn seu brilho, com
seu medo faiscante. Martim queria o cerne que nâo brilha, a
"extrema beleza da monotonia". (ME, p. 204).
Depois da morte do pai, Vitória quisera viver. Fora
sozinha para urn hotel, numa ilha. A noite, a luz do hotel
apagara-se e ela se vira abandonada, no escuro. Teve medo;
passada a supresa, sentiu a beleza da praia, da solidâo e da
barca ancorada e pediu a Deus que the tirasse, para sempre,
sua coragem de viver: que nunca mais se permitisse a si
mesma aquela graça "pois antes morrer sem ter visto que ter
visto urna só vez ". (ME, p. 207).
Ter visto urna só vez pode ser urna epifania. E a epifania
pertence ao processo de criar e fruir a beleza. Nem todos têm
coragem; porém, Deus permite que as pessoas sejam covardes:
"seus filhos prediletos siio os que ousam mas Ele é severo
corn quem ousa" e benevolente corn os fracos. "Ele abençoa
os que abjetamente tomam cuidado de ndo ir longe demais ":
desiludido, Ele abençoa os que ncio têm coragem". A quern
nâo tern a coragem, Deus da "urna superficie de que viver" e
"urna tristeza ". Porque a "beleza é arida". Vitória entâo se
disse para sempre: "tenha medo, Vitória, porque ter medo é
a salvaçâo". Nada deve ser visto de frente. "SO os que se
danam é que tern força". Para os outros, a alegria tern de "ser
corno urna estrela abafada no coraçâo ", um segredo, urna
contemplaçao. (cf ME, P. 207).
No outro dia, no barco, ao voltar, Vitória sentiu que
morrera.
Isso foi o que Vitória contou a Martim, porém, aquelas
palavras, sob o sol, tinham de ser esquecidas. Por piedade de
si mesmos tinham que se dar tempo para esquecer. Podiam
pois continuar a viver.
Martim perguntou-Ihe entâo se ela nunca pensara em
pedir ajuda. Nao, ela nâo pudera pedir, porque precisava de
118 CLARICE LISPECTOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

tanto, que ninguém lhe polleria dar. Pedir a quem, alias?


Martim sério e voluptuoso lhe ensinou que "é preciso ter
tecnica para pedir" "pedir, disfarçando". Como uma mu-
Iher que precisando de sapato nao dissesse diretamente ao
mando: "me da sapatos". Mas repetisse todos os dias: "meus
sapatos esulo velhos, meus sapatos estao velhos ", até que o
mando um dia ao acordar de manhâ dissesse: "Vitória, meu
amor, you lhe dar um par de sapatos". Assim é que se faz.
"Receber pedidos assusta muito as pessoas;" "para pedir
ajuda também é preciso técnica." (cf. ME, p. 209).
Humorismo? Sim, daquele que perpassa coda a obra de
Clarice, pois ela é o contrario de uma escritora triste, e seu
texto nada tern de pessimismo ou melancolia.
Mais tarde Martim, convocado por Vitória, dedica-se
ao trabalho de queimar galhos e folhas, no fundo do quintal.
Ateando o fogo como quem cria, Martim afronta a mulher,
mostrando-Ihe de que é capaz.
Orgulhoso, porque lidar corn fogo era urna tarefa de
homem. Tendo as maos "nobremente queimadas em com-
bate ". Se aos poucos ele ja se tinha feito, agora se inaugurava.
Ele que reformara o homem (cf. ME, p.226).
Tendo encontrado no fogo um simbolo do trabalho
humano, admirava-se e amava-se pela primeira vez.
Estava pronto para amar os outros e renascia-Ihe o
futuro. Tivera a grande paciência do artesâo e avançava
totalmente. Podia dizer uma palavra. Chegara pienamente a
si mesmo e estava pronto para chegar aos outros homens,
entendé-los, porque só "neo entende quern nâo quer". Enten-
der é uma atitude, um modo de olhar.
A MAÇA NO ESCURO

"Como se agora, estendendo a mao no escuro e pegan-


do uma maçâ, ele reconhecesse nos dedos trio desajeitados
pelo amor urna maçâ. (ME, p. 228). Martini jâ nâo queria o
nome das coisas, bastava-lhe reconhecê-las no escuro.
Na escuridâo. Na claridade, a linguagem cotidiana reto-
maria seus domínios perdidos. As coisas teriam nomes falsos.
Mas agora, ele jâ as conhecia pelo contacto, ja as teria "co-
nhecido no escuro corno um homem que dormiu corn uma
mulher. "
Conhecera o real ao nível da primeiridade, e entregue
novamente à linguagem aprisionante do Logos, ele porém,
era um sâbio e tinha todo o tempo para recomeçar.
Martini se gu iaria até "transformar os homens", embora
ignorasse ainda o caminho para fazê-lo. "Nao saber" nâo
tinha mais nenhuma importância.
"(...) quem sabe se o essencial nâo foi destinado a ser
compreendido, se somos cegos porque insistimos em ver corn
os olhos, por que nao tentamos usar estas mâos entortadas
por dedos"? (ME, p. 252).
Quando os quatro representantes chegaram para pren-
dê-lo, o professor — que era espírita —, agitadíssimo, tenta
explicar a Martini o alcance de seu castigo:
" — o senhor tern que compreender: ?Os temos que ser
castigados, sabe por que? seno tudo perde o sentido ". (ME,
p. 228). Sao as estapas da humanidade, continua a argumentar
o professor. Se nâo houver o castigo, o trabalho de milhbes de
pessoas se perde, inutiliza-se. (cf. ME, p. 229).
Martini preferia pensar que cometera um crime de amor
pelo mundo, que praticara a "violência corno uma beleza ".
Mas as caras dos homens — dos quatro representantes — eram
um obstâculo a seu pensamento.
120 CIARICE LISPECCOR: A TRAVESSIA DO OPOSTO

"Representando, mudos e inapelSveis, a dura Iuta que


diariamente se enceta contra a grandeza, nossa grandeza
mortal; representando a luta que diariamente corn coragem se
enceta contra a nossa bondade, porque a bondade real é um
violência; representando a luta diaria que encetamos contra a
possa propria liberdade, que é grande demais e que, corn
minucioso esforço, diminuimos; nés, que somos tao objetivos
que terminamos sendo de nés mesmos apenas aquilo que tem
uso; corn aplicaçao, fazemos de nés o homem que outro
homem possa reconhecer e usar (...) (ME, p. 233).
De repente, num Stimo, Martim percebeu que também
aqueles rostos impassíveis de homens que tinham narizes,
bocas, olhos, aqueles rostos sabiam. Todo mundo sabe a
verdade. O jogo, a regra do jogo, é agir corno se nao soubesse.
É verdade que alguma vez, alguém "redescobre a pólvora "
e quer falar. Ai é que a gente se atrapalha "nias todo mundo
sabe tudo. Essa cara silenciosa corn que teimosamente
nascemos. " (cf. ME, p. 234).
A pessoa intata sabe a verdade. "Seu erro anterior fora
tentar entender por meio do pensamento. E quando tentara
refazer a construçdo, caira irremediavelmente no mesmo
erro ". (ME, p. 234). Havia um pacto de silêncio entre os que
sabiam. "Ele viera heróico corn suas palavras ". "Pois muito
antes dos que têm o dom das palavras, os quatro homens e
mais os outros sabiam".(ME, p.234). Muito antes do que
quem escreve, a humanidade sonsamente conhece.
Que é que todos sabemos e escondemos? Em Um sopro
de vida se dira: sabemos que a vida é cuna e vamps morrer.
Sabemos, dira G.H., que a condiçao humana é dor e essa é a
nossa paixao.
Os homens estudavam o mapa. Tinham até o mapa do
labirinto. Só ele, Martim, partira sem mapa, andara em
circulos. Mas também haveria de ter, como os quatros homens,
"urna cara que sabe ". lniciado agora no silêncio dos outros
homens, nao no das plantas ou no silêncio das vacas — sentiu,
como urna decadência e urna sensaçao, que se metamorfose-
ava nos outros e, portanto, em si mesmo. Os quatro homens
protegiam o fardo, a carregar, corn a propria ignorância, sem
romper-Ihe o mistério. Ele, Martim, só tocara nos símbolos.
Tentara, tivera o direito de tentar. Quisera o simbolo porque
O SIGNO PROIBIDO 121

"o simbolo é a verdadeira realidade"; quisera ser herói e o


herói fizera dele um homem. Tudo Ihe voltava de cambulhada
à memoria:
"Restos transfigurados de civismo e de colaçào de grau,
leiteiros que näo falham" e entregam diariamente o leite,
"urna carta que nunca se pensou que vina e que vem",
"procissóes que dao voltas lentas pela esquina", "as paradas
militares, onde urna multidäo inteira vive da seta que lançou".
(cf. ME, p. 255).
Martim fazia questao de reduzir tudo quanto Ihe
acontecera a algo compreensjvel à multidäo dos homens "que
vivem da lenta certeza que avança" (ME, p. 236).
Queria, a todo o custo, emparelhar-se corn os outros,
corn "os quatro representantes ", näo Ihes abalar a certeza do
sono, mas sentia que resvalava para o discurso. Generosamen-
te, desejava entrar na festa deles e oferecer-lhes "vender a
propria alma, contanto que a comprassem. " Queria "pagar
a bebida de todos ", aceitando que lhe tivesse acontecido um
crime passional. Evitava assim temporariamente o crime
major: "ode duvidar" (ME, p. 237) Mas, no firn, Martim sera
como Galileu que se instala, cético, na aurora da moderni-
dade. Agora, porém, lhes entregava a propria consciência que
falhara, quase Ihes dizendo: "soude vocês ". "Urna consciência
que se deixara arrastar pela beleza". Entregava-lhes a chave,
encostava-se ao muro para st r fuzilado. "SO a impaciência do
desejo Ihe dera a ilusi o de que o tempo de uma vida era tempo
bastante" para criar a beleza. Fora porém, urna bénçäo ter
errado, porque se tivesse acertado, "provar-se-ia que a tarefa
da vida era para um homem s6". "Um homem sozinho
chegava apenas a urna beleza superficial, como a beleza de
um verso". (ME, p. 238).
Alcançou entao a certeza que aqueles homens pequenos
tinham. Jogou tudo na certeza, ele que sajra de casa para saber
se era verdade.
"A verdade foi feita para existir! e ndo para sabermos.
A nos, cabe apenas inventa-la" (ME, p. 238). A arte é essa
solitaria invençào. Criamos a realidade, porque precisamos
palpa-la. Como dissera urna vez um filho, corn sabedoria de
criança: Deus criou o rinoceronte para ver corno ele era. (cf.
ME, p. 32).

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