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Ekphrasis

O poeta no atelier do artista

Mário Avelar

Cosmos

2006
Ao Raúl Manuel e ao Mário José

Não sei, meus filhos, que futuro será o vosso.


É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

Jorge de Sena, “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”


Índice

Prólogo p. 1

Capítulo 1.
Jorge de Sena - Das subtilezas do diálogo entre a poesia e as artes visuais p. 6

Capítulo 2
alguns antecedentes mitológicos, a ekphrasis e os equívocos da mimesis p. 38

Capítulo 3
Superando equívocos, do romantismo à contemporaneidade p. 83

Epílogo p. 222

Fontes p. 229
PRÓLOGO
A hospitalidade do poema face a discursos e/ou estratégias de representação
próprios de outras artes, permite-lhe conceber peculiares verbalizações. A estas associa-se
uma prática de enunciação específica, a ekphrasis. No plano ontológico semelhante
hospitalidade possibilita exercícios de descentração; o poeta acede a (simula) outras
identidades que lhe ampliam a sua percepção do real e de si próprio. O sujeito reconhece-
se como instância de fluidez e mutabilidade, núcleo instável, confluência de focalizações
prismáticas pelo poema enunciado. A autonomia decorre da heteronímia, desvendando-se
o texto como instrumento dessa descoberta, dessa revelação.

Porque de leitura se trata, a inteligência e a sensibilidade críticas tornam-se


essenciais. Mas, nos registos com os quais o poema se confronta, na peculiar afirmação de
sensibilidades estéticas, algo mais se impõe, algo que o ressentimento hoje denega;
chamemos-lhe cultura. Não será por acaso que o primeiro grande poeta português que
sistematicamente se apropriou desta tradição (de um modo diferente de Almada ou Júlio),
possuía quer uma óbvia formação anglo-saxónica quer uma sólida formação cultural.
Refiro-me a Jorge de Sena e ao seu livro Metamorfoses, em particular. Esqueço
propositadamente Arte da Música, já que este, por si só, justificaria um outro trabalho
explorador das implicações estéticas e históricas, dos diálogos possíveis entre a poesia e a
música.

Porque ao evocar a ekphrasis, convoco uma tradição poética e reflexiva, a anglo-


americana, ainda não tão divulgada entre nós quanto seria desejável, considerei dever
conceber este livro como um instrumento de leitura para estudantes de graduação dos
cursos das outroras Filologias - as (ainda ?) chamadas Línguas e Literaturas Modernas, e
eventuais Línguas, Literaturas e Culturas; um livro que lhes permitisse desmontar
preconceitos e estereótipos acerca daquilo que o senso comum afirma ser a natureza da
poesia; que lhes desse a conhecer como muito do que de mais fascinante se faz a este
nível, parte do interesse de estar vivo, de crescer culturalmente, da disponibilidade para
conhecer discursos peculiares, estranhos. Instrumento anti-provinciano, portanto.
Ancorado nesta intenção defini um percurso; um percurso que tomaria como ponto
de partida Sena, enquanto poeta e ensaísta - o poeta de Metamorfoses e o analista atento
da peculiar história literária de raiz inglesa; um percurso que demonstraria quão relevante
foi, para um português, para a percepção da sua identidade enquanto poeta e cidadão, a
verbalização do encontro com outras formas de expressão artística; como estas o
impressionaram. Numa breve incursão pela sua poesia o leitor desvenda a ekphrasis e a
função primeira da cultura clássica, tanto nessa sua sensibilidade poética como nas
questões teóricas por ela suscitadas.

Tendo constatado a importância da cultura clássica para a compreensão do seu perfil


literário, considerei relevante uma incursão pelos antecedentes que na Grécia e em Roma,
tanto no plano criativo como no teórico, deram corpo a esta tradição. Tentando preencher
lacunas comummente identificadas a este nível, esbocei, no segundo capítulo, uma
sistematização em torno do conceito de mimesis, o qual funcionará como eixo condutor da
reflexão, e culminará no reconhecido postulado horaciano “ut pictura poesis”. A par desta
incursão na teoria surgem quer os exemplos mais relevantes, fundadores até, da ekphrasis,
quer aqueles que exibem a diversidade que esta assume na época clássica.

Após detectar as grandes vertentes poéticas e os debates essenciais que então se


formulam, optei por retomar a interacção entre a poesia e as artes visuais só em finais do
século XVIII. Poderia ter elaborado uma descrição histórica da sua evolução. Para além de
excessivamente extensa, tal seria, no entanto, redundante face a estudos fundadores.
Optei, por isso, por retomar o tópico através do texto reformulador daquele postulado -“ut
pictura poesis”, Laocoön, de Lessing. A este seguir-se-á uma exposição de instantes vários,
na poesia inglesa, onde se consagram possibilidades específicas de enunciação em diálogo
com a arte; atentar-se-á, por exemplo, no impacto que o Museu teve junto dos românticos
ingleses e na forma como diferentes gerações lidaram com e formularam esta nova
presença. Após revelar singularidades várias, introduzo a experiência americana (Whitman
e a fotografia), não sem deixar de mencionar exemplos pontuais noutros espaços literários,
como o francês (Baudelaire) e o português (Cesário). Mais do que um caminho, pretendo,
com estas incursões, desvendar veredas várias onde, ao longo do século XIX e do século
XX, do modernismo ao pós-modernismo, este diálogo assumiu peculiares identidades. Daí
que a convocação das rupturas realizadas no âmbito da pintura, tendo o conceito de
mimesis como eixo, sejam significativas para entender a evolução da própria poesia. Não
causará perplexidade que esta viagem se encerre, na pós-modernidade, com poemas que
se confrontam com a ausência do figurativo.

Porquê esta ênfase no anglo-americano? Obviamente pela minha formação e


também pela necessidade (pedagógica?) de, na esteira de Sena, dar a conhecer uma
tradição ao leitor português. Sabe o iniciado na poesia anglo-americana que, ao longo dos
séculos XIX e XX, esta exibiu um diálogo intenso, constante, radical mesmo, com as artes
visuais, e a pintura, em particular. Um breve esclarecimento se impõe. Ao ler “anglo-
americana” o leitor menos identificado com este universo literário e cultural ensaiará,
porventura, um juizo de valor; pensará, talvez, estar eu a ser redutor, impreciso. Sabe-o,
porém, igualmente, quem esteja mais identificado com este universo que entre a velha
Albion e no Novo Mundo uma constante impressão de discursos, registos prosódicos,
inovações e assimilações críticas não cessou de ter lugar desde que, em inícios do século
XVII, a escrita de “a city upon a hill” aqui se iniciou. Que de uma contaminação se trata,
sabe-o quem, para além de ter em mente a recepção continental de Whitman por Oscar
Wilde, ou os exemplos de Eliot, Pound, Stein, Auden, Plath, et al, leu Something we have
that they don’t – British & American Poetic Relations since 1925.

Conclua-se este intróito. Sem quaisquer intenções de catalogação sistemática, num


elíptico epílogo exponho alguns exemplos de apropriação desta tradição pela poesia
portuguesa contemporânea, culminando num poema de João Miguel Fernandes Jorge onde
este revisita um quadro previamente evocado por Sena em Metamorfoses.

Derradeira explicação, o subtítulo deste livro e as obras que mais o determinaram.


Quanto ao subtítulo. O poeta no atelier do artista é inviamente devedor de um poema de
Howard Nemerov, in memoriam de Paul Klee e Paul Terence Feeley, “The painter dreaming
in the scholar’s house”. Quanto às obras que o determinaram. Em primeiro lugar,
naturalmente, os poemas. Em segundo lugar, ensaios como Ekphrasis – The Illusion of the
Natural Sign, de Murray Krieger, Museum of Words – The Poetics of Ekphrasis from Homer
to Ashbery, de James A. W. Heffernan, Victorian Contexts – Literature and the Visual Arts e
Modernist Patterns in Literature and the Visual Arts, ambos de Murray Roston, Realism,
Writing, Disfiguration on Thomas Eakins and Stephen Crane, de Michael Fried, e Ravishing
Images – Ekphrasis in the Poetry and Prose of William Wordsworth, W. H. Auden, and Philip
Larkin, de Katy Aisenberg.
A António M. Feijó, Isabel Rebelo Gonçalves e Miguel Tamen, que tiveram a
gentileza de ler e comentar o manuscrito, deixo os meus agradecimentos. Prossigamos,
então...
CAPÍTULO 1

JORGE DE SENA

Das subtilezas do diálogo entre a poesia e


as artes visuais

Jorge de Sena é um dos vultos maiores da literatura portuguesa do século XX. Com
uma obra extensa e diversificada, abrangendo da poesia ao drama, da narrativa à crítica, da
tradução à ensaística, Sena é autor de Metamorfoses (1963), um livro de poemas singular
da nossa poesia contemporânea. Nele, o escritor toma referentes explícitos das artes
visuais como impulso para a criação dos seus poemas. Descrições, interpelações irónicas
ao leitor, confissões de raiz biográfica mais ou menos explícitas, leituras de sentidos
eventualmente difusos, são algumas das estratégias de enunciação por ele utilizadas, e que
funcionarão como ponto de partida para uma reflexão sobre vertentes do diálogo entre a
poesia e as artes visuais.

Num ensaio a ele dedicado, incluído em Os dois crepúsculos, Joaquim Manuel


Magalhães refere ser o autor de Sinais de Fogo “responsável, nos anos 60, por uma
mudança qualitativa na nossa poesia ao publicar Metamorfoses.” (Magalhães, 1981:59) De
acordo com aquele poeta e ensaista, tal dever-se-ia ao facto de Sena aí ter erguido “a uma
prática nossa a possibilidade de ultrapassagem do lirismo objectivo da heteronímia
pessoana, propondo uma sequência de descrições subjectivas de objectos artísticos.”
(Ibidem) No passo acima citado, Magalhães destaca dois aspectos: em primeiro lugar, a
assimilação de uma tradição poética exógena, anglo-saxónica, com a consequente
abertura a novos diálogos e a novos encontros estéticos; em segundo lugar, a possibilidade
de superação de, recorrendo à terminologia consagrada por Harold Bloom, um poeta “forte”
precedente, ou seja, Fernando Pessoa.

Começando por observar este último aspecto, importa recordar que o próprio Sena
definira de uma forma muito clara a sua relação com Pessoa no Posfácio a Metamorfoses,
datado de Janeiro de 1963. Escrevera então que já se gastara “o desafinado disco de me
acharem discípulo,” acrescentando algo de particularmente relevante: “quando ele é o que é
meu, pelo muito que, criticamente, o expliquei por mim.” (Sena, 1978: 167) Ora, será
exactamente através desta relação com o poeta de Mensagem, que o primeiro aspecto
acima citado, o da interacção com as tradições poéticas anglo-saxónicas, se insinua.

Na esteira de Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, Bloom considera em O Cânone


Ocidental que Pessoa edifica uma poética através das possibilidades de enunciação
oferecidas por Walt Whitman. As três vozes do poeta norte-americano oitocentista (me, real
me e soul) projectar-se-iam, em Pessoa e nas identidades autónomas, os heterónimos
Alberto Caeiro e Ricardo Reis, respectivamente. Por outras palavras, Pessoa convocara
aquela que seria uma incontornável tradição anglo-saxónica. A que tradição me referio,
então?

Ainda que de uma forma breve e necessariamente sucinta, observêmo-la.

Para a compreendermos, deveremos começar por remontar, pelo menos, a William


Shakespeare - o poeta, como o designam os ingleses. E porquê? perguntar-se-á, já que ele
se celebrizou pelos seus textos dramáticos. De facto, as personagens das suas peças não
se desvendam apenas através de uma participação em acções e conflitos que se
desenvolvem no espaço cénico: Hamlet, Lear, Othello ou Brutus, captam a atenção do
espectador através da sua capacidade de se revelarem e - porque não dizê-lo? – agirem,
através da linguagem. Independentemente dos seus actos mais ou menos impressionantes,
estas personagens superaram o seu tempo pela forma peculiar como espelharam numa
linguagem nova as inquietações mais profundas do ser humano num mundo em transição:
a passagem do século XVI para o XVII, isto é, o início daquilo que a historiografia designa
era moderna.

Em Shakespeare poder-se-á considerar central uma expansão paradigmática da


linguagem. Com efeito, as dramatis personae (máscaras) shakespearianas são concebidas
pelo carácter indissociável de dois percursos: o sintagmático - a sua participação na acção;
o paradigmático - a (sua) linguagem. Por outras palavras, em William Shakespeare a poesia
participa do texto dramático, torna-se parte integrante dele. T. S. Eliot explora esta
dimensão no ensaio intitulado “Hamlet” – “Encontramos o Hamlet de Shakespeare não na
acção, não em quaisquer citações que pudéssemos seleccionar tanto como num tom
inequívoco, ...” (Eliot, 1992: 20), elaborando e convocando o conceito de “correlativo
objectivo”:

O único modo de expressar emoção na forma de arte é descobrindo um “correlativo objectivo”; por
outras palavras, um conjunto de objectos, uma situação, uma cadeia de acontecimentos que será a fórmula
dessa emoção específica; de tal maneira que quando os factos exteriores, que devem resultar em experiência
sensorial, são facultados, a emoção é imeditamente evocada. Se examinarmos qualquer das mais bem
sucedidas tragédias de Shakespeare, descobriremos esta equivalência exacta; descobriremos que o estado
de espírito de Lady Macbeth, ao caminhar durante o sono, nos foi transmitido por uma hábil acumulação de
impressões sensoriais imaginadas; as palavras de Macbeth ao saber da morte da mulher atingem-nos como
se, dada a sequência de acontecimentos, estas palavras fossem automaticamente provocadas pelo último
acontecimento da série. (Ibidem)

Estamos perante uma estratégia de sugestão, de evocação subtil, indirecta, na qual


a linguagem, promovida a instrumento de progressão dramática, desempenha uma função
central. Na Inglaterra seiscentista, com os chamados poetas metafísicos, observa-se a
consagração de um processo algo inverso. Neste caso, George Herbert ou John Donne,
entre outros, transportam a dimensão dramática para a poesia. Talvez por isso Eliot veja
neles os “sucessores dos dramaturgos do século dezasseis.” (Ibidem, 29) De que forma se
processa essa transposição e como se realiza essa herança? Em primeiro lugar, através da
dramatização de uma enunciação poética que se revela suportada por personae, por
personagens, máscaras. Em segundo lugar, através da “riqueza de associação”, ancorada
numa “linguagem simples e elegante” (Ibidem, 27). Defende a este propósito Eliot: “A
estrutura das frases, ..., está por vezes longe de ser simples, mas isto não é um defeito; é
fidelidade ao pensamento e ao sentimento. ... como esta fidelidade origina variedade de
pensamento e de sentimento, também origina variedade de música.” (Ibidem) Depreende-
se que no espaço do poema confluem logos e emoção numa superação do dualismo
cartesiano.

Será esta tradição poética e intelectual que, no início do século XIX, servirá à
segunda geração romântica inglesa, nomeadamente a John Keats e a Percy B. Shelley,
como forma de denegar o carácter confessional da geração anterior, a chamada primeira
geração romântica de viragem do século XVIII para o XIX, cujos vultos maiores são William
Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge. Como adiante veremos, Keats e Shelley recorrerão
a várias entidades, entre as quais se destacam objectos artísticos, que eles fazem
despertar do silêncio para “se substituirem” à imagem e à voz do poeta. Alguns anos
depois, em meados do século XIX, e ainda em Inglaterra, Robert Browning inova esta
estratégia de enunciação através da transposição explícita de estratégias dramáticas para a
poesia: o monólogo dramático. Segundo João Almeida Flor, esta solução de
impessoalidade:

…permite-lhe propor leituras caleidoscópicas do real a adoptar estratégias de dissociação,


multiplicação e alterização do Eu, o culto (mas também revelado) nas personagens-máscaras que assume
para por ele dizerem o mundo. O monólogo de cada persona é apenas uma das cores do espectro solar que o
prisma do poeta decompõe no processo de continua fragmentação e análise, que decorre no espaço plural da
consciência. Tomado isoladamente, cada monólogo dramático apresenta uma interpretação unilateral do
mundo; é no complexo coexistir da intertextualidade que se torna possível reunificar as experiências e iluminar
as questões dos mais diversos ângulos. (Flor, 1980: 14)

Posteriormente, já no século XX, em pleno Modernismo, esta estratégia de


impessoalidade será recuperada por vozes fundamentais como os já referidos Fernando
Pessoa e T. S. Eliot. Eliot fá-lo-á com o intuito de denegar aquela que é a presença maior e
constrangedora do confessionalismo romântico, William Wordsworth. A dissimulação da
impessoalidade (a sua teatralidade) surgirá, portanto, como alternativa poética ao carácter
mais directo do confessionalismo de Wordsworth. O seu conceito de “correlativo objectivo”
representa, assim, a filiação na acima mencionada tradição da impessoalidade (a
dissimulação da entidade autoral numa determinada personagem, máscara, dramatis
persona), a afirmação de uma originalidade criadora, e ainda os limites de enunciação que
o seu tempo – o ethos - lhe permite (determinados temas considerados tabu, como, por
exemplo, a homossexualidade, podem ser evocados através das personae escolhidas pelo
autor, sem que exista um envolvimento directo, uma revelação, deste).

Numa breve síntese, desvendemos as virtualidades de enunciação decorrentes da


estratégia que tenho vindo a delinear: recusa de uma certa concepção de lirismo e do
pathos a ela associado; denegação de um confessionalismo ancorado em narrativas
autobiográficas; contenção; expressão indirecta da emoção; assunção da enunciação por
parte de entidades várias, como personae (máscaras); recurso a objectos artísticos que
são assumidos enquanto potenciadoras de enunciação.

Ora, é nesta estratégia que Sena, tanto enquanto poeta como crítico, se
movimenta; é esta estratégia que ele reformula. O monólogo dramático de Browning, o
correlativo eliotiano e a heteronímia pessoana são assim “acrescentados da ‘expressão
enquadrada’ de Sena.” (Magalhães, 1981: 59) Uma vertente, em particular, desta estratégia
será nuclear para o estudo que proponho, o da interacção da poesia com as artes. Será
aqui que, como adiante se verá, o génio de Sena se projecta. Refiro-me, em concreto, ao
último tópico acima mencionado, o do recurso a objectos artísticos que são assumidos
enquanto virtuais enunciadores. Na sequência de Metamorfoses, e prolongando o diálogo
entre o poema e outras formas de expressão artística, Sena publica Arte da Música, um
conjunto de poemas impulsionados por peças musicais. Porque, tal como acima escrevi,
esta análise se restringe à interacção entre a poesia e as artes visuais, não abordarei este
último livro.

Em Metamorfoses “as declarações ‘face’ aos objectos visuais (alargadas em obras


posteriores a objectos musicais e arquitectónicos), delimitavam as possibilidades
expressivas do sujeito estabelecendo-se como limite ao devaneio intimista.” (Ibidem) Se
Pessoa convocara uma tradição dramática anglo-saxónica para nela desvendar novas
formulações expressivas na poesia portuguesa modernista, já Sena convocará essa mesma
tradição para superar o poeta de Mensagem. Desse processo de superação participará
igualmente algo de central na praxis poética anglo-saxónica que deverá ser aqui referida: a
actividade do poeta enquanto crítico.

No prefácio a Touchstones - American Poets on a Favorite Poem, uma antologia de


ensaios de poetas americanos contemporâneos sobre poemas por eles considerados
relevantes para a sua formação, Robert Pack e Jay Parini afirmam que, na língua inglesa,
os poetas maiores de cada geração foram, simultaneamente, críticos maiores do seu
tempo. Em seguida, catalogam uma sucessão de vozes que o atestam: Ben Jonson, o
primeiro crítico “sistemático” e, além disso, definidor do gosto na língua inglesa; Samuel
Johnson, John Dryden e Alexander Pope, formuladores, a par de Johnson, da sensibilidade
augustana; os românticos Wordsworth e Coleridge, aos quais se deve a consagração de um
tom para o discurso literário coevo com a publicação, em 1798, de Lyrical Ballads; Shelley,
pela sua famosa “defesa da poesia”; Keats, com a poética inovadora formulada nas suas
epístolas; finalmente, Matthew Arnold, T. S. Eliot e Ezra Pound, ensaistas fundamentais
para o delinear de sensibilidades artísticas e poéticas com as quais ainda hoje nos
confrontamos (Pack, 1996: xi-xii).

Ora, quando na Introdução de A Literatura Inglesa, um livro do mesmo ano de


Metamorfoses, Sena escreve que “o nosso público e mesmo os nossos grupos culturais
nunca tiveram da literatura e da cultura britânica uma visão de conjunto”, (Sena,
1963/1989:15) ele não se limita a fazer um diagnóstico de um vazio que, pedagogicamente,
pretende preencher. Na realidade, à semelhança do que sucede com os poetas anglo-
saxónicos, a empresa ligada à escrita de uma História da Literatura, participa, no nosso
autor, de um processo mais vasto de configuração teórica que, entretanto, ecoa em
Metamorfoses e em Arte da Música. No mesmo sentido deverá ser entendida a sua leitura
de Pessoa feita em 1953; ou, recorde-se a expressão antes citada, “quando ele é o que é
meu, pelo muito que, criticamente, o expliquei por mim.” (Sena, 1978: 167) Nesse artigo,
então publicado em O Comércio do Porto, Sena refere a “mais alta importância” do
“problema das relações de Pessoa com o ‘inglês’ e indirectamente com a cultura britânica”.
(Sena, 1982: 92) Semelhante relação será nuclear para “ajudar a explicar a formação
intelectual e artística em que sempre se comprazeu um grande poeta português, com uma
ostensividade que talvez sido menos presunçosa, se, na época em que viveu, não fora tal
cultura entre nós uma anómala raridade.” (Ibidem) Com efeito, neste artigo Sena antecipa o
diagnóstico acima citado (“não fora tal cultura entre nós uma anómala raridade”), constante
de A Literatura Inglesa; aí se declara “a vasta ausência que a literatura inglesa ocupa na
cultura dos intelectuais portugueses.” (Ibidem).

Em “Shakespeare em Sena”, um ensaio dedicado à leitura de Shakespeare realizada


pelo autor de Metmorfoses, João Almeida Flor refere-se-lhe como “[o] anglicista Jorge de
Sena” (Flor, 1995:56), lembrando que ele pertence a uma geração que, contra a habitual
presença francófona na cultura portuguesa, evoca uma tradição outra. Refere Almeida Flor:

… desde os finais da década de 30 [do século XX], é possível reconhecer que a língua e a literatura
inglesas exercem notória atracção sobre as propostas da geração onde se situam, entre outros, Adolfo Casais
Monteiro, Thomas Kim, Ruy Cinatti, José Blanc de Portugal, Sophia de Mello Breyner e o próprio Jorge de
Sena, isto é, o primeiro grupo de autores novecentistas que, de forma às vezes espontânea, acabam por
manifestar afinidades de formação ou interesses estéticos anglocêntricos. (Ibidem, 56)

É neste contexto mais particular de uma reiterada atracção que se compreende o


facto de, vinte e um anos depois do artigo publicado no Comércio do Porto, Sena regressar
a Pessoa explicitando as potencialidades de uma tradição que acentua a “presença de
referências de alusões históricas ou cultas, colhidas quer mais ou menos directamente,
quer como fórmulas transmitidas na própria prática literária.” (Sena, 1981:110) Ao explicar
Pessoa, Sena reflecte, afinal, sobre o seu percurso criativo e sobre as novas
potencialidades de diálogo que trouxe para a poesia portuguesa contemporânea. Tal como
a segunda geração romântica inglesa, a de Keats e Shelley, Sena recupera o sentimento,
recusando o pathos e o sentimentalismo; recupera um método indirecto de expressão
emocional, contornando o expressionismo subjectivista commumente associado ao
confessionalismo. Pense-se no poema “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”
e observem-se dois fragmentos críticos seus provenientes de momentos distintos da sua
produção teórica.

No ensaio já citado, “O heterónimo Fernando Pessoa e os poemas ingleses que


publicou”, Sena menciona a estratégia das alusões como um “desejo de opor ao
sentimentalismo e à contemporaneidade realista um mundo prestigiado pela História.”
(Ibidem) Por outro lado, no também já citado Posfácio de Metamorfoses, insere a
assimilação dessa estratégia enunciadora no ponto de viragem na literatura portuguesa que
a sua obra é. Sena começa por denunciar a “alegada ausência de tradições especulativas e
culturais na poesia de língua portuguesa” e ainda “a confusa identificação de poesia com
lirismo, e deste com apenas abstracções sentimentais”, (Sena, 1978:160) para de imediato
convocar os ingleses, e deste modo combater formulações, banalidades, preconceitos,
adquiridos: “Os ingleses nunca puseram em causa a grandeza lírica de Wordsworth ou de
Shelley filosofando em verso, nem acharam que o lirismo deles se concentrava
exclusivamente nos poemas breves.” (Ibidem, 161) Após se referir, explicitamente, ao
correlativo-objectivo eliotiano, prossegue na enunciação da diferença por si introduzida:

...os precedentes literários ou poéticos desta meditação específica, se em verdade os houve, tenham
sido mero registo impressionista ante uma obra de arte (ao nível das emoções já definidas nos guias turísticos
e nos almanaques), e não o especular emocionalmente para além das obras, com a emoção complexa de um
espírito culto, para quem a História tem de estar presente na compreensão da própria e pessoal humanidade,
com a qual lhe é dado compreender a dos outros. (Ibidem)

Na expressão “especular emocionalmente” insinua-se a tal tensão entre a razão e a


paixão emprestadas a Sena por essas vertentes fundamentais do universo literário anglo-
saxónico.

Uma breve digressão se impõe, apenas com o intuito de esclarecer, desde já, que ela
não se restringe ao espaço inglês. Alguns breves exemplos vindos dos Estados Unidos da
América apenas até à II Guerra Mundial: o conflito dramático entre as diferentes vozes/
personae de Walt Whitman (as acima mencionadas me, real me e soul) e a sua
assimilação da vertente visual decorrente da representação fotográfica; a recuperação feita
por Herman Melville na sua poesia final de correlativos artísticos da Antiguidade Clássica; o
diálogo com a pintura na poesia de Wallace Stevens e de William Carlos Williams; o
impacto da música e do cinema em Hart Crane. À generalidade destes aspectos
regressarei, em detalhe, no terceiro capítulo.

Dois tipos de desconstrução surgem assim através destes diálogos. Por um lado, a
do género - lírico ou dramático - que absorve características exógenas. Por outro, as
fronteiras entre uma poesia convencionalmente intimista ou lírica, e uma outra forma de
expressão mais discursiva ou dramática, ou seja, as fronteiras entre lírica e drama são,
como tal, reformuladas, num processo de contaminação que faz do texto poético um espaço
de radical reflexão e inteligência. Com efeito, através desta estratégia, o poeta supera
aquilo que Arnold designou como touchstones, isto é, aqueles marcos que, pela
singularidade, se destacaram nos seus tempos, constrangendo a afirmação de identidades
ulteriores; recupera vozes que as modas esqueceram, por exemplo, “sob certos aspectos,
os sonetos são uma tentativa para retomar em Ângelo de Lima (sem o ultra-romantismo que
ainda se prolonga nele) um dos cursos traídos do Modernismo português” (Ibidem: 165);
preenche um vazio cultural ao meditar através da verbalização de horizontes que o leitor
desconhece ou julga conhecer, pois “em toda a parte, as pessoas acham que todas
entendem de objectos plásticos, enquanto a muitas deles falta cultura musical” (Ibidem: 14);
ecoa inquietações críticas, signos afinal de uma modernidade “firmemente anti-romântica,
no sentido de … ser inimigo de todas as falácias.” (Ibidem: 222)

Semelhante inquietação não se restringe ao lúcido e esclarecido olhar do crítico, já


que a estratégia de enunciação que tenho vindo a abordar, permite elevar o poema a um
instante de óbvia reflexão e (no plano ético) de liberdade, pois “toda a poesia … é uma
meditação moral. Sem dúvida que o não é (ou não deve sê-lo) num sentido normativo; mas
indubitavelmente o é num sentido escatológico, de inquirição aflita sobre as origens e os
fins últimos do Homem.” (Ibidem:162)

Assiste-se, portanto, à configuração de uma identidade poética forte e,


consequentemente, a um desvio nas concepções dominantes acerca do que a poesia será;
a um desvio que decorre de um projecto teórico que foi profundamente interiorizado ao
longo do percurso criativo - poético e crítico, de Sena:

O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem um


complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem. Eu não
quero ampliar a linguagem corrente da poesia; quero destruí-la como significação, retirando-lhe o carácter
mítico-semântico, que é transferido para a sobreposição de imagens (no sentido psíquico e não estilístico),
compondo um sentido global, em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designação.
(Ibidem:164-5)

Constata-se que o percurso crítico de Sena é também ele, como referi, um espaço de
meditação teórica.

Depois dos exemplos referentes a Pessoa, observemos agora alguns instantes do


seu olhar sobre os poetas anglo-saxónicos através da obra A Literatura Inglesa.
Comecemos pela sua apresentação de Matthew Arnold. O autor não se limita a formular
apresentações óbvias (percurso biográfico, elencar bibliográfico, grandes parâmetros de
afirmação da identidade literária, interacção entre a especificidade da cena literária em
apreço e a cena histórica, aparato crítico), necessárias face a um leitor que desconhece o
autor em questão. Tal como sucede relativamente a outros poetas, também aqui ele vai
mais longe, lançando um olhar no qual se torna evidente o reconhecimento de afinidades
intelectuais e éticas face à postura crítica do autor de Culture and Anarchy. Na sua opinião,
Arnold exibe “uma crítica penetrante, culta, exigente, que pretende a poesia liberta de
subjectivismos, considerada como obra de arte, e dedicada à meditação intelectual sobre o
sentido moral das acções humanas.” (Sena, 1989:284)

Desvendemos passo a passo a sua afirmação, e vejamos de que forma Sena, ao


falar sobre Arnold, está, afinal, a evocar a sua própria experiência enquanto crítico. A
“leitura atenta” e o “rigor” são facilmente reconhecíveis, por exemplo, na sua leitura de
“Alma minha gentil…”. A “cultura do crítico” é explicitamente exibida no Prefácio a Poesia II :
“Essas notas … destinam-se não a exibir cultura que aliás é sabido que tenho, mas a ajudar
o leitor menos informado” (Sena, 1978:15). A “meditação intelectual” é evocada, entre
outras, nas suas referências tanto a Wordsworth como a Shelley. A “dimensão moral” é
reiterada ao longo da sua obra. Dois exemplos apenas; em primeiro lugar, a sua abordagem
de Maquiavel: “… uma moral científica, segundo a qual esta livre análise gera a própria
instituição do real como objecto da consciência ética.” (Sena,1991:41); em segundo lugar, a
sua leitura de Eliot:

… a conquista de Eliot … consiste em ter sabido encontrar na angústia ética, na missão moral da
linguagem poética, e sem imediato didactismo ou mesquinha apologia, a vibração humana que o pudor do seu
espírito por demais consciente do Mal lhe consentia. (Sena, 1989: 368).
Todos estes aspectos detectados em Arnold - e lateralmente por mim convocados
face a Maquiavel e a Eliot - ecoam enfim na postura intelectual e artística de Sena.

A sua análise do monólogo dramático em Robert Browning detecta as


potencialidades desta estratégia de enunciação no sentido de poder “sugerir obliquamente”
algo ao leitor; isto é, de exigir deste uma reflexão e não um mero e afável consentimento,
ou uma óbvia antipatia. No monólogo dramático praticado por Browning, o poeta reconhece
ainda um “vigoroso amor da vida, destituído de sentimentalismos.” (Ibidem: 273). Veja-se
como nestas duas frases se evoca tanto o Sena que afirma, no Posfácio de Metamorfoses,
a “alucinante vertigem de lutar com o tempo e a vida” (Sena, 1978:159), como aquele que
recusa aquilo que John Ruskin em Modern Painters designou “falácia patética” romântica,
isto é, a atribuição de características humanas ao mundo natural.

Aliás, esta sua leitura das dramatis personae em Browning não se restringe a este
autor e a este livro. Em “Sobre Shakespeare,” incluído em Maquiavel, Marx e outros
estudos, Sena detectara a sua presença dramática, desmontando rigorosamente o
problema envolvido: “Por despersonalização teatral devemos entender a capacidade de
criar figuras autónomas que, no palco, não falam das ideias e dos sentimentos do autor,
mas sim em função das situações em que são colocadas e do carácter que lhes é
atribuído.” (Sena, 1991:61-2)

Dois derradeiros exemplos da sua leitura crítica, precisamente a referente aos dois
vultos maiores da segunda geração romântica inglesa, várias vezes convocados no decurso
deste capítulo: Keats e Shelley. Em Keats, Sena lembra naturalmente as epístolas, pois
será aí que se reconhece: “… quanta experiência interior, quanta densidade de
pensamento, quanta paixão amadurecida, quanta reflexão sobre a natureza da poesia iam
naquela sensualidade vibrantemente contida.” (Ibidem: 255) Ou seja, ainda a meditação
sobre a obra que se cria e que irá ecoar em “A Máscara do Poeta”, o poema de
Memorfoses a ele dedicado: “a sensação de ser, / o pensamento arguto penetrando as
coisas” (Sena, 1978: 131). Finalmente, recorde-se Shelley, o poeta que superou o pathos
da geração anterior na invocação de correlativos. Nele, Sena aponta naturalmente “um
espírito que tudo transfigura.”
Esta breve síntese da abordagem feita por Jorge de Sena aos poetas que, em língua
inglesa, lhe proporcionaram as suas próprias superações e a afirmação de uma identidade
literária, demonstra afinal de que forma ela espelha toda uma elaboração teórica.

Chegou então o momento de convocar a especificidade da interacção entre a poesia


e as artes em Metamorfoses, livro no qual Sena desenvolve um intenso diálogo entre o
poema e os objectos artísticos (quadros, edifícios, estátuas, fotografias) por ele
seleccionados, devido à impressão particular que lhe causaram. A primeira questão que se
coloca será a de saber se os poemas de Metamorfoses são meras descrições, reproduções
verbais de imagens? De facto, ao lermos esses textos desvendamos estratégias de
enunciação específicas, meditações, apelos, procedimentos de aproximação ao objecto, por
vezes, radicalmente distintos. Vejamos quais os traços essenciais dessa diferença.

Sena começa por recorrer a um processo aparentemente descritivo logo no primeiro


poema de Metamorfoses, “Gazela da Ibéria”, no qual reproduz as características de um
objecto que, apesar da acção do tempo, conseguiu persistir até aos nossos dias, a gazela
de bronze da Ibéria, exposta no Museu Britânico, em Londres.

Suspensa nas três patas, porque se perdeu


uma das quatro, eis que repousa brônzea
no pedestal discreto do museu.
Ergue as orelhas, como à escuta, e os pés
são movimento que ainda hesita, enquanto
o vago olhar vazio se distrai
entre os ruídos soltos da floresta. (Ibidem, 63)
Só após a descrição que permite ao leitor visualizar o objecto, Sena parte para uma
especulação a propósito do contexto em que ele terá eventualmente surgido; uma
especulação que imerge no tempo, tentando desvendar uma atmosfera, uma sensibilidade,
uma humanidade daqueles que o conceberam:

Há muito as árvores caíram. Há


perdidos tempos sem memória que
morreram as aldeias nas montanhas
e pedra a pedra se deliram nelas.
Há muito tempo que esse povo – qual? –
violado foi por invasões, e em sangue,
em fogo e em escravidão, ou só no amor
dos homens que chegavam em navios
de longos remos e altas velas pandas
se dissolveu tranquilo, abandonando
os montes pelos vales, a floresta
pelas escarpas onde o mar arfava
nas enseadas mansas e nas praias,
e as fontes límpidas por rios que,
entre a verdura, sinuosos iam.
Há muito, mas esta gazela resta,
com seu focinho fino e o liso torso
e o peito quase humano. Acaso foi
a qualquer deus oferta? Ou ela mesma
a deusa foi que oferenda recebia?
Ou foi apenas a gazela, a ideia,
a pura ideia de gazela ibérica?
Suspensa nas três patas se repousa. (Ibidem)

Com efeito, o poema começa por uma descrição rigorosa, poder-se-ia dizer fiel, do
objecto; uma descrição que leva o leitor a recriar visualmente esse objecto. No entanto, logo
exercita uma fuga; transita para a especulação intelectual, para a exposição de inúmeras
hipóteses de leitura que permitam entender algo que no tempo se diluiu, a sua identidade
enquanto signo de um tempo específico. No primeiro momento do poema, estamos perante
aquilo que poderemos designar como um processo descritivo, um processo que terá os
seus antecedentes remotos na Antiguidade Clássica, no episódio do escudo de Aquiles, da
Ilíada [canto XVIII (478-608)], de Homero, o qual será analisado no capítulo seguinte. Como
adiante veremos, Aquiles prepara-se para o combate com Heitor. Em resposta ao pedido da
deusa Tétis, Hefesto forja o escudo do herói, no qual projecta inúmeras cenas do
quotidiano, as quais, por seu turno, são descritas pelo narrador. Trata-se, obviamente, de
uma descrição de um objecto imaginário, mas que obedece a critérios visuais que lhe
conferem verosimilhança. Esta tradição descritiva é retomada por Sena em “Retrato de um
desconhecido”, um poema sobre um Retrato de Jovem Cavaleiro, um quadro de Mestre
anónimo do século XVI, que se encontra depositado no Museu Nacional de Arte Antiga,
habitualmente conhecido como Museu das Janelas Verdes.

Este quadro é marcado pelo anonimato tanto do modelo, como do autor. Neste
anonimato reconhece-se uma suprema ironia: o retrato, cuja função primeira seria a de
preservar uma memória, reproduz, afinal, alguém cuja identidade, cujo nome, se perdeu no
tempo. O anonimato estende-se a um autor que tão bem soube captar essa outra
identidade, aquela que se espelha no olhar do seu modelo, e na forma específica como este
nos interpela a nós, espectadores:

Fita-nos, como o pintor pensou,


não como jamais fitou alguém.
Ele próprio se não conheceu nunca
nesse retrato que a família, que os amigos,
sempre acharam todos parecido.
O Mestre, anos depois, que por acaso
viu, sem voltar a ver já o modelo,
o quadro esplêndido, achou pintura má
no que fizera; e não reconheceu
aquele olhar tão variamente fundo,
diverso do que, em tintas, punha sobre o mundo.

Mas tudo conjectura apenas.

Quem era? Qual o nome? Não sabemos


nada, inteiramente nada. A fronte límpida,
a boca que se fecha num desdém tão vago,
os olhos falsamente juvenis, irónicos,
o róseo, o negro, o terra, a leve pincelada,
parecem falar. Apenas o parecem. E,
dele, como do Mestre, não sabemos nada.
E quanto à data... a data é muito incerta.

Magnífica pintura. Oh! Sem dúvida,


de uma importante personagem. Inda
dependeremos desse jovem? Mas quem era?
Será que ele o sabia? Ou que o pintor o soube
naquel’ momento de olhos em que o mundo coube? (Ibidem, 95)

O quadro determina a leitura que dele é feita: a maestria com que o olhar é
representado e a forma como ele nos interpela, impressiona e seduz, ao que acresce o
anonimato do jovem a quem pertence. A descrição é neste texto interpolada pela reflexão,
pela especulação imposta pelo objecto ao seu observador atento. A este poema
regressarei, porém, mais adiante.

A descrição dilui-se, todavia, em “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de


Goya”, devido à convocação de outro género literário - mais correcto seria dizer
“subgénero”-, a epístola, a qual lhe permite meditar emocionalmente sobre a tirania, a
resistência, o quotidiano, o sentido da vida:

Não sei, meus filhos, que futuro será o vosso.


É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. (Ibidem, 127)

De facto, Sena não se circunscreve a uma reprodução verbal de uma sucessão


narrativa, como sucede nos exemplos do já mencionado episódio do escudo de Aquiles, ou
noutros momentos singulares desta tradição descritiva na Antiguidade Clássica, como a
descrição da coberta de Catulo, ou a representação de Marte e de Vénus em Lucrécio.
Aquilo que, à partida, poderia ser a descrição de um quadro intitulado Três de Maio, de
Goya, revela-se, afinal, uma meditação centrifugamente sustentada na epístola pela
simulação de um diálogo com um interlocutor privilegiado, os filhos.
O recurso, por um lado, à designação epístolar, e, por outro, a um destinatário com
semelhante carga afectiva, acentua uma relação intersubjectiva e a intimidade de uma
confissão. Acresce a estes aspectos o facto de esta ser uma mensagem emocionalmente
intensa devido às circunstâncias políticas que enquadram o mundo em que ele se
movimenta: a guerra fria, a ditadura em Portugal, o exílio de Sena.

Estamos, assim, perante uma óbvia expressão política de sentimento. Impulsionado


pelo quadro de Goya, e por um episódio histórico nele retratado, o poema indicia conflitos
históricos e sofrimentos do presente, algo que o leitor de imediato reconhecia, e com os
quais porventura se identificava. Por seu turno, o título do poema menciona aquela que foi a
sua referência primeira, o motivo que o desencadeou: o quadro. Este lembra que o poema é
também uma metalinguagem que racionalmente se assume como tal. Através desta
dimensão metalinguística, conclui-se que o texto pode ser expressão de sentimento sem o
ser de sentimentalismo; Sena evita assim o pathos, algo que, como acima referi, o
aproximava de Browning ao reconhecer nele um “vigoroso amor da vida, destituído de
sentimentalismos.”

Em radical contraste perante a intensidade dramática deste poema, surge a


atmosfera devedora do locus amoenus, dominante nos versos iniciais de “‘O Balouço’, de
Fragonard”.
Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar. (Ibidem, 111)

O poema confronta o leitor com um espaço de evidentes representações e


insinuações eróticas (“… o sexo e os seios que avolumam presos, / e adivinhados na
malícia tensa.”). Sedução (“Como ele a despe e como ela resiste / no olhar que pousa
enviezado e arguto / sabendo quantas rendas a rasgar!”) e traição (“tão córnea a graça de
um feliz marido.”) alí confluem ironicamente. O final do segundo verso acima citado indiciara
já a sabotagem do tópico do locus amoenus, algo que o ponto de exclamação acentua e
que os versos seguintes explicitam. O quadro assenta numa narrativa subliminar
desvendada por um intérprete, o sujeito de enunciação. O poema revela-se, portanto, como
leitura, processo de desocultação dessa narrativa. Mas a ironia não se restringe àquela
narrativa de sedução e traição; a ironia aqui é também a do poeta que retoma, para a
sabotar, uma tradição eufórica, a do locus amoenus, que terá as suas raízes remotas na
Antiguidade Clássica, na descrição do cenário envolvente da gruta de Calipso, na Odisseia,
de Homero.

Em radical oposição à discursividade declarativa dos dois textos antes mencionados,


ergue-se a tonalidade epigramática de “A Nave de Alcobaça”.

O epigrama participa aqui da estratégia discursiva na qual o poema está ancorado.


Sena elabora um discurso sincopado, um ritmo, uma respiração, marcados pela elipse,
numa sucessão de metáforas, comparações e perífrases; é nelas que se reconhece a sua
reflexão sobre a estética subjacente ao objecto, à sua identidade. Através dessas
convocações retóricas designam–se instantes de uma possibilidade de acesso ao objecto:

Vazia, vertical, de pedra branca e fria,


longa de luz e linhas, do silêncio
a arcada sucessiva, madrugada
mortal da eternidade, vácuo puro
do espaço preenchido, pontiaguda
como se a transparência cristalina
dos céus harmónicos, espessa, côncava
de rectas concreção, ar retirado
ao tremor último da carne viva,
pedra não-pedra que em pilar’s se amarra
em feixes de brancura, geometria
do espírito provável, proporção
da essência tripartida, ideograma
da muda imensidão que se contrai
na perspectiva humana. (Ibidem, 83)

Sena não se restringe, portanto, à descrição (designação) de um objecto, tal como na


tradição epigramática que, no classicismo grego, surgira ligada à estatuária antes de se
autonomizar como género menor. Como acima insinuei, “A Nave de Alcobaça” exibe uma
vasta erudição que passa pelo conhecimento do universo mental e cultural da época que
constitui o cenário primeiro do monumento. Além disso, designa um diálogo entre signo e
contexto, numa profunda interacção entre os princípios arquitectónicos que lhe deram forma
e a sua essência espiritual:

Rosa e tempo.
Escada horizontal. Cilindro curvo.
Exemplo e manifesto. Paz e forma
do abstracto e do concreto.
Hierarquia
de uma outra vida sobre a terra. Gesto
de pedra branca e fria, sem limites
por dentro dos limites. Esperança
vazia e vertical. Humanidade. (Ibidem)

Será a nível da estrutura do poema que esta tradição nele ecoa. A enunciação das
vertentes filosóficas, culturais, espirituais e arquitectónicas, surge numa sucessão elíptica
dela devedora. Recorde-se que, como já referi, este carácter elíptico se ergue contra a
dimensão predominantemente discursiva de Metamorfoses, e que naturalmente decorre de
semelhante estratégia de enunciação.
Outro exemplo desta representação de edifícios, alargando-se, porém, aos espaços
circundantes, surge em “Mesquita de Córdova”. Nos versos iniciais, esta inserção espacial
chega a indiciar o acima referido tópico do locus amoenus:

Haviam sido os fustes de pequenos bosques


a recortarem-se no azul do céu,
ao cimo das colinas, ou à beira de água
espelhando-se nelas como a cristalina
de ninfas ondulância. (Ibidem, 79)

No entanto, a reflexão progride, indo ao encontro da memória histórica; uma memória


feita da sucessão dos tempos e também de conflitos [“O dardejar do tempo / e da
cristandade os fulminou.” (Ibidem)], do reconhecimento de lugares e tradições vários [“de
toda a parte vieram, ruínas fulminadas, / suportes dispersos dos deuses e dos homens …”
(Ibidem)]. Assim se foi concebendo um espaço de equilíbrio entre a natureza, o homem e a
arte, onde o transcendente, mesmo na sua aparente ausência, se convoca; embora uma
presença política muçulmana tenha há muito deixado de existir, o legado da sua percepção
particular do transcendente persiste:

Alá partiu, deixando a branca


cidade às moscas, à poeira, às torres de onde
dura de sinos se tornou a voz
do muezzin cantando à tarde.
Mas
alguém pode partir de uma tão rígida
viril floresta: deuses traduzidos
e congregados para Sua glória? (Ibidem, 80)

Mais uma vez, o objecto funciona como leitmotif para um discurso que se pretende
transitivo, isto é, para um olhar que não se limita à perplexidade, ao provinciano pasmo face
ao carácter impressionante do referente. Este é, enfim, um olhar que inteligentemente
procura os seus nexos originais. Curiosamente, esta estratégia de representação de
edifícios e dos espaços que os circundam, conhece, uma vez mais, os seus antecedentes
remotos na Antiguidade Clássica, neste caso na descrição dos jardins e do palácio de
Alcínoo, na Odisseia, sendo, ainda na Antiguidade, prolongada em dois momentos ilustres:
as reproduções verbais dos murais do templo de Juno em Cartago e dos portais do templo
de Apolo, feitas por Eneias na Eneida; e a descrição do palácio do Sol, feita por Ovídio nas
Metamorfoses.
Tanto “A Nave de Alcobaça” como “Mesquita de Córdova” são exemplos de signos
que, na sua imponência, resistiram à acção do tempo. Em contrapartida, “Cabecinha
romana de Milreu” introduz a temática da fragilidade do objecto.

O objecto, a Cabecinha Romana das Ruínas de Ossónoba, exposta no Museu de


Faro, surge aqui na sua fragilidade de fragmento em confronto com a solenidade e o poder
característicos da cena histórica da qual emergiu: “Esta cabeça evanescente e aguda,/ tão
doce no seu ar decapitado,/ do Império portentoso nada tem.” (Ibidem, 71) No entanto, será
nessa mesma fragilidade que se denuncia a ironia do poema. Com efeito, “Esta/ cabeça
evanescente resistiu:/ nem deusa nem mulher, apenas ciência,/ de que nada nos livra de
nós mesmos.” (Ibidem)

Na perenidade do objecto reconhece-se uma capacidade do referente artístico de


proporcionar àquele que o enfrenta um novo olhar sobre si próprio. Ou seja, Sena realiza
uma releitura da perenidade da ruína romântica presente em Shelley, já que ali era
predominante a intenção pedagógica. Esta é, com efeito, uma vertente devedora de um
tradição romântica figurada num famoso poema de Shelley intitulado “Ozymandias”. Como
adiante se verá, o poeta realiza aqui aquilo que, num sentido rigoroso, se poderá designar
ekphrasis, uma descrição de um objecto perdido no tempo que apenas o poema recupera.
O referente assinalado nesse poema resiste à acção do tempo e da natureza, designando
uma perenidade que falta ao efémero poder temporal; uma antecipação, afinal, de “Dos
Loyd George da Babilónia não reza a história”.
O sujeito de enunciação constitui aqui uma inevitável presença, enquanto, leitor,
intérprete do objecto. Nele, uma vez mais, se reconhece a forte identidade do autor. Nem
todos os poemas denunciam, porém, essa presença explícita. Por vezes, como sucede em
“Céfalo e Prócris”, a instância autoral simula a diluição perante o referente, numa aparente
neutralidade referencial com que as genealogias e atributos divinos são enumerados:

Do deus da lira e dos ladrões, do psicopompos,


senhor do caduceu, e da orvalho deusa,
és, Céfalo, o filho. E neto de
Zeus e de Cécrops; e Cronos é com Rea,
a mãe dos Deuses, teu avô também.
De Erecteus de Atenas, Prócris és
uma das filhas, neta pois de Gea
que mãe de Cronos fez Urano, o céu,
o sobranceiro Céu ao Caos originário,
de que emergiu o Amor, ... (Ibidem, 91)

Neste poema inspirado no quadro A Morte de Prócris, de Piero di Cosimo, o poeta


não subscreve a negative capability, sustentada pelo Keats de “Ode on a Grecian Urn”- a
aparente diluição da identidade autoral no referente-, pois, à representação do objecto, não
é estranha a glosa do tema por parte de Camões, algo que o próprio Sena elucida nas suas
Notas. Será, portanto, necessário recorrer a elas para podermos percepcionar a subtileza
da construção deste texto: Camões configura um olhar que subliminarmente percorre o
poema. Ironicamente, esta é uma interacção entre a poesia e a arte que se sabota a si
própria pela aproximação intertextual realizada a Camões. Esclarece Sena nas referidas
Notas por ele elaboradas acerca destes poemas:

O trecho entre aspas foi citação, feita de memória, de De Hominis Dignitate, de Pico della Mirandola,
obra que li primeiro, em 1956, ... O assunto do mito grego, mas não o quadro de Piero di Cosimo, foi glosado
por Camões, se é dele a sequência de dois sonetos, incluída na Segunda Parte das Rimas (1616). São os que
começam ‘Por sua ninfa Céfalo deixava’ e ‘Sentindo-se tomada a bela esposa.’… Cumpre acrescentar que há
dúvidas acerca da correcta identificação iconográfica deste quadro de Piero di Cosimo. (Ibidem, 230)
Ou seja, contrariamente ao que sucede em Keats e que observaremos no terceiro
capítulo, a identidade autoral não se dilui, antes constituindo uma evidência pela sua própria
formulação crítica denunciada nos segmentos representados entre aspas:

se de enganos,
de mutações, de incestos, e de crimes,
é feita a liberdade de nascer-se humano,
‘nem do céu, nem da terra, nem mortal
nem imortal, mas livre e altivo artista
que o próprio ser esculpe e que o modela
na forma preferida’ … (Ibidem, 91-92)

Como variante desta última vertente de verbalização textual, a da diluição da figura


autoral face ao referente, deveremos identificar a influência do monólogo dramático que,
como adiante se verá, terá conhecido o seu apogeu com Robert Browning. João Almeida
Flor, num passo acima citado, defendia que o “monólogo de cada persona é apenas uma
das cores do espectro solar que o prisma do poeta decompõe no processo de continua
fragmentação e análise, que decorre no espaço plural da consciência.” Ora, a tensão
explícita ou latente que Sena mantém com o espectro político, literário e cultural do seu
tempo, será uma dessas “cores” que ecoa no poderoso monólogo dramático de
Metamorfoses, intitulado “Camões dirige-se aos seus contemporâneos.”

A imagem de Camões escolhida por Sena para acompanhar este poema, é a de um


busto em mármore realizado por Bruno Giorgi que se encontra depositado no Ministério da
Educação do Brasil.

Camões surge aqui com as pálpebras cerradas, numa postura de meditação, de


recusa daqueles que o rodeiam, que o olham. A persona de Camões revela-se, pelo
contrário, particularmente enfática e declarativa:
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. (Ibidem, 99)

Sena coloca na voz de Camões a amarga consciência da incompreensão de que é


alvo por parte dos seus contemporâneos. O pathos inerente à intencionalidade da denúncia,
é, todavia, atenuado por uma tonalidade de oratória retórica simuladora de um discurso que
tinha por destinatário uma audiência específica, a sociedade coeva, a qual era interpelada
na sua ignorância. Esta dever-se-ia ao diálogo em atraso que o público coevo realiza com o
poeta, nomeadamente pelo facto de ser incapaz de entender que, num tempo histórico em
que uma mudança de paradigma ocorre (a passagem da era medieval para a moderna), o
poeta configure essa mudança numa reinvenção da linguagem, uma linguagem que
interioriza a mudança e a reflecte (recorde-se William Shakespeare); daí, talvez, a
incapacidade de compreender essa “língua nova”.

Poder-se-ão reconhecer nesta “voz de Camões” algumas das inquietações do


próprio Sena; trata-se-á, portanto, de um processo de transferência que, em certa medida,
pode designar uma situação universal, algo que transcende circunstâncias temporais e
históricas concretas: os poetas (os artistas) não seriam compreendidos pelas sociedades
dos seus tempos. O tempo funciona aqui como juiz supremo da validade artística:

Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
de que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo. (Ibidem)
Entre outros aspectos, Sena ironiza a consagração tardia, marcada por rituais sociais
e políticos (a evocação do poeta feita pela ditadura desvenda-se nestes versos) e pela
necessidade de exibir uns restos mortais que simulem a sua presença; a ironia suprema
será, contudo, a do esquecimento ao qual os contemporâneos estariam votados, em
contraste com a memória preservada do artista.

Ao optar por uma persona, Sena pode, afinal, construir uma sátira sobre quão difícil é
uma obra ser assimilada no seu tempo, e sobre a forma como ela pode ser recuperada
politicamente. A estratégia dramática evita o pathos que seria inevitável se o sujeito de
enunciação de imediato se confundisse com a identidade do poeta.

Constata-se que, na sua especificidade, as estratégias observadas denunciam uma


radical ancoragem nas grandes vertentes dessa interacção entre o texto e as artes visuais
na tradição literária ocidental. Serão essencialmente seis essas vertentes, que
correspondem a outras tantas tradições. Enumero-as, apenas, neste momento: descritiva;
epigramática; locus amoenus; representação de edifícios e dos espaços circundantes; a
ruína; a diluição da figura autoral face ao referente.

Não foi objectivo meu proceder a uma análise exaustiva dos poemas de
Metamorfoses, nem das próprias subtilezas dos próprios textos, e dos diálogos que eles
desenvolvem entre si (veja-se a interacção subliminar entre a “temática da traição”, nuclear
em “‘O Balouço’, de Fragonard”, e transversalmente irónica em “Cabecinha romana de
Milreu”), mas sim tentar desvendar em que medida eles denunciam quer uma profunda
consciência e manipulação das tradições da interacção entre a poesia e as artes e da
ekphrasis, radicadas na Antiguidade Clássica, quer um vasto saber de contextos históricos,
de formulações estéticas, de tensões individuais e colectivas. Como vimos, Sena não
reproduz os objectos, ele toma-os como impulso para reflexões várias onde a sua
percepção do real se insinua. Refere Joaquim Manuel Magalhães a este respeito:

Todos estes poemas partem de obras anteriores, partem da evidência de outras formações de sentido
não para um encontro reprodutor, que conduzisse a uma sua leitura interpretativa, mas para um desvio que as
toma como impulso, como solo de significações para outras obras escapando ao sentido dessas obras
anteriores. Por aí se desdobrarem nos seus sentidos próprios que, muitas das vezes, são um eco longínquo
do que essas obras anteriores intencionavam ser. (Magalhães, 1981: 27)
Esta breve viagem pelas grandes vertentes do diálogo entre a poesia e a arte, e
também da formulação específica da ekphrasis, e pela sua presença em Metamorfoses,
exemplifica a amplitude do processo de reformulação levado a cabo por Sena. Nela se
projecta ainda obviamente todo o esforço intelectual e de elaboração crítica e teórica levado
a cabo ao longo de inúmeros projectos através dos quais um poeta maior se construiu. Para
melhor o entendermos, deveremos, em seguida, ir ao encontro do solo onde essa tradição
se fundou: a Antiguidade Clássica, Grécia e Roma.
CAPÍTULO 2

alguns antecedentes mitológicos,


a ekphrasis e os equívocos da mimesis

Alguns antecedentes mitológicos. Escrevi a dado momento do capítulo


precedente que a primeira ekphrasis, ou, pelo menos, aquela que conseguiu
superar as barreiras do tempo e que até nós chegou, é a famosa descrição do
escudo de Aquiles, o herói da guerra de Tróia, oferecida na Ilíada, de Homero.
Antes de a observar, comecemos por atentar no início, isto é, na sua
etimologia.

Ekphrasis* – plural, ekphraseis - significa “descrição.” Encontramo-la,


pela primeira vez, nos estudos sobre Retórica atribuídos a Dionísio de
Halicarnasso (Retórica, 10.17). Posteriormente, já no início da era cristã,
ganhará a dimensão de exercício pedagógico. Teão relaciona-a com a
capacidade de um determinado discurso de expor com vivacidade (enargos) o
objecto aos olhos do leitor. Entre os tópicos por ele seleccionados para o seu
exercício destacam-se descrições de pessoas, acções, lugares, estações,
festivais. O arquitecto grego Hermógenes, a quem se devem os templos
erigidos em honra de Dioniso e Ártemis Leucófrina, em Teos e Magnésia,
respectivamente, ter-se-á dedicado, ainda jovem, à produção de estudos sobre
Retórica, tendo inclusivamente abandonado a arte que, segundo Vitrúvio, o
celebrizou. Na tradução latina de Progymnasta, texto a ele atribuído, e levada a
cabo pelo gramático Prisciano, surgem instruções específicas relativamente à
elaboração da ekphrasis. A clareza (sapheneia) destaca-se a par da
vivacidade. O carácter eminentemente prático do trabalho de Prisciano, e a sua
profunda vocação pedagógica no âmbito do ensino do latim e da hermenêutica
textual, evidencia o destaque então a ela atribuído, e, consequentemente, à

*
Apesar da designação portuguesa – écfrase, tal como já sucedeu no capítulo anterior, opto por não
traduzir.
interacção entre a palavra escrita e o objecto artístico. Regressemos, porém, a
Homero.

Porque de antecedentes mitológicos se trata, importa começar por


evocar o contexto em que ocorre aquele episódio. Estamos no Canto XVIII
(478-608) da Ilíada. Aquiles prepara-se para entrar em combate para vingar a
morte do seu amigo Pátroclo às mãos de Heitor. Mas esta entrada em combate
corresponde, de algum modo, a um gesto suicida. Impulsivo, orgulhoso, feroz,
até, Aquiles sabe que, ao enfrentar o herói troiano, está também a antecipar a
sua morte. Afinal, o oráculo havia previsto que ela ocorreria após a morte de
Heitor. Tendo-lhe sido dado a escolher entre uma vida breve, intensa e
gloriosa, e uma vida longa e obscura, Aquiles opta pela primeira. Sabe, por
isso, que este confronto antecipa o seu próprio fim.

A nereida Tétis, sua mãe, tenta (adiar ?) protegê-lo de um desfecho que


também ela conhece. Pede assim a Hefesto para forjar as armas do herói. É
neste contexto de radical interferência da esfera divina na humana que o
episódio prossegue. Para além da sua função narrativa, este momento pode
ainda ser entendido num âmbito algo arqueológico, enquanto narrativa onde
uma memória social, cultural e histórica se insinua. Nos seus Estudos de
História da Cultura Clássica, Maria Helena Rocha Pereira menciona “o modo
de Hefesto trabalhar o escudo de Aquiles, forjando-o como se fosse de ferro,
em tempos de protogeométrico ou geométrico, mas fazendo-lhe incrustrações
de ouro, prata e bronze, à maneira micénica”. (Rocha Pereira, 1993: 66)
Independentemente dos antecedentes mitológicos, a ekphrasis, a cena literária,
pode, deste modo, fornecer elementos para a compreensão da cena histórica
na qual se insere, e da qual participa. Neste caso, para além da sua função no
devir épico, a ekphrasis é relevante por proporcionar a síntese de toda uma
cultura. Maria Helena Rocha Pereira destaca, a este nível, os seguintes
vectores:

(1) os conhecimentos geográficos e astronómicos da época: a terra plana e circundada


pelo rio Oceano; o Sol, a Lua e as constelações principais (sabendo já que a Ursa é a
única de entre essas que não ‘mergulha’ no mar)
(2) a cidade em paz, com cenas
(a) de bodas, acompanhadas de música e dança
(b) de um esboço de julgamento: anciãos sentados em pedras polidas darão a sua
opinião sobre um caso de homicídio …
(3) cidade em guerra
(4) trabalhos nos campos
(a) lavra
(b) ceifa
(c) vindimas
(d) pastoreio
(5) divertimentos: danças.
Note-se a presença da música, tanto no trabalho diário, como nas ocasiões festivas, e a
ausência de navegação ou pesca, facto que se interpreta, …, como prova de que as
actividades marítimas ainda não podiam pôr-se a par das agrícolas. (Ibidem, 80-81)

Estamos, assim, perante um fresco (uma narrativa) que só existe no

discurso (o escudo não existe além do texto, só aí se realiza, pelo que a


ekphrasis é, obviamente, imaginária; daí que a crítica anglo-saxónica a ela se
refira como “notional ekphrasis”), e que simultaneamente funciona como
sinopse cultural e social, num sentido muito lato, da vida de uma época.
Observemos então, em seguida, como é que Homero estrutura esta ekphrasis.

O episódio começa com a descrição dos trabalhos propedêuticos do


deus-artífice. Estes iniciam-se com a preparação da superfície (qual tela) onde
os diferentes ícones irão ganhar vida: “Fabricou primeiro um escudo grande e
forte, /lavrado por todos os lados. Põe-lhe uma cercadura lustrosa,/ tríplice e
coruscante, com um talabarte de prata.” (Rocha Pereira, 1982: 34) Perante o
olhar do destinatário desvenda-se um processo análogo ao do artista (pintor)
que prepara a tela onde irá criar (pintar). Este destinatário situa-se, desde logo,
no seio da própria narrativa épica: Tétis observa o emergir dos signos e das
narrativas das quais eles participam; ela representa, espelha, simultaneamente,
o espectador que assiste ao desenrolar do processo criativo. No âmbito da
tradição oral coeva, no seio da qual o poema surgiu, desvenda-se outro
destinatário, o ouvinte da narrativa celebrada pelo aedo. Com a fixação do
texto pela escrita, este destinatário será, por fim, substituído pelo leitor.

Independentemente do destinatário, salienta-se o facto de ele ser


confrontado com o desenrolar de um percurso em todos os seus instantes
criativos. Este é um processo de representação marcado pela existência de um
fio temporal, de uma estratégia diacrónica de um acto eminentemente criativo.
Em seguida, assistir-se-á à definição de uma composição genérica, com uma
componente intensamente visual, que poderá corresponder, de acordo com
uma linguagem cinematográfica, à criação de planos de conjunto. Por seu
turno, o verbo “forjar” surge como metáfora óbvia de “criar” no plano artístico;
uma metáfora que envia para o trabalho do artífice e para o carácter material
desse seu trabalho.

Algo mais importa reter acerca deste criador/artista: o seu estatuto


privilegiado (porque divino), designando um saber superior, insinuado, aliás, na
expressão “seus sábios pensamentos”. Delineiam-se, portanto, dois aspectos:
um estatuto particular – destacado numa hierarquia cósmica - do artista; e a
importância pedagógica do objecto (artístico) criado. A concepção cósmica,
endógena aos diferentes microcosmos enunciados, desvenda-se na própria
delimitação espacial forjada no escudo:

Cinco eram as camadas que dispôs, e em cada uma delas


compõe lavores numerosos, com seus sábios pensamentos.
Forjou lá a terra, o céu e o mar,
sol infatigável e a lua na plenitude,
e ainda quantos astros coroam o céu,
as Pléiades e as Híades, e a força de Orion,
e a Ursa, conhecida igualmente pelo nome de Carro,
que gira no mesmo lugar e espreita para o Orion,
e é a única a quem não coube tomar banho no Oceano. (Ibidem)

Porque de uma ekphrasis se trata, a nossa percepção dos signos é


visualmente condicionada (conduzida) pelo do narrador: vemos aquilo que ele
vê, obedecendo à sequência que ele (nos) impõe. Recorde-se que esta
capacidade de condicionar (formar) o nosso olhar deverá ser endógena à
ekphrasis. Marília Futre Pinheiro refere que “[as] duas virtudes essenciais da
ekphrasis, a sapheneia (clareza) e a enargeia (vivacidade) tinham ... como
objectivo primordial, transformar o ouvinte de palavras num espectador de
imagens, capacidade essa a que a moderna teoria literária dá o nome de
iconotextualidade.” (Futre Pinheiro, 2005: XII) A ulterior simulação do
movimento e do som, assim como a cor, fazem com que, ao observar a
construção do escudo o leitor se torne num “espectador de imagens”.

Após uma descrição integradora e genérica, observa-se uma


aproximação (ainda de acordo com aquilo que hoje associaríamos a um registo
cinematográfico) a planos de pormenor. Através destes transita-se da esfera
cósmica (e também divina), para a esfera humana; do cosmos para o(s vários)
microcosmo(s); isto é, para a representação de um quotidiano. Facilmente
reconhecível pelo destinatário coevo, ele revelar-se-á particularmente relevante
para destinatários ulteriores, como nós, que assim podemos tomar contacto
com aquele universo social e cultural num passado distante. O instante
melancolicamente suspenso no tempo pelo olhar do artista, supera a
transitoriedade, a efemeridade do instante, persistindo no espaço e no tempo,
através da escrita: “Forjou também duas cidades de homens falantes, / mui
belas.” (Ibidem)

Concluída esta caracterização global, o olhar centra-se numa das


cidades referidas. Mais uma vez, a focalização começa por ser genérica, de
conjunto, dando, em seguida, lugar a sucessivos zooms, a sucessivas
aproximações a diferentes pormenores, a diferentes micronarrativas, todas elas
participando, por seu turno, de uma lógica sequencial narrativa, de uma
diacronia. O episódio do julgamento é um dos primeiros a ser descritos, numa
contraposição disfórica face à euforia das celebrações nupciais com que a
narração se inicia. A enargeia que pontua a sua descrição decorre,
essencialmente, da aparente superação do silêncio (óbvio na representação
visual); algo de idêntico, aliás, tanto a segmentos anteriores como a
micronarrativas ulteriores. Essa aparente superação decorre da expressão
“brônzea voz”, com a qual o quadro adquire uma sonoridade que, obviamente,
não lhe é endógena; algo de idêntico acontecera já noutros momentos através
de expressões como “elevam-se no ar muitos cantos nupciais”, ou “flautas e
cítaras erguem a sua melodia”:
Numa havia bodas e festins:
ao luar dos archotes, levam pela cidade as noivas
saídas do tálamo; elevam-se no ar muitos cantos nupciais.
Rodopiam os jovens na dança e, no meio deles,
flautas e cítaras erguem a sua melodia.
Às portas, as mulheres apreciam, deslumbradas.
O povo juntou-se na praça pública. Suscita-se aí
uma contenda: dois homens discutem a pena
pela morte de outro. Garante um ao povo, com ênfase,
que tudo pagou, nega o outro que algo recebesse.
Ambos se dirigem a um juiz, para dirimir a contenda.
povo grita a favor ora de um, ora de outro.
Ambos têm quem os apoie. Os arautos contêm a multidão.
Os anciãos sentam-se em pedras polidas, num círculo sagrado,
segurando nas mãos o ceptro dos arautos de brônzea voz.
Com ele levantam a voz e julgam cada um por sua vez.
Jazem no meio dois talentos de ouro,
para se darem a quem, dentre eles, proferir a sentença mais recta. (Ibidem, 34-35)

Após este primeiro quadro de um microcosmo marcado pela rotina de


um quotidiano, nos seus momentos eufóricos e disfóricos, transita-se para a
segunda cidade, isto é, para um segundo quadro, e, consequentemente, para
uma segunda narrativa. Com esta transição introduz-se não só outro
microcosmo, mas também uma experiência de radical intensidade dramática
(pathos ?), a guerra.

Subscrevendo a mesma estratégia de enunciação, começa por ser exposto um


plano de conjunto, onde sucessivamente emergem micronarrativas e, também, vários
planos de pormenor, vários detalhes dentro do quadro genérico da guerra. De acordo
com este imaginário cultural e religioso, os deuses não são representados como
entidades distantes e neutras; embora se destaquem visualmente dos humanos (“Como
deuses que são, / distinguem-se bem; os homens são um pouco menores.”), assim se
distinguindo numa hierarquia cósmica, os deuses participam da refrega, intervêm nos
conflitos ao lado dos homens (recorde-se que Hefesto tomara partido, na guerra de
Tróia, ao aceder dar forma às armas de Aquiles). Repare-se igualmente como, uma vez
mais, as micronarrativas (os quadros) se sucedem numa lógica sequencial, diacrónica.
Repare-se, por fim, na sonoridade que a representação uma vez mais assume,
nomeadamente através da expressão “magno clamor”:

Em volta da outra cidade estavam dois exércitos de homens,


com armas ofuscantes. Dividia-se-lhes o ânimo,
se haviam de arrasar, ou de repartir tudo
quanto a cidade de delícias possuía lá dentro em bens.
Mas eles não atendem a nada, e armam-se a ocultas
para uma emboscada. As mulheres queridas e os filhos pequeninos,
postados nas muralhas, defendem-nas, e, com elas, os velhos,
que a idade retém. Os homens saíram. Comanda-os Ares
e Palas Atena, ambos de ouro, e de ouro vestidos,
formosos e grandes com suas armas. Como deuses que são,
distinguem-se bem; os homens são um pouco menores.
Quando pois chegaram ao sítio escolhido para a emboscada,
à beira-rio, onde se dessedentava a multidão dos gados,
postam-se aí cobertos de fulvo bronze.
À distância puseram dois vigias, para observarem
a chegada das ovelhas e dos bois de chifres recurvos.
Estes surgiram em breve. Seguiam-nos dois pastores
gozando o som da flauta, pois não suspeitavam do logro.
Ao vê-los, caem sobre eles, e, logo em seguida,
isolam a manada de bois, e o rebanho formoso
de alvas ovelhas, e matam os pastores.
Os que estavam sentados em frente do lugar da assembleia,
assim que distinguem o magno clamor junto dos bois,
saltam logo para os cavalos ligeiros, em sua perseguição,
e em breve chegam. Param a combater ao longo das margens do rio
e atiram uns aos outros com as lanças ornadas de bronze.
Acompanham-nos a Discórdia, o Tumulto e o fado funesto,
que ora segura um ferido de há pouco, ainda vivo, ora um não ferido ainda,
ora arrasta pelos pés um já morto, no ardor da refrega.
Pende-lhe dos ombros um manto purpúreo, tinto
em sangue dos homens. O recontro é como o de mortais com vida,
como tais combatem e arrastam os cadáveres de ambas as partes. (Ibidem, 35-36)

Transita-se para um novo quadro que, uma vez mais, contrasta


claramente com o anterior. Mas esta transição significa ainda a passagem de
um espaço que antes era essencialmente urbano, para um espaço rural.
Estamos, aqui, perante uma cena da vida quotidiana rural, num espaço que
não é privilegiado em termos do tecido social; é o comum homem do campo
que agora se desvenda. Para além do objecto representado, o poeta evoca
ainda as capacidades artísticas, “o prodígio”, de um criador capaz de, no signo,
insinuar uma textura inerente a esse objecto:

Forjou também uma leira macia, um campo fértil,


vasto e ubérrimo. Nela, lavradores inúmeros
fazem andar as suas juntas num e noutro sentido.
E, quando dão a volta, ao chegar ao extremo do campo,
acorre um homem a entregar-lhes nas mãos uma taça de vinho,
doce como o mel. E eles dão a volta a cada sulco,
dirigindo-os para a meta da leira profunda.
Para trás deles fica a terra negra, semelhante à que é lavrada,
apesar de ser de ouro. Tal foi o prodígio que ele executou! (Ibidem, 36)
Igualmente integrada num espaço rural, a cena seguinte distingue-se da
anterior pelo estatuto social superior, privilegiado, que então é focalizado, “uma
quinta régia”. Ao revelar este universo social, a micronarrativa de alguma forma
completa o fresco sobre aquele tempo. O movimento quotidiano do trabalho na
quinta começa por exibir os trabalhadores empenhados no seu labor; atente-se
na intensidade do ritmo e na forma como nele se envolvem os diferentes
membros daquele segmento social:

Forjou também uma quinta régia. Aí há ceifeiros


a trabalhar, com fouces agudas nas mãos.
Os molhos compactos tombam no solo em fileiras,
outros são atados por homens que os ligam em feixes.
Estão lá três homens para isso; por trás, crianças a enfeixar,
que trazem as paveias nos braços e as fornecem sem cessar. (Ibidem, 36)

O ponto de vista desloca-se, então, para uma personagem nuclear neste


microcosmo, o rei. Signo do poder e, consequentemente, centro político
normativo e determinante, o rei é espacialmente (visualmente) figurado no
centro da azáfama: “No meio deles, de pé, em silêncio, sobre a leira, / o rei,
com o seu ceptro, regozija-se em espírito.” (Ibidem, 36) Numa constante e
ininterrupta deambulação (travelling) pela micronarrativa, o olhar afasta-se para
reproduzir outros pormenores desta cena da vida quotidiana: “Ao longe, os
arautos preparam a comida debaixo de um carvalho, / imolam um boi e
arranjam-no. Entretanto, as mulheres / deitam muita farinha alva, para o jantar
dos ceifeiros.” (Ibidem, 36)

A micronarrativa seguinte conduz o leitor para outra cena da vida no


campo: as vindimas. Curiosamente, neste caso o ponto de vista começa por
focalizar pormenores que serão destacados através de várias referências à cor:
“Forjou ainda uma vinha bem carregada de cachos, / formosa e dourada. Os
bagos pendentes eram negros. / Segura-os de ponta a ponta com argênteos
esteios.” (Ibidem, 36) Só depois surge aquele que irá funcionar como palco
desta representação - “Em volta estendeu um fosso escuro e uma sebe de
estanho.”- e o percurso que a ele leva os actores: “Uma só vereda conduzia até
lá. Para ela seguiram / os vindimadores, quando iam colher as uvas. / Donzelas
e rapazes de espírito inocente / transportam em cestos entretecidos o fruto
doce como o mel.” (Ibidem, 36) A micronarrativa da vindima, aqui visualizada,
assume um carácter de representação; o trabalho desvenda-se enquanto ritual
cénico. Enquanto que na representação anterior o rei funcionava como centro
do poder (político), nesta o artista assume essa centralidade, é ele quem
ludicamente rege o movimento, o ritmo do trabalho: “No meio deles um jovem
tange à maravilha / uma cítara harmoniosa, cantando formosa endecha / com a
sua voz aguda. Os outros pisam o solo a compasso, / com cantos e gritos, e
acompanham-no saltando com os pés.” (Ibidem, 37) O olhar transita depois
para outra micronarrativa centrada no quotidiano rural - “Fabricou também uma
manada de vacas de chifres erguidos.” De novo é dada ênfase ao trabalho e ao
carácter material (artesanal) do produto artístico. A dimensão visual desta cena
é destacada pelas diferentes tonalidades, decorrentes da materialidade acima
referida: “As vacas forjou-as de ouro e de estanho também.” À cor acrescenta-
se em seguida a vertente da sonoridade já mencionada. A sonoridade
subscreverá um registo algo idílico na representação da atmosfera tranquila e
amena, bucólica, daquele espaço; atente-se, ainda a este nível, no animismo
emprestado por “murmurante”: “Caminham, a mugir, do estábulo para a
pastagem, / ao longo do rio murmurante e do canavial flexível. / Quatro boieiros
de ouro movem seus passos junto das vacas, / e seguem-nas nove cães de
patas velozes.” (Ibidem, 37) O ritmo pausado é interrompido pela adversativa -
“Mas” - que irá introduzir uma perturbação naquela atmosfera; com ela surge a
luta e uma simultaneidade de acções (um acelerar da intensidade, do ritmo), as
quais, por seu turno, implicam uma simultaneidade daqueles que seriam
diferentes momentos - sequenciais - da narrativa:

Mas dois terríveis leões, na primeira fila das vacas,


agarram um touro a berrar. Este muge muito alto,
mas eles arrebatam-no. Os cães e os moços vão atrás dele.
Os dois dilaceraram já a pele do touro ingente,
e devoram-lhe as entranhas e o negro sangue;
os boieiros perseguem-nos, açulando os cães velozes.
Mas estes livram-se de morder nos leões,
apenas se colocam mui perto, a ladrar, mas fugindo-lhes. (Ibidem, 37)

As diferentes cenas são evocadas de uma forma algo arbitrária pela voz
do poeta; elas constituem, afinal, diferentes quadros dento de um quadro mais
geral que será o da indentidade da cena histórica. As micronarrativas
coexistem, assim, autonomamente, numa óbvia independência formal. A
ligação entre elas será todavia assegurada através da identidade comum acima
referida: “Forjou ainda o ínclito Anfigieu uma pastagem, / grande, num vale
formoso, com ovelhas alvinitentes,/ estábulos, tendas cobertas e parques.”
(Ibidem, 37)

A derradeira micronarrativa evoca um ritual social, a festa. Uma vez mais


a materialidade da criação artística é assinalada através do verbo: “forjou” dá
agora lugar a “Cinzelou ainda uma dança o ínclito Anfigieu”. Para além de uma
reprodução de um ritual coevo, esta descrição introduz ainda uma memória
histórica: “semelhante à que outrora, na imensa Cnossos, / Dédalo organizou
para Ariadna de belas tranças.” Trata-se de uma intervenção particularmente
relevante por parte do narrador, já que este se assume como um leitor
(descodificador), detentor privilegiado do saber. Desvendam-se então detalhes
a nível da dança em si - “Aí dançavam, segurando a mão uns aos outros, pelo
pulso”, aspectos específicos a nível de interacção social - “moços e moças tais
que se oferecem por elas muitos bois”, e ainda pormenores que permitem ao
leitor reconstituir visualmente formas de vestir, adornos, e pormenores da
própria dança:

Elas usam vestes de pano fino, e eles enfiaram


túnicas bem tecidas, que luzem brandamente,
devido ao azeite. Elas trazem diademas formosos,
eles espadas de ouro, pendentes de correias de prata.
Ora correm depressa, com pés bem adestrados -
como quando o oleiro, sentado, experimenta
a roda afeiçoada pelas suas mãos, a ver se gira -
ora correm em fila, uns atrás dos outros. (Ibidem, 37)

À semelhança do que noutro segmento sucedera, a micronarrativa


funciona como se de um espectáculo, uma representação, se tratasse. Ora,
essa representação introduz um elemento particularmente importante, o
destinatário, o público/espectador - a “multidão”; será este que, em certa
medida (“mise en âbyme” ?), funciona como espelho do leitor, um espelho
nosso - voyeur de outro voyeur. Através do público insinua-se uma cena dentro
da cena: “Uma grande multidão assiste em volta, / deleitada com a dança
graciosa. [No meio deles, cantava o / [aedo divino, tangendo a lira.] Dois
acrobatas / andam no meio, a revolutear, ao som da música.” (Ibidem, 37-38) A
descrição do escudo/quadro/representação encerra-se com aquela que
funcionará como “dupla moldura” dessa representação: “Modelou ainda a
grande força do rio Oceano, / na cercadura extrema de escudo tão bem
lavrado.”

Numa breve síntese da leitura desta ekphrasis, e obviamente devedor


dos comentários de Maria Helena Rocha Pereira, retomo os seguintes
elementos a nível estrutural: a síntese de toda uma cultura na sua dimensão
urbana e rural; o desenrolar do processo de criação artística em todos os seus
instantes; o carácter profundamente material da criação artística; o estatuto
(função) particular do objecto artístico; o estatuto privilegiado do criador; a
função pedagógica do objecto - veiculador de um saber; um destinatário que
funciona como espectador daquele processo de criação; a componente
eminentemente visual: zoom, e planos de conjunto e planos de pormenor, por
exemplo; o recurso à sonoridade e à cor; o jogo entre a simultaneidade de
acções e a lógica sequencial (espacial) narrativa; a interacção entre sincronia e
diacronia; o texto dentro do texto; o texto como palco, representação.

Ainda na época clássica, este passo da Ilíada, fundamental na


concepção daquilo que será entendido como ekphrasis, ecoará na descrição do
escudo de Héracles que surge no Scutum [139-230], texto atribuído a Hesíodo.
Mais tarde, reflectir-se-á quer na descrição do escudo de Eneias, na Eneida
[8.263-731] de Virgílio, quer no escudo de Dioniso, na Dionisíaca [25.384-567],
de Nono.

Durante o período helenístico, as ekphrasis participam igualmente de


géneros ou subgéneros distintos, como a épica ou a poesia pastoral:
relativamente à primeira veja-se, por exemplo, a representação do manto de
Jasão, na Epopeia dos Argonautas [1.730-67], de Apolónio de Rodes;
relativamente à segunda, considere-se o passo referente à taça rústica nos
Idílios [1., 27-56], de Teócrito, e o cesto de Europa em Europa [43-62] de
Mosco.
Vertente relevante da ekphrasis na Antiguidade Clássica, a tradição
epigramática surge, na sua génese, ligada tanto a descrições como a
interpretações de quadros e estátuas. Embora não raro dependendo dos
objectos existentes, esta variante ganhará uma gradual autonomia,
consagrando-se enquanto subgénero literário menor. Esta tradição estará
ainda presente no Renascimento, destacando-se os exemplos de Marino, com
La Galeria, e de Marvell, com “The Gallery”. Estamos, portanto, perante uma
tradição apesar de tudo forte e com óbvios ecos ulteriores, como serão, ainda
no universo anglo-saxónico, os casos de Spenser, com a sua imitação da
tapeçaria de Aracne em The Faerie Queene, ou de Shakespeare que inclui
uma extensa ekphrasis sobre o cerco de Tróia em The Rape of Lucrece.

Como ilustra o episódio homérico, desde a Antiguidade Clássica que a


ekphrasis se encontra ligada a uma categoria narrativa específica, a descrição.
Esta poderá ser, todavia, mais abrangente, não se restringindo à reprodução
verbal de um signo visual, imaginário ou não, e abarcando o contexto do qual
ele participa, nomeadamente edifícios e espaços envolventes. O primeiro
exemplo desta vertente será a descrição do palácio e dos jardins de Alcinoo
que surge na Odisseia [7. 81-132], de Homero.

Na sua longa viagem de regresso a Ítaca, o astuto herói da guerra de


Tróia acaba de chegar ao palácio de Alcinoo. O olhar (ponto de vista) do
narrador confunde-se com o do protagonista na perplexidade com que encara o
esplendor do lugar. Repare-se como, no plano transmitido, o nosso olhar, o do
leitor, se confunde (sobrepõe) com o (ao) do herói:

Parou
um momento, hesitante, antes de passar o limiar de bronze.
A casa de altos tectos do magnânimo Alcinoo
tinha um brilho semelhante ao do sol e ao da lua.
De lés a lés estendiam-se muralhas de bronze,
do limiar ao fundo da casa. À volta, um friso de esmalte azul.
Portas de ouro fechavam por dentro a casa massiça.
Os lados eram de prata, sobre limiares de bronze,
de prata era o dintel, e a aldrava de ouro.
De cada lado havia cães de ouro e prata,
que havia forjado Hefesto, com sua arte subtil. (Rocha Pereira: 1982, 68)
A descrição não se limita a enunciar os objectos, desvendando
igualmente de uma forma pormenorizada aspectos nucleares da representação
artística como a cor e textura. À semelhança do que sucedera na Ilíada,
destaca-se a figura do deus artífice “com sua arte subtil” e a materialidade da
sua produção (“forjado”). Uma vez mais aquele que produz a arte é um deus,
tendo, por isso, um estatuto elevado; por extensão, o objecto criado ganha
também esse estatuto.

Após ter concluído esta descrição, segue-se a de “um grande jardim de


quatro jeiras” (Ibidem, 69), com a qual se proporciona o enquadramento algo
idílico do signo nuclear deste quadro, o palácio de Alcínoo. A natureza - “Nunca
o seu fruto se perde ou deixa de produzir,/ quer seja inverno ou verão; duram
sempre.” (Ibidem, 69) - e a mão humana - “No extremo do jardim, crescem
alegretes cuidados, / com plantas de toda a espécie, todo o ano verdejantes.”
(Ibidem, 69) - prolongam assim a justificação por parte dos deuses daquela
nobre personagem - “Tais eram as dádivas esplêndidas dos deuses a Alcínoo.”
(Ibidem, 69) Tal como acentua Aristóteles na Poética, os homens superiores
devem funcionar por aemulatio face ao cidadão comum; o poeta trágico ou
épico imitará, portanto, “as acções nobres e dos mais nobres personagens.”
(Aristóteles: 1985, 107). Ora, Alcínoo é um homem nobre, justo, um “homem
superior” cuja justificação divina se projecta no espaço que é o seu.

Como adiante se verá, esta vertente descritiva persistirá no universo


romano quer na Eneida (1. 446-93 6. 20-30), quando Eneias descreve os
murais do templo de Juno em Cartago e as portas do templo de Apolo, quer
nas Metamorfoses (2.1-18), quando Ovídio descreve o palácio do Sol. Mais
tarde, no período bizantino as igrejas tornar-se-ão um objecto recorrente de
ekphrasis, destacando-se a de Santa Sofia levada a cabo por Paul de
Silentiary. Um exemplo do Renascimento tardio será a descrição do
Pandaemonium, feita por Milton no Livro I de Paradise Lost.

Embora o tema do locus amoenus seja posterior, podemos considerar


que as suas origens remotas, em associação com a ekphrasis, podem ser
reconhecidas quer na descrição do espaço junto da gruta de Calipso, feita
igualmente por Homero na obra que tenho vindo a citar, a Odisseia [5. 63-75],
quer na descrição da “mais bela mansão da terra”, feita por Sófocles em Édipo
em Colono [Estásimo I, 668-693]. Dever-se-á acentuar o facto de a descrição
que na Odisseia antecipa o tema do locus amoenus estar ligada a um espaço
que é domínio de uma entidade com um estatuto privilegiado: Calipso, “divina
entre as deusas”, “a Ninfa de belas tranças.” (Ibidem, 55) Observemos a
descrição do espaço circundante da caverna de Calipso:

À volta da caverna crescia uma floresta frondosa,


de álamos, choupos e ciprestes odoríferos.
Aí nidificavam as aves de asas largas,
corujas, milhafres e alcatrazes de grandes línguas,
aves que vivem no mar e nele têm o seu labor.
Ao pé da gruta escavada, estendia-se uma vinha
forte: desentranhava-se em cachos.
Havia a seguir quatro fontes, que deitavam
água clara, cerca umas das outras, mas em direcções diversas.
Em volta prados macios, floridos de violetas e aipo.
Ao chegar ali, até mesmo um imortal,
quedaria a contemplá-la, deleitando o seu espírito. (Ibidem, 55)

A descrição dá ênfase a uma natureza amena nos seus diferentes


elementos: a “floresta frondosa”, as aves que escolhem aquele lugar para ali
perpetuar a existência - “nidificam”, a “vinha forte” - signo de vitalidade, as
fontes “de água clara” - signo de pureza, disseminando essa pureza em redor,
os “prados macios”. Através destes signos Homero reitera a dimensão algo
divina do lugar.

O tema do locus amoenus encontrar-se-á igualmente no universo


clássico no fragmento 2 da poesia de Safo. Observemos, contudo, a sua
presença em Édipo em Colono. No final da vida, Sófocles retoma o mito que já
tratara em Édipo Rei. O filho de Laio é, então, um velho debilitado e andrajoso
conduzido pela filha, Antígona. Ao aproximarem-se de Atenas, vão encontrar
no bosque sagrado das Euménides o santuário que Apolo havia prometido:

Neste país de esplêndidos corcéis, ó estrangeiro, à mais bela mansão da terra tu chegaste: Colono
alvinitente. Aqui, a doce filomela entoa seus lamentos, na verde espessura dos vales que frequenta. A hera
sombria lhe serve de morada, e do deus a inviolável ramagem de mil frutos, que não conhece o sol, nem os
ventos de todas as tempestades.
Este é o lugar sempre frequentado pelo Báquico Dioniso, em companhia das deusas que o
criaram.
E sob o orvalho do céu, dia após dia, sem cessar, em belos cachos floresce o narciso,
das grandes deusas coroa ancestral, e o açafrão de brilho dourado. E não secam as fontes
insomnes, de onde brotam as águas vagabundas do Cefiso. Mas sempre, nos seus dias, se
apressa a fecundar com a pura linfa os campos deste país rico em planícies. Nem das Musas
os coros lhe nutrem aversão, nem Afrodite de rédeas doiradas. (Sófocles, 1996: 88-89)

O locus amoenus não se restringe aqui a uma descrição de um espaço


com características eufóricas sustentadas e circunscritas à natureza, com
eventuais ressonâncias do mundo divino. Neste passo o locus amoenus indicia
a polis justa e equilibrada, baseada na responsabilidade do indivíduo; através
dela Sófocles envia uma mensagem de esperança face ao futuro da Cidade,
“convicto de que a verdadeira sobrevivência e vigor de Atenas residem não já
numa inviável hegemonia político-económica, mas no fortalecimento de uma
identidade depurada pelo esforço de harmonia político-espiritual.” (Maria do
Céu Fialho, Ibidem, 23-24) É esta harmonia e esta noção de responsabilidade
face aos actos cometidos que permitirão uma nova integração de Édipo na
polis. A ekphrasis participa, afinal, de uma estratégia de afirmação da vitalidade
(malgré tout) da polis. O debate, endógeno a esta entidade, e radical (no
sentido etimológico) para a sobrevivência de uma lógica democrática, surge
ancorado em torno de vários eixos temáticos, entre os quais se destaca quer a
função do herói perante essa mesma polis (como recorda Aristóteles), quer o
conceito de mimesis.

Quando Horácio celebra na sua Ars Poetica a interacção entre a poesia


e a dimensão visual (através da expressão “ut pictura poesis”), fá-lo na
sequência de uma tradição de formulações teóricas explícitas e implícitas
previamente elaboradas no universo grego. No plano das formulações teóricas
explícitas destaca-se a afirmação de Simónides, em Auctor ad Herrenium [4.
39], segundo a qual a poesia é um quadro com voz, e a pintura é poesia
silenciosa. Em De gloria Atheniensium [3.347 a] Plutarco divulgará esta mesma
ideia. No plano das formulações teóricas implícitas destaca-se o carácter “algo
visual” da poesia que, por seu turno, entronca na noção de mimesis,
vulgarmente considerada como uma capacidade de imitar o real. Devido à
importância deste conceito no âmbito dessas elaborações teóricas, deveremos,
ainda que brevemente, destacar algumas das suas implicações nas obras
maiores de Platão e Aristóteles. Será, aliás, a partir da noção de mimesis que
se poderá e deverá compreender a condenação dos poetas levada a cabo por
parte de Platão. Desde logo, importa ter presente a concepção profundamente
hierarquizada do real que subjaz à perspectiva platónica, e da qual decorre o
seu conceito de mimesis. Com efeito, Platão abordara no Sofista [235 d,e] o
aspecto específico da representação a nível da pintura, tendo então
considerado a existência do que definiria como dois tipos de mimesis: uma,
baseada na semelhança, tendo como objectivo reproduzir com fidelidade o
objecto, através de um respeito pelas proporções e pelas cores originais, e
outra, “fantástica”, caracterizada pelo apelo à ilusão, nomeadamente através da
distorção óptica.

No livro X de A República [c,d] este aspecto surge numa estreita


associação entre a poesia e a pintura. Ao analisar os “imitadores” poéticos que
se encontram “três pontos” afastados da verdade, isto é, da essência (Ideia)
das coisas, Platão convoca a dimensão visual e considera:

… a mesma grandeza, vista a nossos olhos de perto e de longe, não parece igual. … E os mesmos
objectos parecem tortos ou direitos, para quem os observa na água ou fora dela, côncavos ou convexos,
devido a uma ilusão de óptica proveniente das cores, e é evidente que aqui há toda a espécie de confusão na
nossa alma. Aplicando-se a esta enfermidade da nossa natureza é que a pintura com sombreados não deixa
por tentar espécie alguma de magia, e bem assim a prestidigitação e todas as outras habilidades desse
género. (Platão: 1987, 467)

Segundo ele, o pintor reproduz uma aparência (óptica) e não a essência de uma
realidade. A rejeição daquela que poderá ser considerada uma prática específica de
imitação, a pictórica, radicará no carácter ilusório da pintura, na distorção inerente aos
pontos de vista adoptados. Será, portanto, desse carácter ilusório que aspectos como a
perspectiva e a policromia participam, sendo por Platão denunciadas como “prestidigitação
e … outras habilidades” afins, isto é, como estratégias de disssimulação do real. À
dissimulação associa-se, naturalmente, a possibilidade de manipulação por parte do artista.
Afinal, aquilo que o objecto artístico representa não será o referente em si mas uma, entre
outras, possibilidades do objecto. Isto não significa que Platão reduza a sua abordagem ao
papel do pintor a esta perspectiva. Como acima referi, no Sofista Platão designara dois
tipos de representação, aquela que se fundamentava na semelhança e aquela que se
caracterizava por uma distorção fantasiosa do real. Ora, esta distinção ecoará na sua forma
de encarar a prática da pintura.
Ainda em A República, mais precisamente no livro VI, Platão refere algo
que evoca essa distinção. Ao aludir àquela que considera ser a função do
filósofo enquanto delineador de um projecto de um Estado (sociedade) perfeito
(a), recorre à analogia com o pintor. Defende então que os filósofos serão
“esses pintores que utilizam esse modelo divino.” Coloca-se aqui a
possibilidade de uma representação da essência do referente, ou, poder-se-á
dizer, da verdadeira realidade. Trata-se de um passo extenso mas que importa
observar para podermos compreender as suas implicações:

… qual será a maneira de traçar esse desenho que dizes?


- Pegarão no Estado e nos caracteres dos homens como se fosse uma tábua de
pintura; primeiro torná-la-iam limpa, coisa que não é lá muito fácil. … Seguidamente, …,
aperfeiçoando o seu trabalho, olharão frequentemente para um lado e para o outro, para a
essência da justiça, da beleza, da temperança e virtudes congéneres, e para a representação
que delas estão a fazer nos seres humanos, compondo e misturando as cores, segundo as
profissões, para obter uma forma humana divina, baseando-se naquilo que Homero, quando o
encontrou nos homens, apelidou de ‘divino e semelhante aos deuses’. … E umas vezes, julgo
eu, apagarão, outras pintarão de novo, até que, até onde for possível, façam simples
caracteres humanos tão do agrado dos deuses quanto podem sê-lo. (Ibidem, 297-8)

Na sua metáfora sobre a edificação do Estado perfeito, Platão recorre a


todo o processo de construção pictórica: preparação da “tábua”; perspectiva a
adoptar - curiosamente, não uma apenas, o que seria redutor e parcial, mas
sim várias; composição da cor; rasura e reformulação. Todo este processo
teria como objectivo captar o que de “divino e semelhante aos deuses” Homero
encontrou nos homens. Contrariamente ao passo acima citado do livro X de A
República, no qual a pintura surgia associada a uma distorção da realidade,
sendo por isso politicamente perigosa, no livro VI desta obra considera-se que
a pintura pode assumir uma função pedagógica funcionando no sentido da
elevação, da revelação da essência, enfim, daquilo que ele entende como o
real. Será, todavia, noutro diálogo platónico que se produz uma reflexão
essencial em torno desta relação entre a palavra e a imagem. Refiro-me,
obviamente, a Crátilo.

Ao convocar a reflexão platónica em torno da relação entre o objecto e a


sua representação, especulando sobre as virtualidades desta quer a nível do
discurso quer a nível da arte, Murray Krieger destaca Crátilo visto ser aqui que
se formula a primeira distinção entre o “signo natural” e o “signo arbitrário”.
Krieger assinala, porém, que esta distinção se estabelece no âmbito de uma
teoria da mimesis (Krieger, 1992: 13) Afinal, quando um nome designa
correctamente algo, qual será a fonte dessa “correcção”? Hermógenes defende
que esta se deve à convenção, por seu turno Crátilo considera que a correcção
radica no nomear da essência do objecto, da sua “natureza”.

Embora tentasse reproduzir verbalmente um objecto, recorrendo a


características próprias das artes visuais, a ekphrasis ficaria, deste modo,
aquém da representação por estas realizada, em particular quando se trata da
escultura, a “arte mais natural”, visto estar sustentada pela tridimensionalidade.
A ekphrasis expõe apenas a ilusão do signo natural. A célebre afirmação de
Simónides, acima referida - a poesia é um quadro com voz, e a pintura é
poesia silenciosa – não se enquadra, assim, na concepção hierárquica definida
por Platão.

A reflexão sistemática desenvolvida por Platão não está presente em


Aristóteles. Tal não significa que não possamos encontrar passos na sua obra
onde a sua postura face à representação pictórica se desvende. Observemos
três exemplos apenas. Por um lado, no livro VI da Metafísica, Aristóteles
defende que a forma decorre da essência (alma) do artista que assim surge
como elemento fundamental no processo de construção artística. Por outro
lado, na Política, Aristóteles afirma que os jovens devem ser proibidos de
observar “as pinturas e as representações igualmente indecentes,”
(Aristóteles,1975: 217) consequentemente, devem ser ensinados a observar
obras artísticas que expressem virtudes morais. Finalmente, na Poética,
Aristóteles aborda de uma forma explícita a temática da representação a este
nível. Fá-lo a partir de uma analogia com aquele que é então o seu objecto de
estudo, a tragédia. No capítulo VI, destinado à definição da tragédia e à análise
das suas partes ou elementos essenciais, refere o estagirita:

… o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres.


Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores,
a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas nos houvesse esboçado uma figura em
branco. A tragédia é, por conseguinte imitação de uma acção e, através dela, principalmente
[imitação] de agentes. (Aristóteles: 1985, 112)
A concepção aqui expressa por parte de Aristóteles distingue-se da de
Platão, devido à divergência face àquilo que ambos entendem por mimesis.
Uma vez mais a arte surge associada a uma função pedagógica, algo que
persistirá noutros espaços e noutros tempos.

Ao transitarmos para o universo romano, uma presença de imediato se


impõe, Horácio. Na sua Arte Poética, o autor define a interacção entre a poesia
e a dimensão visual através de uma expressão que se tornará célebre,
persistindo até aos nossos dias enquanto síntese desse diálogo: “ut pictura
poesis”. Igualmente conhecida por Liber de Arte Poetica, a Ars Poetica, como
viria a ser referida por Quintiliano um século após a morte do seu autor, é uma
epístola em verso que havia sido inicialmente designada Epistula ad Pisones.
Nela encontra-se uma síntese de indicações relativamente ao exercício da
escrita, com particular destaque para o texto dramático, tendo eventualmente
como destinatário um jovem aprendiz nas artes da escrita (provavelmente um
filho de Lúcio Pisão). Horácio inicia a sua epístola retomando uma noção que já
havia sido mencionada em Aristóteles, a de verosimilhança:

Se um pintor quisesse juntar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo e a


membros de animais de toda a ordem aplicar plumas variegadas, de forma a que terminasse
em torpe e negro peixe a mulher de bela face, conteríeis vós o riso, ó meus amigos, se a ver tal
espectáculo vos levassem? (Horácio: 1984, 51)

Com um evidente sentido de humor, Horácio joga na distorção,


evocando um referente marcado pelo excesso, pela desconexão entre os seus
diferentes componentes, para assim ilustrar algo de fantasioso, de inverosímil.
A partir desta imagem transita para aquele que era o seu objectivo primeiro,
demonstrar que um texto deve denunciar um equilíbrio, seguindo um método,
um percurso lógico e racional:

… em tudo a este quadro se assemelharia o livro, cujas ideias vãs se concebessem


quais sonhos de doente, de tal modo que nem pés nem cabeça pudessem constituir uma só
forma. (Ibidem)
A existência de um método e de uma racionalidade lógica que, para
Horácio, seriam comuns à pintura e à poesia, aproximam-no de Aristóteles. A
distância face a Platão é, todavia, por demais evidente, pois: “Diries vós que ‘a
pintores e a poetas igualmente se concedeu, desde sempre, a faculdade de
tudo ousar’” (Ibidem, 53). Como se depreende dos versos citados, a
verosimilhança não se situa para Horácio no domínio da reprodução do real.
Representação, verosimilhança e representação da realidade são para ele
entidades distintas. Trata-se, com efeito, de uma diferença de grau relevante já
que permite abordar a especificidade do objecto artístico em si, a partir de
regras próprias, e não apenas de uma eventual adequação - com implicações
pedagógicas e/ou políticas - desse mesmo objecto à realidade. Além disso,
contrariamente a Platão, Horácio não pretende que o artista revele a verdade;
consequentemente - ainda no plano pedagógico e/ou político - concede-lhe “a
faculdade de tudo ousar”, não o expulsando, portanto, da cidade: “tal liberdade
procuramos e reciprocamente a concedemos” (Ibidem).

A analogia estabelecida por Horácio entre pintura e poesia não é,


porém, algo de circunstancial, ao qual ele recorre nos momentos iniciais
apenas da sua epístola. Alguns versos depois, na estrofe seguinte, ao elaborar
ainda em torno da noção de verosimilhança, prossegue na analogia entre artes
(“... para assim o pintares” [(Ibidem, 55)]). Horácio defende a necessidade de
conceber o objecto artístico como um todo no qual as diferentes partes
dialogam entre elas; será desse diálogo, e não de aspectos isolados, que
emerge quer o efeito de verosimilhança quer a realização do objecto em si.
Esta interacção é por ele explicitada através do recurso a outra forma de
expressão artística, a escultura: “... o mais ínfimo dos escultores moldará unhas
no bronze e até nele imitará cabelos sedosos, mas será infeliz no acabamento
da obra por não saber criar um todo.” (Ibidem, 57)

A analogia entre as duas formas de expressão artística será então


explicitamente formulada na máxima acima mencionada que sintetiza a
reflexão horaciana, “ut pictura poesis”, “como a pintura é a poesia”: “Como a
pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradame outras, se a
distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por
não recear o olhar penetrante dos seus críticos...” (Ibidem, 109 e 111)

Com esta analogia Horácio estabelece, enfim, uma indissociabilidade,


uma relação de continuidade e extensão, e também algo especular, entre as
duas artes que irá persistir ao longo dos tempos.

Não só plano teórico Roma ecoa debates centrais no universo grego, já


que as próprias ekphrasis helenísticas influenciarão a sua literatura. Entre os
exemplos maiores desta influência, destacar-se-ão: o escudo de Eneias, na
Eneida (8.626-731) de Virgílio; a coberta, em Catulo (47 e segs.); a
representação de Marte e Vénus em De rerum natura (1.33-40), de Lucrécio;
as tapeçarias de Minerva e Aracne em Metamorfoses (6. 70-128), de Ovídio (a
qual proporciona um contraste curioso entre os estilos artísticos helenístico e
clássico).

Comecemos por observar o primeiro texto mencionado, a Eneida de


Virgílio. Importa referir que este poema representa para a cultura romana algo
de idêntico que as épicas homéricas representam para a grega. Existem
divergências óbvias às quais não cabe todavia aqui responder. Um dos traços
distintivos desta epopeia deve, contudo, ser destacado, o enaltecer de Roma e
da sua missão histórica como agente civilizador. Acentuo esta vertente já que
ela implica uma relação particular com o tempo. Com efeito, a ideia de missão
confere à epopeia uma clara intenção proléptica, não a restringindo ao
presente, a um canto dos feitos coevos de Augusto (algo que participava das
intenções de Virgílio ao escrever este texto e que se reflecte, por exemplo, no
paralelo mítico entre Eneias e Augusto), ou ao passado histórico. A viagem e
as tribulações de Eneias assumem, deste modo, uma dupla dimensão de
consagração política do presente e justificação histórica daquilo que o futuro
reserva a todo um povo. Será quer neste último sentido quer enquanto síntese
histórica e mítica que se impõe observar o episódio do escudo de Eneias,
presente no capítulo VIII da Eneida.
Comecemos por esta última, a síntese histórica e mítica. Numa interacção entre mito
e factualidade histórica, destacam-se os episódios seguintes: a narrativa fundadora
(originalmente mítica) de Rómulo e Remo; o rapto das sabinas enunciado em três
momentos: jogos, conflito entre romanos e sabinos, reconciliação final; a punição de Meto,
o qual traíra Roma na luta com os fidenates; a invasão de Porsena; a defesa do Capitólio
contra os gauleses; as danças de sálios e lupercos; o lugar das punições e o lugar dos
justos.

Estas cenas funcionam como uma espécie de moldura, de


enquadramento de micronarrativas, envolvendo e justificando o motivo central
do quadro, a narrativa nuclear, a vitória de Augusto em Áccio. Tal como
sucedera no episódio do “escudo de Aquiles”, também neste compete a um
deus forjar o escudo do herói. Tal tarefa cabe a Vulcano, o deus que na
mitologia romana desempenha uma função análoga à do Hefesto grego. Uma
vez mais, o objecto artístico sai de mãos privilegiadas a nível do saber. No
entanto, dever-se-á neste caso apontar uma diferença relevante: em vez do
artífice desenvolvendo uma actividade solitária, Vulcano surge aqui como
coordenador de um trabalho colectivo:

“Ponde tudo de lado – disse o deus – levai daqui os trabalhos começados ó Ciclopes do Etna, e voltai
para mim a vossa atenção. Temos de forjar armas para um bravo herói. Agora são precisas todas as vossas
forças, agora é preciso que nisso useis as vossas ágeis mãos, é agora necessária toda a vossa perícia de
mestres. Evitai delongas.”

Nada mais acrescentou. E logo todos eles se lançaram ao trabalho e dividiram a tarefa entre si. Flui o
bronze em torrentes, escorre o ouro, liquidifica-se o aço vulnífico na vasta fornalha. Modelam um enorme
escudo, um só contra todas as flechas dos Latinos, sobrepondo sete camadas cortadas em círculo.
Manejando os foles inchados pelo vento, uns fazem entrar e sair o ar; outros banham num lago o bronze
estridente. Geme o antro com as bigornas que aí se encontram. Todos eles, ao mesmo tempo, com muita
força erguem os braços a compasso e voltam a pesada massa com fortes tenazes. (Virgílio: 2003, 163)

Esta narrativa que antecede a descrição do escudo de Eneias, consagra,


também, a passagem para um momento histórico no qual se destaca uma
divisão social do trabalho, com os diferentes agentes desempenhando funções
específicas, todavia interagindo entre si. Tal não significa que o objecto criado
tenha perdido a sua dimensão enquanto signo enunciador de um saber
privilegiado; recorde-se que é a um deus - uma entidade detentora do saber
passado, presente e futuro - que compete a inscrição dos signos e das
narrativas no objecto. O narrador destaca este aspecto ao anteceder a
descrição desse mesmo objecto:

Neste [no escudo] gravara o Ignipotente a história de Itália e os triunfos dos Romanos, pois não
ignorava os vaticínios dos profetas nem desconhecia a eternidade vindoura. Aí gravara toda a descendência
da futura estirpe de Ascânio e, por ordem, as sucessivas guerras travadas. Aí gravara também uma loba que
pouco antes havia dado à luz, deitada no antro verdejante de Mavorte... (Ibidem, 167)

Passado, presente e futuro desvendam-se perante o olhar do


destinatário; ao futuro compete a consagração e justificação mítica de Roma
através da “descendência da futura estirpe de Ascânio,” o filho do herói Eneias
e de Creúsa. Os episódios iniciais - Rómulo e Remo, as várias fases do “rapto
das sabinas” - sucedem-se num ritmo rápido, prevalecendo a narração em
detrimento da descrição. O narrador não se limita a revelar ao destinatário o
objecto, assumindo-se também como intérprete daqueles episódios,
interpelando as personagens históricas, ou seja, a própria História, e assim se
consagrando como seu comentador. Observe-se a digressão entre parênteses
que interrompe a narração e na qual ele perturba a sua anterior aparente
neutralidade: “Não longe dessa cena, velozes quadrigas tinham desfeito em
pedaços Meto - tivesses tu, Albano, sido fiel à palavra dada!” (Ibidem, 167)

Já no episódio seguinte - a defesa do Capitólio contra os gauleses - a


narração e a descrição serão relevantes, conciliando o dinamismo da acção
com a vertente visual. Destaco um exemplo de cada uma destas categorias. A
nível da narração veja-se o seguinte passo: “E aí, volitando pelos pórticos
dourados, um ganso argênteo anunciava que os Gauleses por entre os
espinheiros avançavam e procuravam ocupar a cidade...” (Ibidem, 168) Na
sequência imediata da narração surge a descrição: “...[os Gauleses] defendidos
pelas trevas e pela dádiva da noite opaca: de ouro são os seus cabelos e de
ouro a sua veste; reluzem com raiados saios e os seus colos de leite são
rodeados por cadeias de ouro: duas lanças dos Alpes lhes rebrilham nas mãos
e com longos escudos protegem os corpos.” (Ibidem) Ao fazer esta distinção,
tenho consciência de que não existem categorias puras. Com efeito, mesmo
nos momentos onde a narração prevalece e, consequentemente, existe um
maior dinamismo onde se indicia a tensão e agitação decorrentes da
expectativa de um ataque eminente, a suspensão inerente à descrição não
deixa de se insinuar; veja-se, por exemplo, a expressão “ganso argênteo”, do
passo acima citado, na qual “argênteo” introduz a cor e, por extensão, acentua
a vertente visual. Em contrapartida, a descrição também não significa uma
suspensão absoluta da acção, como se depreende da expressão “por entre os
espinheiros avançavam”. Por outro lado, a dimensão visual deste segmento
denuncia um certo dinamismo através de verbos como “rebrilham” e “reluzem”.
Para além destes verbos, o visualismo destacar-se-á ainda devido às
referências constantes a cores, nomeadamente através de palavras ou
expressões como “trevas”, “noite opaca”, “colos de leite” e da recorrência da
palavra “ouro”.

Como acima referi, o centro do escudo (do quadro) é ocupado pela


narrativa da guerra de Áccio, ou seja, é ocupado pelos feitos de Augusto: “No
meio do mar, era possível divisar frotas de bronze – os combates de Áccio.”
(Ibidem, 169) A centralidade visual deste episódio é antecipada e reiterada por
um enquadramento especial, o da “imagem de um mar túmido - feita de ouro,
mas as ondas do mar espumavam com uma vaga alva”. Maria Helena Rocha
Pereira recorda a diferença entre esta representação e aquela que
observáramos no episódio do escudo de Aquiles:

Na Ilíada, o Oceano circundava todo o escudo de Aquiles, que representava um modelo


miniatural da Terra, a qual, segundo a concepção primitiva dos Gregos, era banhada a toda a
volta pelas águas daquele rio. No escudo de Eneias, era no meio, a separar estas cenas
periféricas da grande cena central, que ‘corria a vasta imagem do túmido pélago.’ (Rocha
Pereira, 1990: 304)

A representação do espaço denuncia a mudança na concepção do


mundo e na forma de os sujeitos históricos se compreenderem e posicionarem
face a ele.
A nível da localização espacial dos diferentes intervenientes neste
episódio, observa-se uma clara definição de campos através dos quais se
indicia a suspensão expectante face ao inevitável confronto:

De um lado, estava Augusto César conduzindo os povos itálicos à guerra, juntamente com os
senadores e o povo, com os Penates e os grandes deuses; estava de pé, na elevada popa do navio… . Noutra
parte, Agripa com deuses e ventos favoráveis, conduzindo do alto o seu exército; as suas têmporas refulgem
cingidas com a coroa naval ornada de esporões. De outro lado, António , com as hostes bárbaras e as suas
armas confusas, que regressava vitorioso dos povos da Aurora e do mar Vermelho…(Ibidem, 169)

Referi estarmos perante uma suspensão expectante; de facto, a


descrição destes diferentes segmentos é abruptamente interrompida para se
anunciar o início da batalha: “Ao mesmo tempo, todos se precipitam e toda a
planície do mar espuma, revolta pelos remos e pelos esporões com três dentes
dos navios.” (Ibidem) A intensidade do conflito denuncia-se quer pela sucessão
de pequenos quadros (micronarrativas) dentro do quadro principal (a narrativa
central), quer pela presença do universo divino, o qual, à semelhança do que
sucedia no espaço cultural grego, participa das discórdias humanas:
“Monstruosas figuras divinas de todas as espécies e o ladrador Anúbis
empunham armas contra Neptuno e Vénus, contra Minerva!” (Ibidem)

Entre os pequenos quadros acima mencionados, um, o da rainha,


deverá ser destacado pela forma como a dimensão visual surge associada a
uma intensa sensualidade. Observêmo-lo:

Até se via a própria rainha a entregar as velas aos ventos que invocara em seu socorro, soltando os
cordames uma vez mais. No meio do morticínio, pálida por pressentir a morte próxima, assim a esculpiu o
Ignipotente, a ser levada pelas ondas e por Jápix; à sua frente, entristecido, o Nilo de grande corpo, abrindo a
prega da túnica, estendendo as vestes e chamando os povos vencidos para o seu cerúleo regaço e para os
secretos esconderijos dos seus afluentes. (Ibidem, 170)

Após a vitória, surge o quadro da celebração do herói em Roma:


“Estremeciam de alegria as ruas, ao som dos jogos e dos aplausos. Em todos
os templos, um coro de matronas; em todos eles, altares; diante dos altares,
bois imolados jazem por terra.” (Ibidem) No final deste episódio, o herói
observa as “maravilhas” ali representadas, e “[s]em conhecer tais eventos,
alegra-se contudo com a sua imagem, colocando ao ombro a fama e os
destinos dos seus descendentes.” (Ibidem) Como escreve Maria Helena Rocha
Pereira, “encerra-se o arco cronológico aberto no Canto VIII. Eneias é Augusto,
é o antepassado do povo romano, é o símbolo de toda a história por
desenrolar, que terá em Áccio o seu ponto culminante. Uma história que faz
sentido, porque sobre a barbárie triunfa a civilização e a justiça.” (Rocha
Pereira, 1990 : 306)

Além desta evocação do escudo de Eneias, a epopeia apresenta dois


momentos de descrição de objectos artísticos: os murais do templo de Juno em
Cartago, e as portas do templo de Apolo. Estes dois exemplos poderão
inscrever-se em tradições acima analisadas; a descrição dos murais do templo
de Juno em Cartago aproxima-se da ekphrasis do escudo de Aquiles, o que
prefigurará, portanto, a descrição do escudo de Eneias; a descrição das portas
do templo de Apolo participa da tradição referente à evocação do palácio de
Alcínoo. Comecemos por observar o primeiro caso citado, os murais do templo
de Juno.

A descrição dos murais do templo de Juno em Cartago surge no Canto I


da Eneida. A frota de Eneias que partira da Sicília vê-se afastada do seu rumo
devido à acção do seu oponente, Juno, junto de Éolo, o deus dos ventos.
Funcionando como adjuvante do herói, Neptuno intervém impedindo o
naufrágio. Eneias será recebido por Dido que, no norte de África, se entrega à
construção de Cartago. O narrador começa por afirmar que Eneias “se espanta
com a prosperidade da urbe e admira a perícia dos artífices, num trabalho
conjunto, o empenho que põem nas suas obras, vê pintados por ordem os
combates de Ílion, as guerras que a fama já divulgara pelo mundo inteiro, os
filhos de Atreu e Príamo, Aquiles cruel para com uns e outros.” (Ibidem, 25)

Neste diálogo com os heróis gregos, o protagonista vê-se confrontado


com a representação de um passado épico que, inviamente, o prefigura e
justifica; Aquiles, signo das virtudes heróicas, destaca-se aqui. Observemos
como ele é representado e o efeito que as imagens das suas aventuras produz
num espectador especial, o prefigurado destinatário Eneias: “via como os
Gregos afugentavam por ali os combatentes, em volta de Pérgamo, como a
juventude troiana se lançava ao ataque, como Aquiles, com um elmo de
penachos acossava por acolá os Frígios com o seu carro de guerra.” (Ibidem)

O olhar de Eneias continua a percorrer os quadros onde se evoca toda


uma tradição heróica. Esta exercia uma função pedagógica (moral ?) em todos
aqueles que pretendiam emular os exemplos do passado, e deste modo
ascender, também eles, à condição de heróis. Daí que o acto de observar
aquelas narrativas significasse uma profunda empatia, o despertar de uma
emoção, o pathos:

Não longe daqui, reconhece choroso as tendas de panejamentos brancos de Reso,


atraiçoadas pelo primeiro sono, que o sanguinário filho de Tideu devastava com uma grande
carnificina, fazendo fugir os fogosos cavalos em direcção ao acampamento grego, antes que
provassem o pasto de Tróia e bebessem do rio Xanto. Noutra parte estava Troilo, que fugia,
perdidas as armas, infeliz jovem, estava a luta desigual com Aquiles: é arrastado pelos cavalos,
preso ao carro de guerra agora vazio, tombado de costas, segurando ainda as rédeas; o seu
cabelo e nuca são arrastados pelo chão, a sua lança, com a ponta virada para baixo, risca o pó.
(Ibidem; itálicos meus)

A descrição não se restringe à celebração dos heróis, abarcando


igualmente os rituais que designam todo um diálogo entre os mortais e o
universo dos deuses. Estes últimos nem sempre respondem aos anseios dos
humanos, como se depreende da forma como o olhar da deusa ignora as
suplicantes. Entretanto, as mulheres de Ílion dirigiam-se ao templo da hostil
Palas, com os cabelos em desalinho e usando o peplo à maneira dos
suplicantes, tristes e batendo com as mãos no peito. A deusa afastava os
olhos, fixando-os no chão. (Ibidem, 5-26)

Segue-se um dos momentos mais intensos da guerra de Tróia. O


destinatário é, uma vez mais, manipulado pelo pathos da cena descrita; na
empatia, o herói desvenda-se a si próprio, como se o quadro de um espelho
(de uma prefiguração) se tratasse:

Aquiles arrastara três vezes Heitor em volta das muralhas de Ílion e vendia o seu corpo
exânime a peso de ouro. Então é que ele solta um profundo gemido, do fundo do peito,
quando viu os despojos, o carro e o próprio corpo do amigo, e Príamo que estendia as mãos
desarmadas. Reconheceu-se também a si próprio, misturado com os chefes aqueus, as
tropas da Aurora e as armas do negro Mémnom. Pentesileia conduz os esquadrões das
Amazonas, com os seus escudos em forma de lua, pleno de furor bélico, fulgurante no meio de
milhares, atando o cinturão dourado sob a mama desnudada, aguerrida, a donsela ousa
combater contra homens. (Ibidem, 23; sublinhado meu)

A descrição das portas do templo de Apolo surge no início do Canto VI,


antes da descida de Eneias ao reino dos mortos. Aí, nos Campos das
Lágrimas, reconhecerá aqueles que a seu lado combateram. Nos Campos
Elísios, será iniciado no que o futuro reserva de heróico para os seus
descendentes; ainda ali, saberá, pela voz da Sibila de Cumas, quais as
punições prescritas no Tártaro. Segundo Maria Helena Rocha Pereira:
“Grandes modelos convidavam, …, a incluir na eopeia uma visão do além; o
Canto XI e o … Canto XXIV da Odisseia; os quatro mitos escatológicos de
Platão (o do Górgias; o do Fédon; o de Er, no final de A República; e o do
Fedro); entre os latinos, o Sonho de Cipião de Cícero.” (Rocha Pereira, 1990:
279)

A existência de uma ainda que breve descrição das cenas


representadas nas portas do templo, não deixa de ser significativa devido à
viagem iniciática que o protagonista então inicia. O narrador começa por aludir
às origens do templo, inscrevendo-a nos antecedentes míticos das aventuras
de Dédalo: “Dédalo, ao que se conta, ao fugir dos reinos de Minos, ousou
confiar-se aos céus com asas velozes; navegou através da insólita via em
direcção ao Norte e finalmente pousou, ligeiro, sobre a cidadela calcídica.” Na
sequência da chegada àquele lugar, “… consagrou-te, ó Febo, as asas que
tinham sido os seus remos e construiu enormes templos.” (Ibidem, 107)

Estamos, de novo, perante um referente, um objecto artístico, criado por uma


entidade destacada na hierarquia cósmica, o que o eleva a uma dimensão privilegiada a
nível da transmissão de saberes e... de virtudes; aqueles signos desvendam narrativas que
deverão ser emuladas pelos destinatários. Observemos a sua descrição:

Nas portas está representada a morte de Andrógeo, depois os Cecrópidas, coisa


digna de dó, constrangidos a sofrer o castigo, sete corpos dos seus filhos todos os anos. Lá
está a urna; as sortes foram tiradas. Defronte, elevando-se do mar, responde a terra de
Cnossos. Aqui está Pasífaa, que por cruel amor se submeteu furtivamente ao touro, e a raça
híbrida, a progénie biforme do Minotauro, testemunho da monstruosa paixão. Aqui o edifício,
aquele célebre trabalho, aquela armadilha inextricável; contudo o próprio Dédalo,
compadecido do grande amor da rainha, deslindou as falácias e os meandros da edificação,
encaminhando com um fio os passos às cegas. (Ibidem, 107-108)
Neste passo são revelados diferentes quadros que, por seu turno,
evocam outras tantas narrativas facilmente reconhecíveis da memória cultural
clássica. Verifica-se que este criador dos quadros (referentes artísticos) é uma
entidade privilegiada, e que esses referentes são também eles veiculadores de
uma mensagem a reter por aqueles que com eles se cruzam, isto é, pelos
destinatários. Neste passo, à semelhança do que sucedera no episódio do
“escudo de Eneias”, o narrador interfere com os seus comentários no processo
de transmissão do referente; ele não se limita a descrever, criando ênfases nos
passos que considera susceptíveis de gerar maior pathos junto do destinatário.

Algo de radicalmente distinto se desvenda na ekphrasis criada por


Catulo. “Vivacidade, emoção, irreverência, é uma série de atitudes
características de Catulo, partilhadas, certamente, pelo seu círculo de amigos.
Não admira, por isso, que Cícero pensasse mal deste grupo inovador, a quem
chamava os modernos.” (Rocha Pereira, 1990: 92) Esta síntese da postura do
poeta de Verona indicia qual o estatuto do criador e qual a dimensão do objecto
por ele criado. De facto, com Catulo não podemos situar nem o sujeito criador
nem o objecto criado na mesma esfera que temos vindo a considerar, já que o
artista não possui um estatuto superior (divino ou heróico); consequentemente,
o objecto criado - o referente artístico - não será um produto desse saber
privilegiado; em certa medida, somos transportados da esfera divina para a
humana. Digo “em certa medida”, já que a esfera divina não é ignorada,
desvendando o referente narrativas que se situam nesse domínio.

Com efeito, a descrição da coberta do leito de Tétis, que surge no


fragmento 64 dos poemas de Catulo, funciona como leitmotif para a evocação
da narrativa mitológica de Ariadne abandonada por Teseu na ilha de Naxos. A
descrição funciona, assim, em diálogo com uma memória mítica e literária, à
qual Ovídio regressará nas Metamorfoses. Os momentos maiores dessa
memória, sobre a qual Catulo funda a sua evocação poética, serão a Ilíada, de
Homero, a Teogonia, de Hesíodo, e as Vidas, de Plutarco. Ariadne participa
dessa memória quer enquanto adjuvante da fuga bem sucedida de Teseu do
labirinto de Creta após ter vencido o minotauro, quer pelo facto de ter sido por
ele abandonada na ilha de Naxos. Catulo recupera esta última vertente, visto
ser o pathos dela decorrente que melhor lhe permite explorar uma determinada
sensualidade.

A coberta com “figuras coloridas de homens de tempos idos, desvenda


com arte grandes feitos de heróis.” (Catulo, 1932: 55) O objecto ganha um
valor especial através de “arte” (“indicat arte” no original); mas esta é uma arte
criada pela acção humana, uma acção que, apesar de elevada, como referi,
não pertence à esfera divina. Catulo toma a narrativa mitológica para evocar
uma intensa sensualidade. Fá-lo, desde logo, através do objecto primeiro a
partir do qual o refrente se insinua, “o leito nupcial da deusa”, cenicamente
instalado “no centro do palácio” (Ibidem, 55). Signo da sensualidade e do
erotismo, o leito verá reiterada esta dimensão através daquela narrativa.

A sensualidade surge implícita e explicitamente: implicitamente, na


descrição das ondas do mar que, ora distantes a indiciam, ora mais próximas
envolvem o corpo de Ariadne, tocando as vestes a seus pés; explicitamente, na
descrição do corpo da jovem: “sem a fita delicada que sustinha os seus cabelos
loiros, sem o véu fino cobrindo o peito agora nu, sem a faixa cobrindo seus
seios brancos como leite; todos eles a seus pés, agitados pelas ondas do mar.”
(Ibidem, 56) Deverá ser ainda destacada a forma como o sujeito de enunciação
se expõe, assumindo-se enquanto verbalizador do objecto através do poema.
Acentua-se a arbitrariedade de um ponto de vista que descreve um
determinado referente e que assume um estatuto, um poder, uma opção a nível
do olhar. Estamos, portanto, perante um intermediário que, de uma forma
explícita se assume como tal, e, consequentemente, perante aquela que será
apenas uma percepção, a do poeta, e não perante a percepção. A noção de
que a descrição do objecto artístico pressupõe uma metalinguagem é, assim,
claramente assumida.

A derradeira extrapolação face aos signos que visualizam a narrativa


surge através do monólogo da Ariadne no qual ela verbaliza a sua dor face à
traição de que fora alvo. A reprodução da voz é obviamente algo que está
vedado ao objecto e que Catulo desvenda para assim dar ênfase ao pathos;
ela desenvolve-se, porém, substituindo-se, ao longo de quase setenta versos, à
reprodução dos ícones: “Levaste-me da minha terra, para agora me
abandonares numa praia deserta, pérfido, pérfido Teseu? Foges, ingrato, sem
temeres o poder dos deuses, e regressas a casa levando contigo o teu maldito
perjúrio! Nada pôde mudar a tua cruel resolução? ” (Ibidem, 58)

Observemos, em seguida, outro celebrado exemplo de ekphrasis, igualmente


distinto dos anteriores. Encontramo-lo em De rerum natura, de Lucrécio. Tito Lucrécio
Caro viveu no último século da era pagã, tendo-se suicidado entre 55 e 51 a. C. A ele se
deve o poema didáctico, composto em hexâmetros dactílicos, De rerum natura, no qual
desenvolve as teorias de Demócrito e Epicuro sobre a origem do cosmos. Ao longo de
seis livros, aborda a teoria atomista, detendo-se sobre a problemática do conhecimento e
do ser, e culminando na questão da origem e morte dos mundos.

Não será difícil de reconhecer em Lucrécio motivos e inquietações recorrentes


no início deste nosso novo milénio: melancolia; incredulidade face ao transcendente,
ateísmo até; compreensão do cosmos por uma via científica; selecção natural dos seres;
teorias do átomo (a própria noção contractual da sociedade emergente do Iluminismo).
Interessa-me, contudo, outro aspecto passível de ir ao encontro de outras tendências
contemporâneas, isto é, as tendências estéticas que podem ser reconhecidas na dimensão
visual existente num passo inicial do Livro I de De rerum natura.

A influência de Epicuro, acima mencionada, será relevante no seu pensamento,


embora não o liberte de um profundo pessimismo, não raro associado aos conturbados
tempos políticos que então se viviam, as lutas entre Marius e Sila. Também a Epícuro se
deve a concepção divina aqui exposta. À semelhança do que convencionalmente sucede
nos poemas épicos, também neste caso o poeta inicia o seu texto com uma invocação à
Musa, neste caso, Vénus. No entanto, Vénus surge essencialmente com uma dimensão
simbólica. A sua invocação à deusa inclui uma descrição devedora da representação
visual; observêmo-la:

A estes cruéis trabalhos preside Marte, o poderoso deus das armas, que amiúde vem lançar-se em
teus braços, vencido pela eterna ferida de amor. De olhos então erguidos para ti, com a nuca redonda deitada
para trás, ele dissimula perante ti o seu olhar ávido e intenso, sustendo a respiração perante teus lábios. Ah!
Mal ele, ó Deusa, repousa perto do teu corpo sagrado, envolve-o com teus braços, enquanto tua boca,
exaltando com doces palavras, lhe exige o repouso da paz, ó gloriosa, para os romanos. (Lucrécio, 1964: 20)

A sensualidade deste encontro dos


dois deuses é por demais evidente;
atente-se, porém, no facto de esta
sensualidade ser devedora de uma
descrição profundamente visual: a relação
espacial entre as personagens; a ligação
dos dois corpos; a forma como elas
interagem através do olhar. Lucrécio
parece recuperar aqui a noção de
ekphrasis na sua dimensão específica de
enargeia, isto é, na capacidade de tornar
vivo ao nosso olhar algo que, entretanto,
se perdeu e apenas a linguagem pode
evocar.
Concluo esta síntese com o exemplo da tapeçaria de Minerva e Aracne
em Metamorfoses, de Ovídio. Tem sido intenso o diálogo dos escritores
maiores da literatura ocidental com este livro de Ovídio; recordem-se, entre
outros, os nomes de Dante, Petrarca, Boccaccio, Chaucer, Ariosto, Tasso,
Camões, Cervantes, Lope de Vega, Shakespeare, Corneille, Milton, Racine,
Montesquieu, Voltaire, Goethe, Pushkin, Baudelaire, Verlaine, o próprio Jorge
de Sena, cujo livro homónimo foi objecto de atenção no capítulo anterior, e,
mais recentemente, Ted Hughes, cujas versões de Ovídio, Tales from Ovid
(1997), constituíram um notável êxito junto do público. Ainda a propósito de
Sena, recorde-se que ele escolhe quatro versos de Metamorfoses como a
primeira das epígrafes do seu livro (as restantes são, respectivamente, de
Manuel Soares de Albergaria, Goethe e Unamuno).

De igual modo, estes poemas têm funcionado como referente para obras
de pintores como Miguel Ângelo (A batalha dos centauros), Rafael (O triunfo de
Galateia), Ticciano (Vénus e Adónis), Breughel, O Velho (Paisagem com queda
de Ícaro), Veronese (Vénus e Adónis), Caravaggio (Narciso), Velásquez (As
fiandeiras), Rembrandt (O rapto de Prosérpina), Corot (Biblis), Rodin
(Metamorfoses de Ovídio), Dalí (Metamorfose de Narciso) ou Picasso
(Metamorfoses de Ovídio).

Finalmente, na música, o diálogo estender-se-ia a compositores como


Monteverdi (Orfeo), Händel (Acis e Galateia), Bach (a cantata bwv 201, A luta
entre Febo e Pã, sobre libreto de Picander, na qual a narrativa mítica serve de
suporte a uma sátira a um crítico musical), Richard Strauss (Dafné), Britten
(Seis metamorfoses de Ovídio), ou ainda a comédia musical My fair lady,
concebida a partir de Pigmaleon, de George Bernard Shaw, o qual, por seu
turno, remonta a Ovídio.

As Metamorfoses oferecem dois momentos relevantes no âmbito desta


análise a nível da interacção específica entre a poesia e as artes: as
tapeçarias de Minerva e de Aracne, e a descrição do palácio do Sol; a primeira,
devedora de Catulo, e a segunda, de Homero e de Virgílio. Eventual inspirador
do acima referido quadro de Velásquez, As fiandeiras, este episódio acolhe a
estratégia narrativa elaborada por Catulo na coberta do leito de Tétis. Ovídio
exibe dois processos criativos respectivamente, o de Minerva e o de Aracne,
evocadores de um espaço e de actividades convencionalmente femininos
(bordar = criar). Estes processos decorrem à medida que a descrição desses
mesmos processos progride: “Alí também se incrusta o ouro nos fios flexíveis /
e na tela desenrola-se uma história antiga.” (Ibidem, 193)

A primeira tela é da responsabilidade de Minerva (Palas) e tem como


objecto a criação da cidade Atenas, designada a partir de Cécropo, o seu
mítico fundador: “Palas borda … / a antiga disputa sobre o nome do país.”
(Ibidem, 193) Na figuração mítica das doze divindades - Juno, Vesta, Minerva,
Ceres, Diana, Vénus, Marte, Mercúrio, Júpiter, Neptuno, Vulcano, Apolo -
destaca-se espacialmente a de Júpiter, ao centro - “Doze divindades, com
Júpiter no centro, estão sentadas / com augusta majestade em altos assentos”
(Ibidem, 1983); através desta localização espacial designa-se o Poder primeiro
do deus, algo que será reiterado através da evocação da sua figuração: “a
imagem de Júpiter é régia.” (Ibidem, 193)

Para além de Júpiter, entre as divindades ali expostas, o poeta destaca


Palas/Minerva. A criadora da tapeçaria representa-se a si própria com “um
escudo, … uma lança afiada, / um capacete” (Ibidem, 193). Após a figuração
do deus dos deuses, o poeta evoca a imagem da deusa, composta por vários
signos marciais e, consequentemente, de poder, dando ênfase ao seu estatuto
numa hierarquia cósmica. A deusa acentua este estatuto; fá-lo todavia de uma
forma indirecta, quer através da representação de uma Vitória, quer recorrendo
a narrativas que indiciam a punição reservada àqueles que, revoltando-se,
ignoram essa mesma hierarquia: “Porém, para que a rival da sua glória
entenda com exemplos / que prémio pode esperar de tão louco atrevimento”
(Ibidem, 193).

As quatro narrativas são metonimicamente lembradas através das


respectivas resoluções, todas elas designando punições várias; entre estas
destacar-se-á a de Antígona “que se atreveu a competir / com a esposa do
grande Júpiter, a qual, a régia Juno / transformou numa ave” (Ibidem, 193-4).
Espacialmente, as narrativas são localizadas nos quatro cantos do quadro,
enquadrando a imagem central, a do Poder. Tanto a representação espacial,
como os signos e as narrativas escolhidos, enviam uma mensagem a Aracne, a
rival de Minerva, lembrando-lhe que não pode competir com o universo dos
deuses, e recordando-lhe qual o castigo destinado aos que questionam a
hierarquia cósmica. Após a conclusão da tapeçaria de Minerva, ironicamente
rematada com ramos de oliveira simbolizando a paz, segue-se a tapeçaria de
Aracne, onde ela representa a narrativa de Europa: “A meónide desenha
Europa enganada pela figura de um touro” (Ibidem, 194). Esta narrativa insere-
se, por um lado, num diálogo intertextual mais remoto com o Livro II (versos
833 a 875) das Metamorfoses; por outro, ela constitui uma resposta,
igualmente indirecta, à tapeçaria de Minerva. O primeiro aspecto mencionado
pelo poeta a que importa aludir, é o do realismo figurativo, já que esta
representação simularia a própria realidade: “dir-se-ia que o touro era real e
real o mar.” (Ibidem, 194) A simulação não se restringe a uma técnica de
repesentação, percorrendo todo o espaço visual através das diferentes
narrativas ali descritas ou evocadas.

Além do diálogo intertextual acima referido, existe ainda um diálogo


extratextual com narrativas míticas, a primeira das quais é a do rapto de
Europa por Zeus. Apaixonado por Europa, Zeus decide seduzi-la. Dissimula-se
tomando a figura de um touro para evitar ser descoberto por Hera. Será assim
que se acerca da jovem e das suas amigas, seduzindo-a com a sua beleza e
com o seu aspecto dócil. Quando esta se encosta ao seu dorso, ele parte
repentinamente em direcção à praia arrastando-a consigo.

O fragmento que Aracne reproduz descreve o que se passa após o


rapto: “Europa parecia olhar a terra que havia deixado para trás, / parecia gritar
para as suas companheiras, parecia temer o contacto da água / que se erguia
junto a ela” (Ibidem, 194). Há, portanto, uma omissão das circunstâncias
iniciais da narrativa (uma elipse), já que essas informações relativamente à
história participavam da memória cultural colectiva, tornando facilmente
reconhecível o fragmento descrito e o contexto do qual participa.
Dever-se-á acentuar o facto de, contrariamente a situações análogas
como a de Io, Europa não ser punida por esta ligação. Com efeito, entre os
descendentes famosos desta união encontra-se Minos, rei de Creta, e pai de
Ariadne. Deste modo, Aracne responde indirectamente a Minerva quanto aos
receios de uma punição por se elevar a um lugar e a um estatuto superiores na
hierarquia cósmica.

Esta é, como vimos, uma narrativa de simulação e de sedução. De igual


forma, os restantes quadros, entre os quais se destacam os de Leda e Eólia,
evocam narrativas de simulação e sedução entre divinos e humanos.
Ironicamente: “A todos estes [Aracne] deu a sua própria figura e a das suas
regiões.” (Ibidem, 194) Ainda ironicamente: “A última parte da tela, …, / tinha
flores e heras entrelaçadas.” (Ibidem, 194) Ora, a hera era um dos signos de
Dioniso, e simbolizava a persistência do desejo. As duas telas e a
representação inserem-se num espaço conflitual. Ao poder marcial de Minerva,
responde assim, subtilmente, com o poder da sedução.

Observemos, em seguida, a descrição do palácio do Sol que abre o


Livro II das Metamorfoses:

O palácio do Sol elevava-se sobre altas colunas,


reluzente de oiro brunido e piropo semeando chamas;
cobria o seu tecto reluzente marfim, e as duas portas
de prata irradiavam luz prateada. Superava a matéria
o objecto artístico, pois Vulcano havia ali cinzelado
os mares, desenhando as terras no centro,
o globo terrestre e o céu pendendo sobre ele.
As águas têm os seus azulados deuses, o musical Tritão,
o mutável Proteu, Egeu que com seus braços oprime
os gigantescos dorsos das baleias, Dóris e suas filhas,
algumas das quais se vê a nadar, outras, sentadas
num penhasco, secam seus verdes cabelos, e algumas
navegam sobre peixes; não têm todas o mesmo rosto,
distintos apenas como é usual em irmãs.
A terra sustenta homens e cidades, selvas e feras e rios
e ninfas e outras divindades campestres. Por cima
surge a imagem de um céu resplandescente e seis signos
do Zodíaco na porta direita, outros tantos na esquerda. (Ibidem, 91)
Após termos lido pormenorizadamente outras descrições de objectos
artísticos, não será difícil de reconhecer algumas influências. Destaca-se,
como é óbvio, a do escudo de Aquiles – veja-se a concepção cósmica e a
consequente localização espacial dos signos a ela inerentes, embora não seja
também de estranhar o eco da descrição das portas do templo em Cumas que
surge no Canto VI (14-41) da Eneida, de Virgílio, onde é narrada a história de
Dédalo. Também nos versos de Metamorfoses acima transcritos se denota
uma preocupação no sentido de, a par da colocação espacial dos diferentes
elementos, se explicitar a cor que ora acentua o carácter maravilhoso do
objecto, ora distingue as personagens. Igualmente o carácter material da
produção é denunciado através do trabalho do deus-artífice; porque, à
semelhança de outros exemplos observados, o artífice é, ele próprio, um
deus, também assim, indirectamente, se dá ênfase ao próprio objecto. À
semelhança dos exemplos que o precederam, este signo, pela ekphrasis
elevado a objecto artístico, revela-se enquanto espaço de inscrição do
discurso transcendente, divino. Assim se insinua o seu relevo e se desvenda
uma origem.

Verbalizando um objecto que apenas no texto se realiza; na sua função


mnemónica de preservar uma memória, uma tradição que dê sentido a uma
identidade; concebendo cenários onde o idílico se insinua; consagrando
identidades históricas e míticas, desigando a paideia ou a mera sensualidade;
da arbitrária convenção à ilusão do signo natural; na descontextualizada
expressão de Horácio (“ut pictura poesis”) ou na morna redução de
Simónides (a poesia é um quadro com voz, e a pintura é poesia silenciosa), se
desvenda quão nucleares são, para a descoberta de uma relevante vertente
da identidade poética moderna, alguns antecedentes mitológicos.
CAPÍTULO 3
Superando equívocos,
do romantismo à contemporaneidade

Laocoön*, do escritor setecentista alemão Gotthold Ephraïm Lessing


(1729-81), é um ensaio fundamental para a evolução que o diálogo entre a
Literatura e as Artes visuais irá conhecer na modernidade inaugurada pelo
Romantismo. O seu carácter incontornável deve-se, desde logo, ao facto de
contrariar toda uma tradição da ekphrasis através da desmontagem de um
equívoco, aquele que resulta da acima referida leitura descontextualizada do
enunciado horaciano, “ut pictura poesis”. Antes de vermos de que forma ele
procede a essa desmontagem, debruçar-nos-emos sobre o contexto que o
motiva.

O discurso de Lessing deve ser entendido no confronto com Johann


Joachim Winckelmann (1717-1768), autor de Geschichte der Kunst des
Altertums (História da Arte da Antiguidade), uma obra datada de 1764. No
prefácio desta obra Winckelmann declara o seguinte: “A História da Arte … que
ofereço ao público não é uma simples narração cronológica das revoluções
vividas pelos antigos. Utilizo a palavra na acepção mais lata que ela tem na
língua grega, sendo objectivo meu oferecer um resumo histórico de um sistema
de arte.” (Lichtenstein, 1997: 226, tradução minha) Com efeito, a sua História
preenche um certo vazio a este nível; refira-se que Plínio era, ainda, a fonte
primeira do conhecimento da arte clássica. Tal não significa, porém, que esse
conhecimento se restringisse às fontes tradicionais. Descobertas
arqueológicas, como a da estatueta conhecida como Laocoonte, cuja memória
e conhecimento se deviam exclusivamente ao texto, tinham passado a
constituir um novo elemento de estudo do passado. A par da redescoberta de
todo um universo artístico, cultural e social, proporcionada pelo contacto directo
com artefactos vindos à luz do dia, surgia uma entidade com um estatuto

* Só utilizarei a designação em português, Laocoonte, quando me referir à personagem e à estátua.


particular, o “antiquário”. A esta profissão, estritamente ligada a esse mundo
emergente, está associado um conceito específico, o de especialização. Por
fim, importa ter presente que a História da Arte que, durante o Renascimento, e
salvo excepções como Dürer, se centrara fundamentalmente em Itália,
adquirira entretanto uma dimensão europeia e cosmopolita. É, também, neste
contexto que surge o “antiquário”, entidade possuidora de uma erudição
específica, centrada em objectos ou sistemas particulares.

Vivendo numa época de reformulação de conhecimentos e de


aparecimento de novas disciplinas, a obra de Winckelmann revela uma
intenção especulativa e sistemática que deverá, naturalmente, ser entendida no
âmbito da informação então disponível. A sua perspectiva é diacrónica, dando
ênfase a um processo de afirmação, apogeu e decadência, ao qual, por seu
turno, se associa uma narrativa, a da afirmação de um ideal civilizacional
representado pela Grécia antiga. O ideal estético que lhe subjaz é, obviamente,
neoclássico, sustentando uma evidente estrutura piramidal, uma hierarquia de
valores e funções; desta hierarquia participam, com funções determinadas e
limites decorrentes dos meios a elas inerentes, as diferentes formas de
expressão artística. Ainda no âmbito de uma concepção profundamente
hierarquizada, Winckelmann defende o primado da escultura sobre a pintura,
ao qual atribui razões históricas e estéticas: a perfeição da escultura precede a
da pintura; além disso, ainda de acordo com esta perspectiva, devedora,
recorde-se, do neoplatonismo, a escultura encarnará o belo ideal:

A escultura e a pintura atingiram mais cedo um certo grau de perfeição do que a


arquitectura. A razão é a de que, não tendo podido imitar nada de real e encontrando-se
fundada nas regras gerais das proporções, é mais ideal do que as outras. A escultura e a
pintura, tendo começado pela simples imitação, encontraram as regras estabelecidas no
homem; por seu turno, a arquitectura, obrigada a procurar as suas por uma infinidade de …
combinações, só poderia fixá-las após aprovação. A escultura precedeu a pintura… Plínio
considera que a pintura não vai além da guerra de Tróia… (Ibidem, 420)

Regressemos, então, a Lessing e observemos, em seguida, o signo que


empresta o título à obra do escritor alemão. O Laocoonte constituiu uma das
descobertas arqueológicas mais relevantes do Renascimento italiano. No dia
14 de Janeiro de 1506, foi encontrada, nas ruínas do palácio de Tito, uma
estátua representando um episódio narrado no Livro II, da Eneida, de Virgílio, e
remontando ao cerco de Tróia (o que, naturalmente, nos conduz à Ilíada).
Neste episódio relata-se como Laocoonte, um sacerdote de Apolo, advertiu os
troianos para o perigo que poderia significar introduzir na cidade o cavalo de
madeira que o inimigo simulara ter deixado para trás. Como se sabe, nem as
palavras de Cassandra, nem as suas, conseguiram persuadir os troianos. Em
contrapartida, o sacerdote foi alvo da ira dos deuses que enviaram à terra duas
serpentes com o objectivo de o punir.

Divergem as lendas sobre quem terá sido o autor da vingança, Atena, ou


o próprio Apolo. Divergem, também, sobre quem terá sido o primeiro alvo do
ataque das serpentes: os filhos do sacerdote, ou ele próprio. Esse aspecto é,
todavia, irrelevante para esta análise. Relevante, sim, é o facto de Laocoonte
ser o destinatário desse violento ataque. Como poderia, então, ser
representada a sua reacção? Espelhando a intensidade do sofrimento sofrido?
Ou revelando uma capacidade (moral) de resistência a esse mesmo
sofrimento? Porque o objecto – a estatueta - havia desaparecido, restava
confiar na descrição realizada pelos escritores; isto é, confiar na ekphrasis, no
seu sentido mais radical da recuperação de um objecto pela escrita, pelo texto,
para o seu conhecimento.

Lessing retoma estas questões em Laocoön - sobre as fronteiras da


pintura e da poesia , publicado em 1766, dois anos depois, portanto, da obra de
Winckelmann, tomando-as como impulso para a sua reflexão sobre o diálogo
entre a literatura e as artes. O subtítulo - sobre as fronteiras da pintura e da
poesia - convoca a tradição horaciana, ao mesmo tempo que explicitamente
denuncia a sua diferença: este é um estudo sobre as especificidades da pintura
e da poesia, sobre aquilo que as distingue, que as afasta; concebendo-as,
portanto, enquanto entidades com estruturas próprias. Ergue-se, assim, contra
a tradição da “ut pictura poesis”, segundo a qual a pintura e a poesia eram
entendidas como artes afins, modos de representação comparáveis, fundados
nos mesmos princípios e partilhando das mesmas regras, num constante
retorno a Simónides. Ora, Lessing vai propor algo de radicalmente diferente ao
pretender delimitar qual o domínio da pintura e qual o domínio da poesia. Para
ele, a diferença fundamental entre as duas formas de expressão artística
prende-se com a sua própria natureza, com os pressupostos que lhes serão
endógenos: a pintura é uma arte de imagem (isto é, sustentada pelo conceito
de espaço), enquanto que a poesia é uma arte de linguagem (isto é,
sustentada pelo conceito de tempo). A pintura e a poesia encontram-se, deste
modo, dependentes destes pressupostos: aquilo que o poeta pode contar, o
pintor pode, apenas, eventualmente, mostrar.

A análise de Lessing organiza-se a partir de dois exemplos: Laocoonte e


Sacrifício de Ifigénia. O Laocoön era considerado um exemplo único da beleza
expressiva, de pathos. De acordo com a interpretação de Winckelmann, o
escultor teria representado Laocoonte com a boca entreaberta, desviando-se,
portanto, da imagem narrada (exposta) por Virgílio que acentuava os seus
lancinantes gritos de dor. O escultor daria assim ênfase à dimensão heróica de
uma personagem capaz de controlar a dor, devido à sua grandeza de alma.
Lessing opõe-se a esta interpretação. Segundo ele, o artista teria optado por
outra leitura da situação, não se condicionando pela narração, como seria
inevitável (?) na descrição feita pelo poeta; afinal, o excesso de expressão
poderia destruir a harmonia do conjunto. Por seu turno, o Sacrifício de Ifigénia
expõe outro tipo de contenção: o véu ocultando o rosto de Agamémnon.
Lessing justifica esta opção do pintor pela sua recusa de expor o horror, o qual,
pelo excesso e fealdade, contraria a beleza que, para os clássicos, seria
inerente às artes plásticas:

[N]o … Sacrifício de Ifigénia … [o pintor] deu a cada um dos assistentes um grau


conveniente de tristeza, no entanto, cobriu o rosto do pai, o qual expressaria um grau supremo
de desespero. … Ele [o artista] sabia que o desespero adequado a Agamémnon, como pai,
deveria traduzir-se em expressões horríveis. Levou a expressão o mais longe possível sem pôr
em causa nem o belo nem a dignidade. Poderia facilmente omitir a fealdade, … mas porque o
tema não o permitia, que lhe restava senão lançar um véu sobre ela? Aquilo que não ousou
pintar, deixou adivinhar. Concluindo, ao fazê-lo, o artista sacrificou-se perante a beleza. Este é
um exemplo que mostra, não como podemos levar a expressão para além dos limites da arte,
mas sim como nos devemos submeter à lei primeira da arte, a lei da beleza. (Ibidem, 240)

Como este passo esclarece, o ideal representado baseia-se na


contenção, no conceito de decorum. A intensidade emocional não deveria ser
levada demasiado longe: na contenção, no decorum, insinua-se uma certa
dimensão ética. O “bathos” sobrepõe-se ao “pathos”. Segundo Lessing, este
exemplo não se restringiria ao Sacrifício de Ifigénia:

Se aplicarmos esta lei ao Laocoön, aperceber-nos-emos dos meus objectivos. O artista


queria representar a maior beleza possível compatível com a dor física. Esta, em toda a sua
violência deformadora, não podeia aliar-se àquela. O artista foi, por isso, obrigado a atenuá-la,
a moderar o grito, transformando-o num gemido, não porque o grito indicasse uma alma
inferior, mas porque ele transmitia ao rosto um aspecto repugnante. Imaginem o Laocoön de
boca aberta e imaginem. Façam-no gritar e vejam. Esta é uma imagem que inspira compaixão
porque encarna, simultaneamente, o belo e a dor… (Ibidem)

Como se constata no passo acima citado, ao transitar para o Laocoön,


Lessing associa a representação decorosa à representação do belo, porque,
segundo ele, o “… artista grego pintava apenas o belo; mesmo o belo vulgar, o
belo dos géneros inferiores era para ele apenas um tema acidental, um
exercício, um passatempo. O que deveria encantar na sua obra era a perfeição
do objecto em si …” (Ibidem, 238) Esta perfeição pressupunha a referida
dimensão ética, na qual as características heróicas das personagens se
revelavam. A forma como essas características eram figuradas, dependia do
meio, isto é, da expressão artística, e, consequentemente, da representação
em causa: “Na poesia … a fealdade da forma, através da mudança que torna
sucessivas as suas partes coexistentes, perde quase inteiramente o seu efeito
repulsivo; deste ponto de vista, ela deixa, por assim dizer, de ser fealdade e
pode unir-se mais intimamente a outras aparências para produzir um efeito
novo e particular. Na pintura, pelo contrário, a fealdade conserva intactas todas
as suas forças …” (Ibidem, 242-3)

Lessing parte do decorum, da contenção, transita para a noção de belo, e,


por fim, para a especificidade de cada forma de expressão artística [“… os
Antigos … não se esqueceram de precisar que … as duas artes diferem quer
pelo objecto quer pelo modo de imitação.” (Ibidem, 425)]; deste modo, o meio
de representação implica um tipo particular de representação: cada arte está,
afinal, limitada pelo meio que lhe é endógeno:

… como se não existisse diferença alguma, os críticos modernos retiraram desta


conformidade de efeitos as conclusões mais incongruentes, quer encerrando a poesia nos
estritos limites da pintura quer deixando a pintura abarcar toda a esfera da poesia. Tudo o que
é bom para uma deve sê-lo para outra; tudo o que agrada ou desagrada a uma deve
necessariamente agradar ou desagradar à outra; e, imbuídos desta ideia, cheios de segurança,
pronunciam opiniões superficiais: ao compararem a obra de um poeta à de um pintor sobre o
mesmo assunto, consideram que as diferenças são erros, dos quais incriminam um ou outro,
consoante as suas preferências recaiam sobre a poesia ou sobre a pintura. (Ibidem)

Num eco de Simónides, este equívoco da crítica sua contemporânea teria,


além disso, repercussões a nível de um desvirtuar dos próprios discursos
artísticos:

… esta crítica viciosa, até certo ponto, tem induzido em erro os próprios artistas. A ela se
deve a origem, na poesia, ao género descritivo, e, na pintura, à alegoria: pretendeu-se fazer da
poesia pintura com voz, sem saber precisamente o que ela pode e deve pintar, e da pintura
um poema mudo, antes de se ter examinado em que medida ela pode exprimir ideais gerais
sem se distanciar do seu destino natural e sem se tornar uma escrita arbitrária. (Ibidem)

Será perante este cenário de equívocos, críticos e criativos, que se


compreende o propósito de Lessing, por ele próprio explicitado no Prefácio que
tenho vindo a citar: “Lutar contra este falso gosto e contra estas opiniões mal
fundamentadas, é o principal objectivo das páginas que se seguem.” (Ibidem)
Lessing procede a uma desmontagem sistemática dos modos miméticos,
delineada através de exemplos significativos, por ele colhidos na Antiguidade
Clássica. Fá-lo, no capítulo XVI, considerando, desde logo, a diferença radical
que subjaz à representação literária e à pictórica: a palavra e a cor. Vejamos
como: “… a pintura emprega, para as suas imitações, meios ou signos
diferentes da poesia, a saber, formas e cores dispostas no espaço, enquanto
que esta se serve de sons articulados que se sucedem no tempo...” (Ibidem,
427) Uma vez mais, a distinção entre uma arte suportada pelo tempo e outra
suportada pelo espaço surge na génese conceptual que delimita os campos
das duas formas de expressão estética.

A elaboração teórica de Lessing assenta no pressuposto “incontestável [de]


que os signos devem ter uma relação natural e simples com o objecto
significado. “ (Ibidem) Esta “relação natural” entre signo e referente não deve,
todavia, ser entendida no âmbito da reflexão platónica exibida no Crátilo. Para
Lessing, a “relação natural” decorre do facto de “os signos justapostos
pode[re]m exprimir apenas objectos justapostos ou compostos de elementos
justapostos, tal como os signos sucessivos apenas podem traduzir objectos ou
os seus elementos sucessivos.” (Ibidem) Conclui Lessing: “Os objectos, ou os
seus elementos, que se justapõem, chamam-se corpos. Consequentemente, os
corpos, com as suas características aparentes, são o objecto da pintura. Os
objectos, ou os seus elementos, dispostos em ordem de sucessão, chamam-
se, em sentido lato, acções. As acções são o objecto da poesia.” (Ibidem)

Mais adiante, Lessing explicita a distinção radical entre ambas através da


escolha do referente:

Para as suas composições, que pressupõem uma simultaneidade, a pintura pode explorar
apenas um instante da acção, devendo, deste modo, escolher o mais fecundo, aquele que fará
compreender melhor o instante que o precede e aquele que lhe sucede. De igual forma, para
as suas imitações sucessivas, a poesia pode explorar apenas uma das características dos
corpos, devendo, deste modo, escolher aquela desperta a imagem mais sugestiva num
determinado contexto… (Ibidem, 427)
Conclui-se que, para Lessing, a escolha do referente, a nível da pintura,
deve ser entendida no âmbito do seu carácter exemplar, o qual decorre de uma
escolha face a um fio diacrónico, a uma relação com o passado e com o futuro:
o referente funciona como um espaço (de reserva textual) que foi determinado
algures num tempo passado, encerrando inevitáveis consequências e
percursos ulteriores. Por seu turno, a escolha do referente a nível da poesia
deve ser entendida no âmbito de uma capacidade de sugestão (visual –
enargeia?), de perspectiva funcional face à economia da narrativa. A aparente
dicotomia exposta por Lessing configura, afinal, uma subtil interpenetração
entre os dois conceitos - espaço e tempo, nas estratégias de representação
das duas formas de expressão artística.

Ao formular distintos espaços de representação, ancorados em relações


específicas com os conceitos de espaço e de tempo; ao definir a subtil
interpenetração entre os dois conceitos nestas estratégias de representação;
ao entendê-las, afinal, como microcosmos, Lessing prepara o solo da
modernidade do qual irão emergir as sensibilidades românticas.

Com efeito, ao longo dos tempos, a ekphrasis havia dependido da


dimensão narrativa e de uma capacidade (a da palavra), a de permitir ao leitor
visualizar um signo ausente; associou o objecto à história do qual ele participa,
inserindo-o, portanto, num fluir diacrónico, com a memória de um passado que
justifica o presente - o instante da representação - e antecipa um futuro; ela
significaria instante de um devir. A representação asociar-se-ia, portanto, à
estase, ao momento de uma tensão (trágica) onde um derradeiro conflito e um
desenlace se insinuam. Recorde-se que a ekphrasis se caracterizava,
recorrentemente, pelo facto de ser imaginária, isto é, de não depender de um
objecto com uma existência reconhecível, palpável, comprovável (o Laocoonte
só é descoberto no século XVI, sendo, até então, apenas conhecido através
das evocações literárias). Os próprios tratados de pintura, como o de Alberti,
podem chegar mesmo a ser concebidos, não a partir dos objectos artísticos,
mas das suas descrições pelas narrativas, pelo texto, pela palavra.
Contrariamente ao que se poderia pensar, a escultura e a pintura podem,
assim, ter sido concebidas, durante um largo espaço de tempo, como artes
efémeras. A recuperação da sua imagem dependeria, então, apenas, do logos.

É neste contexto que o museu adquire uma função única. Com efeito, a
sua criação terá um impacto profundo na reformulação do olhar sobre as obras
de arte visuais. Desde logo, o museu permite a preservação do objecto,
evitando a sua danificação por causas várias, e eventual destruição. Além
disso, a sua exposição pública desempenha uma função social e pedagógica.
Ela permite ao leigo - ao público - tomar contacto com elaborações estéticas
particulares que, de alguma forma, definem sensibilidades epocais. Numa
perspectiva sincrónica, esses objectos artísticos, expostos no museu, podem
ser significativos de um epistema, denunciando ou insinuando segmentos do
espírito de um tempo; funcionam, portanto, como microcosmos, pequenos
universos textuais, formulando narrativas autónomas. A par desta exposição
face a um olhar inocente, não especializado, exigem-se leituras especializadas,
capazes de entender quer os signos, as narrativas, os símbolos - a memória
cultural a partir da qual esses textos se sustentam, quer a originalidade da
articulação desses elementos. Os episódios bíblicos e os mitos clássicos
surgem obviamente como solos privilegiados dessa memória.

Numa perspectiva diacrónica eles permitem observar a evolução de


discursos, isto é, a forma como determinados espaços artísticos se
transformam (progridem ?) através da superação de estratégias específicas de
representação. Ao instituirem-se como memória de uma evolução criativa, os
museus revelam uma dimensão dinâmica e histórica do percurso artístico. Se,
por um lado, os objectos simulam a reactualização de um instante perdido no
tempo - a obra de arte parece ter o poder de perpetuar um determinado
momento, por outro, eles denunciam a transitoriedade desse instante - a obra
de arte lembra o desaparecimento físico do seu criador, daqueles que a
poderão ter inspirado, das sucessivas gerações que a observaram.
Curiosamente, estas questões objectivas, suscitadas pela exposição dos
objectos artísticos, entroncam nas idiossincrasias características das
sensibilidades românticas.
Tentemos observá-las através de exemplos colhidos em três poetas
românticos, William Wordsworth, Percy B. Shelley e John Keats. Comecemos
por William Wordsworth. Expoente maior da chamada primeira geração
romântica inglesa, a ele se deve “Elegiac Stanzas, Suggested by a Picture of
Peele Castle, in a Storm, Painted by Sir George Beaumont”. Escrito entre o
final da Primavera e o princípio de Verão de 1806, este poema surge logo após
aquele que é considerado o momento mais significativo da sua carreira: entre

1789, data da primeira edição de Lyrical Ballads , e 1806, altura em que


termina a primeira versão de The Prelude .

Conhecido pela sua faceta de pintor paisagista, Sir George Beaumont foi
patrono do poeta, tendo com ele mantido uma relação de amizade ao longo de
toda a vida. O quadro de Beaumont, cuja reprodução Wordsworth utilizou como
frontespício para o segundo volume dos seus poemas editados em 1815, tem
como referente o castelo de Peele, situado numa ilha, junto a Rampside, no
Lancashire. Wordsworth passou aí um mês de férias, em 1794, pouco depois
de ter visitado a França revolucionária e de ter escrito os poemas de
Descriptive Sketches (veja-se como este título denuncia a dimensão visual,
avizinhando-se da ekphrasis, que virá a marcar muita da sua poesia).

A primeira questão que se coloca é a de saber se Wordsworth elabora


uma ekphrasis do quadro de Beaumont. Ao lermos os primeiros versos,
constatamos que o poeta opta por recuperar a imagem que retém na memória
desse Verão; é ela, e não o signo, a representação visual (criada por
Beaumont) que inicia o poema: “I was thy neighbour once, thou rugged Pile! /
Four summer weeks I dwelt on sight of thee: / I saw thee every day;” (Hayden,
1994: 209) Num poema escrito alguns anos antes, com o título algo extenso de
“Lines Composed a Few Miles above Tintern Abbey, on Revisiting the Banks of
the Wye during a Tour, July 13, 1798,” e talvez por isso mesmo conhecido
apenas por “Tintern Abbey”, Wordsworth acentuara a importância da
recuperação écfrásica operada pela memória: “The picture of the mind revives
again: / While here I stand…” (Ibidem, 67)

Independentemente de leituras fascinantes que associam este processo a uma valorização


neoplatónica do signo, como a de Murray Krieger, interessa constatar aqui que, à semelhança de “Tintern
Abbey,” “Peele Castle” não é desencadeado pela descrição do referente. Não é, aliás, a descrição do quadro
que funciona como objecto do poema em si. Mais do que uma descrição, Wordsworth sustenta a percepção
poética em representações subjectivas, construídas pela sua memória (análoga à dimensão mnemónica da
ekphrasis). O exercício da memória questiona os limites de um discurso específico, o discurso poético,
nomeadamente naquilo que se prende com a sua eventual capacidade de reproduzir uma experiência
suscitada por um referente; neste caso, o próprio castelo. A enunciação é dominada pela prosopopeia [“Thy
form was sleeping on a glassy sea.” (Ibidem, 209)], como não é raro na ekphrasis. Já o contexto natural em
que esse referente se insere parece reproduzir a serenidade eufórica da “aurea mediocritas”:

So pure the sky, so quiet was the air!


So like, so very like, was day to day!
Whene’er I looked, thy Image still was there;
It trembled, but it never passed away.

How perfect was the calm! It seemed no sleep;


No mood, which season takes away, or brings:
I could have fancied that the mighty Deep
Was even the gentlest of all the gentle Things. (Ibidem)

Repare-se no facto de, nestes versos, ser evocada a imagem (“thy


Image”), isto é, uma representação (subjectiva do referente), construída por
uma entidade, o poeta; uma representação, como tal, sujeita às suas
idiosssincrasias, ao pathos que define instantes da sua vida; é esta
representação e não a reprodução do próprio referente, que aqui está em
causa. O poeta coloca, assim, a ênfase numa percepção subjectiva, numa
leitura (confessional, se evocarmos o pathos que a envolve, como adiante
veremos). Em seguida, transita para uma outra representação possível do
referente através de um meio que não é o seu, a pintura: “Ah! THEN, if mine
had been the Painter’s hand,/ To express what then I saw; and add the gleam, /
The light that never was, on sea or land, / The consecration, and the Poet’s
dream;” (Ibidem) Como referi, esta não é a reprodução visual do referente, mas
sim a representação de uma experiência subjectiva, a do poeta, ancorada na
linguagem. Ao reposicionar-se no hipotético estatuto do pintor, recorrendo aos
seus instrumentos específicos de percepção e representação do real (a função
da cor, por exemplo), Wordsworth uma vez mais dá ênfase à subjectividade,
simultaneamente denunciando, na esteira de Lessing, a especificidade dos
meios. Prossegue, da seguinte forma, a designação dessa subjectividade:

I would have planted thee, thou hoary Pile


Amid a world how different from this!
Beside a sea that could not cease to smile;
On tranquil land, beneath a sky of bliss.

Thou shouldst have seemed a treasure-house divine


Of peaceful years; a chronicle of heaven; -
Of all the sunbeams that did ever shine
The very sweetest had to thee been given.

A Picture had it been of lasting ease,


Elysian quiet, without toil or strife;
No motion but the moving tide, a breeze,
Or merely silent Nature’s breathing life. (Ibidem)

A serenidade com que o animismo reproduz a Natureza, corresponde,


afinal, à visão do passado, à visão algo inocente do sujeito (poeta). No
presente, o olhar, e, consequentemente, a representação, seriam, de facto,
outros:

Such, in the fond illusion of my heart,


Such Picture would I at the time have made:
And seen the soul of truth in every part,
A stedfast peace that might not be betrayed.

So once it would have been, -‘tis so no more;


I have submitted to a new control:
A power is gone, which nothing can restore;
A deep distress hath humanised my Soul.

Nor for a moment could I now behold


A smiling sea, and be what I have been:
The feeling of my loss will ne’er be old;
This, which I know, I speak with mind serene. (Ibidem, 209-210)

Nestas estrofes tem lugar uma alteração qualitativa por parte do sujeito,
a qual é motivada por uma ausência (“A power is gone, which nothing can
restore”), e por uma intensa dor (“A deep distress” e “A feeling of loss”). Apesar
desta dor (à qual o sujeito considera dever-se a sua “humanização”) do pathos,
o discurso caracteriza-se pela serenidade. Regista-se ainda a ironia: agora
estamos perante “a mind serene”, enquanto antes a representação da Natureza
surgia marcada pela serenidade; no entanto, esta representação não
corresponderia à realidade, ou, pelo menos, à sua percepção lúcida. Conclui-se
que o poema enuncia a progressão para um estádio de lucidez.

Para melhor entender o movimento que leva a uma alteração da


tonalidade do discurso, importa recordar as primeiras palavras do título deste
poema, “Elegiac Stanzas”. Repare-se que estas palavras não designam
apenas um subgénero poético, a elegia; elas definem uma tonalidade, uma
atmosfera, que envolve o poema. A que se deve esta tonalidade? À morte de
John, o irmão do poeta, num naufrágio que teve lugar a 6 de Fevereiro de
1805. Numa carta a James Losh, escrita a 16 de Março desse ano,
Wordsworth lembra a morte do irmão: “I feel that there is something cut out of
my life which cannot be restored.” (Ibidem, 555) Esta é, afinal, a frase que o
poeta transfigura no verso onde denuncia a perda, acima citado (“A power is
gone, which nothing can restore”).

Quando, na estrofe seguinte, numa segunda apóstrofe (a primeira teve


como destinatário o Castelo) evoca o pintor [“Then, Beaumont, Friend! Who
would have been the Friend, / If he had lived, of Him whom I deplore,” (Ibidem,
210)], o contexto não é já o do diálogo entre as artes (ou os seus limites), nem
o da representação específica realizada pela pintura, mas sim o da morte de
um amigo: tanto o poeta como Beaumont haviam perdido, afinal, um amigo,
John. Será no verso seguinte que o poema assume explicitamente a sua
vertente ecfrásica, contrastando a percepção inicial do poeta com a do pintor
[“This work of thine I blame not, but commend; / This sea in anger, and that
dismal shore” (Ibidem)], e celebrando a lucidez por este revelada:

O ‘tis a passionate Work!” - yet wise and well,


Well chosen is the spirit that is here;
That Hulk which labours in the deadly swell,
This rueful sky, this pageantry of fear!

And this huge Castle, standing here sublime,


I love to see the look with which it braves,
Cased in the unfeeling armour of old time,
The lightning, the fierce wind, and trampling waves (Ibidem)

Para Wordsworth, a questão central não será, portanto, a da diferença


de meios de representação (uma arte de espaço e uma arte do tempo, de que
falava Lessing), mas sim a de uma lucidez passível de representar a percepção
do objecto: o olhar do pintor é inicialmente mais lúcido do que o do poeta; este
só se torna lúcido após conhecer a dor motivada pela morte do irmão. A
representação da Natureza realizada por Beaumont corresponde à sua
essência, e não à perspectiva idealizada pelo poeta. Após concluir a descrição
do objecto, o poema termina com a assunção de um olhar desencantado:

Farewell, farewell the heart that lives alone,


Housed in a dream, at distance from the Kind!
Such happiness, wherever it be known,
Is to be pitied; for ‘tis surely blind.

But welcome fortitude, and patient cheer,


And frequent sights of what is to be borne!
Such sights, or worse, as are before me here. -
Not without hope we suffer and we mourn. (Ibidem)

Estamos perante um caso óbvio de hibridez textual: um registo


essencialmente confessional, oscilando entre uma tonalidade decorrente da
elegia e a descrição onde a ekphrasis se insinua. Wordsworth vê o quadro
como um meio para, e não um fim em si; ele funciona como leitmotif para uma
reflexão sobre o seu olhar sobre a Natureza e sobre a vida. Se atentarmos na
terceira palavra do título do poema, “Suggested,” constatamos que, desde o
início, aquele signo constitui um estímulo, um impulso para a sua reflexão. No
âmbito desta reflexão surge, algo dissimuladamente, o conflito entre as duas
formas de expressão artística, poesia e pintura. Com efeito, o (pre)domínio do
discurso, do logos, é questionado na quarta estrofe (“… if mine had been the
Painter’s hand”), num confronto entre o “quadro verbal”, preservado na
memória, e o “quadro real”, o de Beaumont. Este constitui uma presença
subliminar ao longo do texto, impondo, por fim, a presença dos signos que,
embora confinados à representação de um instante, denunciam aquela que
seria a verdadeira essência da Natureza, e, consequentemente, a condição
humana, “Not without hope we suffer and we mourn.”
Algumas décadas depois, em 1846, Wordsworth escreverá um soneto
intitulado “Illustrated Books and Newspapers”, onde irá expor uma diferente
concepção, ao hierarquizar as diferentes formas de expressão artística. Nesta
concepção, o discurso, o logos, destaca-se das restantes artes, “Discourse was
deemed Man’s noblest attribute / And written words the glory of his hand…” Já
uns anos antes, em 1820, escrevera um soneto sobre um quadro de Leonardo
da Vinci, no qual refere a deteriorição de que ele foi alvo devido à acção do
tempo. Esta postura indicia a valorização da ekphrasis, do discurso poético, do
logos: a palavra escrita pode, afinal, preservar aquilo que a pintura, a a
estatuária, ou a arquitectura, apesar da sua materialidade, não conseguem
fazer.

Algo de idêntico surgira em “Ozymandias”, um soneto publicado em


1818, da autoria de um poeta da chamada segunda geração romântica, Percy
B. Shelley. A onomástica do título envia para a versão grega de User-mmat-er,
ou seja, Ramsés II, aquele que no Êxodo é referido como O Faraó. Shelley

poderá ter tido em mente um ícone com um significado político imediato para
os ingleses, a estátua de Wellington, o herói de Waterloo. Se considerarmos
esta eventual ressonância, constata-se que Shelley utiliza com ironia o signo
heróico para denunciar aquilo que considera ser a efemeridade do poder
político. Trata-se de um topos algo recorrente na poesia romântica, ao qual um
dos nossos poetas maiores de formação anglo-saxónica, Álvaro de Campos,
regressará em “Gazetilha”:

Dos Lloyd George da Babilónia


Não reza a história nada.
Dos Briands da Assíria ou do Egipto,
Dos Trotzkys de qualquer colónia
Grega ou romana já passada
O nome é morto, inda que escrito.
Outro tema romântico surge, por vezes, ligado à recente elevação da
arqueologia ao estatuto de ciência, e os signos tangíveis que começam a vir à
luz do dia. Com efeito, estas vertentes entroncam na estética romântica que vê
na ruína um topos privilegiado para reflexão; daí a celebração do artefacto
como testemunho narrativo de um passado remoto.

Shelley inicia este soneto através de um contexto de elocução coloquial:


o encontro entre duas entidades, o sujeito de enunciação e uma personagem
com quem se cruza, o viajante - “I met a traveller from an antique land / Who
said:” (Holloway, 1969: 36) Atente-se, desde logo, na forma como o sujeito de
enunciação se apaga, transferindo a enunciação (o seu poder a nível do
domínio do discurso) para essa outra entidade, como se de uma entrada em
cena se tratasse. Esta novo enunciador, ou, porque esta é uma estratégia de
enunciação dramática, esta dramatis persona, inicia a sua narrativa. Atente-se,
ainda, noutra dimensão: esta persona possui um estatuto particular, é “a
traveller from an antique land”. Porque esta é uma terra antiga, o saber que ele
transmite é privilegiado - radica nas tradições de um lugar com História, logo,
com muitas histórias. A sua dimensão narrativa significa, portanto, saber e
sabedoria. É este enunciador privilegiado que vai transmitir algo ao primeiro
sujeito de enunciação, entretanto remetido ao estatuto de destinatário da
narrativa.

A enunciação prossegue com a descrição da ruína: “Two vast and


trunkless legs of stone / Stand in the desert… Near them, on the sand, / Half
sunk, a shattered visage lies” (Ibidem). Do carácter colossal, erecto e
imponente que terá designado o poder do signo histórico, o Faraó, apenas
persistem (“stand”) fragmentos, as pernas. A dimensão fragmentária do corpo
(“trunkless”) é acentuada pelo rosto, também ele fragmentado. Será neste que
outro poder, ironicamente, se enuncia: “whose frown, / And wrinkled lip, and
sneer of cold command, / Tell that its sculptor well those passions read…”
(Ibidem) Ironicamente, porque a expressão sarcástica e intimidatória que
designava o poder, é hoje um mero despojo. Ironicamente, porque outro poder
maior se insinua, o do artista, o escultor que soube captar a fixar na pedra a
teatralidade do poder que a expressão exibe. Ironicamente, porque o poder
político é hoje mera ruína, e a sua memória é preservada apenas devido à arte:
“Which yet survive, stamped on these lifeless things, / The hand that mocked
them, and the heart that fed…” (Ibidem)

A ironia acentuar-se-á com a entrada em cena de mais uma dramatis


persona, o próprio Ozymandias. Em seguida, a sua voz, que outrora
expressara o seu poder e a sua vontade, é evocada (visualizada) através do
epigrama, da (auto)caracterização transcrita pelo escultor: “And on the pedestal
these words appear: / ‘My name is Ozymandias, king of kings: / Look on my
works, ye Mighty, and despair!’” (Ibidem) Numa das estátuas encontradas no
Ramesseum, o templo mortuário em Tebas, encontra-se a inscrição que
transcrevo em inglês para podermos observar a analogia com o poema de
Shelley: “I am Ozymandias, King of Kings. If anyone would know how great I
am and where I lie, let him surpass any of my works.” Como se vê, o poeta
incorpora esta frase no poema através de uma paráfrase irónica que lhe
permite satirizar os exercícios, ou expressões, de poder, nomeadamente
político, que ele considera serem efémeros. Resta o silêncio da natureza na
sua forma mais simples, despojada: “Nothing beside remains. Round the decay
/ Of that colossal wreck, boundless and bare / The lone and level sands stretch
far away.” (Ibidem)

O processo de destruição designa uma hierarquia: na base da pirâmide está o mais efémero (o poder
político); em segundo lugar está aquilo que, apesar de fragmentário, persiste (o poder do artista que trabalhou
a pedra); em terceiro lugar, o poder de quem enuncia todo este processo (o poder do poeta). Por fim, no topo,
para além da actividade humana, e a ela indiferente, persiste a Natureza.

Shelley prolongará esta temática em “On the Medusa of Leonardo da


Vinci”, um poema que, como o próprio título indica, dialoga com um quadro
então atribuído a Leonardo da Vinci. Shelley contesta o estatuto daquelas
artes que muitos outros consideravam perenes, a escultura, a arquitectura, a
pintura, enfim, as artes visuais. Ora, uma das vozes mais representativas da
sua geração concebeu uma ekphrasis, considerada um dos momentos maiores
deste subgénero, na qual expressa um ponto de vista radicalmente divergente.
Refiro-me a “Ode on a Grecian Urn”, de John Keats.
Mencionei acima a importância social e cultural que o museu assume no
século XIX. Ora, este poema é um devedor particular desta instituição. Em
1816, o British Museum adquiriu a colecção de Lord Elgin, os chamados Elgin
marbles, um conjunto de fragmentos do Pártenon por ele trazidos da Grécia no
início do século.
Esta exposição teria um profundo impacto no universo cultural britânico,
desencadeando reacções antagónicas que oscilaram entre o mais entusiástico
deslumbramento e a mais radical decepção. Assumindo este último partido,
Byron chamar-lhes-ia “Phidian freaks”. O caso de Byron é, aliás, curioso, já
que, embora não tivesse manifestado interesse pela ekphrasis (registam-se
apenas um passo no canto quarto de Childe Hardold’s Pilgrimage, e um poema
sobre um busto da autoria de Canova), expressava uma profunda admiração
pela escultura e considerava o ideal de beleza grego um autêntico arquétipo a
este nível.

Fragmento dos Elgin Marbles

Regressemos, porém, a Keats. Em 1817, um ano, portanto, após a


abertura da exposição, impressionado por esses artefactos clássicos, Keats
escreve “On Seeing the Elgin Marbles”, um soneto onde revela quanto esses
objectos o impressionaram. Apesar da fragmentária perenidade daqueles
signos, o poeta não deixa de se sentir confrontado com a sua própria
efemeridade, com a sua própria mortalidade: “... each imagin’d pinnacle and
steep / Of godlike hardship, tells me I must die / Like a sick Eagle looking at the
sky.” (Garrod, 1956: 376) Essa impressão não significa, porém,
deslumbramento. Comecemos por atentar numa palavra, “imagin’d”. Porque de
fragmentos se trata, a recomposição do objecto, no seu conjunto, só será viável
através da imaginação do sujeito. Por fim, o efeito que a descoberta nele tem, é
paradoxal [“Such dim-conceived glories of the brain / Bring round the heart an
undescridable feud; (Ibidem)]; com essa atmosfera se conclui o poema: “So do
these wonders a most dizzy pain, / That mingles Grecian grandeur with the rude
/ Wasting of old Time...” (Ibidem) O passado, por muito glorioso que o seja, é
irrecuperável; dele, e da sua glória, restam apenas vestígios (uma sombra)
pelos artefactos insinuados e, eventualmente, celebrados: “a shadow of a
magnitude”. (Ibidem)

Enquanto este soneto remete para o encontro do poeta com um conjunto


de objectos, a mais celebrada ekphrasis romântica, “Ode on a Grecian Urn”,
não se deve ao impulso motivado por um só objecto, mas sim por um conjunto
de signos, entre os quais se encontram os Elgin marbles e alguns quadros do
pintor Claude Lorraine. Não estamos, portanto, nem perante a reprodução de
um objecto, mas sim perante a fabulação verbal de um eventual *objecto virtual
com o qual o sujeito de enunciação estabelece um diálogo. Observemos o
poema na íntegra:

I
Thou still unravish’d bride of quietness,
Thou foster-child of silence and slow time,
Sylvan historian, who canst thus express
A flowery tale more sweetly than our rhyme:
What leaf-fring’d legend haunts about thy shape
Of deities or mortals, or of both,
In Tempe or the dales of Arcady?
What men or gods are these? What maidens loth?
What mad pursuit? What struggle to escape?
What pipes and timbrels? What wild ecstasy?

II
Heard melodies are sweet, but those unheard
Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;
Not to the sensual ear, but, more endear’d,
Pipe to the spirit ditties of no tone:
Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave
Thy song, nor ever can those trees be bare;
Bold Lover, never, never canst thou kiss,
Though winning near the goal – yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever wilt thou love, and she be fair!

*
Pela leitura deste e de outros aspectos, o ensaio de Cleanth Brooks (“Keats’s Sylvan
Historian”) continua a ser, para mim, essencial.
III
Ah, happy, happy boughs! That cannot shed
Your leaves, nor ever bid the Spring adieu;
And, happy melodist, unwearied,
For ever piping songs for ever new;
More happy love! More happy, happy love!
For ever warm and still to be enjoy’d,
For ever panting, and for ever young;
All breathing human passion far above,
That leaves a heart high-sorrowful and cloy’d,
A burning forehead, and a parching tongue.

IV
Who are these coming to the sacrifice?
To what green altar, O mysterious priest,
Lead’st thou that heifer lowing at the skies,
And all her silken flanks with garlands drest?
What little town by river or sea shore,
Or mountain-built with peaceful citadel,
Is emptied of this folk, this pious morn?
And, little town, thy streets for evermore
Will silent be; and not a soul to tell
Why thou art desolate, can e’er return.

V
O Attic shape! Fair attitude! With brede
Of marble men and maidens overwrought,
With forest branches and the trodden weed;
Thou, silent form, dost tease us out of thought,
As doth eternity: Cold Pastoral!
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,
‘Beauty is truth, truth beauty,’ – that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.(Ibidem, 209-10)

O sujeito de enunciação começa por interpelar o objecto, dissimulando a


sua presença num conjunto de questões a ele dirigidas. O óbvio silêncio do
objecto denuncia o carácter reflexivo (melancólico) deste discurso: as
perguntas participam de um processo de interpretação do signo (“urn”) e das
narrativas que o compõem (as diferentes figuras nele inscritas, os seus gestos,
os eventuais contextos dos quais emergem), em busca de uma narrativa que
desvende o seu mistério. O sujeito de enunciação parece recusar ao seu poder
primeiro, o da própria enunciação, transferindo-o para o objecto, para as suas
narrativas, para as histórias que ele parece contar. O sujeito simula assim a
sua diluição, operando uma transferência de poder (um processo de
transferência definido por Keats numa carta através da expressão “poeta
camaleão”).
Impõe-se uma breve elipse para convocar segmentos das cartas onde Keats
revela os seus conceitos-base, “negative capability” e a dramatis persona “camelion
poet”. Antes de mais a carta a George e Thomas Keats, datada de 21 de Dezembro de
1817, onde o conceito de “negative capability” surge inserido no âmbito de uma
tradição dramática que tem em Shakespeare uma expressão primeira: “... what quality
went to form a Man of Achievement especially in Literature & which Shakespeare
possessed so enormously – I mean Negative Capability, that is when man is capable
of being in uncertainties, Mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact &
reason.” (Abrams, 1993: 831) A máscara participa aqui da especulação ontológica.
Este conceito será ampliado com o de “camelion poet”, exposto numa carta a Richard
Woodhouse, datada de 27 de Outubro de 1818:

As to the poetical Character itself, (I mean that sort of which, If I am any thing, I am a Member;
that sort distinguished from the wordsworthian or egotistical sublime; which is a thing per se and
stands alone) it is not itself –it has no self – it is every thing and nothing- It has no character – it enjoys
light and shade; it lives in gusto, be it foul or fair, high or low, rich or poor,mean or elevated – It has as
much delight in conceiving an Iago as Imogen. What shocks the virtuous philosopher, delights the
camelion Poet. It does no harm from its relish of the dark side of things any more than from its taste for
the bright one; because they both end in speculation. A Poet is the most unpoetical of any thing in
existence; because he has no Identity – he is continually in for – and filling some other Body – The
Sun, the Moon, the Sea and Men and Women who are creatures of impulse are poetical and have about
them an unchangeable atrrribute – the poet has none; no identity – he is certainly the most unpoetical
of all God’s Creatures. (Ibidem, 836)

Regressemos ao poema para observar como nele se projectam estes


conceitos. Numa estratégia decorosa, o sujeito prescinde de revelar as suas
“emoções”, ou as suas histórias. O objecto surge então como “historiador” de
um passado idealizado, com um poder de expressão superior ao do poeta
(“Sylvan historian, who canst thus express / A flowery tale more sweetly than
our rhyme”). O sujeito inverte o seu estatuto tradicional e simula remeter-se ao
papel de mero leitor, como o ilustram as perguntas que torrencialmente
invadem os últimos seis versos da primeira estrofe. Será que esta estratégia
significa o seu desaparecimento? Quando reparamos nas perífrases que
designam o objecto nos primeiros versos, de imediato deparamos com uma
ênfase em signos que, contrariamente ao que seria de esperar, enviam para,
como diria Lessing, uma arte do tempo e da (ausência da) verbalização (o
silêncio): o objecto é descrito como se tivesse sido captado pelo sujeito num
instante de um (lento – “slow”) fluir do tempo, começando a destacar-se
palavras que enviam para a dimensão verbal que, ainda segundo Lessing,
seria característica do texto e não do objecto artístico. A suspensão indicia uma
tensão: a “noiva” está condenada a sê-lo eternamente, sem nunca conhecer a
consumação do amor. Veja-se a ironia: na perenidade do objecto, que lhe
permite persistir no tempo, reside, simultaneamente, a sua punição.

Um vaso grego

Este diálogo inicial tem lugar com o objecto no seu conjunto, só depois se transita para o diálogo com
os signos – com as pequenas narrativas - que ele encerra. À semelhança do que já observámos no exemplo
primeiro do escudo de Aquiles, o texto assume uma dimensão espacial, apresentada através do “plano de
conjunto”, transitando, em seguida, para diferentes zooms, isto é, para as tais diferentes narrativas. Nestas
são reiteradas, ao longo da segunda e da terceira estrofes, tanto a “dimensão sonora” (apelando à importância
da imaginação, no confronto com a música verdadeiramente executada) como o amor jamais consumado. A
própria Primavera se revela, também ela, pela sua eternidade, uma punição. O ritual social (estrofe IV),
eventualmente de celebração, é entendido na consequência que advém da sua suspensão no tempo, a
“cidade fantasma”. Uma vez mais a ironia: enquanto o vaso grego tem histórias para contar, a cidade (que
todavia só existe na imaginação do poeta) ficará para sempre em silêncio, sem alguém que conte a sua
própria história. A ironia insinua-se, de novo, no final do poema: “Cold Pastoral” retoma a perífrase inicial,
agora desmontando a euforia do género (e das fábulas e das atmosferas a ele ligadas) através de “cold”. Até o
sublime, expresso na afirmação do penúltimo verso, é sabotado pela ironia deste objecto que, surgindo na
afirmação e transmissão de um saber, acaba por se revelar na disforia inerente à sua própria natureza: a
perenidade (a superação do tempo e da morte) significa suspensão (ausência de vida).

“Ode on a Grecian Urn” evidencia a problematização da tradição da


ekphrasis e da produção teórica inaugurada pela modernidade: as artes do
espaço e as artes do tempo. O olhar do poeta é irónico e distanciado; não se
sente deslumbrado pelo Belo, propondo uma reflexão sobre as virtualidades do
objecto. Deste modo, Keats utiliza a ekphrasis, não apenas para recuperar o
que se perdeu ou que é de conhecimento limitado (recorde-se que este é um
signo por ele inventado) e para o transmitir a outrém; ele interroga a natureza
da própria ekphrasis, os seus limites, as suas virtualidades, nomeadamente no
que significa a capacidade de preservar algo no tempo.
Sintetizando este breve percurso por alguns poetas românticos ingleses,
perguntar-se-á, então, de que modo é que a ekphrasis se enquadra nas
perspectivas românticas sobre o diálogo entre as artes e sobre a relação do
sujeito (e das artes) com o tempo?

Como referi, a criação de museus permitiu um contacto próximo com


muitos objectos que se julgavam perdidos. Embora isso significasse a
consagração de uma perenidade, os estragos provocados pela acção do tempo
(da Natureza, tantas vezes celebrada numa inocente euforia pelos românticos)
que, no limite, tornaria o objecto num mero fragmento, constituiu motivo de
reflexão e de interrogação.

Estes poetas recorrem, assim, à ekphrasis numa perspectiva


abrangente: de reflexão estética, questionando a hierarquia neoclássica entre
as diferentes formas de expressão artística, e a perenidade ou efemeridade
como instrumento de valoração das mesmas; de meditação ontológica,
especulando sobre a relação do sujeito com o tempo (aí se indicia o eventual
confessionalismo); e de questionação teórico-crítica.

Os diálogos oitocentistas iniciais entre a poesia inglesa e as artes


visuais, foram, assim, profundamente devedores de circunstâncias culturais
várias que, pela primeira vez, permitiram revelar os signos do passado. A par
desta revelação desvenda-se um paradoxo: se, por um lado, é óbvia a
perenidade, a persistência do objecto no tempo, enquanto signo onde se
inscreve a memória de circunstâncias históricas que entretanto se diluíram, por
outro, o objecto pode indiciar-se apenas no que resta da sua dissolução, na
ruína, no fragmento a partir do qual se pode imaginar a ficção do conjunto (em
certos casos - Vénus de Milo ou Vitória de Samotrácia - a estética, o belo,
consagram-se nessa mesma natureza fragmentária).

À medida que o século XIX vai decorrendo, e que o paradigma (cultural,


político, social) moderno evolui, certas dimensões, resultantes da Revolução
Industrial, impor-se-ão. Entre estas destaco o espaço urbano (a cidade,
nomeadamente enquanto objecto de configuração estética) e o surgimento de
um novo público associado à massificação. Simultaneamente, uma nova forma
de expressão artística vai emergindo, “imago lucis opera expressa” (de acordo
com a versão latina de Roland Barthes em “Camera Lucida”)... a fotografia.

A representação do espaço urbano e a reflexão sobre a modernidade, nas suas múltiplas vertentes,
serão marcadas, tanto no plano crítico/teórico como no da criação poética, por Charles Baudelaire. A ele se
deve um olhar sobre a cidade que orientará esteticamente gerações ulteriores; recorde-se a sua recuperação
por Eliot em The Waste Land.

Num espaço e num tempo em rápida mutação, e, naturalmente, de efemeridade, Baudelaire atribui
uma função particular à pintura, que destaca enquanto instrumento de perenidade. O poema “Les Phares”
desvenda esta dimensão ao consagrar um conjunto de pintores aos quais se deveriam percepções
particulares da humanidade (“de notre dignité” [Baudelaire, 1964: 42]) que perdurariam para sempre: Rubens,
Leonardo da Vinci, Rembrandt, Miguel-Ângelo, Puget, Watteau, Goya e Delacroix. Tal não significa, porém,
que o poeta escreva um número significativo de ekphrasis. Com efeito, estas restringir-se-ão,
fundamentalmente, ao poema “Une Martye – Dessin d’un maitre inconnu” e à série “Épigraphes”, constituída
por três poemas “Vers pour le portrait de M. Honoré Daumier”, “Lola de Valence” e “Sur le Tasse en Prison –
D’Eugène Delacroix”. No entanto, se considerarmos o impacto que a dimensão visual tem na sua poesia, de
imediato repararemos na radical interiorização que Baudelaire realiza do discurso pictórico, numa nítida
aproximação às inovações realizadas por Turner e prolongadas pelos impressionistas. Essa interiorização é,
desde logo, explicitada na designação que atribui a uma secção de Les Fleurs du Mal - “Tableaux Parisiens,” a
qual reflecte a convocação do discurso pictórico na representação da cidade, orientando esteticamente a
própria leitura dos poemas. Esta representação consagra duas vertentes, a especificidade do movimento
urbano e a coloração deste espaço, na sua novidade marcada pela industrialização.

Em “Les Sept Vieillards” a azáfama do movimento citadino é evocada através da expressão


“Fourmillante cité”, à qual acresce o investimento emocional daqueles que a habitam: “cité pleine de rêves, /
Où le spectre en plein jour raccroche le passant!”… //...“Un brouillard sale et jaune inondait tout l’espace”.
(Ibidem, 109) Como referi, a cor d(est)a cidade é algo de novo, e Baudelaire capta essa novidade em
inúmeros poemas devedores do discurso pictórico. Em “L’amour du Mensonge” a recente luminosidade da
cidade invade e transforma a percepção que o sujeito expõe da interlocutora que, devido à prosopopeia,
funciona como agente de criação artística - “Quand je contemple, aux feux du gaz qui colore, / Ton front pale,
embelli par un morbide attrait, / Où les torches du soir allument une aurore” (Ibidem, 119; itálico meu). A
euforia do objecto é explicitamente identificada com as suas virtualidades ecfrásicas: “Et tes yeux attirants
comme ceux d’un portrait” (Ibidem; itálico meu). Na sequência de uma certa tradição neoplatónica, que
percorrera já o romantismo, insinua-se igualmente aqui uma relevante noção teórica, a de correspondência, à
qual regressarei mais adiante.
Noutros poemas, a coloração da percepção que se oferece do espaço é radicalmente marcada pela
industrialização. Destaco os exemplos retirados de “Paysage” – “Il est doux, à travers les brumes, de voir
naître / L’étoile dans l’azur, la lampe à la fenêtre, / Les fleuves de charbon monter au firmament / Et la lune
verser son pale enchantement.” (Ibidem, 104) e de “Le Crépuscule du Matin” – “C’était l’heure .../.../ Où,
comme un oeil sanglant qui palpite et qui bouge,/ La lampe sur le jour fait une tache rouge;” …/…/... “L’aurore
grelottante en robe rose et verte / S’avançait lentement sur la Seine déserte” (Ibidem, 124). Já em “Les Petites
Vieilles” a dimensão visual, a que se associa, uma vez mais, a agitação específica da cidade, insinua a disforia
da percepção do sujeito: “… un fantôme débile / Traversant de Paris le fourmillant tableau” (Ibidem, 111) “… à
l’heure où le soleil tombant / Ensanglante le ciel de blessures vermeilles” (Ibidem, 112). Será essa percepção
que domina “Le Cygne” – “Paris change! Mais rien dans ma mélancholie / N’a bougé! Palais neufs,
échafaudages, blocs, / Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie” (Ibidem, 108) e “Le Jeu” – “Voilà le
noir tableau qu’en un rêve nocturne / Je vis se dérouler sous mon oeil clairvoyant.” (Ibidem, 117) A percepção
é essencialmente concebida por um olhar que assimilou uma estética pictórica, projectando-a na configuração
que o discurso poético realiza da modernidade, através daquele que é um dos seus signos por excelência, a
cidade.

Atentemos seguidamente no plano crítico/teórico. Os seus textos críticos


desvendam a especificidade da modernidade e das necessárias estratégias da
sua apreensão pelas artes. Num conjunto de artigos publicado no Figaro, entre
Novembro e Dezembro de 1863, sob o título genérico de Le Beau, la Mode et
le Bonheur, Baudelaire defende a necessidade da captar o zeitgeist, o espírito
de um tempo presente, “sa qualité essentielle de présent” (Lichtenstein, 1995:
251), naquele que ele considera ser um paradigma marcado pela
transitoriedade e pela efemeridade: “La modernité, c’est le transitoire, le fugitif,
le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et
l’immuable.”(Ibidem, 252). Por outro lado, num artigo inacabado intitulado “L’Art
Philosophique,” e só publicado postumamente, Baudelaire aborda uma vez
mais a problemática da modernidade colocando a descodificação da sua
singularidade na percepção: “Qu’est-ce que l’art pur suivant la conception
moderne? C’est créer une image suggestive contenant à la fois l’objet et le
sujet, le monde extérieur à l’artiste et l’artiste lui-même.... Toute bonne
sculpture, toute bonne peinture, toute bonne musique, suggère les sentiments
et les rêveries qu’elle veut suggérer.” (Ibidem, 436) A escrita continuaria,
porém, a ser o espaço por excelência do logos: “Mais le raisonnement, la
déduction, appartiennent au livre.” (Ibidem) Segundo ele, “chaque époque [a]
son port, son regard et son geste,” (Ibidem, 253), cabendo à obra de arte
desvendar “la morale et l’esthétique du temps.” (Ibidem, 251) Tal significa o
recurso aos signos, à linguagem, do presente, e a recusa da mera reprodução
de estratégias de representação do passado; a pintura é a forma de expressão
artística por ele escolhida para exemplificar este ponto de vista:

Si nous jetons un coup d’oeil sur nos expositions de tableaux modernes, nous sommes
frappés de la tendance générale des artistes à habiller tous les sujets de costumes anciens.
Presque tous se servent des modes et des meubles de la Renaissance, comme David se
servait des modes et des meubles romains. Il y a cependant cette difference, que David, ayant
choisi des sujets particulièrement grecs ou romains, ne pouvait pas faire autrement que de les
habiller à l’antique, tandis que les peintres actuels, choisissant des sujets d’une nature générale
applicable à toutes les époque, s’obstinent à les affubler des costumes de Moyen Âge, de la
Renaissance ou de l’Orient. (Ibidem, 252)

Baudelaire prossegue o legado teórico de Lessing, defendendo, nos


seus escritos, a especificidade das diferentes formas de expressão artística, da
poesia às artes plásticas, passando por uma, então, emergente nova forma de
expressão artística, a fotografia. Apesar de não aceitar o estabelecimento de
paralelos entre elas, teoriza uma aproximação através da noção de
correspondência. Radicando numa certa tradição neoplatónica, esta noção
evoca uma unidade perdida com o corte epistemológico que consagraria a
visão moderna de ciência emergente em inícios do século XVII. Considera a
este respeito M. S. Lourenço que a “.... contribuição de Baudelaire para a
formação de uma poética simbolista consiste precisamente na introdução deste
conceito de correspondência, que ele encontrou na tradição hermética
ocidental...” Prossegue o ensaísta: “Na tradição hermética o conceito de
correspondência está associado à suposição da existência de um modo de
percepção, por meio do qual a um objecto concreto se faz corresponder um
significado espiritual, de tal modo que o objecto físico e o significado espiritual
se unem, como duas vozes em uníssono.” (Lourenço, 2002: 30)
“Correspondances”, o soneto de Fleurs du Mal que encontra nesta noção a sua
própria designação, instituindo-se, deste modo, como ilustração desse
conceito, explicita na segunda quadra semelhante união: “Comme de longs
échos qui de loin se confondent / Dans une ténébreuse et profonde unité, /
Vaste comme la nuit et la clarté, / Les parfums, les couleurs et les sons se
répondent.” (Baudelaire, 1964: 40) Nestes versos Baudelaire recupera o
conceito neopitagórico de cosmovisão, isto é, de um espaço fechado cujo
conhecimento é acessível através da descodificação dos nexos, espacial e
temporalmente, existentes entre os signos que o compõem. Para a
descodificação desses nexos importará considerar tanto a dimensão simbólica
como a metonímica desses signos. Estas dimensões reflectem relações
baseadas na analogia, na contiguidade, no efeito de espelho (aemulatio, como
referirá Michel Foucault em Les mots et les choses) que anula as distâncias
entre esses signos, possibilitando quer uma perspectiva unitária do cosmos
quer uma relação de complementaridade entre o sujeito e este. Regressaremos
mais adiante a este aspecto através da leitura de um poema de Rossetti, para
a qual convocaremos esta tradição hermética através do alquimista Henri
Corneille-Agrippa.

Apesar de defender a singularidade das diferentes formas de expressão


artística (“J’ai souvent entendu dire que la musique ne pouvait pas se vanter de
traduire quoi que ce soit avec certitude, come fait la parole ou la peinture. Cela
est vrai dans une certaine proportion, mais n’est pas tout à fait vrai. Elle traduit
à sa manière, et par les moyens qui lui sont propres… [Lichtenstein, 1995:
433]), e, consequentemente, a existência de taxonomias críticas autónomas,
Baudelaire encontra neste legado, e neste conceito em particular, uma
possibilidade de conecção entre as artes. A que nível, perguntar-se-á? Como
esclarece M. S. Lourenço tal conecção tem lugar numa capacidade de sugerir
uma percepção muito particular, isto é, na capacidade de produzir um efeito de
elevação no destinatário seja este um leitor (no caso da poesia), um
observador (no caso da pintura), ou um espectador/ouvinte (no caso da
música). Considera Baudelaire: “Ce qui serait vraiment surprenant, c’est que le
son ne pût pas suggérer la couleur, que les couleurs ne pussent pas donner
l’idée d’une mélodie, et que le son et la couleur fussent impropres à traduire
des idées; les choses s’étant toujours exprimées par une analogie réciproque,
depuis le jour où Dieu a proféré le monde comme une complexe et indivisible
totalité.” (Ibidem) Reconhece-se nesta declaração uma analogia teórica e
estética com os célebres versos iniciais de “Voyelles,” de Rimbaud: “A NOIR, E
blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles,/ je dirai quelque jour vos naissances
latentes” (Rimbaud, 1972: 126)
A inovação de Baudelaire consiste ainda na sua capacidade para
desvendar as potencialidade decorrentes da evolução do daguerreótipo para a
fotografia, e o consequente impacto que esta teria na pintura. O seu texto sobre
o “Salon” de 1859, intitulado “Le public moderne et la Photographie”, é a este
nível fulcral. Baudelaire problematiza aqui, embora sem euforia, algumas das
vertentes da modernidade acima mencionadas: a industrialização e a
massificação que ela implica; a importância de um público cada vez mais
alargado e heterogéneo; e o consequente domínio que este pode exercer sobre
o criador mais susceptível de adaptar a sua criação estética àquele que
eventualmente funcionaria como ethos cultural e estético, o gosto dominante
(normativo) no seio desse mesmo público.

Baudelaire vê na poesia, e nas artes em geral, uma capacidade de


perturbar esse ethos, as percepções (construções) estéticas convencionais.
Tomando como suas as palavras do poeta, prosador e teorizador americano
Edgar Allan Poe, Baudelaire afirmará “c’est un bonheur d’être étonné, mais
aussi ... c’est un bonheur de rêver.” (Ibidem, 437) Na sua opinião, esta postura
de disponibilidade para o deslumbramento estético opõe-se à disponibilidade
da maioria, do público, “... singulièrement impuissant à sentir le bonheur de la
rêverie ou de l’admiration” (Ibidem) Segundo ele, o público congratular-se-ia
com uma estética que se limitaria a reproduzir a realidade, pelo que “l’industrie
qui nous donnerait un résultat identique à la nature serait l’art absolu.” Deste
modo: “‘Puisque la photographie nous donne toutes les garanties désirables
d’exactitude (ils croient cela les insensés!), l’art c’est la photographie.’ À partir
de ce moment, la société immonde se rua, comme un seul Narcisse, pour
contempler sa triviale image sur le métal.” (Ibidem, 437-438)

Baudelaire admite, porém, duas virtualidades para a fotografia: uma


directa, ao funcionar quer como repositório da memória individual e colectiva
(“Qu’elle enrichisse rapidement l’album du voyageur et rende à ses yeux la
précision qui manquerait à sa mémoire...”), quer como adjuvante da ciência (“...
qu’elle orne la bibliothèque du naturaliste, exagère les animaux
microscopiques, fortifie même de quelques renseignements les hypothèses de
l’astronome [Ibidem, 438]), e outra indirecta, ao libertar a pintura dos
constrangimentos de uma estética realista que seria agora preenchida pela
fotografia. Embora neste olhar se indicie uma postura disfórica face às
profundas transformações que se operam no seio da modernidade, nele
pressente-se o juizo crítico formulado por Deleuze, “photography has taken
over the illustrative and documentary role, so that modern painting no longer
needs to fulfill this function, which still burdened earlier painters.” (Deleuze,
2003: 8) Será exactamente esta viragem nos convencionais horizontes
estéticos que inviamente irá ecoar nas inovações poéticas propostas por Walt
Whitman. Com efeito, a fotografia (o jogo com o signo no simular da
representação) significará, em Whitman, a mais radical reformulação
oitocentista dos conceitos de texto, autor e obra. Devido ao seu carácter
profundamente reformulador, convocarei a interacção que a sua obra realiza
entre signo natural e signo verbal, já por mim desenvolvida noutro lugar. *

Dois aspectos desta inovação devem ser analisados, em particular: a


forma como Whitman associa a sua imagem, fixada (composta) pela fotografia,
à publicação e às sucessivas reedições de Leaves of Grass; e a convocação
da ekphrasis e de um léxico ligado às artes visuais, nomeadamente à
fotografia, nos seus poemas. Comecemos por observar o primeiro aspecto.
Quando em 1855 publica a colectânea de poemas a que deu o título de Leaves
of Grass, Whitman contraria a representação gráfica tradicional: a capa indica
apenas o título do livro, não revelando o nome do autor. Em contrapartida,
surge uma pouco convencional fotografia deste.

*
Retomo aqui a abordagem por mim feita em História(s) da Literatura Americana (Lisboa:
Universidade Aberta, 2004).
Na recepção crítica a esta primeira edição (recorde-se que, num
constante processo de reescrita, revisão e inclusão, outras se lhe seguirão até
ao final da vida do poeta), o ícone funciona enquanto imagem fascinante, isto
é, o “… fenómeno pelo qual o objecto da nossa consciência, seja qual for, se
vê subitamente posto em dúvida na sua realidade e na sua presença.”
(Lefebve, 1975:136) Porque de imagem fascinante se trata, importa observar
alguns exemplos de perturbações por ela suscitadas, alguns exemplos de
reacções críticas eufóricas e disfóricas, que não deixam de espelhar um
confronto profundo, possivelmente político, numa sociedade em mutação para
a modernidade. Ora, um dos aspectos em que o ícone funciona como imagem
fascinante, prende-se com o questionar da dignidade da convenção literária.
Esta dignidade passaria por uma imagem evocadora de um estrato social
superior, com formação académica. Nos Estados Unidos o autor/escritor era
comummente identificado através de três nomes, os quais simbolicamente
designariam a civilidade e a solenidade devida à arte da poesia. Por seu turno,
a fotografia destacava habitualmente a cabeça estabelecendo uma analogia
entre poesia e intelecto. Esta convenção ecoa na publicação londrina Critic,
onde, no dia 1 de Abril de 1856, se afirma o seguinte acerca de Leaves of
Grass:

… we have a portrait engraved on steel of the notorious individual who is the poet
presumptive. This portrait expresses all the features of the hard democrat, and none of the
civilised poet. The damaged hat, the rough beard, the naked throat, the shirt exposed to the
waist, are each and all presented to show that the man to whom those articles belong scorns
the delicate arts of civilisation. The man is the true impersonation of his book - rough, uncouth,
vulgar. (Price, 1996:43; itálicos meus)

A recensão destaca a ligação ícone-livro. Esta ligação será denunciada


tanto em leituras particularmente negativas, como noutras mais disponíveis
para desvendar a novidade, e que saudam euforicamente Leaves of Grass. Por
exemplo, numa recensão publicada em Julho de 1855, o poeta é descrito da
seguinte forma: “He stands in a careless attitude, without coat or vest, with a
rough felt hat on his head, one hand thurst (sic) lazily on his pocket and the
other resting on his hip. He is the picture of a perfect loafer; yet a thoughtful
loafer, an amiable loafer, an able loafer.” (Ibidem: 8) Importa referir que, talvez
pela primeira vez, uma gravura de um daguerreótipo é usada como frontispício
para um livro de poemas. Nela observa-se um contraste com a tradição
iconográfica dominante, devido ao relevo dado a braços, mãos, tronco, pernas,
e não à cabeça, convencionalmente central, e que, como referi, associa a
poesia ao intelecto (Folsom, 1996: 141), ao logos, à razão, à civilização (numa
perspectiva cultural ocidental e judaico-cristã).

Por outro lado, Whitman pretende evitar o realismo proporcionado por


uma gravura que fosse uma mera cópia de um daguerreótipo. Com esse
objectivo em mente convida Samuel Hollyer, um jovem artífice inglês, em visita
aos Estados Unidos, para gravar o daguerreótipo feito por Gabriel Harrison de
modo a acentuar o carácter artificial da imagem (Ibidem, 141): na parte superior
do corpo surge uma reprodução realista, mas, à medida que o nosso olhar
desce, o corpo dá lugar a linhas que se diluem. A imagem expõe-se assim
como construção, dando lugar a um ícone.

A crítica sua contemporânea não deixa igualmente de reagir à contaminação do discurso poético pela
estratégia visual acima analisada. De imediato, se evidencia a perplexidade e a necessidade de conceber um
discurso conceptual capaz quer de responder às exigências desta poesia, quer de rever o cânone de molde a
acolher a novidade que ali se revela. Um dos derradeiros aspectos apontados por esta crítica, que devo
assinalar neste momento, prende-se com a diferença proposta pelo Livro de Whitman, em particular no que
isso significa de interacção com a cena da História.

A estratégia visual é de tal forma poderosa que se projecta no próprio


discurso crítico. Duas recensões serão particularmente reveladoras dessa
projecção. A primeira surge em 1865, numa recensão de Drum-Taps, onde se
refere: “… the author’s great power of word-picture-making …” (Price,
1996:112). A segunda aparece três anos mais tarde em Londres. Dela destaco
duas expressões particularmente reveladoras: “These word paintings of
Whitman’s …” e “His word-painting power goes with him everywhere.”
(Ibidem:153) Se procedermos a uma breve síntese de ênfases, explícitas ou
implícitas, nas abordagens de Leaves of Grass, constata-se o destaque na
acção que dele emerge, e, consequentemente, na energia/força que dele
emana, na sua afirmação da espontaneidade, no seu carácter “nativo”,
exemplar, como signo da modernidade, e, por fim, na sua potencialidade
profética. Por seu turno, a interacção/indissociabilidade entre Livro e Autor
conhece uma diferente dimensão ao atentarmos na forma como a crítica
feminina o recebeu, e como lidou com o eventual processo de con-fusão
gerado entre aquelas duas identidades.

Whitman foi um leitor atento dos movimentos reformistas, tendo


assimilado nos seus textos alguns dos grandes debates políticos e culturais,
em particular daqueles que se centram na figura da mulher, nomeadamente no
movimento feminista que então se afirmava através de destacadas figuras
como Margaret Fuller. Também neste aspecto, a sua obra e os signos que ela
confronta, surgem como instâncias em constante reformulação e construção,
não como dados adquiridos e imutáveis. Algumas mulheres reconheceram na
sua poesia ecos das suas exigências face à sociedade contemporânea.
Importará, portanto, destacar algumas das críticas mais relevantes, feitas por
essas mesmas mulheres, à poesia de Whitman, tendo como enfoque a
representação do ícone, isto é, do corpo. Em 1856, Fanny Fern refere: “Walt
Whitman, the effeminate world needed thee. … enamored of women not ladies,
men not gentlemen… (Price, 1996: 46) Já a edição de 1860 será objecto da
atenção de Mary Chilton e de Adah Menken, as quais defenderão o carácter
revolucionário com que o corpo e as relações entre os sexos são expostos,
referindo, entre outros aspectos, que a atracção física é algo de natural
(Ibidem, 190-91, 203 e 216). A representação do corpo revela-se afinal nuclear;
considerem-se os seguintes exemplos: em “O Hymen! O Hymenee!,” de
Children of Adam, Whitman subscreve a definição de hímen dada no dicionário
Webster (Ibidem, 127-28); em “Spontaneous Me” a mulher controla o seu
próprio prazer.

Tendo ainda que muito brevemente evocado a recepção crítica feminina,


devo transitar para uma das dimensões centrais do livro, tendo ainda
obviamente em conta o plano visual; aquilo que acima desigei a con-fusão
Livro-Autor. A ausência do nome na capa cria um silêncio que envia para a
centralidade do ícone, gerando aquilo que Ed Folsom considera não só a
metonímia organizadora de Leaves of Grass (Folsom, 1994: 147), mas também
“… the most successful metonymic trick in poetic history - his insistence on the
book as man … by conflating two bodies, his own and that of his book.”
(Folsom, 1996:137) Esta metonímia decorre da afirmação, convocação,
(simulação da) exposição, do próprio poeta: “The portrait … in fact is involved
as part of the poem.” (Ibidem, 139) Construindo e participando desta con-fusão
dever-se-á registar quer a voz do Autor quer a da crítica do seu tempo que vê
nesta interacção uma ruptura face às construções estéticas dominantes, com
um impacto, obviamente, cultural e, eventualmente, político. Aliás, sobre a
edição de 1889, Whitman diria: “Doubtless, anyhow, the volume is more A
PERSON than a book.” (Folsom, 1996:159) A crítica assinala, desde o início, a
perplexidade face à ausência do nome do autor na capa do livro, assim
contribuindo para esta con-fusão. Veja-se, por exemplo, a ironia desta
recensão publicada em 1855: “As seems very proper in a book of
transcendental poetry, the author withholds his name from the title page, and
presents his portrait, neatly engraved on steel, instead. (Price, 1996: 17)
Através do itálico, por mim introduzido, pretendi dar ênfase à referência ao
Transcendentalismo, um movimento devedor, em particular, do idealismo
alemão e da primeiro geração do romantismo inglês. Este movimento que, no
plano filosófico, tem como figura mais relevante Ralph Waldo Emerson, era,
então, aos olhos do establishment literário e cultural identificado com um grupo
defensor de ideias radicais, com especial ênfase no plano religioso. A Emerson
se deverá, entre outras coisas, a criação de uma cosmovisão centrada no
indivíduo e que será particularmente influente em gerações posteriores. Ao
ligar Whitman a este grupo, o crítico pretende remetê-lo para estas, então,
margens do espectro cultural e literário.

Outras críticas, agora com um cariz positivo, irão destacar essa interacção. Por exemplo, numa
recensão publicada em Janeiro de 1856 na North American Review afirma-se: “Everything about the external
arrangement of this book was odd and out of the way. … It bears no publisher’s name , and, if the reader goes
to a bookstore for it, he may expect to be told at first, as we were, that there is no such book, and has not been.
Nevertheless, there is such a book, and it is well worth going twice to the bookstore to buy it.” (Ibidem, 34,
itálico meu) Sobre esta con-fusão veja-se, ainda, a edição de 1855 do Daily Eagle: “… the book is a
reproduction of the author. His name is not on the frontispiece, but his portrait, half length, is. The contents of
the book form a daguerreotype of his inner being, and the title page bears a representation of its physical
tabernacle.” (Ibidem: 18, itálicos meus)

Na tríade Livro-Autor, Livro-Leitor e Linguagem, ancorada na dimensão visual, radica


muito da modernidade de Whitman. Ao longo das sucessivas revisões do seu Livro, o poeta
edifica uma materialidade decorrente da interacção entre estes vectores. Para além de
diálogos intratextuais e intertextuais, Whitman joga com a presença do próprio ícone (a
fotografia, por exemplo), enquanto signo de uma peculiar identidade em processo de
constante transformação: Livro-Autor. Se observarmos essas várias edições de Leaves of
Grass, constata-se que, com a primeira edição (a de 1855), o poeta inaugura a sua própria
tradição, convocando o ícone da figuração autoral. Na terceira edição, de 1860, surge uma
gravura de um retrato feito por Charles Hine que constituirá o ponto de viragem da
exploração do eu para o poeta mítico (Allen, 1997:64). Importa referir que Whitman
reformula a concepção tradicional de poema épico, dando corpo àquilo que o poeta
americano do século XX, Wallace Stevens, chamou ficção suprema. Este é um aspecto que
todavia escapa ao âmbito desta leitura. Dever-se-á, contudo, referir que a nova perspectiva
acerca daquilo que o poema épico deverá ser, implica a noção de percurso poético: o
poema (o Livro) é entendido como algo que será (re)escrito no decurso da vida; algo a que
poetas ulteriores regressarão, prosseguindo, no seu tempo, a construção de epopeia, da
ficção suprema. A epopeia torna-se um projecto simultaneamente individual e colectivo.
Ora, a noção de percurso poético explorada pela epopeia whitmaniana, radica na acima
referida interacção Livro-Autor; algo que a fotografia regista no processo de transformação
do corpo.

Ao longo das sucessivas revisões do seu Livro, Whitman exibe a materialidade deste
sob inúmeras perspectivas. Em “In Cabin’d Ships at Sea,” o sujeito desenvolve uma
estratégia intimista com o Livro, instituindo-o como prosopopeia, destinatário ao qual uma
missão está destinada (curiosamente, ao Livro e não ao poeta); ao Livro se exige
dinamismo, acção: “Then falter not O book, fulfil your destiny, /…/ Speed on my book!”
(Loving,1990:10) Por outro lado, em “Spontaneous Me”, verifica-se uma relação especular
poema/sujeito, material e metonimicamente designado através do corpo: “our lusty lurking
masculine poems” (Ibidem, 90); curiosamente, esta imagem assemelha-se a um negativo do
passo seguinte do prefácio que o autor escreveu para Leaves of Grass, onde a sua recusa
do puritanismo significa a redescoberta do corpo: “… dismiss whatever insults your own
soul, and your very flesh shall be a great poem and have the richest fluency not only in its
words but in the silent lines of its lips and faces and between the lashes of your eyes and in
every motion and joint of your body.” (Ibidem, 446) Já no final do percurso, isto é, da vida,
no poema, significativamente, intitulado “So Long”, surge uma síntese que superou o par
“My Book and I”, antes existente. (Ibidem, 428) Neste poema, a materialidade do Livro
institui-se para além da vida do seu criador; assim se transforma a identidade do texto:

Camerado, this is no book,


who touches this touches a man,
(Is it night? Are we here together alone?)
it is I you hold and who holds you,
I spring from the pages into your arms - decease calls me forth.

How your fingers drowse me,


your breath falls around me like dew, your pulse lulls the tympans of my years …
(Ibidem, 382)

As representações do autor através da fotografia acentuam ainda duas dimensões: a materialidade


subjacente ao corpo e ao seu processo de transformação, e o jogo entre o próprio autor e o texto. Na primeira
edição a vitalidade do corpo impõe-se perante o “mais democrático dos cenários”, a página em branco.
(Folsom 1994: 145) Na edição de 1888 o autor inclui uma fotografia sua de perfil, olhando em frente: o
processo indicia agora uma dimensão prospectiva, o futuro, denunciando, porventura, o diálogo que os poetas
americanos ulteriores com ele necessitaram de manter na busca da tal ficção suprema.

No frontispício de November Boughs (1888) usa uma fotografia sua já


velho, sentado, apoiado numa bengala, sobre um cenário ostensivamente
artificial, assim explicitando o jogo subjacente a toda a sua figuração do corpo
ao longo das sucessivas edições de Leaves of Grass.
Na última edição, Whitman reúne as fotografias de 1855 e esta última,
expondo o envelhecimento do corpo. Complementando esta representação
visual escreve no poema “A Carol Closing at Sixty-Nine”: “The body wreck’d,
old, poor and paralyzed” (Loving, 1990:386). O envelhecimento da voz é
mencionado em “Queries to my Seventieth Year:“ … now,/ Dull, parrot-like and
old, with crack’d voice harping, screeching?” (Ibidem, 387) Corpo e voz (a
poesia?) denunciam a passagem do tempo. Recorde-se quão relevante e
inovadora é esta estratégia face a uma geração, a de Whitman, a primeira a
poder registar pela imagem a degradação do seu próprio corpo. Whitman
utiliza-a profundamente, elaborando ainda um jogo com o leitor. Este jogo é
explicitado a partir do desenho de um dedo com uma borboleta que surge, no
início, meio e fim da edição de 1860.

O mistério deste signo, metonímia final, será desvendado com a exposição do conjunto vinte anos
depois.
Whitman exibe jogos, processos de transformação e de construção, aos
quais não são alheias a inclusão de ícones decorrentes de diferentes formas de

representação: “… combining steel engravings with woodcuts with


photoengravings with actual photographs.” (Folsom, 1994: 159) A par de um
processo de reformulação da poesia, empreendido por Whitman, surge a sua
busca de um novo léxico. Esta reformulação passa pela assimilação da
linguagem nativa e pelo debate em torno da língua (o “American English”) que
se liga à elaboração de um dicionário passível de representar a nova realidade.
O poeta incluirá quase 14.000 palavras nas três primeiras edições, incluindo
“street talk”, “colloquial speech rhythms” e palavras de outros idomas (Erkkila,
1994: 82 e 86). Um ano antes de morrer, percorrerá a mais recente edição do
Dicionário Webster em busca de palavras que ele próprio inventara.

Observemos, seguidamente, o segundo aspecto acima mencionado, a


ekphrasis. Constata-se que esta passa por diferentes estádios de evolução ao
longo do percurso poético do autor. Em “Out from behind a mask”, a ekphrasis
é explícita; a noção de composição está aqui associada ao uso específico de
estratégias visuais (o chiaroscuro, por exemplo), à representação (“curtain”) e
ao duplo movimento centrípeto e centrífugo, isto é, a visibilidade, ao exibir-se,
exibe, simultaneamente, os limites do conhecimento:
Out from behind this bending rough-cut mask,
These lights and shades, this drama of the whole,
This common curtain face contain’d in me for me, in you for you…

The passionate teeming plays this curtain hid! (Ibidem:296)

Neste exemplo, a ekphrasis entende-se a si própria como interpretação


do objecto: cria uma metalinguagem. Uma outra ekphrasis deve ser registada,
a do poema intitulado “Cavalry Crossing a Ford” inspirado no desenho Infantry
Column on the March, da autoria de Winslow Homer.

A line in long array where they wind betwixt green islands,


They take a serpentine course, their arms flash in the sun – hark to the musical clank,
Behold the silvery river, in it the splashing horses loitering stop to drink,
Behold the brown-faced men, each group, each person a picture, the negligent rest on
[the saddles,
Some emerge on the opposite bank, others are just entering the ford – while,
Scarlet and blue and snowy white,
The guidon flags flutter gaily in the wind. (Ibidem, 235)

O poema estrutura-se a partir de três vertentes visuais: as linhas que reproduzem espacialmente o
percurso dos signos no primeiro verso e no primeiro hemistíquio do segundo; a cor, implícita (no segundo
hemistíquio do segundo verso) e explícita (nos terceiro, quarto e sexto versos); e o movimento, com
repercussões nítidas numa representação pictórica em “splashing horses.” Ainda a nível da homologia entre o
poema e o desenho, Betsy Erkkila (1989:214-15) assinala aquilo que considera ser a dimensão ideológica
desta estratégia de representação:

In the river the en masse breaks into individual ‘pictures’,…, from panorama to close-up.
The images of ‘splashing horses’ loitering and the ‘brown-faced men’ resting ‘negligently’ on
their saddles contradict traditional notions of military order, discipline, and hierarchy, thereby
projecting the figure of a democratic army. And yet like the pattern of alliteration, repetition, and
internal rhyme that links the poem’s separate images, the cavalry’s apparently random motion is
part of a single pattern. The separate brown-faced men are part of the line of cavalry that
stretches along both sides of the river and part, too, of the democratic masses advancing under
the guidon flags of the Union. (Ibidem: 215)

Erskkila afirma ainda ser esta uma “… harmonious image of a


democratic army, in which individual and national will are merged under the
banner of the Union cause …”(Ibidem) No plano específico da interacção texto-
objecto artístico, a ekphrasis realiza a descrição (simula uma reprodução) do
próprio objecto.

A par desta interacção entre texto e imagem, registar-se-á a nível da


linguagem, a convocação de um léxico marcado pela composição e impressão;
por exemplo: na secção 41 de “Song of Myself”, surge “Lithographing Zeus,…/
Buying drafts of Osiris,…/ In my portfolio placing Manito loose,…/…/ Accepting
the rough deific sketches…” (Loving, 1990:67; itálico meu); noutros instantes
de “Song of Myself” (secção 11) Whitman dialoga com o pintor seu
contemporâneo Thomas Eakins (para além de seu amigo, Eakins fez
igualmente um retrato do poeta); por outro lado, no poema “Once I pass’d
through a populous city,” de Children of Adam, refere: “Once I pass’d through a
populous city imprinting my brain for use with its shows…” (Ibidem: 94, itálico
meu)

A emergência de novos discursos artísticos, característica do seu tempo,


projecta-se, afinal, numa reformulação teórica do texto poético, acentuando
uma radical dimensão visual. Refere Ed Folsom: “… he was always on the
lookout for new art forms, new political formulations, new cultural diversions,
anything that emerged fresh and first in America…” E ainda mais adiante: “…
he was anxious to figure out just what cultural attributes each new event, each
new activity, each new attitude, signified and to discover how the events could
be transformed into language - not just as subjects for his poetry, but as
generators of a new kind of language, a native diction and pacing and rhythm
and form that emerged out of cultural actions.” (Folsom, 1994:3) Nuclear para
esta reformulação teórica, será a evolução da fotografia, já que a obra de
Whitman se constrói a par da sua emergência e consagração enquanto estética
autónoma: “From the 1840’s on, as first daquerreotypes and then photographs
entered human consciousness and redefined the way we see the world, words
began to alter their relationship with reality too.” (Ibidem, 105) Será esta
interacção referencial que o poeta explora através da assimilação de discursos
exógenos, e que atingirá uma dimensão radical em vários poemas de Drum-
Taps, o livro por ele dedicado à Guerra Civil, em particular no poema “A March
in the Ranks Hard-Prest, and the Road Unknown.” (Avelar, 2004: 75-81)

Um dos aspectos importantes decorrentes do impacto da fotografia no


discurso poético, será o da inclusão de todos os detalhes na representação do
espaço, algo que o próprio Whitman destacará: “… every detail of a scene
insisted on equal emphasis, and nothing was ignored. Nothing was left out
because it was considered irrelevant or unaesthetic or inessential.” (Ibidem)
Em 1862, designa “City Photographs” uma série de artigos sobre a miséria da
cidade que escreve para o jornal Leader, de Nova Iorque. Tal como a sua
poesia em Drum-Taps, também a fotografia expõe o lado anti-heróico da
guerra. Na década de setenta referirá: “In these Leaves of Grass everything is
literally photographed.” (Ibidem, 104) Por fim, num plano estritamente pessoal,
a fotografia possibilita observar, reconhecer, o processo de envelhecimento,
transformação, do corpo (Ibidem, 113), constituindo uma presença nuclear no
percurso criativo do autor, e participando de uma expansão da presença do
ícone na sua obra.

Constata-se que a intencionalidade literária passa em Whitman por uma complexa interacção entre
discursos vários, nomeadamente decorrentes das artes visuais, alguns dos quais habitualmente estranhos ao
texto poético, mas que ele manipula de forma a conceber uma identidade peculiar. No processo da sua
concepção, Whitman não deixa de encarar a convenção estética como obstáculo epistemológico que,
superado, significará um regresso à linguagem quotidiana. Recorde-se a, acima referida, filiação do
Transcendentalismo numa tradição idealista romântica, e a ênfase que este que coloca na subjectividade do
eu, e numa consequente dimensão confessional. Refere, a propósito, João Almeida Flor:

Porventura reflexo, no domínio da estética, da mundividência economico-política do


capitalismo liberal onde o valor das iniciativas individuais é preponderante, o surto de
subjectivismo que caracteriza muito do Romantismo europeu é responsável por uma
sensibilidade egocêntrica que preferencialmente se exprime e manifesta através do lirismo
confessional. Em poemas ou em formas literárias autobiográficas ou diarísticas, o artista
romântico faz questão de iluminar os rescantos da sua personalidade expondo e exibindo o Eu
como espectáculo que a sinceridade autentifica. (Flor: 1980: 12)
Ora, Whitman supera esta tradição confessional romântica, naquilo que ela significa de exibição de
uma eventual sinceridade, ao colocar o jogo no centro da criação poética; um jogo entre a imagem física do
Autor e o Livro, entre o referente e a sua representação, entre as diferentes versões icónicas do Autor, entre a
vida do Autor e a vida do Livro.

Após esta breve síntese da inovação poética, devedora do encontro com


a fotografia, importa observar três poemas que, em meados do século XIX,
podem constituir outros tantos exemplos da potencialidade da ekphrasis,
enquanto estratégia de enunciação, ainda não exploradas: “Mariana,” de Alfred
Tennyson, “My Last Duchess”, de Robert Browning, e “Our Lady of the Rocks”,
de Dante Gabriel Rossetti.

Escolhi “Mariana,” um poema de juventude de Tennyson, por ele


constituir uma radical inversão dos processos que tenho vindo a observar:
neste caso, o texto precede o quadro. O nome que dá título ao poema pertence
a uma personagem da peça de Shakespeare Measure for Measure, na qual o
poeta se inspirou. Mariana é a jovem noiva de Angelo que a rejeita quando ela
se vê privada do seu dote de casamento. Mariana opta então por uma
existência isolada numa “moated grange”. Posteriormente, após peripécias e
erros vários de Angelo, intercederá junto do poder a favor dele, salvando-lhe a
vida. Tennyson ignora a evolução da personagem ao longo das diferentes
atribulações dramáticas, concentrando-se num breve episódio do Acto IV, cena
i, que lhe permite explorar o pathos que marca a vida de Mariana após ter sido
abandonada por Angelo.

A sequência dramática explora naturalmente as acções das


personagens, as suas atitudes, gestos e conflitos, mesmo quando estes
ocorrem na linguagem; este aspecto é ainda acentuado em Measure for
Measure devido ao facto de Shakespeare não apresentar detalhes cénicos
circunstanciados. Tennyson opta por sustentar o seu olhar sobre Mariana numa
descrição pormenorizada do espaço. É este que fornece um cenário propício
ao pathos, simultaneamente funcionando como correlativo das tensões
emocionais vividas pela personagem, sem atingir, porém, o limite da falácia
patética. Vejamos os versos iniciais:
With blackest moss the flower-plots
Were thickly crusted, one and all:
The rusted nails fell from the knots
That held the pear to the gable-wall.
The broken sheds look’d sad and strange:
Unlifted was the clinking latch;
Weeded and worn the ancient thatch
Upon the lonely moated grange. (Tennyson, 1954: 62)

“Lonely”, signo que caracteriza espacialmente a “moated grange”,


funciona como correlativo da personagem na sua solidão e isolamento,
antecipando os quatro versos finais da estrofe. Com pequenas variações, estes
versos irão repetir-se ao longo do poema, como se de um refrão se tratasse.
Ora, neste refrão é a voz da própria Mariana que se desvenda enunciando o
pathos: “She only said, ‘My life is dreary, / He cometh not’” (Ibidem). Ao longo
das estrofes seguintes Tennyson explora a disforia espacial que, por seu turno,
acentua o estado disfórico (o sofrimento) da própria personagem,
insistentemente lembrado nos versos finais de cada estrofe. A degradação do
espaço que mais ênfase dá ao abandono de Mariana, culmina na sexta estrofe
com a introdução de um pormenor: “... the mouse / Behind the mouldering
waistcot shriek’d, / Or from the crevice peer’d about.” (Ibidem, 63) Mariana
persiste como personagem abandonada, solitária e triste, desejando a morte:
“Oh God, that I were dead!” (Ibidem, 64) são as últimas palavras do poema

O pintor John Everett Millais retoma no seu quadro Mariana in the


Moated Grange a atmosfera desenvolvida por Tennyson, expandindo-a na sua
figuração do feminino e no diálogo com uma simbologia com ressonâncias
medievas. Millais pertence à Pre-Raphaelite Brotherhood, um grupo de artistas
formado em 1848, do qual faziam parte James Collinson, William Holman Hunt,
John Everett Millais, Dante Gabriel Rossetti, William Michael Rossetti, Frederick
Stephens e Thomas Woolner. O grupo sofrerá um impulso decisivo com a
adesão posterior de John Ruskin, o maior crítico de arte inglês, para além de
um importante pensador social. Constituído por reacção ao academismo
dominante, estes artistas defendiam uma estética de recuperação de pintores
italianos que antecederam Rafael, como Giotto, Piero della Francesca ou Fra
Angelico.
À semelhança de Tennyson, o quadro de Millais restringe a
representação desta personagem a um momento específico do texto
dramático. Millais opta por centralizar a sua representação na atitude de
Mariana e no espaço que ela habita por escolha própria. Atente-se num
pequeno pormenor no canto inferior direito, o rato. Através dele Millais recupera
a atmosfera dominante no poema, marcada pelo abandono e pela degradação.

O quadro desvenda a sedução do artista pelo imaginário e pela estética


medievais recorrentes em vários pintores deste grupo. Esta dimensão
repercutir-se-á numa estética (onde não estão ausentes ressonâncias góticas)
que não é obviamente alheia à representação do espaço, do qual participam os
seguintes aspectos: o imaginário religioso inspirado nos vitrais na capela de
Merton College; a mesa, funcionando como correlativo simbólico do altar, com
a lamparina, o tríptico sagrado e o incenso. Ao transformarem o quarto de
Mariana numa cela conventual, estes signos contibuem para a criação de uma
atmosfera onde o transcendente se insinua. Com esta transformação é a
própria personagem que adquire um estatuto superior. Recorde-se que esta
não é uma celibatária enclausurada por imposição social; Mariana não é uma
mulher dependente ou dominada pelas convenções sociais e éticas, mas sim
alguém que está naquele local por escolha própria. Simbolizará, assim, o
estatuto de igualdade para a mulher, desejado e defendido por sectores cada
vez mais amplos na sociedade vitoriana. (Roston, 1996: 66) O gesto sensual e
lânguido acentuam a sua autonomia. Esta vertente, algo ausente do poema de
Tennyson, contrapõe uma perspectiva eufórica à disforia, ao pathos naquele
dominante.

A autonomia e a sedução constituem uma dimensão subliminarmente


irónica ao outro exemplo acima mencionado, “My Last Duchess”, de Robert
Browning, um poema evocador de “The Oval Portrait”, de Edgar Allan Poe.
Antes de progredir para a leitura deste texto, importa referir que logo nos títulos
de obras de Browning - Dramatic Lyrics (1842) ou Dramatis Personae (1864),
por exemplo, se denuncia a estratégia de enunciação por ele privilegiada, o
monólogo dramático, e a tradição em que se insere, aquela que Keats aponta
nas suas cartas, remontando a Chaucer e culminando em Shakespeare.
Embora estejamos perante um texto de incidências dramáticas, à partida,
portanto, fora da tradição que tenho vindo a convocar, a presença da arte, tanto
no plano dos seus próprios epistemas como de circunstâncias históricas a ela
ligadas, de dramatis personae que participam deste universo, e a própria
ekphrasis, enriquecem a estrutura convencional do monólogo dramático,
elevando-o a novas dimensões. Veja-se um dos seus monólogos dramáticos
mais celebrados, “Fra Lippo Lippi”. Nele Browning recorre a um livro
particularmente importante para a descoberta oitocentista do espaço artístico
da renascença, Lives of Painters, de Giorgio Vasari, para obter informação
acerca do monge pintor fiorentino, Lippo Lippi (1406-1469). Através da voz
desta persona, Browning exibe uma perspectiva teórica a nível da arte onde se
pressente a passagem de uma cosmovisão medieval para uma visão moderna
do mundo, onde o homem e a arte assumem um novo estatuto. Este situar da
enunciação num tempo de mudança de paradigma, poderá permitir o
reconhecimento de afinidades com os próprios tempos de mudança, da
sociedade rural para a industrial, urbana, vividos por Browning na chamada
época vitoriana. Este situar-se em tempos de mudança (no limite civilizacional)
poderá constituir um ponto de contacto (para além da tradição do monólogo
dramático ou da analogia com Imaginary Conversations of Greeks and
Romans, de Walter Savage Landor [Magalhães e Pratsinis: 2005, 28]) com um
dos mais fascinantes poetas novecentistas, Konstandinos Kavafis, também ele
traduzido por Sena.
Tomemos, então, o monólogo dramático “My Last Duchess”. Este texto é
peculiar pelo facto de conciliar duas estratégias, à partida, distintas: a ekphrasis
imaginária (à semelhança do escudo de Aquiles; a notional ekphrasis de que
fala Murray Krieger) e o monólogo dramático. Refere Murray Roston (Ibidem,
141) que a persona a quem compete a enunciação, funciona como se de um
director de Museu se tratasse. A eventual conexão com factos comprovados
historicamente, ligados ao Duque de Ferrara (Ibidem, 145), não são, todavia,
particularmente relevantes para a leitura deste poema. Para uma leitura que
faça participar este texto do diálogo que tenho vindo a analisar, importa
considerar a estrutura dialógica que lhe dá forma.

Este director conduz o interlocutor-visitante (o destinatário), numa visita


guiada, pelas salas do respectivo Museu, numa atmosfera coloquial,
apresentando as obras de arte, descrevendo-as, referindo autores, ou
eventuais mecenas a quem elas se destinavam. Como qualquer director
domina o espaço: aquelas salas são-lhe familiares; ele reconhece os lugares
destinados aos objectos; os próprios objectos, as suas identidades (origens,
escolas, autores, inovações, redundâncias, episódios laterais a eles
relacionados, paixões que motivaram) participam da sua intimidade; as
incidências de luz e sombra que sobre eles incidem, são-lhe perceptíveis nas
mais variadas subtilezas. No entanto, contrariamente ao director, o seu poder é
absoluto, já que aquele espaço é literalmente seu, participa do seu quotidiano
no mais banal dos gestos: este Museu é afinal o seu palácio, e aquelas obras
de arte são, efectivamente, posse sua. O visitante-destinatário permanecerá
em silêncio ao longo do percurso, da viagem em que é iniciado nos segredos
daquelas peças. Por seu turno, o leitor, no silêncio do acto solitário da leitura,
identificar-se-á com ele; tal como ele, entrará em cena. O poema inicia-se com
a dramatis persona do dono do palácio, do Duque, apresentando um quadro ao
destinatário: “That’s my last Duchess painted on the wall, / Looking as if she
were alive. I call / That piece a wonder, now: Frà Pandolf’s hands / Worked
busily a day, and there she stands.” (Flor, 1980: 24) Esta é, portanto, a imagem
da já desaparecida esposa do Duque: “as if she were alive” não significa
apenas uma capacidade de reprodução da sua imagem, como se comprovará
alguns versos depois.
Após ter sido feita a apresentação do quadro, e terem sido identificados
o referente e o respectivo autor, Frà Pandolf, a persona do Duque convida o
destinatário a suspender, por alguns instantes, o percurso ao longo do palácio:
“Will’t please you sit and look at her?” (Ibidem) Tal como um qualquer visitante,
num qualquer Museu, o interlocutor senta-se para observar os detalhes da
obra, para a descodificar. Prossegue a persona do Duque: “I said / ‘Frà Pandolf’
by design, for never read / Strangers like you that pictured countenance, / The
depth and passion of its earnest glance, / But to myself they turned…” (Ibidem)
O leitor sabe, então, que o interlocutor (e consequentemente o leitor) é
privilegiado, visto ter(em) acesso a um objecto que nenhuns outros olhos, além
dos do Duque e do pintor, tiveram. O quadro está, efectivamente, oculto por
uma cortina que o Duque, e apenas ele, pode manipular: “(since none puts by /
The curtain I have drawn for you, but I)” (Ibidem).

Atente-se nas potencialidades do monólogo dramático aqui exploradas


por Browning. Para além de designar o acto literal da exposição do quadro, o
convite e o gesto da persona estabelecem uma analogia óbvia com a
representação dramática: o espectador entra na sala, senta-se, o pano abre,
revelando o espaço cénico e o(s) actor(es); inicia-se a representação; esta
termina, “cai” o pano, o espectador levanta-se e abandona o espaço.
Retomemos o momento em que a observação do objecto dá lugar a uma leitura
das suas subtilezas (numa metáfora da análise de um quadro). A
representação do rosto é indissociável da capacidade para captar a expressão,
o olhar do sujeito, “that pictured countenance”, acima citada. Será aqui que
reside o génio do artista e o mistério que liga o retrato da Duquesa à clausura
que lhe foi imposta pelo Duque: “... And seemed as they would ask me, if they
durst, / How such a glance came there” (Ibidem). Afirma Murray Roston que, tal
como Filomela, também à Duquesa foi negado o direito à enunciação (Roston,
1996: 145), à palavra, ao logos. A prosopopeia, inerente a “Ode on a Grecian
Urn” ou a “Ozymandias”, é, neste caso, silenciada pelo poder da persona a
quem cabe a enunciação. Poesia, discurso e poder (patriarcal) revelam-se,
deste modo, indissociáveis.
Ao afirmar “Sir, ‘t was not / Her husband’s presence only, called that spot
/ Of joy into the Duchess’s cheek” (Flor, 1980: 24), o Duque indicia algo que
não conseguira dominar na relação com a esposa; algo que o retrato
reiteradamente lhe lembra (daí o facto de ele estar escondido): o olhar da
Duquesa não o instituira como destinatário único. A sedução, o engano, a
traição, são por ele insinuados, de uma forma decorosa, ao evocar o
temperamento da Duquesa: “She had / A heart – how shall I say? – too soon
made glad, / Too easily impressed; she liked whate’er / She looked on, and her
looks went everywhere.” (Ibidem) Como indicia este último verso, esse olhar é
flutuante, não se concentra num destinatário único (o marido). Ele figura,
portanto, o engano; daí que funcione como centro da composição (e da
interpretação) e esteja escondido (para evitar interpretações mais jocosas que
lembrem ao Duque os enganos de que terá sido alvo). À semelhança de
“Ozymandias”, também neste exemplo foi o artista, Frà Pandolf, quem soube
captar a essência do referente.

Ironicamente, considerando que o Duque tem o poder da enunciação,


ele revela, como vimos nos versos acima citados, dificuldade na expressão
(manipulação ?)-“how shall I say?” Mais adiante, ao tentar descrever o carácter
da Duquesa, isto é, ao tentar reorientá-la de uma forma socialmente aceite, que
não faça dele objecto de comentários jocosos, o Duque reitera (simula) esta
sua dificuldade de expressão: “Even had you skill / In speech – (which I have
not) – to make your will / Quite clear to such an one, and say, ‘Just this / ‘Or that
in you disgusts me; here you miss / ‘Or that exceed the mark” (Ibidem, 26).
Insinua-se, assim, que, tivesse ele na posse das artes da elocução, o
desenlace teria sido outro, e aquele olhar não constituiria uma reactualização
do passado, uma lembrança que ele pretendeu esconder sob uma cortina. A
razão desse gesto é explicitada mais adiante: “Oh sir, she smiled, no doubt, /
Whene’er I passed her; but who passed without / Much the same smile? This
grew; I gave commands; / Then all smiles stopped together. There she stands /
As if alive.” (Ibidem) O Duque conclui a leitura do quadro e convida o
interlocutor a prosseguir: “Will’t please you rise? We’ll meet / The company
below, then.” (Ibidem) Termina uma representação enquanto outra se inicia:
I repeat,
The Count your master’s known munificence
Is ample warrant that no just pretence
Of mine for dowry will be disallowed;
Though his fair daughter’s self, as I avowed
At starting, is my object. (Ibidem)

Só neste momento é revelado ao leitor o contexto em que a enunciação


se desenrola: o de um contrato de casamento ao qual não é obviamente alheia
a discussão acerca do dote. Aquele retrato era o da “my last Duchess”, uma
“next Duchess” se avizinha. A ambiguidade dos versos finais envia
simultaneamente para o poder material e para o poder sobre a futura esposa:
“Notice Neptune, though, / Taming a sea-horse, thought a rarity, / Which Claus
of Innsbruck cast in bronze for me!” (Ibidem) O acto de domar o cavalo-
marinho, representado na estatueta, simbolizará um exercício de controle e de
poder que, no passado, o Duque não teria conseguido realizar.

Para além destes aspectos relacionados com a enunciação e com o


diálogo entre sujeito e objecto artístico, Murray Roston chama a atenção para o
facto de Browning se centrar num universo artístico renascentista.
Contrariamente ao fascínio da Antiguidade clássica que observámos com os
poetas românticos, e que se reflectia igualmente no próprio espaço
museológico, em meados do século XIX ressurge um interesse pelo
Renascimento italiano. Este interesse, que não era alheio à acção do já
mencionado crítico de arte John Ruskin e do próprio príncipe Albert, espelharia
afinal um ethos oitocentista que pretendia exaltar uma cultura centrada no
indivíduo e no seu carácter empreendedor.

Ainda no âmbito desta sedução pela pintura renascentista italiana,


consideraremos, em seguida, um exemplo em que a ekphrasis participa de um
diálogo entre confissão e reflexão existencial. Escolhi para ilustrar esse diálogo
“Our Lady of the Rocks”, um soneto inspirado no quadro A Virgem dos
Rochedos, de Leonardo da Vinci. Esta singular e inovadora ekphrasis da
autoria do poeta e pintor Dante Gabriel Rossetti, figura cimeira da Pre-
Raphaelite Brotherhood, pertence à sequência “Sonnets for Pictures”, incluída
nos seus Poems, escritos entre 1847 e 1853.
O quadro de Leonardo organiza-se a partir de uma estrutura triangular
central: a Virgem, o Menino e S. João Baptista. Ao olharmos estes três signos,
inevitavelmente recordamos as potencialidades simbólicas da tradição
hermética evocada pelo alquimista renascentista Henri Corneille-Agrippa: “le
nombre sacré. ... Trois temps... Troi vertus théologales, l’espérance, la foi, la
charité. Jonas a été trois jours dans le ventre d’un poisson.; le Christ en a été
autant dans le sépulcre.” (Corneille-Agrippa: Paris, 21-22). Numa tradição
neopitagórica, a interacção espacial entre estes três signos – o triângulo -
designa a proportio divina, assim introduzindo a tranquilidade eufórica: a esta
se deverá a esperança face ao futuro. Essa esperança é enfatizada na figura
do Cristo e na sequência (diacronia) temporal que S. João Baptista confere ao
conjunto: observa-se o insinuar de uma narrativa, de uma cronologia, da qual
(a morte de Cristo por nós) somos chamados a participar. Por seu turno, o
chiaroscuro (luz vs sombras), ao dar ênfase ao colo da Virgem/Fonte de Vida
(recorde-se a centralidade acentuada pela mão do Anjo), aos corpos, ao divino,
reitera essa euforia. O contraponto desta dimensão surge na luz esbatida no
fundo indiciando o mistério do Tempo, da Morte, da Eternidade. O processo de
representação pictórica estrutura-se, assim, a partir de uma interacção espacial
dos signos (perspectiva, profundidade) e da cor (simpatia, conflito, contraste
entre as cores). Coloca-se, então, a seguinte questão: está a linguagem verbal
limitada a reproduzir estratégias de representação exógenas, como a
interacção espacial ou a simpatia/antipatia a nível da cor?
Observemos, em primeiro lugar, o diálogo que o sujeito desencadeia
com o referente, e, em segundo lugar, a configuração original que Rossetti
executa da espacialidade através do ritmo, do jogo com as tradições e com as
convenções a nível do género, enfim, através da linguagem. A descodificação
implica dois níveis de leitura do quadro enquanto signo que constituem,
simultaneamente, uma interacção entre ambos: significante (visual e fónico) e
significado (semântico). Iniciemos a leitura por este último nível. Rossetti não
reproduz, não recria, para o leitor (transformado em “beholder”, como diria
Michael Fried em obras como Absorption and Theatricality ou Realism, Writing
and Disfiguration) o objecto, o referente. À semelhança do poeta em “Ode on a
Grecian Urn”, o sujeito assume-se como “beholder”, interpelando o objecto; fá-
lo, todavia, através de um solilóquio em que simula o diálogo com um dos seus
signos privilegiados, a Virgem. O objecto torna-se interlocutor, destinatário da
intimidade confessional do sujeito; o poema assume-se como espaço intimista,
súplica, uma quase oração. Na sequência deste diálogo, o leitor é instituído
como “beholder”, espectador, não do quadro, mas dessa íntima confissão:

MOTHER, is this the darkness of the end,


The Shadow of Death? And is that outer sea
Inf inite imminent Eternity?
And does the death-pang by man’s seed sustain’d
In Time’s each instant cause thy face to bend
Its silent prayer upon the Son, while he
Blesses the dead with his hand silently
To his long day which hours no more off end? (Rossetti: 1870, 259)

A primeira estância organiza-se a partir da percepção que o sujeito tem


do tempo (atente-se nas diferentes formulações desta categoria),
desencadeada pela dimensão espacial; algo que, apesar de centrado em si,
transcende idiossincrasias pessoais. Esclarece o poeta e ensaísta Yves
Bonnefoy: “The question of space arises because fifteenth-century Italian art
found, in perspective, a way of formulating with admirable clarity several
metaphysical views of time.” (Bonnefoy: 1995, 46) Recordando as palavras de
Joaquim Manuel Magalhães, mencionadas no primeiro capítulo a propósito de
Sena, pode-se dizer que “esta descrição se ergue como uma proposta lírica
onde a subjectividade procurava equivalentes verbais materiais das
representações com que se confrontava.” Destacar-se-ão três aspectos
denunciados pela subjectividade: o eixo inter-subjectivo instituído pelo vocativo
(o sujeito de enunciação encontra na Virgem uma interlocutora única, capaz de
lhe desvendar um sentido para a [sua] existência); a obsessão pelo signo
espacialmente distante – a luz do espaço/tempo para além da vida
(simbolicamente denunciando a angústia face àquilo que o aguarda [a
eternidade] após o instante desta viagem); a dor do quotidiano.

A segunda estância prossegue esta linha de sentido, introduzindo novos


vectores:

Mother of Grace, the pass is difficult,


Keen as these rocks, and the bewildered souls
Throng it like echoes, blindly shuddering through.
Thy name, O Lord, each spirit’s voice extols,
W hose peace abides in the dark avenue
Amid the bitterness of things occult. (Rossetti: 1870, 259)

A transformação, endógena à estrutura do soneto, introduz, na segunda


estância, uma subtileza: a ênfase na vida enquanto transição – “the pass” –
enquanto viagem e consequente instante de passagem. O vocativo prossegue
o diálogo afectivo da primeira estância; contudo, a perífrase acentua a
dependência do sujeito face à Virgem. O derradeiro terceto introduz a nova
vertente de esperança: o Verbo é nomeado enfaticamente pela palavra – “Thy
name, O Lord.” Nas duas estâncias predomina a mesma instância
propocionadora do diálogo e da esperança, a Virgem: “Mother” e “Mother of
Grace”.

Esta representação do feminino em Rossetti envia para dois níveis


possíveis de leitura: os diálogos135 com a tradição neoplatónica, recorrente em
textos/signos pré-rafaelitas (o universo medieval insere-se neste contexto); e as
idiossincrasias biográficas constantes nos quadros de Rossetti, através da
representação em diferentes esferas de significação daquela que foi a paixão
da sua vida, Miss Siddal. Consideremos, a este nível, “Beata Beatrix” [nas
palavras de Ford Madox Hueffer, “... a lyric; the setting in a paint of a mood.”
(Hueffer: s.d.,129)] ou “Astarte Syriaca” [“The drugged melancholy ... with all
their resigned longing and feeling for the lost and unattainable, is obviously
close to the facts of Rossetti’s own life, in which the adoration and expression of
beauty was the only possible response to the unbeautiful broodings of his own
mind.” (Hilton: 1979, 185)]. De igual modo, o diálogo específico com Dante
participa de um diálogo mais vasto com a simbologia esotérica, na qual se
reconhecem ecos neoplatónicos. Como objecto final surge uma idealização da
representação do feminino; algo de reconfortante num percurso em que “the
pass is difficult”.

Tendo brevemente enunciado as linhas estruturantes em termos semânticos, observe-se, então, o


plano do significante. Importa aqui considerar a especificidade prosódica inglesa, nomeadamente a cadência
do pentâmetro jâmbico e a modelação a nível do troqueu. Estamos, por um lado, perante duas sequências
rítmicas (fónicas) a nível do pentâmetro que correspondem a duas “respirações” distintas da frase; ilustro-as
através de dois celebrados exemplos de frases/versos com estas sequências:

1. Jâmbico:
- ´ - ´ - ´ - ´ - ´ -
To be or not to be that is the question

2. Troqueu:
´ - ´ - ´ - ´
Go and catch a falling star

Por outro lado, estamos perante uma tradição definida pelo género, a
“spenserian stanza”, que recorre tradicionalmente a uma “respiração”
sustentada pelo pé jâmbico. Ora, a sequência rítmica e as eventuais
modulações, resultantes de interferência de pés estranhos numa estrutura pré-
definida no plano formal, serão facilmente perceptíveis para o inglês (que não
para um americano, como Al Pacino com inteligência e humor exemplifica em
Looking for Richard). As interferências poderão eventualmente sinalizar, para
ouvidos mais educados, uma óbvia entropia. Observe-se, então, como se inicia
o poema no plano formal:

´ - - ´ - ´ - ´ - ´
MOTHER, is this the darkness of the end?
O troqueu inicial, acentuando a interpelação, o vocativo, contrasta,
fonicamente, com a sequência ulterior do verso (de acordo com a modulação
métrica jâmbica). As virtualidades enfáticas do troqueu permitem destacar a
interlocutora privilegiada da confissão do sujeito; de uma confissão que, como
referi, corresponde a uma reflexão acerca da existência. Mas o significante não
se destaca apenas neste plano, já que, a nível visual, as maiúsculas acentuam
a diferença deste signo. Recorde-se agora a centralidade da Virgem no quadro
de Leonardo. Rossetti poderia optar por uma descrição de cores, volumes,
perspectivas, designações espaciais, para, dessa forma, “reproduzir” (com
enargeia) o quadro; poderia igualmente recorrer às estratégias várias que, ao
longo dos tempos, se foram afirmando no seio da tradição écfrásica. Rossetti
optou, todavia, por recorrer a uma estratégia inovadora, ao utilizar os
processos próprios da linguagem poética, das suas convenções e tradições
para assim reproduzir as ênfases mais radicais do objecto que lhe serviu de
impulso; daí a subtileza do troqueu, perceptível apenas ao leitor educado nas
singularidades rítmicas do discurso poético anglo-saxónico.

A estética pré-rafaelita exibe um contraponto de consagração espiritual


(que, numa tradição neoplatónica, será indissociável do Belo) face ao cenário
industrial vitoriano, no qual, segundo a perspectiva destes artistas, contrária à
de autores como Whitman, a fealdade prevalece; nesta estética o
transcendente e a espiritualidade triunfarão sobre o materialismo. Explorando
vertentes ancoradas quer no plano do significado (as virtualidades simbólicas
do signo e do discurso poético, ou as fábulas transmitidas ao longo de
gerações, devedoras, nomeadamente, do imaginário popular), quer no plano do
significante (a cor e a composição espacial dos diferentes elementos - signos,
narrativas - que integram o quadro), esta estética consagra a arte como espaço
de encontro com e reconhecimento do transcendente. Esta é uma época de
intensa e radical mudança na interacção do sujeito com o espaço e com o
tempo (a velocidade das novas formas de comunicação – do caminho de ferro
ao telégrafo - questiona as fronteiras convencionais das sociedades rurais
arcaicas; questiona o seu imaginário, a sua realidade), em que a insegurança
face ao mundo emergente não raro desencadeia posturas marcadas pela
ansiedade e pela angústia. Face a este cenário, ao qual acresce a ausência de
resposta por parte dos discursos religiosos dominantes, compreende-se a
assunção da arte enquanto discurso passível de preencher o hiato por estes
deixado.

Aos pré-rafaelitas deve-se ainda a exploração da potencialidade


decorativa da arte – tapeçarias, papéis para forrar paredes, vitrais, etc., o que
permitiu que esta invadisse o quotidiano, e o trabalho colaborativo, inerente ao
espírito de confraria (convocado, aliás, em brotherhood; recorde-se que, na
entrada destinada ao grupo, na Enciclopédia Luso-Brasileira, João Almeida Flor
traduz a sua designação por Confraria Pré-Rafaelita) envolvendo diferentes
ofícios. Se consideraramos que a espiritualidade é algo de endógeno à criação
pré-rafaelita, constataremos, então, que essa potencialidade decorativa permite
a superação da dicotomia entre o espiritual e o funcional. Entre os artistas que
exploraram esta potencialidade destaca-se William Morris. Refiro-o, em
particular, devido à sua influência num dos nomes maiores da poesia de
expressão inglesa que igualmente convocou a tradição em análise, W. B.
Yeats. Devido à extensão e complexidade da sua presença na poesia de Yeats
(Loizeaux, 2003) restringir-me-ei a uma síntese que permita delineá-la.

Na obra de Morris, Yeats reconhece uma relação filosófica entre as artes


visuais e a poesia. Não estamos, portanto, perante a dicotomia definida a partir
da especificidade dos meios, na qual ancora a superação do equívoco
horaciano, elaborada por Lessing. Para Morris, tal como posteriormente para
Yeats, a aproximação entre as artes visuais e a poesia deve-se à coincidência
na essência evocada e representada. Segundo o poeta irlandês, a arte não-
mimética corresponderá a este objectivo; daí que ele considere William Blake
um precursor da estética pré-rafaelita (Ibidem, 24 e 28-31).

O desejo de evitar a abstracção aproxima-o, inicialmente, de um diálogo


em atraso com a noção (equívoco) convencional de “ut pictura poesis”: “... in
the long process of composing ‘The Wanderings of Oisin’ (1889) he had refined
his original notion of song as a painted and be-pictured argosy and developed a
more satisfactory way of countering abstraction with picture.” (Ibidem, 42)
Escrevi “aproxima-o”, devido ao facto de Yeats ir interiorizando a ideia de
poesia enquanto visão. Ora, esta ênfase permite-lhe pôr o texto em diálogo
com (e assimilando) a essência e a potencialidade do signo visual, evitando,
todavia, a ekphrasis. No ensaio que tenho vindo a convocar, Elizabeth
Bergmann Loizeaux define do seguinte modo esta articulação:

The visions that Yeats courted during the 1890s had “none of the confusion of dreams”
(Myth 345). They possessed, rather, the qualities he admired in the paintings of Blake and Pre-
Raphaelites: color and the separation of form by the wiry, bounding line. The better the vision,
the “more clear in color, more precise in articulation” it would be (Myth 344). For Yeats, the Pre-
Raphaelites represented in their pictures the same world of imagination that was tapped by
vision. Although the Pre-Raphaelites depicted what is often called “dream,” their paintings,
especially in the early days of the Brotherhood, possessed the clarity Yeats associated with
vision. (Ibidem, 44)

A centralidade da visão, e do signo simbólico que lhe é endógeno,


devem ainda ser entendidos no âmbito de um diálogo com tradições esotéricas
que será uma constante na vida de Yeats e que passa, igualmente, pela sua
participação em várias sociedades secretas. Entre estas, destaco a Order of
the Golden Dawn (Yeats aderiu a esta organização em 1890, tendo a ela
ficado ligado durante mais de trinta anos), devido ao facto de a simbologia
visual ser aí nuclear no processo de mediação ritualístico. O símbolo permitia-
lhe superar a dicotomia entre abstracção e objecto a representar, evitando,
portanto, tanto uma estética abstracta (que entretanto se delineava em certas
tendências das artes visuais) como aquela que ela considerava ser uma
estética descritiva. O símbolo era por ele entendido, algo sincreticamente,
como instrumento de expressão do abstracto: “‘Symbol’ embodies the abstract
in visual form and, according to Yeats, is the common language of all arts,
especially poetry and painting. ‘Region’ insists that space, though often thought
the province of the visual arts, is an essential element of poetry.” (Ibidem, 50).
Eis como o recurso ao símbolo, para além de participar de uma renovação do
sentido da vida, permite superar a dicotomia lessinguiana entre artes do
espaço e artes do tempo.

Decorrente desta superação surge a exploração poética do espaço,


como no poema dramático “The Island of Statues” (1885), onde Yeats concebe
uma um cenário pastoral devedor de um conhecido quadro de Turner, The
Golden Bough. Em “The Wanderings of Oisin”, um poema temporalmente
próximo de “The Island of Statues” (1889 e 1885, respectivamente), tentou
transpor para o plano textual elementos estruturantes das tapeçarias de Morris,
como a cor e o padrão. A bidimensionalidade não é, todavia, superada na
sedução que sente pela representação espacial na pintura: os artistas que
admira ou recusam a ilusão da tridimensionalidade herdada do renascimento,
ou introduzem distorções na perspectiva que sabotam uma eventual estética
realista. Yeats associaria, então, a ausência de perspectiva à arte imaginativa
(Ibidem, 52-53). A denegação de um presente marcado pela industrialização, e
da estética que o representa, condu-lo à elaboração de cenários, algo
nostálgicos, onde um sentido essencial (uma ordem original) se desvenda.
Seria necessário aguardar pelo virar do século, e pelo seu encontro com o
jovem Ezra Pound que o conduziria às inovações modernistas, para que ele se
sentisse seduzido pela tridimensionalidade, transpondo-a para o texto. Mas,
para tal, deverá ter ainda lugar a sua descoberta das potencialidades da
escultura. A este aspecto regressarei mais adiante.

A nostalgia face a um passado onde uma ordem original se insinua


pode ser reconhecido nos Estados Unidos através da poesia final de Herman
Melville*. Observemos, em seguida, a centralidade do diálogo entre o poema e
as artes visuais na sua abordagem nostálgica dessa realidade perdida.
Durante trinta e quatro anos - entre 1857, data do aparecimento de The
Confidence-Man, e 1891, ano da sua morte, Herman Melville publicará apenas
quatro livros, todos eles de poesia (a novela Billy-Bud só virá a lume
postumamente, em 1924). Antes, entre 1846 e 1857, escrevera dez livros,
todos eles narrativas mais ou menos influenciadas pelas suas experiências de
juventude vividas no mar. Em finais dos anos 50, amargurado pelo modo como
estas suas mais recentes obras de ficção foram acolhidas, abandona a escrita
como actividade primeira e volta-se para a poesia, um género que até essa
altura apenas despontara nas suas narrativas. No ano da sua morte, vem a
lume Timoleon, um livro de poemas onde evoca a sua viagem pelo
Mediterrâneo e pela Terra Santa em meados do século XIX. Nele, Melville não
busca uma representação literal de espaços ou objectos, mas antes o registo

*
À semelhança da análise de Whitman, as palavras que se seguem decorrem da leitura por
mim realizada em Histórias(s) da Literatura Americana.
de atmosferas por eles desencadeadas, e por si anotadas em Journal up the
Straits, o diário mantido durante esta viagem; por exemplo: “There are glades,
& thickets among the ruins – high up. Thought of Shelley. Truly he got his
inspiration here. Corresponds with his drama & mind. Still majesty, & desolate
grandeur … Read Keat’s epitaph.” (Leyda, 1969: 556) Constata-se através da
leitura deste passo que, para Melville, mais do que figurar (descrever, e, num
limite, simular reproduzir), os espaços e os objectos sugerem, evocam. Será
assim que ele os encara e projecta na sua poesia. Devido a essa capacidade
de sugestão que se indicia no espaço cultural do Ocidente, este surge como
privilegiado para um discurso que, segundo ele, a América industrializada da
Golden Age, sua contemporânea, não possui; no berço da civilização
ocidental, no arquivo sedimentado pela História, em objectos, referentes
vários, insinua-se um conhecimento, insinua-se uma sabedoria.

Comecemos por observar a ekphrasis de um quadro, “The Bench of


Boors”. Este poema é inspirado num quadro do pintor seiscentista flamengo
David Teniers, relativamente ao qual Melville nutria uma admiração particular.
Na entrada do seu Diário referente ao dia 10 de Abril de 1857, o autor refere
ter visto: “... charming, Teniers tavern scenes. The remarkable Teniers effect is
produced by first dwarfing, then deforming humanity.” (Robillard, 2000: 342) No
manuscrito Melville assinala apenas “Suggested by a Flemish Picture”, sem
explicitar, portanto, qual o quadro de Teniers a que se refere. Embora não
nomeado, o quadro Boors Carousing participa da atmosfera dominante no
poema. À semelhança de muitos outros poemas de Timoleon, este é um texto
de reduzida extensão, composto por três estrofes apenas:

In bed I muse on Teniers’ boors,


Embrowned and beery losels all:
A wakeful brain
Elaborates pain:
Within low doors the slugs of boors
Laze and yawn and doze again.

In dreams they doze, the drowosy boors,


Their hazy hovel warm and small:
Thought’s ampler bound
But chill is found:
Within low doors the basking boors
Snugly hug the ember-mound.
Spleepless, I see the slumberous boors,
Their blurred eyes blink, their eyelids fall:
Thought’s eager sight
Aches – overbright!
Within low doors the boozy boors
Cat-naps take in pipe-bowl light. (Ibidem, 320-21)

Atente-se no facto de esta ekphrasis corresponder a um exercício da


memória, a qual permite a recuperação/descrição de um objecto artístico pela
linguagem. Esta recuperação pela memória é explicitada logo no primeiro
verso quando o sujeito de enunciação menciona não estar perante o quadro.
“In bed I muse” envia para a distância face ao objecto, simultaneamente
indicando o estado de espírito do sujeito quando este o evoca. A noite
indiciada e o eventual sono não funcionam, todavia, como sinais de ausência
de lucidez ou de “entorpecimento” do espírito, do intelecto, da razão. Numa
estratégia irónica de contraste entre o sujeito e a narrativa presente no quadro,
constata-se que aquele afirma uma lucidez particular, em confronto com o
estado de sonolência dos “boors”. A lucidez deste sujeito não designa, porém,
a euforia, pois “A wakeful brain / Elaborates pain...” Apesar de deitado, o
sujeito está “Sleepless.” Estes versos sabotam uma certa tradição humanista
que identifica o conhecimento com a felicidade. Em contraponto com esta
tradição, Melville afirma que o conhecimento e a lucidez perturbam,
questionando uma certa inocência (algo que os americanos identificam com o
chamado mito adâmico) que inviabiliza o efectivo conhecimento da realidade.

Circunscritas, por seu turno, a um espaço claustrofobicamente fechado,


as personagens da narrativa captada no quadro, estão sonolentas (“In dreams
they doze” ou ainda “their eyelids fall”), absortas face à realidade,
inconscientes; opõem-se, deste modo, à lucidez do sujeito. A ekphrasis
proporciona uma reflexão sobre ser e parecer, sobre essência e aparência,
sobre lucidez e sua ausência, sobre consciência e inconsciência, sobre solidão
e comunidade.

Referencio, em seguida, poemas que, não sendo ekphrasis, denunciam


o impacto da dimensão visual. Entre estes destacam-se “The Night March” e
“The Margrave’s Birthnight”, nos quais o poeta reflecte sobre a sua relação
com Deus. Comecemos por “The Night March”:

With banners furled, and clarions mute,


An army passes in the night;
And beaming spears and helms salute
The dark with bright.

In silence deep the legions stream,


With open ranks, in order true,
Over boundless plains they stream and gleam –
No chief in view! (Ibidem, 314)

Numa primeira leitura será possível reconhecer a cena histórica, a


guerra civil americana, e assim estabelecer uma analogia com “Cavalry
Crossing a Ford”, o poema de Walt Whitman acima analisado: também aqui
surge uma designação espacial (“stream”), a importância explícita (“dark with
bright” ou “gleam”) ou implícita (“night”) da cor. No entanto, o último verso
perturba aquela que, à partida, poderia parecer apenas uma ekphrasis
nocional: “No chief in view!” A estrofe seguinte (a última) reitera a dimensão
simbólica aqui indiciada:

Afar, in twinkling distance lost,


(So legends tell) he lonely wends
And back through all that shining host
His mandate sends. (Ibidem, 325)

Esta última estrofe coloca a ekphrasis na esfera da relação do Homem


com o Transcendente, com Deus. “Army” transforma-se em metáfora de
humanidade, e “chief” uma metáfora de Deus. Refere Lawrence Perrine
(Perrine, 1962) que “The Night March” oculta, sob uma hipotética imagem da
guerra, um diálogo de profundidade com a reflexão em torno da existência
divina. Através de um processo de analogias bíblicas (Ibidem), a estrutura
retórica do texto indiciará o silêncio de Deus e o consequente isolamento do
Homem (Abel, 1960: 334-335).

“The Margrave’s Birthnight” participa de idêntica atmosfera, acentuando


contudo a disforia. Com efeito, se, por um lado, a ausência do chefe-anfitrião
solicita um diálogo com “The Night March”, por outro, é dado relevo ao
contraste evento-euforia/natureza e indivíduo (os camponeses exaustos pelo
trabalho)-tristeza; regista-se ainda a inevitabilidade da ausência, pois, neste
texto, o chefe nem na distância se desvenda. Semelhante jogo entre
presenças e ausências constitui um discurso de permanência neste livro,
conhecendo múltiplas figurações.

Coloca-se a questão de saber onde será possível identificar espaços ou


sinais de perenidade; daí a convocação do tópico romântico da ruína.
Atentemos nos seguintes exemplos: em “The Ravaged Villa”, os fragmentos
(“In shards the sylvan vase lies” [Robillard, 2000: 315]) denunciam uma
degradação civilizacional da qual o capitalismo participa (“The weed exiles the
flower: / And, flung to kiln, Apollo’s bust / Makes lime for Mammon’s tower”
[Ibidem]); em “Lone Founts” (“dipping in lone founts thy hand, / Dring of the
never-varying lore: / Wise once, and wise thence evermore.” [Ibidem, 320]), o
objecto funciona como signo da sabedoria; ou em “The Garden of Metrodorus”,
onde o silêncio designa a ambiguidade, um tema caro a Melville (“is this
stillness peace or sin / Which noteless thus apart can keep its dell?” [Ibidem,
317])

Há, todavia, um poema centrado no processo de descoberta do


artefacto. Significativa e explicitamente intitulado “Disinterment of Hermes”,
este poema recupera a atmosfera que, no início deste capítulo, encontrámos
subjacente à convocação do passado por parte dos românticos. Lembremos
Lessing e aquilo que significou a emergência, à luz do dia, dos artefactos
sepultados ao longo dos séculos, e a sua posterior exibição ao público em
espaços próprios; lembremos a importância da sua catalogação e inserção
num discurso científico sobre a História; lembremos o que essas descobertas
significaram em termos de relfexão em torno da perenidade (face ao homem)
ou da fragilidade do objecto (face à acção da natureza). Melville não retoma,
todavia, uma mera estratégia romântica, já que, para ele, não é o Museu que
surge como objecto de revelação do artefacto. Para Melville, o próprio espaço
actualiza a origem; consagra-se na sua dimensão mítica. Daí que, neste
poema, ele justaponha o olhar do sujeito ao olhar fascinado do arqueólogo:
What forms in adamant fair –
Carven demigod and god,
And hero-marbles rivalling these,
Bide under Latium’s sod,
Or lost in sediment and drift
Alluvial which the Grecian rivers sift.

To dig for these, O better far


Than raking arid sands
For gold more barren meetly theirs
Sterile, with brimming hands. (Ibidem, 337)

A Europa, onde a cultura e a memória clássicas se desvendam, revela


uma ordem primeira; é solo de harmonia e equilíbrio, do qual Homem e
sociedade (polis) participam. Eis alguns exemplos: “Greek Masonry” (“Joints
were none that mortar sealed” [Ibidem, 334]), “Greek Architecture” (“Not
innovating wilfulness, / But reverence for the Archetype.” [Ibidem]), “The
Apparition” (“Abrupt the Supernatural Cross, / Vivid in startled air, / Smote the
Emperor Constantine / And turned his soul’s allegiance there.” [Ibidem, 338]),
“The Great Pyramid” (“Your masonry – and is it man’s? / More like some
Cosmic artisan’s” [Ibidem, 339]), “The Attic Landscape” (“Tourist, spare the avid
glance / That greedy roves the sight to see: / Little here of ‘Old Romance,’ / Or
Picturesque of Tivoli. /…/ ‘Tis art and Nature lodged together, / Sister by sister,
cheek to cheek; / Such Art, such Nature, and such weather / The All-in-All
seems here a Greek.” [Ibidem, 332]), e “The Age of the Antonines” (“A halcyon
Age, far it shines, / Solstice of Man and the Antonines.” [Ibidem, 324])

Quer “Greek Masonry” quer “Greek Architecture,” ao focalizarem um


referente artístico, sugerem a existência de uma Ideia (Arquétipo?) que terá
presidido à sua elaboração; ao deter-se nos pormenores do(s) objecto(s), o
olhar do sujeito tenta desvendar um discurso de permanência, no qual um
sentido original se insinue. Algo de idêntico surge em “The Apparition”, onde o
referente, o Pártenon, é de alguma forma transcendentalizado através do
próprio título. Por seu turno, “The Great Pyramid” permite colocar a questão da
origem da obra de arte: gerada por humanos ou por um “artífice cósmico”? Os
seus labirintos interiores simbolizariam essa (nossa) dificuldade de encontrar
uma resposta para o mistério que o objecto encerra. Essa dificuldade em
desvendar uma eventual dimensão emblemática do referente, tem origem na
viagem de Melville ao Egipto e na impressão que as pirâmides nele
produziram. No já citado Journal up the Straits o autor enuncia uma atmosfera
que posteriormente ecoará no poema:

Pyramids still loom before me – something vast, indefinite, incomprehensible, and


awful. Line of desert & verdure, plain as line between good & evil. An instant collision of alien
elements. A long billow of desert forever hovers as in act of breaking upon the verdure of
Egypt. Grass near the pyramids, but will not touch them, - as if in fear or awe of them. Desert
more fearful to look at than ocean. Theory of design of pyramids. Defense against desert. A line
of them. Absurd. Might have been created with creation. (Leyda, 1969: 550)

Este fragmento representa como, em Janeiro de 1857, o objecto


pirâmide é para Melville um emblema do enigma. Se o “referente de um
discurso não é … a realidade mas sim a sua realidade, isto é, o que o discurso
escolhe ou institui como realidade” (Ducrot, 1984: 419), “The Great Pyramid”,
ao prolongar as inquietações do Journal up the Straits, insere esse referente
no percurso ontológico e epistemológico que esta poesia é. Colocando o
homem numa situação de defeito face ao mistério insinuado no discurso da
Arte, a poesia explora a representação desse defeito sob vários prismas. “The
Great Pyramid”, por exemplo, designa a loucura como resultado da
impossibilidade de atingir o conhecimento. Mais ou menos remoto, o passado
funciona como resíduo do saber, onde se insinuam exemplos a emular, como
sucede em “The Age of the Antonines”. Mais do que um ideal com eventuais
ressonâncias aristocráticas (Donahue, 1969: 69), este texto observa o apogeu
da pax romana como espaço de encontro entre uma ordem temporal e uma
ordem natural (algo que o poema “Timoleon” evoca). Aqui se recusa a
legitimação do poder através da arbitrariedade do nascimento
(metonimicamente, recusa-se a aristocracia tradicional e a ordem imposta por
Timophanes no já referido “Timoleon”), sustentando-se a legitimidade de uma
aristocracia natural (à semelhança da personagem Timoleon, num eco deste
conceito formulado por Jefferson); recusa-se a demagogia e o exercício do
poder pelo medo através do discurso religioso; defende-se uma religiosidade
fundada na razão, assim como o contacto civilizado e baseado no respeito
mútuo entre as nações:

Hymns to the nation’s friendly gods


Went up from the fellowly shrines,
No demagogue beat the pulpit-drum
In the Age of the Antonines!
The sting was not dreamed to be taken from death,
No Paradise pledged or sought,
But they reasoned of fate at the flowing feast,
Nor stifled the fluent thought. (Robillard, 2000: 324)

A unidade (cósmica) Homem – Polis - Natureza – Arte, que Melville


identifica com a época dos Antoninos, enuncia um contraponto com a realidade
americana do presente: “Ah, might we read in America’s signs / The Age
restored of the Antonines.” (Ibidem, 325) Embora raramente enunciado nos
poemas, o espaço histórico americano constitui uma presença subliminar,
fantasmática, latente ao longo da viagem vivida ao encontro dos referentes
clássicos. À América falta uma unidade, “The All-in-All” que ali se indicia.
Reveja-se o Journal up the Straits, numa entrada de Dezembro de 1856:

Entering Syra harbor, I was again struck by the appearance of the town on the hill. The
houses seem clinging round its top, as if desperate for security … The Greek, of any class,
seems a natural dandy. His dress, though a laborer, is that of a gentleman of leisure. This
flowing, & graceful costume, with so much of pure ornament about it & so little fitted for labor,
must needs have been devised in some Golden Age. (Vincent, 1947: 478-479)

Veja-se agora de que forma a experiência (impressão) descrita neste


passo ecoa nos versos de “Off Cape Colonna”:

Aloof they crown the foreland lone,


From aloft they loftier rise –
Fair columns, in the aureola rolled
From sunned Greek seas and skies.

They wax, sublimed to fancy’s view,
A god-like goup against the blue.

Over much like gods! Serene they saw


The wolf-waves board the deck,
And headlong hull of Falconer,
And many a deadlier wreck. (Robillard, 2000: 334)

Através do contacto com a(s) História(s) da Antiguidade Clássica, com


seus monumentos, heróis e lugares, com outros instantes dos discursos
cultural, artístico (para além dos monumentos referidos, o quadro de Tenier) e
histórico, Timoleon regista um intenso peregrinar ontológico. Através dele, o
poeta reflecte sobre os limites do Homem e a efemeridade da vida, tentando
descortinar um sentido para a Existência. No entanto, o envolvimento do autor
com o texto (o confessionalismo e, dele decorrente, o pathos) simula a sua
interrupção numa zona limite devido ao jogo com referentes e máscaras
(personae) a quem a enunciação é atribuída, ou a partir das quais ela se
realiza. Importa recordar os exemplos de dissimulação e impessoalidade,
revelados através de Keats e de Shelley, apresentados no início deste
capítulo. A eventual identificação imediata entre autor e sujeito de enunciação
é assim evitada através de uma estratégia de ocultação (dissimulação). São os
objectos que indiciam (permitem a verbalização) aquilo que a instância autoral
não quer ou não é capaz de verbalizar. Como se vê, Melville não se limita a
desvendar na Europa os signos culturais que não encontra no seu país, no
mítico Novo Mundo; também na Europa ele encontra as estratégias de
enunciação que, no final da vida, assume como suas para insinuar aquelas
que foram as suas idiossincrasias. O Velho Mundo, o seu solo, as suas ruínas,
os seus vestígios do passado, as suas narrativas, os seus ícones artísticos e
culturais designam uma memória, transformando-se, afinal, no objecto da
própria ekphrasis.

Enquanto que, como vimos, nos Estados Unidos Whitman propunha


novos caminhos (rupturas, mesmo) para o discurso poético, nomeadamente
através da assimilação de estratégias inerentes às artes visuais, na Europa as
artes plásticas apontam novos caminhos a nível da representação. Cézanne é,
a este nível, uma figura incontornável. Ao analisar a evocação de “Mariana”
feita por Millais, referi a tentativa de superação do academismo dominante
através de um regresso às estratégias de representação anteriores a Rafael,
realizada pela Pre-Raphaelit Brotherhood. Com Cézanne assistimos
igualmente a uma tentativa de superação, neste caso do legado renascentista
da perspectiva. Este pintor reformulará este conceito que, segundo ele, assenta
num equívoco: a profundidade é apenas simulada na tela; ela não existe, de
facto, aí. Cézanne substitui a perspectiva convencional pela exploração das
tensões entre cores e volumes, os quais são ostensivamente expostos na
representação. A ideia de uma mimesis enquanto espelho (reprodução) do real,
e as dela decorrentes estéticas realista e naturalista, são, assim, desmontadas.
A par desta inovação, os impressionistas exploram quer as fronteiras de luz
entre os signos e os espaços dos quais participam, quer as dinâmicas (o
movimento) existentes entre as diferentes cores e tonalidades; daí, também, o
seu fascínio pelas atmosferas exteriores. Estes são tempos de intensa e radical
pesquisa e elaboração estética a partir da qual se reformula o conceito de
mimesis. Em Murray Roston encontramos ainda outros exemplos:

Seurat … consciously searching … for a basically new system of painting, an ‘optical


formula’ scientifically dependent upon the reciprocal effects of adjacency. From Chevreul he
learned that a colour reaches its maximum intensity upon the canvas, they enhance each other,
whereas when mixed on the palate, they destroy each other. Ogden N. Rood’s important study
of 1789, Modern Chromatics, which Seurat read in a French translation, had taken up
Chevreul’s ideas and added an important factor, the recognition that the human eye retains an
after-image of any shape or colour it receives, which mingles with the next colour the retina
absorbs. The result is a new conception of colours as not merely contrasting or complementing
each other as they lie side-by-side on the canvas but as blending, reacting, or interacting as a
dynamic sequential process within the viewer’s eye. (Roston, 1996: 146)

Embora lateralmente, estes exemplos são relevantes para a análise do


poeta que escolhi para encerrar este percurso oitocentista, visto ele próprio
antecipar a modernidade poética do século XX. Refiro-me a Cesário Verde.
Apontarei os seguintes aspectos da poesia de Cesário: o eventual impacto e
assimilação do impressionismo nos seus versos, e a antecipação de
estratégias de representação modernistas.

A presença do impressionismo na sua poesia é detectada por José


Régio: “Cesário Verde cria essa poesia que parece flutuar sobre estes dois
mundos [‘mundo interior’ e ‘mundo exterior’] sem chegar a relacioná-los, e
deles transmitindo principalmente os pormenores, os momentos fugidios, as
nuances destacadas. É uma poesia essencialmente impressionista.”
(Rodrigues, 1998: 11. Itálico meu) Esta perspectiva parece ser corroborada na
afirmação de Fernando Cabral Martins acerca das “[p]ersonagens que
aparecem e se esfumam” (Martins, 1988: 86; itálico meu). A analogia entre a
poesia de Cesário e o impressionismo é contrariada por Jorge de Sena, o qual
“defende que os poemas de Cesário não se organizam segundo ‘uma típica
dispersão impressionista,’ mas que, pelo contrário, a ‘tradicional sujeição a um
tema, uma ideia, um centro afectivo’ existe em Cesário e ‘é mesmo a
motivação estrutural de alguns dos seus mais belos poemas.’” (Ibidem, 13)
Como traço comum as leituras divergentes de Régio e Sena surge a dimensão
visual devedora do discurso pictórico. Este aspecto é analisado por Fernando
Cabral Martins, o qual, a propósito do poema “Esplêndida”, refere que este “é
... como um quadro animado, de uma nitidez que é efeito novo da figuração, no
seu interior, do próprio olhar que o vê.” (Ibidem, 55; itálico meu) A proximidade
da ekphrasis é, de novo, convocada na sua leitura de “De Tarde”:

A sucessão dos movimentos integra numa mesma pintura o cenário, a personagem


feminina que com ele entre em fusão, e o ‘eu’ poético cujo ver produz a imagem ... A nota de
cor viva (‘ramalhete rubro’) com que termina já transcende o ‘pic-nic de burguesas,’ mistura a
personagem de mulher e a terra que as flores metonimizam: a mulher é a soma da natureza,
‘papoulas,’ ‘rolas,’ ‘seios.’

Há ainda a considerar a repetição do verso final da segunda estrofe no verso final do


poema: ‘Um / O Ramalhete rubro de/ das papoulas.’ A simetria de construção que implica serve
para fazer coincidir, em sobreimpressão, a imagem ao longe da mulher inclinada sobre o
‘grande azul’ com a imagem ao perto das ‘papoulas,’ tão perto que esse pormenor ocupa todo
o quadro. A repetição é aqui o instrumento da metamorfose da imagem em símbolo. (Martins,
1988: 112)

Para além dos aspectos mencionados por Cabral Martins, importa referir
que este poema ecoa a estética impressionista que será particularmente
reconhecível quando estabelecemos uma relação com a pintura de Monet.
Considerem-se os seguintes aspectos da analogia e da sua representação
através do discurso: centralidade cromática das “papoulas” – mancha
vermelha; contraste das cores (estética impressionista) a nível da palavra;
ênfase na sensação visual; harmonia: retrato domina o restante; importância da
percepção, designada através dos verbos ver e olhar; a cor em constante
mutação, transfiguração, através do contraste entre tonalidades esbatidas e as
fortes e vivas; e o brilho (luz intensifica e/ou dilui os cromatismos); por fim, o
contraste luz/penumbra, evocador do chiarosccuro. O intenso visualismo
poderá ser igualmente detectado através da evocação de pintores como
Courbet ou Arcimboldo, a qual foi objecto de estudo por parte de Andrée
Crabbé Rocha (cf. Rodrigues, 1998). Revela-se particularmente curiosa a
analogia com Arcimboldo presente em “Num Bairro Moderno:”

Se eu transformasse os simples vegetais


À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

E eu recompunha, por anatomia,


Um novo corpo orgânico, aos bocados,
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças de um cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas – os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante


Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre. (Verde, s.d.: 42-43)

O sujeito de enunciação assume-se como criador que, através da


palavra, transfigura o referente. A sua transfiguração não deixa de ser
mediatizada pela interferência de uma outra entidade, o sol, na prosopopeia,
designado “intenso colorista”; a ele se deve a transfiguração primeira
desencadeada pela luz (natural), pela criação de ênfases (intensidades) de cor
e brilho, pelo contraste implícito com zonas de sombra. É a partir desta
recomposição (pintura) operada pela luz solar, e por ela condicionado, que o
sujeito de enunciação inicia a sua mais radical transfiguração ao transformar
todos os referentes em fragmentos que integram uma prosopopeia global de
onde emerge o corpo humano, e onde a estética de Arcimboldo se reconhece.

O Cozinheiro

Nesses fragmentos, e a partir deles, Cesário projecta uma intensa


sensualidade. Fernando Cabral Martins refere que “... o corpo feminino que
cresce, ou a Terra, a natureza metonimizada nos seus frutos, é dada na última
estrofe finalmente posta nos seus pés, erguida nos ares, na mistura semântica
(que em termos de poética poderíamos chamar, talvez, naturalismo e
simbolismo simultâneos) de uma pintura realista e de uma metáfora realizada
(‘como as grossas pernas dum gigante’).” (Martins, 1988: 75) Ainda segundo
este ensaista, “Num Bairro Moderno” antecipa “O Sentimento de um Ocidental”:
“‘Pinto quadros por letras, por sinais,’ verso mil vezes citado que sintetizará em
Nós a poética de Cesário, surge-nos desde logo muito mais próximo do
simbolismo ... do que do realismo. A leitura realista que é feita habitualmente
desse verso parece esquecer, em suma, que os modos do ‘pintar,’ a natureza
do ‘quadro’ e o campo de referência de ‘letras’ e ‘sinais’ são da ordem da
sugestão, e não da mimese. Aquilo que Cesário pinta não são coisas, mas
sensações e sentimentos.” (Ibidem, 81)

“O Sentimento de um Ocidental” revela-se particularmente importante no


âmbito da leitura que tenho vindo a expor devido ao facto de permitir observar
a terceira vertente acima referida: a antecipação de estratégias de
representação modernistas. Antes de desvendarmos essa antecipação, e ainda
na esteira do impacto visual que quase simula a ekphrasis, dever-se-á acentuar
a forma como a cidade surge aos olhos do sujeito. Na sua representação,
eventualmente devedora de Baudelaire, é nuclear a transfiguração operada por
aquilo que poderemos chamar luminosidade (artificial) moderna:

Nas nossas ruas, ao anoitecer,


Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia,
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,


O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina. (Verde, s.d.: 63)

Regressemos, então, à antecipação de estratégias de representação


ulteriores. Como adiante veremos, uma das dimensões mais revolucionárias da
estética modernista prende-se com a subversão radical operada a nível dos
conceitos de espaço e de tempo. Ora, segundo Óscar Lopes, este poema “...
ultrapassa com maior fôlego estrutural o seu naturalismo positivista,’ ao
articular os ‘dados da percepção sensível (...) de um modo inteiramente novo,
precursor do Cubismo ou Interseccionismo,’ e, sobretudo na última parte do
poema, ao ‘espacializar o tempo,’ apresentando vários ‘momentos
irreversivelmente seriados como se pertencessem ao mesmo painel
simultâneo’...” (Lopes, 1987: 467) A centralidade deste diálogo entre discurso
poético e pintura revela a modernidade da sua poesia, enquanto solo de
urbanidade e de confluência entre pathos e bathos. Quando o Modernismo se
avizinha, Cesário parece anunciar, afinal, a superação da dicotomia
apresentada por Lessing.
Não havendo marcos precisos para designar a emergência do
Modernismo, tomo como motivo de reflexão a provocadora declaração de
Virginia Woolf: “On or about December 1910 human nature changed... All
human relations shifted – those between masters and servants, husbands and
wives, parents and children. And when human relations change there is at the
same time a change in religion, conduct, politics, and literature.” (Bradbury,
1976: 33) Trata-se, obviamente, de uma elocução irónica, já que uma tão
abrangente e radical alteração de comportamentos, mentalidades ou estéticas
não se processa num instante claramente delimitado no tempo. A ideia de
ruptura a ela subjacente é, todavia, relevante e merecedora de análise, já que
ela se afigura indissociável da interacção entre a poesia e as artes visuais no
tópico que evocarei em seguida, o Modernismo.

Para uma breve reflexão em torno deste tópico, regressarei a Cézanne,


tomando como ponto de partida Cerejas e Pêssegos, um quadro por ele
pintado entre 1883 e 1887; através deste abordarei um conceito nuclear na
revolução modernista, o conceito de representação, de mimesis. Ao convocar
os primeiros anos do século XX, somos inevitavelmente confrontados com a
presença de Cézanne, e deste quadro em particular. De tal modo que, a par de
Ceci n’ est pas une pipe, de Magritte, ele pode funcionar como um ícone
desses tempos. Justifica-se esta designação – ícone - através de um
intencional “erro” mimético. Onde reside esse “erro”? Em Cerejas e Pêssegos
Cézanne ignora, mais correcto seria dizer, sabota, a noção de perspectiva, a
ilusão de profundidade, e de consequente tridimensionalidade, herdadas da
Renascença. “N[est]a natureza-morta ... , o prato de cerejas está de tal modo
inclinado para a frente que se tem a impressão de a estar a ver de cima.
Passa-se a mesma coisa com a parte traseira da mesa, ao passo que a parte
da frente está pintada de tal maneira que se julga estar à mesma altura. O
prato de pêssegos e o pichel estão igualmente representados numa
perspectiva mais chã.” (Becks-Malorny, 2001: 55) Subjacente a esta
sabotagem da perspectiva, surge a recusa da reprodução da realidade; em
contrapartida, Cézanne compõe uma realidade. Para ele, “[n]ão são os
objectos próprios que devem atrair a atenção, mas a disposição das colorações
e das formas segundo a concepção do pintor. Mediante esta maneira de ver
subjectiva,..., Cézanne cria uma nova realidade.” (Ibidem, 56) Com efeito, é
toda uma tradição de representação, radicada na Antiguidade clássica e
prolongada na história da cultura ocidental, e que Auerbach analisa no seu
clássico Mimesis, aquela que, neste icone, é superada.

Registe-se outro aspecto, a banalidade (que eu designo) “democrática”,


do referente. Para criar “um novo plano da realidade”, Cézanne “não tem
necessidade nem de objectos artísticos nem de decorações sumptuosas: as
coisas mais simples são aquelas que melhor o ajudam a concretizar as suas
concepções sobre a profundidade, a consistência e o peso numa estrutura
plana.” (Ibidem, itálico meu) Sensivelmente na mesma altura, do outro lado do
oceano, numa pequena cidade da Nova Inglaterra, um compositor norte-
-americano, Charles Ives, antecipava as rupturas a nível do atonalismo e
dodecafonismo que Arnold Schönberg iria formalizar na cena musical do início
do século XX. Para entender a amplitude da sua inovação, recorro ao segundo
movimento da peça Três Lugares na Nova Inglaterra, intitulado “Putnam’s
Camp, Redding, Connecticut”, uma fantasia composta a partir de uma
reminiscência da infância de Ives. Durante uma celebração do 4 de Julho, este
observou duas bandas que se encontravam em extremidades opostas do
parque. Cada uma seguia o seu percurso em direcção ao local onde ele se
encontrava, criando, no momento em que ambas se cruzaram, uma
impressionante dissonância. O músico retoma este episódio na peça,
representando o intimismo do jovem através de instrumentos de sopro, e
daquilo que, convencionalmente, se considera o registo da música erudita.
Gradualmente, o tecido musical (erudito) é invadido pela alteridade (um registo
popular); num determinado instante, quando as bandas se cruzam na mente do
sujeito, dá-se uma fusão entre registos distintos, o erudito e o popular; aspecto
fundamental: cria-se uma nova identidade, uma nova dimensão estética.
Coloca-se, assim, a questão de saber como definir este novo registo artístico,
já que ele não se enquadra nos cânones, na convenção? A dificuldade para
encontrar uma resposta a esta questão sinaliza uma das novas realidades que
marca a cena artística dos primeiros anos do século XX: a perplexidade de um
leitor ou de um espectador perante signos que iludem, ignoram, sabotam, até,
as convenções estéticas que os precederam.

A perplexidade evidencia-se face àquelas vertentes estéticas que, na pintura, se fastam gradualmente
da figuração, perturbando a legibilidade convencional e abrindo caminho para a chamada abstracção.
Curiosamente, será na poesia, em particular na de Mallarmé, que a pintura pode reconhecer um impulso
significativo para esses novos caminhos -“... ils [les pionniers de l’art abstrait] étaient fascinés par le glissement
de la fonction dénotative des mots vers leur force expressive et émotionnelle intrinsèque.” (Roque: 2003, 19) -
e para um reposicionamento face ao próprio conceito de representação - “De même que la poésie constituait
un langage ‘pur’, ils ont conçu analogiquement un art ‘pur’, lui aussi, par l’accent mis sur les moyens de la
peinture (lignes et couleurs) pris par eux-mêmes et non plus mis au service de la dénotation d’objets.” (Ibidem)
Este processo, marcado por uma radical intelectualização, implica um afastamento face à natureza. Refira-se
que, na opinião de Reynolds, o belo ideal decorreria da depuração das imperfeições da natureza. Entre as
inúmeras ampliações estéticas, destaco o fauvismo devido ao facto de, nesta vasta reformulação de conceitos
e objectivos, ele se impor pela defesa da artificialidade da pintura, e pela ênfase na construção através da cor
em detrimento da imitação da natureza: quanto mais se afasta das cores da imitação, mais se destaca a cor
em si. Daí que Matisse tenha trabalhado um “alfabeto das tonalidades” e um “alfabeto das linhas” com o
objectivo de as decompor nos seus constituintes mínimos ou essenciais. Abstracção e essência (belo ?)
confluem, portanto.

Matisse impõe, porém, um breve regresso à noção de representação. Em Inner Vision – An


exploration of Art and the Brain, um estudo fascinante sobre as subtis relações entre a pintura e o
funcionamento do cérebro, Semir Zeki esclarece que a noção de perspectiva tradicional assenta num
concepção errónea, a de que a imagem do mundo visual é “impressa” na retina e depois transferida para ser
“recebida” pelo córtex “visual” onde seria descodificada e analisada. Segundo a concepção científica actual, a
“impressão” da imagem na retina constitui apenas um estádio inicial no processo elaborado da visão que se
estende a áreas superiores do cérebro; a retina funciona como filtro e regista transformações na intensidade
da luz, ou nas ondas de luz entre um campo de visão e outro, e depois transmite estas informações para o
córtex cerebral. A retina não consegue excluir a informação desnecessária, nem seleccionar apenas o que é
fundamental para representar as características essenciais e constantes do objecto. Além disso, a retina está
ligada apenas a uma parte do córtex cerebral e não ao seu conjunto (área V1). De acordo com esta
perspectiva, Zeki conclui que, neurologicamente, a grande arte poderá ser definida como a que mais se
proxima da representação do maior número de facetas da realidade, deste modo satisfazendo a busca do
maior número possível de essenciais por parte do cérebro. Como se caracteriza, então, a constância face a
um determinado objecto? A partir de um desdobramento deste conceito. Teríamos, assim, a constância
situacional – uma dada situação tem características comuns a muitas outras análogas, permitindo ao cérebro
reconhecê-la como representativa, e a constância implícita – obras “incompletas” que o cérebro pode
interpretar sob diferentes perspectivas. Estamos, portanto, em pleno solo de ambiguidade (de sentido) e de
convocação da memória (de outros signos).

De acordo com esta leitura, um quadro não poderia representar um


objecto; apenas o cérebro teria a capacidade para o fazer, visto tê-lo
percepcionado sob diferentes ângulos e tê-lo categorizado como representando
uma classe particular. Com efeito, Magritte explorou a memória visual
armazenada no cérebro, introduzindo uma espécie de trompe de l’esprit
análogo ao que Picasso descreveu nos seus quadros de cubismo sintéctico. As
relações entre objectos são tão previsíveis que passam despercebidas, o que
diminui o seu valor. Ora, Magritte alterou essas relações, assim sabotando a
noção de representação (Zeki, 1999: 1-36).

Às inovações a nível da representação introduzidas por Cézanne e pelos fauvistas, e às


reformulações estéticas de Ives (coabitação e posterior fusão de sistemas referenciais com origens distintas –
erudito e popular), deverão ser acrescentadas aquelas que, entre finais do século XIX e as duas primeiras
décadas do século XX, noutras formas de expressão artística vão tendo lugar. Tendo em vista o objecto da
leitura que tenho vindo a fazer, destaco as seguintes: na narrativa, e no romance, em particular, a chamada
corrente da consciência que se deve ao impacto da livre associação estruturante na psicanálise freudiana; na
poesia, o processo de desconstrução das formas tradicionais – soneto, sestina, redondilha, et al, e a
consequente celebração do verso livre, e dos processos de colagem e montagem, nomeadamente, de registos
discursivos oriundos de níveis culturais distintos que se insinuam em estéticas pessoais; por fim, a emergência
do cinema (refira-se a elevação da montagem a categoria estética e narrativa, realizada pelo cineasta russo
Eisenstein) e da fotografia, como formas de expressão artísticas autónomas.

A par destas alterações radicais assiste-se a uma, explítica ou implícita,


crescente interacção entre diferentes formas de expressão artística, algo que a
poesia de Cesário revelou. Como pudémos constatar através dos seus
poemas, em Cesário a dimensão emocional – pathos - surge a par da
especulação intelectual – bathos, decorrente da articulação entre a linguagem
poética e a componente visual. Como temos vindo a observar, esta
especulação emocional é algo de relevante na tradição poética anglo-saxónica,
como referia, aliás, Jorge de Sena num passo já citado no Capítulo I: “Os
ingleses nunca puseram em causa a grandeza lírica de Wordsworth ou de
Shelley filosofando em verso, nem acharam que o lirismo deles se concentrava
exclusivamente nos poemas breves.” (Sena, 1978:161)

Concluir-se-á que, no Modernismo, o discurso poético e, em particular, a interacção entre este e


outras formas de expressão artística, nomeadamente a pintura, participa de uma reformulação mais vasta
daquilo que então alguns poetas de vanguarda entendiam dever ser a poesia. Através desta interacção
celebram-se tanto a reflexão e a consequente intelectualização do objecto, como a hospitalidade para acolher
inovações operadas por essas outras formas de expressão; por exemplo: a montagem cinematográfica que se
reflectirá no carácter multivocal, fragmentário e elíptico do discurso poético; a técnica de colagem ou a
sobreposição de várias camadas de tinta, assim criando diferentes texturas que se reflectirão na poesia
através da óbvia ou, tantas vezes, subliminar, coexistência e/ou sobreposição de vários registos, narrativas
e/ou máscaras – personae; e ainda a confluência de registos culturais e sociais distintos – o erudito e o
popular – num só espaço textual, como sucede com a música de Charles Ives, e que se reflectirá na poesia
em termos de uma coabitação de níveis de linguagem radicalmente distintos (a coabitação do erudito com o
familiar e o popular).

Além destes aspectos insinuam-se ainda uma nova concepção de artista


e um novo diálogo do criador com o espaço que o rodeia. Segundo Roston, o
Modernismo revela: “…[a] new conception of the writer or artist, including the
fictional projection of himself into the created work…” É a partir desta
concepção que se opera a reformulação do diálogo com o referente. O criador
distancia-se dos topoi celebrados pelas primeiras gerações românticas - “in the
picturesque hamlet, in the dark mists shrouding the city, in the lonely shepherd,
or in the wilderness of storm and tempest” – e aprofunda o legado das
gerações românticas ulteriores e das que lhes sucederam, buscando motivos
“… within the sculptor’s studio, the art gallery, and the museum where, isolated
from the vulgarity of the outside world and from the ephemeral setting of nature,
he could apply to the eternal artefacts they contained the aesthetic
discrimination of a cultivated mind.” (Roston, 2000: 176) A identidade artística
afirmada no Modernismo implicaria, portanto, um “realignment of interest,” uma
nova relação, mais distanciada, crítica e cerebral, entre o sujeito e o objecto:
“… emotional identification became replaced by the more detached scrutiny of
the critic, for whom life had now itself become a form of artefact, to be judged
and evaluated rather than experienced.” (Ibidem, 176-177)

Ancorados numa superação das estéticas realistas e naturalistas, com


os seus inerentes e inevitáveis intuitos moralistas, destacam-se o carácter
experimental do processo de criação artística, a busca de formas de expressão
inovadoras, eventualmente reveladoras de uma estética individual, a
artificialidade, e a abertura a estéticas provenientes de espaços culturalmente
excêntricos. Ainda antes de os artistas surrealistas terem assimilado as
potencialidades referenciais e estéticas oferecidas por culturas asiáticas ou
africanas, a abertura do ocidente ao espaço cultural japonês irá providenciar
um prolongamento do “culto oitocentista do artefacto” e da estratégia de
representação simbolista. Murray Roston define, do seguinte modo, a
assimilação daquela cultura:

The expressionistic drawings by the Japanese artist Kiyotada, with areas of


unmodulated colour sharply outlined in defiance of mimetic realism, the ceremonial porcelain
vases with their sophisticated ornamentalism, and the ritualized drama of the Noh and Kabuki
plays, where a bamboo rod, held horizontally, sufficed symbolically to represent a bridge,
provided cultural credentials from the past for the stylized forms remote from the natural to
which the new generation was attracted. (Ibidem, 174)

Para compreendermos a verdadeira dimensão das mudanças estéticas que então se operam,
devemos assim ter presente que estas decorrem da abertura a espaços de alteridade, a horizontes culturais e
artísticos exógenos, num tempo de mudanças aceleradas e de busca sistemática, e teoricamente sustentada,
de novas estratégias de enunciação poética. Muita da poesia que se escreve num contexto modernista expõe
um diálogo implícito ou explícito com outras formas de expressão artística, assimilando inovações ensaiadas
nesses campos. Sintetizo, em seguida, alguns dos exemplos mais significativos desse diálogo. Começarei por
alguns exemplos de diálogos implícitos, transitarei depois para algumas elaborações teóricas; e concluirei com
exemplos de diálogos explícitos.

No âmbito dos diálogos implícitos recorro aos poetas norte-americanos


Wallace Stevens, Ezra Pound, T. S. Eliot (o qual viria a adquirir cidadania
inglesa) e William Carlos Williams, a quem regressarei, aliás, mais adiante
quando enunciar algumas formulações ecfrásicas da pós-modernidade.
Embora Stevens tenha explicitado esse diálogo em poemas como “The Man
with the Blue Guitar”, onde Picasso é convocado, será, todavia, em “Anecdote
of the Jar” que o poeta assimila o registo visual e a sua função nuclear na
reformulação, reordenação do espaço:

I placed a jar in Tennessee,


And round it was, upon a hill.
It made the slovenly wilderness
Surround that hill.

The wilderness rose up to it,


And sprawled around, no longer wild.
The jar was round upon the ground
And tall and of a port in air.

It took dominion everywhere.


The jar was gray and bare.
It did not give of bird or bush,
Like nothing else in Tennessee. (Stevens, 1990: 76)

O signo, elemento artificial (“não natural”), que, por acção humana, é


inscrito na natureza, leva à recomposição desta. A natureza, antes
independente da intervenção exterior, “wilderness”, é reeenquadrada
visualmente. Passando a existir em função do signo, ela não é, propriamente,
domesticada, ela passa a ser apropriada pelo texto, em função do qual e no
qual ganha uma nova identidade, uma nova existência. Banal, simples e
despojado, sem vida, “gray and bare”, este “jar” tem, contudo, o poder de
estruturar uma nova percepção do espaço, “It took dominion everywhere”: é a
partir desta figura geométrica que a natureza e os seus elementos ganham
novas identidades. O próprio Tennessee citado no último verso, surge em
função desse signo; a sua identidade não é já a de um estado americano, com
características sócio-culturais específicas, mas sim a de (mais) um signo
artificial dentro de uma moldura que o poema designa.

Num tempo onde as grandes referências culturais e religiosas se diluem,


a poesia e a arte funcionam para Stevens como elementos de reordenação do
real, de reformulação do sentido para a própria existência. A poesia participa
de um processo de descoberta da essência, “things as they are”; em certa
medida, ela sucede ao culto religioso. O espiritual não significa já algo que se
convoca; ele funde-se com o objecto da própria arte. Semelhante vertente que
em Stevens adquirirá uma consistência épica em Notes toward a supreme
fiction, ocupa o núcleo de uma certa vertente de vanguarda estética na arte do
início do século XX. Considerem-se dois exemplos. Em primeiro lugar, o ensaio
pioneiro de Wassily Kandinsky, Do espiritual na arte, onde o artista explora,
entre outros aspectos, a forma como a cor impressiona espiritualmente o
“beholder”, levando-o a concluir: “Il est donc clair que l’harmonie des couleurs
doit reposer uniquement sur le principe de l’entrée en contact efficace avec
l’âme humaine.” (Lichtenstein, 1995: 581) Em segundo lugar, a composição
sustentada por formas elementares geométricas realizada por Pietr Mondrian.
Segundo Werner Haftmann, “[a]trás dele [Mondrian] encontra-se uma nova
figura de artista que está próxima do matemático-teórico e que cria, à base de
relações numéricas e modelos fundamentais geométricos, a ordem formal em
que se baseia a harmonia. Estes quadros fabricados de forma severamente
geométrica ... têm alguma coisa de ícones, as transparentes filigranas de
números de um espírito inteligente que contempla.” (Sedlmayr, s.d.: 107) À
semelhança do que sucede com a música, a pintura não-figurativa evolui no
sentido de representar, não o fenómeno, mas sim a essência interna (Ibidem,
69). No discurso poético, uma tradição configura esse objectivo, a da “poesia
pura”, de Mallarmé, Rimbaud ou Verlaine. Pelo contrário, em Stevens, a
representação do fenómeno será indissociável do logos; daí que em Notes
toward a supreme fiction o processo se confunda com a estrutura do poema.
Como adiante veremos, Robert Duncan identifica-se com uma outra vertente
ainda da representação do fenómeno.
A estética emergente desta demanda é assim indissociável, em Stevens,
da função da arte, a qual será por ele amplamente exposta na ensaística de
The Necessary Angel. Em “The relations between poetry and painting”,
encontramos a resposta teórica para aquele poema, a qual participa de uma
concepção neoplatónica que concede à arte essa capacidade de ordenação,
de afirmação de um sentido que, noutros discursos, o autor não reconhece.
Logo no início do ensaio Stevens cita um passo de Appreciation, de Leo Stein,
onde essa resposta teórica se evidencia:

He [Stein] says that, when he was a child, he became aware of composition in nature
and gradually realized that art and composition are one. He began to experiment as follows:

I put on the table … an earthenware plate … and this I looked at everyday for minutes
or for hours. I had in mind to see it as a picture, and waited for it to become one. In time it did.
The change came suddenly when the plate as an inventorial object … a certain shape, certain
colors applied to it … went over into a composition to which all these elements were merely
contributory. The painted composition on the plate ceased to be on it but became part of a
larger composition which was the plate as a whole. I had made a beginning to seeing pictorially.
What had been begun was carried out in all directions. I wanted to be able to see
anything as a composition and found that it was possible to do this. (McClatchy, 1998: 112-113)

Através da experiência de Stein convoca-se a urgência primeira face à


poesia e à arte contemporâneas, isto é, a de treinar, educar o olhar, aprender a
ver de novo: entender o signo “as an inventorial object”; passar a enquadrar o
fragmento do real enquanto microcosmo, composição com uma estrutura, uma
lógica próprias. A arte reeduca (a sensibilidade, a percepção d)o sujeito, assim
cumprindo uma função social, “in an age in which disbelief is so profoundly
prevalent or, if not disbelief, indifference to questions of belief, poetry and
painting, and the arts in general, are … a compensation for what has been lost.”
(Ibidem, 120)

Esta função social adquire em Ezra Pound uma dimensão superior; com
ele o texto participa da paideia. Pound é um dos grandes poetas de lingua
inglesa do século que findou, assim como um crítico e teorizador
particularmente arguto. A ele se deve uma radical agitação da cena literária
inglesa modernista, nomeadamente através da dinamização de dois
movimentos relevantes, o Imagismo e o Vorticismo. De reter ainda a sua
influência no então consagrado Yeats; uma influência geradora de uma
viragem no seu percurso criativo e que o fará abraçar aspectos relevantes da
estética modernista anglo-saxónica. Aponto apenas a vertente dessa influência
relevante para esta leitura. No Inverno de 1913-1914, Pound deu a conhecer a
Yeats as obras dos jovens escultores Henri Gaudier-Brzeska e Jacob Epstein,
e o teatro japonês Nô. A escultura e o teatro Nô projectar-se-iam, de formas
obviamente diferentes, na poesia de Yeats. Neste teatro japonês o poeta
reconheceu uma estratégia dramática que lhe permitia libertar-se do
naturalismo e dos constrangimentos cénicos convencionais (Loizeaux, 2003:
105-116); na escultura foi colher a pluridimensionalidade que lhe permitiu
superar a bidimensionalidade pré-rafaelita, inaugurando, a partir de
Responsabilities (1914), um novo diálogo da sua poesia com as artes visuais e
a possibilidade de uma nova representação espacial no texto (Ibidem, 118).

Uma das questões centrais nestes ensaios, de inovação ou eventual


ruptura, é a da inteligibilidade do texto quando a abstracção se insinua, algo de
que, como acima referi, Yeats tinha consciência e que tentou superar através
da assimilação pelo discurso poético de estratégias visuais, o símbolo e o
padrão. A abstracção na pintura, ou o atonalismo musical, se radicalmente
reproduzidos (transpostos para) no texto poético, torná-lo-iam ilegível. Daí que
a assimilação das rupturas celebradas noutras artes não tenha significado
transposição, mas sim refracção; a refracções várias se devem as inovações
poéticas modernistas, como serão os casos do Imagismo e do Vorticismo.

Retomando o impacto de Pound nestes movimentos, recordo que me


interessa registar apenas o que neles se assinala de acolhimento, pelo texto
poético, das estéticas visuais. Começarei pela agenda imagista através da
leitura do diálogo em análise, levada a cabo por um poeta da geração que lhe
sucedeu, Stephen Spender: “The Imagists tried to turn poetry into word-painting
or sculpture. They wanted to release poetry from the burden of past
conventions and traditional ways of thinking by concentrating upon reproducing
the image which springs naked into the mind from the impact of modern life.”
(Ibidem, 224) Ora, o próprio Pound abordaria a estética de vanguarda num
ensaio de 1915, intitulado “Vorticismo”. A novidade dos tempos modernos é por
ele evocada em termos da necessidade de reformular a percepção estética e
de, consequentemente, encontrar formas de expressão artística que a ela se
adequem: “Vorticism, especially that part of Vorticism to do with form … has
brought me a new series of perceptions … What was a dull row of houses is
become a magazine of forms. There are new ways of seeing them. There are
ways of seeing the shape of the sky as it juts down between the houses. The
tangle of telegraph wires is conceivable not merely as a repetition of lines; one
sees the shape defined by the different branches of wire.” (McClatchy, 1999:
20-21) Subjacente a este enunciado está uma mudança de paradigma estético
e a noção de composição evidente em Stevens; daí que Pound afirme mais
adiante: “It is possible that this search for form-motif will lead us to some
synthesis of western life which we find in Chinese and Japanese painting. That
lies in the future.” (Ibidem, 21)

A noção horaciana, “ut pictura poesis”, é retomada em poemas de


Pound de modo a representar a intensidade dos ritmos urbanos característicos
da modernidade. O famoso “In a Station of the Metro”, na sua contenção e
energia simbólica devedor do haiku japonês, ilustra esta associação entre a
palavra e a impressão visual que ela deve suscitar: “The apparition of these
faces in the crowd, / Petals in a white wet bough.” Como o demonstram estes
versos, Pound recupera o legado horaciano, mas não o reproduz, o que
poderia constituir uma regressão face à inovação proposta por Lessing
observada no início deste capítulo. Repare-se que Pound apresenta no
primeiro verso aquilo que poderia constituir uma ekphrasis. No entanto, ao
lermos o segundo verso, reparamos que este introduz um desvio semântico
face ao anterior, recusando, portanto, a função meramente descritiva que o
primeiro poderia indiciar. A designação escolhida para aquele movimento –
Vorticismo - exibe a importância do ritmo acelerado dos tempos modernos. A
relação do sujeito com o espaço é marcada por uma intensificação desse ritmo,
e pelo consequente dinamismo a ele inerente, algo que Nu descendo as
escadas, de Marcel Duchamp *, demonstra. Dever-se-á referir a este nível a
importância do cubismo que Apollinaire definiria como “l’art de peindre des

*
“Duchamp himself wrote that The Nude was ‘the convergence in my mind of various influences, of which
the cinema, then still in its infancy, and the separation of static positions in the photocronographs of Marey,
are examples … the anatomical nude does not exist, or at least can not be seen, since I discarded the
naturalistic image in favour of some twenty abstract pictures of the nude in the successive act of
descending.” (Zeki, 1999: 146)
ensembles nouveaux avec des éléments empruntés non à la réalité de vision,
mais à la réalité de conception.” (Roque: 2003, 81) O cubismo faria deslocar o
eixo da imitação para a concepção. A revolução por ele enunciada radica,
afinal, na subversão de convenções que haviam persistido desde o
Renascimento, exibindo a simultaneidade da perspectiva e do olhar, e deste
modo indiciando a convivência de múltiplos tempos. Neste sentido, o cubismo
poderá ser entendido como tentativa de resolver o paradoxo entre a realidade
da percepção e a perspectiva única do quadro, à qual Platão aludira.

Segundo Juan Gris, o cubismo é uma espécie de análise, uma


representação estática resultante do movimento em torno de um objecto
destinado a captar diferentes e sucessivas aparências, as quais, fundidas
numa só imagem, o reconstituem no tempo. O conceito de relatividade inserir-
se-á assim num processo de subversão do olhar que, ao pôr em causa o
sistema referencial galileico, irá eliminar toda a possibilidade de convocação do
Absoluto. Talvez por isso se justifique que Hulme entenda a passagem do
Absoluto para o relativo como o traço distintivo da arte moderna. Pound expõe,
portanto, uma reformulação estética da percepção do real, assente na energia
vocabular, a qual, por seu turno, é ancorada no recurso ao símbolo e na sua
capacidade de revelação visual. Conclui-se que o sincretismo de Pound
revisita, sem o reproduzir, o legado horaciano.

O eco na poesia das inovações levadas a cabo por outras formas de


expressão artísticas pode ainda ser observado através de exemplos colhidos
em T.S. Eliot e em William Carlos Williams. Murray Roston associa vários
aspectos idiossincráticos da poesia de T. S. Eliot a experiências estéticas
levadas a cabo por vários movimentos da vanguarda artística do princípio do
século, nomeadamente dada, cubismo e surrealismo. À semelhança de dada,
acentuar-se-ia o carácter não convencional do texto. À semelhança do
cubismo, surgiriam quer a estrutura elíptica e fragmentária do verso, com a
consequente justaposição de perspectivas simultâneas e divergentes, quer a
forma fragmentária como a cidade é representada em “Preludes”. Roston
acentua, além disso, a noção de quadro enquanto palimpsesto, tal como ele
surge em certos momentos da obra de Picasso, como Les demoiselles
d’Avignon, onde se sobrepõem diferentes pontos de vista. Pela ampliação que
nos permite deste olhar, retomo, ainda que brevemente, o estudo de Semir
Zeki:

Neurologically, and in terms of visual perception, what is especially interesting is the


ambiguity in the figure seated to the bottom right, the last part to be painted. She could be
facing us, or facing to the right or to the left. Indeed she could even have her back to us, with
the head turned sharply toward us. There is also an ambiguity about the direction of her
face. The critic John Golding, whose article on Cubism interestingly reads more like a
chapter on visual perception than on aesthetics, tells us that, ‘For five hundred years, since
the beginning of the Italian Renaissance, artists had been guided by the principles of
mathematical or scientific perspective, whereby the artist viewed his subject from a single,
stationary viewpoint’; the ‘supreme originality’ of Les Demoiselles lies in the impression that
‘Here it is as Picasso had walked 180º around his subject and had synthesised his
impressions into a single image’ resulting in what has been called ‘simultaneous vision’.
(Zeki, 1999: 52)

Mais adiante, o autor explora a estratégia de representação cubista de um ponto de


vista estritamente neurológico:

The strategy that Cubist art used was to present a view of an object from many
different angles, just as the brain views an object from many different angles. But while the
brain is able to combine these different views and obtain knowledge about an object, and
categorise it, with the result that no individual viewing angle is critical for the brain’s capacity
to recognise that particular object, in Cubist art this is not so. Its compositions … are not
recognisable by an ordinary brain as the objects that the titles declare them to be. (Ibidem,
56)

Transitando para o plano poético, constata-se que a puralidade de


perspectivas pode ser consagrada, por exemplo, na coabitação de inúmeros e
contraditórios pontos de vista da personagem feminina no início da secção
“Game of Chess”, de The Waste Land. Por fim, à semelhança da estética
surrealista, o discurso poético de Eliot escapa às regras prosódicas
convencionais assumindo, por vezes, uma dimensão algo incongruente. Em
consequência destas analogias (ecos?), o texto superaria o pathos identificado
com a tradição lírica, passando a definir-se por uma malha de elaborações
intelectuais (Roston, 43-44, 54 e 68). Em Eliot estamos, todavia, no plano de
analogias com inovações no âmbito das artes plásticas que não significam um
impacto explícito ou uma assimilação estrategicamente concebida dessas
mesmas inovações.

Por seu turno, William Carlos Williams apresenta uma assunção


consciente dessas inovações. Teresa Costa convoca extensivamente este
aspecto em Williams Saw it all …. (2003) Recorro, em seguida, a alguns
exemplo por ela analisados para ilustrar essa assunção. Comecemos por
“History”, um poema incluído em Al Que Quiere!, um livro de 1917. Apesar da
carga constrangedora e didáctica que o título encerra, “History” descreve algo
de banal, uma visita a um museu. Esta visita não participa, porém, do encontro
entre sujeito e objecto encenado em “My Last Duchess”, nem tão-pouco evoca
este objecto como signo de posse e afirmação de um poder, de um estatuto
(não só social como de domínio, opressão, a nível de gender). Devemos
inscrever “History” num tempo histórico, o início do século XX, e lembrar que a
função social, cultural e pedagógica do museu enquanto espaço de descoberta
das nossas tradições e do seu encontro com outras, da sua emergência,
consagração e superação, e da própria reformulação da sua função original,
isto é, o museu, enquanto espaço de descentração e de civilidade (recordo o
ensaio acima citado de Ezra Pound: “To be civilised is to have swift perception
of the complicated life of today; it is to have a subtle and instantaneous
perception of it, such as savages and wild animals have of the necessities and
dangers of the forest.” [McClatchy, 1990: 20]), é algo de muito recente. Corria o
ano de 1965 quando André Malraux escreveu em O Museu Imaginário que:

O papel do museu na nossa relação com as obras de arte é tão considerável que
temos dificuldade em pensar que ele não existe, nunca existiu, onde a civilização da Europa
moderna é ou foi ignorada; e que existe entre nós há menos de dois séculos. O século XIX
viveu dos museus; ainda vivemos deles, e esquecemos que impuseram ao espectador uma
relação totalmente nova com a obra de arte. Contribuíram para libertar da sua função as
obras de arte que reuniam, para transformar em quadros até mesmo os retratos. Se o busto
de César, a estátua equestre de Carlos Quinto, ainda são César e Carlos Quinto, o duque
de Olivares é simplesmente Velásquez. Que nos importa a identidade do Homem do
Capacete, ou do Homem da Luva? Chamam-se Rembrandt e Ticiano. O retrato começa por
deixar de ser o retrato de alguém. Até ao século XIX, todas as obras de arte eram a imagem
de algo que existia ou não existia, antes de serem obras de arte. Só aos olhos do pintor a
pintura era pintura; e, muitas, vezes, era também poesia. E o museu suprime de quase
todos os retratos (mesmo sendo eles de um sonho), quase todos os modelos, ao mesmo
tempo que extirpa a função às obras de arte: não reconhece Paládio, nem santo, nem
Cristo, nem objecto de veneração, de semelhança, de imaginação, de decoração, de posse;
mas apenas imagens de coisas, diferentes da próprias coisas, e retirando desta diferença
específica a sua razão de ser. O museu é um confronto de metamorfoses. (Malraux, 1965:
11-12)

Há uma banalidade democrática na presença do Museu no quotidiano


daquela sociedade aberta e liberal, que é a sociedade americana do princípio
do século XX. Refiro banalidade democrática não num sentido pejorativo mas
antes numa intenção celebratória desse algo de grandioso que é a banalidade
no quotidiano das sociedades livres; algo que Tocqueville prenunciou. Veremos
como estas palavras de Malraux se revelam particularmente relevantes ao
regressarmos a “History”:

A wind might blow a lotus petal


over the pyramids – but not this wind.

Summer is a dried leaf.

Leaves stir this way then that


on the baked asphalt, the wheels
of motor cars rush over them, -
gas smells mingle with leaf smells.

Oh, Sunday, day of worship! !

The steps to the Museum are high.


Worshippers pass in and out.
Nobody comes here today.
I come here to mingle faïence dug
from the tomb, turquoise-colored
necklaces and wind belched from the
stomach; delicately veined basins
of agate, cracked and discoloured and
the stink of stale urine!

Enter! Elbow in at the door.


Men? Women?
Simpering, clay fetish-faces counting
through the turnstile.
Ah! (Williams, 1987: 81)

A primeira parte do poema situa a enunciação no presente. O sujeito


desvenda uma postura algo irónica. Se recuarmos um pouco, reparamos que a
ironia se revelara já na ambiguidade dos “worshippers” que, envolvidos nos
seus rituais religiososos dominicais, deixam o sujeito só naquele espaço: “No
one comes here today.” Quando começamos a ler a segunda parte,
compreendemos que os dois primeiros versos do poema eram, também eles,
irónicos:

This sarcophagus contained the body


Of Uresh-Nai, priest to the goddess Mut,
Mother of All –

Run your finger against this edge!


-here went the chisel! – and think
of an arrogance endured six thousand years
without a flaw!

But love is an oil to embalm the body.


Love is a packet of spices, a strong-
smelling liquid to be squirted into
the thigh. No?
Love rubbed on a bald head will make
hair-and after? Love is
a lice comber!
Gnats on dung! (Ibidem , 81-82)

Após uma elipse, o olhar do sujeito volta-se para o sarcófago egípcio de


Uresh-Nai, a partir do qual o sujeito reflecte acerca da perenidade da arte, num
registo intimista que convida o leitor a participar igualmente de uma reflexão
que envolve tanto o passado como a própria arte. Ora, como se torna agora
claro, os versos iniciais haviam prenunciado este tempo passado através da
referência à pétala do lótus – deste modo funcionando como índice - flutuando
sobre as pirâmides. Quando prosseguimos a leitura do poema, somos
confrontados com uma alteração a nível da enunciação:

“The chisel is in your hand, the block


is before you, cut as I shall dictate:
This is the coffin of Uresh-Nai,
priest to the Sky Goddess,-built
to endure forever!
Carve the inside
with the image of my death in
little lines of figures three fingers high.
Put a lid on it cut with Mut bending over
the earth, for my headpiece, and in the year
to be chosen I shall rouse, the lid
shall be lifted and I walk about
the temple where they have rested me
and eat the air of the place:

Ah-these walls are high! This


is in keeping!” (Ibidem , 82)

A enunciação é transferida para o próprio Uresh-Nai, à semelhança do


que tinhamos visto na parte final de “Ozymandias”, de Shelley, só que, neste
caso, o monólogo dramático não se restringe a uma breve e elíptica elocução
inscrita num pedestal fragmentado. Aqui, o monólogo dramático introduz uma
outra perspectiva sequencial e coerente, a do sacerdote, um outro tempo, o
passado, e um outro espaço, o Egipto. Este tempo e este espaço prevalecem
na terceira1 e na quarta 2
partes. Ao longo desta sequência, o sujeito de
enunciação apagou-se, dando lugar às vozes que, emergindo do passado, nos
lembram quão inútil é a hybris de quem pretende iludir a efemeridade da vida.
Daí que o poema sofra um corte abrupto, com a enunciação regressando ao
presente, e à exaltação, decorrente da meditação suscitada pela observação
do sarcófago, do carpe diem, exposto na parte 5 :

But it is five o’clock. Come!


Life is good-enjoy it!

1
The priest has passed into this tomb./The stone has taken up his spirit!/Granite over flesh: who
will deny/ its advantages?// Your death?-water / spilled upon the ground- / though water will
mount again into rose-leaves-/ but you?-would hold life still,/ even as a memory, when it is
over./ Benevolence is rare. // Climb about this sarcophagus, read / what is writ for you in these
figures / hard as the granite that has held them/ with so soft a hand the while/ your own flesh
has been fifty times / through the guts of oxen,-read! / “I who am the one flesh say to you,/ The
rose-tree will have its donor/ even though he give stingily./ The gift of some endures/ ten years,
the gift of some twenty / and the gift of some for the time a / great house rots and is torn down./
Some give for a thousand years to men of/ one face, some for a thousand / to all men and some
few to all men / while granite holds an edge against / the weather. / Judge then of love!”
2
“My flesh is turned to stone. I/ have endured my summer. The flurry/ of falling petals is ended.
Lay / the finger upon this granite. I was/ well desired and fully caressed/ by many lovers but my
flesh/ withered swiftly and my heart was/ never satisfied. Lay your hands/ upon the granite as a
lover lays his/ hand upon the thigh and upon the/ round breasts of her who is beside/ him, for
now I will not wither,/ now I have thrown off secrecy, now/ I have walked naked into the street,/
now I have scattered my heavy beauty/ in the open market./ Here I am with head high and a/
burning heart eagerly awaiting/ your caresses, whoever it may be, / for granite is not harder
than/ my love is open, runs loose among you! // I arrogant against death! I/ who have endured! I
worn against/ the years!” (Ibidem , 81-83)
A walk in the park while the day lasts.
I will go with you. Look! this
northern scenery is not the Nile, but-
these benches-the yellow and purple dusk-
the moon there-these tired people-
the lights on the water!

Are not these Jews and Ethiopians?


The world is young, surely! Young
and colored like-a girl that has come upon
a lover! Will that do? (Ibidem , 83)

A convocação das artes visuais, e da pintura, em particular, é algo de


reiteradamente presente na poesia de Williams, pelo que importa restringir a
sua enunciação a algumas vertentes que possibilitam entender a amplitude do
diálogo em análise. Nesse sentido devemos prosseguir com mais dois poemas
de Al Que Quiere!, “Woman Walking” e “Love Song”, que permitem observar
outro tipo de problemática, a da assimilação da estética cubista por parte da
escrita. Comecemos por “Woman Walking”:

An oblique cloud of purple smoke


across a milky silhouette
of house sides and tiny trees-
a little village-
that ends in a saw edge
of mist-covered trees
on a sheet of grey sky.

To the right, jutting in,


A dark crimson corner of roof.
To the left, half a tree:

-what a blessing it is
to see you in the street again,
powerful woman,
coming with swinging haunches,
breasts straight forward,
supple shoulders, full arms
and strong, soft hands (I’ve felt them)
carrying the heavy basket

I might well see you oftener!


And for a different reason
than the fresh eggs
you bring us so regularly.

Yes, you, young as I,


with boney brows,
kind grey eyes and a kind mouth;
you walking out toward me
from that dead hillside!
I might well see you oftener. (Ibidem, 66-67)
Refere Teresa Costa, a propósito deste poema, que as estratégias de representação cubistas podem
ser desvendadas apenas nas duas primeiras estrofes, as quais “são puro registo visual, com total apagamento
do sujeito.” (Costa, 2003: 81) A descrição do espaço revela uma aproximação às formas cubistas, como se
torna claro nas expressões marcadas por um visualismo geométrico (“oblique cloud”, “saw edge”, “silhouette”
ou “corner of a roof”), nas interacções (interferências) entre os signos expostos nos dois primeiros versos (“An
oblique coud of purple smoke / across a purple silhouette”), na simultaneidade de perspectivas sem aparente
ligação entre si, e no carácter bidimensional indiciado em “sheet of a grey sky”.

Passemos, em seguida, para ‘Love Song.’ Proponho uma leitura integral


do poema para depois desvendar a presença dessa estética.

Daisies are broken


petals are news of the day
stems lift to the grass tops
they catch on shoes
part in the middle
leave root and leaves secure.

Black branches
carry square leaves
in the wood’s top.
They hold firm
break with a roar
show the white!

Your moods are slow


the shedding of leaves
and sure
the return in May!

We walked
in your father’s grove
and saw the great oaks
lying with roots
ripped from the ground. (Williams, 1987: 71-72)

Antes de mais, lembremos que, entre outros aspectos, o cubismo expõe


uma simultaneidade de pontos de vista e a representação dos diferentes signos
de acordo com uma perspectiva geométrica. Coloca-se, assim, uma questão:
como se pode transpor para a poesia essas vertentes? Uma forma muito óbvia
de representar a simultaneidade de pontos de vista será através da
coexistência de vários sujeitos de eunuciação. No entanto, outra, mais subtil,
há; aquela que recorre ao jogo sintáctico através de especificidades de
versificação, o enjambement, o encavalgamento ou quebra de verso. Se lermos
atentamente os dois primeiros versos, reparamos que eles apresentam duas
perspectivas distintas: uma, decorrente da leitura apenas do primeiro verso,
segundo a qual “daisies are broken”; outra, decorrente do enjambement,
segundo a qual “daisies are broken petals”. Como explicita Teresa Costa,
“‘petals’ é sujeito a uma dupla função sintáctica, servindo como nome
predicativo do sujeito da primeira frase e como sujeito da segunda. Cria-se,
portanto, uma duplicidade de perspectiva sobre a palavra semelhante à
utilizada nas composições cubistas.” (Costa, 2003: 81) Desta forma, a
ambiguidade associada ao jogo com o enjambement permite uma
simultaneidade de pontos de vista que irá definir, desde o início, uma atmosfera
estética para o poema.

Coloca-se, em seguida, a questão de saber como transpor para o poema a perspectiva geométrica?
Ora, a geometrização é, neste poema, algo de inerente à representação da natureza, enunciada, em
sinédoque, através de uma palavra-chave, sistematicamente repetida ao longo das diferentes estrofes,
“leaves”. Na segunda estrofe a natureza revela-se na sua geometricidade: “Black branches carry / square
leaves.” Aparentemente, o poema parece retomar o tópico tradicional da renovação cíclica das estações (“the
shedding of leaves / and sure / the return in May!”). No entanto, considerando a geometrização da natureza
(“square leaves”), constata-se que, afinal, este tópico não é, apenas, retomado; ele é, com efeito, reformulado,
ao capturar a natureza para o domínio da sua representação.

Observemos, em seguida, “Metric Figure”, outro poema de Al Que


Quiere! que levanta questões interessantes relativamente à eventual
assimilação de estéticas pictóricas. O primeiro verso (There is a bird in the
poplars! [Williams, 1987: 66]) parece convocar uma temática romântica, em
particular, através de signos aí recorrentes, “bird” e “poplars” (o qual participa
do campo semântico “tree”). A ênfase introduzida pelo ponto de exclamação
atribui-lhe um carácter algo eufórico, celebratório, mesmo. Contudo, o verso
seguinte (“It is the sun!”) desconstrói este espaço de significação; afinal, este
“bird”: “... is the sun!” Esta transposição abrupta para outro campo semântico,
introduzindo uma atmosfera algo fantástica ou alucinatória, prossegue no verso
seguinte quando as folhas se transfiguram em pequenos peixes amarelos, e os
ramos e o espaço circundante dão lugar a um rio (“The leaves are little yellow
fish / swimming in the river.”). É esta atmosfera que prevalece nos quinto e
sexto versos, “The bird skims above them, / day is on his wings.” Importa não
esquecer a contaminação de campo semânticos; este pássaro é o sol. A única
palavra do sétimo verso explicita esta referenciação recorrendo, todavia, à
designação clássica, “Phoebus!”
Recordemos a explicação de José Pedro Machado, no terceiro volume
do seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa: “Phoebus , ..., tem origem
no gr. phoîbos, ‘à letra, o brilhante, sobrenome de Apolo (phoîbos Apóllõn),
donde Febo, ‘Apolo, o Sol’” (Machado, 2003: 27). Desde o século V. a. C. que
Apolo, o deus celebrado pela sua beleza, é identificado com o sol. Todo este
tipo de informação, etimológica e cultural, participante de uma memória
colectiva, surge condensada na palavra que Williams escolhe para designar o
sol na sétimo verso. Além disso, essa palavra permite reler o verso anterior: de
acordo com a lenda, Zeus, pai de Apolo, ofereceu-lhe um carro puxado por
cisnes, aves consideradas sagradas. As asas constituem, portanto, um dos
signos aos quais o deus se encontra associado. Tanto a condensação ao nível
de evocações culturais várias, como o poder sugestivo da imagem gerada,
lembram uma vertente da vanguarda literária acima referida, o Imagismo.

Com o oitavo verso assiste-se à introdução de uma nova dimensão


através do recurso à prosopopeia, “It is he that is making / the great gleam
among the poplars”, que prossegue nos versos seguintes com os quais o
poema termina: “It is his singing outshines the noise / of leaves clashing in the
wind.” Semelhante subversão do registo semântico convencional evocará uma
atmosfera surrealista. (Costa, 2003: 81) Todo este processo de flutuação entre
diferentes campos semânticos, apoiado, entre outros aspectos, nas evocações
culturais clássicas, permite observar uma subtil assimilação de estratégias de
representação artísticas por parte do parte do texto poético. “The Great Figure”
revela essa radical assimilação; à semelhança do que referi acerca de alguns
poemas de Drum-Taps, também aqui o visualismo é endógeno, participa da
estrutura do poema. Fá-lo, todavia, não através de uma descrição do
movimento veloz de um carro de bombeiros, mas através de uma estratégia
devedora do vorticismo: o número 5 irrompe, qual núcleo de um vortex,
centralizando esse movimento.

Among the rain


and lights
I saw the figure 5
in gold
on a red
fire truck
moving
tense
unheeded
to gong clangs
siren howls
and wheels rumbling
through the dark city. (Williams, 1991: 174)

Por esse motivo, Charles Demuth tomou-o como eixo da sua


representação visual do poema em The Figure 5 in Gold.

Alguns críticos identificam ainda uma certa presença do surrealismo nos


poemas acima citados.

Antes de Plath convocar subliminarmente o surrealismo, através de De


Chirico, para intensificar os cenários dramáticos da sua poesia, será em
Gertrude Stein que este conhece algumas das suas representações verbais
mais radicais. Tender Buttons leva ao limite esta estética sustentada por uma
intensa presença visual; por exemplo, observe-se a sabotagem da solenidade
logocêntrica através das “analogias selvagens” de “A Red Hat”: “A dark grey, a
very dark grey, a quite dark grey is monstrous ordinarily, it is so monstrous
because there is no red in it. If red is in everything it is not necessary. Is that not
an argument for any use of it and even so is there any place that is better, is
there any place that has so much stretched out.” (Stein, 2003: 252) Devo
recordar quão importante é a leitura em voz alta destes textos. Para além das
incursões surrealistas em Tender Buttons, Stein explora em “Susie Asado”, um
poema sobre uma bailarina espanhola, eventuais fusões entre surrealismo e
cubismo. Se a dimensão surreal é evidente numa leitura silenciosa, já a leitura
em voz alta que lhe sugiro, caro leitor, será essencial para entender o
movimento inerente à estética cubista:

Sweet sweet sweet sweet sweet tea.


Susie Asado.
Sweet sweet sweet sweet sweet tea.
Susie Asado.
Susie Asado which is a told tray sure.
A lean on the shoe this means slips slips hers.
When the ancient light grey is clean it is yellow, it is a silver seller.
This is a please this is a please there are the saids to jelly. These
are the wets these say the sets to leave a crown to Incy.
Incy is short nfor Incubus.
A pot. A pot is a beginning of a rare bit of trees. Trees tremble,
the old vats are in bobbles, bobbles which shade and shove
and render clean, render clean must.
Drink pups.
Drink pups drink pups lease a sash hold, see it shine and a
bobolink has pins. It shows a nail.
What is a nail. A nail is unison.
Sweet sweet sweet sweet sweet tea. (Lauter, 1998: 1260)

Depois de termos visto como estéticas de vanguarda, nomeadamente a


cubista, ecoam em certos poemas de Williams e de Stein, passemos para o
âmbito mais convencional da ekphrasis. Transitemos para Inglaterra,
recorrendo a dois poemas emblemáticos desta tradição na primeira metade do
século XX, “The Shield of Achilles” e “Musée des Beaux Arts”, ambos escritos
por W. H. Auden.

“The Shield of Achilles” simula a ekphrasis como a observámos em


inúmeros exemplos anteriores, ou seja, como descrição de um objecto artístico.
No entanto, há aqui uma ironia óbvia já que o poeta não tenta reproduzir ou
recriar um referente visual; o que está aqui em causa é o diálogo com o texto
de Homero – uma notional ekphrasis - sobre o qual, e contra o qual este se
ergue. Observêmo-lo:

She looked over his shoulder


For vines and olive trees,
Marble well-governed cities
And ships upon untamed seas,
But there on the shining metal
His hands had put instead
An artificial wilderness
And a sky like lead.
A plain without a feature, bare and brown,
No blade of grass, no sign of neighbourhood,
Nothing to eat and nowhere to sit down,
Yet, congregated on its blankness, stood
An unintelligible multitude,
A million eyes, a million boots in line,
Without expression, waiting for a sign.

Out of the air a voice without a face


Proved by statistics that some cause was just
In tones as dry and level as the place:
No one was cheered and nothing was discussed;
Column by column in a cloud of dust
They marched away enduring a belief
Whose logic brought them, somewhere else, to grief. (Abrams: 1993, 2272)

Recordo uma vez mais que não estamos perante uma ekphrasis, mas
sim perante um texto que toma outro texto como leitmotif e com ele dialoga; um
texto que dialoga com aquela que, como vimos, é considerada a ekphrasis
fundadora de toda uma tradição poética ocidental. Devemos, por isso, ter
presente a sua dimensão enquanto metatexto, enquanto espaço de reflexão e
especulação intelectual, enquanto paródia (de acordo com a designação que
lhe atribuem alguns discursos críticos da pós-modernidade) da convenção e da
tradição literárias. O leitor deverá, assim, estar atento à sua eventual dimensão
irónica. Esta dimensão surge logo no primeiro verso quando Auden sabota a
solenidade inerente à condição de deusa (Tétis), a ela se referindo apenas
como “she”, e apresentando-a num acto pouco digno, algo voyeur, espreitando
por detrás de Hefesto enquanto este trabalha no seu escudo. A ironia acentua-
se quando a representação não se revela eufórica, tal como ela pretendia, tal
como ela esperava. A adversativa, com que se inicia o quinto verso da primeira
estrofe, abre caminho a uma decepção, instalando um clima de tensão entre
euforia e disforia:

She looked over his shoulder


For ritual pieties,
White flower-garlanded heifers,
Libation and sacrifice,
But there on the shining metal
Where the altar should have been,
She saw by his flickering forge-light
Quite another scene.

Barbed wire enclosed an arbitrary spot


Where bored officials lounged (one cracked a joke)
And sentries sweated for the day was hot:
A crowd of ordinary decent folk
Watched from without and neither moved nor spoke
As three pale figures were led forth and bound
To three posts driven upright in the ground.

The mass and majesty of this world, all


That carries weight and always weighs the same
Lay in the hands of others; they were small
And could not hope for help and no help came
What their foes liked to do was done, their shame
Was all the worst could wish; they lost their pride
And died as men before their bodies died. (Ibidem, 2272-3)

Auden volta a representar Tétis através de uma pose análoga à do


voyeur que observa – espia - o trabalho alheio. Numa expectativa algo eufórica
e inocente, a deusa aguarda a inscrição, no escudo, de cenas evocadoras de
uma glória sustentada pela ambiência da “aurea mediocritas”. Em
contrapartida, a cena que se desvenda perante o seu olhar revela sofrimento,
uma punição que irá culminar na morte. Esta cena reproduz ainda a postura da
deusa face ao trabalho de Hefesto: uma representação num espaço fechado
(um palco), com espectadores que, imóveis e em silêncio, observam o que ali
se desenrola:

She looked over his shoulder


For athletes at their games,
Men and women in a dance
Moving their sweet limbs
Quick, quick, to music,
But there on the shining shield
His hands had set no dancing-floor
But a weed-choked field.

A ragged urchin, aimless and alone,


Loitered about the vacancy; a bird
Flew up to safety from his well-aimed stone:
That girls are raped, that two boys knife a third,
Were axioms to him, who’d never heard
Of any world where promises were kept,
Or one could weep because another wept. (Ibidem, 2273)

Tétis aguarda a inscrição de uma cena marcada pelo equilíbrio e pela


harmonia, com laivos épicos. No entanto, a adversativa introduz, de novo, um
contraste entre a euforia da sua expectativa e a desolação e a radical violência
que caracteriza o referente. Os últimos versos citados acentuam essa
desolação ao generalizá-la, ao universalizá-la. Vejamos a estrofe final:

The thin-lipped armorer,


Hephaestos, hobbled away,
Thetis of the shining breasts
Cried out in dismay
At what the god had wrought
To please her son, the strong
Iron-hearted man-slaying Achilles
Who would not live long. (Ibidem)

A perspectiva de conjunto obtida quando Hefesto (o deus-artista, artífice,


aqui descrito em traços de fragilidade, num contraste nítido com Aquiles) se
afasta, motiva a consternação de Tétis (a observadora, espectadora). A
consternação deve-se às cenas ali criadas, visto elas evocarem algo de
radicalmente oposto àquilo que ela desejava, e também ao facto de a violência
que elas encerram corresponder ao desejo do seu protegido, do herói. A
dimensão épica deste herói e as virtudes que a ele se associam, são, assim,
ironicamente desmontadas (atente-se ainda nas expressões que o
caracterizam no penúltimo verso). O facto de este herói estar próximo da
morte, e de ela saber que esta é inevitável, acentua essa ironia. Auden revê
ironicamente os fundamentos do percurso textual ecfrásico, desmontando a
sua dimensão épica, e, por extensão, a dimensão épica do ethos fundador da
nossa tradição cultural ocidental.

O seu poema “Musée des Beaux Arts”, inspirado no quadro A Queda de


Ícaro, de Pieter Brueghel, o Velho, coloca outro tipo de questão. Porque estas
minhas palavras só importam pela leitura do poema, proponho-lhe que nos
detenhamos, por alguns momentos, perante estes versos

About suffering they were never wrong,


The Old Masters: how well they understood
Its human position; how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond on the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer’s horse
Scratches its innocent behind on a tree.

In Brueghel’s Icarus, for instance: how everything turns away


Quite leisurely from the disaster: the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water; and the expensive delicate ship must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on. (Ibidem, 2266)

Depois de ter lido o poema, proponho-lhe outro exercício: recorde um


ensaio acima referido, O Museu Imaginário, de André Malraux. Escreve o autor
a dado momento:

Há mais de um século que a nossa convivência com a arte não cessa de se


intelectualizar. O museu impõe uma discussão de cada uma das representações do mundo
nele reunidas, uma interrogação sobre o que, precisamente, as reúne. Ao “prazer do olhar”,
a sucessão e a aparente contradição das escolas vieram acrescentar a consciência de uma
busca apaixonada, ... Afinal, o museu é um dos locais que nos proporcionam a mais
elevada ideia do homem.(Malraux, 1965: 12)

A leitura deste passo ajuda a entender os versos iniciais. Vejamos como.


Em primeiro lugar, ele lembra aquilo que deveria ser uma evidência, “a nossa
convivência com a arte”, a qual só é possível devido à existência da instituição
Museu; esta interacção está, hoje em dia, disponível a qualquer um, exigindo
apenas (a nossa) disponibilidade (ou mesmo exigências doutro tipo, como
lembra “History”) para que se realize. Em segundo lugar, para que se
consubstancie plenamente, a interacção entre o sujeito e o objecto pressupõe
uma reacção intelectual, pressupõe um exercício do logos. Em terceiro lugar, o
Museu desvenda contextos e diálogos entre obras de arte e criadores, devido à
estratégia utilizada por quem estrutura a sua exibição; num plano diacrónico
possibilita o entendimento de nexos com obras precedentes – eventuais
superações ou reproduções - ao mesmo tempo que nos ajuda a entender
ulteriores subversões; num plano sincrónico, permite desvendar interacções
com obras suas contemporâneas; nos dois casos adquire-se não só uma
perspectiva geral (História da Arte) mas também particular (o percurso de um
autor, a evolução estética na construção da sua identidade). Em quarto lugar, o
Museu revela percepções várias do Ser, marcadas por circunstâncias
históricas, idiossincrasias pessoais, buscas estéticas e éticas.
Partindo destes pressupostos, regressemos a “Musée des Beaux Arts”.
Como acima escrevi, o poema é inspirado no quadro A Queda de Ícaro, de
Pieter Brueghel, o Velho. No entanto, o próprio título sugere um contexto mais
geral, onde se insinua um estatuto privilegiado, ao mesmo tempo que envia
para uma instituição realmente existente, o Museu de Belas Artes, de Bruxelas.
Os primeiros versos tornam explícita uma reflexão, devedora do percurso que o
sujeito realiza ao longo das salas do Museu, onde vai contactando com “os
Velhos Mestres”. Referi acima a dimensão de abertura cultural a percepções
estéticas que nos precederam, e com as quais somos confrontados nesse
espaço que o Museu é. Como a própria designação explicita - Mestres – a
relação que estabelecemos com estas obras de arte situa-se no plano da
hierarquia, da aprendizagem; o facto de eles serem “velhos”, dá mais ênfase à
sua experiência, ao seu conhecimento e à sua sabedoria, o que remete para
um estatuto óbvio de aprendizagem. De acordo com uma tradição humanista, o
poema esclarece que, ao olharmos os quadros, não só vivemos uma
experiência estética, como aprendemos algo.

Estudos críticos sobre Auden provam que os quadros evocados na


primeira estrofe são O Censo de Belém e O Massacre dos Inocentes,
igualmente da autoria de Brueghel. Para além de nenhum deles ser
reconhecível na descrição feita pelo poeta, O Massacre dos Inocentes
encontra-se depositado bem longe de Bruxelas, em Viena de Áustria, no
Kunsthistorische Museum. Por que razão terá Auden arquitectado estas fugas
intencionais à realidade? Ao fazê-lo, ele concebeu uma experiência própria,
profundamente pessoal e possível apenas àquele que se educou, entre outras
coisas, no contacto com os Mestres que a História da Arte nos legou;
lembremos a citação, acima feita, de André Malraux. Ora, o poeta assemelha-
se a um “curador” que intelectualiza a sua experiência (o seu olhar) em torno
da representação do sofrimento na arte, com a qual interage uma concepção
de Homem; as evocações do Martírio de Cristo e da Natividade participam
dessa reflexão. A descodificação da forma como esse sofrimento se realiza
aparecerá na segunda estrofe com o exemplo de A Queda de Ícaro.
O primeiro verso desta segunda estrofe parece surgir naturalmente no
decurso da reflexão acima enunciada; veja-se a dimensão coloquial
emprestada pela expressão “for instance”, criadora de uma ilusão, a de que
este é apenas um exemplo entre outros possíveis; é este apenas porque o
sujeito de enunciação assim o quis. Trata-se, todavia, de um quadro que
desencadeia uma ampla meditação em torno do heroísmo, da hybris, e da
relação do indivíduo com a natureza. Para melhor compreendermos estes
aspectos importa recordar, ainda que brevemente, esta narrativa da mitologia
grega. Ícaro era filho de Dédalo, o qual fabricou, para ambos, umas asas com
penas, cordas e cera, que lhes permitiriam realizar um velho sonho humano,
voar. Dédalo alertou o filho para o facto de não dever aproximar-se demasiado
do sol, já que o calor derreteria a cera que sustentava as asas. Ícaro não levou
a sério os avisos do pai, aproximou-se demasiado do sol, a cera derreteu, e ele
despenhou-se nas águas, morrendo. Esta narrativa exemplifica aquele que os
gregos consideravam o defeito trágico – hamartia - por excelência, a hybris, o
orgulho desmedido que leva o Homem a conceber-se acima da esfera (social,
política, ou cósmica) que era a sua: neste caso, a hybris de Ícaro terá sido a de
se ter identificado com os deuses, pensando que teria poderes a eles idênticos.
Este aspecto está presente na narrativa deste episódio feita por Ovídio, através
de três personagens: o pescador, o camponês e o pastor. Ao verem Ícaro nos
céus, estes confundem-no com um deus, já que só os deuses se acercavam do
éter.

Brueghel diverge da narrativa de Ovídio ao representar o camponês e o


pescador absortos nas suas actividades (trabalho), e o pastor distraído,
olhando os céus (“how everything turns away / Quite leisurely from the
disaster”). O pintor introduziu um barco sulcando as águas, e representou Ícaro
com alguma comicidade: dele apenas se desvendam, no canto inferior direito,
duas pernas mergulhando nas águas. Subjacente a esta leitura da narrativa
mítica feita por Brueghel, está uma perspectiva estóica: as personagens -
pescador, camponês, pastor - identificam-se com as leis cósmicas,
ostensivamente ignorando quem as pretende subverter (“the ploughman may /
Have heard the splash, the forsaken cry, / But for him it was not an important
failure”). O barco, representando por sinédoque a humanidade, parece reiterar
essa indiferença ao prosseguir o seu caminho, ignorando uma das leis básicas
da vida no mar, a ajuda ao náufrago.

Auden subscreve a abordagem de Brueghel. A indiferença do barco é


acentuada através da prosopopeia: “the expensive delicate ship must have
seen / Something amazing”. Se, para alguns, Ícaro pode ser visto como um
herói, para as personagens envolvidas nos seus dramas quotidianos, ele é
alguém que foi justamente punido. Entretanto, a natureza (ostensivamente
dominante na tela) prosseguia, indiferente, nos seus ritmos e ciclos, tal como
sempre sucedera e voltaria a suceder (“the sun shone / As it had to on the
white legs disappearing into the green / Water”). É esta moral estóica que
Auden associa ao sofrimento ensinado pelos “Velhos Mestres”; tal como para
Brueghel, também para ele, Ícaro é apenas, sem solenidade alguma, “a boy
falling out of the sky”.

Tendo Pieter Brueghel sido revisitado por inúmeros poetas de língua


inglesa, como Walter de la Mare, Robert Foerster, John Berryman, Sylvia Plath
ou Joseph Langland, interessa, pela sua relevância, observar um livro em
particular, Pictures from Brueghel, de William Carlos Williams, onde, entre
outros, aquele quadro é convocado. Publicado em 1962, Pictures from
Brueghel é constituído por dez ekphrasis, todas elas, como o próprio título
indica, inspiradas por Brueghel: “Self-Portrait”, “Landscape with the Fall of
Icarus”, “The Hunters in the Snow”, “The Adoration of the Kings”, “Peasant
Wedding”, “Haymaking”, “The Corn Harvest”, “The Wedding Dance in the Open
Air”, “The Parable of the Blind” e “Children’s Games”.
Williams viu na Europa alguns dos quadros com os quais os seus
poemas dialogam: “Self-Portrait”, “The Hunters in the Snow”, “Peasant
Wedding” e “Children Games” encontram-se no Kunsthistorisches Museum, em
Viena, “The Adoration of the Kings”, em The National Gallery, em Londres,
“Haymaking”, na Galeria Nacional, de Praga, “The Parable of the Blind”, no
Museo Nazionale, de Nápoles, e “Landscape with Fall of Icarus”, como acima
mencionei, no Museu de Belas Artes, de Bruxelas. Os restantes encontravam-
-se inseridos em colecções de museus americanos: “The Corn Harvest”, no
Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, e “The Wedding Dance in the
Open Air”, no Institute of Arts, de Detroit. O poeta adquiriu algumas
informações acerca do pintor, e destes quadros em particular, no âmbito da
crítica de arte, em estudos como Peter Brueghel The Elder, de Gustave Glück,
publicado em 1952, e A Treasury of Art Masterpieces, from the Renaissance to
the Present Day, de Thomas Craven, inicialmente publicado em 1939, mas
revisto e reeditado, igualmente, em 1952.

A escrita dos poemas de Pictures from Brueghel ancora-se, desde logo,


em duas experiências específicas: o encontro pessoal, subjectivo, porventura
idiossincrático, com os quadros em questão, no espaço do Museu, e a leitura
das análises, sincrónicas e diacrónicas, feitas pelo especialista, o crítico e o
historiador de arte. A conjugação destas duas experiências permite construir
uma percepção poética das obras de arte. A par delas surge uma terceira
experiência, o diálogo intertextual. Não me refiro apenas à recorrente evocação
do discurso artístico ao longo da obra de Williams, elipticamente indiciada nos
poemas já mencionados; refiro-me à convocação explícita de outro poema do
autor, a qual apela à memória (conhecimento) do próprio leitor. Escreve o
poeta nos primeiros versos de “The Adoration of the Kings”: “From the Nativity/
which I have already celebrated” (Williams, 1991: 387). “I have celebrated”
envia para a parte III da secção V, Adoration of the Magi, do seu poema épico
Paterson (1958), toda ela um extenso diálogo com o quadro homónimo de
Brueghel. A ekphrasis significa, aqui, não tanto uma intenção de reproduzir
verbalmente, com maior ou menor fidelidade, maior ou menor rigor, maior ou
menor vivacidade, um determinado signo visual, mas antes uma reflexão do
autor, na qual se projectam eventuais idiossincrasias e articulações teóricas, e
da qual esse signo visual funciona como leitmotif.

Explícita ou implícita, a recorrente presença da ideia de “composição”, à


semelhança do que sucede noutros poemas de Pictures from Brueghel,
denuncia a ênfase dada ao processo de construção do objecto, que, na esteira
de Kant, e da reformulação do próprio conceito de mimesis iniciado pela
modernidade, é entendido como microcosmo, espaço autónomo, regido por
regras e por uma lógica próprias, e não como instrumento de reprodução de
uma qualquer realidade que, enquanto tal, lhe é alheia (o recurso à fábula
acentua essa dimensão). Por exemplo, em “The Hunters in the Snow”, poema
sobre o quadro homónimo, os patinadores não são entendidos como imagem,
reprodução de uns quaisquer patinadores que Brueghel possa ter querido
representar, mas sim como signos (elemento) de uma composição (estrutura).
Localizados espacialmente na estrutura que o quadro é (“to the right beyond/ /
the hill”), eles são transformados em (entendidos como) inscrição geométrica,
padrão, “a pattern of skaters” (Ibidem). Os versos finais explicitam que de uma
composição se trata:

Brueghel the painter


concerned with it all has chosen

a winter-struck bush for his


foreground to
complete the picture. (Ibidem)

Na leitura de Williams, este “winter-struck bush” é representado no


quadro, não porque constasse de um eventual cenário natural reproduzido pelo
pintor, mas sim porque desempenha uma função estrutural de equilíbrio na
composição que o quadro é. Algo de idêntico está presente no segundo poema
da sequência, “Landscape with the fall of Icarus”: “According to Brueghel/ when
Icarus fell / it was spring” (Ibidem, 385). “According to” acentua a dimensão do
quadro como leitura... de uma narrativa mítica, recorde-se. Williams retoma o
diálogo com A Queda de Ícaro, realizado por W. H. Auden em “Musée des
Beaux Arts”. No entanto, enquanto Auden devota toda a primeira estrofe a uma
reflexão sobre o sofrimento, Williams opta por elipticamente indiciar a
indiferença da Natureza em “the edge of the sea/ concerned/ with itself”
(Ibidem, 386), deste modo inviamente sinalizando a solidão do ser humano.
Este fechamento da Natureza em si, nos seus próprios ritmos e ciclos, surge na
sequência da postura do lavrador que, numa concepção estóica (nuclear para
um determinado ethos americano, por Williams subscrito), se encontra em
harmonia com esses ritmos, com esses ciclos:

it was spring

a farmer was ploughing


his field
the whole pageantry

of the year
awake twingling
near

the edge of the sea (Ibidem)

Embora o poema simule uma reprodução (descritiva, realista) do


objecto, Williams introduz várias perspectivas através do enjambement, à
semelhança do que sucedera em poemas de Al Que Quiere!: veja-se a dupla
função sintáctica de “sea” que, claramente, perturba a leitura. Por seu turno, a
ironia do desfecho trágico da narrativa, que se pretendia heróica, é evocada,
nos versos finais, através de uma palavra (“splash”) capaz de reproduzir a
insignificância visual relevante no quadro de Brueghel:

unsignificantly
off the coast
there was

a splash quite unnoticed


this was
Icarus drowning. (Ibidem)

Outro aspecto deverá ainda ser mencionado, a leitura do auto-retrato


realizada por Williams em “Self-Portrait”, o poema que abre esta sequência;
vejamos os versos finais:

unshaved his

blond beard half trimmed


no time for any-
thing but his painting (Ibidem, 385)
A autoria deste quadro, descoberto em 1882, foi inicialmente atribuída a
Brueghel. Quando, em 1924, Williams visitou o Kunsthistorisches Museum, em
Viena, o quadro era ainda identificado como seu. No entanto, investigação
ulterior revelaria que ele nem era da sua autoria nem o retratava. Depois de ter
sido atribuído tanto a Jan van Eyck, como a um discípulo seu, é hoje
identificado como sendo de Jean Fouquet, tendo como modelo um bobo da
corte de Nicolò III d’Este (século XIV). Esta ekphrasis revela, assim,
ironicamente, a forma condicionada como Williams aborda o objecto,
apontando razões pré-existentes para uma leitura que não decorria do objecto,
mas sim de um a priori que o levava a nele inscrever um sentido; uma leitura
que ele impunha a esse mesmo objecto. No fundo, este equívoco expõe a
falácia das abordagens biografistas, algo que Williams recusou nos restantes
poemas ao colocar a ênfase na composição, no entendimento do quadro como
microcosmo.

Como acima referi, Brueghel foi objecto de inúmeras ekphrasiss por


parte de poetas americanos; para além do já mencionado Williams, evoquei já
Walter de la Mare, John Berryman, Robert Foerster e Joseph Langland. Não
sendo minha intenção proceder à sua descrição nem sequer à respectiva
catalogação, também aqui evocarei apenas os momentos em que o diálogo
entre o texto e o quadro desvenda algo de diferente para a compreensão do
modo como o próprio conceito de ekphrasis se vai reformulando à medida que
a modernidade cede lugar à pós-modernidade. Condicionado por esta opção,
convoquei os poemas de Auden e de Williams (poetas que tão bem sinalizam
esta passagem, dela participando), e, neste momento, convoco “Two Views of
a Cadaver Room”, um poema de Sylvia Plath, contemporâneo de Pictures from
Brueghel. Fascina-me aqui a manipulação de pontos vista realizada por Plath
num díptico onde narrativa autobiográfica e ekphrasis à partida surgem
dissociadas. Com efeito, o título simula dois exercícios de representação sobre
um mesmo referente. Qual díptico, o poema divide-se em duas partes: na
primeira, a autora retoma um episódio do seu romance The Bell Jar, quando a
protagonista, Esther Greenwood, visita uma sala de um hospital onde, num
cenário devedor (e reformulador) do gótico (veja-se, por exemplo, os fetos
conservados nas campânulas), o namorado, estudante de medicina, exerce o
seu poder de sedução através da dissecação de um cadáver; na segunda
parte, a voz detém-se sobre um promenor de O Triunfo da Morte, um quadro
de Brueghel que terá sido pintado por volta de 1568, e que se encontra
actualmente no Museu do Prado. Nele, segundo alguns críticos, Brueghel terá
conciliado um certo imaginário medieval e o espírito renascentista, recorrendo
para tal a duas tradições de representação, a concepção italiana do “Triunfo da
Morte” e o tema nórdico da “Dança Macabra” (Delevoy, 1990: 102).
Observemos, então, o poema:

(I)

The day she visited the dissecting room


They had four men laid out, burnt as burnt turkey,
Already half unstrung. A vinegary fume
Of the death vats clung to them;
The white-smocked boys started working.
The head of his cadaver had caved in,
And she could scarcely make out anything
In that rubble of skull plates and old leather.
A sallow piece of string held it together.

In their jars the snail-nosed babies moon and glow.


He hands her the cut-out heart like a cracked heirloom.

(2)

In Brueghel’s panorama of smoke and slaughter


Two people only are blind to the carrion army:
He, afloat in the sea of her blue satin
Skirts, sings in the direction
Of her bare shoulder, while she bends,
Fingering a leaflet of music, over him,
Both of them deaf to the fiddle in the hands
Of the death’s-head shadowing their song.
These Flemish lovers flourish; not for long.

Yet desolation, stalled in paint, spares the little country


Foolish, delicate, in the lower right hand corner. (Plath, 1981: 114)

Num processo de aparente refracção, as duas partes (quadros)


identificam-se (espelham-se, aproximam-se), porém, através de temas
unificadores, sedução e morte. Tanto na primeira parte como na segunda, há
uma certa ironia prosódica emprestada pela manipulação do pentâmtero
jâmbico, com as suas ressonâncias de um género (“Spenserian stanza”) tantas
vezes visitado pelas tradições neoplatónicas, onde o Belo se desvenda no
encontro (no rosto) de uma figura feminina idealizada. Na primeira parte, o par
amoroso é despojado de uma identidade (em contraste com a descrição dos
cadáveres e dos fetos) e reduzido à dimensão de quase signos vazios. O seu
estatuto eufórico é esmagado por essa descrição; veja-se a intensidade visual
e a forma como o odor contribui para uma atmosfera claustrofóbica (“A
vinegary fume /Of the death vats clung to them”; itálico meu). A ironia, antes
prosódica, acentua-se no derradeiro verso da primeira parte: o coração que o
amante entrega à amada é o do cadáver dissecado, qual prenúncio ominoso do
desenlace desta relação. Ao transitarmos para o segundo quadro (parte),
persiste a ironia (prosódica e temática).

Numa representação marcada pelo excesso de micronarrativas


convergentes num sentido único, a convocação da morte, há um pequeno
fragmento contrastante com a quase claustrofobia que aquele excesso impõe,
o fragmento onde dois amantes se entregam ignorando a destruição que os
rodeia e, em breve, aniquilará. Plath expõe esse contraste espacial através de
signos que designam a antítese de planos: macro vs micro, plano de conjunto
vs plano de promenor, “panorama” vs “lower right hand corner.” Mas Plath
ensaia aqui a superação de outra antítese, a formulada por Lessing (“arte do
espaço” vs “arte do tempo”): o tempo é simulado através da acção inerente a
“flourish”, enquanto, simultaneamente, “not for long” explicita a catástrofe; daí a
suspensão e a estase que caracterizam este fragmento.

Os diálogos de Plath com as artes visuais não se restringem a esta


evocação de Brueghel. Entre 1956 e 1960, ou seja, no espaço de tempo em
que produziu os poemas que dariam corpo ao seu primeiro livro de poesia, The
Colossus, Sylvia Plath escreveu poemas que enviam para as obras de pintores
como Douanier Rousseau, Paul Klee ou De Chirico. Em cada um deles
encontrou impulsos para reflexões distintas. Antes de as observarmos,
devemos atentar num poema em que, embora não convocando um pintor ou
quadro, a componente visual é estruturante; refiro-me a “Magnolia Shoals”,
poema relevante na apropriação de um registo visual, enquanto metatexto e
objecto de formulação de uma Poética. Construído segundo uma lógica de
variação musical sobre um mesmo tema, o poema retoma a dicotomia
lessinguiana, detendo-se sobre duas estratégias específicas de representação
do real, a do poeta e a do pintor. Os seis primeiros tercetos sustentam
subliminarmente a percepção do poeta; subliminarmente porque o poeta não é
evocado: o discurso flui através de um olhar de actores com os quais
inocentemente coincide a voz do criador. Nesta fase surgem referências que
permitem situar o sujeito no espaço e no tempo; a estratégia assenta então
curiosamente numa categoria narrativa, a descrição :

Up here among the gull cries


we stroll through a maze of pale
red-mottled relics, shells, claws

as if it were summer still .


That season has turned its back. (Plath, 1981: 121)

Simultaneamente, insinua-se a dimensão visual e uma estratégia


devedora do discurso pictórico, a perspectiva; atente-se na insistência de
indicadores como “up”, “through”, “behind”, “below”, “over”. Uma estratégia
exógena invade a expressão poética, possibilitando um olhar peculiar. Algo
inviamente, o poema transforma-se numa reflexão, indissociável do ponto de
vista; dele dependerá a percepção do espaço. A par deste percurso (físico) no
espaço, tem lugar o percurso no tempo, através de sucessivas evocações, o
que será inevitável num discurso reflexivo. Em seguida, após ter surgido uma
percepção coincidente com a do poeta, são desvendadas a percepção e a
interiorização do pintor. Observemos os dois últimos tercetos:

The watercolorist grips


his brush in the stringent air .
The horizon's bare of ships ,

the beach and the rocks are bare .


He paints a blizzard of gulls ,
wings drumming in the winter . (Ibidem, 122)

“Magnolia Shoals” expõe assim a interacção e a consequente


permeabilidade existente entre diferentes percepções artísticas, não deixando
de indiciar um certo relativismo - decorrente do confronto de pontos de vista
distintos, e culminando numa percepção do real ligada a um subgénero
artístico em concreto, a aguarela. A especificidade técnica será indissociável da
interiorização daquele espaço, e do modo como o artista o representará. As
características próprias deste subgénero tinham estado já presentes em
“Watercolor of Granchester Meadows”, outro poema escrito a 19 de Fevereiro
desse mesmo ano de 1959 , e incluído em The Colossus. Trata-se, portanto, de
uma reflexão que vai percorrendo esta fase criativa e que será indissociável do
diálogo com Klee e com Rousseau. Mas “Magnolia Shoals” desencadeia ainda
outra questão. Aqui não é apenas o sujeito pintor que representa artisticamente
o objecto; ele próprio - sujeito - é igualmente objecto dentro do quadro da
representação do poeta. Refira-se que a complexidade deste jogo com
diferentes formas de diálogos e representações, decorre do facto de ela enviar
quer para o domínio da técnica - as estratégias de representação - quer para o
da epistemologia - a percepção do tempo e o conceito de acaso, por exemplo.
J. D. McClatchy observa estas questões na introdução à colectânea de ensaios
Poets on Painters, abordando todo o sistema de implicações na escolha de um
referente artístico por parte do poeta:

... by ‘describing’ a painting a poet may study figurative problems: the composition of
subject matter, colour, and scale, or the relationship between chance occurence and formal
patterns. Describing is also homage; to trace the beloved's body is a traditional poetic feat, and
a painting is as beguiling as any idealized lip or lash, any fetish. By writing about a
contemporary painting, a poet may cannily have found a useful way to let the poem talk about
itself. (McClatchy, 1990: 102)

Esta observação de McClatchy permite-me transitar para os poemas


onde Giorgio De Chirico é impulso primeiro. Com efeito, De Chirico permitir-lhe-
ia reflectir sobre diferentes latitudes da representação parental. Comecemos
por observar “Conversation Among the Ruins”, o poema sobre um quadro deste
pintor que abre os Collected Poems. Nos primeiros meses de 1956, quando se
encontrava em Inglaterra como bolseira fulbright, Plath afixou uma reprodução
deste na porta do quarto, tendo posteriormente incorpado no poema uma
expressão retirada do seu Diário*. Como adiante se verá, esta interacção entre
arte e quotidiano será nuclear neste período, estando na origem de um subtil
processo criativo. Mas, o interesse de Plath pela obra do pintor italiano tornar-
se-á ainda mais importante devido à forma como ela assimilará quadros seus

*
Cf. respectivamente Ted Hughes. “Notes on Poems - 1956-1963” apud Sylvia Plath..Collected
Poems, 275 , e , sobre a frase interiorizada –“What ceremony of words ...” - Jacqueline Rose.
The Haunting of Sylvia Plath, 89.
nos poemas incluídos em The Colossus: “The Disquieting Muses” e “On the
Decline of Oracles.” Regressemos para já a “Conversation Among the Ruins.”

Ao reflectir nas possibilidades de verbalização oferecidas por De Chirico,


importará analisar duas linhas de sentido cruciais neste poema: o tempo e a
sexualidade. A sexualidade, por vezes ligada a visões agressivas e
destruidoras da sedução, é uma presença significativa na poesia de Plath
escrita neste período. Ora, “Conversation Among the Ruins” inaugura essa
presença associando a iniciativa da sedução ao elemento masculino. Toda a
imagética do poema se constituirá em torno de dois pólos, o masculino e o
feminino, os quais, por seu turno, consubstanciam um esquema antitético:
dinâmico vs estático, activo vs passivo, instinto vs decoro, sedutor vs
seduzido; enfim masculino vs feminino, mas também agressor vs vítima. Ao
elemento masculino associa-se a subversão da ordem no lugar e a
dinamização do tempo, já que o elemento feminino enunciador se encontra
num espaço de protecção matricial - a casa - no qual o tempo parece
suspenso. Observemos os primeiros versos do poema onde essas antíteses se
desenham:

Through the portico of my elegant house you stalk


With your wild furies, disturbing garlands of fruit
And the fabulous lutes and peacocks, rending the net
Of all decorum which holds the whirlwind back.
Now, rich order of walls is fallen; rooks croak
Above the appalling ruin; in bleak light
Of your stormy eye, magic takes flight
Like a daunted witch, quitting castle when real days break. (Plath, 1981: 21)

Num primeiro instante, a emergência do agente masculino desperta o


feminino para o tempo, torna-o histórico, ou seja, retira-o da letargia, dá-lhe
vida. Descobrir a sexualidade significa renascer, redescobrir a vida; o que não
invalida, porém, a existência de perigo. À semelhança de muita da sua poesia
ulterior, sedução, sexualidade e ameaça andarão a par. “Conversation Among
the Ruins” apresenta também uma subtil interacção entre o lugar e o tempo,
vertentes essenciais não só dos poemas de Plath mas ainda dos quadros de
De Chirico. Gino Baratta apresenta a seguinte leitura dessa interacção:

O universal funda-se sobre o equilíbrio dos opostos, equilíbrio dinâmico do qual se


poderá inferir o ritmo que o rege. De Chirico, ... , projectava atribuir às coisas, com a pintura,
uma nova psicologia metafísica, registando com consciência absoluta o espaço que separa os
objectos entre si. Declarada ou não, a metáfora do ritmo é constante. (Baratta, 1987: 112)

Esse espaço que separa os objectos funciona, em Plath, como estase,


instante trágico, tensão que antecede o confronto dos dois signos, masculino e
feminino. No final do poema a linguagem (o texto ?) revela-se incapaz de
ajudar a superar a (irremediável) distância existente entre esses signos.

Plath explicita uma dimensão deste seu encontro com De Chirico, a


propósito de “The Disquieting Muses”, aquando de uma leitura do poema num
programa da B.B.C. A autora desvenda a expansão de diálogos e a dimensão
evocativa, o quadro como solo onde se sendimentam e se fundem diferentes
camadas de sentido:

It [the poem] borrows its title from the painting by Giorgio de Chirico - The Disquieting
Muses. All through the poem I have in mind the enigmatic figures in this painting - three terrible
faceless dressmaker’s dummies in classical gowns, seated and standing in a weird, clear light
that casts the long strong shadows characteristic of de Chirico’s early work. The dummies
suggest a twentieth-century version of other sinister trios of women - the Three Fates, the
witches in Macbeth, de Quincey’s sisters of madness. (Hughes, 1981: 276)

O passo citado desvenda, em primeiro lugar, um certo diálogo


intertextual, em segundo lugar, e dele decorrente, uma dimensão trágica, e,
finalmente, em terceiro lugar, uma atmosfera de mistério. De Chirico permite,
assim, reactualizar uma tradição literária, simultaneamente permitindo uma
expansão semântica; “On the Decline of Oracles” participa deste processo. A
circunstância factual, biográfica, funciona aqui como impulso para a
representação de um ethos marcado pela perda de influência do
transcendente, da sua protecção, do sentido que ele confere à existência:
My father kept a vaulted conch
By two bronze bookends of ships in sail,
And as I listened its cold teeth seethed
With voices of that ambiguous sea
Old Böcklin missed, who held a shell
To hear the sea he could not hear.
What the seashell spoke to his inner ear
He knew, but no peasants know.

My father died, and when he died


He willed his books and shell away. (Plath, 1981: 78)

As convocações pictóricas dentro do pictórico (Böcklin em De Chirico)


permitem acentuar uma atmosfera feérica da qual o conflito edipiano participa.
Num âmbito intertextual algo de recorrente em Plath se desvenda, a obsessão
face à representação parental, estruturadora de poemas como “The Colossus”,
“Electra on Azalea Path”, “Ouija”, ou ainda “Daddy”, aquele que, segundo
George Steiner, tomando como impulso circunstâncias biográficas, as supera
para figurar um horror final; “Daddy”, a Guernica da poesia moderna:

... one of the very few poems I know of any language to come near the last horror. It
achieves the classic act of generalization, translating a private, obviously intolerable hurt into a
code of plain statement, of instantaneously public images which concern us all. Is is the
‘Guernica’ of modern poetry. And it is both histrionic, in some ways, ‘arty’ as is Picasso’s outcry.
(Steiner, 1967: 330)

Nos versos citados de “On the Decline of Oracles”, Plath não se limita a
associar a voz parental à tradição, ao logos, ao poder, já que a morte do pai
implica um vazio de sentido: repositório de saber, esta é afinal uma figura
constrangedora. Blasing analisa assim esta interacção: “The father is the
keeper of the books and the conch; the poet holds only their echoes in her hear.
And her voice is threatened by both the literary past and nature.”(Blasing, 1987:
58) Nesse sentido, o (conceito bloomiano de) agon será nuclear: o poema
parece evocar um conflito natural que se alarga, de uma forma radical, à
identificação do pai com a natureza que, por seu turno, originará um isolamento
absoluto do sujeito. No limite, tal significará o silêncio, isto é, a incapacidade de
exibir uma autonomia. Assim nasce a ansiedade (também ela bloomiana): “Her
anxiety is both a poetic anxiety and a natural anxiety, a fear of being overcome
by a babel of voices and by silence, for nature and the tradition mirror each
other in her allegorical universe.” (Ibidem, 59)

Para além deste aspecto, outro importará recordar, o do subtil diálogo


extratextual com a pintura, realizado através da, acima mencionada, referência
a Arnold Böcklin. Tal como a escolha referencial de objectos artísticos, este
diálogo deverá ser entendido não apenas como evocação cultural, ou eventual
pose de afirmação de um saber, mas antes num horizonte mais vasto de subtis
implicações no sistema de referências que a autora para si própria constrói;
recorde-se que Böcklin é recuperado por uma certa tradição surrealista,
associada a uma dimensão metafísica, que entronca em De Chirico. Estamos
assim perante uma escolha consciente que decorre não só de uma eventual
empatia afectiva mas também da possibilidade de anagnorisis ontológica que
uma obra artística proporciona. O reconhecimento passa naturalmente por um
plano subconsciente; refere a propósito Anne Stevenson: “De Chirico opened to
Sylvia a whole range of oniric imagery: ruined statuary, vaults, trains, and
shadows cast by unseen figures, subconscious symbols similar to those of her
dreams.” (Stevenson, 1989: 124) Quando escreveu “On the Decline of
Oracles,” Plath registou no seu Diário as palavras do artista acerca de O
Enigma do Oráculo, o quadro que estava na origem do poema:

1) Inside a ruined temple the broken statue of a god spoke a mysterious language.
2) Ferrara: The old ghetto where one could find candy and cookies in exceedingly
strange and metaphysical shapes.
3) Day is breaking. This is the hour of the enigma. This is also the hour of prehistory.
The fancied song, the revelatory song of the last morning dream of the prophet asleep at the
foot of the sacred column, near the cold, white simulacrum of god.
4) What shall I love unless it be The Enigma? (Ibidem, 124)

O passo citado denuncia três vertentes estruturantes: espaço, tempo,


mistério. O espaço é evocador de uma síntese entre o sagrado e o profano,
indiciando uma realidade onírica. O tempo envia para uma atmosfera de
suspensão. O mistério decorre da interacção entre o espaço e o tempo; com
ele acentua-se o carácter metafísico do episódio. O mistério é, aliás,
mencionado por Plath no seu Diário: “… long shadows cast by unseen figures -
human or stone it is impossible to tell.” (McCullough ed., 1982: 211) A
ambiguidade detectada pela autora, não deixa de enviar para a problemática
da busca da identidade. Isto será ainda mais curioso pelo facto de, em De
Chirico, o sujeito não possuir sombra própria, uma identidade criativa (Axelrod,
1990: 214). Além disso, a natureza enigmática, sem expressão, da esfinge,
situa-a para além do tempo (Billi, 1983: 119). Deste modo se conclui que as
três vertentes estruturantes não são meramente transpostas para a poesia de
Plath impulsionada por pinturas de De Chirico: esta é, de facto, uma
interiorização radical que se reflectirá numa reequilibração do olhar da autora,
decorrente de uma peculiar aquisição e assimilação do real. Observemos a
análise que Mirella Billi faz de todo este processo e do seu impacto em Plath:

I manichi di De Chirico, le sue calve figure senza volto, poste a fianco di statue e ombre
nella solitudine di piazze irreali, e nella prospettiva di lontani orizonti, divengono nella poesia
della Plath altretante figurazioni della luna, ... Se De Chirico voleva soprattutto esprimere,
attraverso queste figure, l’enigma arcano, la Plath vuole, interrogando con queste arcane
presenze, scoprire e ricompore se stessa e le cose, cercare di individuare il disegno che
governa questo universo, dentro e fuore di sé. (Ibidem, 111)

A interacção existente entre aquelas três vertentes - espaço, tempo,


mistério, é ainda mais evidente em “The Disquieting Muses”.
Enquanto que a figura parental constitui já, nesta primeira fase, uma
recorrência na poesia de Plath, a figura materna surgirá aqui pela primeira vez.
O poema desenvolve-se como se de uma conversa com a mãe se tratasse,
evocando na memória comum lugares, fantasias, episódios que o sujeito
designou como relevantes na construção da sua identidade; veja-se, por
exemplo, o furacão revisitado na terceira estrofe:

In the hurricane, when father’s twelve


Study windows bellied in
Like bubbles about to break, you fed
My brother and me cookies and Ovaltine
And helped the two of us to choir:
‘Thor is angry: we don’t care!’( Plath, 1981: 75)

No estudo biográfico que realizou sobre a autora, Linda Martin afirma


que este furacão terá ocorrido em Setembro de 1938, quando Sylvia Plath tinha
apenas cinco anos. Por seu turno, Aurelia Plath , sua mãe, refere que o poema
distorce certos factos das suas vidas (Rose, 1991: 75). Estamos, afinal, perante
um dos equívocos centrais na leitura da poesia de Plath e na forma como ela
tem sido tantas vezes divulgada. Refiro-me à tentativa de sistemática redução
do texto ao papel de reprodutor (registo) de episódios biográficos. Todavia,
quando optamos pela saudosa “close reading”, e lemos os poemas com mais
atenção, verso a verso, algo de diferente desponta. Vejamos, por exemplo, as
lições de piano citadas na quinta estrofe:

Mother, you sent me to piano lessons


And praised my arabesques and trills
Although each teacher found my touch
Oddly wooden in spite of scales
And the hours of practicing, my ear
Tone-deaf and yes, unteachable.
I learned, I learned, elsewhere,
From muses unhired by you, dear mother. (Plath, 1981: 75)
À partida, esta estrofe parece uma mera transcrição de determinados
factos. Contudo, perto do final, surge uma palavra onde se insinua um registo
específico do poema, muses. Nela se desencadeiam outras ressonâncias
(intertextualidades...): a presença de De Chirico; a revisão do imaginário da
infância levado a cabo pela adulta; o índice metafísico da escrita. O poema não
se circunscreve a um registo factual, embora em momentos, como os citados,
assim pareça. De facto, o registo híbrido do qual quotidiano, mito e imaginário
participam, surge logo na primeira estrofe onde os contos da infância são
lembrados, nomeadamente A Bela Adormecida. Ao lermos estes versos,
vemos como carecem de fundamento os receios de Aurelia Plath. Eis o início
de “The Disquieting Muses”:

Mother, mother, what illbred aunt


Or what disfigured and unsightly
Cousin did you so unwisely keep
Unasked to my christening, that she
Sent these ladies in her stead
With heads like darning-eggs to nod
And nod and nod at foot and head
And at the left side of my crib? (Ibidem, 74-75)

Aquilo que noutros momentos da poesia de Plath surge ligado a um


certo determinismo trágico (que persegue o sujeito), conhece, em “The
Disquieting Muses”, uma faceta pagã no destino traçado pelas Fates; destaca-
se ainda a subversão do registo biográfico, já que será algo difícil entender
literalmente os eventos evocados. O registo biográfico, entroncando por vezes
em episódios familiares, serve afinal de impulso para o insinuar de uma
dimensão alegórica. A função de um contexto familiar no desencadear da
alegoria é exemplarmente descrito por Blasing:

... it is not family drama that explains Plath’s poetics, but her problem with her medium
that conjures up installs the family drama as the central, allegorical text of her life. The facts of
her biography reinforce this drama and enable her to conflate problems of poetic authority and
Oedipal themes, thereby bringing a psychological urgency to poetic anxieties. (Blasing, 1987:
56)
“The Disquieting Muses” permite ao leitor atento reter questões
fundamentais relativamente a uma parte significativa da poesia de Sylvia Plath
escrita neste espaço de tempo. Consequentemente, desmontar-se-á a
tendência para o equívoco de ler estes poemas enquanto meras projecções de
um quotidiano; algo que ocorre, quer nos comentários de familiares da autora,
quer em certas vozes críticas. Como comprova o olhar aqui ensaiado sobre
estes poemas, o dado biográfico surge na génese do impulso para a criação;
será nele que opera a imaginação, actante transfigurador. E será com ele que
interage a pintura. A função da obra de De Chirico na de Plath, gerada neste
período, não poderá assim ser medida pelo número de poemas que tem como
referente objectos artísticos. Mais do que esse número, pouco relevante
comparativamente com a produção coeva, importa reter quais os problemas
que neles suscitam esses objectos. Em De Chirico, Plath reconheceu uma
extensão de inquietações metafísicas relativamente à reflexão sobre a
identidade que nela adquiriria uma dimensão estética e literária: conflito, no
plano psicológico, face a vozes autoritárias, e agon (ainda na acepção
bloomiana) no plano literário, face a discursos atentos aos sinais de uma pós-
modernidade que então apenas se insinuava. As suas obsessões psicológicas
projectar-se-iam naturalmente nos encontros com a pintura. Deste modo, a
ansiedade da influência demonstra de que forma o situar-se face a uma
tradição entronca tanto no plano metafísico como no plano psicológico. Daí que
a própria figuração parental, mediatizada pela obra de De Chirico, obtenha aqui
um grau de expansão raramente existente na sua poesia: eco da ambiência
trágica, e releitura de vozes fortes da tradição literária anglo-saxónica. Por fim,
a voz do pai diluir-se-á no processo de procura de novas filiações que
permitam a emergência da identidade.

De Chirico possibilitar-lhe-ia ainda iniciar um diálogo com uma vertente


artística tantas vezes lateralizada na América, o surrealismo. Neste, Plath
reconheceria um universo simbólico que, mesmo sem fornecer respostas,
viabilizaria a identificação com ambiências de um imaginário que se debatia
então com as orientações normativas impostas pelo rígido ethos macartista; o
ethos ao qual regressaria no romance autobiográfico The Bell Jar. Quando
Plath escreve estes poemas, ela não pretende produzir ekphrasis, comentar
quadros, ou conceber versões deles; a arte de De Chirico abre-lhe novos
horizontes de verbalização, permite-lhe repensar a tradição literária, reinventar
a memória, assimilar um universo simbólico que dialoga com as suas
inquietações metafísicas, ontológicas e, também, obviamente, poéticas. Será
assim num amplo espaço de interacções que o seu encontro com o pintor
italiano poderá e deverá ser entendido. Sylvia Plath descobre na arte um solo
impulsionador do discurso poético. Porque de impulso se trata, o poema não se
limita a uma reprodução de objectos ou mesmo de instantes ou de fragmentos
desses objectos: Plath concebe-os antes como lugares de encontro e de
consequente dispersão; algo que lhe permitirá entender o objecto artístico que
precede o poema - que o referencia - como espaço de abertura para e diálogo
com questões teóricas ou mesmo epistemológicas. De Chirico permitiu-lhe
reformular universo endógenos, zonas do subconsciente denegadas pelo
sujeito, e inquietações existenciais que serão uma constante no seu percurso
criativo.

Sem elaborar este tipo de articulações, Mark Strand convoca


superiormente a pintura de De Chirico. Em Two De Chiricos, Strand realiza
duas ekphrasis, respectivamente, sobre The Philosopher’s Conquest e sobre o
já referido The Disquieting Muses. Formalmente estamos perante vilanelas, isto
é, poemas compostos por dezanove versos, com cinco tercetos e uma quadra
final. O primeiro verso da primeira estrofe é repetido no último verso da
segunda e da quarta estrofes, enquanto o terceiro verso da primeira estrofe é
repetido no último verso da terceira e da quinta estrofes. Estes dois versos que
se vão repetindo ao longo dos tercetos, surgem, sequencialmente, no
penúltimo e no último versos da quadra. O esquema de rima é aba.

Aspecto relevante a reter: Strand utiliza esta estrutura para acentuar o


mistério (a melancolia) e os signos que dele participam, em “The Philosopher’s
Conquest”, e a atmosfera de estase e de ameaça, em “The Disquieting Muses”.
Transcrevo este último, na íntegra, para que seja perceptível a notável
interacção entre ekphrasis e vilanela, não só no que a enargeia diz respeito
mas também pela forma como o poeta assim recria (e pela estrutura do
subgénero que utiliza, reitera) essa atmosfera de estase e ameaça, e a
percepção de estranheza com a qual o “beholder” se confronta:

BOREDOM sets in first, and then dispair.


One tries to brush it off. It only grows.
Something about the silence of the square.

Something is wrong; something about the air,


Its color; about the light, the way it glows.
Boredom sets in first, and then dispair.

The muses in their fluted evening wear,


Their faces blank, might lead one to suppose
Something about the silence of the square,

Something about the buildings standing there.


But no, they have no purpose but to pose.
Boredom sets in first, and then dispair.

What happens after that, one doesn’t care.


What brought one here – the desire to compose
Something about the silence of the square,

Or something else, of which one’s not aware,


Life itself, perhaps – who really knows?
Boredom sets in first, and then dispair…
Something about the silence of the square. (Strand, 1999: 29)

Regressando a Plath, observemos, em seguida, qual a articulação


específica que a sua poesia desencadeia com a obra de Paul Klee e Douanier
Rousseau. Plath escreveu quatro poemas referenciados em obras de Paul Klee
– “Virgin in a Tree”, “Perseus”, “Battle-Scene” e “The Ghost's Leavetaking” , e
um no quadro O Sonho, de Douanier Rousseau - Yadwigha, On a Red Couch,
Among Lilies . Escritos no início de 1958, “Virgin in a Tree”, “Perseus”, “Battle-
Scene” e “The Ghost's Leavetaking” resultam de uma encomenda da revista Art
News.

“The Gost's Leavetaking” exibe-se como espaço hermenêutico por


excelência. Daí que os primeiros versos abordem o objecto artístico a partir da
mutações no tempo, algo devedoras de um registo impressionista:

Enter the chilly no-man's land of about


Five o'clock in the morning, the no-color void
Where the waking head rubbishes out the draggled lot
Of sulphurous dreamscapes and obscure lunar conundrums
Which seemed, when dreamed, to mean so profoundly much,

Gets ready to face the ready-made creation


Of chairs and bureaus and sleep-twisted sheets. (Plath, 1981: 90)

O poema situa-se num espaço e num tempo de junção que,


simultaneamente, corresponde a uma ruptura inevitável de contrários, um
instante captado pelo discurso, como tantas vezes sucede aquando de uma
narratividade do objecto artístico. Aqui será “this joint between two worlds and
two entirely / Incompatible modes of time” (Ibidem, 90). Tudo envia para a
transição, para um percurso no espaço e no tempo – “toward a region where
our thick atmosphere/ Diminishes, and God knows what is there.” (Ibidem, 90-
91), no qual se indicia a dúvida face ao futuro. O sujeito é um observador,
alguém que assiste a uma partida, a uma partida para viagem que não é ainda
a sua, “that crisp cusp towards which you voyage now. / Hail and farewell.
Hello, goodbye.” (Ibidem, 91) Começando numa descrição de signos do
(nosso) quotidiano, o poema transita para um universo irreal que permite uma
reflexão sobre o destino e sobre aquilo que existirá para além da morte .

Por seu turno, “Virgin in a Tree” não se restringe ao objecto artístico que
o desencadeou, evoluindo para um questionar da credibilidade de uma tradição
literária. O desenho é já por si uma metalinguagem que motivará uma
metalinguagem em segundo grau, o texto poético. O poema revela-se então
um espaço reflexivo por excelência:
How this tart fable instructs
And mocks! Here's the parody of that moral mousetrap
Set in the proverbs stitched on samplers
Approving chased girls who get them to a tree
And put on bark's nun-black

Habit which deflects


All amorous arrows. (Ibidem, 81)

Signo de uma metalinguagem meditando sobre um objecto cultural e


histórico, e também elemento que mina (sabota) os fundamentos e a
credibilidade da tradição, a ironia preside à expressão artística e à expressão
poética. Os últimos versos denunciam, aliás, a sua presença nuclear no texto:
“Tree-twist will ape this gross anatomy / Till irony's bough break.” (Ibidem, 82).
Tomando como tema a sedução e a sexualidade, a ironia desmonta o discurso
de permanência de um ethos colonial (“puritan lip”) que, interiorizado, se
projecta nos artifícios e sinuosidades da moral dominante (“moral mousetraps”),
um ethos macartista? Distante está o referente. Plath encontrou afinal nele um
correlativo que lhe permite reflectir com ironia acerca de uma sociedade que a
constrangia.

“Battle-Scene”, sub-intitulado “From the Comic Operatic Fantasy The


Seafarer”, subscreve essa dimensão reflexiva. Neste caso, Plath começará
pela ekphrasis; mas ela não significará uma substituição do objecto, já que a
autora não só apela à memória que lhe confere a tradição literária, evocando
também a cor e a dimensão simbólica. Por seu turno, a memória subscreverá
um carácter regressivo que no referente se indicia. Observemos desde já a
primeira estrofe :

It beguiles -
This little Odissey
In pink and lavender
Over a surface of gently -
Graded turquoise tiles
That represent a sea
Which chequered waves and gaily
Bear up the seafarer,
Gaily, gaily,
In his pink plume and armor. (Ibidem, 84)

A memória da tradição literária, por natureza constrangedora, não se


revela todavia aqui como um espaço contra o qual o sujeito constrói
agonisticamente a sua identidade. “Battle-Scene” convoca o imaginário da
fábula, das narrativas mais ou menos maravilhosas, dos heróis que dão corpo
ao (nosso) imaginário da infância e da adolescência: Sindbad, “monsters”, “the
whale”, “the shark”, Ahab. Embora pertencendo à memória (tradição) literária,
eles participam fundamentalmente de uma memória de um imaginário
específico num determinado estádio de crescimento. Em confronto com este
imaginário, surge a desmontagem racionalista do adulto e a recomposição da
(sua) realidade.

“Perseus, The Triumph of Wit Over Suffering” apresenta outro tipo de


diálogo com o referente artístico, ao instituir o herói na narrativa mítica como
interlocutor do diálogo com o sujeito; a partir desse diálogo desencadear-se-á
uma reflexão sobre o próprio herói. A aventura mítica - e metonimicamente
através dela o discurso mítico - de Perseus - o passado - transforma-se então
num exemplo para o quotidiano - para um presente onde a segurança conferida
pelo mito não existe. Essa aventura introduz ainda um tópico que se tornará
importante em Sylvia Plath: o do difícil equilíbrio entre loucura e sanidade – “the
celestial balance / Which weighs our madness with our sanity” (Ibidem, 84).
Diferentemente dos outros poemas referenciados em Klee, “Perseus”
reconhece na obra de arte uma narrativa moral que o sujeito interioriza através
da poesia. O metatexto parece diluir-se, aproximando-se assim o poema dos
diálogos exercidos com De Chirico .

Já “Yadwigha, on a Red Couch, Among Lilies - A Sestina for the


Douanier”, baseado, como referi, no quadro O Sonho, de Douanier Rousseau,
retomará essa intenção teórica. Neste caso, através de uma antítese, expõe-se
um confronto entre o crítico e o criador que, embora situado no passado - no
tempo de Rousseau, funciona como eventual parábola para o presente.
Dominados pelas concepções académicas e canónicas, e incapazes de
entender a transfiguração do real operada pelo artista, os “consistent critics”
surgem como um dos pólos da antítese. No outro pólo surge o artista que,
ironicamente, segue o seu percurso criador de subversão canónica:

It seems the consistent critics wanted you


To choose between your world of jungle green
And the fashionable monde of the red couch
With its prim bric-à-brac, without a moon
To turn you luminous, without the eye

Of tigers to be stilled by your dark eye


And body whither than its frill of lilies:
They'd have had yellow silk screening the moon,
Leaves and lilies flattened to paper behind you
Or, at most, to a mille-fleurs tapestry. But the couch
Stood stubborn in its jungle: red against green,

Red against fifty variants of green,


The couch glared out at the prosaic eye. (Ibidem, 85)

A diferença entre fancy e imagination é nuclear nestas estrofes. A


confusão entre elas - entre aquilo que, na esteira de Coleridge, será ou um
mero devaneio ou uma verdadeira transfiguração do real, (de)forma o olhar
destes “consistent critics”. O carácter central do ponto de vista e do olhar será,
inclusivamente, evocado; ele denuncia essa incapacidade de leitura do objecto
artístico por parte desses críticos – “the prosaic eye”. Por isso mesmo, a sua
primeira designação, irónica, no poema é a de “literalists” – “the literalists once
wondered how you / Came to be lying on this baroque couch” (Ibidem, 85). O
poema não se limita, portanto, a reter uma leitura do quadro; pelo contrário ele
acompanha essa leitura com a dimensão irónica do agon (conceito utilizado
agora no sentido etimológico) entre a crítica académica e o artista; veja-se, por
exemplo, a assimilação irónica de galicismos pelo discurso poético. Deste
modo, o poema, já por si leitura do objecto, desenvolve-se expondo diferentes
texturas, diferentes camadas de sentido, diferentes leituras: a que Rousseau
exibe perante os críticos, e aquela que confidencia a um amigo. Nesta última
reflecte-se afinal a contestação de uma certa ideia algo redutora de função e
finalidade pedagógica ou moral da arte.

Escrito a 27 de Março de 1958, “Yadwigha, on a Red Couch, Among


Lilies” foi considerado pela autora como a sua melhor sextina. Este aspecto
permitir-nos-á entender este poema enquanto ponto de viragem no conjunto da
produção poética de Plath. Se tivermos em conta a estrutura formal,
verificamos que, à semelhança de “Perseus”, Sylvia Plath recorre a uma
perspectiva dialógica ao designar um interlocutor que, também neste caso,
funciona como actante do objecto artístico, Yadwigha. Através deste, Plath
invade o texto poético com uma tonalidade discursiva e coloquial, decorrente
da oralidade típica do diálogo. A interiorização de um traço do real - a
linguagem quotidiana - pela poesia, a par do seu carácter metalinguístico - o
conflito entre o artista e os críticos, demonstra um certo ponto de viragem por
parte deste texto face à produção anterior. Ao percorrermos estes diferentes
encontros com a arte na poesia de Plath, reconhecemos, afinal, as várias
possibilidades de especulação emocional pela autora ali desvendandas.

Para além destes pintores, outro artista é ainda convocado na poesia de


Plath, o escultor Leonard Baskin. Amigo do casal Plath – Hughes desde que o
conheceram em 1958, no Massachusetts, Baskin permitirá a este último
reflectir sobre algo cujo declínio seria posteriormente anunciado como
dominante na pós-modernidade, a já referida ausência do transcendente no
quotidiano. Através de Baskin, Hughes reequaciona a relevância do mito
através de um revisitar das forças telúricas da natureza; fá-lo em dois
momentos específicos, e recorrendo a duas estratégias distintas: um texto em
prosa, destinado a um catálogo de uma exposição de gravuras do artista
realizada em Londres, e duas sequências de textos poéticos em diálogo com
obras de Baskin; uma, feita a convite deste para acompanhar uma edição de
gravuras suas, e que seria publicada em 1971 sob a designação de Crow, e
outra, escrita entre 1957 e 1981, destinada a acompanhar desenhos de
pássaros imaginários, feitos por Baskin, e que seria publicada em 1982 sob a
designação de Cave Birds. De acordo com as notas inseridas nos Collected
Poems sobre Cave Birds, à sequência dos poemas subjaz um processo
narrativo, “The poems plot the course of a symbolic drama, concerning
disintegration and re-integration, with contrapuntal roles played by birds and
humans.” (Ibidem, 1199) As vertentes românticas da “negative capability”
keatsiana, configurada na arte, e da enunciação dramática de Shelley
(“Ozymandias”), convergem na verbalização poética de Cave Birds. Leia-se,
pelo seu carácter exemplar, “The Summoner”:

Spectral gigantified,
Protozoic, blood-eating.
The carapace
Of forclosure.

The cuticle
Of final arrest.

Among crinkling of oak-leaves – an effulgence,


Occasionally glimpsed.

Shadow stark on the wall, all night long,


From the street-light. A sigh.

Evidence, rinds and empties,


That he also ate here.

Before dawn, your soul, sliding back,


Beholds his bronze image, grotesque on the bed.

You grow to recognize the identity


Of your protector.

Sooner or later –
The grip. (Hughes, 2003: 420)

Hughes reconhece “[a] deeper life” na estrutura do objecto (“form and


texture”, McClatchy, 1988: 290). Este é entendido enquanto palimpsesto no
qual se insinua uma essência primeira, enfim, aquilo que o mito evoca; daí a
sua relevância e o seu estatuto. Ao afirmar que o objecto desvenda “something
that survives in the afterglow of collapsed religion” (Ibidem, 291), Hughes
pretende atribuir-lhe uma função unificadora face a um espaço social onde o
discurso religioso deixou de funcionar como metanarrativa (algo de semelhante
ao que, perante a dissolução de um discurso unificador neopuritano, se
desvendara tanto na retórica emersoniana como na épica whitmaniana na
América de meados do século XIX). O objecto artístico é, deste modo,
entendido enquanto signo, hieróglifo que participa de uma sintaxe (recuperando
um certo discurso neopitagórico igualmente convocado por Emerson - “We are
symbols and inhabit symbols”, e que será estruturante nas correspondências
baudelairianas), que deve ser recuperada para que o sentido (textual) possa
dar um novo sentido à vida (onde o transcendente seja de novo possível): “...
his figures both sharpens our sense of them as hieroglyphs, cryptograms, and
intensifies that atmosphere of Cabala, where each image is striving to become
a syllable of the world as a talismanic Word” (Ibidem, 291). Para além deste
aspecto, outro devo registar, aquele que Hughes entende como a busca da
monumentalidade na escultura de Baskin (Ibidem, 306) e que decorre da leitura
de signos específicos nela nucleares (“Hanged Man” e “Dragonfly”). A dinâmica
dialéctica por eles desencadeada (Ibidem, 300-305), sustenta um registo épico
(Ibidem, 307), algo que discursos dominantes nas sociedades ocidentais do
pós-II guerra reiteradamente denegariam.

Estas dimensões projectam-se nas sequências poéticas acima


mencionadas, embora a sua real amplitude apenas possa ser perceptível para
o leitor comum após a publicação dos Collected Poems; refiro-me
especificamente a Crow, pois somente aqui se reunem poemas que, entre
1967 e 1973, surgiram dispersos por diferentes revistas e edições limitadas
(Hughes, 2003: 1254).

Ao mesmo tempo que Hughes e Plath reconheciam nas artes visuais


impulsos vários para a exploração das suas agendas estéticas pessoais, do
outro lado do Atlântico, dois grupos de poetas e artistas desvendavam novos
percursos no diálogo transdisciplinar; refiro-me ao grupo Black Mountain e à
chamada New York School of Poets. Reunido na universidade experimental da
Carolina do Norte, Black Mountain College, sob a direcção de Charles Olson*,
um grupo de poetas, pintores, músicos, arquitectos, coreógrafos, exploraram
nos seus trabalhos as possibilidades de inovação (e ruptura) decorrentes das
experiências exógenas. Num quotidiano marcado pela partilha de experiências
e descobertas, poetas como Olson, Robert Duncan ou Robert Creeley (embora
não integrando formalmente o grupo, Denise Levertov colaborou nas revistas
Black Mountain Review e Origin), artistas oriundos do mundo da dança como

*
Olson desempenhou as funções de “Rector” entre 1951 e 1956 (ano de encerramento da
instituição), sucedendo ao seu mentor Edward Dahlberg.
Merce Cunnigham, pintores como Robert Rauschenberg e Josef Albers, e
músicos como John Cage, tentaram recuperar uma certa tradição
experimentalista, em certa medida devedora de Pound, com o objectivo de
elaborar obras-síntese onde contributos vários se fundiam. Incorporando
ensinamentos do mestre Arnold Schöenberg, do dadaísmo de Duchamp, do
budismo zen, e de escritores como Joyce, Pound e (a poesia de) John Cage,
através dos seus mesósticos (variantes do acróstico), o grupo desenvolverá
uma síntese de radical dimensão visual onda a paideia se insinua.

No âmbito deste grupo interessa-me, em particular Robert Duncan,


devido à forma como essa paideia nele se configura numa intersecção entre
poesia, crítica de arte e religiosidade. Em “An Art of Wondering”, um ensaio
sobre as explorações do signo verbal na obra do artista Jess Collins, Duncan
identifica o trabalho do pintor com um “processo de comunhão e comunicação”
do qual emerge uma mensagem espiritual. À semelhança do “ouija board”,
onde as palavras vão sendo formadas, soletradas, “do outro mundo”, também
aqui as palavras participam de um jogo onde uma estrutura gradualmente
emerge; daí a sua importância enquanto visão e revelação. Duncan considera,
assim, que a pintura de Jess (como o artista é conhecido) é simultaneamente
devedora das tradições herméticas renascentistas e dos hieróglifos dos
“mystery cults and alchemical theaters” (McClatchy, 1990: 227-228). Na sua
poesia ecfrásica, Duncan prossegue esta percepção sincrética do real. Em “A
Poem Beginning with a Line by Pindar”, por exemplo, a interpretação de um
quadro de Goya é intensamente determinada, condicionada, por uma insistente
articulação entre sensualidade e espiritualidade (algo que não é estranho às
tradições poéticas místicas e herméticas):

In Goya’s canvas Cupid and Psyche


have a hurt voluptuous grace
bruised by redemption. The copper light
falling upon the brown boy’s slight body
is carnal fate that sends the soul wailing
up from blind innocence, ensnared
by dimness
into the deprivations of desiring sight.

But the eyes in Goya’s painting are soft,


diffuse with rapture absorb the flame.
Their bodies yeld out of strength.
Waves of visual pleasure
wrap them in a sorrow previous to their impatience.

A bronze of yearning, a rose that burns


the tips of their bodies, lips,
ends of fingers, nipples. He is not wingd.
His thighs are flesh, are clouds
lit by the sun in its going down,
hot luminescence at the loins of the visible.
But they are not in a landscape.
They exist in an obscurity. (Hall, 1976: 60-61)

Será, todavia, com a chamada New York School, que este diálogo entre
a poesia e as artes visuais atingirá dimensões mais peculiares, bem distantes
das intensões didácticas da paideia. Corriam os anos cinquenta, os anos da
guerra da Coreia e do macartismo, quando um grupo de jovens poetas
residentes em Nova Iorque, reconhecendo as afinidades estéticas e artísticas
que os aproximavam, iniciaram uma intensa vivência comum, criativa e cultural.
Frank O’Hara, John Ashbery, Kenneth Koch (que se tinham conhecido em
Harvard) e James Schuyler tinham em comum uma pose anticonvencional,
antiformalista (o Formalismo poético neo-eliotiano prevalecia ainda nas
universidades através dos seus sucedâneos do new criticism), uma herança
poética francófona (Rimbaud, Mallarmé e os surrealistas, para O’Hara, o qual
sentia ainda profundas afinidades com Mayakovsky; os surrealistas e Raymond
Russell, para Ashbery; Pierre Reverdy, René Char e Paul Éluard, para Koch), e
partilhavam ainda um quotidiano cosmopolita no qual imperavam as
deambulações pelos cafés, pelos bares, pelas inaugurações de exposições,
pelos museus, pelos ateliers dos artistas plásticos. O seu envolvimento com o
mundo artístico estendia-se ainda ao plano profissional: O’Hara, Ashbery e
Schuyler foram editores da Revista ART News; todos eles foram críticos de
arte; e tanto Schuyler como O’Hara foram curadores do Museum of Modern Art.
Estes eram os anos do internacionalismo artístico e estético, do mecenato; os
anos em que Nova Iorque sucedera a Paris como a grande metrópole das
artes; os anos em que artistas exilados, devido à II Grande Guerra, abriam a
sensibilidade daquele espaço às novas estéticas de vanguarda. Esta abertura
culminaria a criação de um idioma estético americano, o Expressionismo
Abstracto ou Action Painting, indissociável da figura icónica de Jackson
Pollock.

O diálogo transdisciplinar que para os Black Mountainists correspondia a


uma estratégia programática deliberada, tornar-se-ia algo de natural para a
New York School. Independentemente de eventuais ecos literários de
precursores fortes como Whitman ou Williams, será assim nas estéticas
artísticas que fervilhavam na cidade, no natural convívio entre artistas e
escritores, e na hospitalidade face à inovação, que poderemos desvendar as
inovações destes poetas. A estética baseada quer no carácter acidental de
uma poesia que flui naturalmente de um quotidiano marcado pela vivência da
arte, quer na irrelevância do referente, é evidente em “Why I am not a painter”,
um poema onde Frank O’Hara evoca (narra ?) uma visita ao estúdio do pintor
Michael Goldberg, a quem dedicaria, aliás, uma ode, “Ode to Michael Goldberg
(‘s Birth and Other Births)”:

I am not a painter, I am a poet.


Why? I think I would rather be a
painter, but I am not. Well,
For instance, Mike Goldberg
is starting a painting. I drop in.
“Sit down and have a drink” he
says. I drink; we drink. I look
up. “You have SARDINES in it.”
“Yes, it needed something there.”
“Oh.” I go and the days go by
and I drop in again. The painting
is going on, and I go, and the days
go by. I drop in. The painting is
finished. “Where’s SARDINES?”
All that’s left is just
letters, “It was too much,” Mike says.

But me? One day I am thinking of


a color: orange. I write a line
about orange. Pretty soon it is a
whole page of words, not lines.
Then another page. There should be
so much more, not of orange, of
words, of how terrible orange is
and life. Days go by. It is even in
prose, I am a real poet. My poem
is finished and I haven’t mentioned
orange yet. It’s twelve poems, I call
it ORANGES. And one day in a gallery
I see Mike’s painting, called SARDINES. (O’Hara, 1974: 112)

Num registo coloquial sustentado pela modelação entre o troqueu o


jâmbico, O’Hara reproduz o encontro quotidiano, registando quer o acaso e a
acidentalidade que marca o processo de concepção artística e poética, quer a
irrelevância do referente, se o entendermos no âmbito de uma concepção
estética determinada pela, ou ao serviço da moral. Mais do que eventuais
antecedentes poéticos, dada pode funcionar como instrumento para a
compreensão da poesia de Frank O’Hara. Com efeito, “para uma directriz
fundamental da arte moderna, a casualidade tem um papel decisivo. No
Dadaísmo ... eleva-se a casualidade na pintura e na poesia à categoria de
criadora, à categoria de compositora.” (Sedlmayr, s.d.: 63) Ora, a casualidade é
estruturante em “Why I am not a painter”. A par dela surge uma estratégia de
“debunking”, também ela radical em O’Hara. Observêmo-la em “On Seeing
Larry River’s Washington Crossing the Delaware at the Museum of Modern Art”,
um poema que, como o próprio título explicita, toma como leitmotif um quadro
de Larry Rivers, um pintor do círculo frequentado pelo grupo.
Embora o referente do poema não seja Washington mas sim o diálogo
de Rivers com uma representação sua, importa recordar a dimensão histórica
deste Founding Father, enquanto personagem respeitável e respeitada,
caracterizada por sólidos princípios éticos. Apesar de esta perspectiva ter sido
recentemente questionada, em finais da década de 1950 e no início da de 1960
ela persistia ainda. Estamos, assim, perante uma personagem histórica e
perante a sua representação artística. Será essencial ter estes dois elementos
presentes quando analisamos, tanto o quadro de Larry Rivers como o poema
de O’Hara.

Rivers concebe o seu quadro tendo em mente um outro quadro, o de


Emanuel Gottlieb Leutze que, em 1851, representou a acção heróica de
Washington na Batalha de Trenton, durante a Guerra da indepedência.

Washington Crossing the Delaware

Neste trabalho a óleo de grandes dimensões (378.5 x 647.7 cm), Leutze


expôs Washington entre onze dos seus homens, num barco, atravessando as
águas geladas do rio Delaware no dia seguinte ao Natal de 1776. O movimento
da bandeira e as reacções de algumas personagens dão ênfase ao vento forte
e ao tempo agreste. Visto estarmos face a uma representação supostamente
realista, importa anotar dois aspectos: a luz e o tamanho do barco. Por um
lado, a luz cria uma espécie de halo, sacralizando Washington, herói da
independência e primeiro presidente dos Estados Unidos. Por outro, a luz foca
a bandeira, assim simbolizando a autonomia da América, a sua separação da
Inglaterra. No entanto, de acordo com os registos históricos, Washington
atravessou o Delaware de oeste para leste, ao amanhecer, pelo que o sol
deveria despontar no lado esquerdo do quadro. Refira-se, além disso, que
surgem sombras que parecem ser oriundas de outra (misteriosa ?) fonte de luz.
O realismo envolvendo a reepresentação da luz é, portanto, questionado.
Detenhamo-nos, em seguida, sobre as dimensões do barco. Importa assinalar
que seria praticamente impossível transportar doze homens num barco tão
pequeno. Aliás, Washington usou o chamado barco Durham, o qual era muito
maior, podendo transportar até quarenta homens. Ao optar por um barco mais
pequeno, o pintor pôde dar mais ênfase ao esforço requerido durante a
travessia. Estamos, assim, perante estratégias artísticas de representação que
participam de subliminares agendas políticas ou estéticas.

Numa entrevista que Rivers concedeu a Frank O’Hara, o pintor


evidenciou a dimensão do quadro enquanto conflito (debate) com ícones
primeiros da cultura americana. Insinua-se ainda outro conflito, agora no plano
estritamente artístico, o da estética sobre a qual ancora Washington Crossing
the Delaware e as estéticas então dominantes na cena artística nova-iorquina,
entre as quais pontua o acima referido Expressionismo Abstracto ou Action
Painting*. Este conflito é explicitado na resposta de Rivers à pergunta
formulada por O’Hara, ‘What was the reaction when George [the painting] was
shown?’

About the same reaction as when the Dadaists introduced a toilet seat as a piece of
sculpture in a Dada show in Zurich. Except that the public wasn’t upset – the painters were.
One painter, Gandy Brodie, who was quite forceful, called me a phony. … all this was a reaction
to the painting as idea. (O’Hara, 1975: 113)

*
Segundo Clement Greenberg, a expressão “expressionismo abstracto” deve-se a Robert
Coates, do New Yorker. Já a expressão “action painting” foi cunhada por Harold Rosenberg na
revista Art News.
Para além deste conflito, outro subjaz à concepção do quadro, aquele
que Rivers exibe face ao objecto que pretende superar, embora não deixando
de emular Washington enquanto signo histórico. Refere Rivers:

… I was energetic and egomaniacal and what is even more: important, cocky, and
angry enough to want to do something no one in the New York art world could doubt was
disgusting, dead, and absurd. So, what could be dopier than a painting dedicated to a national
cliché – Washington Crossing the Delaware. The last painting that dealt with George and the
rebels in hanging in the Met and was painted by a coarse German nineteenth-century
academician who really loved Napoleon more than anyone and thought crossing a river on a
late December afternoon was just another excuse for a general assume a heroic, slightly tragic
pose. He practically put you in the rowboat with George. What could have inspired him I’ll never
know. What I saw in the crossing was quite different. I saw the moment as nerve-racking and
uncomfortable. I couldn’t picture anyone getting into a chilly river around Christmas time with
anything resembling hand-on-chest heroics. (Idem, 111-112)

A descrição feita por David Lehman da atmosfera prevalecente nos


círculos artísticos e literários nova-iorquinos nas décadas de cinquenta e
sessenta do século passado (Lehman, 1998: 19-64) ajuda a compreender as
estratégias poéticas de O’Hara. Mais do que recorrer às tradições literárias
canónicas ou críticas (o formalismo continuador do “New Criticism”), para
desvendar uma tradição para O’Hara, importa, como já referi, convocar o
impacto que as vanguardas artísticas europeias tiveram na sua geração e,
consequentemente, na sua poesia. Entre estas, destaca-se a estética dada;
através dela ilumina-se a poesia de O’Hara, nomeadamente o sentido de
humor subjacente ao carácter putschista com que sabota a solenidade e o
convencionalismo artístico e literário, evidenciado, por exemplo, no seu texto
“Personism: A Manifesto”. O título do poema que evoca este quadro, desvenda
essa sabotagem e essa dívida para com dada. “On Seeing Larry Rivers’
Washington Crossing the Delaware at the Museum of Modern Art” dá ênfase ao
processo e ao acto gerador do texto (“On Seing”). Na sua banalidade e
naturalidade, este acto decorre de um contexto cultural, o da atmosfera
quotidianamente vivida pela New York School: o Museu funciona, afinal, como
um substituto do estúdio do artista (Mike Goldberg) no poema “Why I Am Not A
Painter”. Em ekphrasis mais convencionais como “Ode on a Grecian Urn”, de
Keats, ou Pictures from Brueghel, de Williams, o momento a partir do qual o
poeta constrói o seu diálogo com o signo visual é algo de solene. Apesar das
diferenças radicais que os distinguem, tanto Keats como Williams preenchem
uma certa agenda teórica clássica, ambos evidenciam uma moral. Ora, nos
poemas de O’Hara a ekphrasis surge como algo equivalente a [having] “a
hamburger and a malted and buy / an ugly NEW WORLD WRITING to see what
the poets/ in Ghana are doing these days,” (O’Hara, 1974: 146) como escreve
em “The Day Lady Died”. A Literatura e a Arte deixam de se impor na sua
solenidade institucional, à semelhança daquilo que dada já propusera. E a
banalidade dos signos invade o próprio texto.

Ao lermos os primeiros versos do poema, constatamos que tantos os


heróis como a própria História são nivelados com os restantes signos do
quotidiano; tornam-se signos apenas, entre outros signos. Importa atentar no
conflito com a dimensão hagiográfica decorrente da luz (o halo) no quadro de
Leutze. A hagiografia está ausente na ligeireza da tonalidade dos versos: “Now
that our hero has come back to us / in his white pants and we know his nose /
trembling like a flag under fire…” (Idem, 101) E no humor revelado alguns
versos mais adiante: “To be more revolutionary than a nun / is our desire, to be
secular and intimate / as, when sighting a redcoat, you smile / and pull the
trigger.” (Idem) Embora este aspecto seja óbvio, não se pode ignorar o facto de
estes encontros (sabotagens ?) com a História e com os seus signos mais
representativos, respeitados, emulados, só serem possíveis em sociedades
abertas, algo que o próprio O’Hara evidencia ao escrever: “… how free we are!
as a nation of persons.” (Idem) Quão diferente este contexto cultural (de
abertura de sensibilidades e de livre realização da inteligência) daquele que, na
mesma altura, abafava um Portugal provinciano, e que Sena desmonta
(politicamente, também) em “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”!

A poesia de O’Hara é assim indissociável de um quotidiano onde as


diferentes sensibilidades e experiências criativas fluem espontanemente, e do
seu ofício enquanto curador e crítico de arte; daí a importância dos seus
escritos sobre Jackson Pollock, Franz Kline, David Smith, Robert Motherwell,
Reuben Nakian, Helen Frankenthaler, George Spaventa, Alex Katz, entre
outros, para uma ínvia compreensão da sua própria estética. Daí o carácter
torrencial da sua escrita e o impressionante número de poemas registando,
quais páginas de um Diário, as impressionantes banalidades desse quotidiano.
Algo de idêntico ocorre com o seu amigo John Ashbery.

Crítico de arte na revista Art News e no jornal New York Herald Tribune,
Ashbery exibe na sua poesia uma reiterada sensibilidade visual decorrente da
assimilação das inovações a nível da pintura com que quotidianamente se
confronta (a música funciona como outro solo de contaminação, mas a sua
leitura deverá ser convocada num estudo com outros objectivos). Some Trees,
o seu primeiro livro publicado em 1956 pela mão de W. H. Auden, explícita ou
subliminarmente, desvenda essa presença em poemas como “Two Scenes”,
“The Picture of Little J. A. In a Prospect of Flowers”, “Illustration”, “The Painter”
(uma sestina) e “Le Livre est sur la table”, nos quais o visualismo ecfrásico é
reiteradamente convocado. O seu livro seguinte, The Tennis Court Oath,
publicado em 1963, evidencia logo no título essa presença. Le serment du jeu
de paume é uma obra de David sobre os representantes do Terceiro Estado
que assumiram a sua autonomia institucional em plena época revolucionária.
Refere António M. Feijó “[q]ue o quase solipsismo de The Tennis Court Oath
acolha no título o exemplo paradigmático de uma arte pública monumental
denota a construção do volume como uma ironia prolongada e configura o título
como declinação paródica.” (Feijó, 1985: 272) Que o texto recuse a ekphrasis
indiciada no título, num processo (jogo) de refracção é algo que se decepciona
um leitor por esse título orientado (condicionado) num determinado sentido de
leitura, de reconhecimento; a ironia predomina assim. Mas a ironia de um ínvio
diálogo com a História, projecta-se ainda na assimilação de fragmentos
discursivos com proveniências várias, à semelhança das colagens de
Rauschenberg.

Após Rivers and Mountains, The Double Dream of Spring, Three Poems
e The Vermont Notebook, surge em 1975 uma obra radicalmente inovadora no
âmbito desta tradição, Self-Portrait in a Convex Mirror. Uma vez mais Ashbery
exibe a presença explícita da pintura no título do livro, o qual envia para Auto-
retrato, do pintor quinhentista Francesco Parmigianino. Recorro à síntese deste
diálogo elaborada por Blasing:

Parmigianino’s painting questions Renaissance perspectivism from within by a


meticulous application of perspectival techniques, coupled with the distortion of a convex
representation. Specifically, this distortion magnifies the painter’s organizing hand as the
centripetal focal point of the dispersal that speeds up at the periphery of the convex mirror.
Here, the technique is played up to question a metaphysic. Ashbery’s strategy is similar: in
his “convex” composition, a “near-sighted” focus on successive present moments of
attention disperses the past and the future… (Blasing, 1987: 202)

A par desta dispersão temporal surge a dispersão de registos do


discurso, oscilando entre a leitura da tradição ecfrástica, a crítica de arte, e
episódios quotidianos. No início, a tonalidade descritiva simula a convencional
ekphrasis:

As Parmigianino did it, the right hand


Bigger than the head, thrust at the viewer
And swerving easily away, as though to protect
What it advertises. A few leaded panes, old beams,
Fur, pleated muslin, a coral ring run together
In a movement supporting the face, which swims
Toward and away like the hand
Except that it is in repose. It is what is
Sequestered. (Ashbery, 1987: 196)
No entanto, algumas expressões denunciam a intervenção do sujeito, a
leitura subjectiva que aí se realiza; considere-se, por exemplo, “as though to
protect / What it advertises” e “It is what is / Sequestered”. Em seguida, o
sujeito convoca a reflexão crítica, introduzindo a leitura de Vasari (recorde-se
quão importante ele fora para Browning): “Vasari says, ‘Francesco one day set
himself / To take his own portrait, looking at himself for that purpose / In a
convex mirror...” (Ibidem) A erudição de Ashbery pode significar uma certa
opacidade face ao leitor menos familiarizado com a tradição de representação
na qual o espelho, speculum, explícita ou implicitamente, desempenha uma
função primeira na estrutura do quadro (dos auto-retratos de Rembrandt ao
espelho incluso no Auto-retrato do Artista enquanto jovem, de Dürer); ou com a
intersecção desta tradição ecfrásica com o monólogo dramático (de novo o eco
de Vasari em “Fra Lippo Lippi”, de Robert Browning); ou com os textos
fundadores da tradição (Imagines, de Filostrato); ou com os estudos de arte
que influenciaram esta tradição ecfrásica nos Estados Unidos (por exemplo, a
influência de Craven e de Gluck em Pictures from Breughel, de Williams); ou
ainda com os estudos de arte mais recentes (por exemplo, a monografia de
Sydney Freedberg sobre Parmigianino publicada em 1950).

Mas a erudição de Ashbery pode ainda significar uma certa opacidade


face ao leitor menos familiarizado com as ekphrasis mais relevantes. Segundo
Heffernan:

If “Self-Portrait” recalls both Whitman and Stevens, its debts to Keats - and specifically
to the ekphrastic Keats - are nowhere more evident than in this nearly final passage of the
poem [vs 530-40]. Like the passionate figures of the urn who finally retreat into the
’overwrought’ pattern of a “cold Pastoral,” the erotic image freezes and flattens out, taking with
the dream of iconic realization, of the two-dimensional figure three-dimensionally materialized.
… “Do I wake or sleep?” [“Ode to a Nightingale”] Ashbery turns Keats’s provocative question
into a troubled statement. “The ache / Of this waking dream” is, I gather, the ache of a
conventionally awake self-conscious dreaming of ‘reality’…(Heffernan, 1993: 188)

A este leitor escapará o diálogo com a tradição órfica que algures


interage com Shakespeare: “The figure of the englobed and captive soul [vs 56-
65] … recalls the ancient Orphic doctrine … that the soul is a prisoner of the
body. The englobed soul evokes Shakespeare’s sonnet 146, where the speaker
apostrophizes his own soul as ‘the center of my sinful earth’ and asks: ‘Why
dost thou pine within and suffer dearth,/ Painting thy outward walls so costly
gay?’ (Ibidem, 179)”

O poema recusa a indigência intelectual, a indolência de quem aguarda


uma mera catalogação de banalidades patéticas; de quem considera que a
emoção nada tem de intelectual. Em contrapartida, o poema exige uma
elevação do leitor, um saudável esforço de abertura e de aprendizagem,
também; o que não significa, porém, que a leitura se reduza a uma experiência
dominada pelo logos. Com efeito, essa erudição, em Ashbery, flui
naturalmente; o poema revela-se como comentário, solo do confessional, onde
o gosto e a percepção peculiar emergem. Posteriormente, esse registo
confessional intensifica-se, obviamente, na enunciação de eventos vários
envolvendo o sujeito; por exemplo, “Vienna where the painting is today, where /
I saw it with Pierre in the summer of 1959” (Ashbery, 1987: 203). Simula-se
uma fuga à ekphrasis, à sua solenidade. Contudo, como referi, mesmo quando
o registo ecfrásico predomina, a dimensão confessional persiste, subliminar, ao
olhar sobre o objecto, e às próprias escolhas críticas, eruditas. Afinal, as
próprias escolhas, os próprios olhares de estudiosos como Vasari, são,
também eles, subjectivos. O confessional não se reduz a uma dimensão
freudiana, de registo de patologias ou de idiossincrasias sustentadas por
dramas familiares; o confessional participa, portanto, de uma autobiografia...
intelectual. Voltamos a Sena: especular emocionalmente em verso. A distorção
do signo visual encontra eco nas sucessivas distorções, fugas, do texto. A
estética maneirista invade o texto.

A pintura não figurativa foi objecto de especulações ensaísticas (entre as


quais se situam a destes poetas), que reflectiam, nomeadamente, “sobre a
natureza da pintura abstracta [e] procuravam ... estabelecer as condições da
sua inteligibilidade...” (Feijó, 1995: 273) Nesse sentido Clement Greenberg irá
considerar que “o primeiro pintor moderno é Courbet, [por]que tentou reduzir a
sua pintura à transcrição dos ‘dados imediatos dos sentidos’, como se o olhar
fosse uma ‘máquina não ajudada pela mente’.” (Ibidem, 273) Do mesmo modo,
apontará o expressionismo abstracto a “proposta pictórica mais revolucionária
depois de Mondrian”, devido ao seu esforço para “rejeitar o contraste dos
valores como fundamento da composição.” (Lichtenstein, 1995: 587) Clyfford
Still inovaria, assim, segundo ele, por se libertar em absoluto das “referências
legíveis do cubismo.” (Ibidem, 587) A ausência de uma auto-legibilidade
referencial ou alegórica pode desencadear um discurso crítico ancorado nos
meios (elementos) específicos do objecto: ênfases e/ou contrastes de cor,
textura, dimensão*, etc.; neles poderá eventualmente desvendar metonímias de
uma agenda pessoal ou da agenda de um grupo.

Qual o lugar, porém, para a ekphrasis? A denegação do figurativo


poderá significar o fim da ekphrasis? Para uma breve reflexão sobre estas
hipóteses, tomo dois exemplos, um poema de Nancy Sullivan, intitulado
“Number 1 by Jackson Pollock (1948)”, e “To Mark Rothko of Untitled (Blue,
Green), 1969”, de Anne Cherner.

Central no âmbito das vanguardas estéticas americanas do pós-guerra,


Pollock ironicamente conhecido por “Jack, The Dripper”, devido à sua técnica
de pintura através do “dripping”, foi objecto de inúmeros estudos que
identificaram zonas de sentido várias na sua obra. Apenas a título ilustrativo, e
de uma forma necessariamente elíptica, refiro os ensaios de Clement
Greenberg, Frank O’Hara e Terree Grabenhorst-Randall. Greenberg desvenda
Pollock no âmbito de uma tradição “vocabular de formas barrocas”, da qual
participam Picasso, Miró, Siqueiros, Orozco e Hofmann. Superando-a em
quadros como She Wolf (1943) e Totem I (1945), Pollock não construirá
através da cor mas sim através de um “sentido superior dos jogos de oposição
de sombra e luz”, para conseguir propor “uma superfície carregada de pintura
que se expande como uma única imagem sinóptica.” (Greenberg, 1988: 236)
Esta leitura de Greenberg é relevante para o objecto da minha reflexão, visto
permitir evidenciar um sentido num espaço onde o signo natural se oculta.
Frank O’Hara subscreve esta perspectiva histórica, ao definir o diálogo do
pintor com o Surrealismo; esse diálogo ancorar-se-ia numa preservação do
signo: “Very few things ... were assimilated or absorbed by Pollock. They were
left intact, and given back. Paint is paint, shells and wires are shells and wire,

*
Refere O’Hara a propósito da pintura de Pollock: “Scale … has to do … with the emotional
effect of the painting upon the spectator.” (McClatchy, 1988: 212)
glass is glass, canvas is canvas. You do not find, in his work, a typewriter
becoming a stomach, a sponge becoming a brain.” (McClatchy, 1988: 199) De
igual forma, a designada presença da mitologia (Pasiphaë and Others) não
funcionaria como alegoria. E. H. Gombrich considera, aliás, que o
reconhecimento, a identificação do “action painter” com o “beholder” não deve
ser procurado na leitura [“He must try to prevent us from interpreting the marks
on the canvas as representations of any kind…” (Gombrich, 1989: 287)], mas
sim a outro nível, “with his [the artist’s] Platonic frenzy of creation, or rather with
his creation of a Platonic frenzy.” (Ibidem) A eventual presença ou denegação
da alegoria poderá ainda ser abordada numa leitura que em O’Hara apenas se
insinua, a da psicologia junguiana. Subscrevendo esta metodologia analítica,
Terree Grabenhorst-Randall identifica a presença de Jung em obras como
Mask (Barnaby, 1990: 193) propondo, ainda, uma leitura de objectos
particulares no quadro mais geral de um processo criativo:

Jung’s theory that the processes of alchemy were similar to the creative process was
embraced by many artists of the period [Pollock’s]. Alchemy is the art of transformation. The
transmutation of lead into gold is a metaphor for the evolution of the lead of personality into
the gold of spirit. Pollock effected the transformation of the self by becoming part of his work.
In his mature work of the 1950s, Pollock abandoned the traditional technique of painting a
canvas on an easel or upright against a wall. Instead, the canvas was laid on the floor so
that he could, literally, “get into the painting,” dripping and splattering paint on it from loaded
brushes while walking around it. This all-over, spontaneous effect is an example of how, in
Peter Busa’s words, “ Pollock created a new basis for physical involvement with the idea of
where man’s space is.”
… Clearly then, for Pollock, art provided an effective means of expressing the
unconscious. (Ibidem, 194-195)

Após termos tomado contacto com estas diferentes hipóteses de leitura, observemos,
em seguida, o poema de Nancy Sullivan, intitulado “Number 1 by Jackson Pollock (1948)”:

No name but a number.


Trickles and valleys of paint
Devise this maze
Into a game of Monopoly
Without any bank. Into
A linoleum on the floor
In a dream. Into
Murals inside of the mind.
No similes here. Nothing
But paint. Such purity
Taxes the poem that speaks
Still of something in a place
Or at a time.
How to realize his question
Let alone his answer? (www.english.emory.edu/Paintings&Poems)

A ekphrasis desencadeada por objectos figurativos, explícita ou


subliminarmente, dialoga com signos naturais, pelo que estes, de algum modo,
determinam o texto. Em contrapartida, neste caso, serão leituras como as de
Greenberg, O’Hara e Grabenhorst-Randall que determinam o próprio texto
poético, balcanizado, pelo objecto, para o espaço da elaboração teórica. A
dimensão especular, o speculum, não implica a enargeia, mas sim, já, a
especulação teórica. A leitura do poema implica um processo, uma diacronia; o
leitor é exposto perante o objecto numa gradual sucessão de descoberta e
especulação: desde logo, a denegação de uma eventual alegoria insinuada na
designação, no título [verso 1]; em seguida, a perplexidade perante a textura do
quadro (os contrastes de cor – a superfície - são transmutados para a
profundidade – numa releitura da perspectiva) [versos 2-5]; à qual se sucede a
evidência do próprio processo criativo [versos 5-6] que, todavia, como referiu
Grabenhorst-Randall, pode ser entendido no âmbito de uma hermenêutica
pessoal [versos 7-8]; transitando-se, depois, para a especificidade de
apropriação dos signos por parte do artista [versos 9-10], como Greenberg
muito bem explicou; e concluindo-se com os limites que o objecto designa ao
poema [versos 10-15]. Embora a enargeia persista, insinuando-se apenas em
“trickles and valleys of paint”, ou mais vagamente em “maze of Monopoly”, isso
não significa que a outra vertente original da ekphrasis, aquela que a ligava à
dimensão ética, não seja convocada; simplesmente, aqui ela decorre da
reflexão teórica.

O outro poema escolhido, “To Mark Rothko of Untitled (Blue, Green),


1969”, de Anne Cherner, revela uma diferente atitude face ao objecto.
Contrariamente ao método que segui para a análise do poema de Sullivan,
proponho-lhe, desde já, a leitura integral de “To Mark Rothko of Untitled (Blue,
Green), 1969”:

Never this scratched world, its human


brows like dry point, your harmonies
are liquid glycerin, soothing,
the lingering bath. Who knew
better than you, Mark Rothko:
color has not root nor core.
Into each other at the first
kiss fusing, a metamorphosis!
Blue paint laps about our toes,
our skin is going deep deep green –
the wild smell, the spruce,
the evergreen pricking its cool needles. (Buchwald, 1984:18)

À semelhança de um certo discurso crítico, a subjectividade é


ostensivamente explícita. O efeito no sujeito, no “beholder”, explica uma leitura
arbitrária, através da qual se estabelecem nexos de sentido entre o objecto, o
mundo, e, obviamente, esse sujeito. Recorde-se que, a propósito do efeito no
“beholder” da “arte abstracta”, Gombrich assinala a sua ambiguidade explícita
(Gombrich, 1989: 286). Essa ambiguidade radicaliza-se nos quatro últimos
versos, quando, num oximoro, o objecto se transforma em sujeito,
condicionando, absorvendo, mesmo, a identidade do “beholder”. Poder-se-á
considerar que produz esse efeito devido à intensidade nuclear da cor. Com
efeito, Greenberg considera que aquilo que, à semelhança de Still e Newman,
torna a cor tão original em Rothko é o calor (Greenberg, 1988: 244-245); isto é,
o efeito mencionado pelo sujeito. Mas esse efeito é mais amplo; Duncan
Phillips cita: “[the painting’s ability] to ‘not only pervade our consciousness but
inspire contemplation.’” (Rothko, 2001: s.p.) Prossegue Phillips:

Colour-atmosphere in painting is as old as Giovanni Bellini and his mountain


backgrounds before sunrise or after sunset. We think also of late Turner and of late Bonard. But
in Rothko there is no pictorial reference at all to remembered experience. What we recall are
not memories but old emotions disturbed or resolved – some sense of well-being suddenly
shadowed by a cloud – yellow ochres strangely suffused with a drift of gray, prevailing over an
ambience of rose, or the fire diminishing into a glow of embers, or the light when the night
descends. (Ibidem)

A ênfase no espiritual, no transcendente, tão relevante nos quadros do


início da década de 1960, e que João Miguel Fernandes Jorge toma como
impulso para a sequência de poemas de O Roubador de Água, intitulada
Rothko Chapel, parece dar lugar a uma dimensão sombria nas obras em
negros, cinzentos, e castanhos, da Primavera de 1969 (ano anterior ao seu
suicídio); uma dimensão que pode recuperar a vertente distópica antes
insinuada na representação da cidade nas suas obras do pós-guerra. É
através da intensidade da cor que a tensão disfórica impressiona o
sujeito/”beholder”; daí o carácter radicalmente subjectivo do texto.

Perante a ausência do figurativo restringir-se-á a ekphrasis a uma


balcanização teórica, ou a um registo de impressões subjectivas? Ou persistirá
na sobrevivência do signo natural?
EPÍLOGO

Entre 1983 e 1984, a Galeria Altamira publicou serigrafias de António


Palolo, Emília Nadal, José de Guimarães e António Botelho, acompanhadas de
poemas de João Miguel Fernandes Jorge, Vasco Graça Moura, Pedro Tamen e
David Mourão Ferreira; quatro caixas, cada uma delas formando um par pintor-
poeta: três serigrafias e três poemas. Apenas em Botelho se convocava uma
certa narratividade; esta era sabotada em Guimarães, e estava explicitamente
ausente em Palolo e Nadal. Cada conjunto de serigrafias designava, porém,
um microcosmo, estética ou tematicamente coerente. Por seu turno, os
poemas funcionavam, também eles, como unidades autónomas, sequências,
microcosmos. Porque os poemas não pretendiam ilustrar as serigrafias,
aqueles pares exibiam, acima de tudo, cohabitações estéticas, signos de
simultâneo encontro, refracção e fuga.

Estas publicações evidenciavam aquela que se tornara já uma presença


recorrente na poesia portuguesa após a experiência pioneira de Metamorfoses.
De alguma forma coincidindo no tempo com Metamorfoses, essa presença
surgira pontualmente em Sophia de Mello Breyner Andresen: “Sobre um
desenho de Miguel Ângelo” (Dia do Mar), “Poema inspirado nos painéis que
Júlio Resende desenhou para o monumento que devia ser construído em
Sagres” (Mar Morto, 1958), e “A pequena estátua” (Livro Sexto, 1962).

Sem a pretensão de ser exaustivo, eis alguns exemplos de livros de


poemas publicados entre 1973 e 2005, nos quais o diálogo entre a poesia e as
artes visuais é nuclear: inúmeros poemas da secção “Nau dos Corvos” de
Transporte no Tempo, de Ruy Belo (1973); António Palolo, de Joaquim Manuel
Magalhães (1978); Uma Exposição, de João Miguel Fernandes Jorge, Jorge
Molder e Joaquim Manuel Magalhães (1980); Paulo Nozolino/4 visões – Two
Friends e Uma Paixão, de Al Berto (1983); As Cartas na Mesa – poemas
figurativos, de Fernando Guerreiro (1983); Um Nome Distante, de João Miguel
Fernandes Jorge, com fotografias de esculturas de Manuel Rosa (1984);
Alguns Antecedentes Mitológicos, de Joaquim Manuel Magalhães, com
reproduções de gravuras de Ilda David ** (1985); Antologia do Cadáver
Esquisito, de Mário Cesariny (1989); A Palidez do Pensamento, de José Emílio-
Nelson (1990); o volume colectivo Ícones (1994); Gótico, de Fernando
Guerreiro (1999); Grotesco, também de Fernando Guerreiro (2000); Pela mão
de Mussorgski numa galeria com anjos, do autor destas linhas (2000); Museu
das Janelas Verdes, de João Miguel Fernandes Jorge (2002); Jardim das
Amoreiras – vinte e cinco poemas para vinte e cinco estudos anatómicos de
Vieira da Silva, igualmente de João Miguel Fernandes Jorge (2003); Variações
Metálicas, de Vasco Graça Moura, com fotografias de Ana Gaiaz sobre
esculturas de José Aurélio (2004); Nós/Nudos, de Ana Marques Gastão, sobre
quadros de Paula Rego (2004); Laocoonte, de Vasco Graça Moura (2005).

Ainda sem pretender ser exaustivo, registo alguns exemplos de poemas


que, embora isolados, convocam esta tradição: o poema “I” (“Na fase final da
cultura grega”), de Envelope, de Joaquim Manuel Magalhães (1974);
“M.B.R.D.”, em Consequência do Lugar, também de Joaquim Manuel
Magalhães (1974); o primeiro poema (“Do fundo do sarcófago”) de Cidades
Indefesas, de Fátima Maldonado (1980); “Andrea del Sarto”, “Um Barro de
Estremoz”, “Rothko’s Brown and Grey Series” e “Hommage to Puvis de
Chavannes”, em O Roubador de Água, de João Miguel Fernandes Jorge
(1981); “Felicidade da Pintura”, em O Lugar do Amor, de António Osório (1981);
“As altas torres de Ascoli Piceno”, “Meleagro” e “Artemidorus” (estes dois
últimos mais devedores da poesia dramática de Kavafis), em Tronos e
Dominações, de João Miguel Fernandes Jorge (1985); “Mulheres de Henry
Moore nos jardins” e “Natureza Morta com Bernardo Soares”, em A Lume, de
Luíza Neto Jorge (1989); “Tempo de humildade no átrio de Convento de Cristo
em Tomar”, “Oitava ao tanque do claustro (Convento de Cristo) ou outra
poética” e “Voz breve no mundo (Jardim do Convento de Cristo)”, em Âmago
Dois, de Fiama Hasse Pais Brandão (1989); “as coisas da imagem”, em Boca
Barroca, de Luís Filipe Sarmento (1990); “Igreja do Socorro”, em Canções da
Terra Distante, de António Agostinho Baptista (1994); “Em palma lembrando
Joan Miró”, em Variantes do Oiro, de José Jorge Letria (1998); “Manet” e
**
Na nota prévia à colectânea Consequência do Lugar, o autor defende a “autonomia [dos poemas] em relação a
qualquer aspecto das gravuras que então os acompanhavam e que nenhuma relação entre si pretenderam
estabelecer.” (Magalhães, 2001: 8)
“Escola de Fontainebleau”, em Florbela Espanca espanca, de Adília Lopes
(1999); “(Estudos) em Papel Croft – S/ esculturas de José Pedro Croft”, em A
Giz de Alfaiate, de Emanuel Jorge Botelho (2000); “Há um gato numa tela de
Chagal”, em O Livro dos Gatos , de José Jorge Letria (2001); “Vieira da Silva –
Aqueduto”, em Inventa uma voz no rodopio do corpo, de Ana Horta (2002); “O
quadro negro de Malevitch”, em Caminhos da guia, de Fernando Guerreiro
(2002); “Estátuas Jazentes”, em Voz Descontínua – Antologia Mínima, de João
Candeias (2002).

Apesar de breve e elíptica, esta catalogação exibe uma continuada


presença, a qual implica uma expansão, uma reformulação do convencional
conceito do poético (quão re-corrente, entre “intelectuais” até, os epíteto de
“poeta” ou “lírico” ao sonhador, ou mesmo ao tolo!). Vimos, porém, através das
práticas anglo-saxónicas, que o intenso diálogo entre a palavra e o signo
visual, não significa uma redução do poético ao analítico. Intencional ou
acidental, subliminar ou não, a experiência emocional não deixa de ser
convocada. Escreve Antonio Damasio em The Feeling of What Happens –
body, emotion and the making of consciousness: “The consequence of
extending emotional value to objects that were not biologically prescribed to be
emotionally laden is that the range of stimuli that can pontentially induce
emotions is infinite. In one way or another, most objects and situations lead to
some emotional reaction, although some far more so than others. The
emotional reaction may be weak or strong … but it is there nonetheless.”
(Damasio, 2000: 58) Se recordarmos que Semir Zeki desvendara a silenciosa e
estranha impressão de estéticas artísticas várias no sujeito – desencadeando
percepções mais ou menos intensas, mais ou menos óbvias, constataremos a
importância que uma escrita marcada por este encontro com a arte pode ter
não só face a uma tradição poética, mas também, eventualmente (caso, à
semelhança dos clássicos, as instituições onde o ensino deve ser praticado
tenham a inteligência, a ousadia e a coragem de a recuperar como estratégia
de aprendizagem), na superação do provincianismo e da ignorância.

Sei que em tempos de relativismo cultural, suportado por ressentimentos


vários, a noção de paideia tem vindo a ser rasurada. Por isso mesmo, louvo a
didáctica e continuada acção, de quase vinte anos, junto de jovens professores
de inglês, levada a cabo por Joaquim Manuel Magalhães na Faculdade de
Letras de Lisboa. Na sequência desse trabalho, algumas são já as gerações
que, em escolas espalhadas por esse país fora, têm conseguido superar o
preconceito e o reaccionarismo endógeno àquela vertente da lusa cultura que,
à esquerda e à direita, teme a mudança de hábitos, o esforço na busca de
espaços de sensibilidade estética passível de superar sórdidos quotidianos.
Baseada na sua experiência como professora de inglês de jovens do 3º ciclo
do ensino básico, a dissertação de Mestrado de Maria João Carvalho Ramos,
intitulada Nas Teias da Arte de Comunicar, mostra como este não é um
devaneio pedagógico. Quando devidamente escolhido, o texto poético que
encontra na arte um interlocutor, pode, afinal, constituir um instrumento de
aprendizagem da língua e de elevação dos horizontes culturais (as duas coisas
não estão dissociadas, como amiúde se reitera).

Conclua-se, porém, o percurso iniciado em Sena. Regressemos a


Metamorfoses, ao poema “Retrato de um Desconhecido”, de Escola
Portuguesa do século XVI, depositado no Museu Nacional de Arte Antiga.
Vimos, no primeiro capítulo, que tanto o representado, como aquele que o
representou, conhecem o anonimato. Estranha ironia face ao representado,
visto este – o retrato – supostamente ser concebido como um instrumento de
perenidade, de superação do tempo e da morte, de eventual consagração do
sujeito. Sena especula sobre esta ironia num texto onde, no ritmo de
determinadas frases –“Não sabemos / nada, inteiramente nada” - antecipa um
monólogo dramático que escreverá três anos mais tarde, “Camões dirige-se
aos seus contemporâneos”. O poema exibe, todavia, uma outra ressonância,
“My Last Duchess”, o monólogo dramático de Browning: também aqui a
peculiaridade do olhar e a mestria do artista (especulativamente questionada)
funcionam como princípios estruturantes:

Fita-nos, como o pintor pensou,


Não como jamais fitou alguém.
Ele próprio se não conheceu nunca
nesse retrato que a família, que os amigos,
sempre acharam todos parecido.
O Mestre, anos depois, que por acaso
viu, sem voltar a ver já o modelo,
o quadro esplêndido, achou pintura má
no que fizera; e não reconheceu
aquele olhar tão variamente fundo,
diverso do que, em tintas, punha sobre o mundo. (Sena, 1978: 95)

O mistério em torno das identidades perturba a especulação da primeira


estrofe. O poema sabota-se, assim, a si próprio, institui-se como peculiar
espaço de insegurança; esta sabotagem não se restringe, obviamente, ao
texto, já que é o próprio poeta, a sua autoridade, que, no limite é perturbada; o
verso solto acentua esse carácter questionador e auto-reflexivo:

Mas tudo conjectura apenas.

Quem era? Qual o nome? Não sabemos


nada, inteiramente nada. A fronte límpida,
a boca que se fecha num desdém tão vago,
os olhos falsamente juvenis, irónicos,
o róseo, o negro, a terra, a leve pincelada,
parecem falar. Apenas o parecem. E,
dele, como do Mestre, não sabemos nada.
E quanto à data... a data é muito incerta. (Ibidem)

A digressão pelo mistério da identidade passa, todavia, pelo retomar da


intensidade da expressão e da forma como ela foi artisticamente conseguida.
Com a última estrofe, expressa-se a impressão profunda do quadro (do olhar,
da expressão) no poeta. Ao afirmar-se a irrelevância da identidade, reitera-se,
subliminarmente, a importância da obra deixada pelo artista:

Quem era? Qual o nome? Não sabemos


nada, inteiramente nada. A fronte límpida,
Magnífica pintura. Oh! Sem dúvida,
de uma importante personagem. Inda
dependeremos desse jovem? Mas quem era?
Será que ele o sabia? Ou que o pintor o soube
naquel’ momento de olhos em que o mundo coube? (Ibidem)

Curioso paradoxo este: por um lado, a radical concentração do mundo no instante de um olhar; por
outro, a transcendência do (seu) tempo eventualmente invadindo (determinando ?) o nosso presente, o
presente do leitor do poema. O mistério, da identidade e da arte, persistem. A este mistério – “Tão português e
ignorado que bem podem ser dele as cinzas / que estão por detrás da pedra tumular do soldado
desconhecido” (Fernandes Jorge, 2002: 21), regressa João Miguel Fernandes Jorge em “Retrato de Jovem
Cavaleiro”, inserido em Museu das Janelas Verdes. Poeta que sistematicamente convoca esta tradição, e
autor de vários livros sobre crítica de arte (seria interessante explorar o diálogo entre a vertente do crítico e a
do poeta), Fernandes Jorge coloca o mistério num plano diferente, na singularidade da percepção. A
percepção era relevante em Sena, oscilando, entre o espírito analítico e o efeito emocional conseguido pelo
objecto. Mas em Fernandes Jorge a percepção é nuclear, devendo ser entendida na esteira de Gombrich. A
percepção está ligada à sedução e à posse. Desvendamos a sua singularidade em duas perspectivas, em
duas formas de conhecer a sedução, expostas ao longo do poema, a da rapariga e a do homem:
A rapariga ao passar reparou primeiro na renda
branca sobressainte da gorjeira metálica forrada a vermelho veludo.
Logo se prendeu ao oval do rosto, aos lábios que
querem romper em frase da vida nunca separada. E
disse a rapariga “hás-de extraviar-te nos céus
sem que vez alguma eu possa estar ao teu lado.”
Quando terminou a visita comprou-o em postal. (Ibidem)

O objecto inanimado (?), pelo “oval do rosto” e pelos “lábios”, seduziu a jovem. A posse possível
(“comprou-o em postal”) encerra uma intensa ironia, pois passa pela “compra”, pelo facto de esta não
significar uma posse real (a do corpo), e por um efectivo encontro jamais se realizar – num eco de “Ode on a
Grecian Urn”? Sucede a esta percepção o olhar algo neutro do sujeito, após o qual se expõe a percepção do
homem:

O homem
procurou-o no seu exacto lugar
na parede que lhe coube em sorte.
Conhece-o desde sempre
e sempre no seu íntimo admitiu
vir a cruzar-se com ele no extravio
dos caminhos do inferno.
Não o tem por príncipe. Não tem a ferocidade de
um Áustria, como pretendem. O homem
retira-lhe o aparato metálico da armadura
a espuma das rendas e diz que ele é português –
os de cabelo castanho –
por todos os lados. (Ibidem)

Nesta percepção con-funde-se um arquétipo decorosamente indiciado (“the love which dares not
speak its name”?), e pela moral identificado com o “extravio / dos caminhos do inferno” (evocador da incursão
do Prufrock de Eliot “through certain half-deserted streets, / The muttering retreats / Of restless nights in one-
night cheap hotels”), e uma identidade que no rosto se insinua, a de se ser português. Nestas duas
percepções desvenda-se um destino, um percurso, o dos “extravios” nos “céus”, sonhado pela rapariga, ao
“extravio” nos “infernos” (signo de censura social ?), no imaginário do homem. Tal como a rapariga, “quando
sai do museu [o homem] nunca se esquece de comprar / uma reprodução do retrato do jovem cavaleiro /
muito mais jovem do que qualquer dos seus contemporâneos, ele / entristeceu sobre os seus ombros / a
sombra do belo.” (Ibidem) Nesta reincidência (“nunca se esquece” pressupõe reencontros vários) insinua-se a
posse possível, o alcançar de uma margem (sombra) mais próxima, afinal, do Fedro, de Platão.

Este olhar sobre uma outra anónima expressão, sobre outro anónimo olhar, reenvia, assim, a Malraux,
e à peculiar função do Museu e da Arte, como espaços de cultura, descoberta e projecção para cada um de
nós: “Que nos importa a identidade do Homem do Capacete, ou do Homem da Luva? Chamam-se Rembrandt
e Ticiano. O retrato começa por deixar de ser o retrato de alguém. Até ao século XIX, todas as obras de arte
eram a imagem de algo que existia ou não existia, antes de serem obras de arte. Só aos olhos do pintor a
pintura era pintura; e, muitas, vezes, era também poesia.” (Malraux, 1965: 11-12)
FONTES

CAPÍTULO 1

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poesia (Lisboa: Assírio e Alvim, 1981).
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CAPÍTULO 2

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CAPÍTULO 3

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Índice Onomástico
Abel, Darrel, 143, 229
Abrams, M.H., 103, 229
Acis, 77
Adam, 122
Adonis, 77
Afrodite, 55
Agamémnom, 86-87
Agripa, 67
Ahab, 201
Aisenberg, Katy, 5
Al Berto, 222
Albano, 66
Albergaria, Manuel Soares de, 77
Albers, Joseph, 206
Albert, Prince, 132
Alberti, 90
Alcinoo, 30, 52-53, 69
Allen, Gay Wilson, 117, 229
Alves de Sousa, Ana Alexandra, 229
Amazonas, 71
Andógeo, 71
Andrese, Sophia de Melo Breyner, 222
Angelico, Fra, 126
Ângelo, Miguel, 77, 222
Antígona, 54, 79
Antolin, Fernando Navarro, 229
António, 67
Apollinaire, Guillaume, 164
Apolo, 30, 53-54, 69, 78, 85, 144, 173 - Febo, 71, 77, 173
Aquiles, 22, 24, 38-39, 45, 64, 67, 69-70, 81, 128, 175-178
Aracne, 51, 63, 76, 78-80
Arcimboldo, 150-151
Ares, 45
Argonautas, 51
Ariadne, 49, 73-77, 80
Ariosto, 76
Aristóteles, 53, 55-56, 59-61, 229
Arnold, Matthew, 12, 16-18,
Artemídoro, 223
Ascânio, 65
Ashbery, John, 208, 214-217, 229-230
Atena, 45 , 85
Atreu, 69
Auden, W. H., 3, 5, 175-180, 184, 186, 214
Auerbach, 154
Augusto, 63-64, 67-68
Aurélio, José, 223
Aurora, 71
Avelar, Mário, 123
Axelrod, Stephen, 194, 230
Bach, 77
Bacon, Francis, 230
Baptista, António Agostinho, 223
Baptista, S. João, 133
Baratta, Gino, 191-192, 230
Barnaby, Karin, 219, 230
Barthes, Roland, 106
Baskin, Leonard, 204-205
Baudelaire, Charles, 3, 77,106-111, 152, 230
Beaumont, Sir George, 91-92, 95-96
Becks-Malorny, 153, 230
Bellini, Giovanni, 221
Belo, Ruy, 222
Berryman, John, 182, 186
Billi, Mirella, 194-195, 230
Blake, William, 138-139
Blasing, Motlu Konuk, 193-194, 197, 215, 230
Bloom, Harold, 7
Boccaccio,, 76
Böcklin, Arnold, 193-194
Bonard, 221
Bonnefoy, Yves, 134
Botelho, António, 222
Botelho, Emanuel Jorge, 224, 230
Bradbury, Malcolm, 230
Brandão, Fiama Hasse Pais, 223
Breyner, Sophia de Mello, 13
Briand, 97
Britten, Benjamin, 77
Brodie, Gandy, 211
Brooks, Cleanth, 101, 230
Browning, Robert, 10-11, 18-19, 25, 33, 124, 127-132, 215, 225-226, 229
Brueghel, Pieter – O Velho, 77, 178-188, 213, 215, 230
Buchwald, Emilie, 230
Busa, Peter, 219
Byron, Lord, 100
Caeiro, Alberto, 7
Cage, John, 206
Camões, Luís de, 32-35, 77, 213
Campos, Álvaro de, 97
Calipso, 27, 53
Candeias, João, 224
Canova, 100
Caravaggio, 77
Carlos V, 167
Cassandra, 85
Catulo, 24, 63, 73-75, 229
Cecrópidas, 72
Cécrops, 31, 78
Céfalo, 31-32
Ceres, 78
Cerqueira, Luís, 229
Cervantes, 77
César, 167
Cesariny, Mário, 223
Cézanne, 148, 153, 156, 230
Chagal, 224
Char, René, 208
Chaucer, 76, 128
Chavannes, Puvis de, 223
Cherner, Anne, 218, 220
Chevreul, 149
Chilton, Mary, 115
Cícero, 71, 73
Cíclopes, 64
Cinatti, Ruy, 13
Cipião, 71
Clitofonte, 229
Clouard, Henri, 229
Cnossos, 72
Coates, Robert, 211
Coleridge, Samuel Taylor, 9, 12, 203
Collins, Jess, 206
Collinson, James, 126
Corneille, 77
Corneille-Agrippa, Henri, 110, 133, 230
Corot, 77
Cosimo, Piero di, 32
Costa, Teresa, 166, 170-172, 230
Courbet, 150, 217
Crane, Hart, 15
Crane, Stephan, 5
Crátilo, 59
Craven, Thomas, 183, 216
Creeley, Robert, 206
Creúsa, 65
Cristo, 167, 180 - Menino, 133
Croft, José Pedro, 224
Cronos, 31-32
Cupido, 207
d’ Este, Nicolò, 186
D’Acierno, Pellegrino, 230
da Vinci, Leonardo, 96, 99, 106, 132, 137
Dafné, 77
Dahlberg, Edward, 206
Dali, Salvador, 77
Damasio, Antonio, 224, 230
Dante, 76, 136
Daumier, Henri, 107
David, 109, 214
David, Ilda, 223
De Chirico, Giorgio, 174, 188, 190-199, 202
de la Mare, Walter, 182, 186
Dédalo, 49, 71-72, 81, 181
Delacroix, 106-107
Deleuze, Gilles, 112, 230
Delevoy, Robert L., 187, 230
della Francesca, Piero, 126
Demuth, Charles, 174
Diana, 78
Dido, 69
Dioniso, 38, 51, 54, 81
Donahue, Jane, 146
Done, John, 9
Dóris, 81
Dryden, John, 12
Duchamp, Marcel, 164, 206
Ducrot, Oswald, 146, 230
Duncan, Robert, 161, 206-207
Dürer, Albrecht, 84, 215
Eakins, Thomas, 5, 122
Édipo, 54-55, 229
Egeu, 81
Electra, 193
Elgin, Lord, 99-101
Eliot, T. S., 4, 8-15, 18, 106, 159, 165-166, 227, 229
Éluard, Paul, 208
Emerson, Ralph Waldo, 116, 205
Emílio-Nelson, José, 223
Eneias, 30, 51, 53, 63-72,
Eólia, 80
Éolo, 69
Epícuro, 76
Epstein, Jacob, 162
Erecteus, 32,
Erkkila, Betsy, 121-122, 230
Espanca, Florbela, 224
Euménides, 55
Europa, 51, 79-80
Farmhouse, Paulo, 229
Feeley, Paul Terence, 4
Feijó, A. M., 5, 214, 217, 230
Fern, Fanny, 115
Fernandes, Raúl Manuel Rosado, 229
Ferreira, David Mourão, 222
Fialho, Maria do Céu, 55, 229
Filomela, 130
Filostrato, 216
Flor, João Almeida, 10, 13, 33, 124, 130,138, 229
Foerster, Robert, 186
Folsom, Ed, 114, 116, 119-120, 123, 230
Foucault, Michel, 110
Fouquet, Jean, 186
Fragonard, 26, 36
Frankenthaler, Helen, 214
Freedberg, Sydney, 216
Fried, Michael, 134
Fuller, Margaret, 115
Gaiaz, Ana, 223
Galateia, 77
Garrod, H. W., 230
Gastão, Ana Marques, 223
Gaudier-Brzeska, Henri, 162
Gea, 32
George, Lloyd, 31, 97
Giorgi, Bruno, 33
Giotto, 126
Glück, Gustave, 183, 216
Goethe, 77
Goldberg, Michael, 208-209, 213
Golding, John, 165
Gombrich, E. H. 218, 220, 227, 230
Gonçalves, Isabel Rebelo, 5
Goya, 14, 24-25, 106, 207
Grabenhorst-Randall, Terree, 218-220
Greenberg, Clement, 211, 217-221
Greenspan, Ezra, 230
Gris, Juan, 164
Guerreiro, Cristina, 229
Guerreiro, Fernando, 222-224
Guimarães, José de, 222
Haftmann, Werner, 160
Halicarnasso, Dionísio, 38
Hall, Donald, 230
Händel, 77
Harrison, Gabriel, 114
Hayden, John O., 230
Hefesto, 22, 39, 52, 64, 176-178 ; ínclito Anfigieu, 49
Heffernan, James A. W., 5, 217, 230
Heitor, 39, 71
Hera, 80
Héracles, 51
Herbert, George, 9
Hermes, 144
Hermógenes, 59
Hesíodo, 51, 73
Hilton, Timothy, 230
Hine, Charles, 117
Hofmann, 218
Holloway, John, 98, 230
Hollyer, Samuel, 114
Homer, Winslow, 121
Homero, 22, 27, 30, 38-50, 52-53, 58, 73, 230
Horácio, 56, 60-63, 229
Horta, Ana, 224
Hueffer, Ford Madox, 135, 230
Hughes, Ted, 77, 190, 192, 204-206, 230
Hunt, William Holman, 126
Ícaro, 77, 178-183
Ifigénia, 86-87
Ives, Charles, 154, 158
Jasão, 51
Jefferson, Thomas 146
Johnson, Samuel, 12
Jonson, Ben, 12
Jorge, João Miguel Fernandes, 4, 221-223, 226-227
Jorge, Luíza Neto, 223
Joyce, James, 206
Júlio, 1
Jung, Carl, 218-219, 230
Juno, 30, 53, 69, 78-79
Júpiter, 78-79
Kandinsky, Wassily, 160
Kant, 184
Katz, Alex, 214
Kavafis, Konstandinos, 128, 223, 231
Keats, George, 102
Keats, John, 9, 12, 14, 19, 32-33, 91, 99-102, 105, 128, 141, 147, 213, 216, 230
Keats, Thomas, 102
Koch, Kenneth, 208
Kim, Thomas, 13
Kiyotada, 159
Klee, Paul, 4, 188, 190, 199, 202
Kline, Franz, 214
Krieger, Murray, 5, 59, 92, 128, 229
Lafaye, Georges, 229
Laio, 54
Landor, Walter Savage, 128
Langland, Joseph, 182, 186
Laocoonte, 83-86, 90, 223
Larkin, Philip, 5
Lauter, Paul, 230
Lefebve, Maurice-Jean, 113, 230
Lehman, David, 212
Lessing, 3, 83-90, 93, 95, 109, 138, 144, 153, 163, 188
Letria, José Jorge, 223-224
Leucipe, 229
Leucófina, Ártemis, 38
Leutze, Emanuel Gottlieb, 210, 213
Levertov, Denise, 206
Leyda, Jay, 141, 230
Lichtenstein, Jacqueline, 82, 110, 217, 230
Lima, Ângelo de, 16
Lippi, Fra Lippo, 128, 215
Lopes, Adília, 224
Lopes, Óscar, 152, 230
Lorraine, Claude, 101
Losh, James, 95
Lourenço, M. S., 109, 230
Loving, Jerome, 119, 230
Loyzeaux, Elizabeth Bergmann, 138-139, 162, 230
Lucrece, 51
Lucrécio, 24, 63, 74-76, 229
Machado, José Pedro, 173, 231
Magalhães, Joaquim Manuel, 6, 11, 36, 128, 134,222-225, 229-230
Magritte, René, 156
Maldonado, Fátima, 223
Malevitch, 224
Mallarmé, 161, 208
Malraux, André, 166-167, 179-180, 227, 231
Mammon, 144
Manet, 223
Manito, 122
Maquiavel, 18-19, 229
Marey, 164
Marino, 51
Marius, 76
Marte, 24, 63, 76, 78
Martin, Linda, 195
Martins, Fernando Cabral, 149-152
Marvell, 51
Marx, Karl, 19, 229
Matisse, Henri, 155
Mayakovsky, 208
McClatchy, J. D., 161, 163, 166, 190, 205-206, 217-218, 231
McCullough, Frances, 194, 231
McFarlane, James, 230
Meleagro, 223
Melville, Herman, 15, 140-148, 229-231
Mémnom, 71
Menken, Adah, 115
Mercúrio, 78
Meto, 66
Miguel-Ângelo, 106
Millais, John Everett, 126, 148
Milton, John, 53, 77
Minerva, 63, 68, 76, 78-81
Minos, 71, 80
Minotauro, 72-73
Mirandoloa, Pico de la, 32
Miró, Joan, 218, 223
Molder, Jorge, 222
Mondrian, Pietr, 160
Monet, 150
Monteiro, Adolfo Casais, 13
Montesquieu, 77
Monteverdi, 77
Moore, Henry, 223
Morris, William, 138
Mosco, 51
Motherwell, Robert, 214
Moura, Vasco Graça, 222-223
Mussorgsky, Modest, 223
Nadal, Emília, 222
Nakian, Reuben, 214
Napoleão, 212
Narciso, 77, 111
Negreiros, Almada , 1
Nemerov, Howard, 4
Neptuno, 68, 78
Newman, 221
Nono, 51
Nozolino, Paulo, 222
O’Hara, Frank, 208-214, 217-219, 231
Olson, Charles, 206
Orfeu, 77
Orozco, 218
Osiris, 122
Osório, António, 223
Ovídio, 30, 53, 63, 73, 76-77, 181, 229
Pã, 77
Pacino, Al, 136
Pack, Robert, 12, 229
Palas, 70,, 78
Palolo, António, 222
Pariny, Jay, 12, 229
Parmigianino, Francesco, 215-216
Pátroclo, 39
Pasífaa, 72
Pentesileia, 71
Pérgamo, 70
Perrine, Lawrence, 143, 231
Perseu, 199, 202-203
Pessoa, Fernando, 7, 10-14, 17, 229
Philips, Duncan, 221
Picander, 77
Picasso, 77, 156,159, 165, 193, 218
Piceno, Ascoli, 223
Pigmaleão, 77
Pindaro, 207
Pinheiro, Marília Futre, 42, 229
Pisão, Lúcio, 60
Platão, 56-59, 61, 71, 164, 227
Plath, Aurelia, 195-196
Plath, Sylvia, 4, 174, 182, 186-204, 206, 230-231
Plínio, 83-84
Plutarco, 56, 73
Poe, Edgar Allan, 111, 127
Pollock, Jackson, 208, 214, 217-219
Pope, Alexander, 12
Portugal, José Blanc, 13
Pound, Ezra, 4, 12, 140, 162-164, 166, 206
Pratsinis, Nikos, 128, 231
Príamo, 69, 71
Price, Kenneth, 113, 115-116, 231
Prisciano, 38-39
Prócris, 31-32,
Prosérpina, 77
Proteu, 81
Psique, 207
Puget, 106
Pushkin, 77
Quencey, 192
Quintiliano, 60
Racine, 77
Rafael, 77, 126, 148
Ramirez de Verger, Antonio, 229
Ramos, Adelaide, 229
Ramos, Maria João Carvalho, 225, 231
Ramsés II, 97
Rauschenberg, Robert, 206
Rea, 31
Régio, José, 149-150
Rego, Paula, 223
Reis, Ricardo, 7
Rembrandt, 77, 106, 167, 215, 227
Remo, 65
Resende, Júlio, 222
Reverdy, Pierre, 208
Rimbaud, 110-111, 161, 208, 231
Rivers, Larry, 209-212
Robillard, Douglas, 141, 144, 147, 231
Rocha, Andrée Crabbé, 150
Rocha Pereira, Maria Helena, 39-50, 52-53, 68-69, 71, 73, 229
Rodin, 77
Rodrigues, Fátima, 149, 231
Rómulo, 65
Rood, Ogden, 149
Roque, Georges, 164, 231
Rosa, Manuel, 222
Rose, Jacqueline, 190, 195, 231
Rosernberg, Harold, 211
Rossetti, Dante Gabriel, 110, 124, 126, 132-137, 230
Rossetti, William Michael, 126
Roston, Murray, 5, 127-130, 132, 149, 158, 165, 231
Roston, Ruth, 230
Rothko, Mark, 218, 220-221, 223
Rousseau, Douanier, 188, 190, 199, 202-203
Rubens, 106
Ruskin, John, 18, 126, 132
Russell, Raymond, 208
Safo, 54
Santos, Maria Irene Ramalho Sousa, 7
Sarmento, Luís Filipe, 223
Sarto, Andrea del, 223
Schönberg, Arnold, 154, 206
Schuyler, James, 208
Sedlmayr, Hans, 161, 209, 231
Sena, Jorge de, 1-3, 6-7, 11-37, 77, 134, 149, 157, 213, 217, 225-227, 229, 231
Seurat, 149
Shakespeare, William, 8, 9, 13, 19, 34, 51, 77, 125, 128, 216, 229; personagens - Brutus,
Hamlet, Lear, Othello, 7; Macbeth, Lady Macbeth, 8, Mariana, Angelo, 125
Shaw, George Bernard, 77
Shelley, P. B., 9, 12, 14, 18-19, 32, 91, 97, 99, 141, 147, 169, 204, 230
Sibila, 71
Siddal, Miss, 135
Sila, 76
Silentiary, Paul de, 53
Simónides, 56, 59, 82, 86, 88
Sindbad, 201
Siqueiros, 218
Smith, David, 214
Soares, Bernardo, 223
Sófocles, 54-55, 229
Sousa, Eudoro de , 229
Spaventa, George, 214
Spender, Stephen, 163
Stein, Gertrude, 4, 174-175, 231
Stein, Leo, 161
Steiner, George, 193, 231
Stephens, Frederick, 126
Stevens, Wallace, 15, 117, 159-162, 216, 231
Stevenson, Anne, 194, 231
Still, Clyfford, 217, 221
Strand, Mark, 198-199
Strauss, Richard, 77
Sullivan, Nancy, 219
Tácio, Aquiles, 229
Tamen, Miguel, 5
Tamen, Pedro, 222
Tasso, 77
Teão, 38
Tenier, David, 141, 147
Tennyson, Alfred, 124-127, 231
Teócrito, 51
Teseu, 73, 75
Tétis, 22, 39, 73, 176-178
Thomas, Dylan, 229
Thor, 195
Ticciano, 77, 167, 227
Tideu, 70
Tito, 84
Tocqueville, Alexis, 167
Tritão, 81
Troilo, 70
Trotzky, 97
Turner, 107, 221
Unamuno, Miguel de, 77
Urano, 32
van Eyck, Jan, 186
Vasari, Giorgio, 128, 215, 217
Velásquez, 77
Vénus, 24, 63, 68, 76-78
Verde, Cesário, 3,149-152, 157, 231
Verlaine, 77, 161
Veronese, 77
Vieira da Silva, Maria Helena, 223-224
Vincent, Howard P., 147, 231
Virgem, 133-137
Virgílio, 51, 63-65, 81, 84, 86, 229
Vitrúvio, 38
Voltaire, 77
Vulcano, 64, 78, 81
Washington, George, 209-212
Watteau, 106
Webster, 116, 121
Wellington, 97
Whitman, Walt, 3-4, 7, 15, 112-125, 137, 140, 143, 148, 208, 216, 229-231
Wilde, Oscar, 4
Williams, William Carlos, 15, 159, 165-175, 182-186, 208, 213, 215, 230
Winckelmann, Johann Joachim, 83-86
Woodhouse, Richard, 103
Woolf, Virginia, 153
Woolner, Thomas, 126
Wordsworth, William, 5, 9-10, 12, 14, 18, 91-93, 95-96, 157, 182-
Yeats, William Butler, 138-140, 162
Zeki, Semir, 155-156, 164-165, 224
Zeus, 31, 80, 122, 173

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