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AS TRANSFORMAÇÕES DA INTIMIDADE:

SEXUALIDADE, AMOR E EROTISMO NAS


SOCIEDADES MODERNAS- ANTHONY GIDDENS

O AMOR ROMÂNTICO E OUTRAS LIGAÇÕES


 “O amor é uma paixão, tanto para o melanésio quanto para o
europeu, e atormenta a mente e o corpo em maior ou menor
extensão; conduz muitos a um impasse, um escândalo ou uma
tragédia; mais raramente, ilumina a vida e faz com que o
coração se expanda e transborde de alegria” (Bronislaw
Malinowski).

 Registros de poesias do antigo Egito (1ooo A. C.) mostram o


amor retratado como um sufocamento do eu, semelhante a
uma espécie de doença, embora também possua poderes
ocultos:

“A sua visão me faz bem


Quando ela abre os olhos, meu corpo rejuvenesce,
Quando ela fala, eu me sinto forte,
Abraça-la expulsa meus males.
Há sete dias ela me deixou”
 Paixão uso antigo fervor religiosos
 Uso moderno conexão genérica entre amor e a ligação sexual.
 “O amor apaixonado é marcado por uma urgência que o coloca à
parte da vida cotidiana, com a qual, na verdade, ele tende a
conflitar” (p. 48).
 Por essa razão, encarado sob o ponto de vista da ordem e do dever
social, ele é perigoso.

 Não obstante, o amor passional é um fenômeno praticamente


universal, diferente do amor romântico, muito mais culturalmente
específico.

 A seguir, vejamos as características do amor ROMÂNTICO, através


da interpretação histórica do autor.
 Europa pré-moderna- Séc. XVI casamentos eram contraídos
não por atração mútua, mas sim pela mediação financeira.
Entre os pobres era uma maneira de organizar o trabalho
agrário.

 Relatos históricos contam que beijos e carícias eram raros


entre os casais camponeses na França e Alemanha do séc.
XVII.

 Grupos aristocráticos licenciosidade sexual era permitida


para as mulheres de “respeito”, já que a liberdade sexual era
uma expressão que acompanha o PODER.
As mulheres da aristocracia eram liberadas do dever
de procriar e do trabalho rotineiro, para
poderem
buscar o seu prazer sexual independente.

Madame de Pompadour George Sand


 A maior parte das civilizações parece ter criado histórias e mitos que
carregam a mensagem de que aqueles que buscam criar ligações
permanentes devido a um amor apaixonado são condenados.

“Os sofrimentos do jovem Werther”- romance de Goethe,


narrava as mazelas do jovem, apaixonado por uma jovem
prometida a outro. Por fim ele se mata. Este romance
gerou uma onda de suicídios na Alemanha, pelo força da
narrativa goethiana.
 A diferenciação entre a sexualidade “casta” do
casamento e o caráter erótico ou apaixonado dos
casos extraconjugais era absolutamente comum
entre as aristocracias. Específica da Europa era a
emergência dos ideais do amor intimamente
relacionado aos valores morais da cristandade.

 A idealização temporária do outro, típica do amor


apaixonado, se associou a um envolvimento mais
permanente com o objeto do amor, e uma certa
reflexividade já estava presente.
 O amor romântico que começou a marcar sua presença a partir do
fim do séc. XVIII, utilizou tais ideias e incorporou elementos do amour
passion. Introduziu a ideia de uma narrativa para uma vida
individual. Contar uma história é um dos sentidos do “romance”, mas
esta história agora tornava-se individualizada, inserindo o eu e o
outro numa narrativa pessoal, sem ligação particular com os
processos sociais mais amplos.

“O morro dos ventos uivantes” -Emily Brönte- 1848. Narra o amor


“maldito” entre Catherine e Heathcliff, um cigano. Composta por
elementos do romantismo gótico, seus “heróis” são violentos e
impulsivos, e há ainda o aspecto fantasmagórico que aponta para um
amor além da vida.
 Os ideias do amor romântico apontou para os laços
emergentes entre a liberdade e a autorrealização.

 O amor romântico, enquanto ideal, rompe com a


sexualidade, embora a abarque; a “virtude” começa a
assumir um novo sentido para ambos os sexos, não mais
significando inocência, mas qualidades de caráter que
distinguem a outra pessoa como “especial”.
 A dama das camélias- Alexandre Dumas Filho-
1848. Narra o romance proibido entre Armand, um
jovem aristocrata e Marguerite, uma cortesã prestes
a morrer de tuberculose. A história é baseada no
próprio amor que o autor nutriu por Marie Duplessis,
famosa cortesã da época, conhecida por usar
uma camélia em seu decote. Ela também morreu
jovem, por conta da tuberculose.
 Marie Duplessis

O romance também inspirou a ópera La traviata – (a transviada) de Verdi.


 A ideia de “romance” tanto expressou quanto contribuiu para as
mudanças seculares, afetando a vida social como um todo. Ainda
tinha ressonâncias de concepções anteriores do destino cósmico,
mas as mesclava a uma atitude que ansiava um futuro livre.
Converteu-se em uma via potencial para o controle do futuro, assim
como uma forma de segurança psicológica para aqueles cujas
vidas eram afetadas por ele.

 O “amor à primeira vista” indica a ideia de que reconhecemos


intuitivamente o ser amado, nossa “alma gêmea”, resgatando o
mito de Platão em O banquete.

 O “primeiro olhar”é uma atitude comunicativa, uma apreensão


intuitiva das qualidades do outro. É um processo de atração por
alguém que pode tornar a vida de outrem “completa”.
 O GÊNERO E O AMOR
 Alguns tem dito que o amor romântico foi um enredo engendrado
pelos homens contra as mulheres, para encher suas cabeças com
sonhos fúteis e impossíveis. Mas tal opinião não explica o apelo da
literatura romântica, ou o fato de as mulheres terem desempenhado
um papel importante na sua difusão.

 Uma onda crescente de novelas e histórias românticas, que não


diminuiu até hoje- muitas escritas por mulheres-, inundou as livrarias
do início do séc. XIX.
 Madame Bovary (1857) romance inaugural do Realismo
francês, escrito por Gustave Flaubert, que foi acusado
juridicamente de ofensa à moral e à religião (parece que na
época não entenderam a crítica de Flaubert à literatura
romântica e o papel desta nas florescentes ilusões
femininas...)
 Narra a história de Emma, jovem casada com um
medíocre farmacêutico (mas que era um moço
muito bonzinho e fiel...), que alimentada por toda a
vida com as histórias e ideais da literatura romântica,
passa a trair seu marido com amantes que só a
usurpam. No final, abandonada pelo último amante
e mergulhada em dívidas, Emma se suicida
ingerindo arsênico.
Em resposta a seus acusadores, Flaubert responde:
“Madame Bovary sou eu”.
 O surgimento da ideia do amor romântico tem de ser
compreendido em relação a vários conjuntos de influências
que afetaram as mulheres a partir do séc. XIX, tais como:

 A criação do lar,

 Modificação da relação pais-filhos,

 a “invenção”da maternidade.

 “Seja ou não a própria infância uma criação do passado


relativamente recente, conforme Ariès celebremente
declarou, sem dúvida aqueles padrões da interação pais-
filhos foram substancialmente alterados, para todas as
classes, durante o período vitoriano “repressivo”.
 PARA SABER MAIS:
 A idealização da mãe foi parte integrante da moderna
construção da maternidade e sem dúvida alimentou
diretamente alguns valores propagados sobre o amor
romântico.

 A imagem da “esposa e mãe”reforçou um modelo de “dois


sexos” das atividades e sentimentos.

 As mulheres eram reconhecidas pelos homens como sendo


diferentes, incompreensíveis- parte de um domínio estranho
aos homens.
 A ideia de que cada sexo é um mistério para o
outro é antiga, e tem sido representada de várias
maneiras nas diferentes culturas. O elemento
novo aqui era a associação da maternidade
com a feminilidade, como sendo qualidades da
personalidade- qualidades estas que certamente
estavam impregnadas de concepções bastante
firmes da sexualidade feminina.
 O amor romântico era essencialmente feminilizado. Como
revelou Francesca Cancian, antes do final do século XVIII, se
de algum modo se falava de amor em relação ao
casamento, tratava-se de um amor de companheiros, ligados
à resnponsabilidade mútua de maridos e esposas pelo
cuidado da família ou da propriedade.

 Entretanto, com a divisão das esferas de ação, a promoção


do amor tornou-se tarefa das mulheres. As ideias do amor
romântico estavam claramente associadas à subordinação
da mulher ao lar e ao seu relativo isolamento do mundo
externo.
 Mas o desenvolvimento de tais ideias foi também
uma expressão do poder das mulheres, uma
asserção contraditória da autonomia diante da
privação.

 Para os homens, as tensões entre amor romântico


e o amour passion eram tratadas separando-se
do conforto do ambiente doméstico da
sexualidade da amante ou prostituta.

 PARA SABER MAIS: FREUD, S. Sobre a tendência


universal à depreciação na esfera do amor
(Contribuições à Psicologia do amor II)- 1918.
Obras Completas, Vol. XI
 HOMEM ama a mulher casta, mas deseja a amante
promíscua.
 MULHER funde o objeto de amor ao objeto sexual.

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Consumo ávido de novelas não era testemunho de passividade.
O indivíduo buscava no êxtase o que lhe era negado no
mundo comum.

Assim, a realidade das histórias românticas era uma expressão


de fraqueza, uma incapacidade de se chegar a um acordo
com a auto-identidade frustrada na vida social real.
 Mas a literatura romântica é também uma literatura
de esperança, uma espécie de recusa.
Frequentemente rejeitava a ideia da domesticidade
estabelecida como único ideal. Em muitas histórias,
após várias aventuras amorosas, a heroína descobria
as virtudes do indivíduo íntegro, sólido, que se torna
o marido confiável.

 O amante de Lady Chatterley romance maldito


de 1928, D. H. Lawrence. Lady Chatterley tem um
marido frio e distante, além do mais ferido de guerra.
Ela encontra o amor e a companhia fiel num
camponês que reside nas terras do casal. Proibido
pela censura até a década de 1970.
 As mulheres retratadas na literatura romântica são,
em geral. Modernas, independentes e corajosas e tem
sido consistentemente retratadas deste modo.

Se o ethos do amor romântico é simplesmente compreendido


como o meio pelo qual a mulher conhece o seu “príncipe”,
isso realmente parece superficial. Embora na literatura, como
na vida, às vezes as coisas se passem deste modo, a
conquista do coração do outro é na verdade o processo de
criação de uma narrativa biográfica mútua.
 O caráter intrinsecamente subversivo da ideia de amor
romântico foi durante muito tempo mantido sob controle
pela associação do amor com o casamento e com a
maternidade; e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma
vez encontrado, é para sempre. Quando o casamento, para
a maioria da população, efetivamente era para sempre, a
congruência estrutural entre amor romântico e a parceria
sexual estava bem delimitada.

 O resultado pode ter sido anos de infelicidade, dada a frágil


conexão entre amor como uma fórmula para o casamento e
as exigências para progredir posteriormente.
 Mas um casamento eficaz, mesmo não
compensador, podia ser sustentado por uma
divisão de trabalhos entre os sexos, sendo o
marido aquele que dominava o mundo do
trabalho e do dinheiro, e a mulher, o lar e os
filhos.

 Podemos ver neste aspecto como o


confinamento da sexualidade feminina ao
casamento era importante como um símbolo da
“mulher respeitável”. Isto ao mesmo tempo
permitia aos homens conservar distância do reino
florescente da intimidade e mantinha a situação
do casamento como um objetivo primário das
mulheres.
Bibliografia: GIDDENS, A. As transformações da
intimidade. São Paulo: Unesp, 1994

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